tkpt
«5^sí*^
<«^^
^4^^^^^
M'»,£r*\ ^ Ji^^ 3 r^,jJ :
1
K
^
1
^
£
^^^^
IK»
^^^:
^^á
^^^^S
^w
^^^?2r^
r^^^"
^
^S
^
^^^
^^^^P
m
^8
1^
^^^
S
Í4^^
i^
^Pí
vi^^íi^
«0.Í
h«^
i^/?
o PANORAMA.
JORNAL LITTERARIO E INSTRUCTIVO
^ocíeiíaíie iiJropagaííora íiog CTonDccímcntosí Síteííí.
Vol. 2.'' — Serie 2/
PUBLICADO DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 1843-
LISBOA.
NA TYPOGRAPHIA DA SOCIEDADE.
Largo do Pelourinho N." 24.
PROTECTORA STTA MAGSSTADB FIDELÍSSIMA
^K^^
C; .A lUiiJrf Jl
^ji.-*
3
MEZA DA ASSEBIBLEA GERAI..
PrcsíWmí<.= Excellenlissimo Sr. CONDE DO FARROBO.
Vice-presidente = \\h\HThúmn Sr. J. ÍM. DA COSTA SILVEIRA DA MOTTA.
•5tírí-ióí=/<)=Illuslris5Ímo Sr. BARTHOLO.MICU DOS 5IARTVRES DIAS E SOUSA.
■''-•"'; r /•Vce-.'5'f67-í/ano = Illu.stiissirno Sr. AUGUSTO XAVIER DA SILVA.
O O C 1 > (l DIRECTORES.
O I « 1 *- " Anloiiio Mari.i Gonieji. s=!M. A- Vi.iiui Pedra. = Jorge César de Figaniére.
DIRECTORES SUFPXENTES.
Barlliíilumeu Loiírenro Napoleão ."\Iarlelli. =J. .M. ila C. Silveira ila Mot|a. = José Joaquim Lopes.
COJ&HESPOIlfDENTES DA SOCIEDADE.
Iteino,... Aerantks Os lllm.os Sr." José Aiiolinario da Silva.
'• Amíkante. — — Blanuel Jo.-é Goni,aIves Pereira.
•> Aljueida. — — Juão Anlunio da Silva Marques.
„ AvEiuo { ^ 5 Caniliilo Xavier de Carvalho.
í 1 Luiz Maria dos Sanlo.s.
» Bríg.íni; V — — .4nloiiio iaíc Ribeiro Franco.
" Bra(í 1. — — Luiz do Amaral Ferreira.
" Bai;ci;li,i).s — — Anlonio Joaquim de .Miranda Villas-boa».
" Ch.íves _ — Francisco Ignacio de Cid Mello e Caslro.
•■ Coimbra — — I. M. S. Paula.
n Covilhã — — José Manuel Pereira de Carvalho.
» Caminha — — Anlonio Rodrigues- d'01iveira.
» Castellu-íi iiA>cu — — Jo;iquiiii Bernardo de Sousa Gomes.
n Estremoz — — José Francisco Agnélo de Sousa Gajo.
» Elvas — — José Nic(.dau de Sousa.
t EvoRA — — José Joaquim Ramos.
FiGCEiKv I _ _ < Ricardo Din.z Homem.
í I J0.I0 da Siha Soare.5 de Menezes.
!;.,„„ ' — — I Manuel Monleiro d' Azevedo Penteado.
■■ r ARO I < t - II] I
l J João Pedro La mini.
» Guimarães ) F.ancisco José da Cosia Guimarães.
" Lacíos Francisco Xavier Baplisla.
» Lameoo Francisco Corièa da Silva Menezes.
>• MoN(,'Ão — Theolonio José Bi.lilho.
■• M1HANUEI.1.A — ■ José Anlonio de Caslro Moraes.
\ I J.isé Mailins da Costa Portugal.
» Porto [ < Joaquim Torcalo Alvares Ribeiro.
l / Francisco Ignaciu Pereira Rubiào
» Peniche ' — Manuel AiiUnio Monleiro.
» PoRTALECRE — Jusé ftlaria de Pina e Carvalho.
» Penapiel — Simão Rodrigues Ferreira.
» Sakkuikmal — Paulo R< meiro da I'"ouseca.
» Setúbal Rego & Irmãos.
n Santarém — António Gonçah es d' Almeida Uino-
n S- TiiiACd DE cACl■;.^í P.® José Caetano da Fonseca.
>* Tavira João de Paula <'(»rrêa.
o TuRREs-.\i)VAs — Cândido Joaquim .Xavier Cordeiro,
,r \ t Manuel Feri eira Quiques.
» V IZKU \ — ) _ , „ , '
í 1 Dionizio de Sousa Loureiro.
n ViLLA DO coKDE — José Fernandes Thiiiié da Silva.
>> ViLLA-REAi — Anlonio Ludovico Guimarães.
" Valeni.a — José Maria d'.-\ndrade.
Ilhas Faial — Francisco da Ciuz da Silva Reis.
,, / 1 António Pedro d'Azevedo.
n M VOEIRA I- I ,, , , . ,, ,
I — \ Alexandre l.lltz da Cunha.
c, j â Giiillieime Aniíiisto Htutze.
» S. Mii;UEL ( — — \ _ , ,
í \ Sebiisliao I udury.
» Terceira ' — — ' Pedro Giinçalves Franco.
Brazil ... B viit \ ■ — ' Joaquim .Anlonio Nogueira.
»» ('e \rá . — Manuel .Antoni'» da Rocha Júnior.
II MiRAMiÁo. — — João Gual liei lo da Costa.
II Parã — — Francisco Gaudêncio da (^osla &. C.*
» Pbrnamhiio — — Francisco Seveiiano Ucbello.
Uf , Sousa Si C.^
10 DK JAHEM10 > Jr-eiii
\ < L. & II. Laemniert.
11 PoRTo-ALccRi. — — * Anlonio M.iria do Amaral Ribeiro.
" Cin«i)E iio Rio-iaiAM>E 110 ML .... — — Jlaiuiid Jo-é Barreiros.
Françii. . . Pu. is — — L P. Aillaiid.
/níl/aí( rrn. 1,1'Miiiis — — Fosler irm.ios.
» Livr:iíi*onL — — Anlonio Julião da Costa.
" Bristul — — António Barão de Mascaienh»».
54
O PATSORAMA.
JORNAL LllTERAUlO E INSTRUCTIVO
.«
PLBI.ICADO-
gpilíi âí)j:^^^BÍIi íp:iíi):piii},iú)^^ií aíiíâ ;sriJjí])>^te31íi">í)i} i6Íl^^lJ>
AOS L3I--'OK3S ^^^S-
TTi>TiTjmTsi'5í4í?rri:jr;Tr;
F.ir.nRAU os periódicos, accomodando-
se aos usos sociaes , a entrada do an-
no , como a celebra o povo com boas
festas e folgares. Convém que a litte-
ratura mostre , cm tudo , um reflexo
de nacionalidade, e que esta, mais
que as outras , a que chamam popular , não o sen-
do em norae somente , fira uma corda ora de ale-
gria ora de tristeza , segundo a Índole das mais no-
táveis commemorarões annuacs.
\esla congratularão de etiqueta ao anno bom vem
disfarçada outra , cazeira e mais sincera , com que
cada periódico a si próprio se festeja , e o cuidado
com que atlento a prolongar a carreira dos seus
dias, esquadrinha cuidadosamente, para fugi-los
ou expulsa-los, os achaques peculiares da sua es-
pécie. Concordam todos quantos tem versado este
ponto em que o segredo ou o remédio inteiramente
se cifra no agradar aos leitores , dos quaes quasi o
mesmo dizem que diz Victor Hugo , no prologo de
Ruy Blas, dos espectadores; e da escriptura o que
o auctor franccz , do espectáculo. Como elle assen-
tam dividir os leitores em três classes- — o povo —
as senhoras — e os pensadores: — o povo que pede
sensações ao escriptor : as senhoras que exigem del-
le , e só lhe agradecem os lances dramáticos , o as
grandes emoções: e os últimos, acaso os menos
contentadiços, que á fina força querem idéas e pen-
samentos , c que com outra iguaria se não bãode
dar por satisfeitos. E a tantos paladares , ás vezes
bera estragados , tem de lisongear o amargurado
Jornal I Esforço terrível, de que ao cabo de 52 se-
manas, que conta o anno, nem sempre sahem inteiros
os veteranos da arte , e os mais experimentados.
E todavia a todos estes obstáculos vão superando
os nossos jornacs litterarios : os velhos não cedem
o campo , c novos combatentes vem afiluindo a el-
le. Que significa esta concorrência? Que sincoenta
mil espectadores estão animando esta lucta , que
sincoenta mil espíritos procuram o alimento da in-
telligencia, e que sincoenta mil cabeças estão ex-
perimentando o influxo saudável da epocha , e ac-
cumulando para o futuro cabedaes que não bãode
ser desuteis ao paiz. O povo lè. Faltará aos escrí-
ptores — e ao maior numero falta , infelizmente —
philosophia c intenção : mas isso mesmo, que se es-
tampa e publica sem propósito moral, aproveita pe-
la maior parte ora ao povo que lá o converte ao teu
fim , ora aos escríptores de verdadeiro talento e vo-
cação , que se desenganam a ergucr-se do silencio
em que dormem, para apontar o caminho aos que
vão errados.
Não desalentemos pois , porque o passo dos me-
lhoramentos tem sido sempre assim : remisso e gra-
dual. A escripta veio primeiro dar luz, cor, for-
ma , vida , expansão ao pensamento humano. Esta
descoberta , tão admirável e juntamente tão inno-
cente , teve detractores — os encomiastas do tempo
Janeiro 7—1843.
que então podia chamar-se passado. Gabavam esses
o methodo , antigo , de aprender de cor scni o au-
xilio dos caracteres ou signaes da voz, e allribuiam
a esta novidade perigosa — a escripta — a decadên-
cia dos costumes, e o ruim espirito da mocidade'.
jMuito depois , no século 7.° , veio outra invenção
também muito necessária, a da penna. Seguiu-se-
Ihe , no meado do século l-í.° , a descoberta do pa-
pel de trapos, e quasi no meado do século l'à.° , a
da imprensa : e a imprensa ainda foi mais prague-
jada do que a escripta , porque os frades , a quem
vinha demillir do oliicio de copistas, accusaram de
magia aos inventores desta arte, tão simples no pro-
cesso como prodigiosa nos resultados. Foi esta a
sorte dos grandes inventos e verdades mais benéfi-
cas que quasi não houve uma só, que contra si não
armasse um conluio de interesses e prejuízos : fo-
ram utopias, quando proclamados á face de uma
geração que os não comprehendia , muitos princí-
pios hoje triviacs ; e serão, talvez dentro era pou-
cos annos , axiomas do sizo commum , alguns dos
que agora se reputam utopias. Hoje , por merco da
imprensa, acabou o tempo em que Platão dava 100
minas [304 moedas] por uma copia de três tratados
de Pythagoras, e Aristóteles três talentos [5Í8 moe-
das] por outra copia das obras de Speusippo : os
livros , postos pela sua barateza ao alcance de to-
das as fortunas , deixaram de ser monopólio da ri-
queza. Introduziu-se nas sciencias o principio da
divisão do trabalho , e de cada ramo dos conheci-
mentos humanos se encarregaram diíTerentfes culto-
res. Subdividiram-se os próprios ramos em ramús-
culos sem fim , e, a um tempo quasi, se estendeu
e simplificou a cultura. Abolidos os feudos e os
morgados na republica das lettras , dos vastos ter-
renos da sciencia uma boa parle se retalharam em
courellas. Dos numerosos emprezarios da producção
litteraria muitos se votaram ao trabalho de forne-
cer mercadorias mais appropriadas á multidão. E
hoje , na maior parte da Europa , não é á falta de
escriptos que as gerações se definham , como ou-
tr' ora , de inedia moral. Dezoito mil escriptores
estão com a penna na mão em AUemanha. Mil e
quinhentos volumes sahem , não contando pequenos
impressos e folhas periódicas , todos os annos dos
prelos de Inglaterra. Para cima de cem mil famí-
lias, desde a mais humilde até á mais elevada ca-
thegoria do trabalho, desde o trapeiro até o auctor,
vivem hoje em França dos lucros commcrcíaes da
imprensa: o que é o menos, porque o mais é —
que por ministério da imprensa franceza estão re-
cebendo educação muitos milhões de homens na-
quelle paiz , e era todo o mundo.
Com tamanha actí\ idade a abundância de livros
é tal que já houve quem calculasse poder-se api-
nhoar um montão , que chegasse á lua , dos im-
pressos desde Guttemberg até agora ; e tanta a im-
possibilidade de dar-lhes sabida que alguém se lem-
2." Serie — VoL.. 11.
o PANORAMA.
brou já ou de por de parte os inuleis , lancando-os
ao esquecimento , ou de invocar contra clles o au-
xilio do algum novo Ornar. Em nossa casa não ha ,
por ora, que recear do diluvio que inunda as alheias.
Aqui é o eslio lillcrario mais aturado do que con-
viera ; o rio que se quizcra caudal , regalo c po-
bre ainda : nem ha temor de que se abram sobre
nós as cataractas do céu. Scintillarões da sciencia
vão apparecendo neste nosso horisontc : obras sub-
stanciaes e duradouras, accumulação de longo tra-
balho e pensar , são mais que escacissimas. Elabo-
ram-se, comtudo , c preparam-se os materiaes para
••lias : ha muita forra latente. Lè-sc e ama-se a lei-
tura. Mas louva-so o bom e o mau sem discrime ;
c corre impunemente a moeda falsa com a genuína,
.sem haver alma caritativa que tome sobre si o en-
cargo de contraste.
Quem virá que funde a critica de que não ha a
mais leve sombra entre nós? Que diga, sem rebu-
ço , ao péssimo que o é ; — ao raáu que lhe fal-
ta alguma cousa para chegar a medíocre; — ao
.sofrível que forceje por attingir as raias do bom ;
— ao que está verde que dè o tempo devido ao
crescimento e á cultura ; — ao bom que c digno de
lon\or; mas que ainda mais o seria, se alcançasse
o ser perfeito ; — e que ao perfeito renda então
francas homenagens , e não regateie coroas e ova-
ções? È falta, muito para sentir, a da critica.
Criem-na os óptimos , que os inferiores escutarão ,
c os Ínfimos da communidadc liltcraría acceitarc-
mos com acatamento conselhos c correcções.
Sem embargo desta falta, a ([uadra promctte mui-
to. Cuida-se a linguagem e o estylo mais do que
até agora. Buscam-se , consultam-se , estudam-sc ,
c rcimprimcra-se os clássicos: citam-os, elogiam-
os , c vai sendo quasi moda [Deus queira que che-
gue a ser mania] escrever era portuguez. Muitos ,
na verdade , ainda barbarisam ; mas contra esses
são os escriptores escrupulosos uma espécie de an-
tídoto , porque ha na memoria e na consciência do
povo uma luz que lhe ensina a distinguir o trajo
portuguez , próprio da língua , dos vestidos alheios
c mal ajustados com que a desfiguram ; c no ouvi-
do e sentimento do homem mais rude um princi-
pio de harmonia que lhe ensina a difTerençar os es-
tylos como os tons, e a dar preferencia, quasi sem-
pre , aos melhores.
Esta luz nos guiará , até que appareça a da cri-
tica.
Á. d' O. Marreca.
AnsE.NAL DO e\í;ri;ito.
0 Arsenal do Exercito portuguez , em Lisboa , á
Ijeira do Tejo , na parle mais oriental da cidade ,
não 6 um edificio que dentro de ura só recinto com-
prehenda todas as oílicinas do fabrico de armas , c
equipamentos , do trem de artilheria e de outros
objectos militares. Damos o prospecto da entrada
liaquella parle do Arsenal , sita á margem do rio ;
ehamam-lbe vulgarmente a Fundição, para a distin-
guir do estabelecimento de construcçõcs marítimas
"om seus respcclivos armazéns c arrecadações , a
(|ue o vulgo tem exclusivamente consignado o nome
de Arsenal, e que occupa o assento do antigo paço
<ie nossos reis. Porem a verdadeira Ftiiidicuo , dita
<le cima', onde se fundem as peças d'artilheria , é
1 luitigua ao palácio destinado para residência do
inspector, em terreno muito mais elevado , c com
serventias Íngremes , fronteiro ao templo incomple-
to do St." Engracia , no campo de St.' Clara ; c no
extremo deste campo ao nascente , quasi ao pé do
palácio do Ex.""" Sr. Conde de Lavradio, estão col-
locadas as ferrarias, e o deposilo.dos reparos e pc-
ireehos concernentes á arma de artilheria ; é csla
uma parte inlegranto do Arsenal , como também o
é a mais distancia o laboratório de fogos de artifi-
cio , a St." Apollonia , e ímmediatamente soljran-
eeiro ao Tejo. Vè-sc que é um corpo com os mem-
bros dispersos ; o que sem duvida foi devido ás díf-
lerentes opochas da ediíicação de cada uma das par-
tes avulsas , que o compõem , e que nasceram da
necessidade de occorrcr provídentemente ao forne-
cimento do exercito , depois que cslc começou a
ser permanente c regular : não se quizeram perder
os trabalhos já feitos, e como o terreno adjacente
não dava largas , erearam-se pelas visinhanças os
estabelecimentos complementares. — O descidio que
remata a este breve artigo mostra a fachada da Fioi-
dirãn tli: hai.ro , e que olha para o poente , tendo
guarnecida a avenida pelo lado da terra cflm o a|>-
paralo bellico do numerosas peças de arliiheria : as
••oliiuuias da entrada são da ordem corlnthia ; tro-
pliéus militares a coroam , tudo de bem lavrada
cantaria : o risco c d' um archilecto Mr. Larre, que
provavelmente o seria de todo o edificio , construí-
do em 1760 pelas ordens do esclarecido ministro
marquez de Pombal : interiormente, ao rcz do chão
ha a entrada para os vastos armazéns, que consti-
tuem o primeiro deposito, segundo o regulamento
vigente do 1." de julho de 183í : o pavimento des-
tes é inferior ao nível da rua comprohendida entre
a parede externa do edificio c a cortina lateral ao
Tejo ; eram escassíssimos de claridade porque re-
matavam no elevado socalco que sustenta os pateos
interiores e muitas oíTicinas , que tem serventia pe-
la calçada que costeia o edificio da parte da terra ,
em altura muito superior á entrada geral visinha
ao rio e por consequência aos mesmos armazéns :
quando alli foi inspector, o Sr. Coronel X. J. da
S. Leão fez desapparecer este grande defeito, abrin-
do-se uma espécie de saguão , resguardado conve-
nientemente pelo socalco c por um forte paredão
que forma as costas dos armazéns, e lhes dá toda
a segurança , facilitando-lhes luz c ventilação.
No lado do norte da fachada estão a secretaria ,
contadoria , archivo e outras secções civis da ins-
pecção geral do .\rsenal , oecupando o andar supe-
rior c correspondente ao outro lanço do sul : este
membro que completa a frente ao sul é uma belli-
sima e espaçosa sala sobre os armazéns já mencio-
nados contendo o armamento da cavallaria ; o topo
é da banda do rio ; e ahi collocaram o retrato em
corpo inteiro da Nossa .\ugusla Rainha , A Senhora
D. SL\ni.v li. , devido ao pincel do hábil professor
da Academia de Eellas-Arles , o Sr. Joaquim lía-
phael ; as pinturas, que alormoseam este salão ma-
gnifico, hera como o tecto da entrada , são ordina-
riamente attribui<las aos nomeados artistas Pedro
Alexandrino de (Carvalho c Cyrillo Wolkmar Jía-
chado ; mas este ultimo no seu livro intitulado «
Collecção de Menuiri»s relativas ás vidas dos pin-
tores , escuiptores , archilerlos &c. » iliz expressa-
mente o seguinte [a pag. 1-23] = Hrnno .losé do
\ alie Competiu com Pedro Alexan-
o PANORAMA.
drino, e alé aos annos de 1762 davam-lhc a prefe-
rencia , porque no teclo da escada da Fundirão , o
Pedro e o Berardo (•) fizeram nos quatro lados as
quatro partes do mundo , c clle fez o grande qua-
dro do meio. Continuou depois com a casa das pis-
tolas, aonde coloriu outros painéis allegoricos. »
Lemos na mesma obra a pag. 19o que — «Felicia-
no Narciso, que pintava optimamente architecluras
e ornatos , desenhou e dirigiu [depois do terremo-
to] os ornamentos no grande tecto da casa das pis-
tolas na Fundirão, os quaes foram executados por
elle mesmo , por António Caetano da Silva , Antó-
nio dos Santos Jíjaquim , e por outros : José Carva-
Ilio Rosa pintou as flores. — Quando pintou o grande
tecto na Fundição estava já muito convulso, o que
não obstante distingue-se o seu toque de ouro de
todos os mais pela limpeza , elegância , e perfeição
cora que c feito.» Taes são as breves noticias que
podemos achar dos artistas que desempenharam tra-
balhos mais acaliados nas obras dos edifícios do Ar-
senal do Exercito : temos porem , na esculptura ,
de mencionar devidamente ainda mais dois.
Da sala de que acabamos de fallar se passa suc-
cessivamente para outras que, igualmente com gran-
des janellas rasgadas para a rua, formam o lanço pa-
rallelo ao rio até o portão , cm frente do cães que
serve para receber ou expedir os objectos que en-
tram ou saheni do estabelecimento , transportados
por agua. Estas quatro salas tem cm seus bem dis-
postos cabides , collocadas com elegância , ordem e
aceio , as armas brancas e de fogo , geralmente de
serviço na infantaria : e assim como na primeira a
distancias regulares se acham bacamartes , nestas
se encontram esmerilhões , c outras bocas de fogo
de longo alcance , mas sem uso na guerra : muitas
armas, como espadas, terçados, &c. estão ordena-
das de espaço a espaço á maneira de vistosos tro-
pheus bellicos : diversas figuras , postas em syme-
tria , nomeadamente no principal salão , symboli-
sam as armaduras da idade media. As estatuas al-
legoricas de Marte e Vulcano , e outras , e os bus-
tos dos nossos maiores guerreiros na índia , foram
feitas por Francisco António, bom esculptor em ma-
deira e metaes , que fallcceu no fim do scculo pas-
sado , e a quem succedcu como esculptor da Fun-
dição João José de Aguiar, que lambem depois tra-
balhou em mármore, e fez alem disso a esculptu-
ra em bronze das banquetas que no Arsenal se fun-
diram para a Basílica de Mafra. Bem desejávamos
poder ampliar mais estas noticias; mas circumscre-
vendo-nos por agora ;ís que adquirimos, esperaremos
que se nos appresentem outras mais copiosas, prin-
cipalmente relativas ás obras feitas no Arsenal , e
aos seus artistas beneméritos em quaesquer epochas;
todas as que se nos offerecerem publicaremos gos-
tosos como sempre fazemos a tudo quanto é de cre-
dito e proveito nacional.
João Baptista de Castro , apesar de ser contem-
porâneo da edificação do Arsenal , apenas consagra
a esta Repartição mui poucas linhas , [no M. de
Port. Part. i.' pag. 37S da ed. de 4.°] que nada
adiantam , salvo o mencionar os nomes de três of-
ficiaes militares , que por então governaram o es-
labeleeimcuto , sendo um delles francez, cuja acti-
vidade este A. muito elogia , bem como o zelo dos
(•) Berardo Pereira Pegado, pintou os painéis de St.°
Eslevrio d'Airania ; com elle aprendeu Pedro Alexandrino;
e diz o pintor Taborda na Memoria, que junlou ás suas Re-
gras de Pintura, que consisle a maior gloria de Berardo
em ler deitado aquelle discípulo.
que lhe succederam. — Parece-nos opporluno men-
cionar aqui um iiensamenlo que se não rcalisou.
Jacome Rattoii, nas suas Itrcordaçõcs pag. 130, diz
que organisára um projecto para uma nova fabrica
de armas , e ao mesmo teniiio de obras grossas] e
finas , de ferro , aço , e cobre , e que o appresentá-
ra ao Jlinistro d'Estado, visconde de Balsemão.
Consistia o plano de Ratton na formação de uma
companhia d'accionislas, com o capital de 300 con-
tos de réis, a qual erigiria os necessários edificios
em um local junto á bacia e porto de S. Martinho,
para haver facil transporte por mar, quer das ma-
nufacturas para Lisboa , quer do car\ão de pedra
de Buarcos, que devia ser o combustivel emprega-
do para as maquinas movidas a vapor, ainda que
houvesse outros motores por agua corrente : o dito
local proporcionava igualmente a conducção pouco
dispendiosa das lenhas e madeiras do pinhal doi-
rei, que fossem necessárias. A eomitanhia , soba
protecção do Governo, devia ser administrada uni-
camente por uma Direcção composta de accionistas
e eleita pela Assemblea Geral destes. Porem este
alvitre foi regeitado, «talvez [diz o citado J. Ratton |
porque nclle entrava o mosteiro d'.\Icobaça , como
um dos principaes accionistas, visto que era de
grande proveito aos coutos do dito mosteiro, tanto
em consumo de géneros, como em augmento de po-
pulação. »
Entendamos porem que o Arsenal do Exercito não
só é uma fábrica , a qual pôde produzir grandes
vantagens, quando fornecida de matérias primas,
mas também é uma escbola dos olficios mechani-
cos , muitos dos quaes se podem intitular artes,
como por exemplo o de «abridor em metaes» o do
fabricante de instrumentos bellicos, e d'instrumcn-
tos mathemalicos , &c. Convém que este núcleo,
quaesquer que sejam os apuros da fazenda publica,
subsista no melhor estado possivel , para a todo o
tempo se lho dar desenvohimento e maior amplitu-
de ,. ao que persuadem mui ponderosas rasões de
conveniência económica e politica , que não é do
nosso instituto referir , porem mui claras para toda
a gente sensata. Assim o entendeu a benemérita
commissão , que , de ordem regia , redigiu o proje-
cto de reforma c regulamento provisório do Arse-
nal mandado observar por Decreto do 1.° de juliio
de 183 i: compoz-se a commissão dos Snr.'* P. Jo-
sé da Cunha, J. da Cruz Xavier, D. C. Barbosa
Torres : sabemos o grande esmero com que o Sr.
Xavier, Secretario Geral da Repartição, se empe-
nhou por levar á pratica mais perfeita as providen-
tes disposições do novo Regulamento; e também sa-
bemos quanto os Srs. Inspectores se tem dedicado a
mante-lo em vigor , bem como á conservação , cré-
ditos e lustre do Arsenal , a que tem presidido ;
assim o Sr. Coronel Leão , que entrou a administrar
em 1833 , como os seus dignos successores os Srs.
Barão de Monte Pedral e Barão d'Ovar, aos quaes
o estabelecimento é devedor de grandes melhora-
mentos. Sejam provas as obras, já solidas e dura-
douras , já perfeitas e trabalhadas com esmero , se-
gundo sua diversa natureza, que nestes últimos tem-
pos tem sabido do Arsenal ; onde sempre mereceu
louvor por sua dexteridade uma grande maioria de
mestres e ofíiciaes de varias officinas. Citaremos por
conchisão os recentíssimos aperfeiçoamentos intro-
duzidos nos fechos fulminantes das armas de fogo
portáteis, e o invento do martello de percussão pa-
ra as peças de artilheria, de que deu recentissima-
niente noticia oITicial a folha do Governo, e falia-
.^
o PANORAMA.
t..
ram com o devido elogio muilos oulros periódicos,
que nos dispensam de trnlar aqui matéria mui cs-
tranlia á uussa profissão. — Tarabera nos absteraos
de fallar na famosa peça d'artillicria dita, o tiro
de Diu , e no molde da Estatua Equestre , porque
já largamente o fizemos nos volumes da precedente
serie, a que o leitor curioso poderá recorrer pro-
curando pelos Índices os respectivos artigos.
o PANORAMA.
Epitomé da vida de Lciz de CahOes.
Tantos historiadores dislinctos . Ião eruditos bio-
ftraphos escreveram a vida , feitos e infortiinios do
poeta mais illtistrc de que se ufaua Portugal , que |
parecerá temeridade querermos nós tratar esta ma- ,
leria. Por certo que não nos abalançariamos a fa-
/.c-lo , se porventura uma iniica consideração nos
não incitasse. lísla considerarão é que nem todus
os nossos leitores podem com facilidade consultar
Ferreira , Faria c Sousa , Corrêa , Uibeiro , Seve-
rini de Faria, Santos, Mariz, o morgado de Malhcus,
nem mesmo o erudito Sr. bispo de Vizeu na mu
Memoria Histórica c Critica , que anda impressa
nas obras da Academia Ueal das Sciencias ; e ou-
tros preferem resumos, que melhor se compadecem
com as publicações litlcrarias do género do Pan<i-
rama, a obras difusas com quanto cheias de saber,
c repletas de vastos conhecimentos litterarios. Pa-
ra esta qualidade de leitores escrevemos pois, r
por isso esperamos dos mais rígidos censores a nn'-
recida desculiia , se escrevermos mal sobre assum-
pto tratado bem c magistralmente por penna« m.ii^
hábeis.
Aqucllc respeito c veneração que é devido ú me-
moria de uni grande homem , exige que seus con-
cidadãos religiosamente lh'o tributem por duplica-
do motivo. — 1.° Como testemunho de gratidão pa-
ra com o n(dirc esteio da grandeza nacional. — 2.°
Como dever que tem por ol>jeclo transmiltir á pos-
teridade modellos dignos d'imitação. Altos e mui
nobres exemplos nos oflereccm os séculos moder-
nos, que apesar das inculpações que cscriptorcs coe-
vos e ânimos prevenidos lhes tem feito, nem por is-
so deixam de se avantajar sobre os séculos antigo?.
Se é portanto gratidão, que não menos dever, con-
servar iiniolados para os \indouros os nomes illus-
Ircs dos varões excelsos que honraram a sua pá-
tria, quem melhor o merecerá entre os grandes en-
genhos de Portugal que Luiz de Camões ; esse que
por seu transcendente mérito , e pela ingratidão c
desamparo em que morreu no seio da terra , que
boje , porem tarde , se ufana de lhe haver dado o
ser .'
I.uiz de Camões , nasceu em Lisboa no anno de
loáí , segundo a melhor opinião, inda ([iie Se\r-
rini de Faria e Garcez Ferreira sustentem que fór.i
no anno de 1517. Simão Vaz de Camões, e Aiuia
de Sá de Macedo foram os progenitores do grande
porta. Os ascendentes de Luiz de Camões eram im-
bres , e a sua familia originaria do Galiza. O Milar
desta era o caslello de Camões , junto ao cabo de
Finisterra , donde deriva o seu appellido.
Aasco Pires de Camões foi o [irimeiro clcsía Iíi-
milia que jiassou a Portugal cm 1370, onde seguir,
o p,ir;ii!o do Sr. D. Fernando contra eirei D. Hen-
rique de Caslella. A julgar pela grandeza da do;i-
ção que o soberano portugucz lhe fez , e os cargos
quo lhe confiou, devia ser a acquisição deste fidal-
go considerada de muita imjiortancia , o a sua pes-
soa lida em grande valia. Casou era Portuga! roni
a filha de Gonçalo Tenreiro, capitão mór das arrnn-
das , de quem teve , Gonçalo A'az de Camões , .íoã;)
i Vaz de Camões, e Constança Pires de Camões.
o PANORAMA.
Do primogenilo descendem varias familias , mui
illuslres do reino. Da aliiança que fez o segundo
com Ignez Gomes da Silva , procedeu António Vaz
de Camões , o qual casou com Guiomar Vaz da Ga-
ma, de quem teve Simão Vaz de Camões, que, co-
mo dissemos , foi o progenitor do nosso immortal
jioeta.
Seus pais consta não eram abastados, porque pro-
>inham de um ramo segundo; e é notório que no
nosso Portugal filhos segundos são geralmente pou-
co avantajados ; no emianto apesar dos poucos bens
da fortuna , grande cuidado tiveram em cultivar os
raros talentos de seu filho. P. M.
(Coniinuar-sc-ha.)
Bem querer e mal fazer.
[Memorias insulanas].
= 1531 =
I.
A moura , o galan c uma discreta.
Socega-le e respira,
Formosa tjue semblante
E' esse cheio de ira !
Onve-me um pouco, escula-me um instante,
Pôde ser , se me ouvires ,
Que em vez de raiva , só de amor suspires.
= Jodo Xavier de jMaílos- =
Ode 2.» = vol. 2.°
oDiGo-TE, minha irraaã, que são boas horas de nos
acolhermos a nossos aposentamentos. — A noiíte vai
de corrida. A agulha já foge das mãos dessa mou-
ra escrava , que ahi está pcrdidinha de somno ; e a
mim mesma começa a torvar-se-me a cabeça. Adeus
até amanhaã.
"Assim me despedes, Isabel? São poucas as ve-
zes que venho a vcr-te depois que tomei estado , e
«•stas mesmas já a ti te parecem longas, quando de
companhia estamos. IVão é isso de tão boas e tão
unidas irmaãs que nós éramos I
«Da minha amisade , Águeda, não creio eu que
possas já agora duvidar. Bem te quizera sempre
«•omigo e ao pé de mim. ftlas este repasto d'alma ,
com que na tua conversação me deleito , não pódc
durar sempre ; amanhaã o renovaremos ; por em
quanto o corpo lambem pede o seu descanço. Con-
to que serás minha por estes dias.
«Não to aílianço , que asinha mo tornarei a mi-
nha morada, mal que meu senhor, e esposo, fòr
de volta da Capitania. Não te quero accresccntar
enfadamentos. . . .
Dizendo , liidia-se erguido , dobrando c anafando
«uidadosamentc a obra de lavor cm que trabalha-
va , c ao pronunciar as ultimas palavras , com voz
um tanto despeitosa , põ-la sobre um cscabcUo que
alli ficava á mão, fazendo semblante de sahir.
"Que c isso, minha irmaã , nem as boas noites
me dás? Não te vás, não, assim agastada. Tem
mão nesse teu génio assomado c vem abraçar-mc.
Já niugucm tenho na terra se não tu para me que-
rer e amar bem do coração ; ninguém , nem pai ,
nora mãi , nem marido. Águeda , acaso te offendi
tu? — pcrdoa-m'o se o fiz. Queres tu por tão pou-
co fazer quebra nesta nossa tão boa e tão sauta
iimisade?
Aliraçaram-se antes de se separarem c o fira das
despedidas foi assim mais amigável e menos seve-
ro que o principio. Eram arrufos e susceptibilida-
des de irmaãs c amigas, sempre fáceis de se des-
fazerem , mormente quando n'uma era tamanho o
desamparo de alheios alTcctos e n'outra tão vivo o
sentimento.
D. Isabel e D. Águeda de Abreu eram filhas de
João Fernandes de Abreu , senhor da Lombada do
Arco na mui fértil c formosa ilha da Aladeira. D.
Águeda casada com Miccr Eslevam Esmeraldo, ri-
co fidalgo genovez , vivia ha muito em seus coutos
c herdades , visitando de longe em longe a irmaã
a quem muito, e muito d'alma , presava. D. Isa-
bel , viuva de João Rodrigues de Noronha , que
servira clrei como bom vassallo, já capitão mór do
mar na índia , já depois capitão d'Ormuz, conser-
vava-se em sua morada quasi sempre em solidão ,
visitada de seus parentes raras vezes , e mais raras
sahindo a visita-los ; respeitada de todos e por to-
dos bem havida. Era cila sobremodo formosa c tão
formosa como discreta e tão discreta como rica , e
era moça e era linda , mas com sè-lo tanto , e de
tantos requestada , nem por isso se tentou em vol-
tar á vida de festas e saraus que a chamava, e aon-
de brilharia — dizia-lh'o o seu espelho de Veneza
— a primeira entre as melhores, e a melhor entre
as de mais nome. A'iu-se pois uma mulher , preza
por quanto o mundo pode prender, fugir delle,
enccrrar-se com suas saudades e guardar lealdade
— caso, cm verdade , de homérica estranheza ! —
a seu marido morto ; ao passo que outras, de quem
já o mundo se vai despedindo, não a guardam nem
aos esposos vivos.- — Senão houvera o mal como
se avaliaria o bem?
A Lombada do Arco , terra de que tinha o se-
nhorio, e aonde ordinariamente vivia, era uma no-
bre c mui va^ta herdade , abundante e copiosa de
todas as cousas precisas , e bem provida de quanto
o mais apurado desejo podia appeteccr. As casas
cm que a illustre Rica-dona (1) fazia seu domici-
lio eram amplas c magnificas no interior , fortes e
bem torreadas no exterior ; estando , para o que
desse e viesse , abastecidas de numerosos domésti-
cos , homens de armas, com grande copia delias,
e escudeiros , como convinha ao estado c lustre de
tão fidalga senhora , o á segurança de tão grande
habitação , assim posta ao desamparo no meio dos
campos e longe da cidade.
Era alta noite. O serão e a palestra das duas ir-
maãs que ha muito se não viam — bem que somen-
te perfumados daquella bcmdila simplcza de nossos
pais, bem que mui longe dos adubos e sainèles
dos saraus , bem que unicamente empregado no
trabalho [que dcllc se não dcsprcsavara as mais
fidalgas mãos] c em colloqnios aflectuosos — ti-
nham-se prolongado fora do costumado. Já as ayas,
donas ou donzellas , com licença de sua ama , se
haviam recolhido aos seus quartos, deixando as
obras de costura. Já a moura valida de D. Isabel
e que ao pé da sua camcra dormia, cabeceara mi;i
sollVi\ cimente , quando D. Isabel se resolvera a sc-
parar-se da irmaã , mais por lhe desejar o preciso
repouso do que para a si própria o dar. Ficando
só aiqiroximou-se da moura que dormia ou parecia
dormir sobre o seu trabalho e sacudindo-a a accor-
(1) O tiliilo de Rico-linmem, dado aos fidalgos senlio-
res de largos patrimónios, snlisisliu nlé os Icnipos dVIrei D.
Manuel — suas mullieres eram cliamadas ricas-donas. Morto
J). IManuel cm IMX ntxo julgamos commelter grave ana-
cluoiiismo conservando este Ululo 10 annos depois.
o PANORAMA.
dou rccoramondando-lhc o dcscanro na camilha que
para cila alli eslava feita. Despertou a escrava es-
tonteada c confusa apparelhando-se indecisamente
para obedecer ao mandado de sua senhora. Disse-
ra-se ao vè-la que nunca tamanho somno pesara cm
pálpebras femininas. Sahiu D. Isabel da camcra cm
que SC achava , para o seu interior aposento , logo
alli próximo, desacompanhada, que a somnolenta
moura não parecia cm estado de poder prestar ser-
viços, e nem cila os exigia de suas ayas, mormen-
te áquellas horas tão adiantadas. Sahindo cerrou
para si a porta para onde entrara e deixou só a
moura que ficara de pé do mesmo modo que a se-
nhora a deixara c como se ainda assim dormira.
.\penas porem D. Isabel do todo desappareccu , er-
gueu cila a cabeça com gesto seguro, c abrindo os
olhos vivos , brilhantes e africanos , sacudiu de si
toda aquella cxpressiio pesada , lenta c desleixada
que pouco antes se lhe notava. Ficou imraovel co-
mo estava , nem um só exterior movimento revelou
a súbita mudança que fizera , por modo que se al-
guém alli estivesse junto delia, custar-lhe-ia, ven-
do-a , a accreditar o que seus próprios olhos lhe
dissessem , lai era a iramobilidade e silencio cm
que a manhosa se conservava. E coratudo todo o
seu ser mudara. Não era já o rosto parado, os olhos
abatidos , e o gesto incerto de quem succumbe ao
somno : eram faces animadas, olhos e gesto expres-
sivos c intelligentes , como ao primeiro exame se
julgaria que os nunca cila poderia ter. Levava as
vistas ora para a parle aonde D. Isabel se sumira ,
ora para uma janella que lhe ficava fronteira. Pa-
recia aguardar alguma cousa com grande ancie-
dade. A camera em que isto se passava era mui
aceiada , porem mui singela. Um largo estrado pa-
ra as ayas , alguns cscabellos soltos c espalhados
sem alinho , cocedras e alfombras {2) para pousar
os pés, c a um canto a camilha da moura, com seu
cabeçal c almadraques mui alvos , sem que por to-
da ella houvesse mais ornamentos nem alfrezes (S).
— Uma porta que dizia para um corredor commu-
nicando com o resto da casa , outra que levava ao
aposento de D. Isabel , isto é , ao seu quarlo de
dormir e ao seu oratório , que era contiguo , e de-
fronte deste uma jauella única , dando para um
largo pomar , todo resceudente debaixo daquclle
amoroso céu da Madeira , morno e suave , c quasi
sempre céu de primavera. — Portas e janellas po-
rem estavam cuidadosamente cerradas ; ouvia-se
apeuas lá fora o manso rumorejar da folhagem , e
algum desses sons perdidos c confusos , único si-
gnal qu3 sobresahc no adormecimento geral da na-
tureza. Passár<a-se um bom espaço e ainda a mou-
ra permanecia immovel , mas alerta e com ar in-
dagador. Por fim foi-se passo a passo encaminhan-
do surrateiramente para a porta do aposento de D.
Isabel , e depois de ler alli applicado o ouvido ,
contente ao que parecia daquelle exame, dirigiu-
se para a janclla, mas tão levemente, que nem quem
na mesma camera estivesse a prcsenliría. Chegada
que fui , parou cosida cora a umbreira de pedra e
ficou perfeitamente queda , á maneira d'uma esta-
tua. Era coratudo fácil de conhecer-se a aturada
applicação com que empregava o sentido auditivo,
tendo as mãos cruzadas sobre o peito , e o collo
estendido do mesmo modo que a formosa Floripes
vendo da torre do almirante Balão caminhar para
o suplicio o seu Ião querido Gui de Borgonha , co-
(2) Alcalilas.
(3) Mobília.
mo no-lo pinta o critico José Agostinho de Mace-
do, naquelle seu bom livro das =:/'a/t'nrfas.= Uma
sombra movendo-sc c atravessando assim a camera
de um para outro lado não faria menos rumor do
que a moura fez no ir cumprindo a obra misterio-
sa de que toda parecia occupada. Passaram-sc ain-
da instantes , c pouco depois sentiu-se um iiequenn
assovio curto e intermittentc que ouvidos pouco apu-
rados não saberiam ao certo distinguir desses quei-
xumes longínquos das florestas edan(julc. Xão acon-
teceu porem assim com a moura. Tirou mui acau-
teladamente as grossas trancas da janella , com si-
lencio tamanho , c tal presteza que nem que toda
a rida a tivesse passado em estudar a arte de des-
trancar janellas. Passada esta primeira operação res-
tava só correr o fecho : fè-lo assim e a larga porta
da janella desandou nos seus gonzos, gemendo agu-
damente c dando súbita passagem á brisa nocturna
que fez oscillar c encurvar a breve chamma d' um
candéu , única luz que á moura ficara. Ao inespe-
rado rumor comprimiu ella a respiração , cessando
lodo o movimento, e escutando anelada em quanto
o coração lhe pulava lá no peito. Nada se seguiu.
Com passo lento , apenas trahido por um ligeiro
ranger do pavimento, foi direita á camilha tirou de-
baixo do cabeçal uma escada de corda , com seus
ganchos e com iguaes cautelas voltou á janella ,
firmou uma das extremidades no parapeito e pcn-
dendo-se para fora atirou com a escada a baixo.
Em menos de um credo viu-sc successivamentc
appareccr a cabeça , os hombros e por fira todo o
corpo de ura homem , que enlrou com o mesmo si-
lencio com que tudo se acabara. Era clle moco c
bem disposto , c trajava gibão singelo apertado por
um cinto de couro debruado com um pequeno cir-
culo mui luzidio de peltrc (4) , c umas calças gol-
peadas , tudo de panno grisisco (5) ordinário. lS"ão
dizia porem esta apparenle c peã modéstia de ves-
tuário , nem com o seu ar decidido , que bera se
podia chamar insolente , nem com o penteado c
desvelado dos cabellos perfumados , nem com as
largas botas ornadas de formosas esporas á gineta
lustrosas e sonoras , nem com o arrogante pluma-
cho que lhe ondeava no chapéu , nem sobretudo
com o longo e rico punhal que trazia no cinto, cu-
jo cabo , mui primorosamente lavrado , tinha es-
culpida uma torre de prata , em campo verde, com
ameias e coruchéu , rematando cm cruz de ouro ,
c dois lobos rompendo contra a torre : ora estas
eram as armas d'uraa nobre familia (C) , a primei-
ra então entre as da ilha.
Apenas saltou no pavimento tirou o desconheci-
do , assim inconsequente no seu modo de trajar ,
uma bolça , que parecia bem recheada de esphe-
ras (~ j de ouro c , enlregaudo-a desleixadamente á
moura , caminhou cora ar deliljcrado para a porta
do aposento de D. Isabel. Quanto á escrava , que
cm toda esta sceua , rapidamente passada , não dis-
sera palavra, tomando a bolsa e pesando-a nas mãos
(4) Lalãj.
(5) Panno escuro ou de còr leonada ; naliiralmciile do
gris dos francezes , dos quaes lahez nos vinha o t;il panno.
(6) Estas são com eíTeiío as armas dos Camarás, con-
cedidas p"r D. AlTonso 5.° em Santarém em 1540 a .Tuài>
Gonçalves Zarco, descobridor da illia da Jladeira, com o
appellido de Camará de Lobos , em memoria de uma ia|)a
ou jrula á feição de camará , mui trilhada dos lubos , e pri-
meiro loiar que aquelle capilão visitou quando sahiu eni
terra. — Nobil. &c.
(7) Moeda mandada cunhar por eirei D. Manuel qee
tinha d'um lado uma esphera e do outro a leira uMra"
8
O PANORAMA.
foi aninhar-se na sua camilha como se de nada sou-
bera c nada vira.
Já o atrevido intruso se dispunha a franquear a
porta quando esta descerrando-se deixou ver a di-
gna e severa figura de D. Isabel , que tendo passa-
do o tempo no seu oratório, e presentindo rumor,
se encaminhava a ver o que se passava. D. Isabel
ora uma dama de corarão varonil , e animo intré-
pido ; parou e medindo o indiscreto hospede com
as vistas, pareceu antes admirada que assustada ;
não foi assim porem com elle ; apesar do despejo
fjuc mostrara , ficou mcãmcntc abalado.
«Porventura, meu primo ■ — disse D. Isabel cor-
rendo toda a camera cora os olhos , e dando visos
de conhecer já o modo porque se eíTecluára a es-
tranha ascenção do desconhecido — porventura con-
vém a nm cavallciro leal fazer visitas a estas horas
da nuulc, quando de dia é recebido; entrar pela
janella, quando a porta está franca?»
A serenidade e placidez com que esta pergunta
fui feita, e o tom e ar senhoril de quem afazia, co-
mo que um pouco desconcertaram o nosso pimpão ,
(jue linha talvez feito conta com uma scena mais
de romance. — E nisto dava elle ares do certos lei-
íorcs que eu d'aqui estou ouvindo a chamarem-mc
somsaborão e o que mais quizcreni , por lhes não
aproveitar aqui tão boa occasião para gritos, des-
maios , pragas , blasphemias , punhaes , coroando
ludo depois .... com uma boa ressurreição , muito
Irisante c muito a tempo. Mas que quereis? Prefe-
ri antes fazer passar as cousas mais simples e chaã-
mcnte , isto é , como realmente aconteceram. Já
lambem no meu bom tempo vos fiz a vontade, já
cri isso cousa inimitável , porem que hade ser?
esta pobre humanidade é tão frágil I Agora ... ago-
ra digo como dizia o elegante e dolorido Bernar-
dim Kibeiro que, entre nós, era poeta a valer. . . .
. . . Na crença e na esperança.
Em ambas ha hi cuidado ,
Em ambas ha hi mudança.
Postoquc pouco á sua vontade com a recepção
que lhe faziam , da qual palpavelmente se via que
não era temido, procurou comtudo o incógnito con-
servar boa feição, balbuciando Ires ou quatro tri-
vialidades que não acertou em acabar, até que por
fim pôde formular esta resposta, que elle provavel-
mente julgou mui cabal , e que vós julgareis como
quizcrdcs.
« Prima e senhora minha , se , para o que per-
tendo do vós eu vos buscasse de dia , talvez nem
de uonte podesse voltar, a menos que o não flzessse
em som de guerra. . . .
Aqui tomou elle um gesto soberbo em quanto
que cila sorria encolhendo os hombros. Continuou :
«E isso não o desejo eu. Se pela porta vos pro-
curasse arriscava-mc um tanto a sahir pela janella
mesmo apesar de todas as diligencias desta ou de
outra mais honrosa arma para a minha mão.» —
!'onsou a mão no punho do ferro e olhou para o lo-
gar nú da espada. — «Assim que, preferi entrar
polu janella para sahir pela porta , buscar-vos de
noute para vos apparccer de dia.
« E SC vós , primo , arriscardes tanto ou mais
neste do que arriscaríeis no primeiro desses dois
casos?
Tambcra já era visível que o bom do primo ti-
nha já reassumido toda a sua deliberação , momen-
tos interrompida.
«Não arriscarei não, prima e senhora minha —
tornou elle com ar acatado mas resoluto — que vós
estais aqui em meu poder, e eu acabei comigo
cumprir hoje o que de vós pertendo. Dormem to-
dos, só nós velámos. . . enlendeis-me.
D. Isabel d'iim volver d'olhos calculou a somma
de probabilidades a favor da opinião do primo, que
parecia homem afferrado ás suas , e vendo-se só ,
no meio do silencio e da noute, sem meios de cha-
mar soccorro , e á mercê inteira de um indi\iduo
deliberado , tendo só junto de si a pérfida escrava
que fazia semblante de dormir, achou que a sua
situação era precária a não poder sc-Io mais , mas
como discreta que era tomou a sua decisão e disse
rigidamente ao primo :
«Que perlcndeis pois do mim?
«Que me trateis a mim, formosa prima, — res-
pondeu elle — com menos asperidade do que a to-
dos tendes tratado. Somos iguaes nos bens e na fi-
dalguia , somos parentes ... e cu amo-vos. . . Oh I
não vos irriteis. — Se me ouvirdes talvez troqueis
vossa fera condição . . . consenti em dar-me a vossa
mão. Os nossos senhorios são visinhos , torna-los-
licmos o mais vasto morgado de toda a ilha. . . . E
já agora que outra cousa podeis vós fazer I . . . . O
homem que entrou no vosso aposento pela janella
como amante, só deve de sahir pela porta como es-
poso.
«Ou como salteador.
«E quem ousará em toda a ilha affirmar que An-
tónio Gonçalves da Camará entrou em casa de D.
Isabel d'Abreu como salteador. Com que testemu-
nhas o provareis? Nem com dizc-lo ficareis menos
dcsh ourada , prima e senhora. »
«Dcshonrada !
D. Isabel meditou algum tempo, e depois sem
perturbar-se respondeu :
« E não podereis vós , para cumprirdes vosso in-
tento , deixar de me deshonrar aos olhos de lodos?
Ide-vos por onde viestes. Que ninguém vos pres-
sinta. Voltai em poucos dias para me levardes co-
mo esposa , que nisso consinto e havido depois o
rescripto de Roma serei vossa mulher.»
António da Camará , presumido e namorado , es-
teve para allí morrer de gosto. Beijou a mão de D.
Isabel , e esgotou todo o repertório de suas fine-
zas , que ella supportou com admirável paciência.
Um momento de deliberação , linha no seu concei-
to, conquistado a inconquistavcl prima, e sem real-
mente compromette-la tinha elle vencido o que sem
o escândalo julgara invencível.
Uma hora depois todos os accusadores signacs
de invasão nocturna tinham desapparecido com tan-
to silencio como o com que se haviam apromptado.
Na principal sala de sua morada D. Isabel dava
esta ordem a um escudeiro.
« Que todos os homens d'armas , escudeiros , e
serventes da Lombada do Arco , estejam promptos
ao primeiro alvor da manhaã. Que as armas se ap-
parelhcm e que se faça boa guarda , e aprestos pa-
ra qualquer defensão.
« Receia acaso , vossa mercê ? . . . »
«Obedecer c calar I »
A moura desappareceu também.
S. Leal Júnior.
[Continuar-te-ha . ]
A cnRiosiDADE se apascenta de noticias ; c o mundo
é um thcalro de novidades.
••
5.J
o PANORAaiA.
"^m^
mm »"''■
III
ÍF
illKlií
«ffiipípi
«?í^
1 ff'^
Janeiro 14 — 1843.
ii." bEIUE — >oi il.
10
o PANORAMA.
Para cabal intelligencia deste cartão do insigne Ra-
phael referiremos primeiro a scena evangélica, que
representa , segundo o texto Sagrado , c servindo-
nos da Iraducção da Vulgata pelo P." Pereira. =
— «E veio Jesus para as partes de Cesárea de
Filippe : e fez a seus discípulos esta pergunta , di-
zendo : Quem dizem os homens que c o Filho do
Homem? — E elles responderam : Uns dizem que
João Baptista , mas outros que Elias , c outros que
Jeremias, ou algum dos prophetas. — Dissc-lhcs
Jesus: E vós quem dizeis que sou Eu? — Respon-
dendo Simão Pedro disse : Tu és o Christo (1) , Fi-
lho de Deus vivo. — E respondendo Jesus, lhe dis-
se; Bemaventurado és Simão lilho de João: porque
não foi a carne e sangue quem to revelou , mas
sim meu Pai , que está nos Céus. — Também te di-
go que tu és Pedro (2) , e sobre esta pedra edifi-
carei a minha Igreja , e as portas do inferno nao
prevalecerão contra ella. — E Eu te daiei as cha-
ves do Reino dos Céus. E tudo o que ligares sobre
a terra será ligado também nos Céus, e tudo o que
desatares sobre a terra será desatado também nos
Céus." —
Fácil é dccomprehender que a acção e exposição
deste assumpto , não obstante o sublime e solemne
das palavras , não tem a variedade de circumstan-
cias requeridas para a composição de um painel
cm grande : porem o talento inventivo de Raphael
achou meio de o apprescntar variado , próprio c
completo. — O Redemptor está figurado, como era
de rasão, a conveniente distancia e na postura de
raageslosa singeleza : com uma das mãos aponta o
rebanho de ovelhas, que o artista trouxe ao quailro
alludiudo ás memoráveis palavras, que o Salvador
dirigiu ao mesmo apostolo cm outra occasião : apas-
centa as minhas ovelhas ; cora a outra mão entrega
as chaves ao fiel Simão Pedro , que de joelhos as
recebe com summa reverencia. Os outros apóstolos
formam ura grupo bastante unido , como o seu nu-
mero exigia : um delles, que tem a mão esten<iida,
mostra-se penetrado de todo o mystcrio daquellas
palavras , e contempla Pedro como vigário do Di-
vino Mestre, ao passo que o discípulo querido, João,
de mãos postas parece chegar-se a Christo , expri-
mindo no rosto sincero o alYeeto que o anima. Cada
cabeça deste grupo tom sua phisionomia peculiar,
com a expressão adequada : porem o semblante do
Salvador é verdadeiramente sublime e formoso, an-
nunciando todas as circumstancias que tinham de
.Tcompanhar a sua divina missão na terra, o desam-
paro em que Israel o havia de por , o amargo cáli-
ce que devia esgotar , e o triuinpho final sobre a
morte e o peccado : pelo que Uaphacl trajou Jcsu
Christo por modo diverso do que ordinariamente fi-
guram a sua imagem sacrosanta , e lhe poz cm os
pés e mãos os signaes da futura crucifixão. — Todo
o cartão foi delineado com tanla naturalidade que
não será fácil imaginar o como poderia succeder o
acontecimento , que indica , de outro modo que não
fosse o que alli está representado. — O transumplo,
que apprcscntàmos, serve para revelar o pensamen-
to do cximio artista : bem pôde conheccr-se que o
acabamento de suas obras só nos originacs se ava-
liará , e quando muito nas copias cxtrahidas por
mãos de pintores dislinctos.
(1) O nome Christo quer ilizcr o ungido de Dcm-
(í) O prinripe dos Apóstolos leve por primeiro nome
Simão, que Jesus llie miulou para Crphas , ijite qiirr dizir
Ptílro [Evanj. seg. S. JoSo cap. 1.° j^ 42] , e é palavra
«yriaca , eqiiivalciUe de rocha ou pedra-
O BOBO.
1128.
I.
Inlroducfão.
A MORTE de ACfonso 6.° de Leão e Castella produ-
ziu nos estados christãos da Ilespanha aconteci-
mentos ainda mais graves do que os previstos por
elle, no momento cm que ia trocar a cola c a cer-
vilheira de guerra pela mortalha pacifica do sepul-
chro, que o recebeu no mosteiro de S. Facundo ou
Sahagun. O génio inquieto dos barões leonezes ,
gallegos e castelhanos, facilmente achou pretextos,
para dar largas ás suas ambições e vinganças , na
violenta situação politica, em que o príncipe mori-
bundo collocára o paiz. Costumado a considerar o
valor brilhante, a audácia desmesurada, o phrenesi
das batalhas e conquistas, como o primeiro dote de
qualquer monarcha , e achando-sc orphão do único
filho que o céu lhe concedera — o infante D. San-
cho morto cm annos viçosos no infeliz conDicto d'U-
cles — Affonso alongava os olhos pelas províncias
do império , buscando ura homem cujo braço fos-
se assaz firme para fazer reluzir o seu montante ao
sol dos combates, e cuja fronte fosse assaz robusta
para não vergar sob o peso do seu diadema de fer-
ro. Era mister escolher um marido para D. Urraca
sua filha mais velha , viuva do conde de Galliza
Raymundo ; porque a ella pertencia o Ihrono por
um costume introduzido a despeito das leis golhi-
cas , que davam aos grandes c homens livres o di-
reito d'eleger os reis. Entre os ricos-homens mais
illuslres dos seus vastos estados nenhum achou o
velho digno de tão altos destinos. .\lTonso rei d'A-
ragão tinha , porem , todos os predicados que o al-
tivo monarcha entendia serem necessários ao pri-
meiro dos defensores da cruz , e foi a este que no
seu leito de agonia desejou que D. Urraca desse a
mão d'esposa , apenas succcdesse no throno. Assim
esperava por nm lado que a severidade e energia
do novo príncipe contivesse as perturbações intesti-
nas, e que o seu esforço não deixasse folgar os ára-
bes com a noticia da morte daqucllcque por tantos
annos lhes fora flagello e destruição. Os aconteci-
mentos posteriores provaram , todavia , que Affon-
so C.° inleiramente se enganara (•).
A historia do governo de D. Urraca , se tal no-
me se pódc applicar ao período do seu predomínio,
não é mais que um tecido de luctas intestinas, de
vinganças atrozes e covardes, de roubos, de revol-
tas e de violências. A dissolução da rainha, a fero-
cidade tenaz do marido , o orgulho c cubica dos
barões, convertiam tudo n'um cabos; e a guerra
civil , ao passo que deixava vigorar <i império dos
mussulmanos, demorava a decisiva vieloría da raça
goda , entre a qual os ódios dos bandos destruía os
germens de nacionalidade que tanto trabalhara por
fazer prosperar o allumiado Afionso C."
Disse os germens de nacionalidade ; porque de
feito apenas então o eram na Ilespanha esses milha-
res de vínculos moraes que unem os homens do
mesmo paiz , dos mesmos costumes , e da mesma
linguagem , c a que hoje se chama uma sociedade
política, ou um povo. A elevação do rei aragonez ao
tlirono castelliano não suscitou a má vontade dos
barões por elle ser nm príncipe estrangeiro , mas
(«) Esla relai;rio parece-me conciliar os tesleoiuulios ,
alé certo ponto encontrados, do arcelji,>iio D. llodrigo e da
llisloria Compostellana acerca deste successo.
o PANORAMA.
fl
porque aos estrangeiros, isto é, aos anligos vassal-
los do novo rei , se entregavam com prcicrencia os
caslclios , as honras , os prestamos c lodo o género
de poderio. A resistência era individual, porque os
interesses eram singulares. O conde, o rico-liomcm
da Estremadura, de Galliza , de Castelia ou de
Portugal, referia a si e as suas ambições, esperan-
ças, ou temores, os successos politicos, e alTcrindo
tudo exclusivamente por esse typo , procedia em
conformidade com ellc. E como seria de outro mo-
do? A idéa de nação e de pátria não existia ainda.
Correi aschronicas, as historias e os diplomas, não
achareis uma só palavra que designasse a idéa de
hespanhoes , uma palavra de signilicação complexa
que distinguisse a rara goda da sarracena. Acha-
reis o asturo, o gallecio , o portugallcnse , o cas-
tellão; isto é o homem do districto : mais, achareis
o[compijstcllano, o toledauo, o barcellonez ; isto é o
homem domunicipio; mas o nome dehespanhol, ou
outro qualquer equivalente, esse não o encontrareis.
E porque falta a expressão? É porque a entidade
não existia : não existia politicamente. Havia-a ,
mas era sob outro aspecto , cm outra relação ; na
da unidade religiosa. Essa sim, que apparece clara
e distincta. A sociedade christaã era una , e preen-
chia até certo ponto o vácuo da sociedade civil.
Quando era necessário achar o signal , com que se
representasse um filho da Peninsula não árabe, um
só havia que exprimisse precisa e exclusivamente
a idéa genérica dessa grande farailia : Cliristiunuf!.
O epithcto que designava a crença , indicava a so-
ciedade ; e assim cada cathedral , cada parochia ,
cada acisterio, cada logar de culto era um anel da
cadèa única, posto que robusta, que pelo lado mo-
ral ligava os individues iguaes em condição ou ge-
rarchia. Fora daqui apenas se daVam duas espécies
de relações fortes e caractcrisadas : uma espontâ-
nea, outra nascida decircumstancias alheias á von-
tade do individuo. Eram as primeiras as que se
denominavam conjurações ou irmandades — as ver-
dadeiras associações niunicipaes desse tempo ; as
segundas as que resultavam da situação di\ersa das
pessoas — as do colono e do senhor ; as do homem
de trabalho e do homem de guerra. Entre o barão
e o barão, o alcaide e o alcaide , o prcstamciro e
o prcstamciro, os laços sociaeseram, porem, tão té-
nues, que se desfaziam cm pó ao primeiro sopro das
paixões violentas, que tão facilmente se despertavam
nos rudes corações daquelles tempos.
Dessa frouxidão dos laços sociacs nasceu a nação
portugueza. — Pela morte dWffonso 6.°, seu genro
Henrique partiu os laços que o prendiam ao resto
da Uespanha otcidenlal e christaã. Esta separação,
que não foi mais que uma obra d'ambição c de or-
gulho , e um resultado da viciosa organisação da
Uespanha no duodécimo século, veio por milagres
do esforço e da prudência humana a constituir a
nação mais forte c audaz da Europa nos fins do de-
cimo quinto. Mas os seus primeiros dias foram tem-
pestuosos : e no modo porque esta planta dcbil e
tenra pôde escapar ás repetidas procellas, que acer-
cavam nos primeiros dias da sua vegetação, desco-
brem os olhos mais incrédulos a mão da Providen-
cia. Quaes seriam hnjc as relações do Oriente e do
Novo Mundo com o Occidente, se Portugal tivesse
perecido no berço? Quem ousará dizer : ícm Por-
tugal a civilisação do gencro-humano seria hoje
qual c?
O conde Henrique pouco sobreviveu ao sogro —
apenas três annos : mas durante esses três annos lo-
dos aquelles actos seus , cuja memoria chegou ató
nós, representam um pensamento único — o alimen-
tar o incêndio das discórdias civis que devoravam
Hespanha goda. Nas luctas de D. Urraca, dos par-
tidários de seu filho Aflbnso Raimundez , c do rei
d' Aragão, qual foi o bando do conde? Todos suc-
cessivamente, porque nenhum era o seu. O ícucon-
sistia cm constituir um estado independente nos
territórios que governava. E no meio dos tumultos
e guerras era que ardia o império, elle teria visto
coroadas de bom succcsso as suas diligencias , se a
morte não viesse atalhar-lhe os desígnios junto dos
muros d'.\storga.
5Ias a sua viuva , a bastarda de AfTonso 6.°, era
digna do ambicioso e ousado borgonhcz. .\ leóa de-
fendeu o antro , onde já não se ouvia o rugido de
seu fero senhor , com a mesma energia c esforço ,
de que clle lhe dera tão repetidos exemplos. Du-
rante quinze annos luctou por conservar intacta a
independência da terra que lhe chamava rainha , e
quando seu filho lhe tirou das mãos a herança pa-
terna , só havia um anno que a altiva dona dobra-
ra, até certo ponto, acerviz afortuna dojovenheroe
AfFonso Raimundez. Mas esta pedra preciosa, arran-
cada á força da coroa Iconeza, nunca mais devia tor-
nar a engasiar-se nclla.
Todavia se a sede do poder que devorava o mo-
ço .\nbnso Henriquez não existisse : se os ódios e
a cubica de muitos ricos homens , e provavelmen-
te d'alguns membros do cloro , não houveram lan-
çado entre a mãe e o filho o facho da guerra , o
amor teria talvez mudado os futuros destinos deste
angulo da peninsula hispânica.
Fernando Peres de Trava , filho do conde Pedro
Frojiaz, aio do infante AfTonso Raimundez , ganhou
o coração da infanta , e brevemente se viu cônsul
e senhor das duas provindas que cousliluiam os do-
mínios de D. Thereza — Portugal e Coimbra. No
meio dos deleites do amor e dos furores da guerra,
as duas grandes paixões dessas eras , ella parecia
deslembrada de que o terrível neto de Roberto de
Borgonha deixara no mundo um successor do seu
gcnio. e cega pela affeição entregara ao amante o que
recebera do esposo , deixando talvez perpetuamente
sujeito ao estranho o seu despresado filho.
Como duas hienas furiosas, D. Urraca e D.The-
resa tinham combatido largos annos ri frente dos
seus cavalleiros , e a sorte das armas favorável a
principio á infanta , favorecera por fira as da rai-
nha. Vencida successivamente em vários recontros,
e vendo-se por fim cercada no castcllo de Lanhoso,
D. Thercsa soube ainda salvar-se , suscitando os
mal amortecidos ódios entre sua irmaã e o malva-
do Diogo Gelmirez , arcebispo de Compostella , cu-
jos cavalleiros e peões eram o principal nervo do
exercito inimigo. Se esquecera nos braços de D.
Fernando o antigo amor do conde borgonhez , ao
menos não esquecera a sua tortuosa politica.
Deverá , porem , a historia attribuir eschisiva-
mcnte áquella mulher enérgica e ambiciosa a glo-
ria , se é gloria, desses tenebrosos enredos? Não é
crivei que D. Fernando de Trava , filho do maior
inimigo occulto de D. Urraca , e alcaide de muitos
castellos do próprio Gelmirez , fosse alheio a tal
successo. Mas quem pôde alevantar iiiteiraraenlc o
sudário de um passado de sete séculos, e dizer aos
que o escutam : vede-o qual elle era?
Seja como fór , é certo que a affeição mutua de
D. Thereza e de D. Fernando parece ler sido dura-
doura. Em todas as crises do seu tempestuoso go-
12
O PANORAMA.
verno ella o achou sempre ao lado. A decisiva \i-
ctoria do moço AíTodso Ilenriquez quebrou aquelle
tracto intimo de tantos annos ; mas porventura só a
morte, que não fardou a dar repouso á infanta, ex-
tinguiu essa constante amisadc.
Se na batalha do campo de S.Mamede, junto de
Guimarães, D. Thcreza e o conde houveram trium-
phado do moço Aflbnso Ilenriquez, outra provavel-
mente fora a sorte do nosso paiz. D. Fernando de
Trava era um dos mais illustres ricos-horaens de
ílalliza : a sua bandeira fluctuava cm muitos cas-
lellos daquolla vasta c guerreira provincia. Se aos
grandes scnliorios que herdara de seu pai e aos que
linha em presl.imo de Diogo Gclmirez ajuntara o
dominio dos dois condados de Portugal e Coimbra .
ellc fora sem conlradicção o mais poderoso barão de
toda a Ilespanha goda. No meio das revoltas c re-
sistências que o celebre Affonso Rairaundez , cha-
mado o imperador, encontrou na fidalguia da dila-
cerada monarchia de sua mãe D. Urraca , não se-
ria por certo o conde o menos ousado na desobe-
diência , nem o mais fácil de subjugar. A guerra
entre aquelle príncipe e o seu poderoso vassallo
traria forçosamente ou a sugeição aCastclla dos es-
tados do conde Henrique de Borgonha , ou o ser
hoje a Galliza uma das províncias de Portugal, e
alem delia talvez mais algumas outras dessa gigan-
te Ilespanha, que por tantas vezes tem tentado de-
Torar-nos. Mas a existência da monarchia portu-
gueza estava decretada na mente de Deus. Este
paiz, cujos destinos eram o conquistar para ochris-
tianismo e para a civilisação três partes do mundo,
devia ter em recompensa unicamente a gloria : e a
gloria delle é tanto maior quanto, encerrado na es-
treiteza de breves limites, o seu nome, que retum-
bou por todo o globo , pertence a um povo sumido
no meio dos grandes impérios da terra.
Pobres , fracos , humilhados , depois dos tão for-
mosos dias de poderio e renome , que nos resta se-
não o passado? Lá temos os thesouros dos nossos af-
fectos e contentamentos, em quanto no presente só
achámos vácuo e tristeza. Esqueçamo-nos pois del-
ia , c vivamos de vida melhor , a de nossos avós.
O trato dos que foram grandes e fortes restaurará
talvez o sentimento moral, moribundo nos corações
da geração que ora passa. Sejam as memorias da
pátria, que tivemos, o anjo de Deus que nosrcvoque
a energia social c aos santos allectos da nacionali-
dade. Que todos aqucllcs a quem o engenho e o
estudo habilitara para os graves e profundos traba-
lhos da historia se dediquem a ella. No meio de
uma nação perdida , mas rica de tradições , o mis-
ter de recordar o passado c uma espécie de magis-
tratura moral , c uma espécie de sacerdócio. líxer-
citcm-no os que podem e sabem ; porque não o fa-
zer é um crime.
E a arte? Que a arte em todas as suas formas
externas represente este nobre pensamento : — que
o drama , o poema , o romance sejam sempre um
eccho das eras poéticas da nossa terra. Que o po-
vo encontre em tudo e por toda a parte o grande e
venerando ^ulto de seus anle]iassados. Ser-lhe-ha
amarga a comparação. Mas como ao iimoecnlinho
infante da Jerusalém Libertada , homens da arte ,
aspergi de suave licor a borda da taça onde está o
remédio que pôde salva-lo.
No meio do tumultuar das facções, entre os gri-
tos de ódio e vingança, entre as injurias c pragas
das cóleras humanas , sobre o soído doloroso do
chorar c gemer do desalento, não vos lerem ás ve-
zes os ouvidos umas toadas harmoniosas e suaves ,
que vem consoladoras partir o ruido selvagem des-
ta geração dissídula , que se agita sobre o abysmo
do seu nada? È o cântico d'amor ed'espcrança que
alevanta a juventude : c ella que por cima das nos-
sas misérias saúda as velhas glorias da sua terra
natal ; ella innocentc c pura , que não alcança de
todos os nossos pensamentos, interesses, e ambi-
ções senão ura — a liberdade — aquelle talvez jus-
tamente , que exprimimos sem o comprehender.
Nós os homens feitos , homens do sccpticismo e da
cubica , esperámos que as paginas que nos compe-
tem nos annaes do paiz sejam brilhantes e lembra-
das ! — É á geração que se alevanta que isso per-
tence. O que nos cabe a nós não queremos, não
ousámos dizc-lo Oxalá ella possa esquecer-
nos , cobrindo-nos os restos com uma campa lisa e
sem nome. Será essa a melhor prova de que nos
perdoou o havermos sido indignos do que foi e do
que será, o havermos sido uma lacuna tenebrosa
no livro tão illustre e poético da linhagem portu-
ga eza.
Em quanto , porem , não chegam esses dias em
que o puro e nobre engenho dos que então hãode
ser homens celebre exclusivamente as solemnida-
des da arte no altar do amor pátrio ; no meio des-
ta Palmyra moral , destas vastas ruinas da nacio-
nalidade , amontoadas pelos furores das dissenções
civis, pela morte do sentir e crer porluguez , ale-
vantemos uma das muitas pedras lombadas dos tem-
plos e dos palácios , para que os obreiros robustos
que não tardam a surgir digam quando a virem :
(cns mãos que te pozerani ahi eram débeis, mas o
coração que as guiava antevia já algum raio da luz
que nos allumia. »
Contarvos-hemos , pois , uma historia do tempo
antigo , áspera o mal limada como elle ; uma his-
toria da infância da monarchia. Tenebrosa e má foi
essa infância ; porem não tanto tenebrosa c má co-
mo a sua velhice. Se quereis principiar a ouvi-la,
lede o seguinte capitulo. ^ nerculano.
[Continua no N." ímmediato.]
Bem querer e mal fazer.
(Memorias insulauas.)
= 1531 =
II
O homem propõe e Deus dispõe.
Tari!l.=A1i ! senhor !
TiRiD. = Que é isso?
TxREL.^Qiie liade ser? esta rapa-
i\fii por nuiilas vezes pro-
mclleu c.Tsar comigo e ago-
■. . " • ra não quer.
' CoBBioi..=Apelloeu porniira. Sempre
> . fiz zomliaria ilelle.
Comidia anliija-
Mal raiara a manhaã , branqueando os cimos das
serras visinhas , já na Lombada do Arco se crusa-
vam por todos os lados os escudeiros c homens de
armas dei). Isabel d'Abreu. — Nos ângulos tor-
reados da casa vigiavam as atalayas entretendo as
horas frescas da alvorada a estender os olhos pela
encosta abaixo c lá ao longe jielos campos, dclci-
íaudo-sc com o suave espectáculo da natureza a es-
o PANORAMA.
perguioar-se somnolenla por aquelles ameníssimos
valles como quem mal sahia do somno nocturno.
O súbito armamento e a atíitude defensiva que
D. Isabel tomara preoccuparam todos os ânimos.
«Que será isto? Nem que cm Africa estivéramos
nos apparelhariamos tão fervorosos.
<iO que vos seguro é que nem era Africa, c mais
alli é a guerra já costume, vi eu nunca dama de
animo tão valente como nossa ama, que Deus guar-
de. Sc ouvísseis a firmeza com que ella ordenou
liontcm todas as cousas de defcnsiio. O que houve
não o sei eu ; mas , Fernara , aquelle escudeirote
pimpão — bem sabeis? — que primeiro foi chama-
do, afiirma que dera com a fidalga, que Deus guar-
do , toda turvada c carrancuda c que se lhe divi-
savam no rosto signaes de quem chorara.
«Que seria?
«E tão tarde , tão fora d'horas !
IVisto estavam os escudeiros juntos n'um pateo
interior , buscando assim a interpretação do que
elles não alcançavam , acudindo um com um com-
mento , outro com um parecer , outro emfim com
uma sentença magistral , a única no seu conceito
admissível e provável , quando Fcrnam , o próprio
de quem se trat.ira , sobreveio para reforçar , re-
provar ou decidir as opiniões. — Era elle ainda
moço , robusto , presumido , com cara avinagrada
e gesto de arremetter , tirando um pouco para D.
Quixote e outro pouco para Sancho Pança , o escu-
deiro de ímmortal memoria ; e dotado , para coroa
de tudo o mais , de punho ligeiro e língua veloz ,
servíndo-se não poucas vezes daquelle para corro-
borar os argumentos desta , o que lhe dava entre
os companheiros uma força e superioridade de dia-
léctica verdadeiramente respeitável. Era emfim um
desses tarcllos e mctlídiços — como ha tantos pelo
inundo — que pertcndeni fallar de tudo, e em tu-
do ter sempre rasão. Tal como acabamos de pinta-
lo ; mal chegara , examinada a questão , o que , en-
tre nós, não era diflieíl ; visto que em toda a casa
não se fallava de outra cousa , começou logo sua
doutoral prelenga por este theor.
« Ide-vos , ide-vos , pobres moços , que estais ahi
a fazer conjecturas vaãs. Se quereis saber o que
vai perguntaí-m'o a mim , que tenho novas cer-
tas. Não , que também não deixo escapar nada pe-
la malha.
Apínharam-se todos em roda do oráculo.
« .\posto eu que nem pela testa vos passa quem
deve de ser a primeira sabedora de lodo o enredo,
e talvez lambem causa delle?
«Não, não.» — Clamaram todos com impaciên-
cia.
«Pois dirvo-lo-heí eu. É a moura, aquella escra-
va mui valida de nossa ama.
Desta vez a cousa pareceu tão pouco provável
que um expressivo e geral encolhimento d'hombros,
acolheu , cm vez do desejado e habitual aplauso ,
a grande descoberta do novísta. — Era claro como
o dia que nenhum dos circumstantes lhe acredita-
va a mínima palavra. O Ferrabraz chamou era seu
soccorro a maior terribilidade de que pode reves-
tir o rosto já de si pouco meigo ; mas foi em vão :
tornava-se límpido , a não poder sc-lo mais , que
por esta occasião o credito vulgarmente concedido
ás suas rasões fugia a bom fugir. E comtudo era
porventura a primeira vez que acertava. — .\ssím
se julga com frequência ahi por esse mundo!
«A moura, a moura I — Que a moura seja rasão
para andarmos por aqui a madrugar. . , Ora I
«Sim , sim , moiremo-nos (1) nós pela moura. . .
Bem dito, senhor Fernando.
E estas c outras quejandas zombarias romperam
o antigo respeito guardado ao escudeiro que arro-
ga liava os olhos c trincava os beiços de pura cho-
iera. Nunca tamanho desacato fora commettido con-
tra a veneranda pessoa do Sr. Fornam, liem dese-
jara elle em forma de auctorisada citação assentar
quatro punhadas tczas pelos honrados narizes dos
dignos ouvintes, mas os bracellões eganles (2) que
lampejavam ao redor , quantiosos como eram , não
agouravam grande divertimento para o aggressor :
leve portanto de conter-se reservando , já se sabe ,
para melhor occasião o direito de desforra, conten-
lando-se por esta vez em traduzir a grande ira, que
lá dentro Ihcfervia, n'um extenso vocabulário d'in-
jurias, fervorosa e apressadamente vomitadas, con-
tra os descommedídos , que fizeram por compensa-
ção grande prova de paciência aturando a intermi-
nável loquella do escudeiro com edificante submis-
são.
«Santo nome de Deus ! — Más maleitas que nos
colham '. — Nossa Senhora do Funchal I que venham
estes franchíuotes sem siso , estas raãs de charco
lodeiro, estes parvos que não sabem dilTerençar um
gentil (3) de D. Fernando d'um cotrim (4) de I).
.\nbnso 5.° insultar um homem sisudo que tem vis-
to como são as cousas e os homens '. Com setecen-
toi demónios; — Bera Irufaes (5) vós outros para
quem tão néscio c. — 5[erecieis que vos ensinasse
agora a bem viver , para que outra vez não viés-
seis desmentir quem sabe mais que vós e que mui-
to favor vos faz cm vos querer abrir os olhos. Se
eu disse que a moura era havida n'isto é porque
tenho fundamento para dízè-lo. Mas nada. . . É dei-
tar pérolas a porcos Fícai-vos , ahi , ficai-vos
com essas vossas necedades , e desatinadas suppo-
síções , ficaí-vos que vos não quero já dizer nada.
E fez semblante de retirar-se.
O escudeiro fallava de consciência — e bem o sa-
be o leitor amigo. — Ou fosse pela lógica das ra-
sões, ou pela verbosidade do orador, ou emfim pe-
la volubilidade das palavras epor uma trovoada de
persuasivos perdigotos que distribuía liberalmente
por todas as caras dos attentos espectadores, o cer-
to c que estes pareceram convencerem-se de que
tinham andado mal e — crescendo sobre isto o cos-
tume de ouvi-lo e crc-lo , apesar do bom numero
de patranhas com que diariamente os regallava —
todos instaram com o bom do homem para que fi-
casse e fatiasse. Ora elle que não queria outra cou-
sa , nem se achava nunca tão bem como quando ti-
nha publico para ouvi-lo e novas para contar , ven-
do alem disso as dóceis disposições dos ouvintes
resolveu-se a continuar.
«Já que tanto apertais, digo-vos, meus chocarreí-
rotcs , que só sabeis truanices e jogralidadcs fora
de ponto , que a moura hontem mesmo desappare-
ccu sem que se possa alcançar para aonde. Mas o
hortellão indo ha pouco áquelle pomar de pece-
gueiros que fica logo por baixo das jancllas dos
aposentos de nossa ama e senhora , deu com umas
pegadas de homem. — Foi elle mesmo que mo con-
(1; i: Mouremo-nos ; " como se disseranios ti cancenio-
nos , fatigiiemo-nos. ^r — Expressão proTcrbial daquelles tein-
jioâ i<Moiiranilo-me Je Iraballios. " Bernardim Ribeiro.
(2) Armadura defensiva dos braços.
(3) Moeda de ouro meúda, mandada cunhar por aquel-
le rei Era de 4 espécies.
(4) Outra moeda de ouro.
(s) Escarneceis.
ií
o PANORABIA.
tou muito em segredo e cu só vo-lo digo aqui a
vós em confidencia — as quaes pegadas estavam as-
signadas na terra fresca , desde o muro que diz lá
para os campos alé ;is ditas janellas, parecendo umas
que iam, outras quc.vinhani. O liortellão que não c
ahi nenhum toTito observou serem feitas não por pé
de villão, mas pelo de quem traria pellotc de pan-
no de engrez (6) , e calças talliadas ao viez , que
até em risco subtil — vi-o eU' — denunciava no chão
a passagem das esporas.
« E que tem isso cora a moura ?
A incredulidade parecia de novo apossar-se dos
escudeiros com a prolixidade e miudeza das des-
cripeõcs do Sr. Fernam que se ia afastando prodi-
giosamente do ponto questionado.
«Tem muito [acudiu clle pressentindo a presen-
ça do inimigo, e sallando ao assumpto pouco mais
ou menos como o venerando Jonathan Oldcnbuck
de Sfonlíbarns saltaria n'uma lenda ou dcscripção].
Tem muito , que a par das pegadas machas dis-
tinguem-sc outras curtas e pequenas , ao que pare-
cem de mulher , só com a dillerença que estas não
vão e vêem, vão só. Ora a moura [dòr de levadi-
gas consuma todos os infiéis] dorme justamente na
camará que deita para o pomar — não me escapou
isso, quando ao aposento da fidalga fui certo dia re-
ceber uma sua ordem — é portanto claro que anda
por aqui embrulhada grande cm que a moura tem
parte.
Bom juizo tinha o primeiro que se lembrou de
dizer vox populi ro.r diaboli , porque o olfalo deste
é tal que rasteja polo faro o mais encoberto acon-
tecimento, não lhe ficando de todo escondido, nem
que sobre clle se cerrem as trevas do segredo me-
lhor guardado, nem que lhe passem por cima as ho-
ras mais repousadas e misteriosas. Esta consequên-
cia lerá já tirado o leitor inlelligente , vendo os
succcssos , que só eu e elle julgávamos saber, já
tão finamente adivinhados pelo indagador escudeiro.
Sabidos estes novos e importantes documentos
ia proceder-sc no respeitável conciliábulo ao me-
lhor do arrasoado , isto é ás analyses , corollarios ,
e deducções , quando um brado da mais elevada
atalaya , partindo do araciado cimo d'uma das tor-
rinhas , veio saltear os echos dormentes do pateo o
suspender a caudal torrente dos principiados argu-
mentos. O grito de alarma , repetido de boca em
boca , fez cm momentos reunir no pateo principal ,
posto cm frente da casa , lodos os que tinham ar-
mas.
Seguindo as iusirocróes, que lhes haviam sidoda-
das, bradara a atalaya apenas vira no campo maior
cavalgada picar direita ás casas da Lombada. E
ainda que nisto cumpria seu cargo, com rasão jul-
garia pouco necessário o appclido (7) visto que a
companhia avistada figurava trazer as mais pacifi-
cas inli^nções. Compun!ia-se ella de modesto nume-
ro do cavalleiros , escudeiros, pagens, mui atavia-
dos c garridos, cavalgando soberbos ginetes cober-
tos de jaezes custosos que era um não se cançar de
admira-los. Viidia na frente de todos um cavallei-
ro, que aos demais parecia levar vantagem, não me-
nos na elegância , e ritiueza do traje qno no airo-
so do porte , gentileza o garbo da figura , formosa
cm pcrioição ; logo cm seguida um pagem , mais
que os outros adereçado ealfenado, lhe trazia asna
bandeira , caminhando apoz quantos na cavalgada
tram. Nascia o sol o aos mais suaves dos seus pri-
(0) CfTlo paiino cine vinha de Inglaterra.
(7; Cliamaiiienlu.
' meiros raios brilhava aquella vistosa comitiva , to-
da luzente de ouro e prata , toda arraiada de co-
res vivas, toda enfeitada de estofos e finos pannos,
de sedas e penachos ondeantes. Ora quem tanto se
atavia , certo é que se não dispõe a tentar hostili-
dades. Todavia a conclusão , por mais que a todos
parecesse rigorosamente lógica, não embaraçou que
os servidores da Lombada do Arco se ajuntassem
no logar mencionado, perdidos de conjecturas mais
ou menos próximas da verdade, mas todos dispos-
tos a bem cumprirem seu mister de obedientes
servos.
Em quanto a cavalgada trotava pelo encosta , as
portas d'uma sala no Ínfimo pavimento que andava
ao live! do pateo se abriram , dando passagem á
varonil D. Isabel d'Abreu , que appareceu , reves-
tida do seu ar fidalgo e senhoril , mas sem mostras
nem de tristeza , nem de temor, nem de incerteza.
Fitaram-se nella lodos os olhos , curiosos pela con-
fidencial revelação do escudeiro Fernam , que nin-
guém já deixava de saber .... muito cm segredo.
Nada se podia deduzir do seu porte. Era ousado e
modesto, era sereno c altivo. O próprio Fernam foi
obrigado a confessar que por esta vez a sua mesma
agudíssima penetração lhe falhava. Seguiam a no-
bre viuva suas donas e donzellas , todas ellas , pe-
lo menos , tão curiosas e impacientes como os ho-
mens d'armas e escudeiros , e ao lado caminhava
sua irmaã D. Águeda com quem , diziam as ayas
mais madrugadoras, ainda antes de amanhecer se
encerrara longo espaço. Chegando ao meio do pa-
teo ergueu os olhos para seus servidores , c vendo-
os tão numerosos , tão feros c tão bera apparelha-
dos , como que sorriu satisfeita.
«(Honrados servidores da Lombada do Arco [dis-
se ella com voz toda impregnada da aflectuosa bon-
dade do seu coração] , quereis vós boje servir de
amparo e defensão a uma pobre viuva indefcza e
desamparada, qne só vos tem avós por seu abrigo?
Quereis por meu respeito expor as vidas , susten-
tando meu dito c resolução, e affrontando orgulhos
de soberbos ? . . .
«Que venham, que venham [respondeu a chus-
ma , bradando] mostrar-liies-hcmos que a bésia , a
lança c a espada vai também nas mãos dos defen-
sores de vossos coutos como nas dos mais ufanos e
mais fidalgos. . . Que venham! Viva D. Isabel d'A-
breu , nossa ama e senhora 1
Pouco é preciso para excitar o cnthusiasmo da
multidão. jVpesar de sua rudeza e vicios ha no po-
vo reunido iim certo sentimento de generosidade
que talvez provém da consciência da sua força. Es-
te sentimento , portanto , desperto á vista de uma
dama formosa , moça , cheia de bondade , branda
no seu dominar , meiga posloqne animosa , scnsi-
vel , c por fira mulher , necessariamente devia de
acccndcr o ardor daquellcs homens, tanto mais
quanto se ella appresentava desvalida c supplicau-
te , crescendo sobre as outras rasões a vaidade de
ser o appoio c defensão de quem tão lidalga era c
tão persuasivamente implorava. Tuilo isto coidiecia
D. Isabel e com tudo contara quando se decidira a
vir ao meio dos seus; consequência fácil de tirar
examinando o olhar de intidligcneia que para a ir-
maã vohèra, no momento cm que o clauiiu- da tur-
ba tanto a seu gosto a interronqicu.
Nisto estavam quando novo grito (Fuma alalaya
annunciou que a cavalgada parava jnnto d'alli. De
feito, visinho tropear de ginetes provou o annun-
cio. «Abri as portas, meus Icaes servidores [dis-
o PANORAMA.
15
50 D. Isabel] Quem comvosco se acha não deve de
arrecciar.
Soberbos foram alguns escudeiros cumprir a or-
dem de sua] ama , e as portas patentes de par em
par deram entrada aos de fiJra. — O espectáculo en-
tão foi estranho. — D. Isabel, só, no meio de seus
servidores , firmes c cobertos d'armas , a luzirem
aos primeiros raios da raanbaã , como polido muro
do aço , trajando singelas roupas de viuva em di-
gna e magestosa attilude : — António Gonçalves da
Camará — já de certo os nossos leitores terão adivi-
nhado que elle era o gentil chefe da cavalgada —
alinhado e ataviado como namorado que era, me-
neando graciosamente seu formoso ginete fouveiro ,
seguido de sua bandeira , c acompanhado dos me-
lhores de sua casa e senhorios. — Era para ver . . .
Pasmou o alvoroçado galan vendo o guerreiro ap-
parelho com que ora recebido , e não sabendo ain-
da o que pensasse quiz ao menos mostrar o como
era cortez e sabido cavalleiro. Apenas transposera
as porias descavalgou promptamente, e atirando com
gracioso desleixo as rédeas do ginete ao braço do
seu pagem, adianlou-se para D. Isabel , surprehen-
dido 6 como que um pouco perturbado.
« Que me quereis , galhardo primo ? [perguntou
esta com modo soberano e despedido] Que vos traz
a minha morada Ião de manhaã ainda , e tão bem
acompanhado ?
Sabidos os acontecimentos da noutc esta pergun-
ta, com tal modo e cm tal logar e posição, era era
boa verdade pouco recreativa e animadora : por is-
so o António da Camr.ra dando mostras de hesita-
ção respondeu balbuciando.
«Mas eu . . . formosa prima . . . cuidava. . . . De-
pois . . . sabeis. . . . Em certeza. . . .
«Fallai, primo, fallai ; ou dareis aso a crèr-se
que vos assusta a minha presença.
António da Camará ergueu a fronte com aliiveza,
c relampeando-lhe os olhos acudiu com brios de
cavalleiro.
«Assustar-me eu , senhora ! . . . Já que assim o
quereis, fallarci , e mal de quem não attender ao
meu dito. . . O a que eu venho aqui bem o sabeis,
senhora prima. Venho exigir de vós o cumprimen-
to de uma promessa. . . .
«Arrancada á falsa fé [interrompeu D. Isabel
com ar e voz de rainha, imperiosa e altiva, olhan-
do fidalgamenle em redor — sublime neste momen-
to]. Arrancada de noute por traição de uma moura
ingrata. . . .
Aqui os dois escudeiros íjue ficavam aos lados do
nosso amigo Fornam saltaram para a banda ambos
ao mesmo tempo pondo doridamente am:\p na ilhar-
ga.— Eram causa deste inesperado movimento duas
rijas e triumphantes cotoveladas , applicadas como
victoriosa advertência pelo bom do homem que
não se descuidou de firmar estes dois padrões da
sua gloriosa descoberta cora mais alguma valentia
do que honestamente devera, lembrado ainda talvez
das malignas risadas dos coUegas. — No cmtanto
T>. Isabel continuava com vehemencia.
"Por traição de uma moura ingrata e de um ca-
valleiro desleal , mais mouro do que a moura, que
á maneira de salteador se introduziu pelas trevas ,
escondida e furtivamente, no seio das famílias, amea-
çando uma mulher indefcza , ameaçando-a com a
dcshonra e a infâmia publicas. . . . Escutai-rae até
ao fim , meu pri.mo , que não é de cortez interrom-
per uma dama. . . E vós cavalleiros e escudeiros . . .
vós leaes servidores de minha casa , e vós , estra-
nhos , escutai-me também. . . Aquella promessa as-
sim extorquida , assim por mim feita , como único
meio de salvar a reputação, devo eu cumpri-la ? . . .
Não, António Gonçalves da Camará, não é com ac-
ções de villão que se conquistam puros affeclos. . .
Ide-vos , que vos denuncio diante destes honrados
servos , pelo vil que hontem penetrastes aleivosa-
mente como traidor e indigno nos meus aposentos ,
aonde só vos fiz promessa de seguir-vos hoje como
vossa mulher para evitar o propósito infame a que
vínheis deliberado. . . . Ide-vos e envergunhai-vos ,
senhor , ide-vos cm paz ou senão oUiai para
mim. Estou no meio dos meus servos fieis, que bem
como eu ainda não perderam lembranças de seu
amo.
Tremulo de ira por se ver assim burlado, e fais-
cando-lhe os olhos, levou António da Camará a mão
ao punho da espada era quanto nas abaladas filei»
ras dos de D. Isabel mais de uma besta se encur-
vava e mais de um ferro sabia da bainha. Atten-
tando porem em si e vcndo-se trajado de sedas , os
da Lombada do Arco cobertos de ferro , diminuta
a sua comitiva e a de D. Isabel numerosa e ap-
parelhada ; tenteando o lado e achando a espada
de enfeite em vez da do combale ; olhando para os
seus e notando-os indecisos em quanto os contrá-
rios pareciam delorminados c impacientes , como
quem só aguardava o minimo sigual de sua ama,
cujo só respeito os continha , acabou comsigo em
disfarçar a cholera que o roía. — Sem dizer pala-
vra , que rn'o não consentia seu despeito , caval-
gou com os seus , e fazendo uma vénia , um tanto
irónica , partiu afrmcnndo com anciã raivosa as es-
poras nos ílbaes do pobre ginete, que tudo presen-
ceára cora exemplar indílTerença o que , afinal,
como diz o nosso inimitável Toleutino «... foi só
quem perdeu no tal jnguinho.
Silenciosa também voltou D. Isabel, com sua ir-
maã e suas ayas, a recolhcr-se, c ainda bem de to-
do não era ida já o amigo Fernam , que arreben-
tava por fallar , arrebanhando em volta de si os
companheiros lhes gritava como se levasse era gos-
to particular o ensurdece-los a todos , esfolando ao
mesmo passo as mãos á força de esfrega-las em si-
gnal de suprema satisfação : . -
«Então , então que vos dizia cu?
.5. Leal Júnior.
[Continuar-sc-ha.]
g^O objecto destes capítulos, que alguém te-
ria por novella, é fielmente extraindo d'um manus-
crípto do Dr. Gaspar Fructuoso , intitulado «Sau-
dades da Terra» — feito em 1579 e dividido era
51 cap. , ura dos quaes [cap. 3G] , o de que nos
aproveitamos, tem por titulo «Do que fez António
Gonçalves da Caraara , filho da camareira mór da
rainha D. Catbariua , na ilha da Madeira e do que
mais lhe aconteceu casando nella e fora delia.» — •
Deste Dr. Gaspar Fructuoso dá a biographia Cor-
deiro a pag. 40 do cap. 2." do 2." livro da sua
«Historia Insulana.» Não c portanto um romance,
mas uma historia que narrámos. O facto é ou con-
temporâneo ou quasi contemporâneo do auctor que
o conta ; podemos por consequência crè-lo em boa
fé sem faltarmos ás regras da mais escrupulosa her-
raeneulica — No demais cumprc-nos alfiançnr que
rigorosamente copiamos e conservamos toda a ac-
ção , situações, caracteres, oposição. Unicamen-
te ami)lificâmos c accommodàmos algumas parti-
cularidades, fazendo aqui , ou acolá ligcirissim.as
16
O PANORAMA.
alterações na superfície do assumplo som que do
inlimo era nada bulíssemos. — Da primitiva simplici-
dade c porventura rudeza do manuscripto , lambem
uma ou outra vez tentaremos dar uns longes , mas
J}Uscando sempre contribuir com o nosso mingua-
do contingente de forças , para fazer realçar o tal
ou qual drama que ha ahi, por meio d'ura colorido
vivo, de um estylo animado, c de um dialogo con-
veniente. Temos para nós que é esta a melhor ma-
neira , c já agora talícz a única neste século , de
ensinar a historia , não que assim leve menos tra-
Lalho , tempo c vigilias a quem escreve , mas por-
que , ao mesmo passo que deleita , instruo mais a
quem lê. Por este acontecimento , que tentamos
aqui romancear , verá o leitor como o espirito in-
dependente da nobreza , apesar dos golpes dados
por D. João 2.°, se conservava ainda incarnado nos
costumes , no existir e no pensar. É ura docuraen-
lo desse poder da antiga fidalguia, que cm despre-
zo de lodos os códigos entregava aos gumes da es-
pada as decisões que devera de depositar nas mãos
dos Juizes c interpretadores da lei. É ura monu-
mento do modo de viver daquclles tempos , dos
quaes , máu grado a todas as pcsquizas de fieis in-
dagadores , ainda tão pouco sabemos. Este padrão
e este documento julgamos de o fazer conhecido.
— Será mais uma phrase accrcscentada a essas pou-
cas paginas — que nem por serem poucas são de
jncnos monta e galhardia — da nossa verdadeira
historia. — Desta maneira é que as folhas pequenas
se tornarão livro grande. Desta maneira se irá er-
guendo ura Pantheon para os nossos maiores , um
íemplo para a arte, c uma aula para a boa lição.
Assim melhores mãos que as minhas tomem a si o
dar impulso forte á cmpreza.
Epitome da vida de Luiz de Camões.
(Continuação.)
Li'iz de Camões foi de tenra idade , passada a sua
primeira educação , continuar os seus estudos na
universidade, que elrei D. João .3.° tinlia trans-
ferido de Lisboa para Coimbra , convidando para
nella serem professores alguns dos nacionaes c es-
trangeiros mais famosos, entre os quaes cumpre no-
mear o celebre Gcorge Buchanan , que os enredos
fradcscos obrigaram depois a fugir de Portugal.
Dos progressos que fez Camões naquella univer-
sidade se pôde julgar pelas suas obras compostas
na idade juvenil , taes como elegias c sonetos que
passaram á posteridade , e que posto com menos
renome do que os seus Lusiadas, nem por isso sem
grande conceito c apreço dos vindouros ; não assim
(los coevos, emeujonumero contaremos o nosso Fer-
reira, que posto fira condiscípulo, na universidade,
de Luiz de Camões , nem por aquelles primeiros
ensejos se lhe mostrara afeiçoado. íí provável que
!''erreira e outros contemporâneos dislinclos não
prevessem então o extraordinário talento que o jo-
ven poeta mostrou depois , ou que talvez preveni-
dos pelo estylo moderno, que Camões adoptara sem
eomludo despresar o antigo , não lhe fizessem nes-
se tempo a justiça que elle merecia. Seja como filr,
não encontrámos cm partem alguma apontamentos
que nos levem a crer quií o nosso Vate grangeas-
se a amisade dos bons engenhos seus eondiscipu-
los , .sabemos só que .aos i8 ou 20 annos de idade
acabou os seus estudos , e voltou á còrtc onde re-
sidiam seus pais , e onde segundo os costumes da-
quclles tempos os nobres vinham mostrar-se para
aperfeiçoar a sua educação, e passar d'alli ás es-
cholas militares da Africa c da Ásia.
Dotado de raro engenho , de presença agradável ,
de ardente imaginação , e de coração sensivel ,
viu-se procurado e estimado por todos aquelles que
cultivavam as lettras , e admittido na corte e na
mais alia sociedade. Foi alli que viu D. Catharina
de Atavde (•) , que se devemos crer a descripção
encantadora do poeta , era um composto de graças
e de belleza. Esta senhora era dama do paço, e a
julgar pelo seu appellido. parenta do primeiro con-
de da Castanheira , D. António de Atayde , podero-
so valido de D. João 3.° Estes amores, que inspi-
raram a Camões grande numero de suas poesias ,
em que sobresahe a Écloga XV , foram a primei-
ra causa dos seus infortúnios. A falta de bens da
fortuna , que não a de nascimento em que elle era
igual a D. Catharina , fez com que a familia desta
senhora não só procurasse impedir esta união , que
tinha por pouco vantajosa , mas sobre elle chamas-
se o rigor das leis , mui severas nesse tempo contra
qualquer que se atrevesse a ter amores no paço.
O valimento dos parentes de D. Catharina piidc
conseguir que fosse Camões desterrado da corte
para o Uibalejo, retiro em que para allivio de suas
magoas, se entregou todo ao estudo c á poesia.
Grande parte de suas rimas, a Elegia 3.", c pro-
vavelmente as suas comedias , foram compostas
nesse degredo , e segundo Manuel de Faria 'então
foi também concebido o plano do seu poema.
Assim na flor da idade viu Luiz de Camões cor-
tadas as mais charas esperanças de sua futura car-
reira , c na villa de Santarém continuou por algum
tempo tranq'iillo , entregue todo á paixão que no
peito alimentava. Azedado pelo não merecido in-
fortúnio , vendo-se no principio da sua vida victi-
ma de injustas preoccupações , voltou-se todo para
a carreira gloriosa das armas , e das cniprezas ar-
riscadas , com que desde seus verdes annos fora
embalado. Viclima de um amor, que mais se ha-
via radicado pelo degredo soffrido , resolveu deixar
a pátria logo que o seu degredo acabasse.
De volta a Lisboa tomou o serviço militar, e quiz
participar da gloria , que os portuguczcs então ad-
quiriram em todas as partes do mundo. Passou lo-
go a Ceuta que nesse tempo governava D. Pedro de
Menezes, e alli militou com muito denodo achan-
do-sc cm diversos recontros , e particularmente em
um combate naval perto do estreito de Gibraltar ,
aonde junto de seu pai , que commandava uma das
naus, recebeu dos mouros um tiro que o privou do
olho direito. Voltou a Lisboa com esta honrosa ci-
catriz , mas nem por cila , nem por os seus servi-
ços teve a menor recompensa.
/'. M.
[Continua].
Nos VELHOS a ambição de poder c dominação é in-
comparavelmente mais atroz e vii)lenta que nos mo-
ços ; estes podem esperar, aquelles não querem
perder tempo. — Marquez de Bhricá.
(.) O liccnciíulo Jorio Pinto Ril)eiro iliz <|m' a pcsso.T
por qiipra Cnniòca se perdera (i'aiiiori>9 fora O. Catliarina
d' Almada, prima do poeta. Faria e Sousa assevera ler si-
do D. Catliarina de Alayile, e a esta opinião se encosta o
donlo Sr. Iiispo de Vizen'. A dama preferida era sem a me-
nor duvida Catliarina , (|ne Camões cliama Aalcrcia , ana-
grama daquelle nome, no soneto 1A.\.
56
o PANORAMA.
17
III" I 'III'
li'
Sf
|''i
|i!li'>|l1lili'{|ll|||l!líri!|iíl«
r
r.
• «1
POUTLGAL.
XX.
Avi;iR(i.
I.
A CIDADE irAveiro, que ainda no mciado do se-
rnlo passado era villa . conlada entre as mais no-
Ja.neiuo 21 — 1SÍ3.
Iires e populosas do reino , passou no reinadn di»
Sr. D. José á cathegnria que Icm hoje , sendo ele-
vada a sé episcopal , desmembrando-se esta v.o^n
diocese da antiga de Coimbra , e reconhecendo prir
metropolitana a igreja bracharense. Tem o tilul;; de
nolre e notável , e na antiga legislação e sjsti.ma
•2." Serie — \vl.. 11.
18
O PANORA3IA.
politico gozava de voto nas cortes dos Ires estados,
!• dc muitos e singulares privilégios , qne ultima-
mente tinham sido confirmados em 1641 pelo Sr.
rei D. João 4.° Por occasião do exterrainio da fa-
mília dos duques d'Aveiro , sob pretexto d'assassi-
iiio intentado contra a pessoa d'clrei D.José, subiu
a tanto o rancor que até foi mudado o nome a esta
cidade , que dera o titulo áquclla casa infeliz , e o
mudaram para Nova- lira ganra ; alterarão que brc-
Yí- durou , nem deixou lembrança no povo , anni-
({uilada logo no subsequente reinado.
Aveiro está situada em mediana elevação ao lou-
i?') das margens do Vouga , quasi toda na direcção
de norte a sul , c cercada de uma campina fértil ,
povoada de quintas c hortejos , c abundante em
aguas nativas. Pôde considerar-se dividida cm cin-
to partes, uma das quaes ó a mais antiga, com-
prehendida no recinto amuralhado , obra do infan-
te D. Pedro, filho dc D. João 1.°; as outras qua-
tro tem a disposição de suburldos , ou arrabaldes:
ao norte vão-se levantando as ruas pelo bairro-novo
até a ermida da Sr."" d' Alegria : c para o sul na
parle mais alta da cidade estende-se a formosa ala-
meda , entre a porta dita de Vagos e o convento de
.St.° António, bcllo passeio donde scdesfrucla agra-
dável vista do rio e do campo adjacente: contribuo
para a frescura do sitio uma fonte , das cinco que
SC numeram na povoação , alem de muitos raanan-
ciaes na visinhanca , de que os moradores seapro-
Tcilam para regas, e para usos domésticos, entran-
do a nascente da Ribeira, copiosa c sadia, que por
um aqueducto c conduzida ao chafariz da praça, de
(juatro bicas, e tão visinho da ria que muito facili-
ta as aguadas aos mareantes.
O [jorto é formado por um esteiro fundo ou ria ,
pelo qual ascende a maré a misturar-sc com as
aguas da foz da Vouga, que por aqui vem, engros-
sado com varias ribeiras, pagar seu tributo ao ocea-
no ; a espécie de pequeno golpho em frente da ci-
dade é retalhado em ilhotas ou lesirias , parte cul-
tivadas , c parto aproveitadas cm marinhas. A bar-
ra é mui susceptivcl dc entulhar-se c de variar de
posição como a da foz do Douro, em rasão dos l)an-
cos d'arèa movediços : delia e da capacidade de
bcu porto nasceu, c ainda agora depende, a prospe-
ridade de Aveiro , que jcá pelo commcrcio , navega-
ção e pescarias, cm outros tempos se foz assaz opu-
lenta, c conseguiu grande importância no reino ,
pois que em lii.-JO contava doze mil almas, c pos-
suia mais dc 150 navios mercantes , expedindo an-
uiialmente 60 á pesca do bacalhau no grande ban-
co da Terra-Nova (-) , c cem carregados dc sal de
suas marinhas [hoje mui estragadas c perdidas] pa-
ra as províncias do Norte c para a Galiza. — Tão
florccenlc estado succcssívamente decahiu desde
1575 até o fim do século 17.° á medida que o por-
to se entulhava ; porem no principio do presente
século o mal chegou ao seu auge : o movimento con-
tinuo das arèas ao longo da costa removera a barra
[lara o sul até perlo de Mira , isto c , mais dc 15
niíliias da sua primitiva situação. Os ferieis cam-
pos d'Avciro, que outr'ora produziram, segundo
<ii/.ein, trinla mil moios de trigo, c as grandes ma-
rinlias (]uc rendiam , igualmente por anuo, dczo-
.seis mil moios de sal , solTrcram as fataes conse-
quências daquella alteração : alem de qne o terre-
no , dantes espaçoso c fértil, se converteu em ala-
gadiço , produclor de miasmas , que despovoaram
a cidade c arredores, fazendo o clima insalubre cm
summo grau. — Era ministro d'cstado cm 1801 o
conde de Linhares, c procurou-sc remediar o mal :
dois engenheiros , o brigadeiro Oudinot e o tencnta
coronel, Luiz Gomes de Carvalho (::) foram encar-
regados de apromplar o plano ; e com efleito sob as
suas ordens tiveram começo os trabalhos em 1802.
Partindo Oudinot para a Madeira Ceou a inspecção
commetida a Gomes de Carvalho , e concluiu-se a
obra a 3 d'abril de 1808, montando a despeza to-
tal a cem contos do réis. Formou-se o porto d'A-
vciro pela construcção de um dique de 1:210 bra-
ças d'cxtensão por uma largura media de 72 pal-
mos , elevando-se cm todo o comprimento muitos
palmos acima das mais fortes mares d'inverno. Por
meio desta repreza ou dique , que atravessava in-
teiramente o Vouga , conseguia-so que as próprias
aguas do rio servissem de desimpedir a barra, e
levar comsigo as dunas ou baixos d'areias, que lhe
obstruiam a foz cm comraunicação com o mar. Es-
ta grande obra hydraulica requeria vigiada, e con-
servada por ulteriores trabalhos.
(•) Viil. o oxlensc) arligo , ijiie sol)ri! u Teira-Nuva e n
pc»ca do l)acalli,'ni escrevemos a jiai,'. 10 o seg. do vol. 3.°
da pnuaira Sciie.
Aviso CO.NTBA SALTEADOBES.
Se ha no mundo paciência c equanimidade herói-
ca , tem-no sido sem a minima contradicção , por
mais de cinco ou seis annos , a da imprensa portu-
gueza , espoliada traiçoeiramente por alguns beduí-
nos c traficantes lillcrarios, que assentaram as suas
tendas de aduar , não nos desertos da Africa , mas
na capital de um robusto e ílorescentc império. Co-
mo succede quasi sempre cãs grandes virtudes , a
nossa tom , porventura , sido attribuida a motivos
menos honrosos — ao desleixo ou á fraqueza; porque
cm logar de com o solTrimcnto movermos esses mi-
seráveis a envergonharom-se do seu torpíssimo pro-
codtr, só temos visto em resultado levarem as suas
rapinas ao ultimo ápice do descaramento alárabe.
É preciso, pois , que saibam que a paciência hu-
mana tom , como tudo , iim termo.
Algum ou alguns livreiros francczes estabelecidos
no Urasil tomaram para honesto modo de vida roubar
quanto a imprensa de Portugal produz. Seja bom ou
sejaraáu, não ha livro, folheio, artigo de jornal po-
pular, que não seja reproduzido pela imprensa fran-
ccza da America. È como o sacco de qualquer cida-
de da Europa dado pelos soldados do Buonaparte :
vai tudo. Da allura da sua enorme sciencia e civi-
lisação gallicana aquclla boa gente olha com sobe-
rano desprezo para o publico brasileiro: oeste po-
vo rude c ignorante — dizem cllcs na profundeza
dos seus pensamentos — lê sem entender, e esque-
cc-sc do que lem lido ; lancemos nas columnas dos
nossos jornaes-ccchos , dos nossos livros-alheios ,
quanto em Portugal s« pensar e escrever. Que iui-
porta que os brasileiros o hajam lido em primeira
mão? É um negocio de tempo. Quando cá sair a
lume já o terão esquecido, e nós ganharemos di-
nheiro. D
Tanto éesta opinião insolente e ingrata a que pre-
side a tão baixn latrocinio, qne nesses jornaos com-
(::) Deste saljio eDçeiilieiro ha uma memoria solire a
l)arra do Douro, com a planla, em o 0." tom. das da.4.cad.
dai Scieuc.
o PANORAÍHA.
19
postos unicnmcnte de farrapos , mal cirzidos , dos
iornacs populares portuguczrs , nunca so encontra-
rá a indicarão , nem o norac do pobre espoliado.
•Estas indicarucs c estes nomes revelariam claro co-
mo o dia que osadellos litterarios nãoteem de seu
para trazerem á praça nem a mais somenos mcrca-
âuria.
Ha nm fado antigo que pesa sobre este mesqui-
nho Portugal , e que , segundo cremos , a experiên-
cia de muitos séculos converteu n'uni desses rifões,
que representam c resumem a sabedoria do povo.
-Tudo quanto é rapinavcl e rapinado tem entre nós
tima denominação caractcristica : cbama-se-lhc rou-
pa de francezcs; porque os successos da nossa his-
toria nos hão bera d nossa custa provado que no
meio daquella nação, aliás generosa e honesta, ha
muitos homens promptos sempre a lançar mão de
tudo o que podem tirar sem resistência c conver-
Ic-lo cm substancia própria. Os saltos dos norman-
dos e lotharingios nas costas do Jlinho e da Beira
durante o sccbIo 12.° : as depredações deDuguesclin
c dos seus homens d'armas , a soldo dos reis de
Caslella , no lini do 14.° ; as piratarias dos armado-
res da Bretanha e Normandia que no 16." infestavam
os nossos mares da Europa c da Africa; o sacco do
Rio de Janeiro nos primeiros annos do 18.°; a inva-
são do principio do 19.°, em que ficaram as igrejas
de Portugal sem um lampadário , sem uma custo-
dia . sem um vaso sagrado ; todos estes factos san-
ctilicaram o rifão , e levaram até a ultima eviden-
cia que sobre nós pesava o fatal destino , symboli-
sado na phrase popular.
Quando , porem , parecia que já neste pobre c
humilhado paiz não haveria que roubar, acha o gé-
nio inventor de algum ou d'alguns francezcs, que
nem o frueto do pouco ou muito estudo , do muito
ou pouco talento — propriedade sagrada entre todas
as propriedades — se nos de\ia deixar. Depois de
nos devorarem as mais remotas e menos legitimas
riquezas de qualquer povo , as colónias c conquis-
tas, cspoliaram-nos dos bens mais domésticos, mais
queridos, mais respeitáveis — os instrumentos do
nosso culto; c como estas eram as ultimas raias do
mundo material, ultrapassando-as , vieram ainda
Jjuscar-nos as tão teuues faculdades da intelligencia.
Masse, relativamente a Portugal, este proceder é
o de salteadores covardes, relativamente ao Brasil
é , alem disso , insultuoso c calumniador. Não se-
ria o engenho brazileiro capaz de produzir obras
d'arte ou de sciencia? Ahi estão as publicações
americanas — verdadeiramente americanas — que
respondam por nós. O jornal do Instituto Históri-
co , o da Sociedade auxiliadora da Industria , o fa-
zem cabalmente. Estas publicações e muitas outras,
periódicas e não periódicas, dão testemunho de que
também no grande império da America meridional
ha sciencia grande e profunda , ha lettras , ha en-
genho. Se os especuladores da imprensa pertendcm
cmpregar-se no commercio das lettras , convoquem
os filhos do Brasil , que podem e sabem , tão bem
como os de Portugal , preencher honrosamente o
ministério de escriptores , e recompensem o seu
trabalho , como se pratica por toda a parte ; como
se pratica entre nós. Então o seu commercio será
honestamente proveitoso para clles, útil para as let-
tras brasileiras, e glorioso para o Brasil, cm vez
de ser uma calumnia affrontosa contra a nação quo
os acolheu, c um roubo insolente contra as cmpre-
zas typographicas da Europa, c eonlra os interesses
dos homens da sciencia c da arte , nascidos alem
do Atlântico.
Queremos nós com isto negar a qualquer editor
de uma publicação periódica a faculdade de trans-
crever um ou outro artigo das publicações análo-
gas , feitas cm Portugal , um ou outro trecho dos
livros porluguezes? Não por certo : tal pcrtenção
seria absurda lia cousas que pela matéria ou pela
forma podem interessar os leitores do Brasil , e
nesse caso, posloquc os livros e periódicos de Por-
tugal não sejam raros no Novo-Mundo , será um
serviço feito á illustração nacional o dar a tal es-
cripto a maior publicidade possível : — sè-lo-hia até
á gloria de seu auctor. Slas nisto ha discernimento
e escolha; não ha o que se pratica hoje; não se
misturam estupidamente diamantes com velórios ,
ouro com leutcjoulas: cita-se o titulo da publica-
cação , 00 o nome do auctor que se copia. Simi-
Ihante procedimento ó o dos homens honestos , o
contrario ou c inclassificável , ou pertenrc-lhe in-
contestavelmente a qualificação que acima lhe de-
mos.
Que esse individuo, ou indivíduos, que se di-
zem membros de uma nação illustre, aprendam do
próprio paiz onde vivem , c de cuja hospitalidade
abusam, a respeitar a propriedade alheia. Quandn
os editores dos jornaes brasileiros mais graves e
profundos, julgara dever dar nas columnas dellcs
logar a composições portuguezas, jamais se esque-
cem dos deveres do homem probo , e escrupulosa-
mente indicam as fontes a que recorreram. Os que
talvez no seu orgulho acreditaram ter levado ao
Brasil a diffusão das luzes encerrada nos seus cai-
xões de typo , podem ahi receber lições — se aca-
so a sua comprehensão tanto alcança — de verda-
deira illustração , e o que mais é , de verdadeira
honestidade.
Appelamos para o bom juizo dos brasileiros, pa-
ra a opinião publica , para aquelles que por mai^
de ura titulo são nossos irmãos — os litteratos d<i
império. Trata-se não só de nós , não só dos inte-
resses de Portugal ; trata-se igualmente do Brasil .
da sua gloria, do futuro dos seus escriptores. —
A questão da propriedade litteraria choje uma gra-
víssima questão da velha Europa : a immoralídade
internacional neste objecto capitalissimo é um doj
cancros que a devoram. Não consintam os brasilei-
ros que este ou aquellc estrangeiro possa iunocular
livremente n'um povo virgem um virus que cor-
roa as nossas sociedades decadentes. Em Portugal
isto só produz damnos individuaes : no Brasil pro-
duzirá um damno commum. Nós podemos dizer-
Ihe: Rcs rcstra agilur.
Agora que os cirzidorcs d'alheios farrapos trans-
crevam como seu este artigo.
Á. Iltrcuhtno.
O BOBO.
1128-
II
Dom Uihas.
O castello de Guimarães , qual ahi existi.i nos
princípios do século 12.°, difl'crençava-se entre os
outros, que cobriam quasi todas as eminências «las
honras e prestamos de Portugal e da Calliza , por
sua fortaleza, vastidão, e elegância. A maior par-
20
O PANORAMA.
te dos edifícios desta espécie eram apenas então
iitn ;iggrcgado de grossas vigas , travadas entre si ,
e formando uma serie de torres irregulares , cujas
jiaredcs, muitas vezes feitas de cantaria sem cimen-
to , mal resistiam aos golpes dos ariclcs e aos ti-
ros das calapultas , ao passo que os madeiros que
ligavam esses fracos muros, c llics davam certo as-
pecto do forlilicarão duradoura, tinham o grave in-
convcnienle de poderem facilmcnle inccndiar-sc.
Assim não havia caslcllo , onde entre as armas e
baslimeníos de guerra não occupasscm um dos mais
importantes logares as amplas cubas de vinagre ,
liquido que a experiência linha mostrado ser o
mais próprio para apagar o alcatrão incendido, que
como instrumenlo de ruina usavam nos sítios dos
logares aforlalczados. Quando o gato ou a vinea ,
espécie de barraca ambulante , coberta de couros
crus, SC approximava, pesada e lenta como um es-
pectro , aos muros de qualquer castello , em quan-
to os cavalleiros mais possantes arcavam com pe-
dras enormes ,- levando-as aos vãos das ameias, pa-
ra dahi as deixarem cahir sobre o tecto da macbi-
na , os peões conduziam para o lanço de muralha
ou torre, a que esta se dirigia , uma quantidade
daquclle liquido salvador capaz d'abafar as cham-
raas , involtas em rolos de fumo fétido, que não
tardariam a lamber as traves angulares do guerrei-
ro edificio. Muitas vezes essas precauções eram
inúteis, principalmente conlra os sarracenos. Entre
estes uma civilisação immensa tinha moderado o
fanatismo, quebrado os brios selvagens, diminuído
a robustez phjsica dos homens d'armas : a sua mes-
tria, porem, da arte da guerra suppria estas faltas e
equilibrava nos combates o soldado musslim com
o guerreiro christão mais robusto, mais fanático e
por isso mais impeluoso do ([ue elle. Era principal-
nicnlo nos assédios, quer dofcndcndo-sc , quer ac-
commetlendo, que os árabes conheciam todo o pre-
ço da própria superioridade intellectual. As suas
machinas de guerra , mais perfeitas que as dos na-
zarenos , não só pela melhor combinação das forças
mechanieas , com.o pela maior variedade de enge-
nhos c invenções , davam-lhes notáveis vantagens
sobre a grosseira táctica dos seus adversários. Sem
o soccorro da vínea os árabes sabiam incendiar de
longe os castellos com os scorpiões arrojados pelas
nianganellas de fogo. De enxofre, salitre e naphta
compunham ellcs um mixlo terrível , com que des-
pediam dos engenhos globos de ferro cheios do
mesmo composto , que serpeando c sussurrando nos
aros iam estourar, c verter dentro dos muros asse-
diados uma espécie de lava inextinguível e infer-
nal , contra cuja violência eram baldadas qiiasi
sempre todas as prevenções , e não menos baldadas
a valentia e a força dos mais duros cavalleiros e
homens d'armas.
-Mas o castello do Guimarães podia , do tczo so-
bro ([ue estava assentado, olhar cora tranquillo des-
dém para os formidáveis c variados engenhos mili-
tares de chrislãos e do sarracenos. X melhor f)rta-
leza daOalliza, o Castro Honesto, que o mui pode-
roso e venerando senhor Diogo Gclmirez , primei-
ro arcebispo de Compostella , reformara de novo ,
com lodo o esmero de quem sabia ser aquelle Cas-
tro como a chave da extensa iloina e Senhorio Com-
postellano , era, por trinta léguas em roda, o úni-
co talvez que ousaria disputar primazias com o de
Guimarães. Como a daquelU; , a cárcova deste era
larga e profunda ; as suas barreiras amplas c de-
fendidas por boasbarbacans ; as suas muralhas, tor-
readas com curtos inlervallos , altas , amciadas e
desmarcadamente grossas , do que dava testemunho
o espaçoso dos adarvcs que corriam por cima del-
ias. O circuito, que tão temerosas fortificações abran-
giam, encerrava uma nobre alcáçova, que, também
coberta d'ameias, campeava sobranceira aos lanços
de muros entre torre e torre , c ainda assoberbava
estas, á excepção da alvarran ou de menagem, que
macissa e quadrangular, com os seus esguios mira-
douros bojando nos dois ângulos exteriores , e er-
guida Sobre o escuro portal da entrada , parecia
um gigante cm pé e com os punhos cerrados sobre
os quadris , ameaçando o burgo rasteiro e humil-
do , que lá embaixo no sopé da encosta se encolhia
e apoquentava , como villão que era , diante de ta-
manho senhor.
Mas não vedes ahi ao longe , por entre a casaria
da povoação e a verdura das almoínhas , que , en-
tresachadas com os edifícios burguezes, serveia co-
mo de vasto tapeio , onde assentara os pannos de
muros alvos , e os telhados vermelhos e aprumados
das casas modestas dos peões? — Não vedes, digo,
a alpendrada de uma igreja , a portaria de um a-
cístcrío , a grimpa d'ura campanário? É o mostei-
ro de D. Mumadona : é um claustro de monges ne-
gros : é a origem desse burgo , do castello roquei-
ro e dos seus paços reacs. Havia duzentos annos
que neste valle viviam apenas alguns servos , que
cultivavam a villa ou herdade de Vimaranes. Mas
o mosteiro edificou-se, e a povoação nasceu. O ame-
no e aprazível do sitio attrahiu os poderosos ; o
conde lienriquc quiz ahi habitar algum tempo , e
sobre as ruínas de um fraco e pequeno castello , a
que 03 monges se acolhiam ante o assolador tufão
das correrias dos mouros, se alevantou aquella ma-
china. O trato e frequência da corte enriqueceu 09
burguezes : muitos Francos , vindos era companhia
do conde , ahi se tinham estabelecido , e os homens
de ma , ou moradores do burgo, conslituíram-se
em sociedade civil. Então surgiu o município : e
essas casas, apparcntemente humildes, encerravam
já uma porção do fermento da resistência anti-lhco-
cratica e anti-feudal , que espalhado gradualmente
polo paiz , devia em Ires séculos pòr manietados
aos pés dos reis a aristocracia e a Iheocracia. Os
imperantes supremos , enfarados já na caça , que
abasteceria de futuro as mesas dos banquetes trium-
phaes dos seus successores , atrelavam presto delia
os lebréus : punham o concelho ao i)ó do castello ,
do mosteiro, e da cathedral. Guimarães breve ob-
teve do conde um foral — uma carta de município,
tudo pro bono pacis , como reza o respectivo docu-
mento.
É nesta alcáçova , cingida das suas fortificações
lustrosas , ^irgens , elegantes , e todavia formidá-
veis, onde a nossa historia começa. Habitavam en-
tão nella a mui virtuosa dona, e honrada rainha, D.
Thcreza , infanta dos pnrtuguezes , c o mui nobre
e excellenlc senhor Fernando Pcrez , condo de Tra-
va , cônsul da terra pnriugalenso c da colímhrien-
se , alcaídc-mór na Gallíza do castello de Pharo,
e cm Portugal dos de Santa Ovaía c do Some. Era
elle a primeira personagem da corte de Guimarães
depois de D. Thcreza , a fonnosmima infanta , pa-
ra nos servirmos do epíthclo que em seus diplo-
mas lhe dava o conde D. Heiírique , o qual devia
saber perfeitamente se esta denominação lhe qua-
drava. Apesar de entrada em annos, não cremos
que na epooha a que se refere a nossa narrativa ,
esto cpithelo seja inteiramente anachrouico , por-
o PAIVORA3IA.
21
que nem a bastarda (i'Anbnso 6.° era ainda idosa,
nem devemos imaginar que a aíToirão de Fernando
Pcrez fosse crua e simplesmente um calculo am-
bicioso.
Esla alTeição , porem , ardente e mutua , como
pelo menos parecia ser, sobremaneira affiava, tem-
pos liavia , as línguas dos maldizentes. Pouco a
pouco muitas graves matronas, em quem a idade
fizera seu ofBcio de mestra da virtude , se tinham
alongado da corte para suas honras e solares. Com
mais alguma resignação as donzellas offereciam a
Deus o próprio solTrimento era presenciar este es-
cândalo. Demais, a vida cortezã era tão risonha de
saraus , de torneios , de banquetes , de festas ! —
alogravam-na tanto a chusma de carallciros man-
cebos , muitos dos quacs tinham pela primeira vez
vestido as armas na guerra do anno antecedente
contra orei de Leão! — Alem disso, que igreja
iiavia ahi, a não ser a sé de líraga, onde as solem-
nidades religiosas fossem celebradas cora mais pom-
pa que no mosteiro de D. Mnma , Ião devotamente
assentado I;i embaixo no burgo? Que cathcdral ou
acisterio tinha órgão mais harmonioso que este? On-
de se podiam encontrar clérigos ou monges, que
em mais aíHnadas vozes entoassem inn gloria in
r.rcclsis , ou um cxsurgc dominef Culto, amor, sa-
raus, tríplice encanto da idade media, como vos
resistiriam estes corações innocentes? As donzel-
las , bem que lhes custasse , continuavam portanto
a cercar a sua bella infanta , que muito amavam.
As velhas, essas pouco importava que tivessem de-
sapparecido.
Tacs rasões , c varias outras , davam as damas a
seus naturaes senhores , para continuarem a viver
a vida folgada do paço ; aos pais a devoção : aos
maridos o acatamento a mui generosa rainha , de
quem elles eram presíameiros e alcaides : aos ir-
mãos , sempre indulgentes, a paixão pelas danças
e torneios , cujo engodo elles melhor ainda sabiam
avaliar. Debaixo , porem , destes urgentes motivos
outro havia não menos poderoso, e em que nenhuma
reparava , ou que , se reparava , não se atreveria a
mencionar. Este motivo era uma bruxaria , um fei-
tiço inexplicável , uma fascinação irresistível , que
cm todos aquelles espíritos um único homem pro-
duzia. Cousa incrível, por certo, mas verdadei-
ra como apropria verdade.' — Palavra de roman-
cista I
E não era lá nenhum grande homem ; era um
vulto de pouco mais de quatro pés d'altura ; feio
como um judeu; barrigudo como um cónego de
Toledo ; immundo como a consciência do celebre
arcebispo Gelmirez , e insolente como um villão de
behetria. Chamava-se de seu nome Dora Bibas. Oljla-
to do mosteiro de D. Muma, quando chegou á ida-
de , que se diz da rasão , por ser a das grandes
loucuras , achou que não era feito para elle o re-
manso da vida monástica. Atirou ás malvas o ha-
bito , a que desde o berço o tinham conderanado :
c ao cruzar a porta do acisterio , escarrou alli em
peso o latira com que os monges começavam a em-
peçonhenlar-lhe o espirito. Depois sacudindo o pó
das suas çapatas , vollou-se para o mui reverendo
porteiro . e por um esforço sublime de abnegação
atiron-lhe á cara com toda a sciencía hebraica ,
que tinha alcançado naquella santa casa , gritando-
Ihe com uma visagem d'escarneo — racca marana-
Iha, raccamaranalha — e desapparecendo após isso,
como a zevra perseguida desapparecia naquelles tem-
pos aos olhos dos raonteiros nas florestas do Gerez.
Não referiremos aqui a historia da solta mocida-
de do nosso oblato. Por mczes a sua vida foi uma
destas vidas como era commummenle naquella epo-
cha , c o é ainda hoje , a do homem do povo que ,
a não ser nos claustros, tentava cravar os dentes no
pomo vedado ao pobre — a mui illustre e aristo-
crática mandriíce ; — uma vida inexplicável c mi-
lagrosa, uma vida, na qual ao dia folgado de fartu-
ra c beberronia impensadas seguiam muitos de
perfeita abstinência. A miséria , porem , lhe crcou
uma industria : Dom Bibas começou a sentir em si
as inspirações de Irovista c os garbos de folião :
pouco a pouco a sua presença tornou-se tão dese-
jada nas tabernas do burgo , como as cubas de boa
cerveja , então bebida trivial , ou antes tão agradá-
vel como os effluvios do vinho , que naquella cpo-
cha ainda escaceava algum tanto nas taças dos peões.
A fama de Dom Bibas tinha subido a altura in-
commensuravcl , quando o conde Henrique assen-
tou sua corte em Guimarães. Felizmente para o an-
tigo oblato, o bufão que o príncipe francez trouxe-
ra de Borgonha, lançado entre estranhos, que mal
entendiam seus motejos , conhecera que era uma
palavra sem sentido neste mundo, e houve por bem
morrer , declarando a seu nobre senhor , era des-
cargo de consciência , que buscasse , entre os ho-
mens do condado , alguém que exercesse este im-
portante cargo ; porque sorte igual á sua esperava
qualquer bobo civilisado da cívilisada Borgonha ,
no meio destes selvagens estúpidos do Occídenle,
Na cúria dos barões , ricos-homens , e prelados ,
que então se achavam na corte , propoz o conde o
negocio. Havia votos que tal bobo se não procuras-
se. Fundavam-se os que seguiam esta opinião era
que nem nas leis civis de Portugal , Coimbra e
Galliza — o livro dos juizes , — nem nos degredos
do padre-santo, nem nos costumes tradiciouaes dos
filhos dos bem-nascidos, ou fidalgos de Portugal ,
havia vestígios ou memoria deste oflicio palatino.
Venceu, porem, o progresso: os bispos e uma gran-
de parte dos senhores , que eram francezes , defen-
deram as instituições pátrias , e a alegre truanice
daquella nação triumphou emfim da triste gravida-
de portugueza na corte de D. Henrique , bem co-
mo o breviário gallo-romano triumphára poucos an-
nos antes do breviário gotbico perante D. AiTon-
so 6."
Foi então que Dom Bibas se viu elevado , sem
protecções nem empenhos , a uma situação , a que
nos seus mais ambiciosos e agradáveis sonhos de
felicidade nunca tinha imaginado tiepar. O próprio
mérito e gloria lhe puzcrara nas mãos a palheta do
seu antecessor, a gorra asini-auricular, o gibão de
mil cores , e o saio orlado de guizos. De um para
outro dia o homem illustre pôde olhar senhoril , e
estemicr a mão protectora para aquelles mesmos
que na véspera o apupavam. Diga-so , porem, a
verdade em honra de Dom Bibas : até o tempo em
que succederam os acontecimentos extraordinários
que começamos a narrar , elle foi sempre genero-
so , nem nos consta abusasse jamais do sou vali-
mento e da sua importância politica cm damno dos
pequenos e humildes.
O leitor que não conhecesse por dentro e por fo-
ra , como se usa dizer , a vida da idade media , ri-
ria da pequice cora que attribuimõs valor politico
ao bobo do conde de Portugal. Pois o caso não ó
de rir. Xos tempos feudaes o cargo de Iruão cor-
respondia até certo ponto ao dos censores da repu-
blica romana. Naquella epocha muitas paixões, so-
22
O PANORAMA.
bre as qtiacs a civilisação estampou o ferrete d'i-
gnobeis , ainda mo eram liypocritas, porque a hy-
pocrisia foi o magnifico resultado que a civilisarão
tirou de sua sentença. Os ódios e as vinganças eram
lealmente ferozes, a dissolução sincera, a lyrannia
sem niyslerio. No século dezeseis Filippe 2.° ente-
nenava seu filiio nas trevas de um calabouço : no
principio dodecimo-terceiro, D. Sancho 1.° de Por-
tugal arrancando os olhos aos clérigos de Coimbra,
que recusavam celebrar os oflicios divinos nas igre-
jas interditas, chamava para testemunhas daquclle
feito todos os parentes das viclinias. Filippe era um
parricida, polidamente covarde : D. Sancho um sel-
vagem atrozmente vingativo. Entre os dois prínci-
pes ha quatro séculos nas distancias do tempo, c
o infinito nas distancias moraes.
N'uma sociedade em que as torpezas humanas
assim appareciam som véu , o julga-las era fácil.
O- difTicuItoso era o condcmna-las. Na extensa esca-
la do privilegio , quando um feito ignóbil ou cri-
minoso SC praticava, a sua acção recahia , por via
de regra, sobre aquelles que se achavam collocados
nos degraus inferiores ao perpetrador do attcntado.
O syslema das jerarchias mal consentia os gemi-
dos : como seria portanto possível a condcmnação?
As leis civis na verdade procuravam annular, ou
pelo menos modificar esta situação absurda ; mas
era a sociedade que devorava as instituições, que
não a comprchendiam a ella , nem cila comprehen-
dia. Porque de reinado para reinado, quasi de an-
uo para anno , vemos renovar essas leis , que ten-
diam a substituir pela igualdade da justiça a des-
igualdade das situações? — É porque semelhante
Jcgislação era Icttra morta , protesto inútil d'algu-
jTias almas formosas e puras , que pretendiam fosse
presente o que só podia ser futuro.
Mas no meio do silencio tremendo de padecer in-
crivel e de solTrimcnto forçado , um homem havia
que, leve como a própria cabeça, livro como apro-
pria lingua , podia descer e subir a Íngreme e lon-
ga escada do privilegio, soltar em todos os degraus
delia uma voz de reprchcnsão, punir todos os cri-
mes cora uma injuria amarga , e patentear deshon-
ras de poderosos, vingando assim, muitas vezes sem o
.saber, males c opiiressões de humildes. Este homem
era o truão. O truão foi uma entidade raysteriosa
lia idade media. líojc a sua significação social é des-
prezível e impalpável ; mas então era um espelho
que reflectia, cruelmente sincero, as feições he-
diondas d(! sociedade rachytica e incompleta. O bo-
bo , que habitava nos paços dos reis c dos barões ,
desempenhava um tcrrivel ministério. Era ao mes-
mo tempo juiz c algoz ; mas julgando , sem proces-
so , no seu foro intimo , c pregando , não o corpo ,
mas o espirito do criminoso no potro immaterial do
vilipendio.
Ei elle ria — ria contínuo ! Era rir diabólico o do
bobo : [)orque nunca deixava de ir pulsar dolorosa-
mente as libras d'algum coração. Os seus dictos sa-
lyricos, ao passo que suscitavam a hilaridade dos
cortesãos, faziam senipr(í un)avíctíma. Como o cy-
«lope da Odissea , na sala d'armas ou do banque-
te ; nos balcões da praça do tavolado , ou das tau-
romachías ; pela noite Itrilhante c ardente dos sa-
raus ; e até junto aos aliares , ao reboar o templo
com as harmonias dos cânticos e psalmos , com as
vibrações dos sons do órgão, no meio da atmosphe-
ra engrossada pelos rolos do fumo alvacento do in-
censo , em toda a parte c a todas as horas , o bu-
fão tomava ao acaso o temor que infundia o prín-
cipe, o barão, ou o illuslre cavalleiro , e o res-
peito que se devia a dona veneranda ou a dama
formosa , c tocando-os com a ponta da sua palheta,
on fazendo-os voltear nos tintinabulos do seu adu-
f e , convertia esse temor e respeito n'uma cousa
truanesca c ridícula. Depois involvendo o caracter
do nobre c grave personagem, atassalhado c cuspi-
do , n'um epígramma sangrento, ou n'uma allusão
insolente atirava-o aos pés da turba dos cortesãos.
No meio , porem , das risadas estrepitosas , ou do
rir abafado , lançando de passagem um olhar bri-
lhante e vago ao gesto confrangido e pallído da vi-
ctiraa, c, como o tigre, recrudescendo com o cheiro
da carniça , o bobo cravava de salto as garras na-
quelle aquém ódio profundo ou inveja solapada fa-
zia saborear com mais entranhavel deleite a vergo-
nha c abatimento do seu inimigo. Então a pallidej
deste pouco a pouco deslisava n'um sorriso, e ia
tingir as faces do cortesão que havia instantes se
recreava folgado na vingança satisfeita. — Se era
em banquete ou sarau , onde o fumo do vinho e a
ebriedade que nasce do contado de muitos homens
juntos , das danças , do perpassar das mulheres vo-
luptuariamente adornadas, do cheiro das Dores, das
torrentes de luz que em milhões de raios aquece o
ambiente — a loucura fictícia do truão parecia dila-
lar-sc , agitar-sc , convírter-se n'um turbilhão in-
fernal. Os motejos e as insolências volteavam sobre
as cabeças cora incrível rapidez ; as mãos que iam
unir-se para approvar estrondosamente o fel da in-
juria vertido sobre uma fronte odiada, ficavam mui-
tas vezes immovcis, contrahidas, convulsas, porque
entre cilas linha passado a seta de um epigramma
azeirado, e havia batido no coração ou na consciên-
cia de quem imaginava só applaudir a alheia an-
gustia. E por cima daquelle estrépito de palmas,
de gritos , de rugidos d'indignação , de gargalha-
das , que gelavam frequentemente nos lábios dos
que as iam soltar, ouvia-se uma voz esganiçada que
bradava e ria , um tinir argentino de guizos , um
som baço de adufe ; viam-se brilhar dois olhos re-
luzentes e desvairados n'um rosto disforme , onde
se pintava o escarneo , o desprezo, a cólera, o des-
façamento , confundidos c indistinclos. Era o bobo
que nesse momento imperava despótico , lyrannico,
inexora\el, convertendo por horas a frágil palheta
em sceplro de ferro , c erguendo-se altivo sobre a
sua miserável existência como sobre um throno de
rei — mais porventura que throno ; porque nesses
momentos elle podia dizer: o os reis lambem tão
meus servos ! b
Tal era o aspecto grandioso c poético d,iquella
entidade social exclusivamente própria dos tempos
feudaes, padrão levantado á memoria da liberdade
e igualdade, c ás tradições da ci\il(*ação antiga,
no meio dos séculos dajerarchia, c da gradação in-
finita entre homens e homens. Quando , porem ,
chamámos miserável á existência do truão — a esta
existência que descrevêramos tão folgada e risonha,
tão cheia de orgulho, d'esplendor de predomínio —
era que nesse instante ella nos apparecèra sob ou-
tro aspecto , contrario ao primeiro , c todavia não
menos real. Passadas estas horas de convivência on
de deleite, que eram como uns oásis na vida triste,
dura, trabalhosa, c arriscada da mcia-idade, o be-
co perdia o seu valor momentâneo, c voltava á obs-
curidade — não á obscuridade de um homem —
mas á de um animal domestico. Então os desprezos,
as ignominias , os maus tratos daquelles que cm
publico haviam sido alvo dos ditos agudos do cho-
o PANORAMA.
23
carreiro cahiam sobre a sua caberá bumilliada cer-
rados como granizo, sem piedade, sem resistência,
sem limite : • — era um rei descnlhronisado ; era o
typo c o resumo das mais profundas misérias hu-
manas. Sc naquelles olhos então assomassem lagry-
uias . essas lagrymas seriam ridiculas , e cumpria-
llie traga-las em silencio: se um gemido se lhe alc-
vaiitassc da alma, fura necessário recalca-lo ; porque
llie responderia uma risada: se a vergonha lhe tin-
gisse as faces, deveria esconder o rosto; porque es-
sa vermelhidão seria bafejada pelolialito de um di-
cto de torpeza: se uma grande cólera lhe carregas-
se o gesto, toruar-Ihe-hiam como remédio um inso-
lente escarneo. Assim no largo tyrociuio de um dií-
ii' ultoso mister, o seu primeiro e capital estudo
era varrer da alma todos os affeclos , todos os sen-
li;uenlos nobres , todos os vcstigios da dignidade
moral ; csquecer-sc de que havia no mundo justi-
ça , pudor , brio , virtude ; csquecer-sc de que o
primeiro homem entrara no paraiso animado pelo
«ipro do Senlior , para só se lembrar que sahíia
(iille, já precito, por uma inspiração de Satanaz.
Tudo isso — dirá o leitor — c muito bom; porem
não explica o prestigio, a espécie de fascinação que
1). Bibas exercitava no espirito das damas c don-
zellas da viuva do conde Henrique , a bclla infan-
I- de Portugal. Lá vamos. O nosso D. Bibas com
• seus cinco palmos d'altura era um homem ex-
triiirdinario , e a truanice essencialmente franceza
tn;!ia por arle delle feito em Portugal um verdadei-
ro progresso; estava visivelmente melhorada no ter-
reno alheio, como os alperchcs, dcquercsa cm seus
e ;!ilarcs o adail dos poetas portuguczes. O novo bu-
fão do conde Henrique ao começar os graves estu-
dos e as difTicuUosas experiências de que carecia
pr.ra preencher dignamente o seu cargo , teve a fe-
liz inspiração de associar algumas doutrinas caval-
leirosas- com os mais prosaicos elementos da cho-
cirricc fidalga. Na torrente dos desvarios , quando
mais violento derramava era roda de si a lava ar-
ileiíto dos dictos insultuosos c cruéis , nunca dos
' ' ios lhe sahiu palavra que fosse despedaçar a al-
: de uma dama. D. 15ibas debaixo da cruz da sua
espada de lenho sentia bater ura coração portugucz
■ — -portugucz da boa raça dos godos. Supponde o
!ii.TÍs humilde dos homens; supponde a mais nobre,
a mais poderosa mulher : que esse homem a salpi-
que do lodo da injuria, e será tão infame e covar-
dia como o poderoso entre os poderosos, que insul-
t.isse a donzclla innocente c desvalida. E porque"?
P :que um tal feito sae fora das raias da humani-
(! ide : não o praticam homens: não o julgam as
1 IS : julga-o a consciência , como um impossível
nnral , como um acto bestial e monstruoso. Para
arjuolle que usa de similhante feridade, nunca lu-
ziu , nunca luzirá no mundo um raio de poesia? E
i.iahi alguém — mais — ha ahi algum politico,
SI qual ao menos não sorrisse uma vez esta filha do
e 11? Dom Bibas não pensava isto; mas sentia-o, li-
i;!i:i-o no sangue das veias. D'aqui a sua influencia;
().iqui o gasalhado, o carinho, o amor com que do-
nas c donzellas tratavam o pobre truão. Quando
contra esle individuo, fraco, c ao mesmo tempo
terror c ílagello dos fortes , se alevantava alguma
grande cólera , alguma vingança implacável , elic
tinha um asylo seguro onde iam quebrar era vão
1 jdas as tempestades : era o bastidor , á roda do
qual as nobres damas daquelles tempos matavam
as horas tediosas do dia , bordando na reforçada
tela com Dos de mil cores historias de guerras , ou
folguedos de paz. Alli D. Bibas agachado, cnnovc-
lado , sumido , desafiava o seu furioso aggrcssor ,
que muitas vezes sahia mal-fcrido daquclle comba-
te desigual , cm que o bobo se eubria das armas
mais temidas de um nobre cavallciro — a protecção
das formosas.
Tal era o personagem que em grande parle at-
trahia os corações feminis para a corte da bella in-
fanta. Era um planeta obscuro á roda do qual gra-
vitavam soes : era o centro de systema astronómico
um pouco diverso do nosso. Mas Copérnico ainda
não linha nascido para endireitar amachina do uni-
verso. Cremos , portanto , não haver commeltidi)
um anachronismo demasiado grosso. Todavia dei-
xámos aos chronologos a averiguação do ponto, que
não deixa de valer a pena.
E o mais é que este capitulo jú vai largo, e ain-
da propriamente não começámos a narrativa. Fa-lo-
liemos no immcdiato. Entretanto não se persuada o
leitor que tem adiantado pouco. Fica sabendo algu-
ma cousa do systema militar do século 12.°, fazen-
do idéa clara do que era um bobo feudal , conhe-
cendo o illuslre Dom Bibas , e , sobretudo , acha-sc
aporta do caslello de Guimarães, aonde forçosa-
mente tínhamos de o conduzir, para presenciar os
successos ahi passados no verão do anno de 11-28,
os quacs constituem o âmago e substancia desta ad-
mirável c mui verídica historia.
À. Herculano.
[Continua].
EDUCAÇ.lO.
Da rXIUDADE das imagens nas ESCnOLAS.
Nos PAizrs cm que esíão mais aperfeiçoados os nic-
Ibodos do ensino publico , nas escholas primarias
principalmente, se costumam collocar imagens em
vuKo ou cm pintura qnc representam aos olhos, c
olíerecera á comprehcnsão dos meninos, passagens e
successos de boa doutrina c moralidade , que im-
primam cm seus corações o amor do bem , c criem em
seu peito a nobre emulação das acçijcs virtuosas. Os
instituidores e regedores destas escholas tem com-
prehcndido muito santamente a utilidade pratica do
preceito de Horácio que rccommendava se falias-
se mais pelos olhos do que pelos ouvidos aos ho-
mens carecedores d'instrucção. Se esta linguagem
da vista c conveniente mesmo para instruir os adul-
tos, muito mais aproveitará nas primeiras idades
ordinariamente Ião distrahidas, quanto cubiçosas
d'espcctaeu!os.
Segundo estes princípios de reconhecida eviden-
cia os inspectores das escholas primarias da AUe-
manha e da França n'alguns departamentos tem or-
denado que nas aulas c nos salões de estudo das
classes fossem coUocadas certas imagens , cuja re-
presentação melhor servisse á inslrucção moral dos
meninos. Com elfoito , quanto mais tenra fòr a ida-
de dos educandos tanto mais serão estes estranhos
ás tristes realidades da vida , e ávidos pelo contra-
rio das imagens que lhes representem os prodígios
da Historia Sagrada, as obras de caridade c de mi-
sericórdia , as acções kjuvaveis de toda a espécie,
os monumentos de lodo o género. Cora sua memo-
ria nova c viçosa, cora sua imaginação fina e viva,
com sua curiosidade e innocente ambição , compre-
hendem elles logo o objecto representado, decoram
a sua historia , c vão repetir no seio de suas famí-
lias estas narrações , o as scenas que estão coslu-
m
o PANORAMA.
•»
mados a ver c contemplar diariamente nas escho-
las. Utilidade grande se tem tirado desta engenho-
sa instituirão nas salas d'as}lo da infância onde de
ha tempos se acha em vantajosa pratica, como fica
ohservado a pag. 212 do vol. 2." da primeira serie
deste Jornal : igual proveito resultaria para os re-
colhimentos de meninas , nas reuniões mesmo mais
particulares em que pessoas pias e caridosas eostii-
mam ás vezes juntar para educação primaria e gra-
tuita os meninos da sua visinhanra?
Assim que , muilo conveniente seria estabelecer
por primeira condição do ensino primário, que nas
aulas estivessem collucados alguns bustos ou pen-
durados painéis representando as sccnas da crea-
ção , alguns acontecimentos caraclerisíicos da vida
do Redemptor, e de sua missão divina ; as acções
jnais meritórias c abalisadas dos prophetas, dos pa-
Iriarchas , e dos santos da antiga c nova lei ; c os
serviços , virtudes e patriotismo dos bons sobera-
nos , e dos súbditos que honraram o seu paiz e se
consagraram ao bem da humanidade. Conformemen-
te a esta tenção figurariam muilo discreta e util-
mente nas escholas alguns painéis que representas-
sem : — a crcação do mundo; — a primeira falia
d'Adão e Eva que os reduziu em castigo de sua
desobediência , assim como a seus descendentes , á
condição de pobres morlaes ; — Noé salvado com
seus filhos e netos do diluvio universal cm premio
de sua fé e da sua justiça; — Moysés despedaçan-
do as taboas da lei , deixando abandonados a uma
torpe idolatria os israelitas em punirão de sua re-
beldia;— Daniel impassível, c confiado, na cova dos
]eões , desarmados de sua fereza cm respeito ao
embaixador de Deus ; — o Salvador do mundo nas-
cendo u'um pobre e desabrido presépio para ensi-
nar aos homens a suportar a humiliação e os traba-
lhos da vida humana; — os pastores e os reis ren-
dendo homenagem ao Senhor dos céus c da terra ,
postoque nascido c envolto nas mantilhas da indi-
gência ; — a fugida para o Egyplo ; — a bondade e
omnipotência de sua missão , ensinando na monta-
nha , ressuscitando o filho da viuva de Naim; —
Christo expirando no calvário entre dois facinoro-
sos , levado ao suplicio pela mais negra ingratidão
a tantas obras de sua beneficente caridade; — S.
Pedro pregando a doutrina do divino Jlestre c con-
vertendo 3:000 judeus; — S. Paulo no meio dos
sábios no areópago d'Alhenas indicando qual era o
Deus desconhecido á philosophia pagaã — S. Carlos
l$orromeu vestido de sacco, e cingido de corda pa-
ra aplacar o fiagello da peste , c administrando a
Eucharistia aos empestados de Slilão ; — S. Fran-
cisco Xavier ensinando o evangelho aos infiéis á
sombra dos palmares do Indostão; — o I'.° António
Vieira cathcquisando e civilisando os Índios do l!ra-
sil ; — S. João de Deus consagrando sua vida ao
serviço dos bospilaes; — a rairdia Santa Isabel le-
vando no seu regaço o pão que cila mesma ia dis-
tribuir aos pobres; — o grande rei D. Aflonso Hen-
riques prostrado no campo d'Ourique diante do rei
do céu, do vencedor das batalhas; — D. João 1."
caminhando a pé até Ouimarães cumprindo o voto
feito á Senhora da Oliveira ; — o condestavol repar-
tindo seus grandes bens por seus parentes c amigos
para consagrar-se a uma profissão mais austera de
virtude. — Emfira o lacto c bom gosto lios inspecto-
res das escholas , e asylos , escolherá deste nume-
ro, e de outros factos que não faltam , os que mais
adequados pareeam a um tão louvável lim.
J. C. \. e C.
AnECDOTA I.\GLEZi.
O nariz, ou a lei rigorosamente cnteníliila á letlra.
QfEM residiu na Allemanha , e seguiu attenlaraente
o estudo da jurisprudência nesse paiz , conhece a
sinceridade com que o sábio allemão pesquiza o es-
pirito e profunda o sentido das leis e para peneirar
seus princípios verdadeiros sobe a origem delias.
Em ínglalerra acha-se inteiramente o contrario: a
leltra da lei é tudo ; perante o texto positivo nada
são as insj)iraçõcs da equidade natural: o que está
escriplo como lei é justo, meramente porque é lei ;
e o caracter jjositivo da nação britannica descobre-
se na obs;;rvancia da sua legislação da mesma ma-
neira que em os ncgocius correnles da sua indus-
tria e commercio. — Nos livros se tem diio muito
acerca do cxaggerado respeito dos inglezes á lettra
da lei, c se tem citado por vezes singulares exem-
plos : o mais curioso em nosso entender é o que
refere Muralt. — Ura homem linha decepado o na-
riz a outro ; por este maleficio foi citado para o
tribunal competente , e accusado do crime de mu-
tilarão. O advogado do réu , que bem sabia que o
facto eslava provado , procurou nos diccionarios de
chirurgia o verdadeiro sentido da palavra mutila-
ção , e viu que era a amputação ou destruirão de
um membro do corpo ; procurando em seguida a
palavra memlro achou que não poderia dar-se este
nome senão áquella parte do corpo que se corapo-
zessc de músculos, nervos, veias, e outras muitas
cousas, metade das quaes o bom do letrado não di-
visava no nariz. Portanto fez consistir toda a dc-
feza do seu constituinte em provar que o nariz ,
sendo destituído de certas parles essenciaes, que
formam os outros membros do corpo, não devia
chamar-se nem rcputar-se membro . e que por isso
o corte do nariz não constiluia miitUarão á face da
lei, e que em conclusão o seu cliente, não obstan-
te ser repreheusivel a acção que pralicára , devia
ser absolvido , como incompetentemente accusado
do crime de mutilação. O jury adoptou este pare-
cer, c o (lesnarigador ficou quite do delicio e no
andar da rua. Mas ainda isto não é o mais interes-
sante da historia : lembrou ao ministério que a sol-
tura do réu , pelas consequências prováveis , amea-
çava a existência de todos os narizes em Inglater-
ra ; pelo que levou ao parlamento uma proposta
para determinar o genuino sentido da lei; uma so-
lemnc deliberação da assemblca legislativa decla-
rou que o nariz era membro , c que os tribunacs e
cidadãos assim o /içassem entendendo e houvessem por
certo daquella data cm diante.
\Ão ha no mundo alegria sem sobresallo ; não ba
concórdia sem dissensão ; não ba descanço sem tra-
balho ; não ha riqueza sem miséria ; não ba digni-
dade sem perigo ; finalmente não ba gosto sem des-
gosto.— Heitor Pinto.
QinM são os ricos neste mundo? Os que lêem mui-
to? Não; porque quem tem muito, deseja mais, c
quem deseja mais , falta-llíc o que deseja , e essa
falta o faz pobre. — Vieira.
O CAMINHO da verdade é único e simples: c o da
falsidade vario c inlinilo. — ■Amador Arrues.
A iiinANinvoE faz parecer os homens cxleriormenlc
como ellcs devera ser interiormente. — La Vnnjere.
57
o PANORAMA.
2S
JUNCO OV NATIO CHINA SZ GVESBA
O Remate da desavença entre a China e a Inglater- ]
ra , ou para melhor dizer entre o imperador chim,
mandarins e seus apaniguados, e as forças que pa-
ra os constranger enviou o governo britannico, não
podia ser duvidoso para quem tivesse alguns co-
nhecimentos geographicos e históricos : pessoas hou-
ve, despidas de prevenções, que logo o anteveram :
a victoria devia caber aos inglezes. De toda a gen-
te, quem menos o podia duvidar era a nação portu-
p:uoza, que não deve deslembrar-se das façanhas de
sons maiores nas regiões da Ásia : pertencendo tal-
vez mais avantajada gloria a elles que aos moder-
nos que lá tem peleijado ; e explicaremos o nosso
dito. — Se a China é o theatro da guerra; os chins
não estão mais adiantados na manobra militar , e
na construcção das armas de fogo , do que no tem-
po em que imploraram o nosso auxilio para lhes
alimparmos de piratas as costas marítimas , servi-
ço a que devemos a concessão para o estabeleci-
mento era Macau : porem os europeus tem feito nas
armas, e na strategia, notáveis progressos, que ma-
nifestam assombrosa superioridade, e por consequên-
cia asseguram prósperos os resultados. — Se a índia
é o campo dos combates, hoje não ha lá turcos e ru-
mes tão experimentados e peritos naarte bellica, co-
mo acharam os nossos antepassados que os iam re-
bater e expulsar. — Portanto concluimos que á na-
Janeiro 28—1843.
cão portugucza não põe espanto o desfecho da luta
entre chins c inglezes ; a qual apesar delra\ada em
tão remotos climas tem por suas consequências com-
mcrciaes enlevado a attenção dos políticos e econo-
mistas da Europa.
Lancemos os olhos para a figura de um navio de
guerra chim , examinemos a construcção do casco ,
consideremos na acção de suas velas geralmente fa-
bricadas de esteira , na imperfeição dos aparelhos ,
na covardia e falta de patriotismo dos mareantes e
defensores , na orgulhosa ignorância dos que os ca-
pitaneara, c ficaremos convencidos de que com ele-
mentos taes não podia o império cdesíiai depositar
grande confiança em sua armada ; c os factos de-
monstraram que, na hora do accommcttimento, vão
era o apparato de anticipado triurapho , cobrindo-
se , como usam , de infinitas bandeiras e Uamulas
multicores. Pelo que respeita ao exercito era terra,
á excepção de poucas tropas tártaras de legitima
casta . é tudo um bando sem verdadeira organisa-
ção militar c pouco interessado na defeza dos pró-
prios lares, ou daquelles de seus compatrícios. —
As gazetas tem relatado a tomada de praças impor-
tantes do império c o desbarato das tropas chinas
pela divisão expedicionária britannica ; e no prin-
cipio da campanha deu-se uma batalha naval , que
os mesmos papeis políticos igualmente narraram pc-
2." Serie — VoL., II.
.^••>^
2ÍÈí
O PANORAMA.
A lo miúdo. Elliot commandava somente duas fraga-
tas a 3 de novembro de 1839, quando o accommet-
teram trinta embarcações chinas com mais de qua-
tro mil homens a bordo : não durou meia hora a
acção , e seis navios chins foram mettidos a pique ,
o outros ficaram desarvorados , fugindo o restante
da frota celestial com grande precipitação o em ab-
soluta desordem.
Beu queber e mal fazeb.
(Memorias insulaua^.)
= Í331 =
III
È teima !
Quem porfia mata caça.
Rifão do povo.
«Não sei que máu presenliraento mo assalta o co-
ração, presada irmnã. Cuido que esta minha con-
descendência me será de infeliz succcdimcnlo.
«E porque o cuidas, irmaã? Acaso tens que re-
ceiar? Não, não deves faltar já agora que promet-
testc c que anciosamcnle es esperada.
«Bem sabes tu, Águeda, como eu quiz evitar
este empenho. . . Não sei . . . como que advinho al-
gum desastre.
«Desastre ! — ^que desastre? Não é a lua vida pa-
ra vivè-la assim reclusa. Do mais tens fugido ao
mundo. . .
«Não, de mais, minha irmaã, mormente ha dois
annos para cá. Que se terá dito de mira? como te-
rão interpretado o meu procedimento?
«Como de quem c tão honesta c animosa dama.
Todos culparam o excesso e máu passo de An-
tónio da Gamara ; e elle mesmo justificou o que
delle se dizia , c fez justiça a si mesmo , partindo
|)ara o reino. Por lá anda clle já a estas horas bem
esquecido seguramente de sua loucura e temeri-
dade.
«Todavia fallou-se, e fui eu assumpto de pales-
tras e serões , nera sempre mui caridosos. . .
«Bagatcllas já passadas. Vamos, minha irmaã ,
os nossos parentes e amigos sem duvida se impa-
cientara , e — vès? — até o teu escudeiro, Fernam,
lá está fora a menear-se como um possesso , fallan-
do com os demais, que o ouvem de boca aberta.
São seguramente conjecturas que faz sobre a nossa
demora. Vem , minha irmaã , é mister distrahir-le :
vera.
Dois annos eram passados , como o leitor já terá
▼ isto. António da Camará , ou fosse convicção de
erro, ou considerações de animo repousado, ou cm-
lim arrependimento c pejo , tinha deixado a ilha e
partido para Lisboa, aonde corria fama que se con-
servava ainda. O dialogo das duas irmaãs versava
pois sobre o irem ao baptisado de um parente que
vivia na Calheta. Recusava-sc D. Isabel como qucra
tão costumada estava ao seu bom retiro. Instava D.
Águeda , como quem tão louvável desejo tinha de
a ver alegre e folgada. D. Isabel cedeu por fim aos
rogos lia irmaã, e com ella se desceu, ataviada cm
som (lo fpsta , ao pateo , de que já falíamos , aonde
a esperava um luzido cortejo de parentes o servos
seus.
Lá estava lambem o nosso antigo conhecido Fer-
nam, que não faltava por estas occasiões solcmnes.
analisando , comraentando e provando o sabido e
por saber , tudo mui conOdencialmcnte ... a quan-
tos encontrava.
Era nas primeiras horas de um dia mui formoso.
— Cavalgaram as duas damas em mullas cobertas
de gualdrapas de grande custo, e seguidas por seus
parentes , e por poucos mas escolhidos escudeiros ,
deram a andar por aquelles campos amenos.
Na passagem das terras da Lombada do Xtco pa-
ra a Calheta era força passar pelas da Lombada da
serra d'agua, herdade e vivenda de António da Ca-
mará. De preferencia tomara D. Isabel outro cami-
nho que á vista da morada do homem , cujo no-
me lhe recordava a penosa impressão d'uma scena
que nunca ella esquecera ; mas não havia meio de
faze-lo. Cumpria passar junto da Lombada da serra
d'agua , ou renunciar a fazer sua visita.
Chegara a luzida companhia a um viso (1) ou
portella, d'onde se descobria grande porção de ter-
reno.— A esquerda , no declive do serro que iam
descer , ficavam sobre um pequeno combro as ca-
sas da Lombada da serra d'agua , meias encrava-
das em densas e espessas maltas que se estendiam
lá para longe , e como encostadas a outro cabeço
mais alto , mui abundante era fontes e cascatas na-
turacs, donde á herdade viera o nome. Ao ver
aquella morada , d'onde nenhum rumor sahia , mu-
da e abandonada , triste e como saudosa de seu se-
nhor , que lá pelo reino se andava á maneira de
desterrado, sentiu D. Isabel comprimir-se-lhe o co-
ração. Apesar de tão virtuosa e varonil , era mu-
lher , c que mulher ha ahi que não chegue a per-
doar erros d'amor, e, ao cabo, a corapadecer-sc
de quem por taes erros padece? Tinham passado as
casas silenciosas , alvejando mclancholicamentc en-
tre a maciísa verdura, e eram enlrados n'uma fun-
da rodeira (2), guarnecida d'um lado por uns bar-
rancos cheios do balseiras e silvados, e do outro
pelas matlas de que acima falíamos. Lá pelo meio
desla rodeira um homem estava parado. Tinha a
fronte descoberta , ondcando-lhe os cabellos negros
e luzidios era roda das faces gentis , mas queima-
das. Batia-lhe o sol de chapa sem que elle pare-
cesse presentir-lhe o ardor. Tinha os dentes cer-
rados com força , alvejando-lhe a travcz dos lábios
semi-ahertos , as feições contrahidas , e o peito an-
elado como por algum grande temor ou esperança.
I)issera-se que a face da sua vida ia mudar, tama-
nha era e tão visivel a sua agitação. Vestia desali-
nhadamente , e as peças mais notáveis no todo do
seu trajar eram uma boa couraça de Milão , e uma
forte espada pendente ao lado , segura por ura cin-
to de couro guarnecido de chaparia do ferro , ao
qual estava lambera presa uma comprida adaga de
punho singelo mas valente. \ primeira vista nin-
guém julgaria acompanhada a estranha personagem
que descrevemos , mas quem melhor reparasse no
continuo mecher e remecher da folhagem da mal-
ta , c sobretudo no súbito a|)pnrrcimenlo de algu-
mas cabeças espreitando por entre as arvores , e
guarnecidas de luzentes morriões , para logo con»
«'luiría que andava por alli sorprcsa , ou ardil tra-
mado por muitos.
Entretidos cm sua conversa , e muito mais por
causa d' um desvio, não deram os nossos caminhan»
tes pelo ameaçador aspecto do homem que lá esta-
va no caminho, se não quando próximos delle che-
garam. Um grito geral de espanto , se não do tc-
(1) Cume, lo^Mr emiiienlo.
(2) Carril , cammlio para carro.
o PANORAMA.
S7
mor , sabiu então de todas as bocas ao dar por
eJle.
Era António Gonçalves da Camará.
Com olhos irosos mediu por algum tempo as duas
irraaãs e a sua commiliva que , parados c espanta-
dos lodos , tinha ante si , saboreando o prazer de
os ver assim embaraçados com sua [irescnça. Pas-
sado o primeiro instante d'assombro os cavalleiros ,
parentes de D. Isabel , ainda que quasi desarma-
dos , tomaram a dianteira e arrancaram para Antó-
nio da Camará, que nem um passo se arredou. Fo-
ra desigual o partido para este , se ao mesmo tem-
po . grande copia de homens armados de lodo o
ponto , sahindo da malta e cnfílcirando-se atraz do
' 1 senhor da Lombada da serra d'agua , não o toruas-
' ) sem assim para os de D. Isabel.
Orgulhoso e arrogante adiantou-se então António
da Camará, e pondo-se immovel com os braços cru-
zados diante de D. Isabel , que nem neste extremo
sentira soçobrar-lhe o animo , bradou com voz aba-
hida de raiva e de amor :
aParecia-vos avós, senhora prima , que nunca
mais nos veriaraos? Pensáreis ler-me burlado e zom-
bado a vosso sabor, sem que mais nossos rostos e
vistas se encontrassem? Olhai bem para mim. —
Quem c agora aqui o mais poderoso. Não, minha
prima, não se dirá de António da Camará que uma
mulher o venceu cm animo e astúcia. Dois annos
são já andados. — Julgáreis que Ião pouco era mis-
ter para abafar o amor e a raiva que me faziam
guerra no coração? Não, senhora. Nestes dois an-
nos não houve dia em que eu não dissesse : «silen-
cio , meus ofTcndidos brios , silencio , meus ultra-
jados affeclos , silencio , minha alma tão ardente ,
vossa hora hadc chegar-vos lambem ; » e a cada
momento que passava eu sentia o sangue fervcr-me
cada vez mais impaciente , que o fim , o Ião dese-
jado termo, que eu próprio assignára aos meus pro-
jectos, se ia passo a passo aproximando. Ei-lo che-
gado a final. Tive noutes , sem somno , pensando
no publico ultrage que de vós recebi , tive dias e
mezes de amargura e desespero, lembrando-me que
não éreis um homem a quem podesse ir pedir con-
tas da minha injuria , lavando com o seu sangue a
nódoa da minha face.
r Nódoa só vo-la fará o que ides sem duvida pra-
ticar.
"Escutai-mo, senhora prima, que lambem me
chegou a minha vez de pedir-vos que me escuteis.
live momentos de fraqueza, em que julguei a mor-
te o caminho nnico para sahir de tão apurado tran-
ce , mas por fim a mim mesmo me venci , c acabei
comigo cm vingar-me , pelo modo com que hoje o
farei. Crestes que nunca voltaria. — Voltei, sem
que o suspeitásseis.' — Eis-me aqui, e assim como
de vossa casa sahi á força, sem armas para me dcf-
fender , assim entrareis vós para a minha sem es-
cudeiros para vos guardarem. Então éreis vós a for-
te, a bem defendida, e cu o trajado de festa e sem
defeza. — Hoje, senhora prima — bem o vedes — c
de todo o ponto o contrario, sois vós a indefeza e
ea o poderoso.
Dizendo , com uma das mãos levou da fiel espa-
da , c com a outra travou das rédeas da mulla em
que D. Isabel cavalgava , arremettendo com os es-
cudeiros e cavalleiros desta , que apesar de muito
menos cm numero e faltos de armas suíTicientcs ,
já se achavam dispostos a perder as vidas cm defe-
za da illustre viuva. Seguiam a António da Cama-
rá todos os seus bem armados e comentes pela des-
forra que iam ler. — De uma c outra parte havia
emulações excitadas, raivas e ódios accordados , o
resultado devia portanto ser sanguento c terrivcl ,
mormente para os de D. Isabel, se a varonil senho-
ra , com um gesto imperioso c significativo , não 0-
zcsse abrir passagem ao seu inesperado conductor ,
que atravessou por entre clles estupefactos, com
gesto ameaçador , arrogante c decidido , seguido
pelos da sua facção a sussurrarem pragas mal dis-
farçadas. O numero e as armas destes não menos
que o mandado de D. Isabel influiu na prompta
obediência dos seus servos e amigos.
Verdade, verdade, cm lodos os tempos a morte
foi negra.
E era o que pensava o verboso escudeiro , Fcr-
nam ; cm quanto António da Camará tomava ufano
o caminho de suas casas , com a preciosa prca ; P.
Águeda se lastimava ; e os demais se esbravejavam.
Com o modo encolhido c envergonhado de um ho-
mem , que julgando-se um Ajax , acha por fim qu<»
não passa d'ura Tersithes , Fernam murmurou Ui
comsigo :
o Por esta não esperava eu 1 »
[Continuar-se-ha.]
Obsebvações gbâmhaticaes.
Uma das muitas vantagens das polygraphias, do gé-
nero do Panorama , c de servir de armazém , cm
que cada um possa depositar as idcas que lhe oc-
corrcrcm , e cuja publicação , parecendo-lhe poder
ser útil, seria impraticável por outro modo ; já por
serem idéas destacadas, já porque sendo em peque-
no numero não podem formar um corpo de doutrina.
Isto ó o que nos acontece com as idéas soltas que
desejariamos communicar ao publico , para serem
por elle julgadas, e, no caso de o merecerem, ela-
boradas pelos mestres da arte ; a fim de servirem
algum dia a formar a tão desejada grammatica pbi-
losophica da lingua porlugueza.
Já no K.°53 do Panorama oncrccemos aos nossos
compatriotas as três regras que nos parecem suíR-
cientes para se conseguir entre nós uma orthogra-
phia uniforme e fundada cmprincipios deboarasão.
Não quizemos dizer , que aquellas regras possam
servir a todo o mundo : pois que nem todos sabem
se tal ou tal palavra é geralmente cscripla de uni
modo uniforme por todos os andores distinctos;
nem todos sabem applicar-lhc a regra da analogia ;
e menos ainda marcar qual seja a sua etymologia.
A nossa mente é , que se os homens doutos ado-
ptarem estas trcs regras e as seguirem , na mesma
ordem em que as propomos , dentro em mui pouco
tempo se estabelecerá entre elles uma orthograpbia
uniforme, e á sua imitação entre as pessoas que não
tendo assaz conhecimentos para fazer um uso acer-
tado daqucUas , nem de outras nenhumas regras ,
só lhes cumpre seguir o exemplo dos primeiros.
Hoje daremos algumas definições que ou faliam
nas grammaticas, ou são tão inexactas que só podem
ser\ir para corromper as noções elementares (ia
SC iene ia.
As línguas constam dephrascs, estas depala\ras,
as palavras de syllabas, e as syllabas de sons a que
correspondem na escripta certas lettras.
28
O PANORAMA.
Seria bom que a cada som correspondesse uma
só lellra , e que a cada Itttra não correspondesse
senão um único som.
'São aconlcce porem assim em nenhuma das lín-
guas que conhecemos.
Alem disso ha muitos mais sons do que letíras ;
c, mesmo nas mais pequenas nações, a pronuncia
de cada palavra varia quasi tanto como nellas ha
não só de províncias ou decommarcas, mas de
bairros e de classes de cidadãos em uma mesma
cidade.
Os sons de que se compõe a falia humana distin-
gucm-se pelos órgãos da voz que concorrem para a
sua formação.
São estes órgãos — a garganta , o paladar , as
gengives ou niaxillas , os dentes , os beiços ou la-
I)ios, e, combinanjo-se com cada ura delles, a lín-
gua.
O complexo de todos estes órgãos parcíaes cons-
tilue o urgão geral da falia.
Aos sons que provém do órgão geral , sem um
concurso especial de nenhum dos órgãos parcíaes ,
da-se-lhes o epitheto de vugaes.
Aquelles, em cuja producção se faz sentir a acção
especial d'algura dos órgãos particulares, da-se-lhcs
o epitheto de consoantes.
Aos sons vogacs correspondem as Icllras vogacs
a , e , i , o , u , y , oM ô.
Quando, ao emittir um som vogal comprimimos
as fossas nasacs, de modo que o arexpellido só pas-
se pela boca c não pelo nariz , da-sc-lhes o epithe-
to de nasaes , taes são , am , an , ã , em , cn , im ,
in , om , on , õ , um , un , yra , yn.
Aos sons consoantes correspondem as Icltras con-
soantes—
g, c, k, q guturacs; porque o primeiro órgão
parcial , a garganta , concorre especialmente para
a sua producção.
Í Palatinas
dar.
ou rr'} MaxiUares : órgão especial as
J gengives.
Labiacs : órgão especial os lábios.
Labio-dcnlaes : órgãos especiaes os lábios
e os dentes.
O som vogal pôde ser mais ou menos agudo, mais
ou menos mudo.
Dá-se pois a nome ie áiphtJiongo ao som composto
de dois sons vogaes , um agudo e o outro mudo ,
taes são : — ae , aí , ao , au , ay
Ih
,n
li
eh
. j
, X
z ,
s .
c,
ou
n ,
1,
r ,
rh
d ,
t
1>.
m
, b
—
f.
v-
-L
ab(
órgão especial o pala-
ei,
eo,
eu
- ey
lU
oe.
01 ,
(•)
oy
Ul ,
ãe ,
uy
ãi ,
ão
, am
eim
, em ,
em
oe ,
Ol.
Os diphthongos distingucm-sc em perfeitos e im-
perfeitos.
São perfeitos aquelles cm que o som vogal agudo
se destaca fortemente do outro som vogal mudo :
exemplos : suliiu , riu , rio , andarão.
São imperfeitos aquelles em que o primeiro som
é quasi Ião mudo como o segundo : exemplos : du~
bio , alrio , andaram.
Podem, alem disto, ser os sons compostos de dois
ou mais sons consoantes cora um som vogal simples
ou diphthongo , taes como —
(•) liste mesmo som cxprime-sc muitas Twes aisim; fi.
bda
, bde & cl .... dr, 11 , gl , mn
bl
cn fr, gn
br
cr gr
et
Pl
SC ti
pn
Ir
pr
Chama-sc syllaha a todo o som vogal só , bem
como o que é seguido , precedido , ou seguido e
precedido de sons consoantes , simples ou compos-
tos. N'uma palavra composta de mais de um som
vogal simples ou diphthongo, ha tantas syllabas ,
quantas são as suas vogaes, e cada syllaha consta
da sua vogal , da consoante simples ou composta
que a precede ; e também da que se lhe segue , s»
não houver depois outra vogal ; porque, havendo-a,
pertence-lhe a consoante que a precede.
Silvestre Pinheiro Ferreira.
FSDRO HVNES.
A EFFiGiE de varão tão insigne nas sciencías, como
foi o famoso mestre de dois homens merecidamente
celebres , o infante D. Luiz filho de D. Manuel , e
o vice-rei da índia D. João de Castro, requeria la-
ta informação de sua biograpiíia e profundos escrí-
ptos , por isso que a notoriedade de seu nome em
toda a Europa é um brasão porluguez , apregoado
poios sábios mais distinctos , d'entre os quaes , por
via d'exemplo , citaremos só dois : — Montucla,
Histoire des Mathcm. tom. 1." part. 3." liv. 3.°;
Bailly , Histoire de VÁstronom. mod. lom. 1.° pag.
368 e 370. — Escacas são porem as particularida-
des sabidas de sua vida publiia e domestica ; e por
outro lado , para tratar fimdaiuenlalraente do méri-
to de cada uma de suas obras , do valor que tem
cm relação á epocha do escriptor, e da influencia
que tiveram no futuro desenvolvimento c progresso
dasciencia, era mister tecer uma dissertação, alheia
do intuito do nosso jornal , superior ao cabedal de
nossos conhecimentos, e porventura inútil e enfa-
donha para o máximo numero de leitores. — Alejn
o PANORAMA.
29
de que, quanto aos homens de racdiocre instrucção
convém saber tocante ao illuslrc portugucz , Pedro
iSiincs , fica expendido cm dois artigos, assim mes-
mo nada breves , a pag. 17i e 178 do vol. 5.° da
Serie 1.' deste nosso semanário. Bemquizemos en-
tão acompanhar a noticia com o retrato de Nunes ,
mas não podendo have-losatislizcmo-nos com a men-
ção das obras , c os apontamentos mais certos da
vida (iaquelle que temos por titulo reconhecido da
cloria da pátria. Agora, possuidores do transum-
pto, que na precedente gravura reproduzimos, tam-
bém nos limitámos a commeniorar novamente o no-
me do grande malhematico portugucz. A quem mais
desvcladaniente pesquizar o âmago de substancial
doutrina, que este raro engenho derramou por seus
livros, forçoso 6 folhea-los e medita-los ; os que tão
somente quizercm conhecer as matérias de que cl-
les tratam, e qual é a sua transcendência e impor-
tância , consultem um escripto de outro portugucz,
[^nosso contemporâneo e também porsciencia afama-
do] : Ensaio histórico sobre a origem c progressos das
Matliematicas cm Portugal , dado á luz em Paris por
Francisco de Borja Garção Stocklcr , que morreu
barão daVilla da Praia. Este sábio diz ahi , a pag.
29 , que Pedro Nunes é o «... gcometra maior que
as Hcspanhas tem produzido , e incontestavelmente
iim dos maiores que no século 1G.° íloreceram na
Europa.
Concluiremos com um extracto do mesmo Ensaio,
porque o cremos de summa importância. — «É nes-
ta obra também [falia do tratado dos crepúsculos]
que o nosso geometra deu pela primeira vez a idca
de uma elegantíssima divisão ou graduação do as-
trolábio, por meio da qual se podem avaliar as al-
turas e distancias dos astros até minutos e segun-
dos , ainda que no limbo do instrumento se não
achem marcados mais que os graus; divisão que
udraitte uma simplificação assaz obvia ecom a qual
ainda se usa nas alidadas de todos os instrumentos
astronómicos, que servem para medir distancias an-
gulares. Se o auctor desta simplificação foi o mes-
mo Pedro Nunes ou Pedro Vcruier , que pela pri-
meira vez a publicou por escripto em Í631, é ques-
tão que admitte argumentos por uma e outra par-
te : o que porem de nenhuma sorte se pôde contes-
tar é que até ha bem poucos annos não havia um
só livro de astronomia, nem um só instrumento as-
tronómico, em que esta divisão tivesse outro nome
senão o de Aonius , derivado do appellido Nunes
do nosso geometra ; e que ainda quando Vernier
fosse sem duvida o inventor da simplificação men-
cionada , não havia rasão bastante para alguns as-
trónomos modernos pertenderem mudar-lhe o nome
de Xnnius em o de Verdier; quando a primeira
idéa de avaliar as partes menores das marcadas na
graduação dos instrumentos é indubitavelmente de-
vida a Pedro Nunes , e mil vezes mais engenhosa
do que a segunda, que daquella se deriva cora ex-
trema facilidade.
USOS E COSTl^ES DE POVOS.
Recentes observações n'cm domingo em Londres.
Um observador perspicaz , e de agudo engenho , ao
mesmo tempo escriptor facil c ameno , contou ao
publico , ha dois annos , as anecdotas , que da lin-
guagem franceza trasladámos agora.
Tiuha eu ás oito horas ouvido aiissa , segundo o
meu rito, e cumprido csle dever religioso assen-
tei boamente que podia , como nos dias anteriores
e não obstante ser domingo , proseguir nos hábitos
a que estou costumado todas as manhaãs. Encami-
nhei-me ao botequim , dito Vercy , para almoçar ;
pasmei de achar a porta ainda fechada, bati ; abriu-
se uma grctinlia desconfiadamente e com mysteri<i
e perguntaram.- — -Que quer 41 senhor?. . — Essa é
boa '. (Juero almoçar. . . — Não pódc ser , senhor ;
c exactamente a hora do sermão. — Será para a vos-
sa pessoa; mas eu que já ouvi missa estou liber-
to, e creio que posso almoçar. . . — Será onde vos
aprouver menos nesta casa: dai-me licença de cer-
rar a porta , porque se a vissem assim mal aberta
leria de pagar uma enorme multa. — E a porta l'e-
chou-se.
Ora faça-se idéa da tolerância anglicana saben-
do-se que quando o pastor protestante prega o seu
sermão, todos os catholicos, judeus, scismaticos ,
e musulmanos , estão obrigados , para almoçarem ,
a esperar pacientemente que se acabe a pregação ,
com a qual nada tcem , nem lhes importa.
Passeava eu pela rua , via todas as portas abso-
lutamente fechadas, edificava-me a observância una-
nime da solemnidade do domingo : acertou de pas-
sar um radical do meu conhecimento , e dissc-me.
— Não ouviu o pregão daquella mulher que vai
passando?. — Ouço, mas não a entendo. — E uma
vendedeira que apregoa peixe : creio que sabeis
que ao domingo e á hora do sermão ninguém abri-
rá a poria para comprar. — Então porque perde o
tempo em apregoar? — Eu explico; é porque nós
radicacs lhe pagámos para apregoar. Guardar o do-
mingo é cousa muito dos nossos costumes, mas ac-
crescentaram-lhe uma coacção legal , que nós e to-
dos os homens de bom juízo julgamos adversa á li-
berdade constitucional. Afim de podermos levar es-
ta questão ao parlamento, expedimos pelas ruas al-
guns bufariíihciros c vendedeiras ambulantes , á
espera que a policia os agarre como infractores das
posturas e observancias domingueiras : se isto acon-
tecer, os apprehendidos devem protestar , e fazer
ura requerimento que a opposição hade sustentar
vigorosamente. Porem o ministério , que suspeita a
trapaça e quer evitar o ir a questão ás camarás ,
deixa apregoar como vedes c faz-se mouco. Mas
corra o tempo , que se continuar a ler os ouvidos
tapados hade chegar ao rego ; seguiremos pela pis-
ta os pares eeclesiasticos , e eu , que vos estou fal-
lando, sou capaz de mandar, um destes domingos,
commelter á compra um salmão, ou um rodovalho,
ao muitíssimo reverendo arcebispo de Cantuária ;
toma-!o-ha , e veremos se tamanho escândalo [uo-
voca ou não provoca a desejada discussão.
Finalmente, ás duas horas da tarde , Deus lou-
vado , estavam acabados todos os sermões na am-
plíssima cidade de Londres, c pude com effeito al-
moçar sem oITender ao céu, nem á igreja anglica-
na. À sabida do botequim fui passear a Rcgcnt-
Park. Por ambos os lados da lameda principal, es-
tavam a espaços armadas algumas mesas , e do al-
to de cada uma delias um individuo arengava ao
troço de gente, grupada ao redor, sem que a maio-
ria dos passeanles fizesse caso disso. — Que estão
vendendo aquelles homens? — disse para o meu
companheiro. — Aquelles homens nada vendem ; são
pregadores religiosos determinados a converter os
Ímpios , e que os não deixara , nem sequer no pas-
seio.» Approximando-me , reconheci a verdade da
resposta do meu amigo, e o que me pareceu mais
3?)
O PANORAMA.
notável foi a polemica que ás vezes se ateava entre
o discursador o seus ouvintes. Não gostei disto, e
relirci-me.
Idéas históricas sonnE cadeias (•).
« O QVF. faz maior honra a alguns estados da fe-
derarão americana é a reforma do código criminal,
a conversão das cadeias cm oílicinas de trabalho ,
e a dos criminosos cm operários úteis, que são sus-
ceptíveis de tornar a entrar no seio da sociedade
depois de ter satisfeito ás condições exigidas. É o
estado da Pcmilvania quem deu o exemplo ; o da
3S[oi'a-Yorck o seguiu, e em ultimo logar os da Yir-
ginia e do Massachmsct . Dezcscte annos d'cxpcricn-
cia , depois do estabelecimento da cadeia de VHa-
ãelfia , c pouco mais ou menos doze annos quanto
á de Nova-Yorck , tem sido coroados com os mais
felizes resultados.
o A legislatura da Pensilvânia aboliu a pena de
morte para todo o crime, excepto para o assassínio
no primeiro grau. A de Nova-Yorck comprchendeu
nesta excepção osfalsarios, c os falsificadores de
moedas. O objecto do castigo é a emenda do cri-
minoso procurando por todos os meios próprios Ira-
3e-lo ao pesar , ao esquecimento dos seus antigos
hábitos, e a fazer pelo trabalho uma reparação com-
pleta á sociedade. Para este effeito se tem imagi-
nado diversos meios , cuja influencia sobre o moral
c sobre o physico é sufTicientementc conhecida pe-
los physiologislas , e pelos observadores do ho-
mem.
«Estes meios são — 1." a reclusão solitária n'um
quarto, um regimen dietético particular , e o si-
lencio ; — 2." Depois de um certo tempo a admis-
são dos criminosos aos trabalhos cujas officinas es-
tão distribuídas por classes : — 3." A applicação
felizmente calculada de certas máximas para fazer
.sentir ao homem a sua dignidade, e a necessidade
do trabalho que importa a cada um : — 4.° A con-
tabilidade para o rendimento deste trabalho: — 5."
A extrema regularidade nos cuidados que se refe-
rem ao aceio geral e pessoal : — 6.° A ordem da
comida, a do retiro e a dodescanço: — 7.° O exer-
cício religioso.
«Far-se-ia diíficnltosamenle uma idéa da ordem
admirável que reina nestes logares , que se reputa-
riam antes conventos erigidos era manufacturas do
que em cadeias. Tudo se acha disposto de tal mo-
do que ha alli a maior segurança, c se previne a
evasão dos condemnados. Todas as oílicinas estão
n'uma actividade constante. Elias são compostas de
tecelões , de alfaiates , de çapatoiros , de marcenei-
ros , de torneiros, de relojoeiros, de fabricantes do
pregos, de culeleiros , de serradores de mármore,
c de muitos outros ollicios.
«Quem poderia imaginar que se conseguiu fazer
observar entre os trabalhadores um silencio absolu-
to? Nunca gritam , nem cantam, e nem podem res-
ponder ás perguntas dos estranhos. Não lhes ó con-
cedido chamar uns aos outros, excepto por causa
dos instrumentos de que tom precisão. Eu fiz a cx-
liericiicia disto na fabrica dos pregos, que é a mais
considerável c a mais productora , na presença de
um guarda que me accompanhava. Netdium operá-
rio respondeu ás minhas jicrguntas. Alguns destes
condemnados tem confessado , que (luercriam antes
soffrcr a morte do que serem obrigados a este si-
(•) Concluído <le pag. 423 do n." 53 desta 8.* Serie-.
lencio e ao trabalho. O que recusasse estar por is-
to, ou o que perturbasse a ordem estabelecida, se-
ria mandado para ura quarto solitário e submeltido
a um regimen severo, que de ordinário consiste em
farinha de maiz fervida com raelasso e agua ; per-
deria alera disso a sua parte do rendimento dos tra-
balhos, e se lhe levariara era couta as despczas fei-
tas durante a sua suspensão.
«As mulheres não tem communicação alguma com
os homens, e o seu regimen é um pouco differente.
Asseiilou-se não dever prohibir-lhes o fallar : ellas
se occupam em cozer, em lavar, em preparar o
cânhamo, o linho, o algodão, em cardar, em
fiar , &c.
«O rendimento dos trabalhos dos condemnados 6
destinado para pagar as despezas da captura c do
processo, os objectos roubados, a multa cm pro-
veito do estado, o sustento , o vestido , as ferra-
mentas , os ordenados dos empregados e a conser-
vação da casa. O cofre do estado adianta as despe-
zas , e muilas vezes o governo local perdoa a mul-
ta. Ha condemnados , cujo trabalho ó de tal sorte
productor que podem ainda mandar dinheiro ás
suas familias. Na occasião dos descontos se lhes
faz conhecer o excedente liquido do producto da
venda dos objectos mainifacturados , depois de de-
duzidas as supraditas despezas.
«Agora perguntarão como c que, tratantes, «ce-
lerados cobertos de crimes , tem podido converter-
sc cm alguns annos? Ate que ponto se pôde contar
com as suas promessas para consentir em restituir-
Ihcs a liberdade? Quaes são os seus abonadores
para com a sociedade? Depois do conhecimento
m lis ou menos profundo do coração humano , não
ha uma quasi certeza de que clles recahirão nos
mesmos vicios? Os fundadores tem previsto todas
as ohjecçõ:s , e a experiência , mais forte que os
raciocínios, já tem respondido cm favor do novo
syslema.
«Resulta das listas comparativas, formadas de-
pois das ultimas mudanças feitas no código crimi-
nal , que os crimes tem diminuído pouco mais ou
menos pela ametade , e que um pequeníssimo nu-
mero de criminosos tem sido condemnados em con-
sequência de reincidência. D
Tal é o maravilhoso systeraa que aquelles gover-
nos tem adoptado , c que outros observadores co-
mo La Rocliofoncaxdd-Liancourl , c Roberto J. 2'urn-
butl tem ampla c inleressantemente descripto e con-
firmado. Sua utilidade está demonstrada pela ex-
periência . e os governos que a desprezarem co-
l)rcni-se do opprobrio mais abominável e odioso. A
leitura superficial do que levamos dito talvez exci-
te a reflexão de que similhantes casas devem antes
ser apetecidas do que temidas. Biissol na sua via-
gem á America diz que os presos em Filadélfia pas-
sam tão bera , que não tem desejo nem lembrança
de sahir. Porem alem de que isto é desmenlido por
outros observadores , quem não vè que o pão da
prisão c sempre pão de dor , que aquelle regimen
(■humano, mas não pôde ser cobiçado , e ullima-
menlc que o sentimento da perda da liberdade, é
indelével, o que nada o pode iiidemnisar? Demais
a severidade da disciplina tem feito que alguns pre-
sos tenham antes querido a morte do que similhan-
tc clausura.
São frívolas c absolutamente inattendiveis as ob-
jecções com que se tem pertcndido mostrar que as
cadeias da Pensilvânia não podem servir do model-
lo ás da Europa , porque nesta não ha , scginido
o PANORAIMA.
31
diiem , as circumstancias favoráveis que ha cm
aquella , c são : ' — a raridade da miséria , o que se
funda na distribuição mais igual das propriedades
tcrritoriacs ; a mesma raridade dos delictos , e sua
pouca variedade ; a systcmalica constância , a infa-
tigável paciência dos quíihns ; c ultimamente a bon-
dade e alTabilidade dos carcereiros. Porem quem
não vè que estas qualidades são os fructos das suas
leis c instituições , e que em qualquer parte que
se applicarem hãode produzir elTeitos similhantes?
Na Europa os abusos , e os erros vão cedendo o
campo á rasão e á justiça , e prcpara-se uma epo-
cha em que estas hãode aqui representar as scenas
mais sublimes e gloriosas para a espécie humana.
A França, que em mais de uma cousa se tem collo-
cado á frente da civilisação , abriu também na Eu-
ropa o exemplo da nova reforma das cadeias. A de
Rouen , como as demais , centro da corrupção pliy-
sica c moral , foi era 1806 transformada em oITici-
na de trabalho : alli se fia o algodão , e os presos
recebem lições de lèr , escrever, contar e de mo-
ral religiosa. Naquelle logar reinam a ordem , o
aceio, e a moralidade. \ cadeia de Mclun e outras
são dirigidas pelos mesmos principies. Portugal ,
quando reformou suas velhas e cançadas institui-
ções , lambem tratou de melhorar as suas cadeias ,
c uma commissão zelosa do bem publico adoptou
algumas medidas em beneficio de taes estabeleci-
mentos. Mas o que fez não basta , que muito lhe
resta a fazer ainda , e a aproveitar de tão dignos
e poderosos exemplos.
P. M.
Epitome da vida de Liiz DE Camões.
(Continua do de pag. i6.J
Impellido então o nosso poeta pelo desejo de não
expor a maior dosar a reputação da sua amada ;
cançado de contratempos e injustiças, por se ver
órfão de pai , que commandando uma náu naufra-
gara junto a Gòa , e sobretudo desgostoso das inju-
rias da corte, resolveu passar á índia. Não deixou
porem o ninho pátrio sem viva saudade, exclaman-
do as palavras de Scipião. — Ingrata pátria , non
pofsidcbis ossa mea. — Taes haviam sido os desgos-
tos que nclla soffrèra que lhe arrancaram esta amar-
ga apostrophe !
Não encontrámos nos biographos particularidades
algumas acerca dos amores do nosso poeta, nem sa-
bemos os motivos porque rompeu tão doces laços e
te expoz ás cruéis penas de uma longa ou eterna
separação. Vè-se porem pelos seus cscriptos que a
sua determinação era não voltar mais á pátria , on-
de tão cruéis dissabores havia experimentado.
Alistou-se pois de novo , e em loo3 embarcou
na nau , que coramandava Fernão Alvares Cabral ,
uma das quatro que compunham a esquadra que
este fidalgo levara debaixo de suas ordens para a
índia. Um furioso temporal que sobreveio durante
a viagem fez separar a esquadra e retardar três das
naus que a compunham, chegando somente á índia
nesse anno, depois de haver soíTrido muito pela tor-
menta, a náu S. Bento em que ia Luiz de Camões.
Era então governador dos Estados da índia D.
AfTonso de Noronha, que por essas epochas apromp-
tava uma expedição contra o rei de Chembé, on da
Pimenta , na costa de Slalabar. O nosso heroc, am-
bicioso de gloria, assentou praça de voluntário nes-
sa expedição militar, e nella com seus companhei-
ros d'arma3 ganhou novos louros , sendo o rei de
Chembé completamente derrotado , c constrangido
a pedir pazes que se lhe concederam.
A insalubridade do clima fez grande estrago noi
nossos valorosos portuguezes , que mui dizimados
voltaram a Gúa, sendo Camões do numero dos que
escaparam ás febres daquelle clima devastador. De
volta cora a expedição pouco dcscanço teve , por-
quanto havendo perdido o seu melhor amigo, D. An-
tónio de Noronha , morto ás mãos dos mouros cm.
Tetuão , assim como seu tio o governador D. Pedro
de Menezes, no combate junto a Ceuta, se angmen-
tarara seus dissabores, e o levaram a tomar de nc-
vo o serviço logo que se lhe offerecesse occasião
opportuna. Não tardou esta, porquanto no anno de
laoo succedendo D. Pedro Mascaranhas a D. Affon-
so de Noronha , deu commissão a Manuel de "\"as-
concelios de ir com uma armada cruzar na boca
do Mar-lloxo, para esperar e combater as naus dos
mouros. Oífereceu-se Luiz de Camões para ir nes-
ta expedição, mas a esquadra depois de pairar de-
balde defronte do cabo Guardafú até se lhe passar
a monção, foi invernar em Ormuz no golfo pérsico.
Alli passou o nosso poeta o inverno, que para clle.
não foi perdido em ócio vil , dando sua imaginação
fecunda vivo colorido a tudo quanto via e ouvia , e
inflammando-se cada vez mais seu peito em ardente
patriotismo sobre os altos feitos portuguezes de que-
a índia era então o thealro.
Voltando no anno seguinte a Gòa achou fallccido
o vice-rei D. Pedro Mascaranhas, e snbstituido o
seu logar por Francisco Barreto , homem altivo ,
fofo c prepotente (Ij. A corrupção dos costumes,
a sede de ouro, e a ambição eram as feições ca-
racterislicas do governo arbitrário de Barreto , que.
á similhança dos déspotas odcava os liltc ratos , o
despresava o saber. Luiz de Camões indignado con-
tra os vicios predominantes, exhalou sua virtuosa
indignação escrevendo aquella satyra que intitulou
— Disparates da índia — na qual com branda criti-
ca censurava a corrupção geral , sem comtudo par-
ticularisar os corruptores. Seu corarão honrado,
nobre , e desinteressado , mal podia deixar de sen-
tir profundamente o quanto iaraos descendo , na-
quella parle do mundo , de nossos antigos brios
e costumes , e inda menos deixar de rcprehender
com justa severidade a degeneração a que caminhá-
vamos.
A nobre ousadia de Camões desagradou a Barre-
to, que irritado de ver censurados os vicios de que
elle participava , tomou por pretexto certa satyra
ridicula que então circulava em Goa , e encabe-
çando-a em Luiz de Camões , que accusava de fal-
tar ao respeito devido á auctoridade , abusou do
poder de que lhe cumpria ter sido severo guarda ,
e desterrou o illustre vate para as ilhas Molucas.
Aggravou-se a sorte do nosso malfadado heroe
com mais este golpe fatal , mas nem por isso seu
magnânimo coração succnmbiu co meio do não me-
recido infortúnio, nem por ofTendids quiz desaggra-
var-se do prepotente governador que assim o mal-
tratara.
Três oumais annos discorreu por Malaca , pelas
Molucas , e por Macau , cumprindo a pena deste
(l) Alguns escriplores e hiograi-ihus perleiídeni , ijiie
Francisco Barreio era homem de grandes qualidades, lilje-
ral , bom soldado , bom governador no loc.ante aos negócios
da guerra, e muiio benemérito na índia e Africa do rei e
da pátria. Accrescenlam porem que era noi pouco vão , e
prompto a se resolver por mexericos. (Veja-se Diogo di>
Goito, e a Memoria do Sr. bispo, F- A.- Lobo, que em oii-
fro logar citámos).
X»
32
O PANORAaiA.
degredo , mas conservando sempre a lembrança de
suas desventuras , que não menos aviva saudade
daquella que conslaulcmente amara. Por essa cpo-
clia acabou o vice-reinado do governador Barreto ,
[que seja dito em seu abono falleceu pobre] (2) e
chegou a Goa D. Constantino de Bragança , succe-
dcndo em 1558 no governo das índias. Este acon-
tecimento deu logar a Luiz de Camões de reclamar
justiça , e o novo viso-rci , com quem havia antigos
laços de amisade, lhe levantou a pena, e o nomeou
provedor dos defuntos e ausentes cm Macau , com
« fim de o empregar e de melhorar a sua condição.
É tradição constante que passava muitas horas a tra-
lialliar no seu Poema , c ainda hoje em Macau , na
quinta do conselheiro Manuel Pereira , se mostra
uma gruta denominada de Camões , onde o nosso
poeta ia trabalhar na sua composição, procurando
iiaquclle sitio ameno e impenetrável aos raios do
sol , cntregar-se todo ao laborioso estudo que tanto
amava (3). AUi foi passando o melhor tempo da sua
vida , ao abrigo das precisões , a que podia satisfa-
zer com os emolumentos do seu cargo , quando se
lhe suscitaram desejos de voltar aGòa ; de D. Cons-
tantino pôde oljter a necessária licença , e breve
tratou de se embarcar com o mais crescido cabedal
de que se viu senhor no decurso de sua vida.
Mas a sorte inimiga , que ainda não estava can-
çada de persegui-lo, tomou por cmpreza frustrar as
mais bem concertadas esperanças de Luiz do Ca-
mões , e tornar em pezares as mais vivas alegrias ;
não quiz que ellc fosse, diz o erudito Sr. Bispo de
Vizcu , no tocante a teres e proveitos , mais ventu-
roso do que em amores. O navio, cm que se havia
embarcado , padeceu triste naufrágio na foz do rio
Mccon , na costa de Camboja. Nesse naufrágio per-
deu elle tudo quanto possuia , podendo apenas so-
hre uma taboa salvar com a vida o seu mais pre-
cioso thesouro , o manuscripto do seu poema , que
por fortuna e gloria nacional chegou á posteridade.
Desse naufrágio nos diz Barbosa Machado, fallando
de Camões — «que se salvara em uma taboa com o
« seu divino poema , imitando a Júlio César , que
o no porto de Alexandria entrara levando em uma
« mão a espada , e em a outra os seus commenta-
« rios. »
Em 1561 chegou a Goa, com esta única riqueza
que tanto serviu para sua e nossa fama, c grato se
amostrou para com o governador , a quem devera
o bcm-cstar e Iranquillidado de que gozara duran-
te o tempo do seu excellente governo , que em tu-
do , conforme os historiadores , fora o opposto do
de seu ruim predecessor. Não continuou porem por
muito tempo a momentânea tranquillidade que des-
fructára Luiz de Camões , porquanto D. Constanti-
no foi chamado á corte deixando o governo a seu
succcssor o conde de Redondo , que posto amigo e
favorecedor do poola não pôde impedir que inimi-
gos ciosos do seu mérito, homens malévolos, o ac-
cusassem de malversações na administração da pro-
vedoria de Macau. Foi posto cm juizo c encarcera-
do , e quando estava para sahir innocenlc e puro
da accusação , as portas da prisão se lhe fecharam
(2) Fr. Manuel dos Santos diz , que F. Barreto dera a
aluía a Deus , em uma casa do palha, sem se acliar em seu
escriplorio , nem cm seu poder , um cruzado para as suas
exéquias ! Foi morrer sem gloria nos inhospitos sertões da
Africa, junto iís ribeiras do rioCnama, e em tamanho apar-
to , que até teve escasso logar para ser sepultado em uma
pol)re c solitária ermida das visinliauças.
(3) Vid. nma estampa deste retiro, da maneira que ho-
je é coníervado a pag. 39 do 1." vol. da Serie primeira.
por embargo que lhe poz um cidadão de Gõa, cha-
mado Miguel Rodrigues Coutinho, que se disse seu
credor pela somma de dusentos cruzados. Por essa
occasião valeu-se do vice-rei , e com dignidade lhe
pediu o desembargasse , o que este fez com grande
nobreza d'alma.
Livre da prisão continuou na índia embarcando-
se nos verões para ser\ir nas armadas, c entregan-
do-se nos invernos ao estudo e ás suas composições.
No serviço militar distinguiu-se não menos do que
nas lettras , c assim ficou em Goa por algum tem-
po até que aconteceu morrer o conde de Redondo ,
succedendo-lhe D. .\ntão de Noronha no governo da
índia. Segundo pudemos colligir das diversas noti-
cias biographicas que temos diante de nós , o nos-
so malaventurado vate soffreu por esse tempo o gol-
pe mais sensível que sua alma elevada podia expe-
rimentar. D. Catharina de Attayde falleceu na pá-
tria , deixando Luiz de Camões entregue á mais
pungente dor, pois nesta tão duradoura affeição pu- L
nha ellc suas ultimas e mais charas esperanças. 11
líavia por essa epocha acabado o seu Poema, e
cheio de desgostos sem ter cousa que o prendesse
aos Estados da índia , onde experimentara os vai-
véns da caprichosa fortuna, resolveu passar ao rei-
no, a fim de buscar socego c independência , e of-
ferecer á pátria a sua composição que tanta honra
lhe devia dar um dia , e que tão mal recompensa-
da fora então. Cheio deste projecto andava buscan-
do os meios que lhe faltavam para effeiluar a via-
gem , quando a sua má estrella lhe deparou a Pe-
dro Barreto, governador nomeado para Sofala , o
qual lhe propoz o acompanhasse fazendo-lhe mil
promessas enganadoras (í). Pedro Barreio era da-
quelles homens sórdidos , que de tudo sabem tirar
partido , e na ofTerta apparentemente generosa que
havia feito a Camões levava a mira em o tornar to-
talmente seu dependente , c cm medrar á sombra
da fama litteraria que o nosso poeta já então mere-
cia. A Moçambique aportaram Camões c o indigno
Pedro Barreto , e alli ficou o primeiro naquella in-
hospita terra por algum tempo sem amigos , nem
protectores , reduzido á maior miséria sem poder
proseguir em sua viagem, porque a isso obstava seu
iniquo credor.
[Continuar-se-ha.]
Prudencía é o temor rasoavel das consequências ,
que as nossas acções podem ter. — Compara-se o
homem do grandes talentos , mas falto desta virtu-
de , ao Polyphemo da fabula , que robusto mas ce-
go não pôde , por falta de vista , fazer uso da sua
força. ,
Somos escravos das leis [dizia ura jurisconsulto ro-
mano] para podermos ser livres.
Sejímos bons, e depois seremos felizes : não quei-
ramos o premio antes da victoria , nem o salário
antes do trabalho. — Rousseau.
(4) Este facto que alguns escriplores não acreditam , o
oa subsequentes a respeito de Pedro Barreto , é narrado por
muitos outros dignos de credito, entre estes Pedio Mariz , e
o Morgado d eMattlieus, tão eicellente litlerato como atila-
do critico.
ERRATA .
N.° 5G, pag. 20, liu. 48 — presto— perto.
.38
o FANORASIA.
33
PORTUGAL. e meia tle Chaves , e entre esta villa e o seu ai ra-
>^-r j balde da língdalena tem uma famosa e Ijeiíi edifi-
cada [luiite , que levantaram us romanos.- — O rio
O Iajiega e Amarante. corta obliquamente a serra do Marão, levando i'o-
j pia d'aguns comparável ao Lima; de Cbavcs cami-
>"asce o rio Tâmega era Galiza, na serra do S. Ma- i nha para sudoeste por entre as Iragosidades daqutl-
lucde, de um manancial chamado Taraicelas, c bai- j las ásperas montanhas, das quaes recebe muitos e
asando para o estreito valle de Laça , prosegue por 1 abundantes ribeiros , como são o Beça e o Basto,
outro mais largo e fértil, o de Monterrey. através- \ Ainda que corre em leito apertado emrasão da ele-
a tronteira dos dois reinos pcainsulares a légua j vação de suas margens, tem entre ellas deliciosos
Feveueiko 4 — 1843.
2.' Seiue — VoL.. 1!.
u
o PANORAMA.
valles , que produzem muito vinho verde , mi-
lho , centeio , linho , e legumes , c nas quebradas
irroximas ha soutos, que dão fartura de castanhas.
As aguas do Tâmega criam peixe miúdo de pouca
monta , mas a cilas sobem, provenientes do Douro,
os sáveis , lampreas e mugens , que fornecera em
certas estações saborosa pescaria. Tem íaetier-se
nu Douro no sitio a que chamam Entre-ambos-os-
rios , duas léguas abaixo da villa cujo prospecto
oíTerece a precedente estampa.
Amarante , terra de mui remota fundarão , occu-
pa a margem direita do rio, que acabámos de des-
crever, sobre o qual tem uma ponte faliricada com
muita solidez , c da cabeça desta começa a villa ,
(jue se pôde dizer constar de uma rua geral , tor-
tuosa, c de plano inclinado, a que vem dar algu-
mas travessas; correndo denascente a poente, com
a igreja de S. Pedro ao meio da subida , c pouco
acima a casa da municipalidade : no mais alto tem
seu assento a casa da Misericórdia. Ao norte ha a
rua deGuimarãcs, estrada para essa villa : ao poen-
te, também costa acima , segue a rua doPorlo,
estrada para esta cidade. Possuía muitos edificios
nobres, a maior parte dos quaes foram incendiados
pelos francczes na invasão de 1809 ; e na sua pro-
ximidade, para lodos os lados ainda era superior o
2mmero de notáveis c deleitosas quintas, pertencen-
tes a famílias mui conhecidas, assim da còrtc, co-
mo das províncias. Amarante é uma posição mili-
tar importantíssima , ao norte do reino , e por esta
circumstancía tem sido thoatro de repetidos c por-
fiados combates , cujas consequências im.mcdiatas
são sempre a devastação das propriedadej, quer ur-
banas, quer rústicas. — Apesar da situação emi-
nente em que se acha , como por outra parte é so-
branceira ao frondoso Viille do Tâmega , não dei-
xa de ser aprazível residência, e agradáveis os seus
contornos. Dista de Guimarães sínco léguas a sues-
te ; e porque também apen.is fica a uma Icgua da
serra do Marão , é muito provável que , por es'a
-situação topographica na estrada principal do Por-
to para Traz-os-montes , sendo encontrada pouco
antes daquclla escarpada serrania , lhe pozesse a
antiguidade o nome ú'Atitcmoranam, que se corrom-
peria depois em Amarante. No campo das conjectu-
ras , sobre etymolngías quasi sempre incertas, te-
mos esta por mui crível , não obstante a derivarem
os nossos antigos geographos do nome de um cau-
dilho romano , Amarantus Senccionis , cuja sepultu-
ra se uchára no hospital de S. Marcos da cidade
lio IJraga. Também os mesmos auctores escreveram
que fora originariamente povoada pelos turdetanos da
Lusitânia , 3G0 annos an'es de Jcsn Chrísto ; que
os romanos a reformaram e augmcntaram ; que os
bárbaros enxames das tribus do septcntrião, desliui-
dores do império dos Césares, a devastaram tão com-
pletamente que delia não havia vestígio em 12o0.
i'or estes annos £. Gonçaio , dito de Amarante pa-
ra distinrçãi) de outro St.° o augustiníano .S. Gon-
çalo de Lagos , á volta da viagem aos santos loga-
re.s, veio habitar uma capeijínha que ou achou de-
.saraparada , ou erigiu desde os fundamentos , sita
n'iim outeiro, que campeava .sobre o Tâmega : á
sua caridade e amor do bem publico é fama que
foi devida a primeira ponte que se lançou sobre o
rio nesta paragem : aqui falleceu o servo de Deus ,
p a concorrência dos fieis a visitar o seu sepulchro
deu origem á crcação do i)ovo hoje conhecido pelo
nome de villa de Amarante. Tem esta uma uníca
freguczia , da invocação de S. Gonçalo , erecta no
templo do convento dominicano , mandado levantar
por eireí D. João 3.° e seus succcssorcs : era esta
casa religiosa uma das melhores que no reino pos-
suía a ordem de S. Domingos, com dois claustros
espaçosos , chafariz d'agua perenne , grande dor-
mitório lateral ao rio, e dilatada cerca.
Amarante , antes das recentes divisões judiciaria
e administrativa , tinha juiz de fora , e um termo ,
o mais diminuto de todo o reino, e por maneira tal
que somente na rua. que serve de transito aos que
frequentam as estradas do Porto e Minho para Traz-
os-montes e Beira , havia três jurísdicçõcs civis ,
três ccclcsiasticas , três foraes , e três pelourinhos.
K actualmente cabeça de comarca, a qual se com-
põe dos concelhos, de Amarante calculado em 4:199
fogos, c de St." Cruz de riba-Tamega com 3:598
ditos.
Illustra-se esta villa por ter dado o nascimento a
João Pinto llíbeiro , pessoa mui principal da famo-
sa c feliz restauração de 1G40 , que deu a estes
reinos monarcha legitimo e natural , aeclamando o
Sr. D. João 4." , e collocando no throno a dynastía
bragautina. Foi também berço do poeta jovial c sa-
tjTÍco , Paulino Cabral de Vasconccllos , mais co-
nhecido por abbade de Jazente. — António de Sou-
sa de SIacedo descendeu de uma família de Ama-
rante, mas, postoque o P.' Luiz Cardoso o faça na-
tural desta villa, veio ao mundo na cidade do Por-
to , como fica relatado na breve biographia de tão
insigne varão , a pag. 343 do antecedente volume.
O DIVIDO.
O LOCAR do órgão da audição tanto no homem , co-
mo nos outros animaes , é na cabeça. — A única
parte visível deste órgão é o pavilhão, ao qual vul-
garmente chamam orelha , e que apresenta na sua
forma condições muito favoráveis para modificar
os sons; segundo parece todas as partes, de que se
compõem estes órgãos , offereccm estas condições ,
umas em maior numero c outras cm menor. O [)a-
vilhão em muitos animaes é uma verdadeira corne-
ta acústica , como por exemplo no cavallo , c sus-
ceptível de se mover em diflercnles sentidos. — O
pavilhão concentra as ondas sonoras no canal audi-
tivo, oqual inlroduzindo-se na cabeça, até um certo
ponto, é terminado obliquamente pelo tympano que é
uma membrana delgada, movei c elástica, que ser-
ve para fechar uma cavidade óssea chamada a cai-
xa do tympano ; a caixa do tympano tem uin orifi-
cio que está em communicação com a boca por
meio de um canal chamado a trompa d'Eustachío ;
c serve esta communicação para que renovando-se
o ar , a pressão atmosphcríca seja sempre a mes-
ma. X caixa do tympano ainda tem outras duas
aberturas, uma em cima chamada a jancUa oval .
outra mais em baixo chamada a janella redonda ;
n'cst('S dois orificios ha músculos, a qnc está presa
a cadèa dos ossos suspensa no interior da caixa :
esta cadèa c composta de quatro ossos, chamados ,
— o marlello — a bigorna — o Icniíoular, e o es-
tribo ; tem estes nomes , em consequência da se-
melhança que apprescnta a sua forma com a des-
tes objectos — julga-sc geralmente que esta cadéa
serve para modificar as sensações muito violen-
tas que o órgão podcsse sentir : basta distende-la
muito c á membrana do tympano , para produzir
este cffeito — ha pessoas que perlcndem ter esta fa-
culdade a ponto de se fazerem surdas quando que-
o PANORAJ^IA.
36
rcm. — O pavilhão — o canal auditivo — a mem-
brana do lympano — a caixa ossoa , a cadra dos os-
sos e a Irompa de Euslachio formara o que se cha-
ma ouvido externo. O ouvido iiílcruo é composto
de um canal ósseo em spiral , chamado o caracol ,
preso por uma das suas extremidades á membrana
<la jauclla redonda , e a outra extremidade abre-
se em uma cavidade , chamada o vestihulo , esta
cavidade está dctraz da janella oval. O veslibulo
lomraunica com trcs canacs semi-circulares de na-
tureza óssea , cheios de uma matéria parda de que
se não conhece o uso. — Os últimos ramos do ner-
vo acústico merjíulham em um liquido transpnrcn-
rente que enche as spiras do caracol.
Parece que as vibrações sonoras concentrando-sc
no pavilhão ferem a membrana do tympano, repro-
duzindo-se na cavidade óssea, como na caixa d'um
tamfcor.
O modo por que a sensação do som se transmilte
ao nervo acústico ó um segredo da natureza que não
sabemos que se haja ainda descoberto.
Sabe-se que a membrana do tympano pôde rom-
per-se, ou perfurar-se. sem que a audição deixe de
ler lograr, tanto que ha pessoas que fumam e deixam
sahir pelo ouvido o fumo que aspiram , sem que
sejam atacados de surdez ; c comtudo é mister que
'> fumo, introduzido pela trompa de Eustachio na
membrana do tympano , saia por uma fenda feita
nessa membrana. — A perfuração do tympano é até
uma operação cirúrgica , praticada com vantagem
para a cura de alguns casos de surdez. — Os ires
primeiros ossos da cadèa de que falíamos lambem
I'arccem desnecessários a audição; pois julga-se
que não c alterada pela queda de nenhum delles ;
confessámos que não seguimos rigorosamente esta
opinião porque nos parece mais phisiologico suppor
que deve resultar alguma alteração no ouvir , pela
falta d'um ou d'oulro destes três ossos , e esta opi-
nino pode ainda fundar-se no facto , em que geral-
mente se Concorda , de que a queda do estribo ,
que é o quarto osso, causa a surdez.
Os esforços dos phisiologistas tem sido baldados
para explicar o inechanismo da audição — -o órgão
do ouvido 6 destinado a recolher os sons , e trans-
i:iiltir as sensações ao nervo acústico; eis as pou-
cas palavras era que se podem resumir muitos dos
livros, que acerca deste assumpto estão escriptos.
O sentido do ouvir appresenta, entre outras, uma
circumstancia digna de attenção , e é o seu desen-
volvimento antecipado nos feios ; pois este sentido
começa a exercer-sc logo depois da nascença. Do
mesmo modo que os outros sentidos, ou talvez mais
do que elles , é susceptivel de educação.
Os selvagens ouvem melhor do que os povos ci-
vilisados ; tem-se visto selvagens , nas ílorestas da
America do sul , encostarem o ouvido á terra , c
perceber o numero c a direcção dos seus inimi-
gos , estando estes a grande distancia. O órgão do
ouvido é sujeito a muitas doenças, que occasionam
a surdez, esta quando é completa traz comsigo gra-
víssimos inconvenientes ; e sendo era idade avança-
da altcra-se a voz de modo que se chega a faliar
muito baixo ou confusamente.
A perda do ouvir será ou não recompensada de
algum modo pelo aperfeiçoamento de outro sentido ?
— Eis uma questão em que por ora não podemos
em consciência apprcsentar o nosso parecer. — As
questões que parecem menos interessantes são ss
que muitas vezes custam mais a resolver.
iS. /. Jlibeiro do Sá.
O CEGO PEREGBINO.
Jtimancc. (•)
I
— «A porta, menina, abri
A um triste peregrino ,
Cego , cançado , c com fome ,
Que perileu de noite o tino :
Que por bando de malvados
Foi na estrada investido ,
De seu haver eslnilhado ,
De agudo ferro ferido.
Prestes , ó linda menina ,
Ao desvalido accudi ;
Soccorrei-o , senão morre ;
A porta , menina , abri.» —
— «Não dei causa a luas queixas,
De teu damno não me importa :
Como és desconhecido ,
Não te abro a minha porta :
Acordai , ó minha mãe ,
Deixai já tanto dormir: '
Não ouvis lá fora o cego
Com seu estranho pedir?» —
— «Sc ellc pede, ó minha filha,
Da-lhe pão e gasalhado ;
Não negues comida , e lume
A um pobre desgraçado, » —
A donzella a porta abre ,
Bem que seja a seu pezar ;
Pressuroso o peregrino
Cruza alem do limiar ;
São nobres seus ademanes ,
É garboso o seu pizar ;
Ninguém pobre lhe chamara
Se não visse o seu trajar:
Veste grosseiro burel ,
De sandalhas vem calçado , ~
Por cordão de rijo esparto
O corpo traz apertado.
Cobre chapéu c cabeça ' .
Té aos olhos o capuz ,
Porque o rosto se cão veja
A claridade da luz.
— «Aguarda ahi , peregrino.
Que o pão e vinho te dou ,
Faxa que o sangue le vede
Com presteza apromptar vou. » —
— «Não vás, formosa donzella.
Tamanha fadiga ter ,
Fome e sede já não tenho ,
Nem sinto o sangue correr. » —
— « Se não tens fome , nem sede ,
E o sangue já te parou ,
O teu caminho prosegue ,
Que a descançar eu me vou.» —
■ — <!Não darei com o caminho,
Que não sei e que é ruim ;
E depois que sou comtigo
Tc mesmo não sei de mim.
(•) João (le Barros dá este nome ás troTas po|)ularei
antigas, jierínadido talvez de que provém das r-?nas ou cob-
soanles : romance deriva da língua ro!n.''ã on dos írovadoret
provençaes. — -Fiinda-se a nossa lireve coniiíosição .ias aoll-
gas trovas do céi/o , que principiara .
Abri essa poria ,
Feclial o postigo ,
Botai cí um len(;o ,
Que eu yeniio ferido ,
&C.
3G
O PANORAMA.
Bondosa , linda donzella ,
flnioi o triste ccguinho ,
Air iVira da clareira ,
J'eIo direito caminho.» —
— n Es|)r'ares sob este colmo
A nianliaã melhor seria ;
Nado o sol , de boamente
A estrada te ensinaria.» —
— itPéga na roca . ó filha ,
E na estriga de linho ,
Sabe o cego seus infresses ,
Vai cnsinar-lhe o caminho.»-
A donzella inexperiente
Tal dilo não agradou ;
Mas (lurqiic o disse a velha
Obedeceu e calloií.
Em quanto o fuso procura ,
Os dois conversam a mão,
De antigo conhecimento
Indícios seguros dão.
Deste colloquio breve
A donzella nada ouviu ;
louocenle e sem suspeitas
Tomou a roca e sabiu.
./. M. cVÂ. F.
i Coinlnir-sc-ha.)
coi.oai30 cows'íirJ3s os ss.i:sumz-çcsos.
Cmristovío (^olon , ou Colombo [como de ordinário
i'5cre\emos] ceava um dia de sociedade com vários
pedantes : estes , que invejavam a gloria de tão in-
signe homem , quizeram provar-lhc que nada fora
facil Como o descobrimento do Novo-Mundo. Co-
lombo não respondeu , deixou proscguir a conver-
sação , e quando achou op|i(irtuno ensejo perguntou
sorriíuio-sc se algum dos circumstantes sabia a ma-
neira de suster aprumado um ovo em cima da nic-
za , posto sobre uma das extremidades e sem cama
ou encosto. Todos entraram a i>òr de banda pratos
e guardanapos , (; tomando ovos lidavam de balde
para os manter a pino , amparando-os com os dc-
<Ios a ver so descobriam modo de que se tivessem
direitiis e sem tombar; por fim cansados de infru-
ctuos.is diligencias protestaram que tal não podia
couseguir-se. — «Agora o veremos.» — disse gra-
vemente o illuslre navegante ; e batendo na racza
com uma extremidade do ovo, que tinha na mão.
amolgou-a e fez que ficasse direito. — «Isso faz
qualquer»: exclamaram a uma voz os concurren-
tes : porem Colombo limitou-se a noiar-lhe que es-
ta exclamação é a que se faz sempre depois dos
grandes descobrimenids e das árduas emprezas ,
quando as diliiculdades apparecem dissipadas pela
força (lo talento.
Esta anccdota , que refere um historiador italia-
no , é popular eui llespauha , e ainda ninguém lhe
negou anthenticidade. — (iuilherme Hogarlh , cele-
bre |)intor do século passado, elegeu este assum-
pto para um painel de que c copia a gravura aci-
ma. Este ensaio , quer considci'ado como composi-
ção , quer como estudo do contraste das pbisiono-
niias, pôde dar alguma idéa do engenho de seu au-
ctor. Nada dislrabe do objecto principal ; a postu-
ra de cada uma personagem . os gestos , a expres-
o TANORAaiA.
37
são das fciríios , o movimento dn rorpn , tudo se
dirige a Cliristovão Coloiiilio. í". impossível deter a
vistu em qualquer dos convidados, sem de eertn
modo nos vermos obrigados a lita-la inleiramonte
no centro da acção , até descnnear com interesse
na figura do protagonista : a phisionomia deste vc-
sc revestida de toda a dignidade que o génio do
pintor podia imprimir-lhe ; deixa entrever na sere-
nidade do rosto a intenção de mostrar que a ima-
ginação do Colombo não se deteve neste episodio
mais que um passageiro instante , para em seguida
se encaminhar a outras idéas mais sublimes , ou a
roais gloriosas recordações. l*or uma combinação
feliz o interesse momentâneo vislumbra nas caras
dos assistentes . e posloquc de variadas expressões
são estes aceidentes de physionomia adequados ás
circunistancias , e vigoram o pensamento geral. —
Na esquerda divisa-se um velho calvo , de froule
encrespada e cerrando os beiços por despeito ; tra-
tou de suster o ovo , mas sem chamar a attenção
dos outros, como se deixa ver pela postura dos bra-
ços cruzados ; tem íitado a attenção no rosto de Co-
lombo ,■ para quem olha desdenhoso , o que 6 bem
de observar notando-se que está recostado e de ca-
beça alia disfarçando sentimentos d'invcja. É lam-
bem por isso que o navegante de preferencia se
dirige a ellc e se compraz em pór-lhe silencio. —
No lado fronteiro ha um mancebo occupado na so-
lução mechanica do problema : lodo o corpo incli-
na para o ovo quebrado por Colombo , e não pare-
ce mui persuadido da moralidade da parábola ; in-
culca que está para al)rir a boca e proferir : —
«.Não senhor, não foi isso o que se propòz.» — Dos
dois homens, entre os quaes está sentado Colombo,
um de idade madura e cabeça descoberta ri ás
gargalhadas , e sem malicia , da subtileza com que
Colombo aprumou o ovo ; mas já não é o mesmo o
riso tão expressivo do velho de óculos e barreie
que parece captivado da perspicácia de Colombo,
p nada participar do ódio do que lhe visinha. Quan-
to á quinta personagem que dá punhadas cm si ,
entregaudo-se a ura rir sem acabar , pôde suppor-
se que applica toda a sua attenção á scena muda,
que se passa entre Colombo e o primeiro velho , e
que diz lá comsigo : — «por todos os santos e san-
tas! que o basbaque ficou burlado e não sabe que
resposta dó.» —
0
i:oBO.
1128-
IH -
0
Sarau.
O a?pk!:to do burgo de Guimarães indicaria tudo ,
menos um desses raros pcriodos de paz e repouso ;
de festas e pompas civis e religiosas , que , seme-
lhantes aos raios do sol por entre nuvens húmidas
de noroeste , alegravam a terra , sorrindo a espaços
no meio das tempestades politicas que varriam, na-
quella epocha , o solo ensanguentado da Península.
Como se houvera alargado um braço até então pen-
dente , o castello roqueiro tinha estendido do an-
gulo esquerdo da torre do miradouro uma compri-
da couraça de vigas c entulho que vinha morrer
em um cubcllo na orla exterior do burgo. Depois,
da extremidade daquella muralha inclinada, do ou-
teiro para o valle, corria a ura e outro lado do ba-
luarte nma tranqueira de pouca altura , donde fa-
cilmente besteiros e frecheiros poderiam despejar
a salvo seu armazém em quacsqucr inimigos que
eouimetlessem a povoação. O cubcllo era como o
punho cerrado do disforme braço que sabia da tor-
re alvarran , c a tranqueira como uma faixa com a
qual o desmesurado gigante de pedra parecia ten-
tar unir a si o burgo apinhado lá embaixo. Alem
disto, o mosteiro de D. Mumadona , iiostnque ve-
lho c fraco, também parecia animado dVspirito
guerreiro; porque as ameias que coroavam o ter-
rado do campanário , pouco antes lombadas em
grande parte c cnbertas de hervas c musgo, esta-
vam limpas e galeailns de novo nos seus logares ,
ao passo que por rnlre ellas se divisava uma gros-
sa manganella assentada no meio do eirado cm dis-
posição de arrojar pedras para a campanha, que se
dilatava diante do formidável engenho.
Todavia estas evidentes caulcllas e precauções
militares desdiziam bastanteraente do que se passa-
va no castello. Era pela volta das dez horas d'uma
noite calmosa de junho. A lua-cheia batia de cha-
pa nas muralhas esbranquiçadas , as sombras das
torres macissas listravam d'alto a baixo as paredes
dos paços inleriorcs de faixas negras sobre a palli-
da silbaria de mármore , tornando-a semelhante ao
dorso da zcvra selvagem. Contrastavam , porem , a
melancholia e silencio deste espectáculo nocturno
as torrentes de luz avermelhada jorrando por en-
tre os maincis que sustinham ao meio das altas
e esguias janellas as bandeiras c laçarias de pedra.
Estes maincis c bandeiras, formando flores e ara-
bescos , recortavam de mil modos aquclles vãos af-
fogueados e brilhantes , rotos a travcz das listas
alvacentas c negras , de que a lua arraiava a fron-
te do soberbo edificio. Na penumbra do extenso pa-
teo que corria entre as muralhas e a frontaria do pa-
ço , branquejavam os saios dos cavalleriços («) que
tinham de rédea as mnllas de corpo dos senhores,
e ricos-homeus ; scintillavam os freios de ferro pu-
lido e as sellas á mourisca, tauxiadas de ouro o
praia ; ouvia-se o palear dos animaes e o sussurro
dos servos conversando c rindo cm tom sumido.
Mas era lá cm cima, nas salas esplendidas, que se
viam passar rápidos como sombras os vultos de da-
mas e cavallciros arrebatados no turbilhão das dan-
ças ; lá soavam as melodias dascitulas, das harpas,
das doçáiuas, por entre as quaes rompiam os sons
vividos das eharamellas, o estrépito das trombetas,
o rebombo dos tímpanos ; e quando aqucllas toadas
afrouxavam e morriam cm sussurrar confuso, reti-
nia uma voz áspera c aguda que vibrava no meio
daquelle ruído de festa. Então í"azia-se um profun-
do silencio, que não tardava a ser partido por gri-
tos e risadas estrondosas, que reslrugiam pelas abo-
badas , cruzavam-se e confundíam-se repercutidas
em borborinho infernal. Via-se claramente que a
embriaguez da alegria havia chegado ao extremo
auge do delírio , e que dahi avante não podia se-
(•) Os cavnlltriços eram os servos que Iralavam ilos gi-
neles e cavalgaduras dus nobres. Di/.eraus oqueeram porque
delles não se faz menijào alguma no Elucidário, e levissima
em Durante verbo: CnhnVarius. Vò-se, porem, em que con-
sistia e<te cargo servil il'uni inslrumenlo d'iujenuidade de
1033 [Cullec.de var. privileg. T. 5.° Doe. 3.°] Fique di-
to por uma vez que todus os nomes que eoípregamos, sce-
nas que descrevemos , costumes que pintamos, são riirorosa-
mente tiistoricos. Fácil mis fora sumir este romance em tini
pelajo decilações; mas falece-nos a fnria da erudição. Enão
seria ella ridícula uo humilde Listoriadur d'uni humilissimo
truào ? ,. . .
3«
O PANORAMA.
não decrescer. O tcdio c o cançaco não tardaria a
separar aquella rntnpanliia lustrosa , que parecia
esquecer nos braços do deleite que tudo ao redor
delia, no caslcllo e no burgo, annunciava as triste-
zas dú guerra c os riscos dos combates.
De feito , já nos rcaes aposentos da bcUa infanta
de Portugal muitos dos ricos-homcns c infanções ,
.'.pinhadõs aos cinco e seis, aqui eacol.í, ou encos-
tados aos balcões da sala d'armas, começavam a
lallar com viva agilação dos successos do tempo.
As donzellas iam ;;sscntar-se nas almadraqucxas en-
fileiradas junto da parede no topo da sala , onde se
erguia , cousa de um pó acima do pavimento , o
■vaslo estrado da infanta. Esta, na sua cadeira d'cs-
paidas, escutava l''crnão Perez, que firmando a mão
no braço da cadeira , c curvado para ella por de-
traz do espaldar , com aspecto carregado , parecia
dirigir-lhe de quando em quando palavras breves
c vchementes , a que D. Thereza , que não sahíra
do seu logar desde o começar do sarau , respondia
muitas vezes com nionosyllabos, ou com nm volver
d'olhos em que se pintava a angustia , desmentin-
do o sorriso forçado que , frouxo c passageiro , lhe
adejava nos lábios.
Junto ao topo do estrado, do lado esquerdo da
infanta, ura joven cavalleiro em pé fallava também
em voz baixa com uma formosa donzclla, que, recli-
nada na ultima almadraquexa , respondia entre ri-
sadas aos ditos do outro interlocutor. E todavia no
gesto do cavalleiro, na vivacidade das suas expres-
sões , no seu olhar ardente se revelava que as res-
postas alegres da donzella desdiziam das palavras
apaixonadas do mancebo , cujo aspecto se entriste-
cia visivelmente com aquella alegria intempestiva
e cruel.
Ao pé de uma das columnas de pedra , que su-
bindo ao tecto SC dividiam como os Inuicos de nm
plátano cm aríezões de castanho , os quacs morren-
do nos vértices das ogivas cm bocctes dourados
pareciam sustentar o renque de lampadários gigan-
tes pendentes da escura profundeza daquellas vol-
tas; — ao pé d'uma destas columnas, no lado op-
posto da sala, trcs personagens fallavam lambem ha-
via largo tempo , sem fazerem caso do tanger dos
menestréis , do doudejar das danças , do sussurrar
confuso que redemoinhava era volta delles. Era a
sua conversação de género diverso das duas que já
descrevemos. Aqui os trcs indivíduos pareciam to-
mar todos vivo interesse no objecto de que se oc-
cupavam , ainda que de modo dilícrcnte. Um del-
les , alto , magro , trigueiro e calvo , porem não de
velhice, porque era homem de quarenta annos, tra-
java um saio negro, comprido, e apertado pela cin-
tura com uma larga faixa da mesma cór, vestuário
próprio do clero daquelle tempo : o outro , ancião
venerável, tinha vestida uma cogulla monástica .
igualmente negra , .segundo a usança dos monges
bentos ; o terceiro (inalmcnte , o mais moço dos
tíes, era um cavalleiro que mostrava ter pouco mais
de trinta annos, membrudo, alvo, cabellos anncladns
e louros — um verdadeiro nobre da raça germânica
dos visigodos. O clérigo calvo , com os olhos quasi
sempre fitos no chão , só os punha de relance na-
qucllc dos dois que fallava; mas este olhar incer-
to e sorrateiro bastava para descobrir nelle uma In-
dilfercnça hypocrila e uma curiosidade real. No
voslo do velho pintava-se profunila attcnção , prin-
cipalmente .i'; palavras do mancebo, as quacs enér-
gicas , vehciiientcs , o rápidas , davam testemunho
das vivus coniinoçõcs que agitavam a sua alma.
Dos três grupos em qne no meio de tantos ou-
tros fizemos principalmente reparar o leitor , já
elle conhece as personagens do primeiro — a vinvi
do conde Henrique , e Fernando Perez de Trava.
Para clareza desta importante historia necessário é
que lhe digamos quem eram os que compunham os
outros dois , e lhe expliquemos os porquês da si-
tuação respectiva de cada um desses indivíduos.
Entre as donzellas da infanta-rainha uma havia
em que ella , mais que em nenhuma outra , tinha
posto as suas alTeições e complacências ; e cora ra-
são : — crcára-a de pequenina. Dulce era filha de
D. Gomes Nunez de Bravacs, rico-homem , que
morrera na rota deVatalandi combatendo como es-
forçado a par do conde borgonhez. Expirando o no-
bre cavalleiro cncommendou sua lilha orphã á pro-
tecção do conde. Este não se esqueceu da supplica
do guerreiro moribundo; trouxe-a para seus paços,
e entregou-a a sua mulher. Nos tenros annos, Dul-
ce promcttia ser formosa, e, o que não era de me-
nos valor , de um caracter nobre e enérgico e ao
mesmo tempo meigo e bondoso. Pouco a pouco D.
Thereza lhe ganhou amor de raãi. Até os vinte an-
nos , que já Dulce contava, este amor não afrou-
xara , nem no meio dos graves cuidados que cer-
caram a infanta nos primeiros tempos da sua viu-
vez . nem com a louca alleição do conde Fernão
Perez. As esperanças que a donzella dera se ha-
viam inteiramente realisado. Dulce era um anjo de
bondade e de formosura.
Mas este anjo innoccnte . rodeado de carinhos
das mais nobres damas, das adorações dos mais il-
Instres cavalleiros da corte, parecia ter cerrado in-
teiramente o coração ao amor. Verdade c que en-
tre os mancebos , sempre attentos a indagar as in-
clinações das donzellas , tinham existido suspeitas
de que esta indifferença e frieza era mais simulada
que verdadeira. Elles haviam observado que os
olhos de Dulce costumavam litar-sc com desusada
complacência n'um donzel , que bem como ella fo-
ra crendo na corte. Era este Egas Moniz Coelho ,
primo do ancião Egas Moniz , senhor de Cresconhc
c Rezende, caio do moço infante Alliniso Ilenriquez.
Pouco-diflerentes em idades, scinelliantes era génio
e caracter, c educados juntos, desde tenros annos,
pelo respeitável senhor da Honra de Cresconhc, os
dois mancebos haviam contrahido aniisade intima.
Na mesma noite c na só de Zamora tinham velado
as armas. Como prova da sua independência poli-
tica , D. AfTonso tomara do altar a armadura o a
si ir.oprio se fizera cavalleiro. Das mãos dellc re-
cebeu depois o mesmo grau , alvo da ambição de
toilds os mancebos nobres, o seu amigo da infância ;
e o infante eEgas, até ahi irniãns pela alfeição mu-
tua, ficaram liesde então mais unidos ainda jicla fra-
ternidade das armas.
.\s suspeitas dos moços cavalleiros tinham nasci-
do pouco depois da vinda de D. AlTonso e de Egas
para a corte de Guimarães. Mas semelhantes sus-
peitas breve se desvaneceram. Inesperadamente Egas
Moniz partiu para as guerras d'ultramar, ou, co-
mo hoje se diz, para a cruzada. Ninguém atinou
com o motivo desta súbita resolução. Todavia , se
os amores com Dulce existiam realmente , era es-
sa jiaixão quem o afastava delia. Nascido com es-
pirito ardente , trovador e guerreiro , Egas preci-
sava de obter gloria, porque as almas poéticas da-
quelle tempo não coraprehendiam o amor sem re-
nome , nem talvez sem esto o encontrariam no seio
dc nobre donzella , digna de sua alfeição. A terra
o PAj\ORA]>1A.
39
santa er.i naqiiclla cpocha o campo mais foi-til para
os coifadorps de gloria : as rcpiitarOcs ailquiriíias
na Palestina reliirabavam por toilo o orbe cliristão.
Era o amor (jucni arrastava Eu'as para essa vida do
riscos, privarões c combates? Quem poderia dizc-
lo '.' Ninguém sequer o pensou.
■ O que é certo é que depois da sua partida, Dul-
ce pareceu mais triste que de costume. Porem , se
eram saudades, ou essa alma enérgica soube escon-
der seu marlyrio e devorar no silencio c na solidão
da alta noite as suas lagrymas , ou as saudades se
extinguiram no meio da vida risonha e distrahida
da corte. O moro trovador tinha esquecido a todos :
— pôde ser quo também a cila.
Entretanto uma nuvem dccavallciros a cercaram
de adorações. Debalde I Só um esperava accender
alguma faisca de amir neste coração gelado. Era
Garcia Bermudez , cavalleiro aragoncz , valido do
conde de Trava, c uma dasmelhorcs lanças d'Hcs-
panha . que com clle viera a Portugal. Dotado de
generoso animo , mas sobradamcnte altivo , c con-
fiado no próprio mérito , Garcia Bermudez amava
a donzella querida de D. Thereza , e esperava ser
correspondido; porem no coração de Dulce achara
um aflecto quf lá não quizera encontrar: — amor
sim ; mas amor d'irniã. Era ellc quem no meio das
festas obtinha todas as preferencias da filha adopti-
va da infanta : a sua conversação a qun mais lhe
apprazia. Comtudo, quando nomeio do ruido c ale-
gria dos sar.íus, ou cavalgando no ginete possante
e correndo ao lado do palafrem de Dulce pelas flo-
restas .e çarçaes, nas montarias e caçadas, ellc bus-
cava ensejo para ])roferir essas pala\ras vchemcntes
que escutadas sem cólera coroam esperanças de mui-
tos dias, e repellidas entenebrecem o futuro, e de-
voram lima existência, Dulce esquivava sempre com
um gracejo esse instante decisivo, e oaragonezapar-
'Tndo-se delia amaldiçoava a hora cm que a amara,
;ra dahi a pouco imaginar novo ensejo cm que po-
uesse resolver per uma vez o seu incerto destino.
Dulce era a donzella , assentada na extrema al-
madraquexa do estrado ; Garcia Bermudez , o ca-
valleiro com quem ella faliava e ria : e o que en-
tre os dois se passava , uma repetirão dessas scc-
nas em que tantas vezes a destreza da mulher que
não ama sabe triumphar cruelmente da mais terrí-
vel entre as mais terríveis paixões , o amor do ho-
mem , recalcado no coração pela indiffcrença da-
quclla a quem no abysrao do seu orgulho disse ;
— tu serás minha I
Dos três personagens que, cm pé no outro extre-
mo do vasto aposento, pareciam alheios a tudo quan-
to passava em volta dellcs , embebidos em disputa
\ioIenta, ura era o celebre Gonçalo Mcndcz da
'laia , ao qual , em verdes annos , extremadas gcn-
liezas d'armas tinham feito dar o appellido de Li-
dador, de que por toda a sua larga vida elle se
havia de mostrar constantemente digno. Era o ou-
tro o capellão de D. Thereza, o muito honrado Mar-
lim Eicha , filho do mui exccllcnte walid de La-
mego . Eicha , que submettido pelo conde Henri-
que abraçara o christíanismo (::}. Seu filho, Mar-
tim Eicha , seguira o exemplo paterno , e como em
todas as opiniões deste mundo os renegados são os
mais fervorosos na sua nova crença , achara elle
(::) Esle .«uccesso, que refere Brandão sem o reprovar,
labora em taes dilTiculilades que seria inadmissível eui histo-
ria ; mas pôde, cremos uiís , sem offensa das pias orellias
dos críticos , ter cabida na gravíssima biograpLia do nosso
Dom Bibas.
era consciência (jnc para se mundificar das torpe-
zas do islamismo de\ia abraçar a pura vida do sa-
cerdócio. Cónego da sé de Lamego , restaurada por
remando o Magno , e que nesta epocha se achava
unida á de Coimbra , o bom do tornadir^» não po-
derá na santi<lade do seu ministério riscar do es-
pirito a lembrança profaníssima de que nascera fi-
lho de um walid. ^"oavam-lhe os pensamentos al-
tivos para os paços reaes , como á gata da fabula
fugiam as unhas para o murganho depois de trans-
formada em mulher. Finalmente os seus desejos
cumpríram-se. A Lella infanta de Portugal cha-
j mou-o á corte , apenas delia sahiu desgostoso o ar-
j cebispo de Braga, cujo caracter austero mal-sofTria
os amores de Fernão Percz c de D. Ihereza. Mar-
tira Eicha era o homem talhado para o caso. O
seu Evangelho fora, por assim dizer, escripto n'um
palimpsesto do Koran , e as doutrinas do propheta,
relativas á metade mais formosa do genero-huma-
no , rc>crdeciam-lhe ás vezes atravez da severida-
de das sacras paginas e confundiam-se a seus olhos
com ellas. Por esta causa , vinha o cónego Martim
Eicha a ser o capellão mais a ponto naqucllas in-
trincadas circumstancias , em que os princípios de
theologia moral andavam cm tanta harmonia com
os costumes , como neste bemdito século decimo-
nono as sãs doutrinas políticas andam conformes
com a realidade dos factos.
Era, finalmente, a terceira pessoa daquella trinda-
de argunicntadora e disputante , o abbade do mos-
teiro de D. Slumadona . velho folgazão mas hones-
to , que na nieza dos banquetes despejava uma la-
ça de vinho , c ainda um cangirão de cerveja , ou
varria uma palangana de dobrada — iguaria mimo-
sa desse tempo — com o mesmo fervor e devoto re-
colhimento com que na solidão da sua cella resava
as horas canónicas , ou gargantcava no coro psal-
mos e antiphonas com os seus frades. Apesar dos
beueficios que o acísterio de Guimarães recebera
da infanta ; apesar do gasalhado que encontrava
no paço , o bom do velho torcia sem rebuço o na-
riz á tão intima privança do conde Fernão Perei:
com a rainha. Não porque desse ouvidos aos mal-
dizentes . que ainda nas mais puras acções vertem
a peçonha de seus estômagos damnados , mas por-
que não podia negar o credito ao que seus olhos
viam, e a experiência e rasão lhe ensinavam. En-
xergava ao longe o crescer da tempestade que amea-
çava assolar a terra de Portugal : vira nascer , en-
grossar , c rebentar como um volcão o ódio entra-
nhavel , accumulado por annos , entre o senhor de
Trava e o moço AlTonso Henriquez : vira dividir-se
a fidalguia em dois bandos; c quando o infante ,
dois mczcs antes da epocha da nossa historia , de-
sapparcccra dos paços de Guimarães , seguido de
vários ricos-homcns e cavalleiros da sua parciali-
dade , o bom do abbade conhecera que nma terri-
bílissima lucta se ia travar entre a mãi e o filho ,
lucta desnaturai e monstruosa, cujo desfeixo , fos-
se qual fosse , não podia deixar de gerar muitos
crimes. A precipitação com que se fortificara o bur-
go , e as noticias vagas de que o infante se appro-
simava de Guimarães con: uraa hosle numerosa, e
acompanliado do arcebispo de Braga e dos seus ho-
mens d'armas, lhe punham ante os olhos , conii>
immíncntes e inevitáveis . as scenas tremendas que
de longo tempo previra. O estado dos negócios pú-
blicos era o objecto de nccesa prática dos três ; ou
por nos servirmos de uma franoezia da moda — el-
les faziam política.
40
O PAIVORAMA.
Era tambcm o perigo que os ameaçava a am-
bos; era a nuvem procellosa que viam Já no iinri-
soote da sua vida , alé ahi tão povoada de delei-
tes , tão rica de esplendor e de predomínio , o
pensamento que turbava a fronte do nobre Fer-
não Perez , e fazia gotejar pelas faces da bella in-
fanta as bTgrymas , que em vão ella tentava conter.
Com olhos enxutos e animo de ferro , a Clha de
Affonso 6.° tinha vivido, durante dezeseis annos .
quasi sempre nos campos de batalha , nos arraiaes
jiuito aos caslellús cercados, ou encerrada nestes
defendendo-os. Com olhos enxutos e animo de ferro
tinha visto varias vezes as rotas dos seus homens
darraas, liriba fugido com elles : assistira a mui-
tas scenas de carnificina ; ouvira muitas vezes, pe-
la alta noite na tenda de guerra , gemidos de mo-
ribundos , e o uivo do lobo descendo das brenhas
guiado pelo cheiro do sangue: havia apenas um
anno que se vira constrangida a curvar a cerviz .-í
fortuna de seu sobrinho , o imperador Affonso ilai-
mundez , mas nunca sentira coar-lhe pelas veias o
terror ou o desalento : a sua alma era a de guer-
reiro, escondida debaixo das formas delicadas e
suaves de mulher. Criam-no todos : cria-o ella. Mas
o prestigio passou. A dura prova a que a pozcra
uma paixão desgraçada revelava emfim a fraqueza
feminil. Até então no jogo dos combates apenas ar-
riscara o vasto senhorio de Portugal ; mas no que
se lhe offerccia agora expunha o amante , expunha
todo o futuro , toda a esperança e todos os conten-
tamentos. Por isso as lagrymas da bella infanta cor-
riam. Quem sabe se também entre eslas alguma
era por seu filho ?
O sarau daquella noite fora para ella um longo
raarlyrio. O espectáculo do rir c folgar , o translu-
zir da alegria em tantos gestos, faziam-lhc mais car-
regada a negra nuvem da sua tristeza : era um tra-
to doloroso , cruel, dilatado; era como o preludio
medonho de um cântico infernal ; mas cumpria sof-
fre-lo resignadamente. Dos cavalleiros portuguezes,
que seguiam ainda a corte , muitos ânimos titubea-
vam indecisos entre o balsão do infante e o pen-
dão da rainha de Portugal ; e a hesitação ou o te-
mor seria o signal para essa fidalguia brilhante pas-
sar ao campo contrario. Fernão Perez contava com
os cavalleiros gallcgos, asturianos c aragonezes, de
que pouco a pouco se rodeara : mas seria isto bas-
tante para o salvar c salvar a infanta? Eis o que
era mais que duvidoso. Com a astúcia de fingido
desafogo e destemor elle tentava enganar os que
vacillavam, c fazer-lhes crer , dançando na borda
do abysmo , que fácil llic seria galga-lo.
Mas o senhor de Trava não se lembrava nos seus
cálculos políticos d'uma circumstancia que devia
infiuir no resultado final dellcs. O grande pensa-
menU) do conde llenri(|ue ; o pensamento que o
audaz borgonhez acariciara por tantos annos , e a
que votara a existência — a inde[icndencia do con-
dado de Portugal — não morrera com elle: germi-
nou , alimentou-sc , e cresceu nas guerras com os
leonezes — ■ guerras atú certo ponto civis , em que
D. Thereza pruseguíra cora tenacidade implacável.
As mais províncias da llespanha gradualmcnie fo-
ram parecendo aos olhos dos cavalleiros portugue-
zes uma terra estrangeira , estranhos os filhos del-
ias. Um sentimento de nacionalidade surgiu nos co-
rações , vago e confuso , mas enérgico. E no meio
dos seus graves cuidados e das suas previsões pro-
fundas , o conde de Trava se esquecera de (|ue vi-
ra pela primeira vez o sul sob o céu da Galliza.
Se D. Thereza triumphassc , elle — o estrangei-
ro— seria o senhor da nobre e livre terra de Por-
tugal. D. AlTonso Henriquez, porem, nascera áqueni
do Minho. Assim, muitos daquellesquc o ambicioso
filho de Pedro Froylaz suppunha indecisos na vés-
pera da grande lucta , eram já seus inimigos.
É o que o leitor melhor avaliará por si próprio
se quizer escutar a conversação travada entre Gon-
çalo .Mendez da Maia , o santo abbade do mosteiro
de D. Mumadona , e o mui reverendo capellão da
rainha. .Não será grande o incommodo : basta-lhe
lançar os olhos para o capitulo seguinte.
(À. Hcraihino.
BOTÂNICA.
EojinTCio , or simaoi'.ma.
(Lin. Bomhax Prntandrum.)
A AKVORE bombycio , ou sumaoúma merece atlcn-
ção pela sua figura differenle da das ontras arvo-
res. É uma das mais grossas, e maiores que nas-
cem nas .Vnlilhas. O tronco em cima e em baixo
é mnilo parecido com o das outras arvores, porem
no meio tem uma tal inchação , que dobra a gros-
sura das duas extremidades, mas o que é mais sin-
gular são as suas raizes , que, sendo mui grossas
descrevem scmi-arcos , sahindo fora da terra seis
até oito pés ao redor do tronco; aponta destas rai-
zes se estende depois muito pnr todo o terreno vi-
sinho. O lenho desta planta é tão brando e macio
que alguns lhe chamam arvore queijo ; a natureza
porem a armou de tantos grossos espinhos, que não
fica impune quem se atreve a olTende-la. Alem
disto cresce rapidissimamente , e dá uma soberba
folhagem digitada , e llòres bellissimas , ás quaes
surccdera fruclos oblongos , quasi como pepinos ,
pontudos para a base , mais grossos para o cume .
e que se abrem em cinco partes, quanilo estão ma-
duros. Dentro destes fruetos acham-se sementes
que são pardas, do tamanho de pequenas ervilhas,
e cobertas de um pèlio , ou espécie de algodão fi-
níssimo , mas que é mui curto para se poder fiar.
Fslo porem não obsta a que o colham para encher
almofadas, e colchões: mas é preciso lodo o cui-
dado que lhe não chegue fogo , porque a menor
faísca bastaria para o incendiar, e cora tal rapidez,
que não daria tempo para se apagar esto ligeiro
incêndio, que pôde tornar-se mais considerável: é
por isso que os índios se servem delle em logar de
isca. Dizem que os iuglezes fazem com elle cha-
péus finos. — Neste género entram as piunriras do
Brasil.
Mriú de excluir os pnrfjullina e niitrns insectos ífov
firãds rereaes. — Embeber n'agua ou toldos on len-
çoes de linho, espreme-los e estende-los depois as-
sim molhados sobre o grão eiui'lleira<lo : duas ho-
ras apenas passadas , se encontrarão os insectos pe-
gados aos lençoes c toldos: é preciso então ir en-
redando ou envolvendo os pannos com cuidado c
destreza para os não deixar escapar; e seguidamen-
te mergulhar tudo n'agua para afogar os insectos.
Escuta mil vezes, c não falles mais que uma.
A VIDA sem sciencia c uma espécie de morte. — So-
cratcs.
59
o PANORAMA.
41
03 PEREGRIUTOS DE S. THIAGO.
As PRiNxiPAES peregrinações ou romarias da Chris-
tandade , que na idade média foram mui frequen-
tes , são qnalro : — Jerusalém na Palestina , Uoma
e Loreto na Itália , S. Thiago em Corapostella na
Galiza. Entre todas a principal e a mais arriscada,
havida sempre por mais meritória , foi a visita aos
santos logares , thealro das scenas da Redcmprão.
Já no 4.° século da era christaã concorriam os pe-
regrinos á terra santa ; porem a hostilidade que
dos húngaros e d'outros experimentavam no cami-
nho desviou por muito tempo os romeiros , que
trocaram aquella jornada pela de Roma , e a de S.
Thiago, que se levavam a cabo com poucos perigos
e incommodos.
Na idade média subiu de ponto o enthusiasmo
religioso c o fervor dos romeiros que em grandíssi-
mo numero iam ver c venerar o St.° Sepulchro ,
então em poder dos mussulmanos , cuja insaciável
cobiça , de mistura com o rancor . nascido da dif-
ferença de crenças e de porfiosas batalhas , impu-
nha aos peregrinos christãos toda a qualidade de
vexações , maltratando-os corporalmente e cora in-
jurias, faltando-lhes com o preciso, e extorquindo-
Ihes dinheiro por mil diversas maneiras. Tão odio-
so tratamento , nos fins do século undécimo , iu-
ílammou o zelo de Pedro ílermita a tal auge que
aconselhando e pregando a primeira cruzada , le-
vantou toda a Europa contra os infiéis da Palesti-
na : é esta a origem certa das guerras ditas sagra-
das , que a ambição continuou, e que, em meio de
scenas de barbaridade, brotaram germens de futu-
ra civilisação, porque é incontestável que com as
cruzadas nos vieram muitos fructos do Oriente,
muitos elementos d'industria, commodidades e há-
bitos , anteriormente desconhecidos. — Antes des-
Fevereiro 1 1 — 1843.
sas luclas sanguinolentas , a jornada ordinária dos
]ieregrinos era de grandíssima volta e de riscos in-
finitos , partindo de Constantinopola para Jerusa-
lém , atravessando regiões da Ásia , povoadas de
turcos e scismaticos. — Era quanto os cruzados oc*
cuparam a Palestina , foi , sem comparação , mais
fácil a visita aos santos logares, porque se reduzia
á viagem do Mediterrâneo ; como ao presente acon-
tece, tendo cessado os ódios encarniçados das guer-
ras por causa de crença religiosa. — Outro cami-
nho houve , que era cruzar o deserto arenoso e ge-
ralmente estéril, que jaz entre o Egypto e a Palesti-
na : calculava-se a jornada de 12 a 15 dias, do Cai-
ro até JaíTa, a antiga Joppe (•) : é pelo commum
abandonado pela falta d'aguas, expondo-se os pas-
sageiros por qualquer incidente aos horrores da se-
de n'um clima abrazador.
Deixando porem essas longas c trabalhosas pere-
grinações, expliquemos a nossa estampa. Repre-
senta ella dois romeiros de S. Thiago , que por vo-
to fazem a jornada ; levam o bordão de peregrino
c a cabacinha pendente , com sua csclavina vesti-
da , como era de uso para tacs actos; a bolça de
couro, e a fita a tiracollo. A esclavina era uma es-
pécie de opa , aberta por diante , com sua murça
entapizada de conchas , do género das pmteolas , e
a que se costuma chamar vieiras.
Sem entrarmos nas elucidações d'historia cccle-
siastica , que tendem a provar a vinda do a[)ostolo
ásHespanhas, eque os eruditos encontrarão na E.r-
pcditio Hispânica do Iheatino D. Manuel Caetano de
Sousa, diremos que o sepulchro de S. Thiago em Com-
^•") Achar-se-ba a visla do bazar de JalTa e uma noti-
cia desta cidade e euas TÍsinbanças a pag. 17'i do 5." vol.
da 1.* Serie. ■ ,
2." Serie. — Vol. 11.
i-2
O PANORAMA.
poslclla foi a mais freqiienlada romaria ila nossa
puiiinsula , onde não só concorriam hcspatihoes e
portuguczcs, porem os devotos de muitos reinos da
F.iiropa , notando-se na obra de Kynicr o grande
numero dos que \inham annualmenle de Inglaterra
satisfazer este acto, que julgavam indispensável á
salvarão de suas almas. —
lia para os romeiros um grandioso hospital cm
('ompostclla , e quando a festividade do Si." Apos-
tolo cahe ao domingo é notável ainda a afluência
de pessoas, porque cm tal dia goza a sé daquella
cidade do privilegio de um jubileu, como o do an-
no santo cm Roma , que os lieis ganham de 25 era
23 annos. Da mesma maneira que na capital do or-
be catholico o summo pontífice abre por suas mãos,
em solemne procissão , a porta que chamara ■porta
xanta do jubileu ; assim nas primeiras vésperas da
C.ircumcisão do Senhor , festividade que como to-
dos sabem começa o anno novo , abre o arcebispo
de Santiago com solemnidade e grande concurso a
porta da sé , denominada igualmente poria íaiiírt ,
na fachada do oriente ; e torna a fecha-la no dia
ultimo do anno.
gpljHa^H^ig^^
><»
Observações gbaumíticaes.
.! Á dissemos ser ura grave defeito, coramum a to-
das as linguas que nos são conhecidas , o não le-
rem uma lettra para cada som , e um só e uuieo
som para cada lettra.
Este defeito é mais ou menos frc([ucnlc nas dif-
ferentrs linguas modernas, porque das antigas (jue
havemos apprendido , nada consta de certo. Alem
disso ha algumas cujas grammaticas tem estabele-
cido um certo numero de regras , pelas quaes se
pôde conhecer os casos cm que a cada lettra se de-
ve dar os seus diflercntes valores. Mas ha outras
linguas cm que os homens, que sobre ellas tem cs-
criplo, pouco ou nada curaram a este respeito, lis-
te ultimo é o caso da lingua portugueza.
Cada uma das nossas vogaes tem de dois até qua-
tro sons diversos , c não só nos faltam regras para
sabermos quando cada um destes sons deve ler lo-
gar , mas nem mesmo o uso admilliu que se expri-
missem por meio d'acccntos, como se pratica n'ou-
Iras nações, estas diversidades , salvo n'um peque-
Jio numero de casos.
A negligencia dos nossos escriptores chegou mes-
mo ao ponto de excluírem o acceulo grave nesses
[loucos casos em que, límítando-se ao agudo, se
appresentam debaixo deste signal, como se tivessem
o mesmo som, Ictlras de sons diversos como modelo
o tt(l('to. Não seria assim se , adoptada a orthogra-
phia franceza , nesta parle, se escrevesse: modelo
c adi-lo.
A mesma falta de regras se observa a respeito do
accento circumílexo , (]ue ora se ommiite , ora se
substitue escre\cndo ou cm vez de ò , sem se dar
rasão , nem se estabelecer uma marcha uniforme
no uso de nenhum destes caracteres.
Duas rasõcs se costuma ilar em('a\or da suppres-
são dosaccentos : uma é , que obsta a bclleza c sim-
plicidade dos escriplos. A outra éque. pronuncian-
do-se <lilTcrentementc nas diversas províncias c até
lios dinVrentes bairros d'uma mesma cidade e nas
dillerenles classes da sociedade , esta diversidade
produziria na cscrípta uma tediosa disparidade.
Quanto á primeira destas rasões , bastaria fazer
observar que os acccnlos cm nada seoppõcm á cal-
ligraphia, nem nosescriptos francczes, nem nos gre-
gos , onde elles são tão numerosos.
Quanto á segunda objecção , dizemos que , bem
pelo contrario, o modo de fixar a boa pronuncia, e
de dchellar os provincialismos, seria a adopção dos
accentos : porque cada um notando comoaccentuam
os escriptores mais cultos, e que todos devem re-
conhecer como clássicos , vir-se-hia por fim a esta-
belecer uma só accentuação como a única admissí-
vel e verdadeiramente nacional. Isto é oquc accon-
teceu em França.
Nem se diga que os inglezcs , apesar do grande
numero de sons que cabe a cada lettra , pensaram,
como nós, que convinha não sobrecarregar a cscrí-
pta cora accentos. Os grammalicos inglezes tem re-
duzido a um pequeno numero de regras , umas or-
dinárias, outras extraordinárias, com algumas pou-
cas excepções, toda a theoria das vogaes, <'nlretan-
to que nós outros ignorámos , ou , pelo menos , eu
ainda não encontrei quem soubesse indicar as re-
gras, que por um lado o instíncto, por outro o ou-
vido , costumam observar na pronuncia geralmente
adoptada nas classes cultas. É tralialho que ainda
está por fazer e que valeria a pena de se empre-
hcuder.
Silvestre Pinlidro Ferreira.
Anecdotas de dois genekaes russos.
\o ANXO de 171(), quando Pedro 1." se achava em
Copenhague, conferenciando com o rei de Dinamar-
ca si>bre o seu projectado desembarque na provin-
da de Sclioncn na Suécia, formava parte do seu sé-
quito o tenente-gcncral , Bohn , filho de iiin clérigo
lutlierano. O pai do tenente-general tinha morrido
em muita pobreza, e ninguém sabia se o filho exis-
tia , nem aonde se achava.
Depois de muito tempo chegou ao conhecimento
da mãi de Bohn que este se achava em Copenha-
gue , e que era general ao serviço da Uussia. A
alegria que leve, e o desejo de tornar a ver seu fi-
lho , levaram-na a conceber o projecto de se diri-
gir áquella capital. Apenas alli chegada foi ter á
casa aonde lhe indicaram morava o general, e sen-
do informada por um criado deste que não estava
cm casa , exclamou cheia de pezar : — Dizei pois a
vosso amo que aqui veio sua mãi, a qual nada
mais deseja que vc-lo e abraça-lo, c que voltará
amanhaã. »
A pobre senhora julgou que obteria por este mo-
do o que tanto desejava , porem a prosperidade ti-
nha endurecido o coração de seu filho. A soberba
suffocou os sentimentos da natureza , e o general
moslrou-se grandemente oITendido quando ouviu o
recado. T— «Minha mãi morreu ha ânuos, disse elle ;
é sem duvida alguma mulher pol)re , ou alguma
louca, que se serve de similliantc prele.xlo , para
conimover a minha caridade.
Fácil será imaginar com (juc sobrcsalto a mãi
! octogenária repetiu a sua visita na manhaã seguin-
te: mas ah I em vez de conseguir estreitar nos bra-
ços maternos o querido filho, recebeu por mão de
um ajudante de campo dez ducados, e a intimação
de não tornar a molestar o general. Cheia d'iiidi-
gnação pegou no dinheiro, e atirando com ellc aos
pés do ajudante, disse: — ((Senhor, não \\m a es-
ta casa pedir esmola, vim para abraçar meu filho;
o PANORAMA.
43
se elle repudia sua mãi , cila lambem de hoje por
diante o desconhece como filho.» — As lagrimas
cmbargaram-lhc a voz c não a deixaram prosoguir.
Eslc acontecimento não tardou ninilo que se não
divulgasse jjor toda a cidade , c breve chegou nos
ouvidos da imperatriz, lluhn não podia achar censo-
ra mais rígida do que Catharina 1.°, que nunca
perdia occasião de aliudir ao seu obscuro nasci-
mento , raostrando-se sempre grata para com o seu
bemfeitor.
Mandou chamar a viuva , c tendo verificado que
cila era na realidade mãi do insensível general, or-
denou que Hohn viesse á sua presença : então re-
prehcndendo-o severamente , ordenou-lhe que desse
a sua mãi cm quanto fusse viva duzentos rublos de
renda annual. liohn recebeu o condigno castigo pe-
la dureza de seu coração , não só na publica re-
prehensão que a imperatriz Ibe dera, c(uno lambem
no desprezo geral que desde então soffreu.
Em q\ianto Bohn assim procedia para com sua
virtuosa mãi, antcpunham-se-lbe na corte como con-
traste os nobres actos do general Baiier , que não
se envergonhava de ser filho de pais de baixa con-
dição. Esta parte histórica da vida do distincto ge-
neral é como segue —
No anno de 1712 , quando o exercito russo oc-
cupava o líolslein , sob o coramando do general
MenzikotT, Bauer commandava a cavallaria. Xin-
guem sabia de quem era filho este general , e até
se ignorava o logar do seu nascimento. Acliava-se
então acampado junto a Ilusum. Um dia convidou
a jantar todos os officiaes da sua divisão , e varias
pessoas dislinctas. Quando os convidados se acha-
ram reunidos , mandou chamar um moleiro e sua
mulher , que viviam naqucllas visinhanças. Seme-
lhante couvite , por parte de um general, causou
algum susto aos dois esposos, porem Bauer fez quan-
to pôde para os tranquillisar, edisse-lhe que o con-
vite, que lhes enviara, tinha por objecto o obter al-
gumas informações locaes dopaiz. Ao janlarsentou
ambos a seu lado , e fez ao moleiro varias pergun-
tas acerca da sua familia.
Isto produziu o desejado eíTeito no animo do mo-
leiro , e soltou-lhe a lingua. Principiou por contar
a sua vida ao general , e narrou que lhe pertence-
ra o moinho por morte de seu pai , por ser elle o
íilho mais velho : accrescentou, que tinha mais dois
irmãos, um mercador, e outro também moleiro. —
«Então, perguntou o general, sois Ires irmãos? —
Éramos quatro , replicou o moleiro , mas o quarto
assentou praça de soldado , e nunca mais dclle ti-
vemos novas, o que nos induz a crer que foi morto
era algum combate.
«1'ois vive ainda, bradou Bauer, Icvantando-sc
c abraçando o moleiro e sua mulher : sou eu esse
irmão que julgáveis fallecido I » — É fácil suppòr
qual seria o pasmo dos convidados ao ouvir estas
palavras : lodos se apinharam era redor de Bauer ,
que então accrescentou: — «Tinheis curiosidade
de saber aonde eu nascera , e quem eram meus
pais ; agora . senhores e camaradas , deveis estar
satisfeitos, ^(eu pai foi um moleiro honrado ; este
o logar do meu nasciraento ; e eis-aqui meu irmão,
que eu lenho a honra de vos appresentar. » — O ge-
neral ao proferir estas palavras abraça de novo o
moleiro e a cunhada , e delles se despede até ao
dia seguinte.
No dia immcdiato mandou apromptar um sum-
ptuoso janlar no moinho aonde nascera ; encheu de
presentes e beneficies os seus Ires irmãos , e man-
dou , poucos dias depois, o único filho do moleiro,
seu sobrinho , para Herlin , aonde foi educado , c
alli cm seguimento teve o jovcn Bauer a honra de
perpetuar o nome illustre de seu preclaro lio.
A ÇIEDA »0 IMPÉRIO GnEGO.
nTiMU eu á vista e no pensamento [escreve o gran-
de poeta das Meditações era suas Notas de viajan-
lej Ioda a scena em que se passaram , de muitos
séculos até boje, um sem numero de dramas ou
sinistros ou gloriosos , que todos se me prcsenla-
vam com seus pcrsonnagcns e os rastos que deixa-
ram sanguíneos ou de gloria. Figurava-se-me ver
sahir dos recessos do Cáucaso as dibras levadas do
instinclo de peregrinação, dado por Deus ás nações
conquistadoras como o dera ás abelhas que desam-
param a toca d'um tronco para fundar enxames no-
vos : via a soberba imagem patriarchal d'Ottonião
em meio de suas lendas e rebanhos, espalhando a
sua gente pela Asia-Menor em progresso successi-
vo , e ao acabar nos braços de seus filhos , já seus
logartcnentes , dizendo a Orchão. — «Morro sem
magua , pois te deixo por successor , vai propagar
a lei , o pensamento de Deus , que de Meca \eio
demandar-nos ao Cáucaso; sè caridoso e clemente
como elle , porque assim chamara os príncipes so-
bre o seu povo a benção de Deus. Não abandones
meu corpo a esta terra , que para nós é apenas es-
trada , dcposila-o em Conslanlinopola , no sitio que
eu te indicar no leito da morte.» — Dahi a alguns
annos , Orchão , filho d'Ottomão , acampava junto
a Scutari , nos mesmos outeiros, que matizam ago-
ra negrumes de bastos cyprestes : o imperador gre-
go, Cantacuzeno, vencido da necessidade, lhe dava
sua filha , a linda Theodora , para quinta esposa do
thálamo polygamo : a juvenil princeza atravessava
ao som de musicas aquelle braço de mar, onde es-
tou vendo fluctuar os navios russianos ; ia como vi-
clima immolar-se inutilmente para prolongar-se por
breves dias a vida do império. Dentro em pouco os
filhos d'Orchão approximam-se da praia , seguidos
d'alguns valentes , cm uma noite construem três
jangadas , sustidas em bexigas de boi cheias d'ar ,
e nellas passam o estreito ajudados das trevas ; as
scntinellas gregas dormem ; um mancebo rústico,
que ao alvorecer sahia para o trabalho, encontra os
ottomanos desgarrados , cnsina-lhc s a boca do sub-
terrâneo que vai dar ao interior do caslello ; e «les-
te modo os turcos tem ura pé e uma fortaleza na
Europa. —
Tinham desde então decorrido quatro reinados .
e Mahomet 2.° respondia aos embaixadores gregos :
— «nada emprehendo contra vós; o império ilc
Conslanlinopola tem por limites as muralhas da ci-
dade. » — Mas, ainda assim limitada, não deixa
esta dorrair o sultão, que manda acordar o seu \i-
sir, c lhe diz: — «Quero Conslanlinopola; cora es-
ta idéa não posso conciliar o somno ; Deus me cii-
Irega o império.» — No auge de brutal impaciên-
cia , arrcmeça-se acavallo ás ondas . que ameaçam
traga-lo. — «Vamos [dizia aos soldados no «lia do
ultimo assalto] só reservo para mira a eidade ; ri-
quezas e tudo o mais é vosso. Terá o governo da
minha maior província o que primeiro escalar .i
praça.» — Toda a noile aterra e as aguas foram
allumiadas por innumeraveís fogueiras c lumes, que
substituíam a claridade diurna : tamanho era o fer-
vor dos ottomanos ao aguardar o dia era que devia
cafair-lhes nas mãos a preza.
u
o PANORAMA.
Durante este breve espaço , sob a cúpula escura
de St/ Sophia , o esforçado e infeliz Constanlino
veio , na sua extrema noite , orar cora lagrimas ao
deus do império: — ao despontar da aurora, sabia
elle acavallo , acompanhado dos clamores e gemi-
dos de sua famiiia , para ir morrer como heroe (»)
na brecha da sua capital: — passou-se isto aos 29
de maio de 1453.» — Corramos denso véu sobre os
horrores desse dia.
Tríplice muralha formou cm remotas eras três
recintos, que fechavam e defendiam a cidade by-
zanlina ; todas eram furtes e torreadas: ainda se
conhecem n'uma planta , tirada por um florentino ,
emli22. marcadas cento e oitenta torres, asquaes,
na maioria, se derrocaram , ou tem sido apeadas e
desfeitas pelos turcos para a erecção de edifícios
seus ou públicos ou particulares; assim vai acon-
tecendo á que era nossa gravura appresentâmos , e
que assim mesmo ainda ha poucos annos conserva-
va a grande porção que escapou do incêndio e as-
solação n'um motim geral dos janizaros , por ucca-
sião das dissensões entre Selim cMustaphá; — con-
i flagrações e ruinas, que até o presente século eram
em Constantinopola frequentes.
A TOB^as: QUEIMADA £M C0KrSTANTIN070I.A.
O liono. , Logo veremos porque.
11-S. ^ - Convidámos o leitor para escutar a conversação
IV. travada entre Gonçalo Mendez, o abbnde benedicti-
Iteceios c esperanças. ' no, e o mui reverendo cónego de Lamego, Maitim lii-
cha. Pode ouvi-los agora. Embebidos no seu grave
l)u.>» Bibas não era bobo; era o diabo. disputar, todos três se esqueceram complctamenle
/.s >,,. , . \ 7. ~, ; ; T do logar onde estavam , e do sarau , que depois do
(•) Morreu combatemlo ; nem elle hnlia a culpa do de- , , . , ., , , , ,,
liloravel eíla.lo em «lue achara o império, i:' noiavel que ''«"'''"J"'- ^'>i'lo e alegre ao redor delles , esmore-
um Consliiiitiiio fundasse o império hyzanlino , que se ex- | '"'''' J'' *-' esfriava em paroxismo liiial. A noite cor-
lin-uiu em puder de oulru do mesmo nome. rèra scni que de tal dessem tino. — Sobre o tumul-
o rANORA3IA.
45
tnar dos passos , sobre o ruido do fallar confuso ,
sobre as toadas dos instrumentos , quo affrnu^am ,
ouve-se primeiro o vosear retiimliante do Lidador:
depois as palavras flautadas, escandidas, niellinua-
mente hypocritas do capellão da infanta, e por ul-
timo as falias brandas , tardas , e suaves do bcne-
dictino. Ksta gradarfio corresponde ao progresso de
silencio que principia a predominar na sala : é a
medida do tédio que leva de vencida o deleite na-
quclle ajuntamento lustroso.
i ....«Eis-abi — dizia o Lidador voltando-se para
Marlim Eicha — o que eu havia previsto: eis-ahi
o resultado final do desenfreado orgulho do senhor
de Trava , e dessa desgraçada affeirão da rainha.
Depois do folgar pacifico em jogos de lavolado c
isaráus offcrecem-nos uma festa de sangue.»
«Mas quem sabe se essas novas são verdadeiras?
I — interrompeu o abbadc , que parecia olhar duvi-
doso para o honrado cónego de Lamego.
«Sei-o eu'. — replicou este cora gesto de sobre-
jcenho e de auctoridade. — Ouvi-as do escudeiro que
[as trouxe e — accresccntou com sorriso de rayste-
rio — disse-mo quem tão bem corao elle o sabia, e
jácerca disso me perguntava: — Pois que faremos,
D. Eicha? — È lastima: — é na verdade lastima!
;N'ão me sofTre o animo ver assim um moço ambi-
cioso e louco desacatar com armas rebeldes sua
mãi , sua senhora. Largo campo á cubica de honra
le domínios , se perlende ganhar nome e poder , se
lhe abre em terras d'infieis. Se tem sede de san-
gue , derrame o sangue dos maldílos ismaelitas ,
moabilas e agarenos. Os campos do sul ahi estão
'patentes á ambiçiio dos ousados. Que vão devastar
ias searas dos mouros, derribar as suas povoações e
icastellos, incendiar-lhes as mesquitas, onde diaria-
racnte se repelem as blasphemias, torpezas, e im-
mundicies do abominável alcorão. Deus hade puni-
o : o castigo c infallivel , mas para isso a espada
christã encontrar-sc-ha no ar cora a espada christã,
e a lança roraper.í a cervilheira assignalada cora a
cruz de Jcsu-Christo. »
O honrado cónego invectivava assim, todas as ve-
zes que lhe cabia a talho , contra os sectários de
jMafamedc, porque os conhecia de perto.
«Mas — acudiu o abbade — se o infante (raz es-
se numero de cavalleiros e besteiros: se o mui po-
ieroso arcebispo de Braga o favorece tão claramen-
• se os burguczes da sé do Porto, e os de Coim-
. r I começam a agitar-se , como dei.xara a rainha
'.!• vir a concórdia com seu filho?»
' E impossivel- — • interrompeu Martim Eicha. —
1^'le pertende que o illustre conde de Trava Iheen-
Irigue os feudos e prestamos que tem da munifi-
fiicia real , e que saia destes paços. >'ão contente
•1 isso , pertende lambem que sua mãi lhe ceda
ipremo poder: invoca o exemplo de .Vffonso Rai-
,niiindez , e o direito de succeder a seu pai , sem
lie lembrar que jamais Henrique de Borgonha cin-
íi a coroa de conde, se não houvera sido o es-
de uma filha de Affonso o grande. Que herdou
Jc feito o infante de seu pai? Cm nome glorioso;
Tiais nada. Portugal não é herança dos duques de
Borgonha , mas dos filhos dos reis da Ilespanha , e
D. Thereza é filha do ultimo delles. n
O Lidador sentiu subir-lhe ás faces o rubor da
■nlera ao ouvir estas palavras. «É falso — excla-
3inu elie — que a alguém devesse o conde de Por-
ugal 05 senhorios que deixou a AfTonso Ilenriquez
— a Affonso Henriqucz, di-lo-hei sem receio I —
50 orei Iconez lhe disse: — vai e hasteia o leu pen-
dão de conde nas fronteiras do occidcnle , era que
aos seus ouvidos tinham chegado os gemidos dos
cavalleiros do conde Uaimundo de (ialliza , passa-
dos á espada pelos sarracenos junto de Lisboa. Nun-
ca depois disso, acaudelados por elle, voltaram cos-
tas aos infiéis os guerreiros da cruz. Portugal era
até ahi um paiz devastado : era quasi um deserto ,
por onde corriam á rédea solta os almogavares mou-
riscos : hoje os campos estão cultivados , os castel-
los seguros, os burgos e cidades renascem das suas
ruinas. Respeitai as cinzas do nobre conde : res-
peitai-as ao menos diante de mim , que delle rece-
lii as armas de cavalleiro, c que ainda combati en-
tre os seus homens d'armas. Não sei se vos lem-
brais disso? ! »
O Lidador talvez alludia á conquista de Lamego.
Era acaso uma injuria que elle dirigia ao filho do
vvalid , e não uma pergunta. O certo é que Slartim
Eicha Ciou os olhos no tecto , o depois volveu-os
lentamente pnra o chão , como quem offerecia a
Deus a affronta e se resignava nella. Gonçalo Men-
dez proseguiu :
«Chamais ao infante rebelde contra sua mãi. Não,
vos digo eu ! — mil vezes não ! Por largo tempo o
mancebo generoso viveu nestes paços esquecido ,
despresado , como um infimo homem d'armas. O
seu nome escripto nas cartas e doações , acima do
nome do conde de Trava , era unicamente o que
ainda recordava de quem elle era filho. Escarneo
cruel na verdade ; porque esse que ahi se chamava
infante de Portugal era obrigado a curvar a cabe-
ça diante do senhor estranho. É a esse que elle
vem arrancar o poder, porque o poder est.i cm suat
mãos. Credes que approvo o feito? Não por certo.
.\nlc os barões e ricos-homens — na cúria — deve-
ra requerer seu direito. Mas pcrdeu-o acaso por-
que , esgotado o soffrimcnlo com o excesso da op-
pressão , respondeu á violência com o brado de
guerra ? Os senhores e infanções portuguezes não o
cròem. Se o cressem não o teriam escutado : não o
seguiriam aquelles ([ue ora o seguem.»
O bom do capellão não se deu por vencido, c
com inflexivel tenacidade replicou :
<<\ rainha D. Thereza domina em Portugal: o
conde de Trava é um conde , um rico-homcra , um
alcaide ; mais nada. Os barões porluguczes jura-
ram-lhe lealdade a ella , e é contra ella que se re-
bellam. Dizei-me vós , senhor cavalleiro , de quem
tendes vossas honras, feudos e prestamos? — De
quem , como vós , os tem e-lles?
«A rainha é a viuva do conde Henrique. Não
queirais obrigar-me a dizer-vos o que acerca dei-
la tumultua nesta alma. Basta que responda á vos-
sa pergunla. As honras que possuo herdei-as do
meus avós : os prestamos ganhei-os ;i lança c á es-
pada : foi preço de sangue o que dei por elles. Feu-
do e lealdade? Ricos-homens de Portugal guardam-
no a quem lhes guarda seus foros. Tem estes sido
guardados? Sabemo-lo nós: sabe-o Deus. Elle será
o nosso juiz. n
«O juizo de Deus — tornou Martim Eicha com
mal disfarçada raiva — proferc-se em repto e com-
bate , segundo foro dos hem-nascidos d'Hespanha.
Porque não ides com os accostados que pelejam de-
baixo de vosso pendão, e vivem de vossa caldeira,
ajuntar-vos com o infante? .\flirmn-vos que entre
elle e a filha d'Afronso de Leão ha repto , e have-
rá combate. Tereis ahi o juiro de Deus.»
«Porque eu, — atalhou o Lidador cravando nelle
os olhos indignados — homem alTeilo á viJa de ha-
46
O PANORAMA.
talhas, trabalharei alé o fim, para que irmãos não
derramem sangue d'irmãos em lucta de mãi e de
liiho ; — porque eu o homem que, ao abrir os olhos
no mundo , a primeira luz que vi foi o reflexo bri-
lhante de armas pulidas , e que espero , ao cerra-
los para sempre , vè-las reluzir no volver derra-
deiro delles , tomei a meu cargo o vosso mister , o
mister dos clérigos e letrados da corte, dos homens
de paz , dos prudentes , que saudacs o dia em que
lanças chrislãs topem em escudos dechristãos; que
sorrides á imagem desse dia em que esperais ver
satisfeitos ódios e vinganças mesquinhas. Tentarei
frustrar o atroz pensamento dos raáus , e se o meu
tentar sahir vão , ao menos a consciência hade fi-
ear-me tranquilla. »
O capellão , que sabia qual era o caracter vio-
lento de Gonçalo Mendez da Maia , julgou acertado
não lhe responder : o abbade, porem, que se havia
conservado cm silencio durante a disputa , tomou
nesse ponto a mão.
«Quanto a mim — disse ellc — não me perdoe o
senhor na hora extrema do passamento , se mentem
minhas palavras. Sempre c cm toda a parto clamei
pela paz, c ainda hoje clamo por ella. Também cu
como vós quizera que o infante na cúria dos barões
requeresse direito; mas como vós também quizera
que não Ih'o negasse a rainha, postoque que o de-
mande armado. A tal façanha o incitou o orgulho
do conde de Trava , e o generoso e nobre sangue
que corre nas veias do nobre mancebo. Com a mão
sobre o coração , vos juro que me borrorisa esta
guerra desnaturai. Mas como evita-la? Como ousa-
reis vós tenta-lo ; vós , talvez o único rico-homem
da corte de Guimarães , que ousa ser francamente
inimigo do conde de Trava.»
"Tenía-lo-hei — replicou o Lidador — como leal
cavalleiro. Antes que as novas da vinda de D. Af-
fonso , para accommctíer sua mãi e seu mortal ini-
migo , houvessem corrido de boca em boca ; antes
que os mais intinios conselheiros do nobre Fernão
Perez — dizendo isto , Gonçalo Mendez olhava pa-
ra Martini Eicha — nos podessera asseverar que o
.sangue se havia de verter , já cu o sabia : sabia-o
porque esses vallos alevantados á pressa em volta
do burgo ; essa couraça que os prende ao castello :
os engenhos postos a ponto nos eirados c torres ,
me diziam sobejamente que nos ameaçava guerra.
<iucrra de sarracenos.' IVão vem tão .longe suas ar-
rancadas. Guerra do imperador? Não quebrámos
até hoje nosso preito com ellc. \ causa do temor
existia, pois, em Portugal. O infante não ha Ires
mezes que sabiu daqui , c já muitos castellos o
receberam por senhor. Vi, soube, c callei. Mas a
cúria dos barões e rico.s-homcns da corte está con-
vocada para se ajuntar amanhã. Lá, no meio dos
que servem e temem , eu que não temo nem sirvo,
fallarci bem alto. Mostrarei á rainha que se perde ;
que D. AfTonso tem por si lilhos-d'algo , bispos,
liurguezcs , c villões de bchelrias. Direi ao conde :
— - nobre conde de Galliza , é necess<irio ceder ao
infante de Portugal. — Então , se não fir escu-
tado
«Então?... interrompeu Martim Eicha.
"Então acceitarei vossos consellins. No campo do
infante ainda cabem dez lí-ndas para mais cem ho-
mens d'armas , besteiros (; funiiilmlarios : ainda lá
se pôde soltar mais um pendão ao vento assolador
das batalhas. n
O abbade ia de novo fallar, pensando talvez crt-
mo abrandaria a cólera que se accumulava no ges-
to carregado do Lidador. Mas uma risada que rcs*
Irugiu por cima das cabeças dos três lh'as fez invo-
luntariamente erguer. A fronte de Gonçalo Mendez
desenrugou-se repentinamente. Quasi ao mesmo tem-
po ellc e o abbade soltaram uma gargalhada. Só
Marlira Eicha não ria.
Tinha rasão sobeja.
No calor da disputa nenhum dos três reparara
era D. Bibas que se acercara da columna junto da
qual conversavam. Oboboapplicára por algum tem-
po o ouvido ás palavras violentas do Lidador ; mas
o borburiuho dos passos c do fallar contínuo , dos
sons retumbantes dos instrumentos naquclla immen- '
sidão da sala, o não deixavam perceber senão algu- i
mas vozes soltas que muito lhe excitavam a curio-
sidade. Piodeando o feixe de columnellos, que se-
gundo o gosto árabe unidos só pela base e pelo ci- '
mo formavam a columna oupilaslra em que vinham
repousar os artesões do tecto, trepara manso e man-
so lirmando-se nos lavores da pedra , e se assenta-
ra sobre as grandes folhas de Iodam enlresachadas '
de liguras extravagantes de centauros, harpias, de-
mónios , c gorgonas , em que o architecto mostrara
ceder ás influencias da arle normanda , que come-
çava a expulsar a architectura sarracena dos ediíi-
cios da Ilespanha. Visto naquclla altura , assentado
no capitel , com os braços lançados sobre os pesco-
ços de duas figuras horrendas , era que se assegu-
rava, D. Bibas pareceria também uma crcação des-
vairada da mente do esculptor , se fitando os olhos
brilhantes no reverendo cónego , e fazendo-lhe uma
visagem truancsca, não começasse a cantarolar com
um acompanhamento de risadas estrondosas :
Quem me dera o meu infante
Nestes seus paços reaes
D'ora avante '.
Tra-lirá ,
Ah , ah , ah I
Ovençaes
Do gallego
Só hi vejo a cada instante !
Arrenego ,
Dom Garcia ,
Desses teus aragonezes ,
E também dos portuguezes
Que te fazem companhia 1
Capellão,
Cauzarrão ,
Hão , hão , hão I
ira-lirá ,
Ah , ah , ah '.
Vou fazer de um mouro ao fdho
l'm famoso arremedilho ,
Mui de ver ,
Em que a li te heide mellcr ,
Meu rapado ,
Descarado , ' .,:;; ■ ^'
A comer . > , .
i L'm presunto ■ . ' ;:; ;: .•.
Com seu unto ,
Apesar de São Mafoma ,
K do velho iá de Koiaa ,
Que te toma
l'or um santo ,
O que és tanto
Quanto o demo que te l(í\e
(^omo deve!
Tra-lirá ,
Ah, ah , ah !
o PAINORAMA.
17
D. Bibas fez uma segunda visascm ao reverendo
Martini líicha , rodeou o capitel , e desceu rapida-
mente por entre os columncllos. l)'alii a pouco a
sua voz esganiçada ouvia-se no oulro extremo da
sala d'armas.
O inesperado da jogralidade do bufão tinha fcilo
desatar a rir o i.idador e o abbadc. Não assim o
honrado cónego de Lamego, a quem as allusõcs in-
solentes espalhadas naquella trova salyrica haviam
mortificado ao vivo. A cólera fugira da alma do ca-
valleiro ; mas fora reconceutrar-sc na do sacerdote.
Nunca D. Bibas ousara tanlo : o fogo da revolta la-
crava já no espirito de ura vil bobo I O bom do ca-
pellão agarrou-se a este pensamento para cerrar os
ouvidos á voz da consciência que lhe dizia terem
batido no ah o os motejos cruéis do chocarreiro.
Assim , com meneios entre hypocritas e altivos, af-
fastou-se dos dois sem os saudar , e desapparcceu
no meio da turba doscavalleiros, jurando pela pclle
a D. Bibas, e promettendo relatar ao conde de Tra-
Ta, nessa mesma noita sepodesse, todas ascircuas-
tancias daquella conversação.
A hora, porem, a que o sarau devia acabar soou.
A bella infanta estremeceu ao ouvi-la bater na cam-
pa da torre ahsrran. — Sentiu alargar-se a mão de
ferro que lhe apertava o coração ; a intima agonia
que a politica do conde lhe obrigava a velar sob o
aspecto mentido do contentamento , poderia a final
diíatar-se na soledade em torrentes de lagrimas.
Encostada ao braço de Fernão Percz , c seguida
das suas donzellas , D. Thereza atravessou os apo-
sentos immediatos e recolheu-sc a sua camará. Os
ricos-homens e filhos-dalgo começaram a sahir , e
pouco a pouco a sala ficou deserta. Apenas um ca-
valleiro, com os braços cruzados e encostado a uma
das columnas immediatas ao estrado das donzellas ,
nmovel , e com os olhos cravados na colgadura
,ia porta por onde D. Thereza sabira , parecia en-
tregue a profunda meditação. Uma voz veio tira-lo
daquelle torpor : era a de Dom Bibas , que repo-
treado na cadeira da rainha , olhava para elle fito ,
e lhe psalmeava cm tom soturno, pela solfa do can-
to gregoriano , bastas injurias :
Fora , parvo aragonez ,
Dom buirão.
Tlão , tlão . tlão !
Vai tratar de teus amores
No Aragão.
Tlão , tlão , tlão I
As donzellas portuguczas
Lindas são.
Tlão . tlão , tlão '.
E por isso haver quer uma
Dora buirão.
Tlão, tlão, tlão! . -, ,
A Dulce
Ê bella ,
Donzella ;
Mas flor d'aleli
Não é para ti. ,., . „• ,,
Kirieleison .
Iiirirteison.
Itfqniem cetemam dona ris
Et lux luceat eis.
Ocavalleiropoz-seaouvi-lo, sorrindo, masaquel-
les derradeiros fragmentos das preces pelos extin-
ctos , entoados lugubremente, e reboando uo apo-
sento sonoro assemelhavam-se-lhe aos ecchos das
orações por finado repercutidos por abobada de igre-
ja em Irinlario cerrado. Sentiu correr-llie os mem-
bros um calafrio — não de temor, porque não o co-
idiccia o seu coração — mas de terror — desse re-
ligioso terror que na crédula idade-media ás vezes,
e por mil motivos vãos, vergava os ânimos mais es-
forçados. Era singular o efleito que nclle produzia
a voz roufenha de D. Ilibas ; mas é certo que essa
voz despertava na sua alma lembranças do morte e
uma indizível tristeza. Revoou-lhe então lá dentro
o pensamento de que no cantar do truão havia o que
quer que fosse fatídico, e no seu olhar brilhante o
que quer que fosse diabólico. Sentia b;ilerera-llic eoni
força as artérias frontaes, e sussurrar-lhe nos ouvi-
dos um zimíbiilo intolerável. Esqueccu-se de quem
era o homem que assim se assentara na cadeira real,
para dalli lhe repartir as ultimas injurias que na-
quella noite distribuíra com mão larga. A imagina-
ção lhe transformou o gesto jovial do bobo no aspe-
cto tétrico d'um enliçador, e o seu cantarolar ridí-
culo nos acccnlos sinistros de uma vellia stryga.
Esta espécie de delírio era que havia cabido Garcia
Bermudez — era elle ocavnlleiro — o obrigou a sa-
hir precipitadamente da vasta e já mal allumiada
sala , e a descer ao pateo interior , sem olhar para
traz , sem encarar o bobo , cujo canto soturno fin-
dou n'uma destas gargalhadas, que não parecem
vir da alma , c que contristam , porque , naquelle
que as solta , revelam alienação mental.
Garcia Bermudez parou : o pateo estava deserto :
um cavalleríço estirado a um canto dormia profun-
damente, com as rédeas da mulla possante enfiadas
no braço. O frescor da noite, e a serenidade do céu
scintillante d'estrellas , acalmaram o animo agita-
do do cavallciro ; mas o pulso batia-ihe violento c
febril. O extravagante pesadello dhomem acorda-
do , que tivera , não procedera do bobo ; procede-
ra do lance doloroso por que pouco antes passara.
No meio do sarau , na ebriedade da festa , elle ou-
sara finalmente o que até ahi não havia ousado.
Tudo quanto unia paixão sincera tinha vcheraente ,
enérgico , tempestuoso , tudo dissera a Dulce : esse
amor , que com tanta arte ella soubera conter nos
limites de mysterio, deixara de o ser. !\las aquella
alma , que parecia tão meiga , tão branda , tão
fácil a todos os contentamentos, a lodos os affc-
ctos , achou-a elle indomável c esquiva a tanto
amor. Esta repulsa esmagara o coração de Garcia
Bermudez , e a sua imaginação delirou. O raio
fulminara o cedro : que muito era que elle balou-
çasse pendido?
O cavalleríço despertou gemendo, a um rijo pon-
tapé do cavalleiro : este montou de salto na mulla
cravando-lhe os acicates no ventre ; galgou pelo por-
tal da torre alvarran. e , correndo ao longo da cou-
raça , sem saber como , achou-se á porta da sua
pousada , no bairro coutado c honrado do burgo.
No. meio de desesperação profunda, uma luz tenu(!
lhe bruxuleava na alma. Dulce promettèra explí-
car-lhe o motivo porque rcfusava tanto amor. Es-
ta revelação seria feita no dia immediato. A hora
aprazada fora a do por do sol ; o logar , a galihV
contigua á sala d'armas , que dava sobre os adar-
ves do norte , e que a esse tempo devia estar er-
ma. Era uma noite e um dia eternos, que tinha
de vi\er entretanto; mas a esperança mais débil
arrosta com a eternidade, e bem qae frouxaraentf!
o cavalleiro esperava ainda , postoque não ousasse
dize-lo a si mesmo, e talvez nem sequer o cresse.
D'ahí a pouco tudo parecia dormir uo castello e
48
O PANORAMA.
no burgo. Não era assim: neste velava Garcia Ber-
mudez ; naquelle o conde Fernando de Trava , a
bella infanta e Dulce, líram quatro agonias , tre-
mendas todas, mas todat ellas dilTerentes.
A variedade é o que mais ama na vida o cora-
ção humano. A providencia não se esqueceu de con-
ceder-lhc cm grau infinito a variedade na dòr.
(A. Ucrculano.)
S3C1TC1CIA S.-J?vAL.
Estrume feito d'ossos.
IVão canraremos de repetir que assim como uma
confiança cega em todos os preceitos e methodos
estrangeiros pôde occasionar , e cffectivamente tem
occasionado , perda de gastos e de tempo , enga-
nando os fáceis imitadores, assim também uma des-
confiança absoluta nesta matéria se torna inimiga
do melhoramento que se tem approvado j,í entre
nutras nações , as quaes devemos imitar no que fòr
rasoavel e praticável. Com effcilo , o amor do ga-
nho , e os conhecimentos chimicos tem levado , ha
SO annos a esta parte, a ura auge quasi incrivel ,
a agricultura n'alguns paizes ; c como a industria ,
c o commercio tiram daquella o seu alimento prin-
cipal , não ha tentativa , por mais estranha e repu-
gnante que pareça á primeira visía, que os homens
não tenham feilo para augmenlar o rendimento agrá-
rio , e diminuir a despeza do grangeio. Ora nós es-
tamos persuadidos que nem mesmo os processos e
descobrimentos úteis devem ser indistinctamente
abraçados. Algum ha hi consignado nos escriptos
do tempo , praticado por uma nação, modelo na
cubica do útil , que nenhum porluguez refiectido e
brioso se abalançarei a por em pratica , apesar de
parecer , pelo furor do seu proseguimcnto , ser do
numero dos proveitosos. Eslá elle mencionado na
excellente obra deMrs. deGrandmont c C. de Las-
leyrie , intitulada Jornal dos Conhecimentos usuaes
c práticos, do anno de 183-2, apag. 14, n'uma nota,
onde se lè :=0s jornaes do tempo vem cheios dos
clamores que tem excitado as escavações feitas ha
alguns annos pelos inglezes nos campos de batalha
da Allemanha , para cxtrahir e recolher os ossos
dos mortos. Todos os logares , onde cm resultado
d'acontecimentos desastrosos , de batalhas mortife-
ras , tem os povos deixado seus despojos mortaes ,
vão sendo objecto d'uma barbara mineração: asos-
sadas dos valentes tem sido procuradas , violado o
seu nobre jazigo e em resultado destas profana-
ções , extrahidas , despedaçadas , pisadas , e leva-
das em barricas para irem fecundar as terras in-
glezas. Cora eficito , nem a repugnância natural a
uma tal especulação , nem o respeito devido ao
repouso dos finados , nem a deferência que recla-
ma o sacrificio do valor em todas as almas bem
nascidas , nem a indignação geral poderam até
agora suspender os especuladores insulares de seu
novo e abominável trafico ; antes tem elles . ape-
sar da indignação universal , ])crseverado tranquil-
lamentc no seu propusilo. A moral humana desta
vez , como n'outras muitas , não prevaleceu contra
a cubica. Ao ver o progresso e andamento desta
minerarão , sem que nem a longura do caminho ,
nem o gasto do Iranspnrlc , nem as despezas occa-
sionadas pelas excavações, tenha resfriado o ardor
da cmpreza , devemos concluir que o lucro destes
novos emprezarios de pompas íuncbrcs lem compen-
sado largamente o dispêndio que fazem. Á vista
disto , e ainda que similhante exercício industrial
não mereça achar imitadores nas outras nações,
comtudo servirá este exemplo para prevenir e dou-
trinar nossos agricultores afim de não desprezarem
os ossos dos animaes mortos, que poderem apro-
veitar, como muitas vezes acontece, principalmente
na visinhança das villas e cidades , e n'oulros lo-
gares , cm que estiverem abandonados. =
Carvão aulmat.
.\ssim traduzimos le noir animalise, nova descober-
ta d'eslrumes compostos, mencionada no mesmo ci-
tado jornal a pag. 279. Nós assentamos que não se-
ria totalmente perdida a noticia que em extracto
vamos dar deste novo invento , que ao menos ser-
virá de dar a conhecer aos nossos agricultores a im-
portância dos estrumes, que fazem hoje o objecto da
applicação dMiomens instruídos nas outras nações ,
persuadidos que não ha objecto mais ulil enecessa-
rio na tarefa do lavrador. O ponto essencial cora
efleito c o de multiplicar quanto possível fi'ir a quan-
tidade dos estrumes , lançando mão de todos os re-
cursos que para isso contribuam. Eis o caso : ■ — •
Três sábios agricultores franrezes reflectindo que
nem todos os lavradores tem gados , e os de mais
meios adequados para obter estrumes proporciona-
dos a suas lavouras ; que os estrumes vegetaes são
demorados ainda para aquelles que tem a maté-
ria primeira ; que os outros de matérias animaes ,
em verdade os mais enérgicos , não deixarão com-
tudo de ter seus inconvenientes , sendo um delles ,
entre outros , o d'attrahircm os insectos , vermes ,
e ralos devoradores; á força de tentativas conse-
guiram formar uma preparação que , não tendo es-
tes incor .enicnles, reúne as vantagens de fácil trans-
porte, e d'uma forte virtude ferlilisnnlc. O melhor
methodo d'empregar o tal composto é misturando-o
com outros estrumes, ou substancias apodreridas ,
de que elles se formam. O nome dado ao dito in-
vento , ?iO!> animalise, indica que 6 feito de subs-
tancias animaes, queimadas e reduzidas a pó de
carvão ; mas tudo o mais está ainda secreto , e na
propriedade exclusiva de Jlrs. Salmon , Payen , e
Lupé de Paris , que vendem o producto de sua in-
venção , e dizem elles que i>or um preço muito
commodo. Este pó carbonisado parece estar sendo
muito usado na Bretanha, nos departamentos do
oeste da França , e nos 7 que avisiuliam a cidade
de Nantes. Para os trigos , cevadas , centeio e avca
lançam-o na terra aos punhados como quando se
semèa , a la rolée , já seja ao mesmo tempo que a
semente , já depois delia , porem antes de lhe mct-
ter a grade. Usam-no nas plantações e nas borlas,
lançando um pequeno punhailo do tal estrume na
cova de cada jilanta , ou ao pé delia no rego, se
assim são dispostas. O referente desta nova desco-
berta termina o artigo dizendo, que o carvão ani-
mal não só produz abundantes colheitas , mas tor-
na melhores os terrenos n'uma progressão gradual
a ponto de dobrar c triplicar o valor delles.
J. da C. N. C.
A riLTin* da rasão pelo estudo, exame e reflexão,
pôde conduzir-nos a um grau de saher que nos po-
nha cm contradicção com as opiniões vulgares : —
neste caso, devemos ser prudentes, evitando dis-
putas , e esperando do tempo a madureza das ver-
dades.
60
o PANOÍIA3IA.
49
o ARCO DAS AGUAS LIVRES ÂS AMOREIRAS.
PORTUGAL.
XXII.
O Aqcedccto Dis Aguas Litbes.
;.M 1588 SC tomaram as primeiras disposições para
dprovisionar de aguas a cidade de Lisboa', que de
anno para anno crescia em população ; lambem ha
quem affirme que jd no tempo do afortunado D. Ma-
nuel se fizeram tentativas encaminhadas ao mesmo
essencial objecto, procurando-se as nascentes, don-
de hoje se deriva o principal provimento da nossa
capital. Naquelle tempestuoso e infeliz reinado de
D. Sebasti.io abortou o desifrnio : muito mais tarde
a magnificência de D. João o.° e os copiosos recur-
sos da monarchia levaram a cabo amagestosa obra,
qne é por cerlo a mais notável de quantas Lisboa
encerra no próprio recinto c nas visinhanças. È fa-
brica destinada á commum utilidade; eaiemd'este
grande preço reúne todas as condições de sumptuo-
sa, por tal arte que não duvidou dizer delia o aca-
démico, P.° Estevão Cabral, as seguintes expressõeí.
FíVEREIRO 18 — 1843.
— «Uma das obras de maior magnificência, que no
seu género se admiram talvez em todo o mundo , c
a obra chamada das aguas livres na nossa Lisboa.
É certo ao menos que no género de aqucductos ex-
cede ella os mais famosos, quaes são os de Génova,
de Spolelo , de Cascrta , de Roma , excepto que na
quantidade de fluido as aguas livres comparadas com
alguns dclles são pobreza comparada com riqueza,
pois os romanos e o de Caserta trazem rios cheios ,
e este nosso apenas traz um pequeno regato; mas a
hellcza e a magnificência são sem controvérsia ne-
nhuma aqui maiores.)) — Desde que o sábio padre
escreveu , já lá vai meio século ; tem crescido o
baslecimento das aguas com os muitos mananciacs
descobertos e encanados para o aqueducto geral ;
ha oito annos tem continuados trabalhos engrossa-
do as antigas e inexhauriveis fontes, para cada ve/.
mais a grandeza da construcção corresponder ás in-
tenções que a suggeriram e ás necessidades de uma
das principaes cidades da Europa. — Igualmente,
as queixas que o citado A. e o outro académico ,
V«Qdel!i , appresentaram , relativamente á falta de
2,' Serie. — Vol. II.
30
O PANORAMA.
conclusão e aprovcilamcnlo do vastissimo deposito ,
'<u [liscina das Amoreiras , cessaram , porque logo
nos primeiros niezcs da restauração efTectuada pelo
Sr. D.Pedro 4.", de Saudosissima Memoria, se com-
pletou esse deposito providencial , com a notável
circumstancia de se formar a cascata por onde as
aguas se quebram e precipitam , gozando o bencfi-
oio do ar e da luz com a certeza de entrarem no
amplíssimo tanque mais depuradas. Os antigos, nos
'■eus grandiosos aqueductos, armavam também inler-
niprck^s e quedas cm tanques similhantcs, para que
a agua depozessc tudo o que fosse heterogéneo , c
«•liamavam-Ihe piscina limaria, porque tal obra scr-
'ia para clarificar a agua, deixado o lodo: alem
desta considerarão do illustre povo romano, dam-se
nutras, que a moderna physica aconselha, para que
estas artificiaes cascatas se fabriquem e conservem.
Nem se creia que o P.° Cabral , por sentimentos
de nacional , exaggerou a sumptuosidade do monu-
mento , consagrado jielo rei magnânimo ao bem do
]iovo ; nos escriptorcs estranhos acharemos confirma-
do o seu juizo. Balbiquasi que se exprime nos mes-
mos termos, e accrcscenta [a pag. 174 do Ensaio]
(jue é uma das obras mais mai/ni/icas da íiiodn-na Eu-
ropa , e que púãc ser comparada ás maiores que des-
ta espécie frz a antiguidade. Os mais , que a viram
(• descreveram, faliam idêntica linguagem : nasMc-
morias da R.Acad. das Sciencias deParís, anno de
•1772, Parte 2.", vem delineado o arco grande, co-
mo cousa singular.
Km pouco mais de vinte annos se construiu tão
estupendo monumento, pelo risco do engenheiro mi-
litar, Jíanuel da Maia. Tal é a solidez da construc-
rão que o devastador terremoto de 17o5 lhe não fez
dannio ; não deram de si os pilares, as paredes não
.liiriram ; apenas três dos dczeseis torreões, que ser-
vem de ventiladores, soffreram algum estrago. Co-
meça o aqueduclo quasi a três léguas da cidade na
ribeira de Carcnque ; numeram-se cm toda a sua
exlensão 127 arcos de forte e excellcutc cantaria ;
a altura interior do encanamento é do treze pés :
quando emsitios eminentes prosegue sotlerrado tem
a espaços convenientes uns torreões quadrados cora
.sua janella em cada face , resguardadas por grades
de ferro e redes d'ararae ; e ao atravessar os valies
caminha sobre cleganle arcaria , sem era seu cur-
.s'i desdizer do nivellamento próprio.- — -lia torreões
<iu ventiladores na parte 7nais grandiosa da obra ,
a ponte-aqucducto sobre a ribeira d'AIcantara ; pa-
ra aqui se chama a admirarão denaturaes e estran-
geiros : bella e dilatada ó a perspectiva que de tão
desmesurada altura se avista. Por 3ij arcos , que
unem duas oppostas eminências, sobre uma quebra-
da de espantosa profundidade e na extensão de 400
loesas (♦) segue o abastecimento d'aguas para a ci-
dade nova, a maior e melhor parte da populosa rai-
nha do Tejo. Os arcos , como é bem de presumir ,
variam gradualmente, para qualquer dos extremos,
na dimensão perpendicular e na largura desde a
volta até a base : o maior , por justa antonomásia
denominado Arco grande , tem de altura 315 pal-
mos craveiros, e de largura loO. Parallclos ã nies-
i!ia sumiiluosa poute-aqneducto correm , dos lados
don.iscente epoente, dois passeios dequasi oilo pal-
mos de largo rom seus [)arapcitos, donde paraqu.il-
qiicr destas frentes se desfrurla a pai/agem do nos-
so l)ello clima meridional conforme a variedade das
(•) ]")ào-llH' (i.s cscrijítores estraniieiros ^:464 jtes in?le-
7.'"í . que segiinilo as laliellas do Sr. Barreiros produzem
341 Ji; braças porlugiiezas.
estações, notando-se o espectáculo das quintas , ca-
sas de campo, e terras de semeadura, em vasto hori-
sonle.
Entra o aqucducto na cidade pela parte do no-
roeste , onde chamam as Amoreiras por causa de
nm plantio arruado destas arvores , com fonte pu-
blica no centro, e que fora disposto para servir á
Fabrica das Sedas erecta por conta do Estado no
sitio do Ilato : neste logar , ao occidenle , sobre a
rua que é a sabida e estrada geral desta parte de
Lisboa , está um arco , á maneira dos triumphaes ,
a um tempo esbelto e magestoso , de soberba can-
taria, e pertencente á ordem d'archilcctura chama-
da dórica ; no apainelado do friso da cimalha , pa-
ra a banda , que em respeito á situação diremos
[ainda que vagamente] do norte , lè-se uma elegan-
te inscripção latina , disposta segundo o gosto do
estilo lapidar , na qual se commcmora o pacifico
reinado de D. João 5.° , as dilficuldades e o feliz
resultado da eropreza do aqueduclo , com os encó-
mios costumados das qualidades do monarcha ; tem
a data de 1738 , e marca o espaço de vinte e um
annos , que levou a obra : no apainelado opposto ,
que lhe é correspondente e olha para a cidade , ha
outra inscripção similhante na mesma lingua , que
menciona a extensão de nove mil passos do aqucdu-
cto, e que este fura fabricado are publico, com o di-
nheiro publico , porque se fez a custa da nação ,
contribuindo essencialmente o imposto denominado
real d'arjua. Deixamos de traslada-las, era rasão do
grande espaço que occui)ariam. — E este o monu-
mento commemorativo , que os leitores vêem repre-
sentado na gravura anteposta a este artigo.
Logo contíguo , e immediatamcníc ao sahir do
passeio das Amoreiras para o sul , ha o grande de-
posito ou piscina , de que acima nos lembrámos ;
na forma externa é uma torre quadrangular, com-
posta inteiramente da bclia pedra de cantaria em
que o nosso reino abunda tanto , encerrando um
tanque , construído segundo os rigorosos preceitos
da arte , completo era 1834 , limpo e bem vedado ,
com os couductos necessários, quebrando-se as aguas
nas irregulares saliências da cascata , e que forma
ura espectáculo agradável a vista , ao passo que o
ouvido se entretém com o sussurro que reboa pelas
amplas abobadas , que fecham o recinto. Os fortís-
simos miiros deste tanque marmóreo tem de espes-
sura 2o palmos, e serve esta grossura, entre a bor-
da do mesmo c o muro externo, de espaçosa varan-
da , que oiTerece folgado passeio a muitos concor-
rentes. i>or três dos lados, ficando no quarlo a que-
da das aguas , á banda do poente ; nos lados exte-
riores rasgaram-se amplas janellas : por um lanço
d'escada estreita e torcida sobe-se ao eirado que
remata a forre , lageado , c geral sobre a immensa
abobada , e donde se avista um liudissimo panora-
ma da cidade , que talvez não Icn^a rival , — senão
o que se descortina da eminência do castello — ou
o prospecto que do zimbório do convento da Es-
trella se desfrucla. — O comprimento do tanque [se-
gundo a memoria do P." Cabral] é de 12o palmos,
a largura de 107 , c a altura de 37; do fundo er-
guem-so quatro pilastras de dez palmos quadrados,
que suslenlam as abobadas superiores. iCsle grande
edificio é o que o vulgo eoidiece pelo nome de «i«i
d'(ifjua do llato , ou das Amoreiras.
A zelosa Sociedade Pharmareiílira Lusitana, sem-
pre atlcnla a indagações e trabalhos de publica uti-
lidade, fez a asialjsc cbimica da agua das Aguas Li-
vres , que estampou em o u." 3." do seu Jornal.
o PANORA3IA.
SI
>, o Bobo. ^ .i, .• - •
', r.- 1128.
--:.:-■ V. - ,':, ,■:,-, -'1
■ \ A Madrugada.
O CÉU oriental começava a dourar-se com os pri-
meiros raios de sol ijiie surgiam na vermelhidão da
madrugada. Allumiando com serena c ainda frouxa
claridade o burgo assentado na baixa , iam relle-
ctir-se trémulos no orvalho pendurado nas folhinhas
da relva pelasveigas circumvisinhas ; e batendo de
soslaio nas muralhas c torres do easlcllo tingiam
as pedras alvas e lisas de còr pallida. Era um al-
vorecer de mauhaã de estio no Minho, tão suave,
tão poético e pinturesco , que talvez por isso ahi
collocarara os antigos pagãos o Lethes, esse rio cu-
jas aguas faziam esquecer as penas c os deleites da
vida. Esta virtude , porem , do clima , este deleite
que se encontra no aspecto daqucUas lindas paiza-
gens, no murmurar dos arroios percnnes, nas som-
bras dos arvoredos frondenles. e na risonha verdu-
ra dos prados , não linha podido fazer esquecer ao
ronde de Trava os riscos da sua situação. Atormen-
tado pelos receios do desfeixo da lucta em que lhe
era forçoso entrar , tinha-sc revolvido tuJa a noite
no seu leito , sem poder dormir . ora arrepcnden-
do-se de haver tratado tão duramente o moço Af-
fonso Hcnriquez , ora fervendo-lhe n'alma desejos
do vingança atroz contra o mancebo e contra osba-
rúes de Portugal , que successivamente se declara-
vam pelo bando do infante. A idéa de se ver cer-
cado em Guimarães poraquelle mesmo aquém me-
zes antes fazia esgotar até as fezes o cálix da hu-
miliação , accendia-lhc o orgulho e a cólera a pon-
to indizível. Então punha-se a calcular as probabi-
lidades de uma batalha campal. Tinha comsigo mil
lanças entre cavalleiros deGalliza ed'Aragão: mui-
tos ricos-homens de Portugal pareciam oonserva-
rem-se fieis , não a elle , mas a D. Thcreza ; e os
borgonhezes , companheiros do conde Ilenrique ,
educados nas idéas da absoluta lealdade feudal , e
investidos pela maior parle emtenencias de terras,
e era alcaidarias de caslellos , davam-lhc toda a
certeza de que não abandonariam aquella de quem
tinham seus feudos. Com estes elementos diversos
elle podia ir em arrancada contra a hoste de D. Af-
fonso , superior talvez em pionagcm e besteiros ,
mas assaz inferior a sua em homens d'armas. Se ,
porem , os barões portuguezes que ainda se não ha- j
viam declarado contra a rainha , a abandonassem ,
a victoria não seria tão fácil d"obler : e posto que
o conde tentasse minguar o valor e pericia dos ca-
valleiros d'aquem Minho para se esforçar a si pró-
prio, a lembrança de que um tal acontecimento se-
deixava bem divisar , mas que alguns dos esculcas
apostavam seríiarcia Bermudez, o intimo amigo do
conde ; o único homem que sabia moderar o seu
caracter violento e altivo , c que parecia senhor de
todos os segredos daqucUa alma dissimulada e am-
biciosa. Fosse quem fosse o cavallciro, o conde ro-
deou com elle osvallos, e passando perto outra vez
do eastello , os dois se embrenliarani n'uma selva
profunda , que se estendia a pouca distancia desti;
para a parle do norle.
O cavallciro era de feito o valido de Fernão
Perez. A amisadc dos dois se travara e crescera na
Palestina, (iarcia salvara o conde cm certo recon-
tro, no qual o lilho de Pedro Froylaz, a pé e cober-
to de feridas, mal se defendia já, com um Iroro de
espada partida , da multidão dos sarracenos que o
cercavam. Desde então, companheiros de perigos e
deleites, nunca mais se haviam separado. Era uma
destas fraternidades d'armas de que os tempos bár-
baros nos oITereccm tantos exemplos , porque ainda
então cxislia a individualidade do homem de guer-
ra, hoje completamente anuulada pelo valor ficticio
a que chaniànios disciplina.
Ao passar pelo burgo, o conde avistara o cavallci-
ro, de cujos olhos lambem fugira nessa noite o som-
no , posto que por bem diverso motivo. Pela pri-
meira vez Fernão Perez de Trava desejou escon-
der ao seu amigo os pensamentos que lhe vaguea-
vam no espirito. Todos elles se resolviam n'um sen-
timento único — o temor. Envergonhava-se de si
mesmo , e não ousava confessar a fraqueza do seu
coração áquelle cujas faces nunca vira demudadas
nomeio dos maiores riscos. Procurando dar ao sem-
blante carregado uma expressão d'alcgria , bradou
de longe ao cavalleiro , que embebido em scismar
profundo nem sequer sentira o tropear do ginete :
'( Jladrugador, sois Garcia Bermudcz. Já vejo que
ainda vos lembram as alvoradas d'ullramar.)>
Garcia soflVeou a mula de corpo em que ia mon-
tado, e volveu para traz os olhos. No seu gesto es-
tava impressa a mais profunda mclancholia.
O conde esporeou o ginete até emparelhar com
o cavalleiro, e estendeu a mão para elle. Garcia Ber-
mudez apertou-a na sua , e Fernão Perez sentiu
que esta estava tremula e febril.
«Á fe que mal te foi a noite passada : a tua mão
é ardente : tens no rosto pintado o padecimento. »
« Verdade é, nobre coude — respondeu tristemen-
te o cavalleiro — 'duasnoiíes similhanles áque pas-
sei , e estes cabellos estarão brancos , e este braço
vergará como o de um velho ao sopesar a lança.»
«Mas porque assim padecendo te diriges para a
campina , húmida com o rocio da noite , quaiidn
talvez podesscs repousar agora no somno da madru-
gada ? »
«É porque busco o ar e a luz do céu como um
refrigério : é porque sinto cá dentro um fogo que
ria possível era, entre todas asque o assaltavam, a j me devora, e preciso de respirar livre na solidão. <>
mais importuna e a que principalmente não o dei- O conde viu duas lagrimas bailarem sob as |)al-
xára repousar durante as curtas huras do uma noi- | pcbras do cavalleiro. Parou espantado. Era inau-
te de junho, a qual para elle fiira uma das mais \ dito , monstruoso, impossível o que via. Nunca a.
longas da sua vida
.\ssim apenas a luz duvidosa da aurora raiava no
oriente , já a ponte levadiça do eastello de Guima-
rães descia á voz impaciente de Fernão Perez,
montado uo seu ginete andaluz. Os atalaias viram-
no sumir entre a casaria do burgo , e d'ahí a pou-
co tornar a apparecer alem dos vallos alevantados
á roda da povoação, .\companhava-o já outro caval-
leiro, cujas feições a escaca luz da madrugada não
dor de feridas , a sèdc nos desertos , a fome nos
caslellos sitiados, eaté a morte de amigos querido.s
no campo de batalha, lhas haviam arrancado. Oc-
correu-lhe então um pensamento súbito , porque
Fernão Perez era hábil em conhecer os affectos hu-
manos. Parou , e cravando a vista de lince no ros-
to de Garcia liermudcz , disse-lhe no tom firme e
positivo de quem descobrira um segredo : —
«Garcia , tu és infeliz pelo amor I »
o PANORAMA.
o caTalIeiro corou levemente , e com a toi afib-
jçada respondeu : —
' É verdade I »
O conde sabia que cllc amava Dulce : toda a cor-
te o sabia. Fernão Pcrez folgava com aidca de pren-
der por laços mais fortes que os da amisade aquel-
le esforçado homem de guerra á fortuna de D.Thc-
reza e á sua. Dulce seria disso um penhor, e a af-
feição particular que cila mostrava ao cavalleiro per-
suadira o conde e a infanta de que os seus intentos
e desejos seriam l)revemcntc cumpridos. A tristeza
de (íarcia , a que não achava outra rasão possivel ,
depois de um sarau a que tinham assistido tantos
cavalleiros mancebos e genlis-horaens , lhe fez crer
que entre os dois amantes se alevantára alguma
destas procellas , cora que o suão mirrador do ciú-
me costuma entenebrecer ás vezes o céu risonho
desta quadra da vida — tão bclla e tão passageira.
A resposta de Garcia o confirmou nesta idéa.
«Dulce trahiu-te , pois?» proseguiu o conde sem
(irar dellc os olhos.
"Não: — replicou o cavalleiro — porque nunca
fui amado por ella '. »
Estas palavras erara uma fria e morta expressão,
eomo para representar as paixões violentas o c sem-
pre a linguagem dos homens : e todavia no accento
com que haviam sido proferidas rcvelava-se bem o
martyrio atroz do orgulho offendido c do amor des-
prezado, que ralava o coração de Garcia.
" Nunca ! '? — interrompeu Fernão Perez. — Cria eu
•o contrario : — tinha talvez rasão para o crer. Se,
porem, não é Dulce a dama dos teus alTectos , ou-
sarei eu perguntar a Garcia Bermudez o nome da
sua amada e a causa do seu padecer?»
No tom destas palavras havia o quer que era de
ironia e motejo.
«Conde de Trava — replicou o cavalleiro — só
disse que jamais fui amado por Dulce : não que eu
não a amava. Nunca o encobri a ninguém , e vós
sabeis que muitos segredos meus , que todos igno-
ram , nunca de vós os escondi.»
O modo sentido edo amarga reprehcnsão com que
Garcia respondera , fizeram conhecer a Fernão Pe-
rez que a ferida aberta naquelle coração era dolo-
rosa e profunda. Então, estendendo de novo para
elle o braço , disse-lhe sorrindo :
«Vamos: fallemos serio, e perdoa o meu gracejar.
Se amas Dulce , ella será tua. Cóleras de amantes
passam como a nuvem varrida do norte ; — e que não
fosse assim, seria eu o tufão que a alTugentasse. Sa-
hcs que Dulce é a filha adoptiva da rainha. Será
tua esposa a um aceno do conde de Trava ; e não
é o conde de Trava o teu mais verdadeiro amigo?
Oh , abre-me o teu coração ! »
E apertava entre as suas a mão do cavalleiro.
Garcia IJormudez alevantou p.ira elle os olhos hú-
midos c tristes. Por algum tempo ficou era silencio,
e por fira exclamou :
«Não sabes o mal que me fizeste; não sabes o
bem que ora me fazes! Suflocava-me o peso da mi-
nha agonia: deixa-la, emfim , dilalar-se I »
l'.nlão, seguindo por meio da selva, narrou ao con-
de Indo o que se passara na véspera, e a larga his-
toria do seu desditoso amor , que o mundo cria re-
tribuído e feliz. Aquella narração eloquente, como
a paixão Ih'a ensinava, chegou a commover o ani-
mo de Fernão Perez, que, distrahido a principio,
escutara pacientemente essa larga confidencia, com
o único intuito de tornar mais Íntimos pela grati-
dão os laços (jue prendiam á sua surte uru homem,
de cujo esforço tanto carecia na difficultosa sittia-
cão era que se achava. — Apenas Garcia cessara
de fallar, o conde bradou — e desta vez as suas pa-
lavras vinham da alma :
«Cavalleiro, Dulce será tua mulher: juro-o pe-
las cinzas de meu pai ! »
Era o mais grave juramento de Fernão Perez.
Poucas vezes o ou\íra Garcia Bermudez jurar pe-
las cinzas de Pedro Froylaz.
«Dulce — proseguiu o conde — c orphaã e nobre;
por foro de Portugal á sua mãe adoptiva , senhora
dos prestamos de que cila é herdeira , pertence es-
colher aquclle que hade desposa-la. Tu serás o es-
colhido , e se-lo-hás talvez hoje mesmo. AfErma-to
o conde de Trava ?»
O cavalleiro ficou por largo espaço pensativo. Rc-
ncxões encontradas tumultuavam no seu espirito.
Nestas eras civilisadas em que a idéa do amor é
mais pura nos corações que o coraprehendem , ne-
tdiura animo generoso deixaria de recusar com hor-
ror esse meio violento de satisfazer seus desejos.
Naquclles rudes tempos , porem , a generosidade e
a delicadeza dos alTectos moracs era mais um ins-
tincto confuso que uma doutrina definida , gravada
na alma pela educação e pelas crenças sociaes. Era
por isso que Garcia hesitava entre o intimo aconse-
lhar de uma nobre consciência, e o cego desejo de
paixão ardente. A tenuissima esperança que ainda
lhe restava fez triumphar , em fim , a sua natural
generosidade :
«Não — disse elle — não quero dever á obediên-
cia , o que só quizera merecer pelo amor.»
♦ Que importa? — interrompeu Fernão Perez. —
Deixa , Garcia , aos trovadores essas alTeições , que
se pagam de submissão c suspiros. Juramento feito
pelas cinzas de meu pai , nunca deixei de cumpri-
lo. Poderia agora faze-!o?»
O cavalleiro pareceu meditar um momento : de-
pois accrescentou :
«Bera o sei; mas promette-me uma só cousa.»
«Qual ('•? — atalhou vivamente o conde.»
«Que não será hoje que o cumpras.»
«Oh, quanto a isso — respondeu Fernão Perez sor-
rindo— não o jurei eu. Nem poderia jura-lo. O con-
selho dos barões, que vai daqui a pouco ajuntar-se
nos paços de Guimarães deve ser demorado e tem-
pestuoso. Conheces o que lá hade tralar-se ; e que
não conto com todos os rieos-horaens de Portugal ,
como conto comtigo. Teremos brava batalha.»
" Em quanto este braço poder menear uma acha
d'armas ; em quanto nestas veias houver uma gota
de sangue , aquella ferirá sem piedade os teus ini-
migos, este será derramado para te defender a ti.»
O conde cahíra naturalmente na realidade da vi-
da , e voltara ao habitual egoismo de que por mo-
mentos Garcia Bermudez o fizera sahir. Quando o
avistara , ao atravessar o burgo , tinha-lhe occorri-
do consultar o cavalleiro , cuja mestria de gucrr.i
elle conhecia, sobre o systema que devia seguir ao
começar a lucta com AlTonso Henriquez, lucta que
bem conhecia ser inevitável. Aproveitando o ponto
cm que tocava quasi imprevistamente, foi, sem re-
velar nunca os receios que o assaltavam , condu-
zindo a conversação de modo, que, depois de have-
rem rodeado o bosque , ao entrarem no castello, os
dois haviam calculado e disposto todas as traças que
julgavam opportunas para chegarem uatiuella guer-
ra iminiuente a um desenlace feliz para a bella in-
fanta de Portugal , e por consequenria para o am-
bicioso filho de Pedro Froylaz. — [Contínua.]
o PANORAaiA.
53
o HOTTENTOTE.
DK3CRKTEM0S O Celebre Cabo de Boa-Esperança no
volume primeiro da 1 .' Serie ; no 2." a pag. 2G4, e
no 3.° a pap. 18 , referimos os costumes e índole
das Tarias nações decaffres, que cstanceiam pela
costa oriental d'Africa , nomeadamente nas vastas
possessões portuguezas : a pag. 380 do vol. 1.° da
presente Serie demos noticia dos colonos do sertão
do Cabo ; resta portanto fajlar dos hotlentotes , po-
Toaç.io indígena dessa ponta de Africa a que impo-
zemos nome , e que , apesar de hórridas tormen-
tas , para os nossos descobridores foi de feliz pre-
»agio abrindo-lhe a rola da índia. — A raça hotten-
tote , de continuo acossada pelos colonisadores , ha
muito que buscava refugio nos áridos desertos ser-
tanejos : as vexações dos hoUandezcs e dos que lhes
succcderam não só a tinha reduzido em numero ,
mas pri\ando-a pouco a pouco do direito de apas-
centar seus gados a sujeitara a um jugo mui pare-
cido á escravidão : a final os inglezes a emancipa-
ram era jiinho de 182S ; e os hottentotes do Cabo,
ao lodo trinta mil individuos , foram admiltidos a
gozar os mesmos privilégios e direitos que a popu-
lação branca da colónia.
Os hottentotes tem os ossos das faces mui promi-
nentes , c ao contrario o queixo pontagudo em de-
masia : o nariz extremamente chato c as ventas mui
abertas: a boca rasgada guarnecida de miúdos den-
tes alvíssimos; não tem feios olhos ; e proporcio-
nalmente áquella forma de rosto as feições são re-
gulares ; é engraçado e ágil o seu modo de andar :
as mulheres são liem afiguradas , e tem mãos e pés
pequenos e bem feitos , como não era d'esperar em
gente rmlo.
Esla casta africana é dotada de bastante presen-
ça d'espirito , e de animo reflexivo e reservado ;
desve!a-se no paslío de seus gados, porque é es-
sencialmente pastoril , nom tem idéa dns rudimen-
tos d'agrieultura : não srmí'a nem planta; nem se-
quer sabe fabricar manteiga c queijo , fazendo ns»
do leite no primeiro estado liquido. — São porem
05 hottentotes destros na caça , cicrcicio em que
muito os auxilia a vista perspicaz : como caçadores
d'elephantes não só desenvolvem habilidade mas
também ousadia.
O vestuário desta gente consta principalmente de
uma capa de pelles de carneiro ou de feras , cosi-
das com tiras das tripas dos mesmos animnes : a
capa serve de cobertor ,á noile e de vestido de dia,
trazendo-a aberta se faz calma , e conchegada a»
corpo SC ha frio ; quando está velha aproveila-se
para cobertura da cabana ; se o dono morreu, nella
o amortalham : afora ella não tem o hottentote mai.s
fato que uma espécie de avental ou tanga , penden-
te da cintura. Os que mantém tracto com os em-o-
peus adoptaram algumas commodidades no trajar,
e usam chapéu, pantalonas, e andam calçados, co-
mo se vê na gravura , imagem de ura hottentote
emancipado.
Bem ocerer b mal fàzbr.
(Memoriai insul;maB.)
= 1531 =
IT.
Bem qxisrer '.
' ,. E não só foy espelho ile
perfeições & graças, ilolada de
gentis parles ; mas vivendo le-
ve alffus lanços de rara vlrlu-
' " de, &dÍL'nns de fazermos d'el-
les particular memoria.
, Mo/inrch. Liisilani!,Tom.3-°
■ ' i. 0. , Cap. 20, parj. 98.
Se uma grande resolução tem o poder , quasi sem-
pre , de abalar por tal modo , que nem tempo dei-
xa para a reflexão , é de ordinário incentivo para
fortes e vigorosas acções. — .V.ssim pelo menos acon-
teceu com os sorprehendidos companheiros da illus-
tre viuva apoz o atrevido rapto de .\ntonio da Ca-
mará.
D. .Águeda lutando com sua grande indignação ,
e sua diír ainda maior , não sabia , no principio .
que partido tomasse , mas lireve recobrada da pri-
meira e tão esmagadora impressão , cora animo va-
ronil , que de família tinha , pensou em que a vin-
gança e a justiça seguissem de perto a oITensa e o
erro , se não crime. Por sua ordem alguns da co-
mitiva partiram a todo o correr de seus bons gine-
tes para a cidade do Funchal dar parte ás justiças,
postas alli por eirei , do que era acontecido , e pc-
dir-lhcs em nome das oíleudidas prompto desaggra-
vo á sua affronta.
Despira a habitação de .\ntonio da Camará o in-
voltorio silencioso com que se disfarçara. Como que
a varinha de condão de alguma boa fada , renovan-
do os sonhos queridos da nossa infância — tão sau-
dosos sonhos ; — tinha tocado a nossa morada : atra-
vez das janellas c gelosias abertas divisavam-se ca-
marás e salas custosamente adereçadas ; entornaia
festivas harmonias , sorria por todos os lados a h;:-
bilação alegre nomeio de suas veigas e cerrados ar-
voredos, 1 ; .1 • .
íii
o PANORAMA.
De feito era uma fada, a mais poderosa de quan-
tas fadas passeiam pelo mundo formosissimo das ima-
ginações , qiic Indo aquillo fizera — o amor.
No meio de uma camará aonde todos os primores
da riqueza pareciam tcr-sc dado palavra, c em que
o ouro e as perfeições da arte disputavam primazias,
solire os vistosos matizes das alfombras e tapetes ,
e debaixo dos tectos brilliaiiles sobresaliia uma fi-
gura nobre que pela còr negra de seusveslidos sin-
gularmente contrastava com o risonho aspecto de
quanto a cercava : era D. Isabel. Eslava ella assen-
tada sem mostras de abatimento ; altiva e orgulho-
sa a fronte, mas baixos c modestos os olhos. A pou-
cos passos António da Camará de pé c cora os bra-
ços cruzados contemplava com ávido silencio aquel-
la formosa e digna mulher, Ião digna e tão formo-
sa, que o audaz cavallciro, timido agora, como que
receiava aproximar-se-lhc ou quebrar a solcmne mu-
dez que alli reinava. Apesar de tão calados , havia
comtudo enire os pensamentos de ambos um vivo e
enérgico dialogo.
Largo espaço permaneceram assim : ella semque-
rer confiar aos lábios o que n'alma sentia ; clle sem
ousar interrompe-la. Mas o incêndio que lá dentro
lhe lavrava era mister rebentar , que por mui vivo
já não havia contè-lo. Bem certo c que para o amor
não ha dilliculdades. — DiíTiculdade e grande era na
espinhosa posição em que se achava o excessivo
lamante , pouco segura a consciência e aguilhoada a
vontade , o encetar conversa , que se por um lado
podia tornar-se desejada , por outro tinha seu que
de assustadora. Todavia a acção eslava feita ; era
necessário portanto sahir do enleio. — -Por fim os de-
sejos do amor venceram as rcprehensõcs do dever.
"Km lai cabimento cahi , formosa prima» — dis-
se .António da Camará com voz sumida e incerta —
«([uc nem já uma palavra, nem uma, vos mereço ! »
«.Melhor vos cabe avós sabe-lo do que a mim» —
respondeu a nobre dama com mui fera e soberba fi-
dalguia de animo , de modo que o galan de novo
guardou silencio , mas desta vez mais triste do que
altivo.
Fallando com António da Camará, erguera D. Isa-
bel para elle os olhos cheios de pura indignação, que
ainda da violência qne lhe fora feita lhe ficara, líai-
xára-os de novo , calando-sc. .Aias depois , quando
apoz longa mudez os ergueu desleixada, comoqucm
desperta de pondemso meditar , deu com o extre-
moso amante que ao lado lhe ajoelhara cm silencio
complelo.
"Que fazeis, senhor.'» — perguntou D. Isabel com
gesto já mais brando, que não havia resistir a lai
excesso de amor.
António da Camará quiz responder : faltou-lbe ,
porem, a voz, cduas lagrimas amargas lhe escorre-
garam pelas faces. .4quella alma orgulhosa e firme
em suas vontades cedia á priiiuíira e única fraque-
za de toda a sua valente e vigorosa vida.
"Vedes, senhora?» — disse elle ao cabo, valcn-
tlo a dominar a (-ommoção que o assaltara — «vedes
'1 que heis feito de mim .' Que fui eu e que sou ho-
je? dizei-o .... Apenas me dobrava a elrei : nunca
tremi , niuica me abaixei a pedir nem a rogar vil-
mente , nunca uma lagrima pueril me envergonhou
esle rosto . . . nunca ! . . . E agora ? . . . Dobrei-mc a
Imscar-vos nas sombras da noite como se precisasse
iiccultar um crime; abaixci-me perante vós e os vos-
sos insultos , minha prima . . . lenho pedido , lenho
rogado . . . e peço e rogo de joelhos como o faria a
Deus . . . Gaslei aniios de vida a pensar eni vossos
aggravos e a procurar — dizia cu — desforrar-me
d'elles ... Ah ! que a mira mesmo me enganava . . .
Não , não era uma desforra que buscava — bem o
o sinto aqui — não era . . . Era a vossa vista, senho-
ra , era uma esperança mal sonhada que eu no co-
ração embalava , no mais fundo do coração , com
amor e desvellos de pai. . . . e choro aqui, formosa
prima , agora que a vejo quasi perdida e murcha
essa esperança que eu creei sempre tão verde . . . e
choro .... Que fui eu, e que sou hoje? dizei-o . . .
Aqui o fogoso amante parou fazendo soleranc pau-
sa. Ergueu-se lentamente, e apoz momentos de con-
sideração continuou com voz de severo sentir, que
ao seu aspecto um lanto leviano nunca ninguém lhe
suspeitara.
«Restos venerandos de meus honrados avós, não
me envergonheis da minha fraqueza. Quebrai, se é
possível , com as cabeças despidas as vossas loisas
de pedra , callai as reprehensões do tumulo , surgi
e vinde com os olhos que d'antes tinhcis, vinde ad-
mirar esta por quem me esqueci da herança que me
legastes, porquem regeilei gloria ébrios, por quem
me fiz tão fraco e tão covarde .... Olhai , senhora,
a que me vós reduzistes ... O bom nome , a boa
fama, as boas c leaes acções, tudo por vosso respei-
to desprezei , tudo se me varreu da lembrança só
por este amor que amo tanlo . . . Eis-me reduzido a
mendigar alTectos , e a lastimar fróxas magnas , en
que poderá zombar d'umas e dominar os outros ....
Cahi em erros por vós , formosa prima , cahi , não
vo-lo nego . . . mas Uido o que fiz e o que faço não
vos movem antes ao perdão que á vingança? Talvez
por leviandade o tomásseis. . . ah! não. — Foi pu-
ro c ardente amor — tão puro c tão ardente que nem
eu sei se podéra sè-lo mais ... Ai ! llór da minha
vida, tão murcha edesfolhada, quem te fará já ago-
ra reviver?... Bem o podieis vós, minha prima....
Oh ! tende dó de mim , que alTronto sem desmaiar
as lanças e os pelouros da guerra, c que desmaio e
desfaleço perante vós que inda mór guerra me fa-
zeis . . . Mas que é isto? supplicando amor eu que
em troca só lucro desdéns? A que exlremo de bai-
xeza me desci ! . . .
E o incansável galan media a sala a passos des-
compassados , com verdadeiro desespero. A própria
incohereneia de suas palavras ; seus gestos violen-
tos , e sobretudo a energia com que fallava , iam
pouco a pouco movendo a gentil viuva a mais bran-
dos sentimentos do que alé alli mostrara. Apesar
de um tanlo leviano na apparencia , o que talvez
lhe vinha da proniptidão com que tomara suas re-
soluções, era conhecido por um caracter forte e vi-
goroso. Ninguém melhor do que elle sabia prose-
guir elevar acabo uma decisão tomada, e era, por-
ventura, esta força de vontade que assim lhe arrei-
gava no coração tão infeliz amor. Primava entre to-
dos na ilha , que era elle fidalgo entre os de me-
lhor nome , o valente entre os de maior fama. Go-
sava de credito e consideração geraes , e tinha as
qualidades de um bom cavallciro, as quaes nem
por seus des\arios de todo se haviam escondido aos
(dhos de D. Isabel, (^om isto, e com tão grande af-
fecto n'alnia, com aquella paixão desregrada que
o levara a commetter esses mesmos desatinos, que
se por um lado eram olVensas , por outro eram pro-
vas enérgicas, quem resistiria ao arrebaíamenlo do
seu fallar, aos transportes do seu sentir?
Entre compassiva o agravada luctava a illuslre
viuva comsigo , sem acabar em conceder o deseja-
do perdão, que seria sem duvida seguido de senti-
o PANORAIUA.
55
menlos mai? ternos ainda : pondcr.mdo de ura lado
o extremo do homem que alli via tão martyrisado ;
e do outro a memoria do defunto , e os fatiares do
luundo, cousas qiic pouco a jiouco iriam — deveras
o cremos — perdendo ora seu espirito a intensida-
de ; quando rumor alto que soou lá fora , e que á
maneira de um ccho se espalhou pelo interior , a
interrompeu nas suas cogitações , era bem raá hora
liara o infeliz António da Camará , que lá comsigo
revolvia os mais violentos projectos. Augmentava o
ruido fora c dentro , e augmentava com ellc a an-
ciã intima de D. Isabel , que já estava habituada
aos excessos do cavalleiro, e que alli se via desam-
parada em seu poder. Submisso fora elle até en-
tão , mas quem poderia embaraçar tão fogoso cara-
cter? Xão era bem passado um credo quando um
pagem bateu apressado á porta da camará.
a Que perlendeis?» perguntou o cavalleiro com
modo impaciente , indo ellc mesmo abrir.
«O ouvidor da capitania acerca-se de vossa mo-
rada com toda a sua gente , alcaides . meirinhos e
juizes de todas as villas e logares , trazendo obra
de 150 homens em sua guarda e auxilio. — Acom-
panham-nos lambem os servos c homens d'armas
da Lombada do Arco , fazendo ao lodo irm temero-
so esquadrão.
.\ntonio da Camará ouviu tudo com perfeito so-
cego , e como que um raio de alegria lhe translu-
ziu no semblante :
«Não tendes mais que dizer-me?
«Tenho que pedir as ordens que V. Síercè for
servido ordenar-me.
«Ide, dizei que aferrolhem as portas — se o não
estão já — ao ouvidor : que apparelhem as armas c
se aprestem para a defeza até á ultima.
O pagem obedeceu.
«Ainda bem» bradou elle com grande força ape-
nas se viu só cora D. Isabel «ainda liem I — Pode-
rei mostrar-lhes que sou o mesmo homem que era.
Darei emfim pasto a esta anciã que rae rala. Terei
armas para quebrar e sangue para verter.» Assomou
a uma janella donde se descobria o campo por en-
tre o arvoredo e continuou: «Vinde, vinde, Sr.
ouvidor , nem todos os vossos esbirros villões pode-
rão valer contra o braço desesperado de um caval-
leiro. Aqui . senhora prima , não é já um partido
desigual. Ha braços e armas de um c outro lado.
Vou ter homens na frente e uma espada no punho.
«Vollai-a antes contra mim.
«Não. — Deus dirá contra quem...
«Que tentais fazer .'
«Ser homem. Vinde, senhora, vinde comigo.
« .\rredai-vos, que vos seguirei. — Aonde me con-
duzis?
« A ura sitio em que podereis ver tudo o que vai
passar-se.
Nada mais disse.— D. Isabel seguiu-n quasi ma-
cliinalmenle até chegarem a um alto eirado no ci-
mo das casas, donde se descobriam todos os recan-
tos da habitação c todos ^s campos visinhos. Nos
pateos da casa , e nas salas e camarás, ha pouco
tão festivas , não se viam senão armas e soldados.
No campo a hoste do ouvidor , remoinhando como
um bando de abelhas no seu colmeal, parecia dis-
piir-se ao assalto. I.á viu ella os seus leaes servido-
res . de todos os mais activos; via sua irmaã c al-
guns parentes ; mas viu lambem que os de dentro
não cediam em força aos de fora , que os animava
o espirito de seu amo e capitão. Viu erafim que o
resultado , não podendo deixar de ser fatal para os
dois partidos, reunia coratudo maior numero de
probabilidades contra os seus defensores, .\ntonio
da Camará esta>a a seu lado, calado, apontando-
Ihe significativamente o espectáculo que aos olhos
se lhe oíTerecia , c deixando um quasi impercepti-
vel , mas tremendo . sorriso llorir-lhe nos lábios.
Passou-sc bre\e pausa. — D. Isabel pondo os olhos
nelle com senhoril maneira c singular presença de
espirito, (juc nunca a abandonara , rompeu nestas
palavras.
«A quem julgais vós, gentil primo, que uma da-
ma honesta possa conceder um puro affecto : ao
que lh'o tentar conquistar com espectáculos san-
guentos e espantosos de parentes , amigos . e quasi
irmãos degollando-se á porfia , ou ao que fór capaz
de \ima nobre e generosa acção , poupando muitas
vidas e muitas almas? . . . respondei. . . .
Apoz um momento de hesitação o cavalleiro tra-
vou da mão de sua prima, que desta vez o deixou,
e sem dizer palavra desceu á maior sala das casas.
Chegado alli conduziu-a ao logar principal , c vol-
tando-sc para um escudeiro disse :
«Fazei abrir as portas ao Sr. ouvidor. Que ellc
e suas justiças se sirvam de entrar.
Pouco depois o ouvidor e todos os seus entraram.
.Si7i'a Leal — Júnior.
[Concluir-se-ha.J
EpITOMF. da VIDi DE LllZ DE CaMÕES.
{Continuado de pag. 32^.
.\ssira foi por algum tempo vivendo na ultima in-
digência a cargo de algumas almas bemfazejas, até
que a Moçambique aportou a nau Santa Fé trazen-
do a seu bordo vários fidalgos , e amigos do nosso
vate. Quiz Luiz de Camões aproveitar a occasião e
iivrar-se de tal captiveiro , embarcando-se na nán ;
mas o sórdido governador o embargou por duzentos
cruzados , pretextando ser a importância das des-
pezas que com elle havia feito iia>iagem desde Gi"ia
a Jloçarabique, e sem duvida á sua partida teria con-
seguido obstar , se por ventura Heitor da Silveira .
António Cabral, Luiz da Veiga , Duarte de Abreu.
António Ferrão . Diogo do Couto , e outros cujos
nomes ignorámos , e que mereceriam ser eternisa-
dos , não se cotizassem para pagar a divida e de-
sembarga-lo. Por este til preço , diz Faria , foi ven-
dida a pessoa de Camões , e a honra de Barreto .'
Livre das garras do desalmado go\ernador em-
barcou-se alfim na sobredita nau com os seus ami-
gos, trazendo em si os Lusíadas, c chegou a Lis-
boa , depois de dezeseis annos de ausência, de tra-
balhos , e de relevantes serviços í-^. Dois succcf-
sos aconteceram porem , que deviam penetrar de
profunda dõr o coração do poeta , e foram com.i
corredores ou tristes presagios dos desgostos que o
es[)era\am. .\quellc seu grande amigo e valedor .
Heitor da Silveira, fallcceu no mar e quasi á \ista
dos penedos da serra de Cintra ; e a cidade do Lis-
boa veio achar abrazada na força da peste horro-
rosa , que no anno de lo70 a assolava , e que se-
gundo os melhores cômputos levou perio de seten-
ta mil almas '
Reinava elrei D. Sebastião , ou antes era seu nu-
(«> Drz a Memoria Histórica e Crilicn acerca Je Ca-
mões, fallando da náii Sanla Fé: — "Pude aflirniar-se ([Me
u nunca surrou as au-uas de Porlngal um vaso com carrcga-
u cão mais rica de fama e gloria para a gente lusilaca. ^'
i«
o PANORAMA.
me reinavam privados, validos e enrcdadorcs, que
abusando da inexperiência daquelle jovcn monar-
cha , c da educação fanática que elle rcceljòra , o
tornaram em seguimento , por um louco amor de
falsa gloria , victiraa infeliz , causando a sua per-
dição c a nossa ruina! Com o pretexto da peste fa-
ziam os validos discorrer elrei pelas províncias , e
em seu nome , c em sua ausência iam governando
o reino a seu sabor.
\estc estado do cousas difficil devia ser a Ca-
mões o conseguir fallar a elrei, c iuda mais dif-
ficil agradar a seus ministros c privados , quando
lhes appresentava em seu |)ocma offerta que encer-
rava conselhos tão verdadeiros quanto eram ousa-
dos. Por isso dois annos decorreram primeiro que
Luiz de Camões pudesse dar á luz os Lusíadas , e
só era 1372 é que na cidade de Lisboa appareceu
a primeira edição , dedicada a elrei D. Sebastião ,
(]ue apesar de entregue todo á sua malfadada em-
preza africana , acolheu todavia benigno a offerta ;
mas nem por tal pagou generoso ao oflercnte , pois
consta lhe mandara dar apenas a mesquinha pensão
de quinze mil réis , com o ónus de residência na
corte , c encargo de tirar lodos os seis mezes novo
alvará para a cobrança delia.
Em quanto os ministros c validos d'elrci , entre
osquaes se contavam, como principaes personagens,
seu confessor, o 1'.^ Luiz Gonçalves da Camará, e o
irmão deste, Martim Gonçalves da Camará, levavam
este joven monarcha a remunerar por modo tão im-
próprio (lezeseis annos de bons serviços militares ,
e uma carreira preclara de eminente mérito littcra-
rio , o publico acolhia a obra com o maior applau-
so , e ^ingava seu auctor da injustiça dos cortezãos.
IVem deve admirar que Camões não achasse favor
e amparo em uma corte onde os sycofantas ha-
viam podido por suas vis injurias indispor o incau-
to e inexperiente príncipe contra sua excellente avó,
que acabaram com desgostos ; e afastar do seu lado
seu digno aio, D. Aleixo de Menezes, para o pri-
varem de maduros conselhos.
.V curte anilava por esses tempos de tal modo
embevecida na louca e temerária expedição d'Afri-
ea , que custava sommas immensas , c o povo em
estado tal de descontentamento, pelos vexames que
por essa causa soffria , que o nosso poeta viu-se no
ultimo estado de desamparo como o attcslam as me-
morias que delle nos restam. E a tão subido ponto
chegou a sua miséria, pela culpável indilTerença de
seus compatriotas, que um jáo (::) [por nome An-
tónio] que elle havia trazido da Índia, corria de
noite as ruas de !,isl)oa pedindo esmola para sus-
tentar seu nobre e honrado amo. ,4ssim melhor ava-
liava esle intiio, mais humano e mais grato do que
os nacionaes, o mérito relevante de homem tão ra-
ro c grande quanto infeliz era '.
Foi por esse tempo , segundo relata o já citado
illustre c douto editor da melhor e mais nitida edi-
(::) Jáo, liabilanli; de Java, e iiío Jào António, como
alguns escriptores modernos erradanienle disseram , tomando
láo por JoSo ou Juam. O Sr. J. B. de A. Garrett, diu'no
orD.inienla da nossii moderna li!(er;il»ra , em uma de suas
melhores producçòes, o [loema Camões, fallandu do bom
júo . assim se expressa :
" — Gemido, que ouve perlo ,
O interrompeu. Era o seu jáo , que alHicto
U escutava. Uo liumildc c pobre escravo
i) roíar.rio liei se retalhaT»,
D.- (iuri.lu asiim (jueiíar.
Canto X- p»;. 198.
I cão que lemos dos Lusíadas (»«), que ura fídalgo
chamado Uni Dias da Camará , com um egoísmo e
insensível importunidnde, que move indignação, veio
ao pobre quarto de Camões, para fazer-lhe queixas
de que tendo-lhe promeltído uma tradueção dos
Psalmos penitencíacs, não acabava de a fazer, sen-
do tão grande poeta : ao que esle respondeu com
brandura e paciência extraordinárias: — u Quan-
« do cu fiz aquelles cantos , era mancebo , farto ,
i( namorado e querido de muitos amigos e damas,
« o que me dava calor [loctico : agora não tenho es-
(( pirilo , nem contentamento ))ara nada : ahi e.stá o
« meu jáo que me pede duas moedas de cobre pa-
« ra carvão, e cu não as tenho para lh'as dar.» —
Pode fazer-se a comparação entre o jáo , António ,
c o fidalgo. Rui Dias da Camará, c decidir-se qual
dos dois era mais nobre?
Nestes últimos annos de sua atenuada vida , a
sua habitação foi mui humilde quarto de umas ca-
sas próximas á igreja de St.' Anna , na rua que
conduzia ao convento dos jesuítas. Dallí ia passar ,
por única diversão, as tardes ao convento de S. Do-
mingos , onde ouvia lições de theologia moral , e
praticava com alguns doutos religiosos de sua fami-
liaridade.
O ultimo golpe que o coração patriótico de Ca-
mões devia receber , foi o resultado fatal da expe-
dição d'Africa. A alma elevada do grande poeta
succumbiu sob o pczo da dor quando fora informa-
do da noticia desastrosa. Cercado por todos os hor-
rores da miséria e do desamparo, e não podendo
aquella alma , abatida pelo infortúnio , resistir á
viva impressão da catastrophe succedida em 4 d'A-
gosto de 1578 , sohreveio-lhe grave enfermidade.
Conservaram os seus biographos M. S. de Faria,
e Larbosa .Machado dois fragmcnlos|de cartas cscri-
ptas no ultimo termo da sua vida. Do primeiro vè-
se o extremo de miséria a que chegou ; e do segun-
do co!he-se quanto amava a sua pátria, com aquel-
la paixão que o animava sempre , c que conservou
até a sepultura.
K Quctii jamais ouviu dizer [escrevia na primeira
carta] que cin tão pequeno theatro como o de um po-
bre leito , qui:csse a fortuna representar tão grandes
desventuras ? E cu , como se cilas não bastassem , me
ponho ainda da sua parte ; porque procurar resisUr
a tantos males pareceria desaverfjonhamcnto. »
Na segunda carta dizia : — a Emfim acabarei a ri-
da , c ve7\io todos que fui tão af}'eií:oado á minha pá-
tria , que não somente me contentei de morrer nella .
mas de morrer cum ella . »
Este mesmo sentimento , o primeiro c o ultimo
do seu coração , tinha elle já expressado antes , c
de um modo tal , que não ha na antiguidade amor
da |)atria , por mais exaltado , que lhe leve a pal-
ma. Jazia Camões no seu pobre leito de misérias,
ferido da ingratidão da sua pátria , e do dcsleiío c
abandono em que seus compatriotas a deixavam ,
quando um sujeito seu coulieeido veio dar-lhe a
triste nova da malaventurada jornada de Alcaeer-
quivir, da lamentosa morte d'elrei D. Sebaíitião , c
do lim funesto (|ue ameaçava a pátria: ao ouvir es-
tas palavras o moribundo Luiz de Camões , levan-
tando a cabeça exclamou com pungente dõr : =ao
menos morro com ella! [Concluir-se-ha.]
(••) A qne cliama com rasfio o Sr. Bispo tie Viíeu o
m.iis dijno moniimenlo que podianios alevaidar a memoriai
de Camòe.H. Kssa gloria coube ao nobre morgado de Mii-
tbeus, cuja enipreza hade viver na posteridade, como hàw-
df viver aj ubrat Uo grande poeta.
61
o PANORAMA.
57
f ''í ;í'.«'.'-¥s-
TBEATRO SE S. CABZ.OS.
PORTUGAL.
xxni.
O Theatbo de S. CinLoé.
O THEATEo de S. Carlos , nesla capital , é por suas
dimensões , conveniente fábrica , e óptimas decora-
ções , notado como principal entre ns de segunda
ordem que na Europa se numeram, destinados a es-
sas representações , que pela musica e canto, e pe-
lo apparato scenico enlevam os sentidos e conquis-
tara os applausos dos appreciadores das artes agra-
dáveis, cujo amor e cultura tanto manifestara o apu-
rado gosto e civilisação dum povo. As vozes mais
peregrinas, habilissimos professores de orchcstra .
pintores abalisados na perspectiva theatral . tem
conjunctamcnie desde a crearão desta casa propor-
cionado ao publico lisbonense o gozo de todos os
delicados encantos da opera italiana. — Reinando
D. Josél." ouviu a corte a famosa Zamperini e can-
tores celebres ; mas faltava o edifício appropriado
á opera , e a illusão magica do perfeito scenario :
— a dellciencia acabou nos fins do passado século ,
porque uma companhia de opulentos negociantes le-
vantou o magnifico theatro , que frequentámos ago-
ra , assentado quasi no foco da concorrência da ca-
pital, entre o largo do Loreto c o sitio do paço an-
tigo da Soberana Farailia de Bragança felizmente
reinante. A companhia compoz-se , como dissemos,
de poderosos capitalistas, á frente dosquaes se con-
tavam o barão de Quintella , Anselmo José da Cruz
Sobral , Bandeira . Machado e outros : deu o risco
Fevereiro 23 — 1843.
o archilecto José da Costa e Silva (•) ; e dentro do
breve espaço de seis mczes se levou a cabo obra
tão vasta e solida debaixo da inspecção de Sebastião
Anl(ínio da CruzSoIíral (::) : foi a abertura a 29 de
abril de 1793 para festejar o nascimento da Snr."
D. Maria Thcreza , tia de S. M. F. , e então her-
deira presnmptiva do throno : para esta primeira
representação foi preciso armar-se um tecto provi-
sório.
O edificio appresenta Ires pavimentos na frente ,
que deita para uma praça quadrada, e de sulíicien-
tc capacidade para o transito das pessoas e carrua-
gens ; no primeiro é o salão da entrada , que tem
obra de 90 palmos de comprimento por CO de lar-
go , e dá serventia á platéa , corredores das frisu-
ras e escadaria dos outros andares ou ordens de
camarotes: as três portas do frontispício , que o
são também do salão, ficam protegidas por um cor-
po saliente, que forma uma passagem coberta, sus-
tentada sobre três arcos cm frente das portas e dois
lateraes , e defendida com sua gradaria de ferro ,
(.) José lia Costa e Silva, archilecto muito instruído,
foi natural da villa de Povos, estudou em Lisboa encenlia-
ria e desenlio , e em Bolonlia e Roma a arcliileclura ; via-
jou por Ioda allalia: recoltiido á palria rogeu a cadei-
ra daquclla mui nolire arte; foi arcliUecto das oliras reaes ,
e conjimclamenle com Fatiri dirigiu os primeiros trabalhos
do paço d'Ajuda, para o qual aral>o? deram riscos. Fez
também [alem do Ihealro de S. Carlos] os desenhos para o
Palácio e Hospício de Runa: e para o Erário novo, que
não teve effeilo. Foi académico de mérito da Academia ro-
mana de S. Lucas. Falleceu de 72 ânuos, no Rio de Ja-
neiro, em 1819-
(;:) Vid. Mem. de Cyrillo a pag. 237.
2,' Serie. — Vol. II.
58
O PANORAMA.
que ha pouco tempo foi cullocada, masque se abre
como cancellos , em noites de espectáculo. O pavi-
, mento (lo salão c do cantos de mármore dispostos
em xadrez branco c azulado : o tecto tem uma so-
berba pintura do hábil Cyrillo AVolkmar Machado ,
representando o «precipicio de Phaetonte : — a um
lado está a casa da venda dos bilhetes, e no oppos-
to a em que se guardam os chapéus de chuva e
licngalas, e ahi ao pé um botequim : por cima des-
tas casas, que não tem a altura do salão, ha outras
duas. com janellas para afrontaria; uma delias tem
servido de bilhar. —
O segundo pavimento consta de outro salão , que
foi destinado para os concertos de musica , c por
três janellas rasgadas dá communieação para a va-
randa espaçosa , guarnecida de balaustrada e supe-
rior ao corpo saliente da entrada : aformoseam este
corpo central quatro columnas da ordem dórica ,
que sustentam uma cornija geral : sobre as janel-
las ha três apainelados , cojno se fossem destinados
a baixos-rclevos , o do meio encerra uma inscri-
pção latina , que era summa diz que — os cidadãos
lisbonenses por seu amor c lealdade á Augusta ca-
sa reinante dedicaram este monumento em 17í)3 co-
mo testemunho de alegria, pelo liador a herança
da coroa c continuação da regia prole , que acaba-
vam de receber por oceasião do feliz parto da Snr."
I>. Carlota, princeza do Brasil. — Os apainelados
]atcracs comprehendcm duas eornucopias com o ca-
duceu de Mercúrio , symholo do commercio. A sa-
la é adornada com pinturas e relevos , c dois core-
los, um em cada extremidade, guarnecidos de brin-
cados ornatos. Contíguos acham-se dois gabinetes com
janellas de peitos para o largo ; tem servido de bo-
tequim com entrada distincta do salão.- —
Altéa-se o terceiro pavimento tão somente sobre
o corpo do centro: remata em segunda timalha co-
roada por dois grandes vasos de mármore nos ex-
tremos , e ao meio pelo escudo das Armas pnrtu-
guczas : aqui c a casa de pintura de vistas e deco-
rações scenicas.
A sala do espectáculo é de forma clliptica : por
tal arte disposta a platéa cm conveniente declive c
em relação ao tablado , que o centro é um perfeito
ponto óptico, e os espectadores gozam cabalmente,
e de qualquer lado , todas as vislas ; coutétii cinco
ordens de camarotes , por banda , em numero de
doze cada uma ; ao todo 120 : a magnifica tribuna
de Suas Magestades , em correspondência á boca
do tablado , occupa a altura da ordem nobre e da
terceira c quarta ordens de camarotes : por cima
licara as varandas. A platéa adraitte 6Í0 pessoas.
O arco do proscénio repousa sobro columnada da
ordem compósita cm cujos vãos estão assentes duas
estatuas allegoricas. Sobre o arco ha o relógio de
mostrador transparente e que é allumiado durante
a rci)resentação. llhimiua largamente a vasta sala
um lustre rico c de acabado gosto e que em seus
eristaes reflecte a claridade de cem lumes: ha mais
(juatro pequenos lustres junto da Heal tribuna. —
O salão do 'J.° i)avimenlo é mui capaz para bailes
e banquetes públicos : neile deram os negociantes in-
.«lezes ao celebre Canning (•») um jantar grandioso
[a que assistiram alguns dos meml)r<is da KegenciaJ
nas vcsperas de se retirar de Portugal aquelie mi-
nistro , que viera por embaixador cm outubro de
ISl '(.. — Reproduziremos algumas i>hrases njemo-
ratidas da falia que aesla oceasião recitou Canning,
(••) Vide a IjiographJa ile Jorge Caiiiong a pag. i;9 do
•t " v<il 1." Serie. , .
anles de levantar a saudc a Suas Ex."', os governa-
dores do reino. Fallando da invasão franccza em Por-
tugal , c da maneira porque a alliança anglo-lusa
combateu a colossal fortuna de Napoleão , disse no
meio do seu discurso: — «Portugal não teria podi-
« do rcstaurar-se sem o auxilio da Inglaterra ; é is-
« so uma verdade ; mas lambera o é que Portugal
n foi para a Inglaterra o principal instrumento, que
« ella empregou , para etleituar a maior enipreza
« em que a Graã-Bretanha jamais se empenhou '.
V Nós trouxemos a Portugal conselhos , exercito,
« disciplina , e valor britannico ; mas nós achámos
« em Portugal vontade sincera c prompta , braços
« activos , um governo cheio de confiança , um po-
« vo valoroso e suífrcdor, dócil em instruir-se, leal
i< em nos seguir , paciente no meio das privações ,
«ca quem a desgraça não foi capaz de abater , c
(! desanimar , nera a prosperidade pôde ensoberbe-
ce cer , c embriagar.
« O braço da Inglaterra foi a alavanca , que aba-
« lou violentamente o poder de.Buonaparte ; Portu-
« gal foi o ponto de apoio em que aquella alavanca
«se moveu. Inglaterra assoprou, e nutriu o fogo
« sagrado ; mas Portugal linha já erigido o altar ,
« era que esse fogo se accendeu , e cujas lavaredas
« subiram, e se propagaram a tal ponto, que o seu
« clarão foi allumiar o mundo inteiro ! »
^ í.
Íí^tó2?áí>
Meditação.
JÁ tinha fugido do nosso hemispherio abrilhante luz
do monarcha dos astros , despedindo-sc de muitos ,
a quem nunca mais prodigalizaria seus raios : suc-
cedéra-lhe a magestosa uoile , trazendo por gala
o ( ernleo e matizado manto, no qual as estrellas
scinlillavam como outros tantos diamantes : o céu
estava sereno , e esta serenidade causaria no phi-
losopho , que o contemplasse , uma terna sauda-
de do que ainda não gozámos , um vchemente dese-
jo de ver c gozar o que para os h(miens foi crca-
do ; o crepúsculo havia pouco mostrara, ainda cheia
de luz , a estrada por onde o brilhante luzeiro ca-
minhando deixava apoz si uma incircumscripta cla-
ridade ; agora tudo eram trevas, e se alguma luz
se divisava , era só no firmamento. Passávamos en-
tão por esse mosteiro de virgens, que a i)iedade
de l». Manuel edificou em os dias de sua gloria na
formosa terra, cujas praias banha o salifcro e abun-
dante Sado ; I). Manuel , homem na verdade gran-
de, que juntou sentimentos de bom monarcha aos de
príncipe verdadeiramente orthodoxo , ainda que de
todo não fosse isento do espirito supersticioso da sua
epocha : os maiores génios são ás vezes levados das
idéas dos séculos em que vivem. Pelas rasgadas ja-
nellas se divisava aquella magestosa claridade, que
as luzes fazem de noite no temido do Senhor, e pre-
sumimos com rasão estarem as religiosas orando so-
lemnementc ; e não nos enganámos, porque aproxi-
mando-nos , ouvimos logo o canto melodioso e me-
lancbolico da psalmodia , que impera mais no cora-
ção do homem do que quantas harmonias possam
produzir as mais soberbas orchestras : rccordámo-
nos logo do canio das catacumbas, onde os fieis reu-
nidos e(dchrav;im seus oiiicios , apesar dos edictos
mais severos , onde o incenso subia ao mesmo tem-
po em (ine as orações iam bater as bases do thro-
o PANORAMA.
59
no do Todo-Podernso , c onde os sacerdotes gemen-
do , mais com lagrimas do que com vozes , oravam
pelo poTo. Oh ! E quando foi mais augusto c ma-
gcstoso o c\ilto da religião do Crucificado?'. Estas
foram as recordações que lizciiios ao entrar na igre-
ja do mosteiro , era cujas abobadas resoavam , não
as vozes mercenárias, que movidas só pelo interes-
se não ferem as cnpolas do santuário para irem
acompanhar as orações dos anjos, mas sim as inno-
centcs vozes de consagradas virgens , que ofTcrece-
ram ao Altissimo na Uòr de tenra idade seus puros
corações.
Vasio estava o templo ; apenas se viam umas cin-
co ou seis pessoas , que alli tinham sido attraliidas
só pela devoção , e isto não contribuía pouco para
a raageslade do logar, livre daquolle tumulto e per-
turbação . que hoje caractcrisa os grandes ajunta-
mentos religiosos.
Protegidos por este silencio percebiam nosíos ouvi-
dos as vozes das religiosas , que eram outros tantos
cchos que repetiam o que o rei propheta cantara no
fervor de suas devoções : que os monarchas, sem se
des|iircm dos deveres de sua magestade. devem ser
os primeiros nos exemplos de piedade. Porem o nos-
so eníhusiasmo cresceu quando ouvimos os psalmos
de louvor, em que aquellc santo rei cheio de um
estro divino convida todas as creaturas a louvarem
o Senhor: foi então que sentimos a mais esperanço-
sa c terna sensação, e Icmhrando-nos o que o mes-
mo propheta diz cm um de seus psalmos , dissemos
em nossos corações : quão formosos são os vossos
tabernáculos, ó Senhor Deus das virtudes! A minha
alma se enche de santos desejos nos átrios do Senhor.
— Em companhia de amigo sincero notámos quanto
simpathisava a archilectura do templo com a sim-
plicidade da acção : não se viam alli nem ricas al-
faias, nem muitos sacerdotes, nem multidão de lu-
zes ; mas tudo decente , tudo modesto e respirando
devoção. Quanto ao templo , está longe de igualar o
de Belém ; mas em sua architcctura mostra que D.
ilanuel nomeio de suas grandezas, dictadas por um
génio vasto, também soube amar a simplicidade , e
que nesta mesma nunca faltava aos signaes caracte-
rísticos de sua epocha grandiosa. As coluranas do
templo talhadas degranito, formadas de Ires roscas,
unidas entre si, e formando um só corpo, foram pa-
ra nós naquella occasião o mais íiel emblema das
três virtudes — fé, esperança, e caridade — asquaes
sustentam o magestoso edifício da religião christaã.
Em um dos lados da capella-mór víamos esculpido
o brilhante escudo de gloriosas recordações , e si-
milhante vista não podia deixar de causar em pei-
tos portuguezes saudade dos tempos cm que as san-
tas quinas defendiam religião e liberdade nacio-
nal , tremulando nas quatro partes do globo. Os
quadros do grão Vasco , recordando a vida do Sal-
vador , e que se acham nas paredes do templo , pa-
rece que nesta occasião se tornaram mais enérgi-
cos e expressivos; tanta é a força da religiã.o , que
pôde ser designada como o maior e o mais profí-
cuo dos estímulos para o progresso das bellas-ar-
tcs. No meio de tantas considerações, que á simi-
Ihança das ondas do oceano succediam umas ás ou-
tras , uma sobre todas se ergueu , e fez maior im-
pressão : a utilidade da religião foi o que mais nos
occupou. Porventura , dissemos nós, gozaríamos es-
tas relíquias, se não fosse a religião de nossos país?
E o que seriam hoje os povos , se estes monumen-
tos não tivessem abrandado seus antigos c bárbaros
costumes? O vós, que erapuuhaes os sceptros e cin-
gis diademas , ó vós , que cercaes os monarchas c
sois seus conselheiros , se quereis ronservar-vos ,
conservai illesa a religião do paiz cm que vos a-
chaes , que nisto tereis o mais firme apoio. Ella ,
|)clo império que tem , doma todas as paixões <ios
homens , a quem faz depor as armas ante seus ai- '
tares: c se porventura alguém momentaneamente fe-
char os ouvidos ás snas vozes, mais tarde, ou mais
cedo lhe hade conceder acaliado tríunipho. — Sim ,
a religião é a mais firme base do estado social , e
ella só, despida das prevenções que um falso zrlo su-
geriu, pódc elevar os povos ao grau de civílisação,
que os faz grandes : cila é , por assim dizer , o
centro d'onde partem todos esses mananciacs , que
podem fazer feliz uma nação. Honrados cidadãos ,
ministros integorrimus , zelosos militares , pais de
família inoralisados , esposas fieis , amigos verda-
deiros , taes são os frnctos que brotam da arvore
sempre virente da religião verdadeira ; boa fé no
commcrcio , valor no exercito, amor á vida frugal,
augmcnto da agricultura , desterro da ociosidade ,
destruição da ignorância , perfeição nas bellas-ar-
tes , eis os dons preciosos que a religião offercce
por mimo aos paizcs que a cultivam.
Taes foram as idéas que por então nos occorreram,
e tendo sabido reOcxíonámos [attendendo ás inspi-
rações que dentro do templo sobre nós desceram]
quanto são persuasivas , quanto são agradáveis ao
espirito as bellezas do santuário '.
C. M. P. Salgado.
O TIGRE.
CoNFixDEV muitos os leopardos , onças c pantheras
com os tigres , dando a isso causa o uso vulgar de
chamarem pcllcs de tigre a Iodas as manchadas
com pintas diversas : são porem animaes distínclos
ainda que do mesmo género , e mui communs na
Africa e cm todas as partes mcrídionaes da Ásia ;
e a espécie do tigre está limitada aos climas mais
ardentes da índia oriental , encontrando-se no Ma-
labar , em Sião e em Bengala.
È o tigre o segundo entre os animaes carnicei-
ros , posloque nenhum o iguale cm malignidade c
fereza : longe da magestade e propensões generosas
do leão , que de ordinário só acomette avexado da
fome ou quando provocado , o tigre mostra-se sem-
pre vilmente feroz e sequioso de sangue, ainda es-
tando saciado de carne e sobre um montão de vi-
ctimas ; seu furor não conhece tréguas nem limi-
tes ; assola o paiz que habita ; não teme as armas
do homem : degola e destroça rebanhos inteiros , e
com a mesma sanha despedaça a primeira c a ulti-
ma presa ; como se anhelára topar resistência vigo-
rosa investe com elephantes e rhinocerólcs , c ás
vezes cora o leão. — Na forma do corpo revela a
ferocidade do ínstincto : — se o porte nobre do leão.
a espessa juba que lhe ondca no collo , o olhar ou-
sado e passo grave, annnnciam arrogância e mages-
tosa intrepidez : o tigre manifesta no corpo esguio.
rasteiros pés, cabeça mia, olhos ferozes, e língua
sanguínea sempre fora das fauces, os caracteres de
sua villania e perversidade insaciável. Por fortuna
esta espécie cruelissima c rara bastante , e menos
espalhada que o leão , ao qual excede em volume
de corpo.
Os logares onde o tigre de ordinário devora as
préas , são as beiras de rios e lagos para mitigar
60
O PANORAMA.
nas aguas o ardor que ihe excita a sobejidão de
>angui; das muitas victimas.
As matizadas peilcs dos tigres são de grande va-
lor , principalmente na China , onde os mandarins
militares usara forrar com ellas os assentos dos pa-
lanquins cm que saliem a publico : e com cITeito
pela belleza e disposição das listras e pelo tama-
nho são dignas de apreço para ricos xairéis de ur-
cos e ginetes.
O P.* Manuel Godinho , c^m seu engraçado es-
tilo anecdolico, refere a defeza de um porco raontez
contra um tigre c como aquelle a final foi prcado.
Vcja-se a Ihtação do nui-o ramiiihn que fez por terra
(' mar , rindo da índia a Portugal o sobredito A. ;
a pag. 177 da 2.' edição, publicada no anno passa-
do por esta Sociedade Propagadora dos Conhecimen-
tos Iteis. i
O TIG&E
O Bobo.
112S.
YI.
Como d' um homemzinho te faz um homemzarrão.
O CONDE de Trava acertara nas suas previsões : o
ajuntamento da cúria fora longo e tempestuoso. Os
parciacs da rainha , isto é , aquelles cujo poder e
ambição se estribava na influencia do conde , pa-
tentearam ahi , com toda a energia e affecto , a sua
inabalável li(b'li(ia(le ;i filha d'AITi)nso 6.°, á qual
elles não pnili.ini quebrar seu preito sem se cubri-
rem d'o[iprolirio : por outra parte , aquelles que ti-
uham já poslo a mira em alcançarem do moço in-
fante as alcaidurias , os meirinhados , as Icncncias ,
c os cargos da còrle, accesos no santo amor da jus-
tiça, pugnavam para que a elle se entregasse a he-
rança paterna. Era a lucta da coitxcicncia d'uns con-
tra a cousciciicia dos outros , combate desgraçada-
mente trivial em todas as cpochas de <lisscnsões ci-
tís , e de que só é culpada a providencia por as-
sim collocar os b.uidos sob o jugo de persuasões
ojjposlas , c cslrcita-los entre o desejo da salvação
das snas almas, e a cruel necessidade de serem
inimigos e perseguidores de conipatricios c irmãos,
com grande e interior mágoa sua , como nós e o
leitor perfeitamente sabemos costuma acontecer cm
taes casos 1
I)os ricos-homcns, cavalleiros, e clérigos, porlu-
guezes por nascimento, que ainda não seguiam aber-
tamente o pendão de AfTonso Ilcnriquez , alguns
neste momento decisivo mostraram a sua resolu-
ção lirme de confiar na fortuna de D. Thcreza ; mas
a maior parle voltava-se para o sol que nascia , tu-
do por amor da boa terra de Portugal. Entre os
primeiros, nasviolentas altercações da cúria, se ha-
viam distinguido os dois infançõcs , Ayres Mendez
c Pedro Paez : entre os segundos o Lidador , que
cumpriu o que promcltèra a Marlim Eiclia. Fernão
Perez viu muitas vezes vacillanles as suas esperan-
ças, porque os nobres compaidieiros do conde Hen-
rique, vivendo havia tanto tempo na llespanha, co-
meçavam a confundir nos seus instinclos políticos
a idóa das instituições francas com a indole das
tradições sociaes visigodas, que sempre pre|)ondera-
ram na Peninsula. A rainha oxpozera as perlenções
de seu lilho perante os barões: Ycrciuudo Perez,
o PA]\ORA3IA.
61
irmão do conde de Trava , genro da rainha , c se-
nhor de Vizcu , que viera assistir áqiiella espécie
de parlamento, tomando a mão . in\ectivára furioso
contra o iiiraiilc . seu cunhado, e não jioupára fo-
ros e ameaças contra os parciaes dclle. A cólera do
Lidador não precisava de tanto para ser excitada ,
e palavras i^'ualmente violentas sahirani da sua bo-
ta em resposta ás de Vercmudo Percz. Accnsou o
conde de vexames de todo o género , c ameaçou
também aquelles que o ameaçavam. l'ouco e pouco
o tumulto , começado pelos dois , dilatou-sc c cres-
ceu. As injurias voaram de parte a parte , os fer-
ros polidos dospunhaes iirincipiaram a reluzir meio-
arrancados dos cintos , e a sala do conselho ia con-
verter-se u'um campo de batalha , quando dois ho-
mens— talvez os únicos — que pelo seu caracter
publico, c ainda mais pela su.i condição moral o
podiam alcançar, atalharam as scenas de sangue de
que os paços de Guimarães estavam a ponto de se-
rem thealro. (Juasi ao mesmo tempo dois sacerdo-
tes se alevautaram a pedir tréguas era nome de
Deus. Era D. Tcllo , arcediago de Coimbra , um
dclles ; o Outro , Fr. Hilariáo , o bom velho abba-
de do mosteiro de D.5Iuma, que já o leitor conhe-
ce. Àquelle dissera muitas vezes D. Thereza que
assaz grato lhe seria vè-Io bispo da sua sé , a qual
então se achava orphã de pastor; a este, a predi-
lecção que sempre mostrara ao seu mosteiro e a
elle em especial o moço príncipe , fazia crer com
bom fundamento que não eram vãs de todo varias
palavras que uma vez lhe ouvira soltar acerca não
sabemos de que doação , ao santo acisterio de Gui-
marães , de certa villa ou herdado , com cincoenta
homens de creação , e seus montes e pastos , fon-
tes e lagoas , êxitos o regressos. Não os moviam na
Tcrdade estas circumstancias , que apontámos ca-
sualmente, a serem, D. Tello inclinado a favorecer
a justiça da bella infanta , e Fr. Hilarião a justiça
de .\flbnso Ilenriquez. Pregoava-os o mundo por
virtuosos : nós ajuntámos o nosso brado ao do mun-
do. Mas é indubitável que ambos elles estavam per-
suadidos de que o outro seguia nraa causa má , e
aOigiam-se profundamente de verem assim a virtu-
de desvairada e perdida no meio do campo con-
trario.
.liguem que subitamente entrasse no logar era
que se ajuntara aqucUa espécie de parlamento , e
visse os dois sacerdotes , pallidos c trémulos , pro-
ferirem palavras de rasão e de paz no meio do tu-
multuar e vozear dos ricos-homens e infanções, cu-
jos olhos chamejavam de cólera , cujas mãos con-
frangidas apertavam os punhos dos bulhões que re-
luziam já meio-arrancados , attribuiría forçosamen-
te a sua linguagem melliflua e cheia de uncção ao
temor de serem victimas indefensas dos brutaes ho-
mens de guerra , se porventura o sangue começasse
a correr, visto que nem a cogulla do benedictino ,
nem a garnacha do arcediago, eram apertadas com
o cinto de couro recamado , que cingia os briaes
dos cavalleiros , e com que elles apertavam ao pei-
to , da esquerda a espada , e da direita o punhal.
Enganar-se-hia , comtudo — quanto a nós — quera
a taes motivos attrihuisse as palavras dos dois ho-
mens de Deus. Ainda cremos na virtude dos cul-
tores da politica : sabemos por experiência que a
maior parte das vezes as suas expressões são sin-
gelas , e nascem de crenças mui fundas ; sabemos
também que as suas opiniões são em geral desinte-
ressadas , e que jamais é o medo que os incita a
pregarem a concórdia e a paz. E se isto c assim
nestes tempos de perversão moral , cora bom lun-
damento allirmamos que eram puras c generosas as
intenções daquelles dois ministros do Senhor, n'um
século em que as doutrinas do christianismo esta-
vam vivas, o a caridade era fervorosa e sincera.
K certo , porem , que apesar das diligencias que
fazia cada um delles para aquietar o furor da res-
pectiva parcialidade, por muito tempo o alarido
dos cavalleiros , ([ue se doestavam com bastas e
grosseiras injurias , cobriu as débeis vozes dos va-
rões apostólicos. Finalmente foram ouvidos. A re-
putação de santidade de que ambos gozavam — no
seu bando já se entende, — porque em epochas de
ódios civis as reputações facilmente tocam o extre-
mo da profundeza , mas na extensão ficara sempre
em metade ; — essa reputação, dizemos, mais ain-
da que a força das suas ponderações, lizeram pouco
a pouco asserenar a tempestade. Os ricos-homens,
infanções , e cavalleiros vieram emfim a uma con-
clusão rasoavel ; islo é, sahiram d'alli cada vez
mais aíTcrrados ás suas opiniões , e sem cnncluircm
nada.
Um resultado importante produzira, todavia, aquel-
la assembléa : as mascaras haviam cabido de todas
as faces : todas as equações politicas estavam resol-
vidas. Cada rico-homem sabia em qual das hostes
havia de hastear seu pendão, e cada simples caval-
leiro a que pendão se havia de unir. A sorte de
Portugal ficava escripta nas pontas das lanças c nas
puas das maças d'armas. A cúria ia traçar a der-
radeira sentença á luz do céu — no campo de ba-
talha.
Como se fosse alheio aos acontecimentos daquel-
le dia, o dissimulado e manhoso Fernão Perez sahí-
ra da cúria dos barões com o sorriso nos lábios e
a raiva no coração. iMcára sabendo que o poder da
rainha, ou antes o seu, qnasi exclusivamente se es-
tribava no braço dos cavalleiros estranhos, e que a
fidalguia dos dois condados de Portugal e Coimbra,
que ainda não erguera o estandarte da revolta, não
tardaria a seguir o exemplo dos que já se haviam
declarado pelo infante, .\ttribuia á influencia de
Gonçalo Meudez da Maia este successo , e o seu
ódio contra elle linha subido de ponto. O Lidador
foi, portanto, aquelle aquém neste dia mostrou mais
prazenteiro rosío.
l'm banquete esplendido havia de terminar a con-
vocação da cúria ou cortes. Os graves cuidados, que
durante a manhã tinham occupado os corlczãos , e
ricos-homens vindos áquella assembléa, deviam dis-
sipar-se no meio das delicadas iguarias e das taças
de vinho escumante. ISa mesma sala d'armas, on-
de na véspera resssoára o tripudiar do sarau , ia
restrugir naquella noite o folgar do banquete, mais
ruidoso ainda , porque nesse dia havia chegado a
Guimarães grande numero de fidalgos de Galliza ,
que em Portugal tinham prestamos e alcaidarias
da bella infanta , ou antes de conde de Trava. Os
vastos aposentos do paço brilhavam com toda a pom-
pa de um dia de festa na idade media. .\s calças
de muitas cores , as plumas das toucas dos senho-
res, os ricos briaes e cotas, onde já a armari.i, que
as guerras d'ultramar começavam a converter cm
moda , estreara as suas divisas e bordaduras phan-
tasticas, davam um aspecto de alegria áquelle con-
curso , que debalde se buscaria nas reuniões mo-
dernas, monótonas e tristes em trajos, como em qua-
si tudo. Pelos eirados c miradouros, pelos adarves
e torres do castello , pelas frestas e balcões do pa-
lácio viam-se olhar , gesticular , correr , sumir-se ,
62
O PANORAMA.
apparecer de novo centenares de cavalleiros. As es-
cadas, os pateos, refcrvinm de escudeiros c pagens,
que subiam, desciam, apinhavam-se e dividiam-se
em agitação contínua. E o ruido e confusão não se
limitavam ao castello : as ruas e quclhns tortnosas
do burgo sussurravam com o perpassar dos homens
d'armas, dos besteiros , c da pionagem , que se-
guiam para Ioda a parle os ricos-homens e infan-
çõcs , cm maior ou menor numero, segundo a gra-
duarão e poder de cada um delies. Kra este um
distinctivo de nobreza , que raras vezes o fidalgo
daquellas eras esquecia, c muito menos quando era,
como então se dizia , chamado a cas d'elrci. Assim
nestas assembléas politicas , donde nasceram as an-
tigas cortes , mais frequentes do quo geralmente se
crê , a povoação destinada para cilas nficrecia um
espectáculo de desordem e motim impossível de des-
crever ; por tal arlc que se inimigos houvessem to-
mado de assalto a cidade ou villa , onde tacs sce-
jias se passavam , a alarida não seria maior, nem a
confusão mais completa ; e a única dilTercnça seria
quo neste ultimo caso o sangue jorraria em tanta
quantidade, como naquelle jorrava o vinho , cos
gritos de dòr e angustia substituiriam os brados e
risadas convulsas da embriaguez.
No meio deste borborinho, por toda a parte atroa-
dor, mas infernal nas salas principacs do paço, era
notável o cuidado cora que o conde de Trava pro-
<Mirava não perder de vista o Lidador. Se a alguém
fosse possível reparar nisso . fácil lhe fora adivi-
nhar os motivos de similhante procedimento, depois
do que se passara na cúria, e atlenlo o caracter dis-
simulado, mas cauteloso, do conde. Era um ini-
migo que devia causar-lhe sérios receios , e apesar
das diligencias, que fazia para os encobrir sob ura
gesto festivo , lá se divisava no seu olhar inquieto
o susto e a colora que lhe ralavam o coração.
Assim vigiando os passos'de Gonçalo Mendez, Fer-
não Perez o linha seguido de sala cm sala , procu-
rando escutar o que elle dizia nos diversos grupos
de cavalleiros a que se ajuntava. Mais de uma ho-
ra havia que o conselho se apartara, o ainda o con-
de não tinha deixado um instante de o vêr e ouvir,
quando um escudeiro do Lidador , rompendo pela
lurba dos fidalgos , se chegou ao seu amo , c lhe
disse em voz baisa :
«Senhor, um peão, que alTirma ser chegado ha
pouco da Tcrra-santa, pertende fallar-vos e ao mui
reverendo Fr. Hilarião. Diz que vos traz mensa-
gens de amigos vossos , que ora andam em deman-
da do santo sepulchro. Um homem de sua reveren-
cia o busca por toda a parte , e eu vim entretanto
avisar-vos. »
«Um peão vindo da Palestina com mensagem a
mim? replicou o Lidador em voz alia. A fé que me
parece estranho caso ' Não disse quem o manda-
va ? 11
« .\ão , meu nobre senhor: — respondeu o escu-
deiro— uem eu me esqueci de lh'o perguntar: a
sua resposta uuica foi que a vós — e só a vós o di-
ria.»
u Bem ! — Talvez assim lh'o ordenassem. »
l'roferindo estas palavras , o Lidador sahiu , en-
carniidiaiidu-5C para as largas escadas que davam
para n grande; patco do caslello em frente dos pa-
ços.
O coiule de Trava percebera, postoí|ue impcrfei-
lameule . este dialogo. Lm pensamento do descon-
fiança liie |)assou pelo espirito , c o seu primeiro
impulso foi continuar a seguir Gonçalo IMcndcz. Mas
esta insistência era já demasiada, e podia excitar as
suspeitas do cavalleiro. Hesitava ainda entre o ir e
o ficar, quando viu perto de si Tructezindo seu so-
brinho e seu pagem, filho deVcremudo, e que mui-
to lhe queria. Deus ou odemonio era quem alli lh'o
enviava. Ima idéa lhe occorrêra subitamente ao ver
o mancebo.
«Ouve cá, Tructezindo — disse elle ao gentil pa-
gem , accnando-lhe com a mão e sorrindo.
«Que ordenais, raeu senhor e meu lio? — per-
guntou Tructezindo, chegando ao conde e cravando
nelle os olhos, em que se pintava toda a malícia
possível n'um rapaz da sua idade.
Fernão Perez affagou-o pondo-lhe a mão sobre a
cabeça , d'onde se lhe esparziam em ondas sobre
os hombros os louros e anelados cabellos.
« Apraz-te , raeu sobrinho , o ver esta grão peça
de cavalleiros, que muitas vezes se acharam já em
lides de mouros , e que outras tantas teem ganha-
do o preço de justas e torneios , e sido proclama-
dos vencedores por formosas damas, ao som decym-
balos e trombetas , nos jogos da argolinha e do ta-
vnlado? Que me deras tu por ser um delies, e cin-
gires uma espada c adaga?»
"Dera, meu bom tio — respondeu o pagem — dez
ou vinte annos de vida para se accrescentarcm á
vossa, e não vos daria nada. Bem podíeis vós, se
quízesseis , armar-rae já cavalleiro , como me pro-
raettcstes para daqui a um anno. Tenho dezesete e
os dezoito vem tão tarde ! »
«Por minha alma que respondeste avisado! —
replicou o conde. — Não quizera eu annos da lua
vida para ajuntar aos meus, que d'ora avante me
vem aborridos e trabalhados. Brevemente eu te ar-
marei cavalleiro :■ — • talvez em poucos dias ao som
do tinir de golpes em fera arrancada. Basta que a
paga de minha mercê seja cumprires adicadamente
o feito de que vou enearregar-te. »
« Efa-lo-heí de bom grado : — tornou Tructezindo.-
— Mandai, meu tio, que eu vos obedecerei.»
n Um peão , vindo de longes terras , buscava ha
um momento Gonçalo Mendez da Maia e o abbade
de D. Muma, O cavalleiro e o monge devem ora
estar com esse mensageiro lá embaixo. Acerca-te
delies por meio do tropel que flnctua apinhado por
toda a parle, e procura saber quem é, o que quer,
donde veio. Escuta lambem , se poderes , suas pa-
lavras. »
«E depois?» — perguntou o gentil pagem.
«Vem prestes dizer-me o que lá se ha passado.»
Ligeiro como um gamo , Tructezindo desappare-
ceu. O conde , chegando d'ahi a pouco a um dos
balcões da immensa sala d'armas, viu ainda o Li-
dador e o abbade que encamiidiando-sc para uma
viella, que corria entre os |)aços e o lanço occiden-
lal da muralha , pareciam atlentos ás palavras de
um homem , cujo rosto elle não pôde bem divisar,
porque o levava meio escondido no capuz de um
aMq)lo zorame de laã parda e grosseira , que quasi
ale (IS pés o cubria. Perto porem dos Ires viu Tru-
tezindo , que fingia retouçar com os outros pagens,
ora Iravaudo-se a braços com elles , ora fugindo
com gratulcs apupos e risadas , mas girando sem-
pre , como a borboleta ao redor da fogueira , em
\(dla de (ionçalo Mendez , do desconhecido e do
abbade.
Satisfeito da habilidade com que o seu pagem
parecia desempenhar a coramissão que lhe dera ,
Fernão Perez voltou-se para dentro sorrindo de con-
tentamento. Achou-se então face a face com Garcia
o PANOllAflIA.
63
BcrmiiiJcz , tilo triste no aspecto como ncssn ma-
nhaã o encontrara. Alem disso, iiorcm,.no carran-
cudo do gesto dava mostras de que ideas mui gra-
ves o preoccupavam. No seu ar o conde percebeu
que occorrèra algum acontecimento extraordinário.
II Preciso de fallar-vos á puridade : — disse Gar-
cia Bermudez procurando niio ser ouvido dos cor-
tesãos que perpassavam.
II Vinde comigo» — respondeu o conde de Trava
no mesmo tom , e travundo-Ilie do braço.
À. esquerda da sala d'armas uma pequena porta
dava passagem para extenso e escuro corredor, em
rujo topo havia outra porta fechada : o conde tirou
uma chave , abriu-a , e cerrando-a njioz si , os dois
cavalleiros se acharam em uma espécie de jarJim-
sinho pênsil, assentado solire uma alta arcaria, que
ligava uma das torres do castello com os paços da
bella infanta. As camarás desta, c os aposentos ha-
bitados pelas suas damas edonzellas, cercavam por
dois lados este pequeno terrado cuberlo de flores e
arbustos viçosos. Um desses engenhos árabes , que
ainda hoje cobrem o solo da Peninsula e fertilisam
as nossas veigas e pomares , ministrava constante-
mente áquelle ameno horto, de um poço profundís-
simo talhado no rochedo em que repousavam os fun-
damentos do castello, agua chrislalina, que ao ca-
hir n'um tanque de mármore sussurrava branda-
mente. Junto delle um salgueiro copado formava
uma espécie de caramanchão sobre um banco de
pedra. Foi para aquelle sitio que o conde conduziu
Garcia Bermudez, dizendo-lhe: — «Aqui podes se-
guro fallar. »
«Acaba de chegar um dos esculcas , que andam
disfarçados em besteiros da behetria do Gonlingem
no arraial do infante:- — -disse ocavalleiro — dá re-
bate de que a hoste rebelde caminha para estes si-
tios. O velho Egas Moniz de riba de Douro veio a
cila com cem lanças. São já perto de mil homens
d 'armas os q>ie D. Affonso capitania. Segundo se
diz, elle pertcnde dar-vos batalha, c conta com al-
guns dos senhores da corte que espera tomem sua
voz : o mui reverendo Marlira Kicha , a quem in-
cumbistes juntamente comigo de introduzir alTorra-
damente o mensageiro ao postigo d'ábrego , foi dar
conta destas novas á mui cxcellente rainhí , em
quanto eu vos buscava.»
II Que esse louco mancebo venha, e achará meus
pendões tendidos no campo. Ahi receberá o preço
de sua ousadia insensata. Mas cngana-se contando
com os falsos que nos cercam. Conheço-os , caos
leacs ! Eu deceparei o collo da serpente .... Gon-
çalo Mendez ! — Gonçalo Mcndez I • — -cm hora azia-
ga vieste á corte : em hora aziaga te demoraste '.
(iarcia Bermudez , a infanta de Portugal , a filha
dos reis de Leão, acaba de escolher-te para seu al-
feres : a ti pertence o governo de todos os seus ho-
mens d'armas. Ao acabar do banquete devem estar
levantadas as pontes das barbacans , c?tas guarne-
cidas de vigias , e em cada lanço uma roída e so-
brerolda. A ninguém é permiltido sahir do recin-
to do burgo: — nem a mim próprio. Alfcres-mór
de Portugal, — são estes os mandados da rainha D.
Thereza : vós fareis que sejam cumpridos á risca I »
Ao proferir estas palavras, todas as paixões cruéis,
tençoeiras , furiosas , que ferviam comprimidas no
coração do conde , se lhe pintavam no demudado i
das faces , no tremulo dos lábios brancos, nas ru-
gas profundas da fronte carregada. Depois de um
momento de silencio , sahindo arrebatadamente do
caramanchão, |)roseguiu : — - -•
«Se tendes mais que dizer , dizei-o. .No momen-
to do perigo nunca hesitei, 'lereis uma resolução
pnunpta. »
«Só , que obedecerei pontualmente ao que orde-
na minha senhora e rainha: — respondeu o novo al-
ienas.
Neste momento um vulto appareceu no limiar da
porta entre-aherta por onde os dois haviam entrado.
Era o bufão , que olhava fito para o sol que se pu-
nha , fazendo-lhe visagcns , e cantarolando sem re-
parar nos cavalleiros :
«Tu vais-tc : mas voltas.
« E elles ir-se-hão ,
« E não voltarão? ■
«Froilaz ou Kroilão ;
«Fernando de 'Irava, -
«E o seu valentão , .
«Dom Buirão ,
"D'.\ragão ,
«Que de Dulce ,
«Bella Dulce,
« Quer a mão ....
"Diabo ! . . .
Engolfado na sua tro\a D. Bibas, a quem algum
génio avesso iniiicllíra a escoar-se pelo corredor es-
curo e a entrar no jardim, voltara de repente a ca-
ra e dera ao pé de si com os dois cavalleiros , que
o escutavam.
«Que dizias tu de Dulce, bufão? — perguntou o
conde com gesto severo , e lançando de relance os
olhos para Garcia Bermudez.
O bobo leu no aspecto de Fernão Pcrez , que se
achava n'um daquelles trances arriscados , em que
as suas injurias em vez d'applausos só lhe acarreta-
vam maus tratos. Todavia o dito estava dito. Poz-se
a mirar os balegões dos cavalleiros: eram de pellc
de gamo , e de sola delgada , revirados na ponta
em compridos bicos, segundo a moda do tempo.
Fez rapidamente o seguinte dilemma : ou a extre-
ma ousadia me salva, ou o que já disse me perde.
Em todo o caso , preso por mil , preso por mil e
quinhentas. Avante! — E fazendo uma profunda cor-
tczia , respondeu :
«Dizia esta humilde creatura que vós, mui nobre
D.Garcia, sois parvo cm perseguir com vossos ridí-
culos amores a minha boa Dulce , e que vós , se-
nhor conde de Galliza , nos faríeis especial mer-
cê em irdes visitar as corujas do vosso castello de
Pharo ......
« D. Bibas ! » — interrompeu o conde. O bobo con-
tinuou :
«Deixando, com os vossos gallegos brulaes, ecom
os vossos aragonezes estúpidos , os nobres paços de
Guimarães aquelle que os herdou de seu pai, o tio
Henrique, antigo truão de minha corte ...»
«D. Bibas! — atalhou de novo o conde, cuja có-
lera tiniia chegado ao seu auge. sorrindo ferozmen-
te— os que te enviaram para me dizeres o que el-
les guardam nos corações covardes , esqueceram-sc
de vestír-te um saio de malha bem estofado ! . . ;»
Neste momento abriu-se uma das portas dos apo-
sentos da bella infanta, e o capellão Martim Eicha,
acompanhado de dois donzcis, de D. Thereza, diri-
giu-se para o conde :
« Senhor de Trava — disse o reverendo cónego —
a rainha quer immedialamente fallar-vos.»
«Eu ia pedir isso mesmo — respondeu o conde. —
JJas antes de partir quero mostrar a traidores, na
64
O PANORAMA.
|>uuição de seu mensageiro , que lambera sal)erei
puni-los. Donzcis , arrastai este miserável daqui , e
♦■nlregai-o ao villico do castcllo, que o mande açoi-
tar pelo mais robusio dos meus cavalleriros , até
que o sangue lhe brote das costas , como da lingua
vilissima lhe brotam insolências alheias. »
(J pobre D. liibas tinha errado completamente o
dilemma, por não mcller nelle os tagantcs ou tiras
de couro críi com que se castigavam os homens de
creaçiio, c que clle nunca provara. Posto que já com
Toz tremula, tentou ainda uma bufoneria, e atirando
ao chão aquelle seu vulto de [lipa poz-sc a gritar :
« Não , que cu não vou ! »
« Donzeis, obedecei! — bradou o condo, encami-
nhando-se para os aposentos da infanta.
D. Bibas desenganou-se então de que o caso era
serio. Dando largas ao temor, arrastou-se apoz Fer-
não Perez, exclamando com todos os signaes de vi-
va ainicção :
" Piedade , senhor conde ' — Proraetto ...»
O conde desapparccèra.
«Levai-o , donzeis! — disse o novo alfercs-mór.
«Também vós, Garcia Bermudez? Não! não!
\'ós salvar-me-beis destes ...»
íiarcia sahira pela porta fatal do corredor escu-
ro , que fora a perdição do bobo. Só ficara alli o
cónego de Lamego , que parecia observar como os
donzeis executavam as ordens do conde.
Estes , do feito , tinham posto mãos violentas no
roliço vulto do respeitável D. liibas , e travando-
Ihe cada qual de seu braço se assimilbavam a dois
mastins , pouco dispostos a largar a prèa. O bufão
cora voz truncada de soluços accorrcu-se então a
ténue e ultima esperança que lhe restava.
«Assassinos malditos, deixai-me ! — gritou clle
dando um empuxão aos dois mancebos que levou
apoz si. E agarrando-se á garnacba de Martim Ei-
cha com toda a anciã do susto e da desesperação ,
começou uma ladainha de supplicas :
« Boiíissimo o reverendissimo senhor capellão-
mór, que vossa virtuosa reverencia valha a ura mi-
serável jogral, que a terra d'ante vossos pés beija !
É dos caridosos e de grande coração perdoar aos
que os offenderam. Eu tenho peccado contra vós.
Peccavi! Estou contrito. Conhilus sum ! Pedi por
mim, santissimo e venerabilissimo padre. Ninguém
m'incitou para dizer o que disse. Foi o diabo que
me tentou. Abrnniiitio ! Podeis assevera-lo a meu
jllustre senhor , o nobre conde de Trava ! . . »
«Filho — respdudeu Martim Eicha , fazendo um
ademan entre hypocrita e d'escarneo — o castigo é
muitas vezes caminho para o arrependimento. Ue-
signa-le , meu filho. Sc nisso não houvera vanglo-
ria , dir-te-hia que no solTrimento d'injurias podias
apprender de mim a ser resignado.»
Proferindo estas palavras , SIartim Eicha alcan-
çara soltar o vestido das mãos do bobo , e com um
sorriso de vingança satisfeita seguira os vestígios
do conde.
D. Bibas perdeu a derradeira esperança.
Então o excesso du terror e da desesperação pro-
duziu n'aquelle espirito , onde por annos se desen-
volvera e alimenlára constante irritação, uma des-
tas revoluçctes mora<ís cm que, no meio de tormen-
tosa crise , o homem se transmuda em outro ho-
mem. Ergueu-sc , e com gesto desvairado bradou:
« Está bom ! Ninguém se compadece de mim !
Serei açuutado como ura vil servo judeu ! O bobo
receberá essa alTroiitosa pena ; mas elle se conver-
terá n'um demónio ...»
Neste ponto Martim Eicha, que crusava o limiar
da porta, voltou os olhos e fitando-os no bufão deu
uma risada. 1). Bibas proseguiu , cerrando os pu-
nhos , e mordendo-os :
«Bis, vil renegado?! — Eis, alcaiotc pacciro?!
Um dia virá cm que chores! .... Va)nos, escra-
vos ! — X risca as ordens do conde covarde ! »
Dizendo isto o bolio , com passo firme e no meio
dos dois donzeis, que nunca o haviam largado, a-
travessou o corredor escuro. D'ahi a pouco , era
um paleo interior , ouviam-sc-lhe os grilos doloro-
sos por entre o som dos açoutes, e apupos e garga-
lhadas de pagens , sergentes , e cavalleriços.
• (Coníiiiuar-se-ha).
(A. lltrculanoj.
íSoíanica.
■ - TinARA D.A TERRA.
[Liii. Lycopcrdon tuber.]
A TiBARA não tem raizes , e nasce debaixo da ter-
ra ; é trigueira , redonda , solida , áspera ao tacto .
e cheirosa. As sementes estão escondidas em cellu-
las nomeio da substancia polposa. Nospaizcs quen-
tes, e nos terrenos sêccos , e areentos é que com-
mummenle se acha esta espécie de tortulho , sem-
pre escondida debaixo da terra. «Como os porcos
são muito ávidos , e gulosos desta jjlanta , diz Bo-
raare , quando a acham foçando a terra , dão logo
a conhecer a sua boa fbrt\uia pelos seus grunhidos
de contentamento. Esta indiscrição adverte o guar-
da , que sempre os espreita e corre logo , afasta-os
ás pauladas , c reserva este achado para as mezas ,
aonde se ajuntam paladares mais delicados. Tam-
bém se podem reconhecer os sitios , cm que ha Ili-
baras debaixo da terra, quando olhando borisontal-
mente sobre a superficie , se vêem voltejar voando
por cima de ura terreno leve , fendido , e grelado ,
enxames de pequenas moscas produzidas pelos bi-
xos que sahi:'am das túbaras, e que lá tinham sido
depositados por outras moscas similhantcs, no es-
tado de ovos. Em setembro , ou outubro é que se
colhem as túbaras.» Elias são um guizado delica-
do, mas pouco sadio, e quente. — Em vários sitios
doAlemtejo se encontram com frequência estes sin-
gulares fructos , que não revelam pela vegetação á
superficie da terra a sua existência.
Sargaço do mar , ou rotilhão.
[Lin. Fticus vcsiculosus.J
Este género c numeroso em espécies , que são as
verdadeiras algas , que nascem no fundo do mar.
Os sargaços são de substancia ou membranosa , ou
gelatinosa , ou carnuda , ou coreacea , ou cartila-
ginosa : a maior parle são ramificados cm forma de
arbusto levantado; alguns se arrojam pelo chão ,
ou estão deitados em lórma de lamina , ou de be-
xiga ; sobre as folhas do maior numero se elevam
tubérculos cm forma de bexigas fechadas, maiores
ou menores , mais ou menos redondas. Suppõe-sc
que estas bexigas estão sempre cheias de ar, e que
sustentam em pé a planta, ou a fazem boiar. .l(/((n-
sun presume que estas vesículas são as llores fê-
meas. Estas plantas na agua , ou logo que sahera
delia , tem a còr de azeitona , mas fazcm-se pretas
quando scccara. Das suas cinzas tira-se soda ; os la-
vradores hábeis formam cora ellas excellcnles es-
trumes.
62
o PANORAaiA.
65
MODO SE CAaaEGAa o CAMEEX.LO ABABE.
O cAMELLo é uma dadiva de grão preço , que Deus
liberalisou ao homem nos climas orientaes , onde
faz serviços mais vantajosos que outro qualquer ani-
mal domestico : de tempo immcraorial o amansa-
ram , como consta dos livros santos. Manso e sagaz
como o elephante , dócil e meneavel como o cavai-
lo , mais forte que o boi , c mais seguro no passo
que as outras bestas , constitue não poucas vezes
toda a riqueza de uma familia árabe : dá leite em
abundância como a vacca e de boa qualidade : a
carne quando novo é tenra como a de vilella : tem
pello ou laã superior ás melhores de carneiro ou
cabra : e afora tudo isto é dotado da extraordiná-
ria propriedade de jejuar uma semana inteira sem
ao menos beber , caminhando por desertos e char-
necas com sete ou oito quintacs de carga e um ho-
mem sobre o costado. Os ermos estéreis da Arábia,
os tisnados areaes da Africa seriam totalmente im-
praticáveis, e muitos paizcs do oriente privados de
comraunicação , se o Creador não houvera provi-
denciado dando-lhe fartura de caraellos e dromedá-
rios, de tão maravilhosa estruclura, adaptada a es-
sas regiões : não é o piso d'areia solta para animaes
de casco c unha: por isso o pé do caraello c reves-
tido de uma pelle grossa, callosa e flexivel, que lhe
facilita andar desembaraçado pelos areiaes movedi-
ços e do mesmo modo por trilhos escabrosos. — Pa-
eiente ajoelha ao mandado de seu dono , e levanta
contente a carga que hade conduzir durante cem a
duzentas léguas sem neccsiíidad« de látego ou aci-
Marco 4—1843.
cate ; e quando a fadiga lhe desalenta o passo, bas-
ta uma cantarola alegre do árabe que o guia para
reanima-lo ate o termo da jornada , e ahi torna a
dobrar os joelhos para que o alliviem do peso que
trouxera ; recebe por único alimento um troço de
torta de cevada , e quando este escacêa sem elle
passa e sem beber oito até dez dias. — Afora os
quatro estômagos que tem todos os ruminantes , o
eamelio possue um ventriculo espaçoso , que lhe
serve de cisterna para guardar a agua que ha mis-
ter no trajecto pelos desertos; e quando precisa de
alguma humidade para macerar o diminuto alimen-
to , que lhe ministram , contrahe os músculos que
rodeiam esse deposito d'agua , e despeja no estô-
mago da digestão a quantidade necessária : tem vi-
da dilatada e pouco sujeita a enfermidades. Aquel-
la agua , assim reservada , não se corrompe com o
calor vital , nem se mistura com algum dos suecos
do corpo do animal , conservando-se pura , doce ,
e salubre. Nesla disposição orgânica , bem como
em todos os phenoraenos naturaes, admirará o con-
templador os profundissimos desígnios da providente
Omnipotência de Deus, que assim regrou todas as
cousas adequadamente aos fins para que as creára
e aos logares em que as collocou.
Ha duas espécies de camcllos : — uma que tcni
só uma gibba ou corcova , como o que na gravura
antecedente está figurado , e esse i o verdadeiro
camello árabe , a que vulgarmente chamara drome-
dário ■ — «ulra tem duas gibbas no lombo, e lhe
2.° Serib. — Voi.. 11.
66
O PANORA3IA.
l:o
clianinra camollo Ijaclriano. Os asiáticos c africanos
appcllidam geralmente dromedários a toilos os ca-
ir.cllos destinados para montar , sem distincrão de
espécie mas só da maneira de os crear. Pódc fa-
zer-sc a seguinte compararão : os de carga empre-
gados nas caravanas servem como os nossos cavai-
los pesados de liro , e os dromedarics como os ca-
vallos de posta ou de caca. Um correio ou drome-
dário faz por dia mais caminho que o camello de
cnrga : as jornadas das caravanas regulam a seis
léguas, e as de um postilhão são de (juinzc a vin-
te ; sem embargo ha alguns camcllos d'cxlraordi-
naria ligeireza. Ura mancebo de Susa andava na-
morado de uma dama caprichosa , que ora muito
a[)aixonada de laranjas ; pediu cila ao ani.inte que
lhe trouxesse algumas de Marrocos , distante dnlli
io léguas, c onde se criam as melhores de Africa ;
o galau montou o seu camello ao despontar a auro-
ra , foi em busca das fruclas cobiçadas , e por noi-
te teve a satisfação de presentear com cilas a linda
moura .
Quanto ao modo de adestrar os camellos para se
baixarem a receber carga e crguereni-se com cila ,
3Ir. Brue allirma que ao camello recem-uascido os
mouros atam logo os pés por baixo da barriga, lan-
çam-lhe um pano sobre o lombo e o carregam com
pedras para assim acostumar-se : pelo quo respeita
ao peso com que podem os camellos, concordara os
viajantes que é de seis a oito quiiitaes.
O alimento destes animacs é como dissemos pouT
CO dispendioso : uma torta de farinha de cevada ,
um punhado de dátiles [tâmaras] ou de favas basta
para manter ura camello lodo o dia ; alem de que
lios campos costumam pastar carças e abrolhos; não
havendo matto que rejeitem. Teem dois dentes in-
cisivos mui fortes na queixada superior , c entre os
seis molares da mesma ha um de forma torcida que
pôde considerar-sc como preza ou cnlmilho ; ua quei-
xada inferior teem outros dois dentes incisivos o os
molares pontagudos e encurvados : deste modo s,"io
armados de um rijo apparulho para cortar , despe-
daçar e mastigar qualquer substancia vegetal por
furte que seja , ao mesmo tempo que ó appropriado
para pascer a relva c comer os talos mais delicados
das plania.s , porque tendo o beiço superior racha-
do podem agarrar como se fosse com tenazes os re-
bentões das arvores e leva-los á boca com a maior
facilidade : — n'uma palavra , tanto ao camello se
dá de achar feno macio, como .silvas e carças, tudo
come bem , e de tudo fica satisfeito.
.Bem ookher e mal fazer.
(Meinoiias insuL-iuas. }
= 1331 =
[Concluxão. ]
Mal fazer.'
. ir,:-.
■ " ■• .1 NSo .«e i;.Tuhain Inila.t
•■í •-,'. A's barbas eiicliijhis.
' ■-■■,:■ :. ' ■ ... . ;, ■, iJi'/""-
Eba peia volta da meia noite. Dormia quasitudo
nau casas de Micer Kstevam Jísmeraldo , o marido
de I). Águeda , que lá pelo reino se andava , e so-
mente as atalayas vigiavam ."uidadosas , que muito
se arreceiavam do que poderia acontecer, e tinham
Uc vellar por uma luzida companhia. A habitação
do genovez dera por uma noute gasalhado ao ouvi-
dor e justiças da capitania, cora suas guardas e of-
ficiaes, e á illustre viuva com seus servos c escu-
deiros.
Fora o caso que D. Isabel , apesar de mui cora-
raovida pelos excessos de seu primo , querendo so-
bretudo salvar sua fama , c desejando guardar-se
fiel a seu marido defunto , apenas vira o ouvidor ,
a ellc e a sua irmaã se entregara, dizendo que da-
qiiella habitação a levassem ; e assim foi feito sem
que António da Camará o impedisse ; tanto o furor
de se ver desta arte de novo zombado o deixara
petrificado. — Aquella sua moderarão porem não
era mais que uma pausa de tormenta , que devia
renovar-se mais furiosa.
Bera quizcra D. Isabel ir pernoitar na capitania,
que SI) alli se julgava segura; mas por não cami-
nharem de noute, arriscaudo-se assim a serem mais
facilmente sorprehendidos polo int^itigavel e furioso
cavalleiro , força lhes foi ficarem nas casas de sua
irraaã , também como as outras apparelhadas para
qualquer inesperado attaque.
Era pelas horas que dissemos , e as atalayas vi-
giavam bem alerta. Repousavam todos nas casas, e
a natureza , placidamente dormida , apenas se sen-
tia resfolgar nos suspirosos rumores da noite. Subi-
tamente sussurro longiquo , mas que se approxima-
va gradualmente, feriu a attenrão das atalayas. Em
pouco, todos os que vestiam armas, se achavam
prestes ; e era tempo , que ás portas lhes batia já
António da Camará , com fora companhia de seus
servidores e amigos , com muita c mui guerreira
gente da Ribeira-brava , Ponta do .Sol e Calheta ,
entrando nisto bom numero de fidalgos c cavallei-
ros , bem vistos era guerras , trazendo todos copia
de mantimentos, e dois falcões pedreiros; como que
se destinava a tomar exemplar vingança , derriban*-
do e arrasando quanto lhes fizesse obstáculo.
Tlcsperl.ira com todos a perseguida senhora , que
nem por perseguida era menos amada , o em quan-
to sua irmaã maldizia o causador de tantas inquie-
tações e ta:. tos males , rnmo os que de certo iam
haver , encaminhava-se ella ao logar mais elevado
das casas para que podesse presenciar, o porventu-
ra remediar, o que nem todos os lamentos ou pra-
gas remediariam. ISão a movia ódio contra seu pri-
mo , que já cila lhe avaliara a alma grande, e a si
mesma se achava culpada, pagando sua generosida-
de com tanta ingratidão , movia-a o desejo de evi-
tar sangue e ruina.
Quando ella chegou ao alto já o combate princi-
piara. Retiniam as armas insoHVidas. Praguejavam
horrendamente os combatentes , vozeavam e amea-
çavam. Era uma vista do inferno. No meio da gri-
ta medonha o do tremendo revolver , arremerar c
faiscar das armas, troavam os dois falcões vomitando
chanimas e fumo , e levando o estrago ás abaladas
paredes da casa. I). Isabel prostrou-sc de joelhos
na presença desta scena espantosa. Elrvou-se men-
talmente a Deus, e arguiu-so a si mesma do que
via e ouvia. Tremeu pela primeira vez e ficou, su-
blime naquclle momento , assim collocada acima
das destruições , que já não valia a evitar , orando
como anjo de paz no seio dos furores da tempesta-
de. No mais ardente da peleja viu-se um cavalleirn
tomar uma hacha antiga das mãos de um peão, en-
caminhar-se á porta principal e amiudar os gol|)os .
apesar dos pelouros c garruchas que sidirc elle cho-
viam; com braço tão valente (|ue a porta em breve,
estalando e saltando de seus gonzos , abriu franca
o PANORAMA.
67
entrada. Nada parou na frenlc do temerário peleja-
dor. A espada substituíra a liaclia , e por onde a
espada passava abria-se diante dollc amplo cami-
nho, r-hamar-lhe-hicis voluntariamente um como an-
jo exterminador. Correu assim todas as casas e por
fim dcsappareceu á maior parle das vistas.
Entrevíra D. Isabel o aconlorido , mas tão rápi-
do se passara que ainda ella orava , e ainda cogi-
tava em quem fosse o arrojado combatente, quando
esle lhe appareceu ao lado com a espada ensan-
guentada na mão. todo o asperlo, os olhos e a fron-
te indammados de guerreiro ardor. Não era o no-
cturno e insensato galan ; não era o amante , ora
quebrantado . ora furioso : era vietorioso campeão
em lide perigosa ; era a melhor ílúr dos cavallciros
insulanos; era um hnmcui , quasi um heroe; era
António da Camará. Ao ver a linda viuva prostra-
da , cora os olhos húmidos c o coração nos lábios,
debaixo daquellc puro e recamado céu , cm tão
pias e mclancholicas horas, aovc-la superior ao crú
espertacnlo que lhe ellc viera dar, sentiu cahir-lhe
todo o furor, esqueceu tudo e só viu que felicida-
de haveria no mundo para quem possuísse tão en-
cantadora crealura de Deus. — Tomou a espada ven-
cedora foi depò-la aos pés da nobre viuva , e com
branda e resignada voz , q\ie ninguém esperaria de
tão rude guerreiro, assim lhe faltou, um tanto quei-
xoso.
«Ei-la, senhora — esta que a todos fez dobrar ,
ei-laque só perante vós se dobra. Anciava porachar-
vos . . . Corri tudo . . . achci-vos em fim. Assim pa-
gais . formosa prima , quanto por vosso respeito se
faz. Dizei-mc lambem agora , D. Isabel , quem jul-
gais vós que possa melhor merecer de Deus c dos
homens, dos que dormem para sempre nas suas ar-
maduras de ferro, ou dos que vellam nos caminhos
da vida ; quem, a que por eégo caprixo ccrcéa tan-
tas existências , ou a que apenas com uma palavra
sua dá paz e socego a quem socego e paz só por
ella arrisca e barateia — dizei-o? Vedes, senhora,
alé aijui não passou de estrondo e roncarias de lon-
ge ; o verdadeiro combate vai agora principiar. —
Alli nesse terreiro se disputará a entrada. Aèdes ,
lá começam a involver-se. Embatem-se como ondas
fervendo , topam-se , malham , derrubam , cabem ,
tempo ainda
. atalhai-os . .
n Ala-
tomai
likisphemam . . . É tempo,
Ihai-os . . . Deus do céu .
era troca a rainha vida.
«A vossa vida . . .? ' > -
«A minha mão ....
«Enganais-me como até aqui? . . .
«Não , não . . . este momento é decisivo e solem-
nc . . . Por minha mãi e meu pai . . . pelas cinzas
de meu marido . . . por esta hora e pelo céu ....
« Basta ....
■< Ide Jtcu Deus guiai-o I . . . »
- António da Cnmara tinha já desapparecido.
Minguem se lhe oppoz . que todos estavam em-
penhados em renhido coiifliclo disputando a entra-
da. Chegado ao meio dos combatentes a sua presen-
ça dissipou tudo com gesto auctorisado . abriu ca-
minho por entre uns e outros. . . . Seguia-o anciosa
com as vistas D. Isabel lá do seu terrado. O que
elle disse não ouviu cila, mas derramou n alma em
sinceras graças quando viu o combate cessar eabra-
çarcra-se todos em boa amisade. — Nunca tamanho
pesar a opprimíra !
Alguns mezcs depois o nosso antigo conhecido, o
incorrigível Fernão, cclel)rava, reunido com seus ca-
maradas, o feliz consorcio de sua ama a muito no-
bre c poderosa senhora D. Isabel de Abreu, com
o muito alto e muito honrado cavallciro , António
(ionçalves da Camará.
« A saúde de nosso amo novo. — dizia clle empinan-
do um venerando cangirão que de mão em mão cor-
ria — « E de quem [accrescentava com certo sor-
riso de vaidadej e de quem sempre disse que nis-
to viriam a parar todos aquelles dares e tomares.»
(' Bofe — continuou depois de breve pausa, passan-
rlo para diante o cangirão e levando a mão á face
aonde lhe licára duradoura memoria de um bom
jilvaz, que um escudeiro da Lombada daserrad'A-
gua lhe pregara no altaque daS casas do genovcz —
bofe que sempre me lembrarei daquella certa noi-
te ., .
«Esse não tínheis vós previsto, Sr. Fernão.» —
Observou d'alli maliciosamente ura dos companhei-
ros.
«Se não previ isso , posso ainda prever que ten-
des todos os merecimentos , Sr. chocarreiro , para
serdes pendurado d'um sovereiro , exactamente co-
mo o cacho pende da parreira.»
Uma gargalhada geral respondeu ao violento sar-
casmo do escudeiro , que ficou roxo do vinho c de
cholera , e que apesar do tudo se conservou sem-
pre , sem emenda , dando novas e calculando pro-
babilidades.
A cada qual sua sinal
[Silva Leal — Júnior. J
O ARCO DE Lara.
Na estrada que vai de Barcelona a Tarragona , a
três léguas de distancia desta ultima, acha-se o ar-
co de Bara, fragmento dos muitos monumenios que
a dominação romana erigiu naquclla parle d'Hes-
panlia , sendo talvez a comarca tarragonense onde
o povo rei ostentou mais a sua magniliccncia e po-
der , não só por ler encontrado fidelidade e af-
feição nos habitantes, como porque foi essa a prin-
cipal porta de sua entrada nas Hespanlias. e o and
central da vasta cadeia que imia Koma com a nos-
sa península.
Não obstante a muila deteriorarão que no arco
de Bara causaram os ultrajes do tempo e dos ho-
mens, pôde affirmar-se que é digno de altenção ,
por sua formosura, simplicidade e boas proporções :
— tão pouco tem sido o cuidado em o conservar
que a parte , que diz para o nascente e costa ma-
rítima , está quasi inteiramente arruinada , dcsap-
pareceu toda nma columna e do mesmo modo gran-
de porção da imposta em todo o arco : a inscripção
já em tempo do celebre antiquário D. António An-
gustin eslava tão apagada que mal se podia ler ; os
capiteis das coluninas quasi que se não distinguia
a que ordem pertenciam.
A obra é toda de cantaria ; tem em cada frente
sobre o sou socco quatro columnas da ordem co-
rinthia , duas a cada lado do arco : na cornija lia-
se uma inscripção que [segundo a interpreta o P.''
Flores, no tom. 23.° da Esp. saqroda] dizia — ter
sido cmisaçirado por tcstammlo de Lncin JJcinio Sii-
ra , filho de Lúcio da tribu Scrqia. Este Sura foi
Ires vezes cônsul em lempo de Trajano durante os
annos 102, 104, 107; pelo que o monumento con-
ta obra de dezesetc séculos d'existencia. Nada se
tem alcançado ao certo sobre o motivo da sua crcc-
C8
O PANORAMA.
rão, não passando de conjecturas mal fundadas quan-
lo a sirnilhante respeito se tem dito; igualmente é
ignorada a etvraologia do nome de Bara.
AKCO SE BARA.
Os maus, como os bons, tem sempre por fira o seu
maior bera : mas os primeiros esperam consegui-lo
mais brevemente com damno dos outros ; os segun-
dos cora segurança e sem risco, zelando e promo-
vendo o bera de todos.
ITBSHOIsO©!^.
UMA GRANDE VIRTUDE.
OiTANDo a intclligencia e a perseverança; estes dois
inslrunienliis das maiores o mais formosas obras hu-
manas, meneados pelo individuo que em grau emi-
nente os possiie , produzem o famoso capitão , o le-
gislador illustre , ou o grande homem da arte ou
da sciencia , e quando esse individuo depois de
preencher a sua missão singular na terra vai repou-
sar das lidas humanas no logar onde só ha paz e
dcscanço — as soledades do sepulchro ; a historia
rcgistn-lhe o nome nas suas paginas brilhantes , e
os ânimos generosos que licam apoz elle no dester-
ro da vida, e que vão continuando o sempre pro-
gressivo e sempre incompleto edilUio do idéas e fa-
ctos', chamado civilisacão , saúdam este nome, cc-
Icbram-no, repetem-no, depõem ante clic todos cs-
' ses pobres tributos de gloria , qne o presente paga
pontualraenlc ao passado para o haver do futuro.
O homem dislincto , no termo da sua carreira , le-
gando á terra o pó que recebeu da terra para se
encorporar no immenso vulto do universo , e a al-
ma á eternidade para que a abrigue no seio da in-
telligencia suprema , sabe que deixa uma palavra ,
um eccho era meio da sociedade e da vida , e que
este perpetuo soar de um nome é repercutido peren-
nc pelo agradecimento , pela admiração , e até pela
saudade dos seus naturaes , e ás vezes do gencro-
humano. E esta é a sua recompensa completa : foi
esse fnrao da gloria a sua causa final : n'esse pen-
samento , phantastico , c por isso contínuo e dura-
douro , está a explicação do seu padecer e sofTrer ,
c hictar e perseverar nos designios e obras da vida
inteira. Elle poz na balança do alvedrio d'um lado
a reputação, do outro tudo o que custa a gloria , e
achou que esta era de mór valia. Porventura o cal-
culo foi errado , ou foi em si mesmo um erro. Que
importa? — O que o fez julga-se recompensado,
morrendo na esperança da imraortalidade.
A imprensa é hoje entre os meios de cumprir
essa espécie de contracto do individuo com a so-
ciedade , e da geração que passa cora as que hão-
de vir, o principal , ou antes quasi o único. Esten-
dendo a sua magistratura sobre todas as formas de
existir em que se revela o homem extraordinário,
e mais robusta que a pyraraide de Chéops , sempre
em pé no meio dos outros monumentos que os sécu-
los derribam ou consomem, a imprensa pôde dizer:
— só eu sei o segredo de perpetuar a gloria.
Todavia , como as moles de pedra dos Pharaós
esse foco dos raios mais brilhantes e puros da in-
telligencia, não transmitte passivamente a mensa-
gem dirigida á posteridade. Éella — a imprensa —
quem julga , e quem formula o julgamento ; ella ,
rainha do mundo , porque o é das opiniões. Dis-
tribuidora do renome , muitas vezes o rcfusa ao
qup mais a teve em mira , e conccde-o áquelle que
actuando energicamente na sociedade ou nos enten-
dimentos— nos factos ou nas idéas, parecia menos-
cabar os vii.douros , e viver só para o presente.
E porque? Porque nos seus juizos a imprensa af-
fere os homens que foram , por dois lypos capitães
e exclusivos — o génio, ou a virtude: sem isto, a
severa dominadora das gentes não tem coroas para
lançar sobre os túmulos; mas só, para os cobrir,
o amplo e espesso manto do esquecimento , quando
não ata a elles a triste celebridade das maldições e
injurias.
Mas sendo a virtude ou o génio , isto é a força
moral ou a intellectual, a regra para avaliar os ho-
mens , a imprensa , se comraunimcnte não é injusta
nas suas decisões derradeiras, é ncllas incontesta-
velmente incompleta.
Incompleta, |iorque não regista senão as lembran-
ças daquelles que viveram para o mundo ; ([uc im-
|)rimiram na sociedade a sua energia individual ,
e que ainda nas vaidades da existência recolheram
])arte do premio que lhes assegurava o futuro.
Com tudo ha uma virtude modesta , traiiquilla ,
e silenciosa, filha do christianismo e sódelle — que
passa na terra desconhecida das turbas ; que não
deixa vestígios nas tradições humanas, e a que a
imprensa devia tirar da obscuridade a que ella mes-
ma se rondemna ; porque é a mais enérgica, amais
pura , a m.iis sublime de todas as que exclusiva-
menle pertencem ao homem do Evangelho, ao ho-
mem dos tempos modernos.
o PANORAMA.
Cf)
Esla virludp (• a da ABNEGAÇÃO.
Scri nos nossos dias, c no scpiikliro de um com-
palricio nosso, sobre cujos reslos ainda está revol-
ta a terra que os cobriu , onde iremos li\iscar um
dos mais formosos cxempbis desse esforço mural ,
quasi incrivcl, que sacrifica ri bnnestidade e ;i cons-
ciência todas as ambições e esperanças , sem pro-
curar sequer que a posteridade diga — aquellc foi
um homem liom-sto. — E ainda mal para nus que
nesta escolha cumprimos também um dever de gra-
tidão , e de sincera amizade.
Falíamos do Sr. Luiz Duprat , um dos ornamen-
tos do foro portuguez , fallecido pouco ha, cora ge-
ral sentimento dos seus numerosos amigos, e que
nenhum sorriso d'odio acompanhou amurada do vil-
timo repouso, porque a bondade do seu curarão lhe
conciliava o atfecto de todos os homens probos , e
a severidade do seu procedimento obrigava os maus
á veneração , e constrangia-os ao silencio.
Hoje que , infelizmente , no vigor da idade , elle
trocou o desterro das provas pela pátria das recom-
pensas , é até certo ponto um lenitivo para a nossa
magoa o ter de recordar a sua memoria para nos
servir de argumento ao que intentámos provar —
que a abnegação recusando a gloria , é a virtude
mais digna de ser olTcrecida como modelo e exem-
plo aos olhos da posteridade. Por dois modos é pa-
ra nós uma obrigação o faze-lo.
O Panorama deve em grande parte a sua existên-
cia ao Sr. Duprat ; porque foi elle um dos funda-
dores mais iniluentes e activos da Sociedade que
dirige a publicação deste jornal. Com a profunda
intelligencia e com o amor do bem publico que o
adornavam, conhecera aquelle cidadão virtuoso o
proveito que a illustração e moralidade podia tirar
de similhante empreza. Esperava delia resultasse
beneficio aos seus naturaes ; e com a tenacidade no
bem , que era a qualidade mais eminente do seu
caracter , trabalhou incansável para ver rcalisado
um pensamento que não o fora seu, mas a que elle
de coração íe associara. O resultado coroou suas di-
ligencias, e a sociedade mostrou-se-lhe grata. Até
o fim dos seus dias o Sr. Duprat foi o vice-presi-
dente escolhido constantemente por ella.
Seremos nós, portanto, agradecidos também ; mas
se-lo-hemus , sem mérito da nossa parte. Obrigados
a buscar na vida de um homem a demonstração da
idéa de moralidade e justiça que nos occorrèra —
a de recommendar a mais modesta e mais bella das
virtudes á estimação e respeito dos homens , nenhum
typo encontrámos que melhor satisfizesse todas as
cundições do nosso pensamento , que melhor resu-
misse tudo o que ha grandioso na abnegação , do
que as phases principaes da vida do Sr. Duprat.
E será esta uma biographia composta de datas ,
e dos successos communs de existência ordinária?
Não , porque em alvo diflercnte pozémos nós a mi-
ra. Reconheccmo-nos incompetentes e inhabeis pa-
ra alevantar as balisas da estrada que seguiu aquel-
lc que hoje é cadáver. Não são os factos da sua vi-
da , mas a significação moral e intima dellcs que
precisamos de avaliar: é isto o que importa ao nos-
so intento; é talvez ahi que se ha-de buscar o titu-
lo da sua gloria — da gloria como a deve entender
a civilisaçãu e este século, que estampa a ignomi-
nia na fronte dos Domingos de Gusmão e dus Gre-
gorius sétimos, e saúda os nomes dos Fenclons, dos
Carlos Borromeus e dos Caetanos Brandões, sem cu-
rar como pensaram dellcs os homens que os viram
morrer.
Kascido nesta classe que .is circumslancias da
presente epocha fizeram a mais forte de todas — a
classe media; dotado de alta energia c de robus-
tíssima intelligencia, o Sr. Duprat se destinara em
verdes annus á vida do comraercio. A educação que
recebera própria para este género de vida, fui, po-
rem, a causa de a aliandonar. No lirasil, aonde pas-
sara mui moço , o ministro de Dinamarca , Bor-
go de Primo, o fer como seu secretario particular,
por haver encontrado nelle , alem de lodos os do-
tes moraes c intellcctuaes , necessários para o bom
desempenho daquelle mister , o que era raro e de
estimar nos seus poucos annus , um conhecimento
profundo das duas línguas franceza e ingleza , que
o Sr. Duprat fallava no extremo da perfeição. Se
os serviços feitos por elle naquella Legação foram
valiosos; se a sua aptidão para ter parle em maté-
rias diplomáticas se demonstrou , e se finalmente a
sua probidade sahiu illesa de uma situação arris-
cada como é a de secretario particular de um em-
baixador , cousas são que basta um facto para as
fazer sentir. Não só o ministro , que servira , tra-
balhou com afimco para fazer entrar o Sr. Duprat ,
de quem se tornara intimo amigo , na carreira da
diplomacia portugueza , mas lambem o nosso go-
verno entendeu que devia porventura ir alem dos
desejos de Borgo de Primo ; nomcando-o logo se-
cretario da Legação dos Estados-Unidos , para a
qual , por sua importância , fora escolhido o Sr.
Silvestre Pinheiro , sugeito , cuja reputação come-
çava a ser já na pátria o que dentro de alguns an-
nos tinha de ser na Europa — uma reputação gi-
gante.
Aias então chegara para Portugal uma nova era :
era que só os vindouros , talvez , podem desassom-
bradamente julgar. A velha monarchia absoluta de
D. João 2." tinha cumprido os seus destinos so-
ciacs : devia ceder o lugar á monarchia mixta que
tinha e tem a preencher uma grave missão de pro-
gresso. Em 1820 as idéas, que havia muito iam de-
vorando as entranhas da sociedade antiga , revela-
ram-se n'um facto : este facto representava o futu-
ro : era o primeiro pensamento de uma serie im-
mensa de illaçues ; e estas illações resumiam todos
os desejos e esperanças dos homens , que amavam
de coração o seu paiz natal. Se uma lógica má não
aproveitou como cumpria um postulado verdadeiro
e fecundo , questão é que não vem ao nosso inten-
to , e que viesse , nem este logar nem a natureza
deste jornal nos consentira o tracla-la.
Aquelle acontecimento estrondoso encontrou o Sr.
Duprat nessa tão curta e passageira epocha da vida
em que o entendimento dos homens de superior es-
fera já tem adquirido os hábitos do grave e profun-
do cogitar, ao mesmo tempo que ainda o seu co-
ração conserva as crenças vivas , as paixões arden-
tes e as illusões risonhas da primeira juventude. E
a epocha das grandes ousadias, du enthusiasmo ,
das exaggeraçues , de tudo quanto ha poético , su-
blime e terrivcl nas almas fortes c generosas. Lan-
çai uma destas almas de fogo no meio de geração
que se agite em volta de algum desses insondáveis
pensamentos de transição, que de séculos a sécu-
los renovam a Índole e o aspecto das grandes famí-
lias humanas chamadas nações, e dar-vns-heraos os
desvarios , os erros falaes , as intolerâncias violen-
tas , se quizerdes ; mas lambem as virtudes mais
desinteressadas , mais nobres , mais bellas , as con-
cepções mais enérgicas, mais úteis, mais prolíficas.
Aquelle que se gaba de haver passado alravcz des-
70
O PANORAMA.
sas convulsões espantosas dos povos , os annos que
decorrem dos dezoito aos vinte e cinco, alheio ás lu-
ctas das idóas, e espectador indifferentc de um due-
lo , que sempre é de morte , entre o passado e o
futuro: — esse tal lastimai-o ! Mal sabe o desgra-
çado que se gloria de ter desmentido a grandeza
moral c intellectiial do ser humano ; que se gloria
da estupidez e da mediocridade. Os seus destinos
(oram nascer, vegetar, c morrer: , foram os desti-
nos da pura animalidade.
O Sr. Duprat abraçou as doutrinas que preexis-
tiam á rcvoluçrio , mas que ella convertera em fa-
rto material, cabraçou-as com sinceridade e amor :
Tnediu-as pelos seus resultados naturaes. Era um
proceder grande e honesto , tanto como o fora se
houvera seguido as contrarias com a mesma pureza
d'intenções , cora o mesmo fervor de crença. Nas
opiniões politicas só é deshonrosa a indilferenca :
porque é vil e covarde ; só é abominável o calcu-
lar o proveito que se pôde tirar das desgraças pu-
blicas , porque ahi ha um egoísmo atroz. A vida ,
porem , inteira do Sr. Duprat provou que elle não
compreheiídèra jamais o que é ser egoista e co-
varde.
Ninguém ignora que os acontecimentos de 1820
c os que se lhes seguiram foram o preludio doloro-
so de mais de vinte annos de dissensões intestinas.
Nellas temos sido todos sacrificadores ou victimas :
quasi todos uma e outra cousa. Podéramos nós,
emfim , perdoar uns aos outros sobre as cinzas dos
niartyres com que mutuamente havemos enriqueci-
do o larario de todos os bandos políticos! Essas
dissensões , logo no começo tempestuosas . arroja-
ram para a Europa o Sr. Duprat , que na edade do
22 annos aportou á terra que lhe dera o berço — a
Lisboa — onde nascera em ISOl.
O futuro devia antolhar-se-lhe então brilhante
em Portugal — Portugal dizemos, porque o Brasil
deixava de ser uma província nossa. Os talentos —
o vigor da edade — uma carreira de honras e es-
plendor começada na primeira juventude e cm car-
go por onde muitos a acabam na derradeira velhi-
ce— protegido ciricazmente no paço por um valido
do monarcha , e conhecido no mundo politico , on-
de se preparava a grande lide dos princípios , co-
ino um dos caracteres mais enérgicos , e severos ,
Iodos os sonhos daquclla aurora esplendida de vida
publica deviam ser dourados para o Sr. Duprat.
No seu coração ardente tumultuavam forçosamente
a ambição e a sede da gloria , ao passo que , por
fcrto , a consciência liic dizia que as suas esperan-
ças eram legitimas , c a rasão que eram fundadas.
Em qualquer dos dois campos do oppostas doutri-
nas elle podia buscar uma situação distincta, c por
esta em breves annos chegar á opulência c ao po-
der : n'um delles , ainda tão moço , seria recebido
como veterano experimentado ; os padecimentos c
riscos a que se evpozera pelas." opiniões progressi-
vas davam-lhe esse direito : no outro , talvez menos
rico de capacidades , a sua acccssão seria de gran-
de vulto, iíis o lisongeiro aspecto que se lhe offe-
recia para satisfazer as paixões mais cegas e vio-
lentas do coração humano , c muito mais violentas
c cegas naquelle que sabe o que pôde e vale.
l"oi neste momento que o Sr. Duprat — o mance-
bo de \inte c dois annos — resolveu votar-se ao es-
tudo, não para obter pelas lettras , com tempo e
com custo, a gloria e a preeminência publica, que
São fáceis se lhe ofTercciam na vida politica, mas pa-
ra seguir modestamente a carreira comparativamen-
te obscura de um simples cidadão ; para ser modcl-
lo do bom pae de famílias , do homem social como
o Christíanismo c a civilisação o requerem. Dir-se-
hia que prevendo a dissolução de costumes , que
as proccllas civis haviam de gerar , previra tam-
bém que dentro de vinte annos seria maior e mais
rara a grandeza moral da probidade singela, que a
da energia politica , ou a do engenho extraordiná-
rio e da vastidão da sciencia. Aquella alma pura
abnegou de paixões e esperanças ; porque viu que
a abnegação era a primeira virtude nesta cpocha
essencialmente alTeiçoada por egoísmo hediondo,
por orgnlho insensato, e por desmedida cubica.
Mudanças ha destas que, bem longe de serem ma-
ravilhosas , não revelam naquellcs em que se ope-
ram senão o desalento ante as dilficuldades da am-
bição. Refogem essas almas do aspecto do futuro ;
porque as aterra o preço de trabalhos , perigos , e
agonias porque se costuma comprar a celebridade.
Semelhantes espíritos ou se enganavam acerca dos
seus destinos , ou sentiram que as suas forças não
eram eguaes a estes. Das circumstancías , porem ,
que notámos na juventude do Sr. Duprat, e do que
elle foi depois na sociedade civil , se vè , que as
causas do novo theor de vida qnc seguiu , foram
alheias — contrarias até — a todas as considerações
externas ; c unicamente nascidas das nobres inspi-
rações da própria consciência.
Só a consciência ; só este senso intimo e myste-
rioso , que nos caracteres robustos c como um raio
de luz divina , porque sem violência impera abso-
luto , e sem raciocínios subjuga o entendimento ;
que trahe mil vezes o criminoso, e outras tantas
salva de si mesmo o homem honesto ; só este ver-
bo interior . que deu á phílosophía um Sócrates , e
ao Cbristí.mismo milhões de martyres, pôde produ-
zir a verdadeira abnegação ; porque esta não exis-
te onde não ha lucta entre o que se crê ou um de-
ver ou uma acção sublime , e os grandes interesses
materiaes ou as paixões mais indomáveis e ar-
dentes.
Essa revolução completa , não tanto nos hábitos
exteriores , como nas crenças , nas esperanças , nos
desejos ; esse abandonar, não tanto a realidade, co-
mo o que vale mais do que ella , a ventura c glo-
ria sonhada no porvir , postoque voluntário , é um
combate semelhante ao de .lacob e do anjo, entre
um pensamento de Deus e os affectos do mundo.
Vertcm-se ahi sangue e lagrymas ; porque os verte
o coração onde se pelejou essa terrível batalha.
Quando porem o espirito do Senhor tríumpha . não
tarda a descer do céu o bálsamo das consolações.
Esta victoria de uma idéa pura e santa custou
por certo ao Sr. Duprat o que ellas custam na sua
edade , n nas suas circumstancias. Mas não foi só
isso. Olhando cm roda de si, buscou uma prolissão
accommodada para viver em decente mediania , c
em que podesse vir a ser útil a si, aos seus, e á
sociedade. Qual mais formosa que a de advogado?
.\hi havia o salvar iimocenles ;' o remir de miséria
muitas famílias; o prestar ao fraco a força da in-
telligencia c da sciencia contra o poderoso; o am-
parar a viuva . o orphão , e o desvalido : o levar o
lirado severo da justiça aos ouvidos da iuiqtiidade.
Era a profissão mais adequada .í rectidão das suas
intenções, ás tendências do seu espirito, malsoflri-
do contra todo o género de corrupções e lyrannias.
Escolhcu-a pois. Passados dez ou doze annos o Sr.
Duprat era ura dos mais dístinctos advogados da
corte.
o PANORAMA.
71
Costumam os homens celebrar a memoria do fa-
moso capitão , que principianilo a sua carreira por
simples soldado, c arriscando a \ida era com bata-
lhas, se habituou a alTrontar a morte, e assim che-
gou a empunhar o bastão domando, clalvez o sce-
ptro de rei. Como se islo não bastara, a historia
iransmittc-lhe o nome á i)osteridade para exemplo
de vontade robusta , c de esforço indomável. L to-
davia que fez ellc? CoUigiu cem vezes em vinte
annos toda a energia , toda a intclligencia que pos-
suía ; em vinte annos cem vezes subjugou os terro-
res do sepulchro , para no fim cingir uma coroa, e
escrever o seu nome para a perpetuidade nos an-
naes do geuero-humano. Depois repousou. Alguma
■vez , á porta de seus paços esplendidos , mendigo
coberto do cicatrizes e de farrapos viria aqueccr-se
aos raios do sol, que o pai celeste envia ao podero-
so e ao humilde. Quem sabe se era veterano obs-
curo que verlòra o seu sangue nas cem batalhas do
homem illustre? Quem sabe se entre um c outro
havia tão somente o que chamámos fortuna , c que
a pliilosophia o o christianisrao chamara providen-
cia de Deus? Tahez esse nome , que não morrerá ,
significasse apenas o cumprimento de um decreto
de cima. E todavia a sua herança, alem do sepul-
chro , é a immortalidadel
Não assim a abnegação.
Vede o nosso mancebo. A mediania converteu-se
em alvo de todos os seus intentos. Lá não ha co-
roas nem gloria : no termo da vida não se enxerga
sobre o féretro, mais que lagrimas de poucos e leaes
amigos, c daquelles que a gratidão alli convoca.
Para ella a campa nãotemeccho; porque, em pou-
cos annos , os que choram o extincto terão passado
também. Depois a herança deslc na terra será ape-
nas uma — o silencio profundo do esquecimento.
iías no leito da morte ha o esperar do christão :
alem do sepulchro as recompensas de Deus.
É o premio da abnegação. Sem o chrislianismo
a mais formosa das virtudes fora monstruosidade
impossível. É preciso cvér na philosophia do Evan-
gelho para comprehender como a inlelligencia emi-
nente recusa as grandezas , o orgulho , e o pobre
renome humano, para se abraçar com ella.
E as mais das vezes a cruz é pesada : — coberta
d'espinhos , longa c íngreme a senda que leva ao
Gólgotha.
Onerosa foi aquella , rude e dilatada esta para o
Sr. Duprat. Xa profissão que escolhera cumpria-lbe
começar pelos chamados rudimentos das leltras.
Essa mente altiva , habituada ao meditar ; essa ra-
são que se ali.mentava de graves cogitações sobre a
sociedade , e sobre si próprio , vergou-se a estudar
as palavras de uma lingua morta , e passou pelas
forcas caudinas das puerilidades dos rhetoricos.
Aquelle que na voz da consciência tinha a prova
da immortalidade do espirito, pacientemente ouviu
o bom de ura professor provar-lha com raciocínios ;
e o homem da abnegação decorou sem sorrir as re-
gras d'Heineccio para ser virtuoso. A'encidas estas
dilliculdades , que talvez para o génio siso mais ár-
duas que para a mediocridade , o .Sr. Duprat en-
cetou e concluiu o seu curso jurídico.
Entretanto os ódios políticos , accumulados por
largos dias , tinham rebentado como prccelias en-
contradas sobre a terra da pátria. Desde as sauda-
des do desterro até o estorcer no patíbulo : desde
os amplos fratricídios das pelejas civis, onde os ais
e queixumes dos feridos e moribundos soavam n*u-
ma só linguagem , até a punhalada traiçoeira de
vingança implacável ; desde as epidemias morlife-
ras até os trances insoIVriveís da fome, Deus derra-
mou sobre nossas cabeças, durante seis annos, to-
das as dores c agonias contidas nos thesouros da
sua cólera. Quando, erafirn, respirámos um dia ; ou,
mais exactamente , quando o partido que primeiro
começara a padecer pode asscnlar-sc, vencedor mu-
tilado , junto ao cadáver de seu adversário , a re-
pousar sobre um montão de minas — a sociedade
antiga desapparecèra debaixo destas , e os elemen-
tos não só do força mas d'existencia da velha mo-
narchia, como a definira o século 16.°, haviam pe-
recido. No logar delia estavam apenas o pensamen-
to da sociedade moderna , os gladiadores arquejan-
do na arena , e o paíz devastado. Era uma epocha
a ponto para despertar todas as ambições — mais
que nenhumas, as nobres e generosas. Derribadas as
tradições hierarchicas, o poder era uma conquista ;
o gcnio e a energia as armas para o dispular. Hus-
ca-lo nessas circumstancias, e com intenções puras,
fora grande e forte ; porque as magistraturas poli-
ticas debaixo das condições d'honcstidade não se-
riam um legado precioso para a cubica , mas ura
variado marlyrio para o amor da pátria.
Concebida assim , a ambição , depois de termi-
nada a guerra civil em Í834 , podia ser uma vir-
tude havendo, como então havia no Sr. Duprat, a
consciência da superioridade intellectual , de pro-
fundo saber adquirido por largos estudos, e de uma
severidade de princípios moraes longamente prosa-
da. Por certo, grandes combates interiores teve el-
le de vencer contra si mesmo naquella epocha de
esperanças : mas o pensamento, que o guiara c sal-
vara no meio dos cataclysmos políticos , a sua tão
querida e buscada mediania — esse viver exclusivo
para os santos affectos de família , para ser amado
pelos beneficios feitos sem ruido, e acatado pela
integridade e pureza dos costumes públicos c do-
mésticos — começava a realisar-se ; c ainda mais
uma vez a abnegação triumpbou. O homem eloquen-
te , cogitador , e illustrado , sabendo que as portas
do parlamento se lhe abril iam de par empar quan-
do o quizesse ; sabendo qne desde esse ponto o ca-
minho do poder lhe era fácil ; esqueceu-se disso
tudo para cumprir os destinos que, por assim di-
zer , elle para si próprio creára.
Oito annos exercitou o Sr. Duprat o mister d'a-
dvogado : oito annos viveu em Lisboa no meio dos
seus concidadãos , que o conheceram c julgaram.
A immensa energia da sua alma não bastou uma vi-
da laboriosíssima repartida nas occupações do fo;"o,
na actividade com que se dedicava ao estabeleci-
mento de associações úteis, nas fadigas a que não
sabia esquivar-se onde quer que havia a derramar
beneficios , a enxugar lagrimas , a confortar desa-
lentos , a consolar amarguras. Essa energia não
achando ainda em tudo islo o necessário alimento ,
devorou-lhe rapidamente a existência , que organi-
sação robusta lhe promettia bem larga. Este homem
tão austero comsigo como indulgente com os outros,
e que nascera para padecer e soffrer ; para luctar
tenazmente com as paixões e com a dór , cumpriu,
até o fim a sua missão provideiKÍal , sem ter goza-
do de tudo o que na vida é suave e aprazi\cl se-
não os sentimentos atíectuosos de csfioso e de pae ,
e as santas alegrias que traz apoz si a certeza de
haver muitas vezes sacrificado o repouso, a paz in-
tima , e a fortuna , ao proteger c salvar desgraça-
dos , ao cumprir rigorosamente os deveres civis, e
ao favorecer todas as tentativas de verdadeiro e so;-
72
O PANORAMA.
lido progresso. Deus coroou o seu obscuro e inti-
mo m.Trtjrio , a sua abnegação sublime , com uma
afiliei iva eiiferniiiladc, que aos olhos dos outros pa-
recia incomportável , c que aos seus apenas signifi-
cava mais alguns dias de prova e de resignarão.
E elle K?\pirou Iranquillo. Deixava na terra seu
Telho pae, uma esposa, c seis fdhinhos. dos quaes
era único arrimo. Como pois lho eslava socegado ,
não o coração, onde tinha a sua sede a morte, mas
o espirito? Era que nessa hora suprema sentia que
ou tudo quanto clle creu , tudo quanto dezoito sé-
culos tem crido, era escarneo e mentira, ou a pro-
videncia não podia esquecer tanta orphandade. Es-
perou em Deus. porque era ura justo: confiem tam-
bém nelle os que choram. Vinte annos de honesti-
dade deram ao moribundo o direito de dizer ao
Eterno: — «Sètu, oh Senhor, o pae dos pobres
abandonados ! »
Que os brilhantes escriptores da historia cele-
brem os nomes dos que agitaram o mundo ; dos
que se assentaram victoriosos no campo dos homi-
cidios Icgaes e collcctivos, chamados combates, ou
transmudaram a face das sociedades, chegando aos
cdificios vacillantcs das instituições seculares o fa-
cho das revoluções. Nós escriptores do povo , hu-
mildes como elle , apenas fizemos aqui lembrada a
nossos irmãos uma virtude exclusivamente popu-
lar, e que os poderosos não podem comprehender ,
porque seria a negativa da sua existência. Esta vir-
tude é a abnegação. No meio dos que ora vive-
mos , o mais sublime exemplo delia foi a vida do
Sr. Duprat. Dizemo-lo do fundo da nossa consciên-
cia. Se nos enganamos, erga-se uma só voz que o
negue! — Nem entre os seus inimigos — se os ti-
nha— haverá por certo quem se alevante para nos
dizer : — Mentistes.
Fora difficultoso o prova-lo.
*
Em quanto durou o período penoso da doença
acudia multidão de pessoas de differcntes classes
da sociedade , soilícita a inquirir noticias do enfer-
mo : Ião espontâneo testemunho de milhares de con-
cidadãos, em que não havia distincção debando
ou de jerarchia , é manifestação absoluta da valia
do homem, por cuja vida todos se interessavam. —
Nas crises da moléstia , e desde o seu principio , e
no seu progresso até o golpe fatal , dois hábeis fa-
cultativos assistiram ao Sr. Duprat com os soccor-
ros da sciencia e com desvelado zelo; o seu parti-
cular amigo , o Sr. Dr. Bernardino António Gomes
foi lãtr-assiduo , quanto em casos taes pódc sè-lo o
homem , o medico , o amigo : o Sr. Barrai prostou-
se com o mesmo cuidado e efficacia-
NOVOS INVENTOS.
Brulote a vapor.
A fiCRRRA parece ter decahido da moda : os costu-
mes lhe são avessos. E entretanto nunca a imagi-
nação dos homens, c o espirito d'invenção tão uni-
versalmente espalhado se tem occupado com tanto
aOuco e com tão vastos resultados nas raaohinas de
guerra , como nesta nossa cpocha. O luxo das ar-
tes , o progresso das sciencias naluraes nada quer
écixar por tentar : a arte e a sciencia de matar gen-
te não tem ficado retrograda. Fortuna será para o
género humano se estes novos inventos ficarem ser-
vindo sómetite para ostentação scientifica, consigna-
da na imprensa , e exposta nos museus.
Entre as temerosas machinas de guerra , que ha
pouco mais de um anno se estavam preparando em
Woulwich na Inglaterra , nenhuma se considerava
tão terrivel como a do brulote a vapor, sem exce-
ptuar mesmo o outro chamado infernal que cuspia
um esguicho de fogo mais longe do que as bombas
hydraulicas de maior força atiram ura rcpucho de
agu?. Estes brulotes consistem em dois fusos ou
grossas bainhas cónicas formadas de aduelas for-
tissimas ou tábuas apertadas com arcos de ferro co-
mo se faz aos lonneis. Estas duas azas cónicas se
prendem aos lados d'uma comprida prancha de pi-
nho longa de 80 a 90 pés. Sobre esta espécie de
jangada se estabelece um destes velhos barcos de
vapor, da força de 6 a 15 cavallos , que se encon-
tram [nos portos d'lnglalcrra principalmente] pelo
valor da ferragem que ainda contéra : na extremi-
dade da proa um canhão paixhans carregado até á
boca termina o apparelho.
Esta raachina é destinada a ser despedida com
toda a celeridade de que fór capaz, durante a noi-
te, contra o flanco dos navios inimigos. A ponta ou
aguilhão de ferro do pranchão se encrava no costa-
do do navio, e a força do choque incendia o canhão
que abre uma larga brecha ao lume d'agua , põe o
fogo á embarcação e a melte irremediavelmente a
pique n'um raomento.
O que ha de particular nestas machinas éque se
por acaso não aferram o objecto perlcndido , conti-
nuam sua marcha era linha recta em quanto lhe
dura o combustivel ; e é fácil retorna-las a 1 ou 2
léguas de distancia por meio dos barcos a vapor :
apanhadas , e reforçadas com novo carvão , se lan-
çam de novo.
Assim que , um cento destes brulotes que não
custariam talvez mais de 8 on 10 mil francos cada
ura, pôde dar cabo de 100 navios de guerra. O
inventor baptisou-a com o nome de dardo do mar
[javelot de mer] , porem os marítimos se obstinam
a chamar-lhes lançadeiras do mar [navettes de mer]
porque são lançadas e tornadas a lançar até que se
abalroem com os navios adversos.
= A guerra marítima, diz o jornalista , donde
extrahiraos o artigo, vai mudar inteiramente de fa-
ce ; o vapor só operará tudo ahi , bem depressa ; e
o combate terá logar entre machinas. A potencia ,
que tiver maior numero destas c mais engenhosas ,
estará segura da preeminência no mar e na terra ,
na paz e na guerra. =
J. da C. X. C.
Montanhas submarinas. — Alguns gcographos , n»
começo do presente século , suppozcram que por
debaixo do mar se dilatara cordilheiras de montes,
que não manifestam os extremos rumes aciraa do
nivel das ondas , excepto em desmesuradas alturas,
que constituem ilhas escarpadas ; cia parte desta
hypothese concordam com os raais antigos escripto-
res. A America e a Africa [dizia o celebre liuachej
estão ligadas por uma serie de terras muito e mui-
to superiores ás profundezas do abysmo marítimo :
as ilhas dos Açores , que encontrámos no Atlantici)
são pontos culminantes desta cadeia de serras sub-
marinas.» — Se a idéa deste A. não fór absoluta-
mente verdadeira, tem pelo menos grande probabi-
lidade n'uma infinidade de casos e localidades.
63
o PANORA3IA.
73
ZUBTSATO DE VAN DYCK.
SiBiDO é que foi Rubens o fundador da grande es-
chola de pintura , dila ílamcnga ; — Yan Dyck foi
o seu melhor discípulo , e por isso o segundo na
ordem dos que illustraram essa eschola. Watelet ,
escriplor entendido na matéria , diz : — « Se não
põem Van Dyck. como pintor d'historia, na mesma
catiiegoria que Rubens, confessam que excedera es-
te na delicadeza dos toques e das cores , e que no
mais algumas vezes o igualara : se não teve o mes-
mo calor d'imaginação, a mesma abundância de ta-
lento , empregou por outro lado traços mais mimo-
sos , melhor caracter de desenho , mais verdade no
colorido. Pela reunião destes bellos dotes que pos-
suía , talvez que viesse a ser superior ao mestre se
não tivesse sido dislrahido do género histórico, que
pintava com summo gosto. Como retratista tem ine-
gavelmente o primeiro logar depois do Ticiano , e
mesmo este não lhe leva a palma senão pelo que
respeita ás cabeças , porque o flamengo vence-o na
elegância dos accessorios , e os reproduzia com a
maior verdade conservando a sua maneira franca ;
arcusava o caracter de tudo o que queria represen-
tar sem caliir todavia naquelle modo frio e falto de
graça que muitos julgam próprio do género de re-
tratos , como se todos os géneros de pintura não
tivessem igualmente por lim a expressão das appa-
rencias da natureza : sempre as suas attitudes são
simples, e agradam sempre porque são naturaes :
nas cabeças puz tanta expressão de verdade como
perícia d'arte. » — X fecundidade do pincel de Vaa
Makco 11—1843.
Dyck assombra , como a de Rubens , e mais ainda
como a de Raphael, porque Rubens falleccu velho.
Verdade é que para o fim de seus dias , quando
em Inglaterra se via cercado de muitas obras , ti-
nha adoptado certa maneira cxpeditiva : não foram
porem esses painéis acabados á pressa que lhe ad-
quiriram subida reputação ; o grande numero de
quadros da melhor cpocha da sua vida provam que
bem sabia ligar a facilidade de maneira cora o aca-
bado e perfeição conveniente.
António Van Dyck nasceu era .Antuérpia em 1399 :
pela afleição ás artes e aproveitamento no estudo dis-
tÍBguiu-se logo entre seus condiscípulos , merecen-
do a estima e elogios do mestre, lin dia que Ru-
bens sahíra da officína a espraiar e refrescar a ima-
ginação , como elle dizia , Van Dyck e seus compa-
nheiros entraram no gabinete do mestre para exa-
minarem um «descimento da cruz» que andava pin-
tando , approxímando-se porem demasiado do qua-
dro , e tropeçando um cahiu , e desfigurou o braço
á Jladsalena . e a barba á Virgem , a que Rubens
acabava de dar o ultimo retoque ; temerosos das
consequências que a sua imprudência occasionaría,
estavam insensatos sem saberem tomar resolução ,
quando um dclles mais arrojado bradou: «É mis-
ter que sem perda de tempo remediemos este ruim
acaso : temos ainda três horas , tome o mais habil
a palheta e tente reparar o que se desfigurou : por
meu voto elegeria Van Dyck:» — todos applaudi-
ram a escolha, excepto o preferido: mas instado dos
2.' Serie. — Vol. II.
74
O PANORAMA.
companheiros, c receoso do enfado do mestre, pòz-
sc ,í obra , c a desempenhou rom lai mestria que
Jiuhens, ao examinar na seguinte manhaã o que
]iinl;ira no dia anterior, disse era presença dos dis-
cípulos que medrosos o estavam olhando " — pare-
cc-mt' esse braço e essa cabeça o melhor que hon-
lem acabei.» — Este quadro do descimento, dos
mais formosos de Rubens , existe agora na igreja
(ie X. S/ d'Antuerpia.
Cubicou Van Dyck conhecer o famoso Hals , c a
esse intento fez expressamente uma viagem allaar-
lera : vaãs foram as suas diligencias para o achar
cm casa , e afinal resolveu-sc a deixar-lhe recado
de que uma pessoa o esperava para retratar-se : —
quando se viu na presença de Hals , dissc-lhe que
era um estrangeiro , e que desejava lhe tirasse o
retrato, porem que para essa tarefa sú podia dispor
do tempo de duas horas : Hals tomou o primeiro
pedaço de tela que lhe ficou ;i mão , e depois de
haver pintado breve espaço pediu ao supposto es-
trangeiro se erguesse para observar o que estava
feito: — o modelo dçu-se por mui satisfeito da co-
pia , e travando conversações indiffercutes . trouxe
a campo o assumpto da pintura , de que disse ler
algumas luzes , c que se lho permittisse mostraria
o pouco de que era capaz ; e tomando lambem ou-
tro panno, rogou a Hals que occupasse o logar que
olle havia deixado : assim foi feito por mutua con-
descendência ; mas que assombro foi o de Hals quan-
do ao levantar-se viu o retrato! — "o senhor por
certo é Van Dyck 1 — foram as suas primeiras vozes,
abraçando o collega com transportes de admiração
e afTecto. Desde então os dois artistas mantiveram
reciproca e sincera araisadc.
Aan Dyck visitou , para instruccão própria , Ro-
ma , Florença , Génova e Nápoles , c também via-
jiin pela Sicilia : de volta ;í pátria deu-se , já então
bastante conhecido , ao exercício de sua arte ; e
por esse tempo aconteceu com elle uma anecdo-
ta , que devemos referir. O cabido de Courtray en-
commendon-lhe ura painel para a bòcca do retá-
bulo do allar-niór da coUegiada : o artista ])inlou
nm Christo crucificado , e escolheu a situarão em
que os algozes, acabando de pregar no madeiro a
Ticlima sagrada, arvoram a Cruz para a fixar no
solo : concluida a obra veio appresenta-la ao cahi-
ilo , os cónegos concorreram a vè-la e declararam
unanimes que a pintura era detestável e o pintor
ura ridículo borrador. A custo pode conseguir que
assentassem o quadro em seu logar c lhe satisfizes-
sem o preço. Todavia algumas pessoas curiosas, in-
folligentes da Arte , passaram por Courtray , viram
e louvaram com admiração o painel , deitaram boa
fama deile por outras terras de Flandres, e os bons
ç competentes juizes , e professores , que o vieram
contemplar , declararam que esta crucifixão era o
melhor quadro do auctor. Os cónegos , pasmados
então de sua crassa ignorância , Icmbraram-se de
encommendar mais dois painéis a Van Dyck , que
lhos fez a justiça que mereciam, e se desforrou do
uístilto que recebera , não acccítando a obra.
Viajou novamente este artista, deixando nas prin-
cipaes cortes vestígios do seu talento , príncípal-
nienle como retratista, porque nãó lendo rival nes-
tií género era pelos príncipes e jjoderosos procura-
<}o • assim adquiriu riqueza bastante, apesar da
profusão de seus gastos; onde principalmente au-
gmeiílou os seus lucros foi na Inglaterra , sendo
chamado a Londres por Carlos 1." que lhe prodi-
galisou distincções c favores : nesta corte tratava-
' sr como rico e cavalheiro , e desposou-se com a fi-
lha de lord Ruthwen , d'uma casa mui illustre da
Escócia; todo o dote da senhora consistia porem
em alta jerarchia e extremada bellcza.
Van Dyck era pródigo e ostentador : sabia ser
cortesão , como entre outras se mostra da seguinte
anecdota. — Retratando a esposa de Carlos 1.° de-
tinba-se nimiamente a conlemplar-lhe as mãos que
eram mui formosas , no que attenlando a rainha
perguntou-lhc porque se esmerava mais em copiar
as mãos do que o rosto: — respondeu o artista: —
«porque espero, senhora, que essas mãos me dcem
recompensa digna de (|uem tão lindas as possue.u
■ — Fallcceu cm Londres, de ^2 annos , em l(iíl.
A Perda d'Arzilla.
[1349.]
Era noite : do céu limpo e seieno
Milhões d'estrellas tremulas pendiam ,
Quaes as nocturnas lâmpadas d'um templo ;
E as ribas ermas sussurrar se ouviam.
D*allerosa galé o negro vulto
Corta ao largo — bem largo — o mar do Algarve
E lá nas serras d'Alrica fronteiras
Branqueja a espaços o albornoz do alarve.
Como tocheíros , com brandões accesos ,
De um féretro ao redor ,
Cuja vermelha luz o horror da morte
Só faz sentir melhor :
Taes as nocturnas almcnáras fulgem
Nas torres d'atalaia ,
Pelos outeiros , que circumdam muros
De povoação na praia.
Arzilla , a guerreira ,
Hi jaz na afllicção ,
Que a rendeu aos mouros
Elrei Dom João.
Tomar-te-ha Deus contas ,
Rei fraco e jirasmado ,
De tão grande vilta ,
De teu grão peccado.
Maldíz-lc nos mares
Valente fronteiro ,
Que ua sé de Ceuta
Se armou cavalleiío;
Que dez aduares
Em Tanger queimou,
E em muros d'Alcacer
Dez elches matou ;
Que era hoje d'.\rzilla
Temido adail ,
E a quem tu mandaste
Fugir como vil.
*
Vcde-o lá na gavia
Da negra galé ,
De braços cruzados ,
Imraovel , em pé.
E a náu que arfa e voa
Na fremente via ,
Ferindo na esteira
Fugaz ardentía.
E d'Afríca as praias,
Que a ré vão fugindo:
o PANORAMA.
Vò
E as vagas que rolam
Distantes imitindo.
Em roda , o silencio —
Xo céu , noite escura :
E o peito (lo triste
Confrange ;i amargura.
Do veterano as faces
O salso pranto rega ;
Nos africanos montes
Saudoso os olhos prega.
Sento no seio as anciãs
D'incomportavel dòr ;
E ás vezes range os dentes
Em trances de furor.
Um cântico á su'alma
A indignação inspira :
Vae sussurra-lo ao longe
Aura que branda espira.
O canto do Àdail.
Ouando. ao longe, nos campos d'Ar2Ílla,
-Vlvejava do mouro o albornoz ,
E corria , e corria veloz
O ginete de Bellaraarim :
Quando o esculca , sabido da villa
Da raanbã ao primeiro fulgor ,
Não podendo a atalaia transpor .
Vinha ás portas bater de Çaíim :
Quando era Tanger , a forte , se ouvia
De armaduras continuo tinir,
E nos ares se via luzir
O montante , a acha d'armas , e o criz ;
Quando era Ceuta vencida se erguia
Soljre o alcácer pendão portugucz ,
Contra o qual na mesquita de Fez
A gaziia pregava o caciz :
Quando Alcacer-Ceguer, a viçosa ,
Que em vergéis se reclina gentil,
Pela noite fragrante d"abril
Centre os robles sorria ao luar;
Porque , rico de presa formosa ,
Já voltou nobre alcaide christão ,
E inda ao longe de incêndio o clarão
Tinge o céu sobre um triste aduar :
Nossa estrella era então esplendcnte ;
Nosso nome era um som de terror ;
Nossos pães conduzia o Senhor,
Qual Judá d'entre a sarça do Horeb.
Portugal , oh leão do occidenle ,
Tu rugias á beira do mar ,
E o teu grito cá vinha troar
Temeroso no ardente Almagreb ;
Era o tempo dos crentes e ousados :
Era o tempo da gloria da cruz I
Ora contam-se as páreas d'Ormuz;
Tem só nome Cochim , Calecut. ' ■
E esses muros dWrzilla , regados
Com o sangue de ra.irtyres mil ,
Ermos hoje tu deixas, rei vil ,
Porque o Estreito passou Rais Dragut '.
Oh valentes da Índia , do oceano ,
Roncadores de feros no mar ,
Cuja espada , porem , faiscar
Não sabe inda do mouro no arnez ,
Mostrar vinde o valor sobre-humano
.Neste clima de sol mirrador '.
Aqui fama se compra com dòr:
Fácil gloria esquecei uma vez.
As galés do arrais mouro são fortes ;
Sua chusma berbers de Takrur ;
Como o vosso rei indio , IJadur ,
Não ha-de elle acabar á traição.
L'ma festa de sangue c de mortes
Do occidenle nas vagas tereis;
Elmos rijos aqui achareis ,
Não o craneo d'inermc sultão!
Mercadores! — deixai vosso cravo,
A canella , a pimenta , o marfi ;
Os vestidos de seda despi ;
Ponde em vez de collar um gorjal.
Vella e remo soltai no mar bravo ;
Vinde junto de nós combater ;
Nós que Arzilla deixámos perder ,
Porque elrei . . . . c um rei desleal.
Para nós os castellos d'avante :
Para nós a arrombada , e bailéu :
Para nós pelejar ante o céu ,
Que nos campos d'Arzilla nos viu :
Para nós o machado e montante : —
Para vós a bombarda e arcabuz : —
Para nós , ao cahir , ver a luz ,
Ver a mão que estes peitos feriu :
Para nós o tombar derradeiro
Sobre o férreo esporão das galés : —
O pelouro , de sob o convez ,
Cá de longe enviar .... para vós ! —
O sudário do morto fronteiro
Alva escuma da proa será :
E em seus lábios — Árzdla\ — ouvirá
Quem ouvir sua ultima voz.
*
E elles — os fortes d',4sia — não vieram
Do cavalleiro d'Africa ao chamar :
E a náu d'elrei ao infamado Tejo
Veio aportar :
E o adaíl dcpoz as armas , rotas ,
Não no espaldar ;
Que nunca o bom fronteiro viram mouros
Costas voltar.
E tomando o bordão de peregrino ,
Foi-se á Batalha , que é mosteiro pobre
De dominicos ,
Frades mui santos , que os judeus queimavam ,
Porque eram ricos ;
No meio desses túmulos que encerram
Os despojos mortaes dos reis que foram ,
Féretro antigo
O adaíl procurou: — de ura rei soldado
Era o jazigo.
Quando o viu , ajoelhou nos degraus dcllc ,
E palavras , que as lagrimas cortavam ,
Lhe dirigiu :
Maldição para alguém pedia ao morto; „ -
Mas nada ouviu ! , ;
Então , lívido o rosto , os lábios brancos ,
X fronte lhe pendeu sobre o ataúde
Do rei extincto :
Expirara ao dizer — -pcrdcu-se Arzilla! — •
A .\tronso Quinto.
(A. Herculano.)
o PANORAMA.
IGBEJA SO C£MITZKIO AO NO&TE SE IiOMDKES.
AVENIDA EGYFCIA.
«No KERVOR da agitarão da vida iremos parar á
pousada dos mortos, u =Tal foi o pensamento que
nos occorreu ao seguir a ruidosa estrada de Cam-
dcii , olhando para os marcos que indicavam o tri-
lho do Cemitério ao norte de Londres. — Ha urna
distracção para <iuom fitr pelo ramo inferior do ca-
minho , suliurhano da metrópole , em que se des-
fructam algumas paizagens amenas, c que em bre-
ve esparii guia ao mesmo recinto melancholico, dan-
do a entrada para o declive meridional da eminên-
cia , em (jue a igreja está situada , e dispostos os
inoniiiiicnlos em relação ao assetito do templo. —
Chamamos a este logar melancholico pelas recorda-
ções que suscita , pelas saudades que renova , pe-
las feridas <i'alma que de novo faz sangrar : tería-
mos sob esta consideração o direito de lhe darmos
a denominação Ue triste c digno de aborrecimento :
mas a arte humana , que esluda niuilo jiara disfar-
çar magnas cabalar sentimentos, emhcllezou, quan-
to podia, este conimum jazigo de graiule parte dos
moradores da opulenta e muito povoada Londres.
— Pompas e applausos e monumentos fúnebres se
não poupam de ordinário; isto é, vaidades de vi-
vos , consolações do orgulho , que não aproveitam
aos mortos ; e só a familiares caprichos , a ostenta-
ções publicas satisfazem. — Não se diga, porem,
que promulgando ião severa moralidade , quere-
mos , ou como cynicos entregar os despojos mor-
laes as prezas das feras, ou adoptar o meio, conta-
gioso para os vivos , de sepultar nos recintos aco-
bertados dentro das cidades , quer sejam templos ,
quer logares a esse fim espccialmenle sagrados: —
trazemos sij á lembrança o ponco apreço das hon-
ras fúnebres , como quem se persuade que não ha-
o PANORAMA.
77
verá epitaphio que salve da maliliorão da posleri-
(iadc o homem que uão andou reclainenlc nos ca-
minhos da vida social : assim como não ha sarco-
phago que escouda o reproho ao seu eterno e faial
destino.
A primeira vinheta mostra a igreja , da commu-
nlião prolcslantc, no cemitério ao norte de Londres:
■■1 secunda é iransuniplo do que chamam — a aveni-
ili e^ypcia — porque com seus oheliscos , entrada
de prolongada volta d'ahobada , arcliilcctiira maci-
ça c pezada , indica o cslylo de construir que os
egypcios tiveram : at(! os informes monumentos da
apparição da arte tem sido imitados om miniatura
pela insaciável vontade de cousas singulares, de
que SC acha possuida a geração moderna.
O Bobo.
1 128.
VII.
O homem do zorame.
Os TRES personagens que o conde de Trava vira en-
caminharem-se para a corredoura contigua aos mu-
ros do castello , c cujos passos e conversação man-
dara observar ])elo pagem , iam demasiado preoc-
cupados para haverem de reparar nos jogos c brin-
cos de Truetezindo e dos seus companheiros ; e
tanto mais que na viella perpassavam também ás
vezes os ovençaes , uchõcs , e sergentes occupa-
dos nos preparativos do banquete , tornando assim
menos notável a pessoa do pagem , cujas feições ,
até, já não seria fácil divisar na estreita passagem,
a certa distancia, e á luz duvidosa do longo crepús-
culo , que no verão vem apoz o sol posto , e que
era a hora a que esta scena se passava.
Kssa claridade do fira da tardo seria comtudo
ainda bastante forte para o Lidador e Fr. Hilarião
conhecerem o mensageiro que os buscava , senão
fora o grande capuz dozoramc, onde tinha como su-
mido o rosto . do qual apenas eram bem visiveis
dous olhos brilhantes e uma espessa barba loura.
Quasi ao mesmo tempo os dous haviam chegado ao
pé do desconhecido, e lhe tinham perguntado d'on-
de vinha e quem o mandava, k res|!Osta do peão
foi tirar um pequeno rolo de pergaminho , atado
com fio negro , de uma bolça de couro que trazia
pendente do cinto , e pò-lo nas mãos de Gonçalo
Mendcz.
O Lidador recebeu a carta e perguntou de novo :
«Mas quem te mandou , peão?»
( «Ura cavalleiro portuguez — respomleu o desco-
nhecido— que encontrei mui malferido na alberga-
ria dos hospilalarios era Gaza. O triste c cativo qua-
si que se morria.»
Estas palavras excitaram quasi ao mesmo tempo
curiosidade c receios no espirito de Gonçalo Men-
dez ; e quebrando rapidamente o fio negro entregou
a carta a Fr. Hilarião , dizendo-lht :
«Como a vós vem também a mensagem, lereis
esses riscos pretos que ahi estão. — Por minha boa
espada! — cousa é que nunca entendi.»
Não era raridade : quasi toda a Qdalguia d'então
se podia gabar de outro tanto.
Fr. Hilarião desenrolou o pequeno pergaminho e
começou a lèr. Entretanto o Lidador filou os olhos
no peão, cuja voz lhe parecia ter jú muilas vezes
ouvido. . .,_.. . , .. , .,,.,,,
«Pobre mancebo! — exclamou o ahbadc , tremu-
lo , e empallidecendo. »
«Ouem? — interrompeu Gonçalo Mendcz voltaii-
do-so para clle sobresaltado.
«Fm cavalleiro — re|ilicou Fr. Hilarião ■ — que
amei como filho : c que o desejo de oITerccer á da-
ma que requestava um nome glorioso, levou á Pa-
lestina. Só talvez eu soube a causa de sua partida,
de que muitas vezes tentei dissuadi-lo ; porque pre-
via o que succedcu. Oh que em quanio o pobre tro-
vador assim morria por Dulce, ella folgava em seus
novos amores com Garcia líermudez. — Mulheres,
mulheres ! »
«Egas Moniz, ó, pois. morto? — interrompeu tris-
temente o Lidador, que das palavras do abbade co-
nhecera de quem era a carta. — Mensageiro, ([ue
dizes tu? Sabes certo (]ue clle é finado?»
Fm gemido inV(duntario do peão , que recuara
ouvindo as palavras do abbade , fora a causa desta
pergunta.
«Digo-vos, senhor — tornou o peão com voz al-
fogada — que ora é ellc morto.»
Mas o cavalleiro não reparou na sua perturba-
ção : o monge começava a ler alio o pergaminho
que tinha nas mãos. A magoa do Lidador era pro-
funda ; porque a sua alTeição por Egas fora cons-
tante e sincera. Póz-se a escuta-lo. e, bem como ao
velho ÍT. Hilarião, as lagryraas lhe rolavam pelas
faces.
« Escrevo-tc , Gonçalo Mendez — lia o abbade- —
nas vésperas talvez de morrer. Deus porventura não
quer que meus olhos tornem a ver o logar onde
nasci. Novas são aqui vindas de que Fernão Perez
de Trava tem reduzido á condição de vassallo o no-
bre filho de meu senhor, o conde Henrique. Criei-
me cora o infante : sei que elle não o sofIVerá largo
tempo , nera os ricos horaens de Portugal o soffrc-
rão lambem. A minha espada pertence áquelle de
quem a recebi em Zamora : resolvi-me por isso a
atravessar os mares. Um recontro com os infiéis me
cortou, porem, os passos. Tu, Lidador, accorrerás
ao infante mellior que o seu Egas, que o seu irmão
d'armas. Cem lanças entre acostados e homens de
tuas honras , podes por em seu campo : eu a custo
lhe levaria cincoenla. E, alem disso, não vale a lua
espada dez vezes mais que a minha? Se a guerra
for começada sei certo quc^já estarás com D. Aflbn-
so. Um pobre romeiro portuguez me jurou sobre a
cruz dar-tfr esta carta onde quer que te encontras-
se.— Faze-lhe mercê por minha alma.»
Durante a leitura do pergaminho, humedecido
pelas lagrymas do velho, o desconhecido havia pro-
curado conter as paixões que lhe agitavam o espi-
rito. Gonçalo Mendcz ficara cm silencio , apertando
cora a mão a fronte. O homera do zorame dirigiu-
se então ao abbade :
nOuairto a vós, venerável monge, o nobre ca-
valleiro me ordenou vos buscasse cm vosso mostei-
ro ; que vos peilisse ura triutario cerrado de vossos
frades , e que vos lembrásseis dello era vossas ora-
ções. Agora que mandais de mim?»
«Vaes partir? — perguntou o Lidador, com um
tom em que parecia revelar-se a desconfiança.»
Já — tornou o romeiro. — É noite ; e não sei ain-
da se é longe se perto o termo da minha jornada.»
E de feito havia anoitecido : os paços começavam
a illuminar-se , e os candelabros e tochas vertiam
atravcz das frestas e balcões dos aposentos reaes
uma luz brilhante , cujos raios baliam de chapa no
vulto rebuçado do mensageiro. O cavalleiro c o
78
O PA1VORA3IA.
monge olhavam íilos paracllc. Depois Gonçalo Mcn-
dcz disse algumas palavras ao ouvido de Fr. Uila-
rião , e prosegiiiu o seu interrogatório:
«Para onde, pois, te diriges? — disse ellc ao
descíinliecido , hesitando , e como quem já a custo
continha na alma bem diversos pensamentos.
<< l'ara onde Egas Moniz — respondeu cora vehe-
inencia o homem do zorame — cria qnc eu vos en-
<'ontrassc , meu senhor cavalleiro : para o campo
de D. .\fronso. Peão como sou, irei pelejar por elle,
que c meu senhdr natural. Que osricos-hnmens fol-
guem entretanto nos paços onde estranhos gover-
nam , onde D. Thereza se esquece do que o infan-
te (• fillio de D. Henrique.»
Jyitão Gonçalo Mendez fazendo recuar o capuz
que cobria a cabeça do supposlo mensageiro, olhou
para clle alguns instantes. Á luz nocturna que o
allumiava reconhcceu-o então. As suas vivas sus-
peitas se haviam realisado.
"Egas! Egas! — exclamou, apertando-o ao peito
— pensavas que o som da tua voz podia nunca cs-
quecer-me? — Como ousaste assim entrar era Gui-
marães ; — tu, sobrinho do senhor de Cresconhc ;
tu , um dos da linhagem de liiba de Douro? —
Para que esta carta cruel que veio arrancar lagry-
mas ao bom Fr. Hilarião, que te ama como um fi-
lho? Cria-te ainda na Syria. ■>
«De lá cheguei ha poucos dias — respondeu o
mancebo , lançando um dos braços á roda do pes-
coço <lo velho monge que tentava lambem abraça-
lo chorando, mas de contentamento. — As primei-
ras novas de que o infante e os infanções de Portu-
gal tentavam sacudir o jugo do conde de Trava di-
rigi-me ao arraial de D. Alfonso que se encaminha-
va para aqui. Lá o teu nome ca affronlado cora o
titulo de desleal pelos teus inimigos. Estavas em
Guimarães : as apparencias condemnavam-te , e o
meu coração padecia. Vim poisdizcr-tc — Lidador,
é tempo de combater ! Oueria . porem , saber pri-
meiro se as rainhas palavras tinham na tua alma a
mesma força que d'antes : queria saber se a tua
amisade havia expirado como o amor de Dulce ,
que eu já sabia se esquecera de mim : foi para is-
so esta carta. Sei agora ao certo que ainda te pos-
so dar o suave nome de amigo ; sei emfim que a
amisade dura mais que o amor. Vós — accrcscen-
lou elle voltando-sc para o monge — perdoaes-me
por certo a magoa que vos causei ! i>
«Oh, meu filho, meu filho! replicou Fr- Hila-
rião : para que vieste expòr-tc á vingança de Fer-
não Perez , que mortalmente odèa a linhagem de
Kiba de Douro? Podias tu duvidar da lealdade do
mais generoso e valente dos ricos-homens de Por-
tugal ?...!>
«Xão : mas era necessário que pndcsse dizer aos
que de desleal o accusam : — vús mentis, e sobre
isso porei meu corpo ; c mentis [)orque de sua bo-
ca ouvi eu que na hora do combate o seu pendão
se hasteará Junto da signa do infante. Não direi
nisso a verdade, meu bom o leal cavalleiro?»
«Egas — respondeu o Lidador: — que te impor-
tam a li ou a mim os ditos de alguns sandeus?
<Juando ellcs ousarem vir a Guimarães dizer o que
ainda hoje (ionçalo Mendez disse na cúria ao con-
de de Trava , Ic-los-hei então por mais esforçados
e niais leaes do que elle. Até o lím pri)Curei evitar
esta guerra atroz d'irmãos. Perdi a derradeira e.s-
perança. Agora volta ao arraial ; e piules allirmar a
Allbnso Henrique/, que dentro de dons dias outenta
homens ({'armas c sessenta bx'steiros da terra da
Maia estarão no seu arraial. Dizc-lhe mais, qne o
traidor Gonçalo Mendez espera com vinte cavallei-
ros que elle chegue para se unir a seus pendões,
não de noite como salteador covarde, mas á luz do
do meio-dia , era que peze ao conde de Trava.»
A indignação do rico-homem rompera como tor-
rente ; o monge , porem , confrangia-sc , Icmhran-
do-se do perigo a que se expozera o imprudente
Egas .Moniz. Assim, inlerrompendo-o, disse ao man-
cebo :
oÉ necessário que parlas já. No meio do ruido c
confusão do banquete; entre a multidão de genlo
que vaguca ainda pelo castello e pelo burgo , nin-
guém te conhecerá. Mas qualquer imprudência pô-
de perder-te : qualquer imprudência ! . . . Reptara
bem Egas. Estes paços encerram para ti a morte. •
Erara o amor e o ciúme do moço trovador que
o bom do monge mais receava. Sabia quanto clle
amava Dulce : conhecia a violência das suas pai-
xões , e que a do ciúme devia ser terrivel naquel-
Ic coração. Porventura o motivo da sua vinda a
Guimarães não fora só o que dizia. Estas idéas ,
que de golpe tinham occorrido a Fr. Hilarião, lhe
faziam desejar cora tanto affinco a partida breve do
cavalleiro.
«Não sei porque a rainha vida periga dentro des-
tes muros — replicou Egas Moniz. Ha mui jioucos
dias que cheguei a Portugal; e o conde de Trava
não sabe se o meu balsão Quclua no arraial do in-
fante. . . »
«Esqueceste depressa na Terra santa — interrom-
peu o monge — que quando ha ura cadáver d'as-
sassinado entre farailia e familia , a vingança , se-
gundo o brutal foro d'Hespanha , que os santos câ-
nones ainda não poderara destruir , dura de pães a
filhos; convoca, sob pena de deshonra , todos os
parentes do morto c do assassino a lides atrozes e
a ódios implacáveis. A linhagem de Riba de Dou-
ro segue toda os pendões do infante. O conde folga-
ria com que a de Trava c Trastamara fosse chama-
da a defender os dclle pela voz imperiosa do que
ricos-homciis e infanções crêem brio e dever. Lem-
bra-te , meu filho , da linhagem a que pertences ,
de que o conde é homem feroz , e que tu serias
uma victima illustre para pretexto de perpetua guer-
ra de homizio entre Portugal e Galliza.»
O mancebo ficou por algum terapo pensativo r.
murmurou: — «cumprir-se-ha meu destino! De-
pois voltando-se para o abbade disse-lhe : — «Ficai
tranquillo, bom Fr. Hilarião , esta mesma noite sa-
birei de Guimarães. »
"E breve! — acudiu o Lidador. — O esforço não
excluo a prudência. Se todavia alguém tentar em-
bargar-te os passos não te esqueças de que Gonçalo
Mendes está aqui, e que tcra comsigo vinte escu-
deiros valentes. »
Neste instante as trombetas tocavam pelos eirados
do paço e pelos adarves do castello , c ouviam-se
romper da banda da sala d'armas os sons ásperos
o vibrantes das charamelas.
« fi o signal de que começa o banquete — notou
o abbade , a quem similhanles sons eram suaves ,
ainda nas maiores angustias. — íí necessário appre-
sentarmo-nos a tempo , para não causarmos suspei-
tas. ))
Egas apertou a mão do Lidador, abraçou o mon-
ge, o puxando o capuz do zoranie para diante, se-
guiu ao longo da viella . em quanto os dois retro-
cediam e se encarainhavam para a escada principal
do palácio, com passos lentos c conversando em voz
o rAINOKA31A.
79
baixa. .Vnles de; chesrarem acima viram passar por
cllcs um pagL-ni ;;algamio os degraus qualro a qua-
Iro , c riiuiii cnmo um perdido.
<i Estes rapazes são doidos!» — disse o monge
para o seu companheiro de modo que o pagem o
ouvisse.
Este olhou para traz, litou os olhos era Fr. Hila-
rião com !íra\idade cómica , e deu uma gargalha-
da , continuando a galgar a escadaria.
Era Tructcsindo.
fÇontimtar-se-ha).
(Â. Herculano;.
PORTLGAL. .
XXIV.
COJIO V VU.1.\ DF. S\>T.\nKJI IIOIVE V.ÍRIOS NOMES (•).
MtiTO remotos, e escuros são os tempos a que hou-
>cramos de recorrer , se tomássemos por empreza
escrever acerca da fundação desta anliquissima vil-
!a : e SC os tempos, por apartados, nos dariam gran-
de , e por ventura baldado trabalho , cm rastrear a
verdadeira era , não nos dariam menor as incerte-
zas das historias , e das memorias, que nos ricarara
dos diversos povos , e gentes , que ou por vários
casos , ou por atrahidos da riqueza , fertilidade , e
doçuras deste nosso pai/., dclle se fizeram senhores,
c por ellc fizeram e sotTreram durissimas guerras,
c continuados sustos. O que se pode ter por sem
dúvida é que os fertilissimos campos de Santarém ,
e a natureza defensável daquelle Idgar convidariam
desde logo os primeiros habitadores deste paiz a
ficarem alli de assento, e a edificarem a vjlla na-
quelle mesmo ponto , que a natureza formara como
atalaia . e defensão dos riquíssimos e alegres valles
que o cercam. Não nos embaraçaremos aqui com a
natureza , origem c costumes desse primeiro povo ,
que lançou os fundamentos desta Ião formosa e tão
histórica villa ; pois que tratando somente do seu
nome , ou nomes , força é que sobresaltemos todas
essas verdadeiras ou fabulosas historias, c que ape-
nas apontemos ossnccessos que se casam com o nos-
so ponto ; nem entenderemos na fe que nos elles
merecem. O primeiro nome , do que havemos me-
moria , que os antigos lusitanos dessem a esta nos-
sa villa , foi Scalabis . e lambem scalabicastrum .
ambos procedidos da mesma origem, e prendendo
no mesmo succcsso , o qual , segundo as historias ,
passou quasi doze séculos antes da era vulgar por
esta forma. Levando os lusitanos daquelle tempo
grande enfado na duração do seu governo republi-
cano [senão era que amestrados pela experiência
queriam ser governados por outra melhor forma]
elegeram rei ura natural , chamado Gorgoris , de
cujos espíritos e boas partes esperavam grandes me-
lhoramentos para o paiz , e mormente para a agri-
cultura , em que era homem entendido , e de gran-
de reputação por haver introduzido , ou animado a
creação das abelhas , e o uso do mel e da cera : se
outras doçuras , ou outras luzes trouxe a este povo
o novo rei, não o sabemos nós : o mais que nos diz
a historia , e o que vem ao nosso caso é que uma
sua filha dera á luz uni menino , que por certo não
fora desejado . nem esperado por elrci , seu avô ; c
que por isso , e pelo mais , que dabi podéra arrc-
(•) A'id. a noticia de Santarém coui uma estampa a
pag. 172 e sei;, do vol. 3." da 1." Serie.
cear por si , e pelo reino , o mandara cllc malar, c
lançar ao Tejo , julgando que com a morte deste
innoceiíle ficaria mais segura , ou menos oITendida
sua coroa : porem l)a!dado foi este bárbaro empe-
nho : que os decretos da Providencia estão muito
fora dos compassos da prudência e da ardileza hu-
mana. C)Tcjo, que em maravilhas não devia de ser
Inferior nem ao Nilo , nem ao Tibrc , senão que
aos mais famosos do mundo linha de ser igual ou
superior; o Tejo toma brandamente cm seus braços
o menino , e como que o vai acalentando até o en-
costar em mimosa cama de rosas e de mangcrona
na margem próxima áquelle sitio aonde está a villa
de Santarém , e ;'onde foi salvo e creado , dando
depois, do seu próprio nome — que foi Abi d ix : e do
successo — noineá villa 5c(j/aW.v, ou Escalabis, como
se dissera esra Abidis , isto é logar aonde .Vhidis foi
alimentado. Não occultaremos a circumstancia, que
nos referem as historias, /leque foi uma corça quem
primeiro acudiu ao menino e lhe serviu de ama :
nesta parte não tem o nosso Abidis (juo invejar a
Cyro , ou a líomulo.
O segundo nome que teve esta villa foi Jidium
Prwsidium cm obsequio de ,lulio César, quando já
quasi toda a Lusitânia estava feita colónia romana ,
e se dava por grande honra este titulo ás suas me-
lhores cidades e villas : nem se julgue que foi só á
força d'arraas que Roma alcançou tanto favor dos
lusitanos; que bem cara lhe custou a confiança qiio
nellas punha , vendo muitas vezes rolos e vencidos
seus exércitos por este povo ; e não podendo levar
d'elle o melhor senão por feias traições» ou por
grandes promessas e muita brandura. Este ultimo
partido seguiu Júlio César, e logrou com privilé-
gios, honras, isempçõcs e liberalidades, o que não
podéra alcançar com o esforço de seus exércitos ;
viu abrandar-se o orgulho lusitano , e pacificar-se
esta rica província. Foi então celebrado seu nome
por muitas partes. Beja tomou o nome de Par Jú-
lia, Évora o de Liberalitas Jiiliu. Merlola o de Jú-
lia Mirlili^, Lisboa o de Feliatas Júlia cOm as hon-
ras de município de cidadãos romanos para os seus
moradores , c Santarém trocou o nome de Scalabis
j por o de Julium Pra-sidium como levámos dito. Mas
i nem a grandeza das honras , nem a lembrança dos
i beneficios , que de Júlio César receberam os lusl-
! tanos , poderam apagar em corações tão avessos ao
j domínio estranho o que delle conservavam e lem-
I bravam esses nomes : acabaram , e quasi que estão
] esquecidos !
' [Coticluir-se-Iia.j
A ELEV.^ÇiO DO HOMEM SEM MEEITO.
C.vDA homem tem o seu talento que deve cultivar ,
o seu destino que deve seguir, a sua mota que não
i deve ultrapassar. Sc cultiva um talento que a na-
: tureza lhe não deu . se segue um destino que ella
I lhe não marcou , se ultrapassa a mela qne ella lhe
poz , perde o tempo . o trabalho , a consideração
I que d'ouíra sorte alcançaria; e torna-se um objecto
' de desprezo e de riso.
Todo o que pertender , como o atrevido Ícaro,
sahir fora da sua esphera natural , e alar-se a uma
região que lhe não pertence , valendo-se unicamen-
; te das azas de sua vaidade , tão perigosas e frágeis
como as de cera que ícaro levava em sua temerá-
ria ascensão, conte que hadc >oltar para o ponto
I d"onde sahiu , e será muito feliz se não destroncar
8t)
O PANORAMA.
as pernas no seu retrocesso. Os repetidos naufrágios
(lestas raachinas aerostaticas deverão escarmentar os
l>resumidos ; mas a filáucia c incorrigivel , c zom-
ba de todas as lições da experiência.
Gire cada um dentro do seu círculo, que do con-
trário tirará desagradáveis resultados. Dispa-se de
invejas e d'arabições , e i'ão passará pela serasabo-
ria da gralha du fábula, que, namorada da formo-
sura das pennas dos pavões , c querendo fazer li-
jíura no meio destas aves , voltou espicaçada e co-
berta de vergonha para a sua grei. O mundo cora-
põe-se de tudo , tem pavões, e tem gralhas: ser
gralha não é villeza , mas querer ser pavão é lou-
cura. Cada ente tem o seu destino, e a sua impor-
tância : se os pavões se gloriam da sua bella i)lu-
luagem , as gralhas podem gloriar-se de ler ensina-
do os caracteres das lettras aos homens , como dis-
se Lucano nos seus versos. Ninguém se vá metter
onde não cabe , nem queira representar no theatro
da sociedade papel para que não tem arte : se nas-
ceu para o ridículo, não aspire ao serio; se tem
alma i)ara o pathelico , deixe o terrível; se sahiu
azado para lacaio , não vista a purpura , nem era-
])unhe o sceptro. Esta doctrina está Ioda cifrada no
canou de lógica : —
ISlIdl aggrcdilor , imita Minerva.
Não se abalance a nada algum mortal
Contra seu génio , c instincto natural.
Os que se deslembrara deste saudável aviso , tão
documentado pelas lições da experiência , de ordi-
nário são victimas do seu orgulho e da sua vaida-
de , e merecem que se diga delles o mesmo que o
nosso Miguel do Couto Guerreiro diz , na sua Arte
{loetica , dos que se mettera a poetas sem vèa : —
Elks tem para versos tanto sueco
Como para solfista tem o cuco.
O publico , da sua parte , põe-se a rir de todos
os que menoscabam esta máxima salutar , e que
procurara uma importância que a natureza lhes não
deu , como Iodas as aves se riem das vaidosas per-
tenções do cantor de maio : —
Houve grande galhofa , tudo ria '*'
Uos louvores que o cuco pertendia.
Nem as artes , nem as sciencias , nem as ropu-
lilicas hão mister dos serviços de homens , que não
nasceram para exercer as primeiras , para cultivar
as segundas, para administrar as ultimas. Jlas dei-
xando tudo o mais , consideremos só — A elevação
do houíera sem mérito. —
Se os horaíus tivessem menos orgulho , vaidade
c ambição , c mais alguma tintura de modéstia , e
mesmo de um amor próprio mais delicado , as re-
publicas seriam mais bem servidas, e não veríamos
tanta gente elevada , que, para interesse seu e do
publico, nunca deveria passar da esteira cm que a
natureza oscollocára, marcando-lhes expressamente
o seu destino pelo talento cpela habilidade que lhes
dera.
O nosso século appresenta , nesta matéria , uma
carreira tão pouco delicada, que desalia a indigna-
ção c o riso dos homens sisudos e cordatos. Vemos
que hoje cada um se constituo juiz de seu mcrito
pessoal , e que o não julga devidamente considera-
do e premiado, em quanto ha uma vantagem a con-
seguir , uma honra a lucrar, um interesse a haver,
um degrau a íubir na escala da jcraichia social.
Os antigos esperavam que os chamassem para os
cargos; os modernos procuram-nos. Os antigos, ain-
da depois de chamados, hesitavam muitas vezes,
meditavam comsigo , ajudavam-sc do conselho dos
amigos, olhavam para o peso do emprego e para a
capacidade dos bombros , cnlendiam-se com o céu,
e não eram poucos os que acaba\am i)or agradecer
a mercê, sem se poderem resolver a acceita-la. —
Agora qualquer homem, que não tem muitas vezes
outra importância senão a que elle mesmo dá a
si, julga-se asado para tudo , e trabalha para se
coUocar onde a ambição e a vaidade próprias lhe
dizem que é o seu logar.
As circumstancias dos tempos fazem muitas vezes
reputações que nunca existiram, nem existiriam pa-
ra todo o sempre, a não ser o poder magico e crea-
dor das mesmas circumstancias. Vale hoje um ho-
mem, d'uma ui)nucadissima mediania, pofque vende,
a quem quer que o tire tia sua obscura e devida
posição , a sua omnimoda cooperação. Alguém que
precisa destes manequins, com quanto conheça a sua
nullidade , considera-os , ajuda-os , facilila-lhes a
elevação, e vai rindo ás escondidas dos misera\eis,
e fazendo os seus arranjos. Os nossos homens , cujo
relevante mérito está cifrado no seu orgulho e no
seu descommedido atrevimento, lulam a bochecha ,
alteam o sobroliio , regulam melbodicamcnle o mo-
vimento dos olhos , concertara os ademanes , mesu-
ram o passo , compassam as falias , e reputam-se
umas notabilidades , que ainda merecerão uma es-
tatua , ou ao menos um epiíaphio honroso que os
distinga lá nocampo da igualdade. (Juem os .ijudou
vai bem : tira o seu interesse , tem os seus escra-
vos , e , emfim , lá sabe o seu jogo. A republica ,
porem , e aquclles que os sofírem é que não vão da
mesma sorte.-. — a republica porque é mal servida,
e os que os soílrem porque são victimas da sua ina-
ptidão.
Elles que se levantaram do logar onde a nature-
za os collocára [que bem sabe o que faz ! ] dão por
paus e por pedras, e, segundo o citado Guerreiro : —
Por isso de seus loucos desvarios
Tiram só paleadas c assovios.
Os que estão de fora vendo a representação co-
meçam de rir a panno cheio, como as aves se riam
do pardal de que já falíamos, e vão dizendo uns
para os outros, fazendo uma engraçada parodia dos
versos de Guerreiro : —
Elles tem para empregos tanto suceo
Como para soljista tem o cuco.
(O Moralista.)
fígsques petrificados. — \a margem Occidental do
Missouri , [>'orte-.4.merica] algumas milhas acima
do sua juncção com o Vellow-stone [o pedra-ama-
rella] , as lombas das serras , que estão superiores
ao nível do rio obra deSitoesas, mostram um
pbenomeno credor de mui especial observação ; por-
quanto a superfície inteira desse terreno se desco-
bre semeada de troncos , raízes , e ramos de arvo-
res , mas tudo convertido em substancia de pedra :
— quem as vè, capacita-se que algumas arvores fo-
ram arrancadas pelas raízes, outras partidas acima
do pé. — Dois olhcíaes das tropas dos Kstados-l ni-
dos [vulgo America ingleza] mediram um dos tron-
cos maiores e acharara-lhe \inte e dois palmos de
circumferencia. . ,
64
o PANORA3IA.
81
TAJl^í^CA DS. I.OUÇA, XM MIBAGAYA.
PORTUGAL XXV
Porto.
Por vezes lemos fallado da nobre e rica cidade do
Porto [a segunda deste reiao a lodos os respeitos]
com a consideração que merece , e com a largueza
que comportam os limites do nosso Jornal e a som-
ma de noticias que havemos adquirido. Começámos
pelo bosquejo do caracter geral de seus habitantes
no 3.° artigo sobre o Minho, quo inserimos a pag.
147 do vol. 2." da Serie antecedente , tratámos es-
pecialmente do Douro a pag. 177 do vol. 3.°, e das
particularidades concernentes á cidade a pag. 281
desse vol., 1(51 do i.°, c 233 do 5." — Xa presen-
te Serie 2.', por occasião de eslampar-mos o cons-
pecto da igreja de Cedofeita , discorremos sobre a
muita antiguidade dessa collegiada ; agora colligi-
remos as encontradas opiniões de dois cscriptores ,
ambos nacionaes e ecclesiasticos , acerca da epocha
da fundação da freguezia de S.Pedro deMiragaya :
— e se pelo que loca ao edifício , representado na
gravura com que este numero abre , nnda podemos
dizer , quer da casa , quer do estabelecimento [que
vem a ser a fabrica de louça de Miragaya] é por-
que , ou por negligencia e ommissuo , ou por mal
fundados receios , não nos foram ministradas as in-
formações que soUiciíámos de pessoa apta a forne-
cè-las. Sabemos só que desta manufactura está sa-
hindo boa louça.
Miragaya é um bairro assaz povoado , ao sul
da cidade, e fronteiro a A'illa-N'ova de Gaya , cir-
cumstancia de que tirou o nome ; está em relação
ao Porto, guardadas as devidas proporções, como o
M.\Rr,o 18— 184o.
dibíricto d'.\lcanlara para com Lisboa : tem um lar-
go , guarnecido de arvores , assim como de um pa-
rapeito á beira do rio , e de boa casaria com vista
para o Douro : as grandes cheias salvam aquella
guarda e vão na parte opposla inundar o pavimento
das logeas : por tempo ameno é este largo um pas-
seio agradável. — Alem de outras , a principal in-
dustria do bairro consiste em muitas ferrarias.
Pelo que respeita á igreja parochial í edificio raui
apoucado e mesquinho, erecto ou reparado, no lo-
cal de outro mais velho, mas cuja remotissima an-
tiguiilade é contestável , pela boa critica , como se
verá do segundo cxcerplo , que poremos aqui. —
O arcebispo D. Rodrigo da Cunha , exprirae-se a
este respeito, no Calai, dos bispos do Porto, 2.'
part. cap. 43.°, da maneira seguinte —
— «O padre fr. Miguel dos .\njos . chronisla da
Ordem dos Eremitas de St.° Agostinho , em certos
papeis que nos mandou , tocantes ás cousas deste
bispado [em que nós o consultámos como pessoa tão
douta nas antiguidades e como natura! desta cidade]
nos escreve que a cidade do Porto esteve [segundo
tradição] primeiro na paragem em que está agora
Miragaya, o dahi a mudaram os suevos para o mon-
te da sé e paços do bispo : pelo que lhe parecia que
a igreja de S.Pedro de .Miragaya fora edificada por
S. Basilco , primeiro bispo do Porto, e dedicada a
S. Pedro , que ainda então vivia , e viveu alguns
annos depois , qucrendo-lhe S. Basileo , com esta
honra [lagar a saúde que lhe dera á poria do tem-
plo em Jerusalém, como em sua vida deixámos re-
ferido (lo Juliano , arcipreste de Toledo : que o te-
ve por aquelle coxo, que o santo apostolo sarou in-
do em coDipanhia de S. Joãu , á porta especiosa do
templo : opinião que o padre fr. Luiz de todo abra-
ça , e nós agora , cora auctoridade de tal escriptor,
2.° Serue. — YoL. 11.
8-2
O PANORAMA.
temos por mais provável. E já pôde ser que este foi
o primeiro templo que o glorioso apostolo S. Pedro
teve dedicado a seu nome » —
O padre Agostinho Rebello da Costa impugnando
o que acima fica transcripto , diz por este modo , a
pag. 103 e segg. da Descripç. do Porto , cap. 3.°
— «Porem devendo eu fallar com aqueila circums-
pecção digna de uma matéria tão grave , digo que
não posso concordar cora esta opinião, hera que abo-
nada por tão doutos o respeitáveis escriptores : —
primo; porque já mostrei no cap. 1." que esta ci-
dade fora fundada pelos suevos, sem que até aquel-
le tempo houvcíse nella povoação alguma mais que
o pequeno logar de Gaya , que íica da parto me-i-
dional do Douro, e que forma cora Villa-Nova um
grande hairro da cidade ; e se até aqucUe tempo
não havia povoação alguma , como podiam haver
bispos que a governassem? — Secundo; porque é iii-
crivcl que em vida dos apóstolos houvesse quem
consagrasse templos á sua memoria tcrliú : em
nenhum Concilio, ou geral ou provincial, nem ain-
da era escriptura ou documento algum authentico
apparece nome de bispo que fosse desta cidade até
o tempo do bispo Constâncio: os nomes dcArisber-
fo , Thimotheo, c Viator , que fazem único liispo
da igreja de JUeincdo no districto deste bispado,
são igualmente excluídos pelas rasõcs expostas, qiie
se mostrariam mais energicamente e cm toda a sua
extensão se eu houvesse de tratar este ponto funda-
mentalmente.— Não deixarei comtudo de escrever
ura particular fundamento , que junto aos referidos
me confirma na opinião de que foi Constâncio o pri-
meiro bispo do Porto. Sabc-se perfeitamente que
fundando elrei Theodomiro a igreja de Cedofeita
pelos aunos de 339 fora sagrada a mesma igreja no
anno seguinte de 360 por Lucrécio , bispo de Bra-
ga. Ora se havia no Porto bispo que podesse cele-
brar este acto, para que foram buscar o bracharen-
se?. . Se eslava então vago o de Porto, porque ra-
r.ão não consta esta vacatura dos aulhcnticos e an-
liquissimos documentos , guardados no arcliivo da
mesma CoUegiada ? Porque rasão não consta da ins-
cripção lapidar, que está sobre a porta principal,
c que é um compendio de tudo o que alli se obrou?
Porque rasão não consta da copiosa attcstação, que
enviou ao St.° P." João 2:í.° o bispo do Porto D.
Fernando P.amires no anno de 1318, que refere
cora admirável exacção toda a historia da sua ori-
gem? Mas como hade constar, se na mesma attes-
lação se declara que adita igreja fora edificada pri-
meiro que a cathedral? Sendo pois esta posterior
áquella , como seria possível que tivesse bispo para
a sagrar, naquelle aimo de 360? — O que se sabe
com certeza é que esta igreja de S. Pedro de Mi-
ragaya já estava edificada no anno dcli33, cmque
foi nella depositado o corpo de S. Pantaleão , mar-
tyr , padroeiro da cidade " —
A igreja de Mirugaya goza a permissão pontificia
de Lauspereime em todas as quintas feiras do anno ;
e possue uma imagem de Jesus Crucificado , tida
de longos tempos era grande veneração dos fieis.
AkCHEOLOGIA 1'OUri'GL'EZA.
V[.
Viaijcm a Portugal dos cavalleiros Tron c Lippomani.
(1380.)
QukNoo o anno passado offereccmos aos leitores do
Panorama vários extractos da viagem do cardeal
Alexandrino (1) tendentes a fazer conhecer, melhor
do que se conhecem, as nossas antigas cousas, pro-
meítemos ahi extrahir algumas passagens de outro
livro inédito, que nos pareciam dar no alvo em que
tínhamos posto mira. Este livro é uma narração da
viagem dos dois embaixadores mandados pela re-
publica de Veneza cumprimentar Philippe 2.° pela
conquista de Portugal. A epocha da viagem é quasi
a mesma da que já extractámos ; mas o auctor ano-
nyrao desta toca outros pontos mui diversos dos que
em grande parte haviam dado matéria ás observa-
ções do antecedente escriptor. No presente manus-
cripto , a relação do caminho que os embaixadores
fizeram pelas províncias nadr, contém que não se
ache em obras [)o:tuguezas impressas. Na descri-
pção, porem, particular de Lisboa, apontam-se tan-
tas parlicularidaúes sobre os usos , hábitos e grau
de civilisação do paiz, c tantas noticias económicas
ignoradas, por certo , dos leitores , que julgámos
conveniente lançar aqui a memoria dessas cousas,
que porventura importam mais á historia do que
commummente se cuida.
Na descripção geral de Lisboa e particular das
igrejas, paços rcaes , Iiospital , &c. nada ha notá-
vel nesta viagera , senão os muitos erros acerca de
quasi tudo o que é histórico , em que o auctor só
parece ter consultado pessoas menos instruídas em
taes matérias. Nessas descripções o bom do vene-
ziano , auctor do livro , segue o estylo eommura no
seu terapo : as igrejas são grandes, aceadas , ricas ;
os paços vastos, sumptuosos, nobres ; e com isto se
contenta. Não assim no que vamos extractar , co-
meçando pela noticia da fonte dos cavallos d'aramc,
já tão celebre no tempo de D. Fernando.
« Para o lado da porta que chamam da Cruz , ha
outra fonte , ou antes lago , que denominam dos ca-
vallos ; porque da boca d'alguns cavallos de metal
sa ; tanta agua, que forma uma corrente a modo de
ribeiro. >> , ...
(c Posto que Lisboa seja tamanha e tão nobre po-
voação , não tem palácio algum de liurguez , ou de
fidalgo , que mereça consideração quanto á raate-
ri,> : e quanto á architectura apenas são edifícios
muito grandes. Ornam-os, porem, de tal modo que
na verdade ficam magníficos. Costumara forrar os
aposentos de rasos (2) , de damascos , e de finíssi-
mos razes no inverno , e no verão de couros doura- ^
dos mui ricos, que se fabricam naquella cidade. ji
As ruas, bem que largas, são muito ínconimodas, ''
por subidas e descidas contínuas a que obriga a
desigualdade do terreno Por isso usam os mo-
radores andar a cavallo , do que procede vcrera-se
naquella cidade bellissimos ginetes , que os portu-
guezcs compram por todo o dinheiro, atlendendo a
grande estimação cm que os tcera. Não usara de
coches , e quatro ou seis que ahi havia eram de
castelhanos que seguiam a corte. Quanto as ruas
em geral são más e incómmodas para andar assim
a pé como era coche , tanto é fácil , deleitosa , c
bella a Uua-nova pelo seu comprimento c largueza,
mas sobre tudo por ser ornada de uma infinidade
de lojas, cheias de diversas mercadorias para o uso
de nobre c real povoação. — Entre cilas ha quatro
ou seis que vendem objectos trazidos da índia , co-
mo |)orcellanas finissimas de vários feitios, conchas,
(1 1 Viii. a |iat'- 5;H c 3-15 ilu Vul. l.", preseiitu ticrie.
Çi) lias o , [luuuos de lan sem felpa.
.■ ■. r. i
\H/:\r.
o PANORAMA.
»3
cocos lavrados de diversos modos , caixinhas guar-
necidas de raadroperola , c oiilias ohras similhan-
tes , que d'aiitcs se compravam i)or moderado |ire-
ço , mas que ullitnariienle eram caríssimas |)or Ires
respeitos: o da peste que havia assolado a cidade;
o do sacco dado pelos castelhanos quando entraram
em Lisboa , bem que eiroi houvesse ordenado ao
duque d'Alva tal não consentisse aos soldados ; c
ultimamente pela rasão de não terem vindo arma-
das da índia durante dois annos. .\a mesma llua-
nova ha muitas lojas de livros, com infinito numero
dellcs cm portugucz , castelhano , latim e italiano.
Todos são mui caros ; e por isso os estudantes , por
serem pobres , costumara mais aluga-los [como ahi
dizem] a tanto por dia, do que compra-los. Não de-
ve esquecer aqui , que na praça chamada do Pe-
lourinho velho estão de continuo assentados mui-
tos homens com mesas ante si (3) , os quaes se po-
dem chamar notários ou copistas sem caracter de
oiliciaes públicos , e que neste exercício ganham a
sua subsistência. Sabida que c a idéa de qualquer
freguez que se chega a elics , immediatamente re-
digem o que SC pertende , de modo que ora com-
põem cartas d'araore5 , de que se faz grande gasto ,
ora elogios, orações, versos, sermões, epicedios ,
requerimentos , ou outro qualquer papel , cm esly-
lo chão ou pomposo. Junto da Rua-nova ha muitas
outras mas, cada uma das quaes tom suas lojas de
uma só espécie de mercadorias. Ka dos ourives do
ouro havia muitas mal abastecidas de pedras pre-
ciosas, de pc-olas, d'ambar, e d'almiscar, em con-
sequência da tardança da frota. \ prata em Lisboa
é lavrada com delicadeza e variedade , por ser cos-
tume, assim entre nobres como entre plebeus, usa-
rem de pratos e bacias de prata. Ha igualmente
ahi lojas cheias de doces e frutas seccas , c cober-
tas, primorosamente preparadas, de que se faz gran-
de trafico, mandando-as para diversas partes do mun-
do. Vende-se também , em uma única rua , grande
quantidade de telas de Ioda a sorte , portuguczas ,
flamengas c italianas: das. primeiras são na verdade
bellas algumas que chamam casiquino [ ? ] mui finas
c alvas, e alguns lenços á mourisca, que são bara-
tos e lindos. IVoutra parte , em certa viclla , tra-
balham delicadamente ao torno, cm que fazem guar-
da-soes de barba de baleia , obra acabada , e cocos
lavrados a modo de taças , com embutidos de ma-
deira do Brasil. Vasos de estanho , c mais objectos
deste metal se fabricam abundantemente n'outra
rua , e se carregam para a índia , onde dão grande
lucro.
O comraercio da praça de Lisboa é muito consi-
derável pela correspondência que tem ordinariamen-
te com todas as outras da Europa e do Novo-Mun-
do , de modo que as permutações são importantís-
simas , e os negociantes possuem grossos cabedaes ;
porque só nas especiarias e drogas, que vem a Lis-
boa , depois que expirou pelos annos de 1304 o
commercio da Syria , c d'Alexandria , ganham rios
de dinheiro, que perdem os nossos venezianos, pois
eram elles quem fazendo trazer estas preciosas mer-
cadorias pelo Mar-riixo a Beyruth e a Alexandria ,
d'alli as transportavam a Veneza nas galh''S d'alto
bordo. Bem como costumam partir deSe>ilha todos
os annos armadas para irem ás índias occidentaes
pertencentes á coroa de Caslclla , assim costumava
(3) Desla velha usança de Lisboa faz já menção D. de
Góes na descripçSo de Lisboa, escripla em latira na primei-
ra metade da século 1G.° — de que aisum dia daremos os
extractos mais curiosos.
clrei D. Sebastião mandar ordinariamente uma fro-
ta de Lisboa ás índias orientaes. No anuo om que
este rei morreu, partiu no mez de março para Ma-
laca , segundo me contaram , uma náu del:''(()0 to-
neladas , c um mez depois mais cinco do mesmo
porte para (ióa. Lra este o numero de vasos que ia
aniuialmente, e aquella a monção da partida. Kssas
naus levavam carga delrei e dos particulares. Por
couta destes ia vinho , azeite , pannos linos de va-
rias cores , d'lnglaterra , Flandres c Castella , bar-
retes finos c ordinários de Toledo , escarlatas de Ve-
neza c de Valência , rasos de Florença , sarjas de
lan de Flandres, marlotas de Constantinopola, acol-
choados e calças de seda de Nápoles , Vídludos de
Génova , damascos de Lucca , taffetás e calças de
seda de Toledo , sarjas de seda e luvas de Valên-
cia. Por conta d'elrci carregavam-se coráes cm bru-
to e lapidados , azougue , cinabrio , arame , espe-
lhos c diversos vidros de Veneza , mercadorias que
ninguém podia enviar sem expressa licença delle.
O que , porem , principalmente se exportava era
uma grandíssima porção de prata cm reales caste-
lhanos, negocio em que se ganhavam 30 por cento ;
e aflirmaram-me que os contractadores das especia-
rias , e vários outros negociantes mandaram nas
cinco ultimas naus para Góa um milhão e trezentos
mil ducados. Este tracto havia crescido a tal pon-
to que era de maior lucro a ida que a volta
A carga para Lisboa consistia principalmente em
pimenta a- granel , que devia subir , por contracto ,
pelo menos a trinta mil quinlacs, c que se dividia,
metade para elrei , que não entrava neste negocio
com somma alguma, e a outra metade para os con-
tractadores que tinham o exclusivo da pimenta : o
quinhão de elrei compravara-na ordinariamente os
mesmos contractadores a 32 ducados o quintal. Aos
particulares era licito mercadejar em qualquer ou-
tra especiaria pagando os direitos
Do reino de Soffala vinham todos os annos a Lis-
boa 170 barras d'ouro, e uma barra vale para ci-
ma de 300 ducados : lambem de Soffala e de toda
a Guiné vinha grande quantidade de marfim ,
Traziam-se igualmente a Lisboa sedas da China ,
pannos finíssimos e ordinários de algodão do Bra-
sil , bellos tapetes da Pérsia , ébano , aguila , pau
brasil , dixes e louça transparente de porcellana ,
bórax , camphora , laca , alocs-hepatico , tamarin-
dos , cera, almíscar, âmbar, algalia , beijoim ,
pérolas , rubins , diamantes e mais pedras precio-
sas em abundância, e outras varias mercadorias que
iam do Egypto para Alexandria, as quaes, todavia,
não eram a milessima parte das que vinham a Lis-
boa nas sobreditas frotas
Os homens da cidade de Lisboa e de lodo o Por-
tugal são de mediana estatura , mais baixos que al-
tos, magros, de cór ferrenha, cabcllos e barba pre-
los , olhos negríssimos , e mui similhantcs no exte-
rior aos gregos. O seu trajo, antes da morte do car-
deal rei , era mui mesquinho , em consequência da
pragmática , que não consentia usassem vestidos de
seda ; pelo que trajavam um saio de baeta prcla ,
calções de panno escoccz, borzeguins de marroquim,
chapéu de feltro e capa comprida da mesma bacia.
Com a chegada d'elrei catholico allcraram o seu
antigo trajo , porque , posto que conservaram a ca-
pa de baeta , começaram a usar do gilião de raso ,
bragas e calções de velludo e meias de seda , cou-
sa que nunca tinham calçado, bem como cscarpins,
dos quaes não era possível achar um só par antes
da entrada d'clrci .. porque lodos, sem excepção ,
Si
o PANORAMA.
calçavam borzpguins. São os portuguczcs mais am-
biciosos de louvores que outra qualquer nação do
raundo , adirmando que as suas façanhas são mila-
grosas. Celebram Lisboa com tal copia de palavras,
que a fazem igual ás principaes cidades do mundo,
e por isso costumam dizer : — Quem não vè Lisboa,
não vè cousa bòa. = A gente miúda gosta que Ibe
dêem o tratamento de srnlior , manba esta commum
a toda a Hespanba. Vivem parcamente , porque a
plebe pela maior parte é pobre , o os cavalleiros
que se teera cm conta dóricos fundam a opinião da
sua riqueza em possuírem uma ou duas aldèas, com
trinta ou quarenta visinhos cada uma , no meio de
campinas estéreis com vinte ou trinta folhas culti-
vadas , e tudo o mais inculto, áspero, c coberto de
pedras , cora alguns cazebrcs mesquinhos , e mal
concertados, como eu o experimentei durante mui-
tas semanas daquella viagem.
Poucas pessoas se dão ahi .is Icltras ; mas appli-
cam-se muitos ao commercio, género de vida abor-
recida dos nobres , que nem podem ouvir fallar cm
tal, tendo por gente villissima os mercadores. Exer-
citam-se apparentemente nas armas , c algum tanto
em cavalgar . conlentando-se com ter leves princí-
pios destas duas profissões , sem quererem suppor-
tar mui diuturno ensino.
f Continuar-se-ha) .
(A. Herculano).
O FHAISAO AUGOS OU SE JONO.
De PlTASis , na Ásia menor , foi transportado á Eu-
ropa , em tempo do poderio romano , o faisão com-
mum , reduzido ao captiveiro da domestieidade , e
criado para satisfação da vista , c fausto dos ban-
quetes, cm moradas d'opulcntos. No matiz elegan-
te, no mimoso e fulgente das pennas, ha poucas aves
que o excedam : com certeza se affirma que traja
vistosa plumagem, a um tempo rica e linda, e dis-
posta com symmetria admirável. — Sobro tudo na
Ásia ha singulares cbellissimas espécies defaisões:
CS chins promovem com desvelo a multiprieação dos
que chamam dourados , c dos prateados , em rasão
dos reflexos metallicos das pennas : — a mais sa-
liente desta família é a que os naturalistas appelli-
daram faisão de Juno, ou de placas coloridas nas
azas; habita algumas regiões meridionaes da Ásia ,
mas particularmente a Samatra ; corresponde em
tamanho ao corpo do pavão , tem a cabeça e pes-
coço qiiasi despidos de pennas , c as do centro da
cauda medem de quatro a ciuco palmos de compri-
mento , de cor caslanho-cscnra com pintas bran-
cas cercadas de anéis d'um negro brilhante; a cor
geral é parda com linhas arruivadas , c na parte
inferior do corpo parda com mistura de ruivo ; as
guias secundarias das azas , Ires ou quatro vezes
mais desenvolvidas que as primeiras , são do meio
para as pontas adornadas de olhos, ou placas, es-
paçados regularmente ; e as da parte inferior agra-
davelmente malhadas de salpicos pretos sobre fun-
do roxo claro c pintas brancas nos extremos; tem
os pés de mui vivo encarnado. É ave montesinha,
procura solidões , e raro baixa ás planícies , foge
ás residências dos homens, e quando apanhada, in-
soffrida da prisão, morre em pouco Icmpo cora sau-
dades da liberdade das selvas e montes recônditos
em que nascera. — Pozeram-lhe também o nome de
argos e de ave de Juno, alludindo ao conto mytho-
logico do pastor do multíplices olhos, que a esposa
ciumenta do Jupiler dóra por guarda á sua rival ,
a mísera lo nipthamorphoseada cm vacca : isto cm
rasão da grande quantidade de placas , como os
olhos da cauda do pavão , que aformoseam as azas
daquella espécie. —
— Na cxcellente e bem tratada quinta da Sere-
níssima Senhora Infanta D. Isabel SIaría , a Bem-
fica , vimos poucos annos ha faisões mui bonitos,
da espécie da Asia-Mcnor.
A soEEiíBA não perdoa , a humildade não se vinga.
o PA^oRAaIA.
85
EpITOHI: BA VIDA DE Li IZ DE CaHÕBC.
(Conclusão.]
A FATAL no\a (i.i perda do monarcha em Africa ,
com a qual a palria se abismava : — outra perda
individual que o nosso grande poeta quasi ao mes-
mo tempo experimentara, privando-o a parca do seu
liei e exemplar jaó , sem ter quem o tratasse no seu
leito de dór , foram causas sobejas jiara abbreviar
I os dias do Vale portuguez : trasladaram-nu ao hos-
pital onde se curavam então os pobres , e poucos
dias depois alli fallcceo no anuo de 1379, cm tal
esquecimento . que até se ignora o mez e dia em
que findou sua amargurada Milà I
Assim acabou este grande homem cuja vida foi ura
tecido de desventuras, c é de per si a mais amarga
censura de quantas se possam fazer aos portugue-
zes seus coevos I Pobre, ignorado, cheio de misé-
ria , morreu em um hospital de pobreza , o immor-
lal Luiz de Camões, sem ter ura lençol sequer para
mortalha , como nos diz o carmelita Frey Joseph
Índio, em uma uota, que de seu próprio punho es-
crevera no precioso manuscripto que conservava lord
Holland , e hoje tem seu filbo herdeiro do titulo.
Da casa de Vimioso foi mandado o lençol cm que o
araortalharara , e com que o sepultaram na igreja
de St.° Anna , logo á entrada da porta , e do lado
esquerdo, sem que lhe pozcssem campa, letreiro,
ou signal que distinguisse a sepultura , que encer-
rou seus despojos mortaes.
Passados dezeseis annos , D. Gonçalo Coutinho
lhe mandou cubrir o logar da sepultura , que com
muito trabalho pôde achar-sc , cora uraa pedra ra-
aa, na qual tinha mandado esculpir o seguinte epi-
taOo :
Aqui jaz Luiz de Camões
Principe
Dos poetas do seu tempo :
Viveu pobre e miseravelmente ;
E assi morreu.
Anno de M. D. LXXIX.
Esta campa lhe mandou pôr Dom Gonçalo
Coutinho na qual se não euterrara
pessoa alguma.
Eis o único monumento que existia em Portugal,
consagrado á memoria do misso grande poeta ; di-
zemos que existia , porque hoje nem vestígios del-
le se deparam na igreja de St.' Anna, a qual ha-
Tendo sido reedificada , por occasião do terremoto
de 17oo , a ninguém lembrou a sepultura de Ca-
mões, apezar da campa que a memorava. Não nos
resta pois de Luiz de Camões outro monumento na-
cional jlém das suas obras , sobejas para o eterni-
zar, e que mais duradouro será sem duvida do que
qualquer outro , que a vaidade dos horaeus como
tardio feudo de admiração lhe alevantaria.
Conservaram-nos ao menos os seus contemporâ-
neos o seu retrato , e sobre esse foi copiado o que
mui elegantemente adorna a rica edição dos Lusía-
das publicadas cm Paris pelo já por nós menciona-
do morgado de Matheus , litterato distincto , que á
memoria de tão preclaro compatriota pagou tão no-
bre quão digno tributo.
Luiz de Camões , segundo diz S. de Faria , era
de meia estatura, cheio de rosto, algum tanto car-
regado da fronte ; nariz comprido , levantado no
meio e grosso na exlreraidade ; cabello louro qunsi
açafroado ; genlil e engraçado na apparencia, quan-
do era moco, c antes de perder o olho direito. Era
no traio agradável e alegre , até o lompo em qur,
a ad\ersidade pezando sobre elle o fez na ultima
idade melanchcdico. A ternura , e sensibilidade do
seu coração vèem-se nos seus versos , e na paixão
delicada que o peito lhe ralara , e que conservou
constante por D. Catharina de Ataíde. O amor da
sua palria predominava sobre todos os outros senli-
mentos ; o seu valor, desinteresse, nobreza e he-
roicidade , eram iguaes a quantos os tempos <la ca-
vai la ria podem oíTereccr-nos. Mas a sua constância
e fortaleza na extrema adversidade, sem que se pos-
sa mostrar delle uma expressão de adulação ou de
baixeza, nem que se repita uma só de fraqueza ar-
rancada pelos padecimentos , o farão sempre distin-
guir cnlre os homens maiores de todos os tempos ,
por esta virtude Ião rara , e que só pertence a um
caracter eminentemente superior ás distincções, co-
mo as desventuras.
A antonomásia de Grande que a posteridade por-
tugueza lhe outorgou, c que somente se lera dado a
alguns soberanos distiuctos , parecerá sem duvida
estranha ás pessoas pouco versadas em nossas cou-
sas, e ignaras do apreço que fazemos deste princi-
pe da poesia nacional ; todavia essa tal ou qual es-
tranheza cessará , se o cidadão cosmopolita consi-
derar que o sobrenome de Grande cabe a Luiz de
Camões, não só por seu mérito relevante, mas lam-
bem como compensação das injustiças que soflreu
ás mãos de seus contemporâneos.
Não nos pertence , a nós meros compiladores do
epitome da sua vida , entrar no resumo analytico
das bellezas do seu poema, nem tão pouco lemos a
estulta vaidade de nos julgarmos competentes para
similhante empreza ; mas ser-nos-ha licito antes de
concluirmos esta tarefa dizer que para avaliar por
seu justo valor o mérito da obra , cumpre que Ca-
mões , bem a similhança do poeta que foi o pai da
poesia grega , seja visto e julgado segundo o espi-
rito da nação a que pertence, e o século em que vi-
veu. Camões foi para os portuguezes o mesmo qus
Homero fora para os gregos , o primeiro e ao mes-
mo tempo o mais nacional dos seus poetas : nenhum
outro apoz delle soube combinar os interesses na-
cionaes do seu paiz cora a vastidão do espirito
poético que se encontra nos Lusíadas. Para julgar
da sua obra devemos recordar-nos que Camões es-
creveu em uma epocha em que o estilo correcto ,
formado sobre os antigos e modernos auctores ita-
lianos , acabava de apparecer na lilteratura portu-
gueza , e ainda não se havia arraigado. Sob cir-
cumstaacias taes, Camões esboçando o plano da sua
epopea, ficou como segregado do século em que vi-
veu : foi original no estilo que adoptou. Camões foi
o primeiro poeta moderno que conseguiu merecer
gera! aceitação, compondo um poema heróico, sober-
bo pelo estilo. E nem esqueça que a primeira edição
do seu poema appareceu em 1572, em quanto a Je-
rusalém do Tasso foi publicada em líJSO, um anno
depois da morte de Camões. Outros modelos não ti-
nha em que aprendesse , se exceptuarmos Trissino,
Bojardo , e Ariosto. Do primeiro pouco podia co-
lher , e ainda que do segundo e terceiro podesse
aprender muito, nada por certo com relação a fogo
poético e estilo próprio de um poema heróico na-
cional.
Camões foi original em toda a sua composição:
cheio de patriotismo e de heroisrao , o seu poema
respira uma nacionalidade que não pôde ser exce-
dida. Camões, bem como o Ariosto, c complelametilo
86
O PANORAMA.
o homem do seu século e do seu paiz ; como ura
dos primeiros poelas foi elle julgado pelos sábios
seus coevos ; que indifferentc não é o julgado do
Jmmorl.ll Tasso. A posteridade lhe lera feito não
menor justiia, c posto alguns zoilos hajam com des-
douro próprio procurado menoscabar o mérito re-
levante do Vate que tanto renome deu á sua pátria,
sobram milhares de homens de lettras de todas as
nações , que a sua memoria tem vingado da inju-
riosa c não merecida critica. Falta somente que a
nação portugueza pague o feudo expiatório de gra-
tidão que os nossos antepassados do século 16." lhe
denegaram , erigindo ;í memoria do immortal can-
tor de nossos feitos sublimados condigno monu-
mento , que atteste aos vindouros o apreço , que os
portuguezes fazem do príncipe dos seus poetas , o
Gbande , Liiz DE Camões.
P. M.
PORTUGAL.
XXIV.- :-i, ,r;.^
Como a villa de Santarém houve vários nomes.
(Conclusão.)
Foi pelos fins do selimo século da era vulgar que
«m successo maravilhoso e de grande assombro deu
o nome de Santarém a esta nossa villa. Força-nos a
estreiteza d'um artigo, que já foi crescido', a ca-
larmos tantos feitos gloriosos . tantas e tão grandes
recordações, que neste só nome se cifram como era
famoso compendio da historia portugueza : diremos
somente o donde elle veio ; cm que de muitos seja
íabido. Vivia por aquelles sitios , aonde hoje é a
Tilla de Thomar , um cavalleiro mui illustre cha-
mado Ermigio , casado com uma nobre dama por
nome Eugenia : eram senhores de grande estado e
de muitas terras , c segundo as leis da nobreza da-
quellcs tempos apontados como os maiores valedo-
res daquelles contornos : quiz o céu coroar-lhes tan-
ta dita, de que gosavam em mutuo amor, dando-
Ihcs delia o mais abençoado e querido fructo, uma
lilha mui formosa. — Ircuc foi o nome que lhe elles
deram com o baptismo. Cresceu a menina , e se
avantajou tanto em virtudes , c em belleza , que
em outra cousa não se faltava com maiores gabos c
louvores. Era donzella formosa, nobre, e rica; cer-
to eslava que seria sua mão disputada por importu-
nos pertendentes : mas a outro estado a chamavam
seu espirito c sua inclinação ; votara já no seu co-
ração a Deus a pureza de sua alma , sua, virginda-
de.— Não seria sem muitas lagrimas que seus pais
eonsentiiam cm que se ella fosse na companhia de
suas lias, que eram religiosas de grande fama de
santidade , para com mestras tão provadas se insti-
tuir em todas as |)crfeições. Lá se vai Irene fugin-
do ao mundo , e dando costas ás suas grandezas , e
.1 esses todos encantos , com que tantas almas se
tnrcdam e se caplivam , cncerrar-sc em um pobre
mosteiro junto ao rio Nabão. Por esse retiro, por
essa pol)reza, pela estreiteza d'essa pobre cclla tro-
cara cila de b(mi grado muitos mundos, se os hou-
vera ; por um só dia de i)rática com as santas mon-
jas ; por um serão de hymnos celestes entro as vir-
gens que a rodeain ; por uma só hora de enleio nas
contcmiilaçães divinas ; por uni só momento da ora-
ção matutina, com que seus lábios mais puros que
■*) ar da madrugada louvara o Creador ; por esse só
momento dera ella séculos de vida muito regalada.
Foge ella o mundo , quanto o mundo e suas maio-
res grandezas a perseguem : vai traz ella a fama de
sua belleza e de suas estremadas virtudes. — Bri-
taldo se enamora desta donzella tão apaixonadamen-
te , que já é certo o morrer d'amores , ou do nojo
que leva em não ser correspondido; era mancebo
poderoso, e ajudado do grande valimento dos seus,
a quem era grandíssimo cuidado o vè-lo assim aca-
bar c finar-se de magua ; tudo move , tenta todos
os meios, e só consegue desenganos. Também o de-
sengano c ás vezes remédio : com clle não guare-
cia de todo o mancebo ; mas não crescia o mal : e
nessas tréguas folgava o coração de Irene como li-
vre d'importunos requerimentos : porem essa alma
pura era destinada a grandes combates. — A coroa
de virgem tinha de ser laureada com o sangue do
martyrio. Remigio , monge-sacerdote , seu próprio
confessor ... é o lerrivel instrumento que o inferno
escolhe ... baldadas vê o monstro suas diabólicas
astúcias : já não ha traças que imaginar , nem ci-
ladas que encobrir ; só em vingar-se põe agora to-
do o seu cuidado. Vingança , e vingança do infer-
no 1 a infâmia antes da morte ! Não é veneno , que
possa logo mata-la , que elle confeiçòa ; mais terrí-
vel é ainda o eíTeito d'essa droga infernal ! A vir-
gem a toma no pão e na agua do jejum ; e logo
ancicdade mortal lhe aperta o innocente coração ; o
casto rubor , que embellezava suas faces , agora é
pallidez do sepulchro ; incham-lhe as entranhas , e
estala o cilicio, que já não pôde abarcar-lhe a cin-
tura ... Folga o monstro com o efTeito ; espalha as
mais negras blasfémias contra a donzella ; Crraa-se
nas apparencias , e accende o ódio e a vingança no
animo sentido de Britaldo. Compram-se algozes , e
a innocente e casta virgem soffre o martyrio , e seu
corpo é lançado ao rio e levado pelas correntes até
defronte da villa Scalabis : misterioso sepulchro o
ene rra. Correm de toda a parte a admira-lo os po-
vos aonde chega a noticia do portento : na grande-
za da obra, na admiração do lavor, na immobilida-
de 'da pedra , que resiste a todas as forças huma-
nas , na incorrupção do corpo , nos prodígios , nas
maravilhas, era tudo se reconhece a obra de Deus:
Irene é proclamada santa , virgem e martyr , e in-
vocada a sua protecção com grande, fructo. Lá se
vão já caminho de Roma o louco amante, e os des-
temidos algozes chorando em penitente romaria , e
confessando por esse mundo suas culpas e seu cri-
me. O Tejo recobre com suas aguas o sagrado de-
posito que recebera das mãos dos anjos ; c a villa
de Scalabis toma o nome de Santa Irene , e o con-
serva quasi inteiro vai já por doze séculos como il-
lustre epitapbio da santa virgem e marlyr Irene.
o imperador Nicolau : a musica c thcatros de Moscou- .
Faz dois annos qne um observador , que percorreu
o norte da Europa , consignou á imprensa os seus
curiosos apontamentos. Tendo a fortuna de ser hos-
pedado , na antiga capital russiana , sob o tecto do
autocrala , conta algumas anccdotas da corte; quan-
do alii reside ; entre ellas achámos nolaveis as (|U(!
em seguida cxirahimos.
— A. mesa do imperador é preparada com deli-
cadeza c gosto , sobresahindo mais em elegância
o PANORA3IA.
87
que Pm profusão ... O cosinhciro r francez. A so-
briedade dl) czar «'; excessiva , porque não só se li-
inita a pouco, quando está repousado, mas lambem
indo de jornada liasta-lhe para alimento diário uma
aza de franjt.âo e uma parva ilc. pão. Os almoços
são ministrados nos quartos destinados a cada pes-
soa : todas as manliaãs vinha um creado saber se
ou tinha alguém que me fizesse companhia , c se-
ixundo a resposta trazia o almoço.
As camarás , para assim dizer , tem só três pa-
redes , porquanto a outra , onde fenece o forro ou
armação, é quasi toda tomada por uma poèle (1)
immensa de louça , que só uma vez ao dia c forne-
cida de combustível e que mantém pcrennc uma
temperatura mui quente : a sensação do frio ó tão
desconhecida, tão impossivel n'um quarto desfar-
te aquecido , que se escusam na cama cobertores ;
posto que cu a não sentisse, parecia-rac mal achar-
me no mcz de novembro apenas com um lençol cm
cima da pelle : cubri-mc uma vez com o capote ; e
o creado , que tinham nomeado para me servir ,
perguntou-me se tinha frio , respondi-lhe que fazia
isto por costume antigo. "Está bem, requererei pa-
ra o senhor um cobertor de laS» : e no dia seguin-
te o intendente ou mordomo , depois de ter dado
busca a toda a guarda-roupa do palácio , veio pes-
soalmente annunciar-me que, sendo caso imprevis-
to, não havendo quem se tivesse queixado de frio .
não fora possivel achar uma coberta de laã cm toda
aquella residência de sua magestade imperial ; of-
ferecia-se-me para comprar cobertor, recusei como
é bem de crer.
O palácio em que mora o czar no Kremlin não
é o que costumava habitar seu irmão Alexandre ;
que delle se não removeu nem um movei, respei-
tando o successor a que fora escolhida pousada do
defunto. — O imperador reinante costuma alojar-
se no palácio archíepiscopal , que por ser benzido
quando residência do prelado conservou a condição
de logar sagrado.
Certo dia , o czar Nicolau ouviu fallar de umas
cantarinas ambulantes, a que chamam zinganas (2),
que os senhores moscovitas convidam para diversão
de suas serenatas ; quiz também ouvi-las , e dcs-
lembrando-se de que essa gente mesquinha era ex-
comungada pelo clero grcgo-russo , mandou que en-
trassem no palácio hentn : alegre foi o serão com as
cantorias das recem-chegadas, e sua magestade pa-
gou-lhes generosamente. Tudo se passou ás mil ma-
ravilhas , mas no dia imraediato appreseutou-sc o
governador de Moscow no gabinete do imperador.
— Que novidade ha lá por fora, principc Gallitzin?
... — «O que ha de novo , senhor, c o immenso
cscandak) que traz amotinada toda a nossa clere-
zia."— (lE então que succedeu? . . » — «Uma pro-
fanação ... as zinganas malditas, excommungadas,
foram admittidas a um logar santificado ; e o arce-
bispo está furioso.» — «E quem se atreveu a pro-
fanar a igreja?. .<> — «Não foi a igreja, senhor, foi
o palácio do arcebispo , igualmente bento , que
cilas com sua presença mancharam ; e o culpado é
vossa magestade.» — «Capacito-rae que tens razão;
nem pela ideia me passou que estava em terra san-
ta. E o arcebispo está fora de accórdo? . .» — «Será
contenda difficil de accomodar. » — «Que terei de
fazer para reparar o meu descuido? . . Dar-se-ha
caso que o arcebispo por esta occasião níida esi-
(1) Falta-nos o equiv.ilenle deste leiíno, porque falta-
va o traste, que i mui diverso do que chamimos foção.
(S) Provavelmenle ti ganas , do italiano zingare.
ja?..» — «Creio que sollicita o aformoscamcnlo
d'uma igreja, accrescentar-sc-lhe uma capclla , ou
cousa deste jaez ; não sei bem o que . . .» — Pois ,
depressa , venham os riscos : enfeite-se a igreja ,
faça-se a capclla , e o mais (iiie pede o prelado .
com tanto que se esqueça das raparigas excommun-
gadas. Para a outra vez irei ouvi-las fora de minha
casa . . . que na verdade cilas cantam bem! »
Jlas não se julgue que esta musica semi-bravía ,
postoquc pela novidade agradável, é o único diver-
timento deste género que desfructam os habitantes
de Moscow : a cidade tem dois theatros ; o primei-
ro, o maior em capacidade que ha na Euro|>a, sem
exceptuar S. Carlos de Nápoles , reproduz em tra-
ducções russianas os dramas principaes da scena
franccza : ahi tem tido representações — Roberto dn
Diabo , c com decorações esplendidas, vestuário ri-
co , mas cantores detestáveis. O imperador não ti-
nha noticia desta opera , e apesar da mediocridade
do desempenho delia , conheceu-lhc logo o mérito ,
e por consequência pediu a partitura, e applicou-se
a estudar o bello trio do ultimo acto , que lhe fi-
zera grande impressão.
Para que se ajuize do quanto o imperador Nico-
lau preza as artes agradáveis , em que é bom en-
tendedor, relataremos outra anecdota, que teve lo-
gar na córle de S. Petcrsburgo , e que ao mesmo
tempo indica os singulares usos daquelle paiz.
Sahiu n'um dia o czar, acompanhado de seu ir-
mão, o grão duque Miguel, e sem guarda d'hon-
ra , como é seu costume , a gosar a i)crspectiva
grandiosa de Niewsky : pelo passeio á esquerda se-
guia placidamente seu caminho \'ernet, actor fran-
cez, que tinha representado excellcntemenlc na vés-
pera em um drama novo. O czar parou e chaniou-o
pelo nome próprio : — Senhor ! — respondeu o actor.
— «Quero cumprimentar-vos pelo o|ilimo desempe-
nho d'hontem. — «O voto de vossa magestade é pa-
ra mim de grandíssimo apreço.» — «Desejarei tornar
a ver-vos desempenhar a mesma parte : fiquei sura-
mamente satisfeito , e ao eiicontrar-vos não pude
resistir ao prazer de manifestar a minha approva-
ção. — O imperador proseguiu seu passeio, e Ver-
nct permaneceu alguns minutos parado , regozijan-
do-se do elogio , que recebera ; e antes que sahisse
do êxtase , uma transição súbita lho recordou a vi-
cissitude das cousas humanas, sentiu que pela gola
da casaca o seguravam, e era a mão pesada de um
commissario de policia — «Alto aqui!» — Que é o
que me quereis?» — Estais preso., é prohibido
chegar ao pé da pessoa do nosso imperador quando
elle anda a passeio.» — «Mas sua magestade c que
veio ter comigo. . .» — Boa historia é essa ! Estes
meus amigos francezes medem tudo pela mesma bi-
tola, e crêem que podem fazer quanto lhe vem á ca-
beça . . . Tratar de scguir-me , e nada de resistên-
cia.»— E Verrret foi levado á força para a casa da
guarda, onde o retiveram vinte e quatro horas, não
obstante as suas instantes reclamações. — Dahi a
poucos dias o actor repetiu na sceua o níesrao pa-
pel, e o imperador applaudiu-o bondosamente. Fin-
do o espectáculo , sahiu do camarulc o czar , e ao
entrar nos corredores viu um homem cozido com a
parede, e que evidentemente esperava que elle pas-
sasse ; sois vós, Vernet? nova prova destes do vos-
so talento.» — Agradeço a vossa magestade tanta
indulgência , mas rogo que por sua nimia bondado
a não manifeste em qualquer occasião que me pos-
sa encontrar.» — Porque dizeis isso?» — Porque <>
benévolo acolhimento de vossa magestade , ha bens
88
O PAINORAMA.
poucos dias, rendeu-nie vinie e quatro horas de re-
clusão á ordem de um comraissario de policia, que
SC julga tom direito de impedir que alí;uem falle
ao seu imperador. — É possivcl que assim seja? . . .
Isso é demais . . . saberei como isso foi . . » — No dia
seguinte , ainda Vcriiet estava meio vestido , já vi-
nha visita-lo o commissario de policia agarrador ,
supplieando-lhe com todas as veras que lhe descul-
passe o engano, porcjue se achava suspenso do car-
go em quanto não obtivesse perdão da parte oflen-
dida. Vernct absolveu o homem, por escri[ito , co-
mo é de suppor.
NOVOS INVENTOS.
SdBSTITCIÇÃO ás rodas dos barcos i VAPOR
PKLO CILISDRO.
O Mi.MSTBO da marinha em França encarregou ain-
da ha pouco o conde d'Oysonville c Mr. Aleinerel ,
engenheiros constructores , d'examinar as vantagens
da substituição dos cilindros [hélice] a's rodas late-
racs. Com eireito todos os homens (Farte são uni-
formes em reconhecer os graves inconvenientes des-
tas machinas, que requerem uma certa dimensão nos
vasos , fundo chato , e por isso mesmo pouco pró-
prias para vela , e exigindo inutilmente uma força
jnaior para vencer a resistência da agua que ellas mes-
mas elevara. Os cilindros pelo contrario colocados na
culatra [no fundo da popa] do navio não levantam a
agua, antes a atacam c afastam obliquamente. Alem
disto permittem calafetar e crenar a embarcação ,
e prepara-la cm fim de modo que sustente a vela e
se firme sobre ornar: o choque é muito menos con-
siderável, o balanço mais brando, e o gasto do com-
bustível ineuor.
Os inglczesconslniiram logo um destes barcos em
Dover , da força do 80 cavallos, ao qual chamaram
Archimcdes. O cilindro foi ideado e construído por
um francez, BIr. Sauvagc, antigo constructor de na-
vios. A velocidade desta embarcação, que anda de
Dover ))ara Calais, é maior que a de todos os outros
Larcos a vapor que ahi navegam com rodas, não obs-
tante que a força motriz d'aquella seja menos consi-
derável.
Os americanos inglezes usam também já desta no-
va construcção ; e se as experiências repetidas con-
lirmarem as esperanças de sua preferencia, é fora de
duvida que os barcos com o cilindro serão exclusi-
vamente encarregados das navegações trans-atlanti-
cas , nas quaes a economia do combustível é condi-
rão essencial.
Da natureza dos tebbexos.
Cada terreno tem suas propriedades naluraes, mais
iju menos aptas para as dilfcrentes espécies de cul-
tura , c para certos e determinados vegetaes : in-
vertida esta ordem a cidheita será ou nenhuma, ou
fraca, ou nimiamentedispendiosa : ocorrcctivo des-
te absurdo está no perfeito coidiecimento das terras.
Os naturalistas c geólogos coutam quatro espécies de
terras primitivas :
1.'' Silex , ou terra arenosa.
2.° Cal, ou terra calcarea.
3.' Argila , ou terra grcdosa.
i.' Magne^ia , ou terra talcosa.
Mas os solos puros raramente existem na nature-
za : sua mistura , em proporções variadas , 6 que
forma os solos ou terrenos compostos, cuja denomi-
nação resulta da parte ou ingrediente predominante.
Esta denominação mesmo não é fixa e homogé-
nea ; cada província lhe dá o nome usado e conhe-
cido praticamente dos cultivadores, os quaes mais
ordinariamente distinguem os terrenos por sua pro-
priedade mais ou menos productíva , mais ou me-
nos apparcnte : assim dizem terras furtes, terras fra-
cas, terras húmidas , terras seccas , ^'c.
A divisão, porem, que nos parece mais clara,
e adaptada á sua composição primitiva é a seguinte.
1.° Terreno (/reíioío, mais ou menos firme e lodoso.
2.° Terreno calcareo , composto d'arèa's e saibro.
3.° Terreno barrento, de barro gredoso, barro cal-
careo, arenoso, saibroso, e ferrenho.
4.° Terreno pahoír*; , mais ou menos turfáceo.
'ó.° Terreno d'arnciro ou charneca.
A natureza das terras já hoje é conhecida exacta
e scientificamente porraeio da analyse chimica, que
decnmpoudo-as aprecia e determina suas partes cons-
titutivas. Porem o modo mais fácil para os cultiva-
dores em gerai é observar as plantas que ahi nas-
cem e crescem espontaneamente. Se estas prospe-
ram , se fiorecem e chegam a um estado forte e vi-
çoso , conhcce-se por ahi que é terreno próprio e
adaptado para os vegetaes do mesmo género. Siga-
mos porem a classificação commum e vulgar para
sermos entendidos de todos.
Terras fortes chamam-se aquellas que são gros-
sas, substanciaes e unctuosas, que se podem amas-
sar entre os dedos: destas as pardas-escuras são as
melhores. Differem estas das terras chamadas gros-
sas, que participam mais da natureza d'argila ou
terra barrenta, e da terra grcdosa que serve somen-
te para fazer louça. No numero das terras fortes se
podem comprehender algumas pedregosas que são
bastante férteis, c destas algumas todas negras que
são diíliceis d'amanhar.
IWra ligeira ou fraca éaquella cujos torrões não
fazem corpo nemadherencia ; c toda desunida : des-
tas as negras são melhores que as outras.
Terra húmida, c ordinariamente boa em si mes-
ma, porem a agua demasiada a prejudica, e por
tanto não é productíva sem que primeiro seja san-
grada por meio de valas ou sargetas.
Terras arecntas e sêccas são de duas espécies ,
uma esbranquiçada que só serve para bosque , ou-
tra amarelada ou parda . que pôde produzir.
Os defeitos geraes que teem as terras são ou le-
rem demasiada humidade, que as faz pesadas e frias,
ou muita seccura que as torna ligeiras , pulveru-
lentas, e por isso ardentes. Estes defeitos se devem
emendar cora os meios contrários : estes meios são
os estrumes e a caldeação ou mistura de terras que
tornem suas propriedades mais em harmonia com a
fertilidade. Isto a que chamámos caldeação c o qne
os francezes denominam amendemeni . Neste artigo
não nos propomos tratar dos estrumes cm geral, que
isso fica reservado para outro logar ; aqui só os apon-
támos como um dos correctivos dos raáus terrenos.
.4ssíra que , para corrigir as terras sèccas e quen-
tes são preferíveis os estrumes que as refrescam ,
quaes são os dos bois , dos porcos , as lamas e lo-
dos gordurentos ; para os terrenos húmidos os es-
trumes quentes e ligeiros como são os de gado ca-
brum e ovelhum , os de pombos, bestas cavallares,
e os mames. < Continua.)
J. da, C. iV. C.
65
o PANORA3IA.
89
A PHEExcELLExciA dc Raphacl sobre todos os mestres
da eschola romana , som exceptuar Miguel Angelo,
deriva da penetrante intelligcncia com que aquelle
grande artista concebia e dispunha grandes compo-
sições, appresentando combinações magestosas e sig-
nificativas , provas de fertilidade e viveza de enge-
nho ; ao passo que não sacrificava as mais elevadas
condições da arte ás que são reputadas meramente
accessorias e superficiaes : será disto bello exemplo
o cartão que intitulam S. Paulo prcfjando em Athe-
nas. Achando-se neste foco da civilisação grega o
insigne apostolo das nações, foi desafiado pelos phi-
iVLvKço 2a— 184a.
losophos para fazer publica declaração de suas dou-
trinas á celebre cúria do Areópago : acceilando o
convite entrou no templo do gentilismo e subindo a
um logar dos mais notáveis , fallou assim aos cir-
cumstantcs: «Varões athenienses , cm tudo vos ve-
jo como mui supersticiosos : porque passando e ven-
do os vossos simulacros , achei também uma ara
cora esta inscripção : Ao Deus não-conhccido. Aquel-
le , pois , que vós-outros adoraes sem o conhecer ,
esse vus annuncio eu."
O effeito , que no auditório produziu aquelle so-
lemne exórdio, foital qual crad'esperar da promul-
2," Serie. — Voi,. II.
90
O PANORAMA.
jarão de doutrina Ião nova como imporlante. As
pessoas que rodeam o apostolo não hãode conside-
rar-se como uma assemblea promíscua de indiví-
duos , sendo fóra de duvida que o intento do pin-
tor foi personificar em cada figura uma classe ou sei-
ta da philosophia grega, o que facilmente pódc dis-
tinguir-sc na attitudc c semblante de cada indivi-
duo. A uma parte nota-se o cynico embebido em
cogilarões , buscando argumentos e dúvidas para
oppor ; de outra, o estóico apoiado no báculo expri-
me na insolência do semblante a incredulidade obs-
tinada : no entanto que os discípulos de Platão, sem
prestarem inteira fú aos myslerios expostos pelo apos-
tolo . dão mostras de comprazimento na formosura
c sublimidade d'uma doutrina , a muitos respeitos
parecida com a sua ; pelo que escutam com alten-
ção. A outro lado se deixa vèr um grupo dedispu-
tadores . sofistas , e impugnadores de toda e qual-
quer religião, embrenhados cm discussão vehcmen-
te , mais por ostentar subtileza que por dilucidar a
verdade. Ao fundo do painel , a considerável dis-
tancia , divisam-se dois rabbinos ou doutores he-
breus , que tendo ouvido o discurso dão costas ao
missionário evangélico em demonstrarão de despre-
zo ao annuncio das profecias. — Á primeira vista ,
lançada sobre o desenho, o espectador vê logo a
principal personagem , S. Paulo , a quem o artista
revestiu de todas as circumstancias convenientes á
dignidade da pessoa , e alta valia da missão. Re-
presentou-o em pé , immedíato ao primeiro plano ,
em logar eminente e a bastante distancia do audi-
tório : na acção parece divisar-se-lhc a um tempo
a serenidade e a energia , é simples e mageslosa ,
c comtudo inQammalla de cnthusiasmo divino : ao
vè-lo não podemos deixar deformar idéa de que lhe
está manando da boca a torrente de eloquência ir-
resistível. O effeito immediato do seu discurso, e o
triumpho eventual da sua doutrina, sufficientcmen-
te estão patenteados na conversão de Damaris e de
Dionísio o areopagita , as duas primeiras pessoas no
quadro , e que demonstram no olhar e nos gestos
de affecto a sua convicção sincera , a renunciação á
idolatria , e a resolução de abraçarem a fé de Jesu
Christo.
Os edificios , sem embargo da inconsistência no
estilo d'architcctura em que alguém faz reparo, são
formosos objectos no seu tanto ; são templos das di-
vindades pagãs, cujo culto o apostolo está condem-
nando ; pelo que tem connexão immediata com o as-
sumpto do cartão. Alem de que , assim por elles
como pelas estatuas próximas, quereria o pintor ca-
racterisar a cidade de Atheuas , crcadora do bom
gosto nas artes, e empório de fausto e riquezas. —
Em summa no todo do painel sobresahe a rara ha-
bilidade c perspicácia de Ilapbael na invenção e
disposição dos assumptos.
O Bono.
VIU.
Rcconriliação.
Ape>í8 Fr. Hilarião e o Lidador voltaram costas
para se dirigirem á sala do banquete , na qual se
achavam reunidos já quasi todos os rícos-homens c
inf.inçõcs viiulos á solemnidade daquelle dia, o ca-
vaiiciro cruzado se encaminhou apressadamente ao
longo da corrcdoura onde fallára com elles. Aquel-
la passagem estreita ia por todo o circuito do cas-
lello , acompanhando o edifício irregular dos paços
c suas accommodações o olBcinas. De espaço a es-
paço alargava-se n'uns terreirinhos onde se viam
amontoados instrumentos e arrcmeços de guerra.
Para esta espécie de pateo desciam escadas de pe-
dra que davam communicação aos adarves , ou an-
daimos da grossa muralha exterior , c ao lado de
cada um delles bojavam para dentro as torres ma-
cissas e quadrangulares que defendiam as qoadrel-
las do muro. Nesse ponto a senda , geralmente es-
treita e soturna , se tornava ainda mais apertada ,
e ás vezes mais tenebrosa, porque algumas das tor-
res se ligavam ao palácio por largos passadiços lan-
çados por cima delia.
Egas Jloniz passou successivamente três dos ter-
reirinhos , até que a final parou debaixo do escuro
arco de pedra, que se abria na extremidade do ter-
ceiro. Este , differente dos outros , em vez de topar
nas lizas e altas paredes dos paços , entestava com
uma casaria baixa, rota por sete ouoito portaes sin-
gellos que davam para o terreiro. O tecto daquelle
corpo saliente era um espaçoso terrado que o passa-
diço ligava com o primeiro andar da torre. Sobre
esse terrado, quanto a escuridão o permittia, viam-
sc negrejar os topos dos arbustos e as pontas esguias
dos caramanchões de verdura , e sentia-se o cheiro
balsâmico das flores , que se dilatava na aragem
quasi impcrceplivel de uma noite de estio. O ca-
valleiro achava-se junto ao jardim onde se passa-
ra , pouco havia , a scena que tão fataes resultados
tivera para o honrado e jovial D. Bibas.
Tudo por aquelle lado do palácio parecia tran-
quillo, e o reflexo da luz escaca que allumiava os
aposentos contíguos ao piso do jardim, rompendo a
cuslo as vivas cores das vidraças, vinha morrer nas
trevas a pouca distancia delias. O cavalleiro ao
atravessar o terreirinho parara um momento e cra-
vara os olhos naquella ténue claridade. Um suspiro
mal contido lhe sussurrou nos lábios. Depois, como
arrastado por um pensamento irresistível, continuou
a caminhar rápido para o escuro vão junto da tor-
re, e involto nozorame cozeu-se com a parede, co-
mo quem receava ser allí visto.
Não tardou que do lado da corredoura , opposto
áquelie poronde o cavalleiro viera, se approximasse
um vulto trazendo ura cavallo de rédea. Este vulto
víuha também coberto de uma espécie de zorarae ,
porem alvacento como albornoz mourisco. Deu um
silvo agudo, a cujo soidoEgas pareceu reconhece-lo,
porque sahindo-lhe ao encontro , perguntou em voz
baixa e em árabe : — És tu , Abul-Hassan ?
<iÉ o vosso servo : — respondeu o vulto na mes-
ma lingua , parando e sofreando o cavallo.
n Paliaste com teu irmão? A que horas se erguem
as pontes das barbacans? — perguntou de novo oca-
\alleiro. «
«Apenas acabar o banquete — tornou o mouro: —
os vigias receberam ordem para não deixarem sahir
ninguém do burgo passado esse momento.»
"O meu saio de malha — proseguiu Egas — a cer-
vilhcira c a espada?»
Sem dizer palavra Abul-Hassan tirou as três pe-
ças de sob o albornoz , o cavalleiro vestiu á pressa
o saio , poz na cabeça a cervílheira , allivelou-a so-
bre os horabros áquella espécie de camisa de ferro
que vestira , cingiu sobre esta a espada , c atiran-
do o zorarae para cima do cavallo disse ao mou-
ro : aDeixa-te ahi ficar : se vier alguém que te não
o PA1VORA3IA.
91
conheça e pergunte qiicra és c o que fazes nesle si-
tio— responde que és um cavnileriço do senhor de
Trava, que te ordenou esperasses aqui com um cor-
redor folgado. Depois de assim responderes ninguém
ousará perguntar-te mais nada.»
Proferidas estas palavras, ligas desappareceu n'u-
nia escada de caracol aberta no fundo da torre , e
que dizia para o primeiro pavimento delia : chega-
do ao alto tirou do seio uma chave , e abriu uma
porta , não a que dava para a quadra principal da
torre, mas outra lateral e pequena. Cruzou o pas-
sadiço, e n'ura momento achou-se no jardim pênsil.
N'aqucllc logar e hora , as paixões tumultuosas
que lhe agitavam o espirito o obrigaram a reUe-
ctir alguns momentos, e a procurar restabelecer no
seu coração a possivcl tranquillidade. Que perten-
dia? A que vinha alli como um salteador nocturno?
Elle mesmo não o sabia ao certo. Era apenas uma
vaga esperança de ainda ver Dulce , de lhe expro-
bar a sua leviandade , de lhe dizer tudo quanto o
ciúme e a desesperação lhe ensinassem. Desde que
a fama dos amores da donzella com Garcia Bcrmu-
dez chegara aos seus ouvidos, não houvera para el-
le repousar um instante. Buscando qualquer pretex-
to plausível para se dirigir a Guimarães , logo que
chegara ao arraial do infante se ofTerecèra para in-
dagar da própria boca de Gonçalo Mendez qual se-
ria a sua resolução Dnal na lueta que se ia travar.
Vestindo os trajos de villão — o arbim e o zorame
de burel — entrara no burgo ao romper d'alva , e
dirigindo-se á mouraria perguntara por Abul-IIassan.
Entre os mouros que , ao tirar a grossa cadeia de
ferro lançada de noite á entrada do seu bairro, sa-
biam de golpe para os trabalhos ruraes, divisou
brevemente aquclle que buscava. Deu-se-lhe a co-
nhecer, e antes que a alegria que o mouro mostrou
ao vè-lo se revelasse por signaes, que gerassem des-
confianças , pediu-lhe o guiasse á sua pousada. .\hi
entregando-lhe uma bolça de couro com alguns al-
morabitinos disse-lhe : —
uFar-me-has tu, Abul-Hassan , ainda uma vez o
serviço que tantas te devi antes de partir para ul-
tramar?"
«Posto que o ódio contra os meus irmãos — res-
pondeu sorrindo o árabe — vos levasse tão longe
para lhes derramar o sangue, como se vos não bas-
tasse o dos musslins da Hespanha , nem por isso
vos perdi a affeição, porque sei por experiência que
ao menos não serieis cruel para com os vencidos co-
mo são quasi todos os guerreiros christãos. O ser-
viço de que me fallaes , sem que m'o dissésseis já
eu o advinhei. A chave da poria secreta da torre
do miradouro ainda está em meu poder; porque
ainda me não tiraram o cargo do jardim da rainha.
Á hora da quinta oração podeis vir busca-la aqui. »
aXão é isso só — interrompeu ocavalleiro — é ne-
cessário que ainda hoje vás ao Soveral que se esten-
de junto ao vau do Avicella. Ahi estará um escu-
deiro com omcucavallo de batalha c as minhas ar-
mas: mostrando-lhc este anel elle te entregará tu-
do. Conduze-me aqui o ginete e as armas ao cahir
do dia. Depois esperar-me-has junto ao passadiço da
torre para o jardim. O anel, esse guarda-lo-has pa-
ra ti. »
Abul-Hassan ia propor algumas difficuldades : as
ultimas palavras de Egas Moniz as haviam aplana-
do. O anel era assaz rico.
"Na confusão que hoje vai em palácio, ninguém
reparará na minha falta. Assim poderei obcdecer-
vos. n v, .. .■ . ....... ,, ■ .■ -
«Ainda mais — proscguiu o cavalleiro. — Quando
alravessei a barbacan vi signaes de que as pontes
levadiças se costumara erguer de noite. Preciso de
saber ate quando se poderá sahir do burgo c por
onde. Tu o indagarás com certeza. Se desempenha-
res bem tudo o que te ordeno , recolherás depois
mais larga recom[ionsa. »
No rosto do mouro ria o contentamento.
<i Meu irmão, o tornadiço , ainda <■ um dos mes-
tres dos trons e engenhos. Estão a seu cargo os que
de novo se assentaram no cuhello do topo da cou-
raça. Elle deve sabe-lo ; chadc por certo dizcr-mo. »
Bem'. — tornou Egas. — Agora vai executar oque
te mandei, e entretanto eu ficarei aqui. Mas volta ao
sol posto ; porque me será necessário a essas horas
deixar a tua guarida.»
D'ahi a pouco o mouro atravessava a barbacan
por meio da comitiva de ricos-homens que come-
çavam a entrar no burgo para assistirem á convoca-
ção solemne da cúria.
Havia largos annos que Abul-Hassan estava in-
cumbido do jardim pênsil. Naquelle século os dif-
ferentes misteres, para os quaes se requeria ouscien-
cia ou industria, eram quasi exclusivamente exer-
citados por mouros e judeus. Na agricultura , po-
rem , a raça árabe era a única entre a qual se en-
contravam homens profundamente versados em to-
dos os ramos dcUa. .iVbul-Hassan , captivo em uma
arrancada, obtivera pela sua sciencia agronómica não
só um tratamento menos duro do que era usual en-
tre os christãos para com os servos, mas até por fim
a liberdade , e com a liberdade um cargo que se
casava com a sua educação c hábitos — o de jardi-
neiro do horto pênsil. O toque principal do caracter
de Abul-Hassan era a avareza: á força de ouro Egas
alcançara delle muitas vezes , antes de partir para
a Tcrra-santa, o ter entrada naquelle logar vedado,
onde podia ver Dulce , quando ou as noites festivas,
ou os cuidados do governo retinham D. Thercza lon-
ge de sua filha adoptiva. A experiência que tinha
do poder do ouro na alma de Abul-Hassan fez com
que entrando em Guimarães o buscasse , para com
o soccorro delle poder levar a cabo o principal in-
tento que alli o trouxera.
Taes haviam sido os meios de que usara o caval-
leiro para se approximar de Dulce. Por este modo
era que elle se achava alli.
A recordação dessa epocha em que naquelle mes-
mo sitio passara horas deliciosas aos pés da sua
amante , que então innocente e pura era para elle
como o anjo de Deus, que inspirava ao cavalleiro es-
forço c generosidade , e ao trovador os seus mais
poéticos e harmoniosos cantares • ; — essa recorda-
ção, dizemos, devorava agora como um pensamento
infernal o coração do pobre mancebo. Os riscos que
naquelle tempo dourado correra para ouvir promes-
sas e juramentos d'amor, palavras d'esperança e de
felicidade , ia-os correr de novo para receber tal-
vez o ultimo desengano. Que Ih' importava? Sem ao
menos ver uma vez Dulce é que elle não podia mor-
rer. Morrer — que, trahido , lhe seria a consolação
derradeira !
Egas se havia dirigido ao mesmo logar onde pou-
cas horas antes o conde de Trava ouvira da boca
de Garcia Bormudez as desagradáveis novas da ap-
proxiniação do infante. O rcUexo do tanque em que
as estrellas se espelhavam guiara o ca\alleiro para
(•) Cantares i o Donie que oauclor ou auclores doCan-
ciynf^iro chamado do CalIe;'io dos Nobres dào a cada um
doí poemettos ou cantijas de que elle se compOe.
92
O PANORAMA,
aquellc sitio. Pelas ruas tortuosas que piravam por
meio dos arbustos, e por entre os canteiros das 11o-
res , Egas checara junto ao poial escondido no ca-
ramanchão fechado. Em vez de se acalmar a agita-
rão que lhe despedaçava o coraçiio, eslc haleu com
mais violência ao entrar alli. Tudo estava como
d'antes , o céu , a noite , o jardim : só um amor de
mulher mudara : mas esse amor fora paraelle o uni-
verso, e o que via em redor de si não era mais que
uma imagem mentirosa da realidade, lançada sobre
o tumulo do passado, sobre as ruinas da sua inti-
ma existência. \as recordações de outrora havia
para cile indizível saudade, mas saudade árida e
atroz , sem consolação nem lagrynias.
-Vssentado no poial, com afronte entre os punhos,
o pobre trovador engolfado em pensamentos tene-
brosos , parecia esquecido dos próprios intentos, do
tempo que fugia, e dosriscosque ocercavam, quan-
do nomeio do silencio profundo que reinava no jar-
dim um ténue ruido veio desperta-lo da iramobili-
dadc externa em que o lançara o intenso viver da
sua alma.
Este ruido o fez erguer a cabeça e lançar os olhos
para o lado donde partia aquelle som duvidoso:
defronte dclle — e bem perto — uma porta rodava
lentamente sobre os gonzos; era a do corredor que
dava para a salad'armas. Egaspoz-se em pé, e apal-
pou o punho da espada. Lembrava-se perfeitamente
de uma noite — fazia nesta três annos — em que as-
sim a vira abrir, e passar nm cavalleiro, cujo vulto
similhava o do conde de Trava. Esta noite lhe fica-
ra gravada indelevelmente na memoria , porque fo-
ra aquella em que vira Dulce pela ultima vez, par-
tindo para o oriente. A dois passos delles se appro-
ximára o vulto encaminhando-se lento para os apo-
sentos reaes. Egas recordava-se bera desse instante
de receio e delicias, em que na mão de Dulce uni-
da aos seus lábios sentira palpitar o amor e o susto ;
em que elle vira cruzar-lhe o delírio celeste da fe-
licidade á imagem de um assassínio. Agora esta ínia-
gem , então negra e maldícla, como que lho sorria,
porque não se misturava comídéas de ventura , mas
com as agonias da desesperação. Daquclla vez um
suor frio lhe manara da fronte ao arrancar o punhal
do cinto : desta o seu espirito quasi folgava ao ima-
ginar que alguaut se encaminhava para alli da sala
d'armas, e que elle tinha uma espada. TalvezDul-
ce aqui mesmo jur.íra a outro o amor que lhe men-
tira a elle ! Talvez o seu rival a buscava . . . ! Re-
fugiu deste pensamento ; porque era um pensamen-
to que parecia csraagar-lhe o coração.
Em quanto tudo isto indistiucto , travado, dolo-
roso, fugia pela sua alma com mais rapidez do que
nós o exprimimos, a porta cm que o cavalleiro ti-
nha os olhos (lios, atravez da ramagem do caraman-
chão , acabou de rodar nos gonzos , c um vulto sa-
hiu para o jardim. A figura e o trajo eram de mu-
lher. O seu andar vagaroso e incerto , o arquejar
comprimido, o volver contíiuio do rosto, como quem
observava se era seguida , davam claros signaes da
viva inquietação que a agitava. Trazia vestido sin-
gelamente um epitogio escuro, e os cabcllos invol-
los em redctenuissíma de ouro. Á escaca claridade,
qued(!rraraava longínquo fulgir das estrcllas, aquel-
le vulto de mulher sirailhava-sc a um anjo perdido
nas trevas do mundo e da noite , tanto as suas filr-
mas eram suaves c ao mesmo tempo severas, os seus
meneios nobres e modestos. O cavalleiro olhou mais
attentamente .... Era Dulce I Um grito de amor ,
dcculcra, de prazer, d'iadiguação, conglobados em
gemido infernal, esteve a ponto de lhe fugir por en-
tre os dentes cerrados : mas uma vontade de ferro
conteve aquelle primeiro impulso. Dulce havia pa-
rado.
E parara bem perto d'elle '. — Egas aspirava o
perfume de seus cabellos, cria onvir-lhe o cicio do
respirar , o ranger das roupas negras , e nos olhos
o brilho de uma lagryma. Escutou. \ donzella al-
çou a fronte para o céu e murmurou : —
o Desventurado ! — desventurado ! »
O trovador descobriu nestas palavras a angustia
do remorso : era por certo o remorso quem arran-
cara esta expressão de piedade áqucUa que o trahí-
ra. Quem havia ahi , senão elle, que fosse desven-
turado?
<'Toda a afTeição de uma írmaã eu guardarei para
ti — proseguiu Dulce. — Ileíde cumprir essa pro-
messa que fiz perante o Senhor que me ouve ! SIas
o meu amor c já de outrem : — como o repartirei
comtigo?»
A donzella parecia delirar : tinha os braços esten-
didos e as mãos unidas como implorando a piedade
de algum ente só para ella visível.
Nesta postura, á luz duvidosa da noite, em silen-
cio profundo , e no meio de atmosphera recendente
e tépida agitada por leve aragem d'estío , a fasci-
nação do amor era irresistível.
Aquella espécie de delírio em que Dulce cahíra
trocou-se repentinamente em impensada realidade.
Um leve rugir de folhas sèccas a despertou do seu
devaneio. No mesmo momento um cavalleiro cober-
to do saio e cervílheira de malha eslava a seus pés ,
e segurando-lhe tremulo uma das mãos lha cubria
de beijos ardentes.
Todo o ciúme , toda a procella , accumulada por
dias d'intenso martyrio no corarão de Egas, desap-
parecèra.
«Meu Deus ! » — quiz bradar Dulce , atterrada.
Os l.tbios não poderam todavia repeti-lo.
Mas instinctívamenle recuara.
O encanto que havia subjugado por um instante
o mancebo quebrou-se então: a sua alma reconquis-
tou o esforço da desesperação , que tão de súbito o
abandon.ára.
Ergueu-sc, e recuou lambem ; mas em pé, e cru-
zando os braços, olhou para apupilla deD.Thereza
como o juiz para um réu.
«Faz agora três annos e um dia — disse elle cora
voz lenta e na apparencia tranquilla — que neste
mesmo logar te jurei estar hoje aqui a teus pés 1
Meus juramentos cumpriram-se. Dulce, lembras-te
dos teus ?»
«Meu Deus 1 Egas! tu aqui? — Oh! — que mal
te fiz cu, para me matares com o inesperado da tua
vin3a ? murmurou Dulce desfalecendo, e vindo ca-
hir nos braços do trovador.
-Mas estes braços não se uniram para a estreitar
contra o peito! <J cavalleiro afastou-a de si branda-
mente , e proseguiu : —
« Nào é minha a culpa se um raio cabido do céu
vem partir a cadeia dos teus dias risonhos tecida
pela traição. Meus juramentos cumpriram-se. Dul-
ce que fizeste dos teus?»
O caracter de Dulce era um mixto inexplicável
de candura e de energia , em que a fraqueza pró-
pria do seu sexo era muitas vezes subjugada pelo
sangue nobre e generoso que lhe girava nas veias
— o sangue dos Bravaes. A alegria súbita de ver
Egas poderia ser-lhe fatal , se as palavras gélidas
que elle lhe dirigia não houTessem temperado o de-
o PANORA3IA.
«j;3;
lirio do primeiro iuslnntc. Kcssas palavras conlicceii
a (lonzolla (]Me o ciiinie era quem asdiclava. O sen-
timento da injustiça com que o cavalleiro repellia
a sua ternura a fez recobrar a consciência da situa-
ção em que se achava. Durante alguns momentos
um silencio profundo reinou entre os dois amantes,
que olhavam filos um para o outro. Dulce, por lira,
tirando do seio um pequeno punhal, deu dois passos
para diante, e arrojando para longe a bainha lo-
inou-o pelo ferro , e oflereeendo-o a Egas dissc-lhc
cora voz a princípio lirmc , mas que brevemente as
lagrymas cortavam : —
«Quando ha três annos , Egas, o nobre trovador
partiu para ultramar , a sua amante na hora cruel
da despedida pediu-lbe uma lembrança, que bera di-
zia com os seus tristes prescntimentos. Esta memo-
ria foi o punhal toledano que ello trazia comsigo.
Dulce era uma pobre orphan: podiam constrange-la
a ser infiel ; — e então curapria-lhe morrer: foi pa-
ra morrer que ella o pediu Egas! — prose-
guiu a donzella — os meus juramentos guardei-os
até hoje : — juro-o por Deus que nos ouve ! Mas se
me crês culpada, ou que cu possa vir a sè-lo, vin-
ga-te da traição , ou cmbarga-me o traliir-te. »
E estendia o punhal para o cavalleiro.
. «Sabes que eu não poderia assassinar-te ! — re-
plicou Egas. — Xcra para te assassinar vim aqui.
O meu intento era outro Qual ? . . . Nem eu
mesmo o sei ... Trouxe-mc raáu grado meu a lou-
cura da desesperação. Oh , sim ! . . . agora me re-
cordo .... vinha para te dizer : — Dulce , fizeste
bem em trocar o foragido , o homem que só pos-
sua a pouca terra que lhe deixaram seus pais; que
não ganhou ainda nos enredos cortesãos um úni-
co prestamo , pelo cavalleiro estranho que pode e
vale tudo com o senhor destes paços prostituídos . . .
vinha dizer-te que cumpri a promessa de estar ou-
tra vez n teus pés dentro de trcs annos. Estive a
teus pés ! — Agora nunca mais perturbarei
tua dita. Escusas de perjurar ao céu para negar o
perjúrio ...»
Dulce deixou cahir o punhal , e estendendo para
o cavalleiro as mãos confrangidas c tremulas de af-
ílicção — interrompeu :
i< A minha dita cifra-se em tornar a ver-te ; era
ouvir ainda de tua boca palavras de ternura : estas
converteram-se em injurias e escarneo. Calumnia-
ram-me, e tu acreditaste acalumnia Não de-
vias faze-lo. Perdòo-te ; mas escuta-rje I »
«Escuta-metu ainda mais alguraas palavras — re-
plicou o mancebo : — são as derradeiras que me
ouvirás ! Tu foste a única imagem que eu via em
quanto combati, e padeci, e soflfri alem mar: para
ti sonhava eu sonhos de gloria : por ti fiz resoar as
rainhas endeisas melancholicas debaixo dos cedros
do Líbano , e com lagrymas de saudade refrigerei
estes lábios queimados pelo sol ardente do deserto.
O teu nome invoquei-o em mais de cera recontros ,
e ao invoca-lo augraentavam-se-me na alma o esfor-
ço e a constância. Tu eras a senhora dos raeus pen-
samentos , a divindade do meu coração. — Voltei a
Portugal onde esperava achar a recompensa de tan-
to amor. Qual foi ella? O meu futuro inteiro cahiu-
me hoje aos pés desfeito era cinza ; porque este fu-
turo estava nas raãos de Dulce , e Dulce que eu
cria anjo , era apenas raulher ! »
«Mata-rae antes com esse ferro que jaz a teus
pés — exclamou a donzella com voz débil e travada
de choro — ; mas não me faças expirar nos tormentos
intoleráveis de coar pelo coração uma a uma as ago
nias que para elle manam das luas palavras. T«ra
piedade de mim , Egas . c onve-me ' — que se me
ouvires has-de arrepender-te, o dizer: — Dulce, tii
és innocenU' ! ... Os que te accusaram mentirani-
me ! . . . Oh '. escula-me por piedade ' »
E o tom daquellas expressões , c a postura sup-
plicante da formosa orphan abrandariam o instinclo
de um tigre : o cavalleiro vacillou :
«Houvera cu, desgraçada , de dizcr-te essas pa--
lavras; houvera de acharno horisnnte da minha vi-
da uma bela de luz e esperança ! Mas a boca de
homem (]ue nunca menliu me confirmou sem oqiie-
rer o que a fama confirma\a. >i — E dc|)ois de olhar
para ella fito alguns momentos, proseguiu : — Não
amas tu um desses aventureiros que opprimem a
boa terra de Portugal? — não vais ser em breve es-
posa : »
«Não acabes essa idéa Icrrivel — atalhou Dulce
com anciã , que tocava quasi as melas do phrenesi.
— Esposa? ! Só tua ou do tumulo. — Nem o mun-
do , nem Deus teriam força para mo constranger a
tanto. As apparencias enganam, Egas ! Saberás a ver-
dade : — só a verdade — e sè tu o. meu juiz.»
O acccnto com que a donzella proferira eslas pa-
lavras pareciam tanto vir da alma, que a persuasão
da infidelidade de Dulce, que tudo conspirara para
arraigar no animo do cavalleiro, começava a trocar-
se em hcsilação porventura mais dolorosa que a cer-
teza dessa infidelidade em que até ahi estivera.
«Crés tu — replicou clle — que o peregrino ex-
pirando no meio das anciãs de sede devoradora re-
cusasse a laça d'agua christnilina? — que o suppli-
ciado , no meio dos tratos d'algozes, não quizessc
ouvir a palavra basta! da boca do juiz? — que o
conderanadoregcitasse o céu pelo inferno? . . .Oxalá
que os últimos oito dias que tenho passado , c que
devoraram annos e annos de meu viver , não hou-
vessem sido mais que um pesadelo maldito. Anjo
que vi despenhado, podessc eu adorar-tc ainda co-
mo a ura anjo de luz? Se neste mundo ha para Egas
futuro e para ti innoccnciu , salva-me de mim mes-
mo. »
Então Dulce aportando com ura movimento con-
vulso a mão do cavalleiro a encostou entre as suas
ao peito , como se esperasse que no pular do cora-
ção elle podesse conhecer que sabia de lá pura e
sincera a narração que lhe ia fazer.
Esta narração era a historia do amor de Garcia
Bermudez, amor a que ella respondera sempre com
a dissimulação como o leitor já sabe. Dulce nem
disfarçou a espécie de affeição innoccnte que con-
sagrava ao aragonez , e que dera origem ás suspei-
tas que tão de leve o ciúme d' Egas accrcditára ,
nem os desejos do conde e da infanta de a verem
unida áquelle nobre c esforçado cavalleiro. Não lhe
esqueceram os acontecimentos do nllimo sarau , e
a repulsa positiva que se vira finalmente constran-
gida a dar. Conhecendo o caracter altivo e ao mes-
mo terapo generoso de Garcia , entendera dever-lhe
explicar a causa daquella repulsa, e fiar delle os se-
gredos mais Íntimos do seu coração , dando-lhe as-
sim uraa prova de estima era logar de amor. « Era
esta derradeira consolação — concluía Dulce — que
eu acabava de dar áquelle desventurado , quando
tu vieste cego pelo ciurae despedaçar o coração da
tua amante , que te sacrificava o horaem que por
certo amaria , se para ella houvesse neste mundo
amor, pensamento, esperança, que não fosse Egas,
que não fosse áquelle que vai pedir-me perdão da*
suas suspeitas , que Ião tristes me tornaram os ins-
u
o PANORA]»IA.
tantes que deviam ser os mais deliciosos da minha
vida. »
As mãos do cavalleiro apertavam já com amor as
de Dulce ; por isso, em quanto fallára, no roslo da
donzclla as lagrymas se haviam desvanecido pouco
a pouco no deslisar de um sorriso.
«Dulce, Dulce! — exclamou o cavalleiro. — Oh!
repelc-me que só amas o leu Egas 1 Jura-me que é
verdade tudo isso ! »
«Farei mais — atalhou a donzella n'um extasi de
alegria. — Arranca-mc destes paços se ha para isso
algum meio. Abandonarei aquella que me criou co-
mo filha querida, e seguir-te-hei a ti, que não podes
abusar do meu amor, porque és um leal cavalleiro.
•Seguir-te-hei por toda a parte ; no esplendor ou na
miséria ; na terra da infância ou nas solidões do des-
terro ; na liberdade ou em ferros. Junto ao altar o
nosso amor será santificado pela benção de Deus ,
e eu serei tua , lua só , tua para sempre ! »
E Dulce cahiu nos braços do guerreiro trovador,
qne desta vez a estreitou contra o peito , e lhe im-
primiu na fronte um beijo ardente e puro como os
pensamentos d'aml)os. Naquelle instante os seus co-
rações trasbordavam de celeste e inefável ventura :
— não cabiam neilcs as grosseiras sensações terre-
nas.
«Tens rasão ! — disse o cavalleiro — de cima me
▼eio a inspiração de buscar-te antes de morrer ,
porque tu me restitucs a vida. Sim, irás comigo.
Amanhaã ao cahir das trevas eu serei aqui. Todos
os meios de fuga estarão preparados ; no arraial do
infante, que não vem longe, acharemos brevemente
abrigo , e ahi seremos unidos pelo venerável arce-
bispo d e Braga. »
«Mas nomeio de tantos homens d'arraas , dos
atalaias e vigias que guardam pontes , barbacans c
muralhas, não correrás grande risco?»
«Oh I não o receies- — interrompeu o cavalleiro —
o ouro e , se for preciso , o ferro nos abrirão cami-
nho até o váu do Madroa. Espera r-me-hão no bos-
que os meus homens d'armas. Para transpor a bar-
bacan talvez nos baste vestir as esclavinas de ro-
meiros. Ninguém haverá tão impio que nos pergun-
te : — peregrinos do santo sepulchro , para onde c
que vós ides ? O romeiro é livre como a ave do céu :
respcitara-no o besteiro e o homem d'arraas : da-lhc
abrigo o villão sob o seu colmo , o abbade no seu
mosteiro , o nobre no seu castello. Quando ouvires
cantar lá embaixo junto á torre aquella trova que
eu fiz no despcdir-nic de ti : —
Vai-se o vulto do meu corpo;
Mas eu não ;
Que a teus pés cá fica morto
O coração :
.Serei vn que virei arrancar-le destes odiosos paços:
c então serás minha , minha para sempre ! »
«IMas se te descobrirem ? . . . Oh que é uma idéa
lerrivcl »
Neste momento uni silvo a^udo soou dacorrcdou-
ra contigua ao jardim.
" K .\bul-llass:iii (pie me faz signal — disse o ca-
valleiro estremeci-ndo. — Devo deixar-te, minha Dul-
í:v. »
<' Já I '.' — iniirTiniri)U a donzella. —
"Sim — replicou ligas — para poder sahir ainda
boje defiuiinarães. Sem ibso a tua partida fiira ama-
nhaã iiiipossivel. »
Um véu de melancholia cobriu o coração do Dul-
ce, 'l-error inexplicável se apossara delia , como se
houvera de ser aquella a ultima vez qae visse o
cavalleiro.
«Parle pois: — disse com voz dcbil — mas ama-
me sempre muito ! »
Egas então cahindo a seus pés, e pegando-lhe na
mão com uma alegria que tocava quasi as raias da
loucura , cobriu-lha de beijos.
«Oh, amar-te ! ? — 'dizia elle. — Mil vezes mais
que a vida ; cem vezes mais que a honra de caval-
leiro I Àmanhaã I — ámanhaã ! . . . — e para sem-
pre ! »
Eerguendo-se rapidamente, desappareceu no pas-
sadiço escuro, que dava sabida para a corredoura.
Dulce parecia petrificada olhando para o sitio por
onde Egas sahira, como quem tentava ainda desco-
brir a sua imagem, escutar a sua voz, no meio das
trevas da noite e do silencio profundo que a rodeava.
Não ouviu, porem, mais que o tropear de um ca-
vallo que partia ao galope, nem viu mais que a luz
reflexa da sala do banquete que batendo pelo inte-
rior das muralhas do castello tingia um grande lan-
ço da cerca com a claridade baça e variegada, que
jorrava pelas vidraças de mil cores do festivo apo-
sento.
Dulce ajoelhou, ealevantando asmãosjuntas para
o céu, onde scintillavam myriadas de estrcllas, que
mal podia distinguir atravez das próprias lagrymas,
exclamou com um gesto de intima agonia:
«Meu Deus, meu Deus! — Porque me desfalece
a esperança? ! v
Era o coração que lhe predizia algum successo
tcrrivel? — Quem sabe?
( Continuar-se-ha) .
(A. Herculano).
Ahor.
Todos o sentem , e parecem comprehende-lo , mas
ninguém soube ainda dizer o que seja amor. Fata-
lidade estranha ! não sabemos da origem e nature-
za d'ura sentimento commum e universal. Mas que
muito se lambem o homem não sabe como vive ,
como pensa e sente !
Não queremos defini-lo que lambem não sabemos :
bera poderam ser tantas as formulas que o definis-
sem, quantos os innumeravcis individues que o sen-
tem . e que buscam exprimi-lo ; e ainda mal o não
conseguíramos. Pôde o género humano )iinlar-se de
uma pincelada , ou resumir-se a natureza inteira
n'um quadro? Pôde a mão do Omnipotente , que
abrange o infinito; a do homem nunca.
Vejamos ao menos se sabemos como e onde exis-
te. .Mas o modo e a matéria nos fogem da analyse :
um é tão multiforme , é tão extensa a outra que
nos escapam do pensamento, c quanto mais os bus-
cámos cada vez mais e mais se somem e se afun-
dam na imraensidade , pélago sem praias onde dcs-
nortado naufraga o misero baixel da inlelligencia
humana.
Mas lu , oh homem , que viajas na terra , e que
nella tão pouco te demoras , pára , siispcnde-tc , e
rcllecte : pergunta a li mesmo oque seja amor. Tu-
do quanto vês com os olhos , e alcanças com o en-
tendimento , não é senão efieitos de amor. Contem-
pla , que o verás claramente estampado nas leis in-
finitas e immutaveis, que a voz da Sapiência Eter-
na assignaloii ás obras da sua Omnipotência lá des-
de a primeira manhaã do mundo. Ki-lo, e reconhc-
ce-o : ainda que o não queiras , é na harmonia pa-
o PANORAMA.
9S»
tente deste mundo mesquinho, em que habitas, que
o podes achar. Estende os olhos, e alonga o pensa-
mento pelas sccnas raagestosas , que se desdobram
ante os teus olhos desde a purpura da aurora alé
os crepúsculos do occaso : rouba alguns instantes
também ao sorano, c pasma das maravilhas subli-
mes que nas trevas da noite se manifestam na cú-
pula do lirmamonlo , porque cilas se bem que tre-
vas alumiara maravilhas.
E é possível que depois disto ainda o não aches,
nem o comprchcndas'.' llepara : esta harmonia sua-
víssima, que reina em Indo o que é e que foi crca-
do , dimana da vontade Suprema , e c amor : amor
é esta melodia dulcíssima dos mundos entre si , c
das parles componentes d'um mesmo mundo até a'
mais diminuta escala , melodia da qual pôde a al-
ma iVuir c fartar-se , mas que o corarão nunca sa-
berá sosinho cabalmente avaliar, nem lábios huma-
nos articula-la : amor é uma melodia etherea de
sons, que disferem harpas celestes e desconhecidas,
mas nas quaes nada ha frágil , terrestre e sensual :
amor é virtude, é essência de Deus, é finalmente
Deus.
Mas trema o miserável mortal, que no sonho dos
seus delírios pensar que pôde reger ou infringir a
seu belprazer as leis desta harmonia eterna : então
elle , que nem sabe explicar a natureza de um áto-
mo de Descartes, nem a de um dos mundos de New-
ton , nem como vive e se move o insecto , sentirá
mirrar-se o seu braço como palha de feno , e mais
veloz que o fuzilar do raio ; e verá os seus pensa-
mentos confundidos e anniquílados como turbilhões
de pô varridos das azas do vento.
Amor foi fogo, que a Omnipotência Divina accen-
deu somente d'uma vez, ao qual alimenta e minis-
tra matéria do seu nutrímento na criarão dos seres
até á consumação dos séculos. Aqui embaixo ainda
se acha submettido ás fórmulas , e tem resaibo das
partículas terrestres que engendram a matéria : lá
cmcima será ether puríssimo , subtil e volátil , quo
subirá sem parar, como nuvem de aromas, até cír-
cumdar o throno do Altíssimo. Amor na terra não
se cria mais , nem se invoca , nem se promove : a
Providencia o rege , assim como derrama a luz no
dia e despeja as torrentes no oceano.
Se o homem na febre das paixões o evocasse ,
commetlcra sacrilégio : poderá acha-lo talvez , mas
um amor bastardo , filho da intemperança , da ím-
moralídade c da corrupção. Tão passageiro trium-
pho lhe custara amarguras sempiternas ; porquanto
desesperou da Providencia, não poderá fugir da ira ',
de Deus, que cahirá cm cima d'elle c da sua des- ,
cendencía.
Parece que mais sensatas andaram as gerações
primitivas, e as da lei cscripta no Sinai. A mytho-
logía era um culto indirecto a Deus , centro de to- ]
dos os cultos, e quem somente os pôde receber:
erraram nos meios, mas não no fim : Deus c o juiz, 1
e não o homem.
Elias viam com eITeito a creação animada ; co-
nheceram que era inerte a matéria e a povoaram de
divindades. Júpiter e Juno figuraram o consorcio
mysterioso dos ares: Neptuno e Eólo levantavam as
vagas deste mar, que viam mover-se : Vulcano ali-
mentava a potencia do fogo : e Vénus sahia das on-
das do mar , descarga e reservatório commum da
electricidade. Os rios e fontes tinham Naiades, nos
montes habitavam Orcades , nos bosques Dryades ,
Napeas e Satyros , e em cada logar um génio. Sem
estes tão débeis simulacros devida mal podiam con-
ceber a matéria cm acção e movimento , c ao me-
nos buscavam explicar assim a forra das leis phy-
sicas , com que a vontade do Creador a rege.
Jlas uma casta de philosophia moderna se alc-
vantou , e substituiu a mythologia da antiguidade
com um termo concreto , vazio c cmphalico , se o
não é também impio , ode — natureza — , e seia
explica-lo, porque nem sabe , e nem pôde , julga
haver cortado o nôgordio. Nôs, filhos da lei daGra-
ça , fechámos os olhos c tapámos os ouvidos, para
não vèr c ouvir; cegos c surdos parece que prefe-
rimos atirar comnosco ás trevas crassas do [laganis-
mo onde possamos a salvo fartar-nos , e aturdidos
e incrédulos como que ainda hoje pedimos milagres
ao céu , e titubeando na fé bradamos com as turbas
de Israel : Siveri: es fUius homiuis descende de cruer,
et salva te ipsum.
Em tempos raythologicos, quando o entendimento
se escorava cm suas forças únicas , podéra talvez
perdoar-se o fazer de amor um prazer sensual , da
lei da fruição a sua única lei , e da força da sua
intensidade e duração o seu primeiro iiistinclo c
necessidade. Era então filho espúrio das sensações ,
e mal podéra refrea-las : sempre os prazeres no ho-
mem propenderam a estcnder-se e a reproduzir-se,
illimitados como a eternidade , para onde o vemos
gravitar accelerado como para um centro commum.
E todavia as sociedades dessas eras o encadea-
ram em laços matrimoniaes , que fossem penhores
de ordem e de estabilidade. Êm tempos patriarchaes
Rachel voltando da fonte sentiu arder o fogo d'a-
raor no peito virginal , e tingir-lhe um rubor lam-
bem as faces, mas puro, inuocente e casto era es-
se amor , como o de um anjo ou cherubim. Lavra-
ram paixões, eapoz ellas crimes : algumas almas for-
tes entraram em combate e escaparam do naufrá-
gio. Sócrates embrulhado no manto, e estendido
no leito da morte, bebendo cicuta, defendia a im-
morlalidadc , provava a existência de Deus , e com
a palavra c exemplo ensinava sublimes virtudes.
Mas estava guardado para o Christianismo, e era
elle quem somente podia fazer as legitimas boda»
do amor com a religião , e ensinar-lhe a reprimir-
se , santificando-o no fim pelo qual Deus ateou es-
ta chamma celeste. Já não é hoje o amor brutal
das synagogas , dos idolos de Baal , de Vénus era
Grécia e em Koma, dos pagodes de Brama, dos fe-
tiches de Tupá , nem o das mesquitas do filho de
Agar. Estremeceram nos pedestaes , c cahirara em
terra os bezerros do ouro israelila. .\mor recuperou
um Cm celeste como o eram a sua origem e natu-
reza. Foi o Christianismo quem o fez tornar a con-
verter-se n'um pensamento , ou n'um sentimento
puro e incflavel , e não em gozo ou sensação mate-
rial como d'antes. O Divino Mestre dos apóstolos
foi quem o ensinou na terra , e isto bastará a con-
firmar a verdade da doutrina do Messias. Emrau-
deçam puis os abalizados philosophos, que não sou-
beram elles resolver o máximo problema da Crea-
ção.
E deste amor chrisíão que aprende a esposa a
guardar fé e castidade ao esposo , a mãi ternura
ao filho , o amigo lealdade ao amigo , e todos com-
paixão ao próximo , c gratidão , respeito c culto a
Deus : é d'elle emfim que manam as correntes cau-
daes das virtudes, que Jesus Christo ensinou e pra-
ticou na terra.
Mas do amor pagão rebenta um fogo brutal e ce-
go , que se atéa e lavra sem poupar idade, sexo ou
condição : d'elle nasce toda a casta de crimes o
96
O PANORAMA.
maldades , porquanto não ha laços que não quebre,
nem barreiras que não rompa alé saciar-se, e gerar
de si a morte, ultimo dos males humanos, e ponte
Icvadira da vida para a clornidade.
Mas este sentimento, que em linguagem de chris-
lãos se chamava cm outro tempo charidade , se de-
nomina hoje amor em sentido mythologico e sen-
sual , c jiliilantrnjna em accepção politica e social.
Llazonàmos bem alto de mythologicos ou políticos :
cnvergonhàmo-nos de parecer christãos.
Tiburcio António Craveiro.
A COBIÇA DE DINHEIRO.
O CLÁSSICO escriptor , Fr. António Fèo , exprirae-se
íiccrca deste vicio pelos seguintes termos em odisc.
;5.", que tem por epigraphe In tclonio , do tratado
primeiro da festa do Evangelista e Apostolo S. Ma-
thcus. —
icTelonio é um furtar com titulo de divida, uma
tyrannia confiada , sem haver quem lhe vá a mão
intitulado com justiça, porque quem hade ir <á mão
.10 furto auctorisado e coroado com a obrigação?. .
O ladrão furta ás escondidas onde o não vejam, se
o comprelicndem corre-se , o publicano muitas ve-
zes rouba ás claras e confiadamente : o dinheiro em
quanto é a matéria da cobiça facilita todos os pec-
cados , é inimigo a cuja obediência estão todas as
crueldades prestes, e então faz maior damno, quan-
do delle mais se possue ; se pondes nelle os olhos
enfeitiça, faz com que ou quebreis palavra ou vos
faltem com ella , não tem amor , nem lei com al-
guém , tanto lhe dá estar aqui como alli , na mão
deste oudaquellc, c causador de discórdias , in-
quietador da paz, roubador da innocencia , ensina
a furtar, fazer enganos, persuade rapinas, é cabe-
ça de bando. O que tudo se viu bem no que acon-
teceu a .loseph com seus irmãos , porque entrando
cm geração tão santa a cobiça, de tal maneira cor-
rompeu a irmandade , desterrou piedade , que ven-
deram a Joscph a egypeios . um irmão a bárbaros ,
nm innocentc a culpados ; atTrontaram a liberdade ,
entregando-a á servidão , e em dando dentro em si
entrada á avareza , de tal maneira deu o ar por el-
Ics que a brandura de homens se converteu em
crueldade de feras , nem lhes ficou logar para ad-
vcrtiveiu na oflensa que a Deus faziam , no desgos-
to (jue ao pai davam, na irmandade que emJoseph
violavam. (Jue não fará o dinheiro, quando até um
bezerro, por de ouro, se fez adorarcomoDeus? .... »
K na cohimna immediala, continuando a matéria
accrescenta. —
— I maior milagre foi converter Christo a S.
Malbcus que sarar ao pnralytico , porque se este
tinha .1 doença no corpo , o publicano era enfermo
na alma por meio da alTeição das riquezas: e diver-
tir um avarento do desejo de ganhar é valentia que
só iJeus a pôde fazer. Correm parelha fazer de um
morto ^ivo, e de um cobiçoso desprezador c libe-
rai; porque aquillo que no corpo faz a vida, obra
na alma o desprezo nascido da charidade.» —
0.< liiíjos rio âmbar .
ha dois grandes lagos: o primeiro terá vinte léguas
de comprido, e de largura n'algum ' '
.ateraes ao mar lialtico
irá vinte léguas
as partes duas
de comprido, e de largura n algumas partes duas
léguas e n'outras cinco, chama-se Frisch-haff; o
segundo tem vinte c duas léguas por cinco até seis
<ie largura gcralmcBle, e o deaominam Curicb-halT.
Kslreitas faxas de terra os separam do mar, com o
qual só communicam pelo estreito de Gast , cuja
entrada cm diversos tempos tem variado de posição.
São alfamados os dois }latT pela rasão do âmbar ou
suceino, que fiuctúa era grande quantidade nas suas
aguas. Esta substancia odorífera , <• de origem até
agora ignorada, posto que é por alguns reputada de
natureza mineral , e por outros a resina fóssil de
alguma arvore de espécie que se perdeu nas gran-
des revoluções do globo ; naturalistas ha que pen-
sam ser esta uma matéria produzida por certa casta
de formigas grandes, e impellida áquellas paragens
e sobre as praias pelos ventos do noroeste e do nor-
te. Nos lagos supracitados se colhia quasi especial-
mente, em outras eras, a maior quantidade dam-
bar, mas hoje minera-se e extrahe-se em muito
maior porção nos outeiros próximos ao lago , o que
induz a suspeitar a origem mineral da substancia.
]Vo mesmo estado se arranca da terra na Polónia e
nas fronteiras da Litbuania.
JHcmorauííum.
25 DE Mabço.
n . . . no anno de 1646 , neste dia , em que en-
tão cahiu o Domingo de Ramos, celebrando-se cm
Lisboa Cortes dos Três Estados do Reino, nos quacs
se representa o corpo inteiro da nação, jurou o Sr.
rei D. João 4.°, e com S. M. os Três Estados , de-
fenderem, com dispêndio da própria vida [se neces-
sário fosse] a Conceição Immaculada da Mãi de
Deus , impondo pena de desnaturalisação a toda a
pessoa que tivesse a sentença menos pia ; e elegeu
a mesma Senhora , neste glorioso mysterio , Prote-
ctora e Defensora de Portugal, e lhe fez a monar-
ci.ia tributaria, e a si e a seus successores em cin-
coenta cruzados de ouro cada anno, applicados pa-
ra a igreja parochial de Villa-Viçosa, a qual se af-
firma ser a primeira que se edificou em Hespanha
com o titulo da Conceição. » Fr. Francisco de St."
Mar. — An. Hist. tom. 1.°, pag. 3S3.
António de Sousa de Macedo occupa o extenso
cap. 15.° da 2.' part. de sua erudita obra = Eva
e Ave êçc. , em tratar historicamente da Conceição
Immaculada ; e referindo o mesmo que o escriptor
mais moderno, que acima citámos, accrescenta : —
Tratou-se logo de que a insigne Universidade de
Coimbra e todos seus cathedraticos e professores fi-
zessem o mesmo juramento e com ordem do
dito Sr. rei , como [irotcctor, que é da Universida-
de , se fez o juramento em sabbado 28 do julho do
mesmo anno , sendo reitor Manuel de Saldanha ,
que morreu eleito bispo de Coimbra.» — Passa lo-
go a transcrever a inscripção commemorativa des-
sa deliberação do rei e das cortes, para ser inscul-
]»ida sobre as portas das cidades e fortalezas . o
que ainda em muitas se conserva , como temos vis-
to; foi composta em lingua latina pelo próprio mi-
nistro , Sousa de Macedo.
Em 1717 expediu elrei D. João li." cartas regias
aos prelados niilrados do reino para que em suas
dioceses se celebrasse a festividade annual em ob-
sequio da Conceição de Maria. — O Sr. D. João 6.°
instituiu , por Dec. de 6 de fev.° de 1818, a Or-
dem de N.'' S." da Conceição de Villa-Viçosa , Pa-
droeira do Reino; deram-se-lhe os Estatutos por
AIv. de 10 de setembro de 1819.
m
o PANORAMA.
97
A ESTijiPA, que precedo, ó allcgorica ; designa Mi-
guel Angelo alisorlo em suas concepções sublimes ,
e rodeam-no os allribulos de sua gloria . estatuas ,
palhetas , esboços : ao longe avista-sc o magostoso
zimbório de S. Pedro, sua obra mais estupenda.
Miguel Angelo Buonarotti foi um daquellcs raros
engenhos, favorecidos de todos os naluraes dotes
no subido grau em que parece que a divindade se
compraz, de séculos a séculos, em juntar n'unia só
pessoa muitas excellencias , que repartidas , cada
uma de per si , bastariam para ganhar celebridade
a diflerentes talentos. Dilficil é assignalar se foi cl-
le mais insigne na estatuária , se na architectura ;
um escriptor eloquente lhe chama o pai da pintura
ipica ; foi distincto na poesia , mui sabedor littera-
lo , e leve óptimas qualidades moraes. Era portan-
to impossível que o Panorama , no decurso de qna-
si seis annos , mantivesse silencio a respeito de ho-
mem tão celebre: por isso no2.''vol. [annodel838]
tratando de suas obras principaes dêmos de\ ida con-
ta . ainda que breve , de seu transcendente mereci-
mento , a pag. 82 , e a pag. 298 in fine : vcja-sc
mais a pag. 391 do l.°vol. da presente Serie 2.''
Ao sahir da meninice , aquellc que havia de ser
tão exiraio artista manifestou logo habilidade pro-
digiosa; c postoque ao orgulho de sua familia, des-
cendente dos illustres condes de Canossa , era into-
Abhii. 1— 18 '(^3.
leravel a idéa de educar para o exercício das artes
liberaes o joven Miguel , consentiram a final em o
sulimetter á direcção dos irmãos Ghirlandaio , en-
tão afamados pintores de Florença , e que tiveram
a sinceridade de confessar que o discípulo ao cabo
de dois annos sobrcexcedia seus mestres : cIlcctiNa-
mcnte Miguel Angelo, de quinze annos de idade,
já não tinha professores, nem obras porque apren-
desse, donde veio entregar-se aos impulsos do seu
génio, a cuja peculiar circumstancia se deverá tal-
vez a originalidade , que constitue o caracter de
suas obras.
Lourenço de Medicis , cognominado o magnifico ,
concebeu a idéa de crear em sua corte uma cscho-
la de escuiptores, e em o numero dos que para es-
se intento escolheu entrou Jliguel Angelo, que em
período mui curto se fez sobremaneira notável na
estatuária , arte que acima de todas mais estimou :
fallecendo porem o protector, dissolveu-se a Acade-
mia, e Buonarotti por tempos permaneceu sem obras
em que occupar-se , frouxos como então estavam o
amor e gosto pelas Bellas-Arles ; até que o prior da
casa religiosa da invocação do Espirilo-Santo lhe deu
habitação no convento, encommendando-lhe nm cru-
cifixo, e facilitando-lhe dos hospítaes cadáveres hu-
manos para que estudasse a anatomia , quasi igno-
rada naquelle século ; por este meio o mancebo ar-
2.' Sbrie. — Voi.. 11.
98
O PANORAMA.
lista adquiriu o gramlc conhecimento cm myologia ,
iliie lhe deu nome entre os niaisdistinctos desenha-
dores.
O p.ipa Júlio 2." chamou-o a Roma e lhe encar-
rcsou a csculptura do monumento que para si des-
tinava , c as pinturas da capolla sixtina : obras até
hoje consideradas como prodígios da arte. — Pos-
teriormente empregado pelos puntilices Leão 10.°,
Adriano G.° e Clemente 7.° fez os famosos quadros
do .Iiiizo final , da Conversão de S. l'aulo , da Cru-
cifixão de S. Pedro e as soberbas estatuas de Moy-
sés , do David , e outras , que tem sido geralmente
admiradas. — Por morte de Bramante foi escolhido
para continuar a fabrica da colossal basílica de S.
Pedro (•) corrigindo a planta primitiva, e reduzin-
do a ordem a confus<ão occasionada pela variedade
de riscos que se haviam adoptado. — O seu estilo
archilectonico distinguia-sc pela grandeza c ousadia
das concepções: e nos seus ornamentos brilha cer-
ta pureza , filha tão caraclcrislica da sua imagina-
ção.
Assim passou a vida , sobresahindo eru quanto
rnif)rehendia e compunha , aíé que sentindo avisi-
nhar-lhe o termo delia, na avançado idade de 90
antios. chamou a seu sobrinho Leonardo, a quem
dictou seu testamento , limitado ás seguintes pala-
vras.— II Deixo a minha alma a Deus, o meu cor-
po á terra , e os meus bens a meus mais próximos
parentes.» — Pouco depois deu o espirito ao Crea-
ílor , aos 10 de fevereiro de 1364.
ASCSEOLOtilA S>0RTi;6DEZA.
■ TK. i
Viagem de Tron c Lippomani.
(1380.)
(Continuação de pag. 82. J
As mulheres portuguezas são singulares na formo-
.sura e proporcionadas no corpo ; a cor natural dos
.seus cabellos é a preta , mas algumas tingem-nos
de côr loura : o seu gesto ó delicado, os lincamen-
los graciosos , os olhos negros e scintillantes, o que
lhes accrescenla a lielleza : e podemos allirmar com
verdade que era toda a viagem da peninsula as mu-
lheres que nos pareceram mais formosas foram as
de Lisboa ; posto que as caslclhauas, e outras hes-
panholas arrebiquem o rosto de branco c encarna-
do , para tornarem a pellc , que é algum tanto, ou
antes muilo trigueira , mais alva e rosada , persua-
didas de que todas as trigueiras são feias. O trajo
feminino cm Lisboa é o commum de toda a Hespa-
níia ; isto é , o manto grande de lan ou de seda ,
segundo a qualidade da pessoa. Com elle cobrem o
rosto e o corpo inteiro , e vão aonde querem , tão
di.sfarçadas, que nem os próprios maridos as conhe-
cem, vantagem esta que lhes da maior liberdade do
que convém a mulheres bem nascidas e bem niori-
geradas. As damas nobres costumam ser acompanba-
<ias, pela cidade, dccreados bem vestidos, que lhes
precedem com passos lentos o socegados . e de do-
nas que as seguem com grandíssima gravidade, não
tendo por signal de boa reputarão o serem acompa-
nhadas de donzellas.
O povo miúdo vive pobremente , sendo a sua co-
mida diária sardinhas cosidas, salpicadas, (^) que se
(.) Viil. a noticia a paj. 297 e segí- ilo vol. S°
(í) ^■'itlmeslriilc — dialecto veneziano talvez.
vendem com grande abundância por toda a cidade.
Raras vezes compram carne , porque o alimento
mais barato é esta casta de peixe , que se pesca em
notável cópia fora da barra , como se pesca muito
outro de Iodas as qualidades e muito grande ; mas
cm geral menos gostoso do que o das aguas de Ve-
neza , e tão caro , que faz espanto aos estrangeiros
e custa muito aos naturaes , que passam mal pelo
preço excessivo de tudo o que serve para o susten-
to. Comem os pobres uma espécie de pão nada bom,
que todavia é barato , feito de trigo do paiz , todo
cheio de terra, porque não costumam joeira-lo, mas
nianda-Io moer nos seus moinhos de vento, tão sujo
como o levantam da eira. O pão bom e alvo faz-se
de trigo de fora , que trazem de França , Flandres
e Allcmanba os navios destas nações quando vem a
Lisboa buscar sal e especiarias. Este , na verdade ,
também não é joeirado , mas as mulheres pobres o
escolhem grão a grão , assentadas á porta da rua
com paciência fieugmatica mais própria d'allemaãs
que de portuguezas. Estas mulheres tem licença pa-
ra fabricar o pão c vende-lo pela cidade onde e co-
mo lhes apraz , o que sempre é por alto preço. O
trigo vale a i280 réis o alqueire. Nutre-se também
a gente pobre de fructa, que abunda muito e é ba-
ratíssima.
O vinho commum é pouco bom , por não dizer
máu ; porque não sabem , ou não querem ter o in-
coramodo de o fazer bom. Vale geralmente a 24 rs.
a canada. Os vinhos finos são excessivamente caros :
os Silrs. Embaixadores tiveram de pagar o branco
para o consumo ordinário da sua mesa a 60 escu-
dos a pipa
Quanto ás vitualhas não é em Lisboa que se hão-
dc buscar cousas muito exquisitas. Até a vitella é
rara ; porque não costumam matar estes animaes ,
guardando-os para crescerem e servirem nos traba-
lhos do campo ou de abastecimento da cidade, sen-
do , alem dis.so , ahi a comida ordinária o capado ,
que é e«cellente.
No tempo de elrei D. Sebastião as rendas reaes
consistiam nos direitos das alfandegas de Lisboa e
de todo o reino, assim sèccas como molhadas. D'u-
mas Cousas pagava-se o quinto, d'outras a decima ;
e do peixe, em muitas parles, mais de metade. Ha-
^ia também rendas em cereaes, vinho, e outros gé-
neros ; as rendas dos mestrados a que pertenciam as
ilhas de S. Thomc, Terceiras, Cabo-verde , Madei-
ra . e Príncipe : as da Mina que pertenciam á Or-
dem de Christo. As especiarias e outras fazendas
que vinham annualmente da Índia e do Rrasíl pro-
duziam 'ambem um avultado rendimento. Apesar,
porem, d'cste ser tamanho nada vinha a entrar no Ihe-
souro ; porque tudo se dispendia em armadas cmais
cousas necessárias para a conservação daquclles es-
tados , e afora isso se distribuía em salários d'oiri-
ciacs e ministros da justiça no continente ; cm mer-
cês vitalícias , que chamam tenças , aos benemeri-
liis da coroa, aos fidalgos, e mais pessoas, que ser-
viam assim no reino como na Africa e índia : em
juros perpétuos, que os reis vendiam, eslaliclecidos
nos direitos reaes; cm despesas com a gente c pe-
trechos necessários para a defensão das praças d'A-
frica : em cinco gallés constantemente armadas . c
110 armar dos navios redondos , que todos os annos
sabiam juntos , assim para comboiar as frotas que
iam e vinham dos portos com que Portugal coramer-
ciava, como para mandar ao Brasil, a (iuiné, á Mi-
na , a S. Thomé ; c finalmente em moradias , gas-
o PANORAMA.
O!»
los da côrle e casa real, paga de creados, esmolas,
presentes , emhaixadas, dotes ás lillias dos croados,
e conservação das fortalezas de Lisboa c do reino.
As noticias do viajante relativamente a Portugal
Ycrsam desde este ponto sobre a organisação judi-
cial e administrativa, acerca da qual nada so accres-
centa que não se ache na nossa antiga legislarão.
Conclue o narrador com uma historia suecinta do
reinado de D.Sebastião e das causas do desastre de
Alcacer-quivir , da acclamação de l'hili|)pe -2." cm
Thomar &c. — Alistemo-nos de exlractar essa parte
relativa á historia politica , não porque seja pouco
interessante e curiosa ; mas porque é demasiado ex-
tensa.
(Â. Herculano.)
Antigcidade da poi.vob* na Peninsula.
Qgando no segundo volume da primeira serie deste
jornal publicámos dois extensos artigos sobre a mi-
licia da idade média concluimos o nosso traliallio
pondo em grande dúvida , ou antes negando o co-
nhecimento e uso da pólvora nasHespanhas em tem-
pos remotos , e recusando o testemunho de Duarte
Nunes do Leão que menciona esse uso era epocha
muito anterior ao meado do século 14." em que se
crê teve origem este celebre invento , que mudou
inteiramente o systema militar da Europa.
Hoje, porem, daremos aqui algumas noticias con-
trarias á opinião que naquellcs artigos seguimos , e
que nos parecem curiosas para a historia dessa com-
posição assoladora , que tão lerrivel papel tem feito
nos successos dos tempos modernos.
Duarte Nunes foi buscar ao capitulo 10.° da chro-
nica de D. Sancho 1.°, de Ruy de Pina , a noticia
que nos dá da existência da pólvora e bombardas
no fim do século 12." Ahi a chronica narrando o
■cerco de Silves diz que elrei mandou atirar a uma
torre com grandes tiros e grossos de pólvora. ^ em is-
to em surama a ser o mesmo que diz Nunes do Leão.
É hoje mais que provável que a relação da toma-
da de Silves que Ruy de Pina nos dá tão particula-
risada , e tão diíTercnte da brevidade com que cos-
tuma referir successos tanto ou mais importantes ,
foi tirada de alguma memoria contemporânea , ou
pelo menos da chronica geral do reino de Fernão
Lopes , que costumava procurar essas mesmas fon-
tes , e cujos trabalhos relativos aos primeiros rei-
nados não chegaram até nós talvez por inveja e mal-
dade de Ruy de Pina. — Seja como fòr, é certo que
a relação , que lemos neste chronisla concorda em
muitas circumstaacias com a narração feita por um
dos cruzados que assistira áquella conquista , nar-
rarão publicada ha dois annos pelo Sr. Gazzera nas
Memorias da Academia de Turim.
No que, porem, ochronista portuguez parece ter
.■íido menos fiel a essa mesma memoria ou documen-
to do que se serviu, é exactamente neste ponto dos
tiros de pólvora; porque na narração do cruzado se
diz que a torre fora balida por umas machinas pe-
quenas d'clrei , e uma grande dos estrangeiros. Se
as machinas dos portuguezes arrcmeçasscm tiros de
pólvora, como é crivei que o narrador allemuo dei-
xasse de mencionar uma circnmstancia tão notável,
e para elle inteiramente nova ? È por tanto de crer
que Uuy de Pina quiz enfeitar a relação do succes-
so com esta particularidade; que por isso o seu tes-
temunho não reforça o de Duarte Nunes, e que se
não houvera outras provas positivas da existência
da [lolvora nos tempos primitivos da nossa monar-
chia , ficaria subsistindo o que dissemos no nosse
anterior artigo acerca deste objecto.
-algumas pessoas acharam estranho qnc no segun-
do capitulo do llobo se descrevesse cutrc os instru-
mentos e tiros projirios para combater os logares
fortilicados no século 12.°, uma espécie de bombas
ou granadas arrojadas por um niixto simiibantc á
pólvora. Todavia não commettemos ncnliuni ana-
clironismo : nessa parte , como em tudo o que ahi
descrevemos, procurámos conservar escrupulosamen-
te a verdade histórica. Para o provar publicámos
hoje este artigo , que servirá ao mesmo tempo de
correcção ao que se disse tratando da milícia da
idade média.
Se dermos credito aos chins a pólvora é uma in-
venção sua ; mas são mui débeis as provas que ap-
presenlam para sustentar esta pretcnção. Entretanto
Hyde na HUtoria do. Xadrez mostra por diversas pas-
sagens de cscriptores gregos c latinos que os indios
dcfendcndo-se da invasão de .\lexandre Magno, em-
pregavam o fogo como meio de arremcçar tiros dos
logares fortificados ; c nesta mesma obra se mencio-
na a longa tradição de se haverem fundido canhões
no Pcgú em cpochas mui remotas. Porventura da
ludia tiraram os árabes o conhecimento da pólvora,
e de lá provavelmente o obteve também a China.
A civilisação da índia parece ser a mais antiga das
velhas civilisações da Ásia , e é indisputável que
ao trato com os povos do Indostão deveram os ára-
bes grande parte da sua. Quanto a estes nenhuma
duvida se pôde oppòr aos testemunhos que nos res-
tam de que elles faziam uso na guerra , senão exa-
ctamente do mixto a que damos o nome de pólvora,
ao menos d'outro em que a naphta substituía o car-
vão , mas em que entravam como naquella o enxo-
fre e o salitre , e que produzia pouco mais ou me-
nos um effeito idêntico.
Na dissertação que o erudito arabista Casiri pu-
blicou em o segundo volume da Biblíotheca Arabí-
co-Hispanica , sobre a antiguidade e uso da pólvo-
ra e artilliaría entre os árabes, depois defallar bre-
vemente do fogo grcgucz mencionado pelo impera-
dor Leão na sua Tactira , e de citar o que sobre a
origem da pólvora se lè era Ducange na palavra —
Bombarda — proseguc assim:
«Alas os monumentos arábicos noticiam a sua
muito mais remota existência entre os persas e afri-
canos. Parece por isso verisimil que o conhecimen-
to e uso da pólvora passasse dos árabes para os hcs-
panhoes e destes para os francezes , que depois fa-
bricaram a <iita pólvora , e acharam o methodo de
a granular. K isto o que claramente indicam os có-
dices aral)ic(js da bibliotheca do Escurial , c entre
outros o que se intitula — Noiiria c mclliodo rríjio —
composto por Schehab Aldin Alabas Ahmad Ben
Fadhl , auctor que fiorescia em )2íí) , e que nessa
obra descreve as varias espécies d'arlilharia usada
pelos árabes do seu tempo: — Serpèam — dizcllc —
e sussurram os scorpiões ligados em volta , accosos
com salitre, e por isso estourando lampejam i- in-
cendeiam. Era cousa de vèr o engeidio sacudido
estender pelo ar uma como nuvem , fazendo nm es-
tampido terrivel similhante ao do trovão, e vomi-
tando fogo para todos os lados , despedaçar , incen-
diar , c reduzir tudo a cinzas.
Vè-se das palavras do escnptor que elle falia de
globos de ferro expcilidos pela violência do fogo ar-
tificial ; porquanto emprega sempre os vocábulos
iOO
o PANORAMA.
-Vrt/),'(ía c Ilariirl , malcii;is de que naquello Icmpo
SC f;iltrir,iv,i a polvor.i. Os [nTsas , os lurcos , e os
árabes «lavam aijlig.iincnlc o iioinc tle llarnrl ai) sa-
litro , c liojo dão a mesma denominarão á pólvora :
qnanio ;i Naphta c esla um s^cnero de hitiime mis-
liirado de enxofre.
O illiistre escriplor granadino Aba Alidallá Ehn
AlKlialhili na sna Historia Hispânica [artn. 13)2— 23]
lalLi latnbem destes glubos de ferro arrojados com
o impnlso da naphia . nos sesi"'iles lermos : — Elle
[o rei de(;ranada Ahulvaiid] movendo o arraial foi
cercar Baeza cnni grande numero do tropas, onde fez
desfechar com estrépito conlra o forte rastello aquol-
le grande ongenlio da naphta e do globo, cbegan-
do-se-llie o lume. — Ksle testemunho é confnmado
liela chronica de Affoiíso 11.° Na obra de llassan
Bon Omar intitulada Aura do vrnlo oriental , escri-
pta na mesma epoclia da Historia Hisiianira igiial-
menlc se (az menção da pólvora como cousa conhe-
cida geralmente naquelle tempo pelos mouros.
De lodos os exemplos do uso da pólvora entre os
rnabcs o mais antigo é o que lembra lilmacino no
livro 1.° da Historia Saracniira onde refere, que
tiacgiraTl [anno 690] llagiageo lendo cercado Mcc-
ca destruíra os tectos da Caba, c os reduzira a cin-
zas com manganellas e morteiros [mavqanis et mor-
taritsj sacudidos por meio de naphta c de fogo.
Estos testemunhos dos escriptores árabes são re-
forçados por uma passagem da chronica latina do
imperador Aflbnso Raymundez [Liv. 2. cap. 41] ao
Tucsmo tempo que servem para explica-la. Diz o
cbronista que os mouros cercando Toledo pozeram
<"m volta da cidade muitas lialistas , e machinas , o
arremessos de fogo, e Ivons [tormenta] para arro-
jar pedras o lanças, o escorpiões para despedir se-
tas, o fundas, e aríetes, e vincas. — Aqui por ex-
clusão de partes, visto que o auctor enumera todos
os géneros de machinas de tiro , se conhece que os
trons [tormenta] não eram senão as manganellas de
logo que tão triviaes parecem ter sido entre os mus-
sulmanos da Hesp.-mba.
A opinião de Casiri de que a invenção da pólvo-
ra não sendo verdarleiramente eiirnpe.i , provavel-
■meiíte passou dos árabes para os hespanhoes e des-
tes para as outras nações francas . não deixa de ser
fundada. Como <■ crivei que havendo tão estreitas
relações entre os mouros e os chrislãos da Peninsu-
la , estes ignorassem por muito tempo o modo de
empregar um tão poderoso agente de destruição ;
elles cuja vida era uma serie raro interrompida
de batalhas, assédios e defezas de castellos? Fre-
quentes Vezes os principes sectários de uma das
crenças se ligavam com os da seita contraria para
guerrearem os próprios correligionários , e não era
raro ver marchar unidos na mesma hoslo ou arran-
cada os pendões da cruz e os estandartes moslemi-
cos. Neste intimo trato militar era qiiasi inipossi-
vel que os engenhos, invenções de guerra, e armas
pouco a pouco se não tornassem commnns. A gran-
de mudança das cervilheiras o saios de malha para
as armaduras de soliias , elmos, grevas, emlini de
arnez liso foi uma imitação doscavalleiros do orien-
te. Hasta examinar com altenção os monumentos
cidligidos por Monlfaucon para nos convencermos
disso. Porque não succederia o mesmo á pólvora ?
Não [lodcria o monge .Schwartz, a quem se attribue
a invenção delia, conhecer os livros dos árabes em
que se tratasse da sua confecção cuso? O documen-
to que cila Ducange a respeito da epocha em que a
pólvora primeiro apparccc cm França [133S1 é no-
tável porque se trata alii delia e das bombardas,
não como de uma cousa <'xtraor(linaria , mas como
de um |)etrecho de guerra trivialissimo ; e de feito
este invento terrível era já rouinuini |)or toda a Ku-
ropa no meado do decímo-quaito século.
Fma passagem de Pelrarcha no livro intitulado
Rrmcdio de varia fortnna [escri[)to aiUes de 134i
como o mostra Muralorí no Tom. 2." das ÁHliijuida-
des italianas] vem rohorar esla nossa opinião , mos-
trando que os tiros para os quaes servia a pólvora,
eram entre as nações francas os mesmos qne des-
crevem os escriptores árabes. Diz ahi Pelrarcha o
seguinte; [I^. 1. Dial. 9!>J. ... os globos de metal,
que, introduzidas nelles as chamnias , são arremes-
sados com horrível ruido .... Era esta peste' rara
ainda não ha muitos aunos, do modo que se olhava
para ella com espanto ; agora , [loreni ó tão
coinraum, como outra qualquer espécie de armas.»
— Eis aqui [jois- trivialissima já a artilharia dos ára-
bes antes do 13Í.Í, podciido-so deduzir das palavras
do Pelrarcha que , posto que menos fiequenle , já
era conhecida nos lins do século 13." E não será
digno de reparo, que esta terrível invenção servis-
se entre os christãos do mesmo modo quo entre os
árabes , para arrojar uma espécie de bombas ou
granadas? Não c mais natural suppôr que os fran-
cos imitaram os mnssnlnianos , do que imaginar
que uns e outros fizeram o mesmo invento e logo
lhe deram uma applicação idêntica? É obvio que
sim.
Em ultimo logar notaremos que á palavra /'oírora
se pode talvez achar melhor elymologia no arábico
Àl-harud doque no latim Puleis. >erdade é que nós
c os castelhanos tomámos quasi sempre os nomes
latinos na sua forma do ablativo : mas não deve es-
quecer que já tínhamos na Península os vocábulos
Polvo e Pó, correspondentes a Pulvis , tirados ou
immediatamente do latim , ou mediatamente d'al-
gum dos dialectos da lingua romana. Os francezes,
os italianos, os anglo-normandos deram á pólvora a
mesma denominação de pó — poiídrc, polverc, powdcr.
Só nós os hespanhoes — meios árabes no sangue, nos
costumes, e ainda na linguagem, distinguimos aquel-
le niixto [Al-barud] pela denominação especial de
Polvm-a. ... ...
• ^ (A. Herculano). ■
FaSCINADORES de cobras ISA I.^DIA.
Ha diversas passagens na Biblia que alUideni cla-
ramente á opinião , que desde tempo immemorial
prevalece nas Índias Orientaes , de que as serpen-
tes são SMSccpliveis do mansidão, perdendo median-
te encantamentos toda a sua malignidade. No psal-
mo o<S compara David os niahados dizendo : — O
furor delles é similhanle ao da serpe ; como o do
aspid surdo e qne tapa suas orelhas. Que não ou-
virá a voz ri'encantadores , nem do feiticeiro que
fascina destramente. — .\o cap. S." do Jeremias es-
tá escriplo : — Porque eis-ahi que vos enviarei ser-
pentes basiliscos para osquaesiião ha encantamento.
Todos os que pela índia viajam podem prestar
tostemiHiho do poder extraordinário que os peloti-
queiros e charlatães do Indostão exercitam sobre as
cidiras , a ponto de as fazerem dançar sobre o cír-
culo qne com a cauda descrevem, e mover a cabe-
ça em variadas inllcxõcs seguindo as toadas do pi-
fano o adufe tocados nessas ocrasiões. Em Chander-
nagor, capital dos estabelecimentos francezes no
o PANORA3IA.
101
território benwllm , um indio mosirava quatro co-
bras, que tonam seis |iaimos tlc comprido c mara-
vilhosauiciile Piisinaitas : — dcfiois de um preludio
de musica , a ccrlo som as cobras saliiram das ca-
nastras redondas em que estavam uma a uma , e
principiaram a raover-sc alçada amelade do corpo ,
ergucndo-so e baixando-se pela contracção da par-
le inferior, umas vezes dando voltas na casa , ou-
tras chegando-sc ao dono , c cnleando-o , e logo re-
trahiudo-sc, continuando dest'arte em varias evo-
luções, até que, a outra toada dos instrumentos, de
amedrontar ao que parecia , cada uma se recolheu
a seu canistrel , enroscando-se . e ficando quedas.
Não solTre duvida que foram estes reptis aniuieslra-
dos a poder de pratica, c que os indios que vi\cm
de similhantes exliibicoes são dotados de nimia pa-
ciência e mui siuiíular sagacidade , maior ainda
que a dos salioianos que discorrem alheias terras,
mostrando marmotas e ursos adestrados em danças.
— A primeira opeiação daquellcs peloliqueiros sa-
bido esta que é appossarcm-se dos animaes que in-
tentam domesticar ; com cfTeilo , assim que desco-
brem a loca , onde sabem que ha cobra . começam,
de cavar até appareccr parle do rabo do reptil, e
asarrando-lhe rijamente com a mão esquerda o sa-
cam para fiira , correndo com a direita velozmente
o cor[io ate lho subjugarem a cabeça enlre os de-
dos : immediataincnle com pinças lhe arrancam os
dois cidmilbos ou prezas venenosas, c íica o ani-
mal incapaz de fazer mais damno que o de uma
mordedura ordinária, porquanto os mais dentes são
mui curtos e desprovidos do fulliculo de pcçonlia.
— Levadas as cobras para casa, principia a tarefa
do ensino, dandu-lbes de comer á mão. A caça das
cobras, ditas de capèllo, é um tanto perigosa, por-
que se a cabeça escapa da mão direita é inevitável
a mordedura ; por isso o indio vai munido de ferro
em braza para cauterisar inimiMlialamenle a ferida
e impedir o elieito fatal. Quanto ao quebranto can-
sado nos reptis pela musica , oiiiniões ha encontra-
das, e que parece não terem toda a saacção da ver-
dade.
FASCIItIADOR£S Dt^ cOBaAS.
Da calde.vçío das Tcr.RAS.
a naturrz.i, ou antes fal q-ual o deitaram as revolu-
ções do globo. Qnasi nunca vereis os camnonezes
trocando no seu campo terra por terra, quando mes-
mo ahi a tem de dincrcntes espécies e ([ualidades ,
Esta maneira simples e natural de melhorar os ter- 1 ou seja ita snperficie , ou na camada inf<'rior. D'a-
renos c qnasi absobitanicnSc despresada entre nós: ; qui se segue que n'umas partes preiiomina a areia,
quasi que existe nm respeito su|iersticioso em dei- ' aqnal, sendo nimiamente permeável á agua e á luz.
xar perpetuamente o terreno tal qual o apresentou I se secca e arde no estio, matando a planta : n'on-
!,•) Ccniinuado di- pag. 88. ~~ 1 Iras é nra barro forte c compacto, que, ou pclasec-
Í02
O PANORA3IA.
cnra da atmosphera se desseca como pedra, e for-
ma grelas, ou com as chuvas se ensopa de maneira
íjiie se não presta á vegetarão. Entretanto nada se-
ria mais fácil do que emendar e corrigir uma pe-
la outra , applicando-lhe os ingredientes contrários.
O tempo que se empregar neste importaniissimo ser-
viço pode ser lambem aqucllc que sobeja sempre
para intercalar entre os maiores tráfegos da cultu-
ra ; e esta manobra pódc tanto ser leila por braros
fortes, como por mulheres e rapazes de 8 ou 10 an-
nos para cima.
A regra única para esta operação é procurar e
achar terras que vos convém misturar cum as vos-
sas, eque faltam no vosso campo. Raras vezes acon-
tecerá que dentro mesmo de vossa propriedade, fa-
zendo diligencia ccxcavações, não encontreis osma-
leriaes desejados.
Eis os principacs terrenos defeituosos , e os cor-
rectivos para os melhorar.
1.° Terrenos ari/ilosos, barrentos, fortes e tenazes :
eracndam-se estes misturando-Ihes terra calearca ,
saibro, oxt arein fina, mame, caliça, ou entulho. Sc
por acaso faltassem todos estes ingredientes, se po-
deriam snpprir com uma composição de estrume dos
menos ardentes com cal e areia, juntando-lhes toda
a casta de vegetaes , e rápido de charneca , ou de
terra inculta.
'^■° Os terrenos calcarcos d'especie densa e gros-
s» podem raelhorar-se pela terra saibmsa , c se fo-
rem de qualidade mais ligeira , pela argila c pelos
mames argilosos.
3.° Terrenos arenosos se melhorara pela terra cal-
carea , e pelo barro , e em geral pelas terras com-
partas , fortes,
i." Terreno cascalheiro , pedregoso, se mistura
convenientemente com os marnts , argila , e o cat-
t-areo bem dividido.
5.° Os terrenos turbr<sos ou palustres se melhoram
dessecando-os , ao menos na superfície , e depois
misturando-lhes saibro , areia fina commum , calea-
reo , e terras grosseiras, mame calcareo , saibro ou
areia marinha , e cal ; segundo a necessidade de se
procurar e obter estas diirerenlcs substancias.
Independentemente do correctivo da caldeação c
mistura das terras sempre fica um principio predo-
minante em cada um dos terrenos , isto c , sempre
(ica sendo forte ou fraco , quente ou frio , secco ou
húmido , porque isso depende de causas naluraes ,
da formação do solo , da exposição e do clima lo-
cal : sempre portanto precisa o cultivador adaptar
á qualidade do terreno assim o género de cultura ,
«orno as espécies de sementes c de plantas que mais
lhe convier.
.\ssim , por exemplo , as terras fortes e substan-
ciaes são próprias para as sementeiras do trigo : —
as terras brandas eleves para os jardins ; — as ter-
ras medias, que nem são tão fortes que produzam
trigo, nem tão fracas, que não tenham alguma sub-
stancia , são próprias para o milho grosso , a que
chamámos milhão; — as terras mais fracas podem
dnr centeio , cevada , e aveia ; — o chamado milho
iniudo ou alvo cança muito as terras, mas pódc d.ir-
se nos terrenos sond)rios e húmidos ; — o painço da-
se nns terras pedregosas , e não precisa d'agua ; —
ò vinha quer terra forte, mas argilosa; da-se mui-
to bem nos terrenos calcarcos c pedregosos, nas en-
costas, e em boa exposição ao sol ; não quer humi-
dade ; — o cânhamo exige boa terra, precisa chuva
ou rega , por isso mesmo que é sementeira do ve-
rão ; — o linho commum e ordinário lambera ama
terra boa, bem preparada e limpa, mais gross» que
delgada; precisa calor, enão humidade; — o arroz
quer terra húmida, que se inunde ; — as favas re-
querem terra bem estrumada , e , como este cxcel-
lenlc legume não fatiga a terra , admitle depois no
mesmo terreno sementeira de trigo, ou outro cereal ;
— ervilhas querem terra gorda e grossa, um pouco
secca e bem estrumada ; cançam muito a terra ; —
lentilhas querem terra mediana, e seraeam-se jun-
tamente com o estrume;' — tremoçosdão-se em qual-
quer terreno; quasi não precisam cultura, pois nera
ao menos se sacham; enterrados na florescência são
excellente estrume para as vinhas; — os nabos, ce-
nouras, rábanos, couve nabo &c. semeam-se nas
terras que produziram cevada , e melhor depois de
queimado o restolho ; dão-se por consequência nas
terras capazes de produzir aquelle cereal ; enão fa-
tigam o terreno; — em geral todas as plantas de raí-
zes bulbosas, tuberosas e carnudas, como são as ce-
bolas , batatas, o nabo turncpo , as betarrabas &c.
convém aos terrenos siliciosos ou saibrosos , porque
estes por sua contextura porosa , e pela pouca ad-
herencia de suas partes offerecem menos resistência
ao desenvolvimento da raiz, esão elles mesmes mais
permeáveis pela humidade , e penetrados pelo ca-
lor, o que tudo ajuda ao aperfeiçoamento da planta.
De tudo o que ate aqui deixámos expendido se po-
dem tirar as conclusões seguintes : — l.^que em ge-
ral os melhores terrenos são aquelles que contém a
maior somma de substancias alimentarias para as
plantas. É por isto que as terras calcareas que teem
uma grande attracção para o acido carbónico, com-
binação chymica a mais favorável á agricultura, são
férteis. 2.' que os terrenos mais estimados são aquel-
les que contém uma maior quantidade de sedimen-
to e partículas animacs e vegetaes era decomposi-
ção, porque ossaes ahi concentrados estimulam for-
temente a vegetação. 3." que não ha terreno tão máu
que não possa produzir alguma cousa , emendados
seus defeitos naturaes pela mistura de seus contrá-
rios , e pelos estrumes adaptados, i.' que antes de
emprehender qualquer género de cultura se deve
d'antcmão considerar a natureza e qualidade domi-
nante do terreno , sua exposição , e localidade , a
lim de proporcionar-lhe a sementeira ou plantação
conveniente,
(J. da C. N. C.)
O» SETE DORMENTES.
IIa um grande numero dephrases e expressões vul-
gares, em que se faz allusão aos sete dormentes; e
ha também um grande numero de pessoas que igno-
ram a historia destas celebres personagens , e por
consequência o valor exacto da phrase de que se ser-
vem , o que nós aqui poremos em breves palavras.
Entre as lendas fabulosas do que estão cheias as
antigas chronicas ecclesiasticas , martyrologios , e
sancloracs, uma das mais notáveis é a dos sete dor-
mentes, os quaes acordaram notemiio do imperador
'Ilieoilosio , o moço , c da invasão dos vândalos na
Africa. (Juando se levantou a perseguição feita aos
christãos pelo imperador Decio , sete mancebos no-
bres, naturaes d'Ephcso, esconderam-se dos tyran-
nos n'uma espaçosa caverna aberta em certa mon-
tanha próxima daquclla cidade. Soube disto Dccio
c ordenou que entulhassem a entrada da gruía com
grandes pedras. .Vpenas , porem, esta ordem cruel
se executou os sete mancebos cahiram cm sorano
o PANORAJIA.
103
profundo , que se prolongou milaRrosanipnle , sem
lhes consuniir as vidas, por um período de 1S7 ân-
uos. Passado todo este tempo os escravos de um
certo Adocio, que herdara odominio daquolla mon-
tanha , precisaram de remover as pedras que tapa-
vam a lioca da gruta para conslruircm vários edifí-
cios ruraes. A luz <io sol peneirou na caverna e os
sete dormentes acordaram. Como, depois de have-
rem dormido por alç;nmas horas, a fome os aperta-
va, resolveram que um dellcs chamado Jamblico
voltasse disfarçado a cidade de modo que não fos-
se conhecido dos esbirros de Decio , c comprasse
pão para os outros. O mancebo — que tal pelo me-
nos se cria cUe — ao sahir da caverna mal piule re-
conhecer o aspecto do seu paiz nalal. que tão fa-
miliar lhe era ; e mais espantado licou vendo ao en-
trar em Epheso uma cruz triumphalmente erguida
sobre a porta principal da cidade. Dirigiu-se a um
padeiro , este ficou cheio d"assombro ao ver-Ihe o
trajo singular e ao ouvir-lhc a linguagem antiqua-
da . assombro que angmentou quando Jamblico lhe
deu para pagar o pão uma medalha com a elligie
denecio, como se fosse moeda corrente do império.
Jamblico tornou-se então suspeito de ter achado al-
gum thesouro enterrado, e por isso foi levado á pre-
sença do juiz. Pelos interrogatórios e depoimentos
descobriu-se finalmente cora admiração geral o mo-
do porque Jamblico e os seus companheiros tinham
escapado havia quasi duzentos annos á fúria do ty-
ranno Decio. O bispo d'Epheso, o clero, os magis-
trados , o povo , e até o imperador Theodosio , fo-
ram visitar a caverna dos sete dormentes , que de-
pois de relatarem a sua historia expiraram ímme-
di.itamente.
Mahomet provavelmente ouviu contar esta lenda,
que devia ser vulgar na Syria já no sexto século ,
e assim introduziu-a no Roran como uma revelarão
divina. — A historia é portanto conhecida não só en-
tre os chrislãos da Europa , mas também entre as
nações da Africa e da Ásia que seguem a religião
mahometana. — A. H.
PBEBO MoMZ , ou o AMOR Di PÁTRIA.
QcE cousa haverá no mundo , que não tenha mere-
cido louvores e censuras , ganhado patronos e de-
tractores, sido objecto d'estima para uns, d'indif-
ferença para outros , e até de desprezo para mui-
tos. S'ão admira, pois, que o amor da pátria tenha
corrido a mesma sorte , e que , na razão de todas
as cousas do mundo , exaltado por uns , haja sido
■ menoscabado por outros. Vai dependente das pai-
xões dos homens , como o trajar do capricho dos
gostos. Quem não sabe , que os vicios tem figurado
na galeria das virtudes , e que estas tem soffrido o
insulto de as collocarem no estrado dos vicios? Não
é muito vulgar chamar-se fraqueza á humildade , e
grandeza d'alma á ambição, e á vingança? As pai-
xões são os planetas lerriveis que influem na moral
e nas opiniões dos homens, como Marte, e Saturno
em todas as cousas sublunares.
Os homens tera-se dividido sobre o objecto do
amor da pátria ; c estou que ha demasia no cnthu-
siasmo com que uns o deffendem , c na frialdade
com que outros o tratam. Estas demasias provam a
existência d'um meio termo, que é aquellc que o
homem circumspecto deve seguir. Os campiõcs diu-
rna e d'outra parcialidade me conformam no meu
alvitre. Os patronos do amor da pátria não deixara
de achar cordatas algumas reflexões de seus adver-
sários ; e estes de contemporisarem com outras de
seus rivaes. Querer impugna-lo absolutamente , é
loucura e impolitica ; é querer guerrear um senti-
mento inspirado pela natureza , c reclamado pelo
interesse de sociedade. No caso d'excesso , antes
quizera partilhar o enthusiasmo de seus defensores,
que a frialdade de seus adversários.
lia muitos homens que acoimam de ridículo o
aflccto que cada um consagra ao logar cm que nas-
ceu. Dizem: — que idolalra-lo , é uma ninharia —
que amar o berço é próprio de crianças — (]ue os
grandes génios não tem pátria — que ninguém <■
profeta na sua — que a pátria dá a vida , mas difll-
cultosamcnte as honras — que o homem não se faz
grande c conhecido senão girando, como o astro do
dia — Um escriplor celebre ri-se de que o divino
Homero pintasse aL'lysses entre os regalos dePhea-
cia suspirando por ver o fumo que se levantava so-
bre os montes da sua Ithaca ; e reputa uma das fa-
bulas menos verosímil, que este hcroe preferisse os
riscos da sua pátria á immortalidadc cheia de pra-
zeres , que lhe offcrecia a nimpha Calipso , debaixo
de condições de viver com ella na ilha de Ogygia.
Este escríptor celebre é Feyjú , que no seu discur-
so— Amor da Pátria , e Paixão Nacional — levanta
a voz com energia contra os patronos do amor da
pátria.
Algumas cousas ha neste discurso , que não se
conformam com a boa razão. Este critico severo at-
Iribue todas as acções heróicas obradas a favor da
pátria , e inspiradas pelo amor delia , á ambição ,
e a outras paixões, com pequenas excepções. Refu-
tando com tanta força os princípios dos scepticos
em outro discurso , Feyjó parece sccptico a res-
peito dos sentimentos do nosso coração, duvida das
boas intenções de quasi todos os patriotas. Mas di-
zer o que pode ser , não é dizer o que é : porque
uma paixão pode enfraquecer o mérito d'uma ac-
ção heróica d'um homem, não se segue que ener-
ve a de todas em todos. Este scepticismo seria an-
ti-social , e de outras muitas funestas consequên-
cias. Temos muitos meios para o vencermos , e pa-
ra nos decidirmos com segurança , avaliando o me-
recimento das acções dos homens : o caracter de
cada um , as suas opiniões e princípios , o seu mo-
do constante d'obrar são outros tantos recursos que
temos para entrarmos no sacrário de seus pensa-
mentos.
Se lhe dizem, que os scythas fugiam das delicias
de Roma para as asperezas do seu solo ; que os la-
ponios , por mais commodidades que se lhe offere-
cessem em Aiena, suspiravam pelo seu pobre e rí-
gido paiz : que um selvagem do Canadá , trazido a
Paris, viveu alli sempre triste , c nielancholico :
Feyjó responde , que estes homens vivem con»
maior conveniência na Scylhia , na Laponia , c ni>
Canadá . que em Roma , em Viena , e em Paris ;
que acham maior prazer nos seus alimentos gros-
seiros, que nas nossas ígnarias delicadas ; que lhes
aprazem mais os gelos da sua terra natal , que a
temperatura das nossas ; que preferem a liberdade
de mudar de sítio em todas as estações á prisão de
nossos domicílios. Custa a crer que assim discorra
um homem de tanto mérito ; e que se sirva de si-
milhantc sofisma para depreciar o amor da patri.i
confirmado por aquelles factos. Todo o amor leni
um motivo, não é um sentimento abstracto ; c o d.i
pátria está na mesma rasão. Todas essas eommodi-
dades , e conveniências que o severo critico refere.
lOi
O PANORAMA.
c que formara os laços de amor da pátria, como as
simpathias cnlrc os homens as prisões de amisade
àc. íí natural ao homem amar o logar onde nasceu,
porque lhe é natural amar todas essas conveniências.
Masdiga.Chateaubriand 0(iue cu sinto, enão pos-
so explicar. Nósduvidàinos ( vrja-se oiicmodoVItris-
liaiii.imo, lie. 5.° §. ii), qne sem amor da pátria
possa haver nma única verdadeira virtude, uni só
verdadeiro talento. Esta paixão faz procli.nios na guer-
ra ; e nas leltras formou Homero e Virgilio. O poe-
ta cego pinta com prclerencia os costumes daloriia,
onde viu a luz; e o cysne de Mantua se entretém
com as recordações do seu paiz natal. — A não ser
o amor da pátria , continua Chatcaul)riand , os ho-
mens se precipitariam nas zonas temperadas , dei-
xando o resto do globo deserto. Pode pensar-se, que
calamidades resultariam de tal reunião do género
iiumano cm um só ponto da terra? Para evitar esta
desgraça , a Vrnvidimcia [digauio-lo assim] prcniliu
os pá de cada homem, com uma atlracçuo 'nicrncird
ao (crradctjo cm que cada um nasceu. Os gelos da
Islândia , e as torradas areias d'Africa nunca estão
sem habitadores.
Não foi sem desígnio particular, que esc<dhi es-
ta matéria para discorrer. Tenho posto estes prin-
cipies para agora dizer, que uma das cousas que
íiiui me desoricnia , é , ouvir dizer a qualquer lio-
niera : — «Eu sou cidadão do mundo! « — O homem
que se diz cidadão do mundo, mostra que não tem
laços nenhuns que o prendam , nem de parentes ,
nem de amigos , nem da pátria ; que tanto lhe vai
em viver em Portugal , como em Marrocos , ou en-
tre os Patagões ; que lhe é indiíTerenle passar a vi-
da entre christãos , ou entre turcos. O homem qtie
se diz cidadão do mundo , mostra , pelo seu desa-
mor a tudo, que o devera temer; porque a facili-
dade que tem de fugir ao império das leis, fugin-
do , e passando d'um para outro |)aiz , o habilita
para todos os crimes. E um homem que , perten-
cendo a todas as terras , não pertence a nenhuma ;
é vagabundo por princípios ; é um niiscro que não
tem coração , e que merece ser exterminado de to-
das as socieda<les. Como se formariam ellas, e co-
mo subsistiriam se todos os homens tivessem estes
princípios , e fossem indifterentes para com a sua
pátria?
JViga Feyjó , e os que o seguem , o que quize-
rem. Que não deve o mundo e a sociedade a este
instincto da natureza , como lhe chama Chateau-
l)riand ? Que não lhe devemos nós os portuguezes?
De que principio procederam tantas acções heróicas
dos nossos nos dias de nossa gloria? Òs jiriucipios
que nos fizeram grandes ei-losaqui: — Amor de re-
ligião , e amor de pátria I —
Deixando outros muitos portuguezes beneméritos
da pátria pelo amor que lhe consagraram , appre-
sento Phebo Moniz. Pareceu-me muito própria para
o nosso tempo uma resposta deste illustre varão.
Vendo , nas cortes que juntou o cardeal rei , que
este se mostrava inclinado ao partido de Castclla ,
tanlo se afliigiu publicamente, e se enculerisou con-
tra a parcialidade philippiíia , que deu mostras do
seu desagrado. líutãu o cardeal lhe disse melancho-
lico : — Vhebo Moui: , vós estais muito ai/astado ! —
O illustre Moniz lhe tornou coin toda a liberdade,
e firmeza d'uni peito luso : — .Sn» , senhor , porque
nos querem fazer castelhanos .' —
Phebo Moniz não era cidadão do mundo. Nesse
caso , faria o que fazem todos os que professam
não ler pátria , seguiria o partido de queiu roais
lhe desse. Tinha nascido portuguez , não entendia
que podesse ser castelhano. Estou que longe de Por-
tugal, ainda que em delicias e representações, sus-
piraria por ver a corrente do seu amado Tejo , co-
mo llvsses suspirava por ver o fumo da sua pobre
Itbaca. Digno é ellc de ser apprcseiitado como mo-
delo aos homens que entre nós representam , c que
devera |)roinover a nossa felicidade e a nossa inde-
pendência : e seguii,do-o nós seremos felizes e sem-
pre portuguezes.
(O Moralista.)
' ■ Os ESQIELETOS DOS CARAÍBAS.
No archipelago entre as duas Américas ha um gru-
po de ilhas, que se denominam ilhas Caraíbas, alem
do nome usual de Antilhas, que se estende desde
Tabago ao sul até ás ilhas Virgens ao norte : esto
grupo foi reconhecido por Christovão Colombo na
sua segunda viagem , quando tocou era Guadelupe
e cm Antigoa. O centro de cada uma destas ilhas
é occupado por um monte, que em geral canipèa
sobre todas as outras eminências : em algumas o
centro é volcauico : o mar quasi por todos os lados
offerece grande profundidade, ainda a pequena dis-
tancia das praias. — Os francezes possuem neste ar-
chipelago a (iuadelupe, a Martinica, Santa Lúcia.
Tabago, e algumas outras pequenas. A Guadelupe
é a mais importante, tanto pela extensão, como pe-
lo território, que appresenta agradável diversidade
de collinas e bahias , c do fazendas ruraes ; c mes-
mo em relação ao commercio , porquanto exporta
mais de loO^^GOO quintacs d'assucar, iOjíjOOO di-
tos de café . e muitos outros géneros era menor
quantidade; a somnia de todas estas producções ex-
portadas sobe a seis milhões de cruzados annual-
niente.
Quando >ír. Ernouf, oliicial general, foi ha pou-
cos aunos nomeado para o governo da Guadelupe ,
e que entrou no exercício delle , entre vários pon-
tos da ilha , que visitou , foi a costa de Mole, onde
encontrou cadáveres dos Caraíbas [primitivos habi-
tantes, raça que os invasores europeus tem destruí-
do] involvidos nas grandes massas de madreporns
petrificados . fez com que se empregasse assíduo
trabalho para se descobrirem alguns destes esque-
letos notáveis , que destinava para o museu de his-
toria natural de Paris. Este trabalho , diz o citado
oliicial, olíereceu grandes didiculdades : i.° porque
as ossadas dos caraíbas estão encravadas n'um ban-
co de madreporas , extremamente duro ; c que se
não podem cxtrahir a não se empregar escopro que
as vá cortando era torno : 2.° porque o mar a cadií.
reiluxo cobre o sitio era que se acham. Estes res-
tos humanos mostram grande estatura ; a massa ,
que se deve extrahir cora elles lem perto de oito
pés de comprimento sobre dois e meio de largura ;
pesará perto de três mil arráteis. — As opiniões são
diversas sobre a sua origem : uns dizem , que na-
quelle logar se dera um grande combate entre os
naluraes da ilha, e os de outra visinha : outros per-
Icndem , que fora uma llotilha de canoas, que nau-
fragara alli, onde o mar quebra com violência as
suas ondas, quando o vento rijo o agita : <iulros ciii-
liiii presumem , que ira(iuelle logar havia um ee-
niitcrio dos naturaes do paiz , e que talvez eiu
tempos posteriores fosse alagado pelo mar.
Os maus tem a imprudência de se accusarem reci-
procaraentc. para cautela e apercebimento dos bons.
r>7
o PANORAMA.
105
MORTE S£ RUBENS.
CoMPREHENDEitÃo OS iiossos Icilorcs perfeilamenlc es-
te desenho se recorrerem ao capitulo S.° das scenas
históricas, impressas em o nosso 4.°vol. da 1." se-
rie com o titulo — o Pintor Ruhcns ; — ahi se des-
crevem os últimos momentos deste grande artista
flamengo , e o como o seu illustre discípulo , Antó-
nio Van-Dyck (■) apenas chegado a Antuérpia se
acccierou a dar a eterna despedida ao mestre vene-
rado, entrando ainda com os vestidos de caminhan-
te no quarto do moribundo , e beijando-lhe a mão
quasi gélida , ajoelhado ao pó do leito , com trans-
portes de allicção e viva saudade. Este lance pathe-
tico e solemne mostra a gravura, e ocioso seria ago-
ra repetir a narração: lambem pouco temos que ac-
crescentar relativo á vida de Rubens, no sobredito
4.° volume largamente delineada , já nos esboços
históricos, já em as notas a pag. '269 e immediata :
todavia não ommittiremos as seguintes curiosas par-
ticularidades.
Por occasião do sitio da cidadella de Antuérpia ,
temendo os habitantes o bombardeamento, em 1833,
deram-se pressa a cubrir e resguardar com madei-
ras e couramas os preciosos quadros de Rubens e
Van-Dyck , para que assim estivessem mais preser-
vados de qualquer deterioração.
Rubens tinha accumulado grande quantidade de
(t) Yid. o retrato e noticia a pag. 73 deste toI.
Vid. o retrato e noticia a pas
AiiRiL 8— 18;3.
riquezas , que não sú o agradecimento e favor dos
príncipes , a quem servira , lhe haviam proporcio-
nado , como também os preços exorbitantes porque
eram reputadas as suas pinturas. A casa de sua re-
sidência era um palácio sumptuosamente adornado,
e digno d'um potentado ; ahi com frequência rece-
bia visitas tanto dos estrangeiros distinctos que vi-
nham a .\ntuerpia, como dos governadores dos Pai-
zcs-Baixos , que o tratavam familiarmente , e dos
príncipes a quem acontecia passar por Flandres , e
que pagavam a pezo d'ouro o gosto de serem retra-
tados por tão nomeado mestre.
Certo dia appressntou-se-lhe á porta um sujeito,
que disse ser inglez e viajante, que desejava conhe-
cer o cavalheiro Rubens , para com elle tratar as-
sumptos de importância ; admittido á presença do
dono da casa, oITercceu-lhe com muito mysterio re-
velar-lhe o segredo da pedra philosophal . ajuntan-
do que por ser alchimista de poucos recursos nãu
possuía os necessários para adquirir os ingredientes
indispensáveis para obter o ultimo c grande resul-
tado. Então Rubens, tomando-o pela mão , encn-
minhou-o ao quarto em que trabalhava . c lhe dis-
se : — «.\migo, já vindes muito tarde, faz vinte an-
nos que eu descobri esse mesmo segredo. » — « Co-
mo assim '. [exclamou o outro espantado] Se nunca
ouvi dizer que estudásseis chimica ; e apezar de
2.' Serie. — Vor. II.
106
O PANORAMA.
meus conhecimentos lenho ni gaslo mais de quaren-
ta ânuos para descobrir o grande achado?..» —
'< Vede aqui toda a minha alchimia .. — tornou Ru-
bens , mostrar.do-lhc a palheta e pincéis — "Com
rsles achei ha vinte annos o segredo de converter
ora ouro os barros c cinzas.»
O Bobo.
1128.
IX.
O Desafio.
O BVNoiETE que i)oz termo ao memora-, el dia do
íijunlamcnto solcinno dos barões e senhores de Por-
tugal prolongou-sc até alta noite. D. Thcreza tinha
ahi apparccido rodeada de todo o esplendor real.
J\'um estrado sobranceiro ao pavimento da sala , c
debaixo de docel , formado das telas mais ricas sa-
bidas dos teares do Jacne de Valência , a bella iu-
fnnla viera presidir ao banquete dos sens ricos-ho-
niens. Assentada era uma cadeira , á qual o espal-
dar prijnorosamente lavrado de bestiães e arabes-
cos , e os braços e suppcdaneo dourados davam o
aspecto de um throno , a rainha de Portugal , da
mesa que tiniia ante si , e em que particularmen-
te ora servida, enviava ora a nm ora a outro caval-
leiro, noiavcl por sua linhagem, influencia, ou le-
nome, alguma das iguarias mais delicadas, que ra-
pidamente faziam succeder umas ;ís outras os peri-
tos cosinheiros do paço de Guimarães , quasi todos
mouros, ou servos ou libertos. Estas provas do dis-
tincção eram stmpre acompanhadas de graciosas men-
sagens, que lisongeavam o amor próprio dos nobres
senhores. Escusado talvez fora dizer que similhante
dislincção a mereciam só aquelles que no conselho,
pelo seu voto ou opiniões se haviam mostrado lirmcs
na causa da mãi contra o filho. Para aquelles que,
como Gonçalo Mendoz, se tinham mostrado parciaes
lio infante, apenas lançava a rainha um olhar rápido,
cm que se misturava a cólera c ao mesmo tempo o
desprcso , como se previsse já a hora do triumpho,
c por consequência do castigo. D.Thereza, que des-
de a partida de seu íilho se mostrara triste, abati-
da , c irrcsoluta , parecia nesta noite reassumir to-
da a sna antiga energia. No seu rosto, banhado de
uma alegria algum tanto forçada , conhecia-se-lhc o
desejo de que lhe cressem o animo tranquillo ao
approximar da procella. Dir-se-hia até que intenta-
va fazer sobresahir a sua formosura , que os annos,
os cuidados do governo, c os trabalhos das longas
guerras que susientára eonlra 1). Urraca , e depois
contra o imperador , tinham assaz desbotado , mas
qnc ainda faziam realçar os ricos trajos que na-
qiiellc dia vestira. Eram estes um epitogio de gri-
zisco orlado de pclles mosqueadas, c apertado com
ura cordão entrançado de prata e seda de varias co-
res , uma coifa ou rede adornada de pedras precio-
sas que lhe retinha as longas tranças, nm collar de
(uiro, o qual lhe cabia sobre a camiza de ranzal al-
víssimo, qne cm [iregas miúdas lhe vinha fechar na
garganta, c um amplo manto de ciclatom vermelho,
que pendente dos hond)ros lhe rojava pelo chão.
Com este vestuário , c no porte e meneios altivos ,
a rainha trazia de certo modo á lembrança a nobre
o mageslosa ligura de seu pai, o grande Alibnso (i.'
A causa desla rc[)eiilina muiiança eslava nas no-
vas que haviam chegado poucas horas anles. A au-
dácia do infante, a licença desenfreada com que os
seus homens d'armas assolavam as villas e honras
do infantatico, isto é do que constituía propriamen-
te o apanágio de D.Thereza, as violências que pra-
ticavam contra os villões e homens de creação des-
ses mesmos testamentos, ou herdades, o furor com
que derribavam os seus castros ou logarcs fortifica-
dos , c sobre tudo a intenção com que, segundo af-
firmavam os espias , o moço príncipe se acercava
dos muros de Guimarães, e que eram nada menos
do qnc lançar em jirisão perpetua Fernão Peres e
a própria mãi , tinham finalmente sufTocado no co-
ração desta a voz do amor materno. Quando o con-
de de Trava ohcílcccndo ás ordens qne lho trans-
inittíra o capellão-mór se apprcsentou perante ella ,
os olhos de D. Thcreza faiscavam de cólera e de
indignação. Debalde Fernão Peres lhe ponderou os
inconvenientes de arriscar a sua fortuna , e o que
mais era , a liberdade ou a vida cm uma batalha
campal : a violência do caracter varonil da rainha
que triumphára , ao menos momentaneamente , do
mais profundo affcclo, o amor maternal , não podia
ceder ás considerações da prudência. Declarou que
a sua resolução inabalável era ir ao encontro dos
rebeldes com os cavalleiros, besteiros, c peões, pe-
la maior parte estrangeiros, (1) que de contínuo
chegavam a Guimarães attrahidos pelos grossos cen-
sos , ou soldos que lhes oITerecia o conde. Os ins-
tinctos guerreiros de D.Thereza, que os annos e os
revezes haviam amortecido , despertavam de novo
vigorosos na hora em que era necessário encarar fa-
ce a face os perigos que até este raomenlo ainda
pareciam remotos.
Assim esta noite passava bem differcnte daquella
em que no meio de alegre sarau só a bella infanta,
mau grado seu, se mostrara triste e aborrecida. Aqui
eram os cavalleiros que pareciam inquietos e des-
conversáveis : os dois bandos bem sabiam qne não
tardava o dia em que se encontrassem novamente ,
não na mesa do banquete, mas no campo das lides,
onde o escorrer do sangue nos ferros substituiria o
escumar do vinho nas laças de prata. Para clles es-
ta festa Iirilhante correspondia á ceia do algoz e do
sentenciado debaixo das abobadas de um cárcere na
véspera do supplicio. Qual era o saião? — qual a
victima? Eis o que ninguém sabia.
Mas talvez nenhum geslo dava mostras , não de
raelancholia , mas de inquietação, como o do con-
de de Trava. De instante a instante elle volvia os
olhos para o portal da sala d'armas, como se espe-
rassealgucm ; e de feito nm logar á sua esquerda
ficara vazio na esplendida mesa ao começar do ban-
quele. Era o do novo alferes-mór. Este, desde qne
se apartara do conde, ninguém mais o tinha visto.
Síuito havia já que era noite , c as taças, que os
escanções , correndo por detraz das longas fileiras
de cavalleiros com os picheis nas mãos, enchiam de
novo apenas eram esgotadas, começavam a fazer seu
oflicio : as frontes iam-se pouco apouco desenrugan-
do c soltando-se as liuguas. Nos banquetes daquel-
la idade rude e feroz ás vezes o sangue corria como
pospasto, c quasi sempre a conclusão do festim era
uma orgia infernal , om que o convívio se tornava
em scena hedionda de embriaguez. Não era raro em
similhantcs occasiõcsvòr os paços dos nobres, c ain-
da dos reis , convertidos n'uma cousa hedionda c
(1) A (l<'nomina(;iio (1'estraiigeiros dada aos sidclailoj da
rainha p dorniiile de Trava parece na verdade inipri)|iria ,
sendd elleí pela maior parle ^'allpgos, lennezes &c. Todavia
a liiiloria dos ijodos os desi;'iia já pelo nome de aUfiiiyenne.
Vejase o que dissemos nos uUimos paragrapUos do cap. 3.°
o PANORA3IA.
107
davidosa entre a taberna e o prostíbulo, era que os
filhos dos bcm-nascidos mostravam qiio a distancia
moral , que cllcs suppunham separa-los da mais vil
gentalha, na roalidade não existia. Se, porem, os
longos tí sanguinolentos homizios enlrc linhagem e
linhagem se originavam facilmente das festas mais
pacíficas, em meio das taças cheias pela mão de cor-
dial hospitalidade , muito mais de recear era algu-
ma rixa funesta entre homens que guardavam no co-
ração, uns contra os outros, os mais profundos ódios
humanos, os ódios dos bandos civis.
Estas considerações que haviam occorrido ao con-
de ao perceber a conversação , no princípio langui-
da, ir-se tornando viva evchemcnte ; considerações
em que não reparara a tempo , atlento ao systcma
que adoptara de esconder os seus receios , e o pe-
rigo da sua situação, com asapparencias detranquil-
lidade, eram agora para clle motivo de scrios te-
mores. A tardança , porem , do alfcres-mór , o in-
quietava ainda mais. A rainha não devia dar o si-
gnal para acabar o festim sem que elle soubesse com
certeza se tudo estava disposto para impedir a sabi-
da de Guimarães áquelles que atentassem. As mas-
morras do castello deviam povoar-se nessa noite de
todos os ricos-homens da corte com quem o infante
Contava ; mas a segurança deste golpe , que iria
transtornar as esperanças do moço principe, depen-
dia inteiramente da rigorosa execução daquillo que
tinha ordenado a Garcia Bermudez.
Este entrou em fim na sala , mas em vez 'de se
dirigir ao logar que parecia baver-lhe sido guarda-
do, rodeando a multidão de pagens enfileirados em
pé atraz de seus senhores , e passando por entre o
tropel dos sergentes , escanções , uchões , e outros
ovençaes, que attendiam ao serviço do esplendido
banquete, buscou approximar-se do conde, mas de
modo tal , e collocando-se em sitio onde delle fosse
visto, sem que os cavalleiros, nos quaes as amplas
libações do pospasto começavam a produzir ruidosa
alegria, o podessem observar : — d'alli esperou que
Fernão Peres se apercebesse da sua chegada.
Como elle viera, não da sala d'armas, porem da
galleria contigua , que coramunicava exteriormente
com ambos os aposentos seguindo todos os ângulos
c sinuosidades daquella face do edificio, correu al-
gum tempo antes que o conde reparasse no caval-
leiro ; tanto mais que a sua attenção era dislrabida
pelo que se passava no topo da mesa fronteiro a
elle.
Era ahi que o Lidador se vira obrigado a ir as-
sentar-se quando voltara com Fr.Ililarião de faltar
ao homem do zorame : os outros legares estavam já
povoados de cavalleiros, e por um acaso bem desa-
gradável elle se achara ao lado de Vereraudo Peres,
de quem no conselho recebera injurias que retri-
buirá com. mão larga. Assim durante muito tempo
conservou-se em silencio ; mas o respeitável exem-
plo de Fr. Hilarião, que vivia n'uma horrorosa in-
certeza sobre as verdadeiras dimensões da cmÍJia, (2)
incerteza que se convertia cm confusão completa an-
te as copas de prata d' um jantar opíparo, o haviam
incitado a imitar o santo monge : e quando o ban-
quete começou a approximar-se do seu termo, Gon-
çalo llendes, com aquella philosophia e equanimi-
dade, que inspira ás vezes o çumo da vide, parecia
(2) A êmina é uma certa medida pela qual se devia re-
gular a ração de vintio que focava diariamente a cada mon-
ge segundo a reirra de S. Bento. Sobre a capacidade desta
medida haure grandissimas questões que, como é desuppOr,
nunca os benedictinos poderam bem resolrer.
arrostar alegremente com o olhar malévolo da rai-
nha e com as demonstrações de favor que dava aos
senhores seus jiarciaes, lavores que antes eram uma
injuria para áquelles que se mostravam favoráveis
ás pertenijões do infante, que uma recompensa da
lidelidadc a ella. O licor de Uaccho , como diria
um poeta da Anadia , fizera , porem , mais do que
isso; fizera soltar a língua do Lidador, e, sem sa-
ber coujo, elle se achou involvido n'unia disputa com
Veremudo Peres, a qual chamara a attenção não só
dos cavalleiros que se achavam mais próximos, mas
até do conde de Trava e de D. Thcreza.
Foi por tal motivo que ninguém reparou na cti-
trada do alferes-mór. O gesto carregado deste ex-
primia uma tristeza profunda , c o seu olhar incer-
to dava indícios de que lhe revoavam na alma gra-
ves cuidados. Quaes estes eram sabe-os já o leitor.
Garcia líermudez antes de correr as torres , adar-
ves , c barbacans , e de ler disposto tudo para que
nenhum dos cavalleiros que deviam assistir ao l)an-
quete podesso afastar-se do castello e do burgo ,
viera ler com Dulce no logar aprazado. A declara-
ção que cila lhe fizera de que amava Egas Moniz
tinham apagado no seu coração o ultimo raio de luz.
Esse momento fora terrível , mas ao menos o seu
amor desprezado podia converter-se em ódio , c a
sua desesperação em sede de vingança. Entre elle
e Dulce não estava a indifiercnça, estava outro amor
— um rival, um cavalleiro da linhagem de Kiha-de
Douro I As suas paixões convcrtiam-se todas n'uraa
só — o ódio; e por esta como que lhe resfolgava o
espirito. Era esperança tenebrosa e sanguinolenta a
que lhe sorria , mas , em fim , era uma esperança I
Fernão Perez tentava escutar o que se dizia na
outra extremidade da mesa , quando sentiu puxa-
rem-lhe pela orla do brial. Volloii-se : era Trucle-
sindo. O esperto pagem tinha notado quão frequen-
tes vezes seu lio lançara os olhos inquietos para a
porta : isto lhe provara que esperava alguém , e a
falta do alferes-mór, que esse alguém era elle. At-
lento então a ver se o descobria no meio dos ser-
gentes que entravam e sabiam da sala vira-o che-
gar. O modo porque se postara atraz dos escudeiros
confirmou-lhe as suspeitas. Hesitou algum tempo ,
mas finalmente resolveu-se a sahir da fileira dos pa-
gens e a chcgar-se ao conde :
«Meu senhor e lio — disse o rapaz em voz baixa
— vede Garcia Bermudez que despreza o seu logar
do cavalleiro: — e accrescenlou — Não o faria eu,
SC como clle calçasse acicates dourados.»
«Por essa nova que me deste os mereces, meu so-
brinho— respondeu Fernão Peres no mesmo tora. —
Te-los-has mais cedo do que o esperas, se bem de-
sempenhares o que te vou ordenar.))
Fitara os olhos no alferes-mór : o sígndl que este
lhe fez desopprimiu o coração do conde.
«Tructesindo — disse clle ao pagem — approxima-
te da rainha o mais que poderes, edizc a qualquer
dos seus donzcis de modo que cila te ouça : e tein-
p(i de acabar o festim.»
D'ahi a pouco, o mordomo da cuiia descendo do
estrado, onde estava em pé a pouca distancia do
D.lbereza , acercou-se do topo da mesa dos caval-
leiros , e parando junto de Fernão Peres :
«Senhor conde de Portugal e Coimlira — disse —
nobres ricos-bomens destes senhorios , infauções de
alem Douro e áquem Minho, cavalleiros, prestamci-
ros c alcaides , a mui excclleiíle rainha dos porli:-
guezes vos roga espereis o romper da alvorada para
voltardes a vossos castellos e solares. Os chefes de
108
O PANORAMA.
linhagem , (.3) que possuem paços ou bairros conta-
dos e honrados no liurgo de (iuimarãcs não recusa-
rão guarida por uma noite aos de seu sangue : os ou-
tros serão albergados neste mesmo caslello. São as
ordens que receiti de minha graciosissima senhora."
INingucm respondeu ; porque D. Tbercza ergucu-
sc immcdiataniente, e fazendo uma levecortezia aos
ravnileiros que se tinham posto cm pé , sahiu do
aposento.
Este acontíícimcnto previniu talvez algum caso
funesto entre o Lidador e Veremudo Peres. A sua
disputa politica tinha chegado a tal ponto, que de-
balde havia tentado por-llie termo o mui pacífico ab-
hade bcnedictino. A confusão, porem, que produziu
na sala tanto a ofierta da rainha como a sua repen-
tina partida separou os dois contendores , a quem
a cólera ia brevemente fazer esquecer o logar onde
se achavam.
Os senhores c cavalleiros apenas a rainha partira
se haviam espalhado pela sala do banquete e pela
.sala d'arnias. O sino de recoliíer ainda tardaria a
soar na torre alvarran do castello , c a maior parte
delles sahíu pouco a pouco do paço e desappareceu
pelas ruas torcidas do burgo , onde nas pousadas
dos de sua ou de alheia linhagem foram no meio
do jogo e da embriaguez concluir o festim subita-
mente interrompido. Eram os costumes do tempo.
O conde de Trava ficara. Quando viu quasi ermo
o aposento , dirigiu-se para (jarcia Bcrmudez , que
entregue a distracção meiancholica se encostara A
balaustrada que dividia em parte o estrado da rai-
nha do resto da sala. Chegando junto delle , o con-
de pondo-lhc a mão sobre o hombro , perguntou cm
voz baixa :
n Estão de feito tomadas todas as portas do bur-
go? Não poderá sahir cavalleiro algum?»
«(Nenhum — respondeu o alfercs-mór. — Os roídas
e sobreroldas giram nas quadrellas das barbacans :
vinte besteiros de pé, Lançados entre estas e as bar-
reiras e junto das pontes levadiças do cárcova , vi-
giara exteriormente : ura troço de corredores almo-
gavares corre no campo em volta do castello e do
burgo. Ardiloso e valente precisa do ser o que ten-
tar cvadir-se. »
'c Excellente ! — replicou o conde sorrindo com a
idéa de reter em logar seguro uma parte dos seus
inimigos. — Agora ^ — ^proseguiu el!e — dize-mc ain-
da: o nobre allcrcs-mór, que cm quanto nós folgáva-
mos nas delicias de um banquete , velava por nós
lá fora como leal cavalleiro , não viu luzir no céu ,
por entre as trevas da noite, a sua cstrella feliz?»
«A minha estrella é maldita : — respondeu o ca-
valleiro com aspecto carregado. — Não ha para mim
Inzir no céu a esperança! Felicidade? Nãcf c no
mundo que cu a hei-de encontrar ! »
"Quem sabe? — tornou o conde, em cujas faces
fiassára fugitivo sorriso — e voUando-su paraTructc-
sindo que se conservava a alguma distancia com os
olhos no chão, continuou : Vem cá , meu gentil pa-
gem— hoje será uma noite aziaga para traidores —
porípie será a da justiça , mas de justiça recta e
imparcial: a recompensa corresponderá aos méritos.
Repete o que de relance me disseste ao começar do
banquete: busquemos achar o lio desta tèa infernal. »
Então o pagem narrou o que percebera da con-
versação entre (lonçalo Mendez , o homem do zora-
me e o abbade do mosteiro de D.Muma. Asuanar-
(3) jV principal pessoa de (]iial(|iier )iar(>nlplla. E' pro-
vavelmente esta a uiiica siguilicacào forliigm-za da palavra
c/l f ff.
ração era incompleta , mas ouvira o nome de Egas
Moniz, e que este viera do campo do infante. Quem
duvidaria já de que existisse uma vasta conjuração
dentro do próprio recinto deGuimarães. Que outros
motivos Irariam alli um dos mais illustrcs cavallei-
ros da linhagem do implacável , e manhoso aio de
Affonso Henriques? Estas rellexões occorriam de
tropel ao conde escutando a narração do seu pagem.
Quando este chegou a proferir o nome de Egas ,
um grilo fugiu dos lábios do alferes-mór. Fernão
Peres alçando os olhos encontrou os delle, que pa-
reciam faiscar. Era a cólera , o ciúme , a sede da
vingança? Era talvez tudo. O conde interpretou es-
te grito e este olhar pelos próprios pensamentos.
«Tens rasão , Garcia — disse elle. — Indignas-le
de vèr que homens cheios debeneficios e honras pe-
la rainha de I*ortugal , venham nos seus paços del-
ia urdir o trama de seus pérfidos desígnios. Mas es-
tão em meu poder, e nada há hi que os salve. Pos-
sa eu encontrar ainda em Guimarães o audaz caval-
leiro que ousou entrar na caverna do tigre I — O al-
goz c o cepo sellarão com sangue a fiel amisade dos
infames. Egas, não te esconderá teu disfarce! —
Gonçalo Sícndez , não te valerá nem a espada nem
oorgulho dcrico-homem ! — Monge hypocrita, não te
salvará tua mortalha de homem vivo : Uoma o que
pede é ouro, quando defende o seu rebanho de gar-
nachas e cogullas , e a tua cabeça não a cedera eu
agora a troco de mil áureos mouriscos.»
Assim a profunda indignação, que o conde acre-
ditara ler no gesto do alferes-mór, sabia corao uma
torrente do seu próprio coração.
Depois reflectiu um momento — e reassumiu ou-
tra vez o seu aspecto habitual de serenidade. Não
fora para vibrar vans palavras de ameaças que se
approxiniára de Garcia Bcrmudez. Apoz breve pau-
sa p;oseguiu gravemente , c em voz assaz alta para
ser ouvido no outroextremo, onde ainda restava ura
pequeno grupo de cavalleiros :
«Senhor alferes-mór, esperai aqui as ordens da
nossa mui excellente rainha, que tem de communi-
car-vos importantes negócios. Eu voltarei a chamar-
vos , quando assim lhe approuver. »
Proferidas estas palavras sahiu da sala , o enca-
minhou-sc para os aposentos interiores pela mesma
porta por onde a rainha sahíra.
Apenas Fernão Peres desappareceu , Garcia Ber-
mudez travou do braço de Truclcsindo , c era tom
solemnc disse-lhe :
«Pela rainha fé juro que o pagem Tructesindo
ámaidiaã cingirá sobre o brial a espada de cavallei-
ro, se cumprir o que lhe vou dizer, e se jurar tam-
bém guardar sobre isso perpetuo silencio.
«Juro , juro! — interrompeu o donzel. Dizei de-
pressa o que pcrtendeis. Seja o que fòr , e venham
as esporas douradas.»
Era a idéa fixa do diabólico ])agcm.
Garcia liermudcz arrancou violentamente uma bol-
ça de couro dourado que, segundo a moda do tem-
po , lhe |)endia do cinto : abriu-a ; tirou de dentro
tnn pequeno pergaminho , e entregando ao donzel
uma e outra cousa continuou :
«Aai, e busca encontrar o incógnito que hontcm
fallava a sós com (ionçalo Mendez c Fr. Hiiarião.
Affirmas que lhe viste o rosto : o seu nome já o sa-
bes. Faze vigiar o mosteiro e a pousada do senhor
da Maia : nãp poupes nem diligencias nem almora-
bitinos, que essa bolça vai bem recheada. Sc o des-
cobrires entrega-lhe este pergaminho : que o mos-
tre aos vigias e roídas , o cllcs o deixarão -sahir da
o PAIVORAMA.
109
cerca do burgo, o que sem isso lhe fora impossível.
Em recompensa disto , dizc-lhe que Garcia Uermu-
dez exige que ámanhaã , duas lioras antes do sol
posto , esteja com suas armas e a cavallo no souto
que se dilata alem do vau do Mádroa ; e que se não
o fizer é desleal e covarde, u
i< .\ cousa é dilíioultosa : — replicou o malicioso
doiizel. — E se hoje não o descobrir?
«Demónio! — respondeu o alferes-mór batendo o
pé no chão de impaciência. — Trocura-o toda a noi-
te, toda a raanhaã , todo o dia '. K preciso que o
encontres, se queres a nobre dignidade do cavallci-
ro. Entendes? Sem isso, em quanto Garcia Bermu-
dez fòr alferes-múr, couta que não a obterás.»
Não havia remédio : Tructezindo agarrou na bol-
sa e no pergaminlio. Depois atlravessou vagarosa-
mente a sala, levantando a touca pelo lado dctraz
com o Índex c coçando o toutiço. Elle tinha rasão :
a cmpreza era dillicultosa.
Garcia Bermudez cahiu então no seu habitual scis-
mar. «Ao menos, — pensava o cavalleiro — nunca
cila dirá que a minha vingança foi vil e desleal.»
D'ahi a pouco uma voz que soava da porta dos
aposentos interiores veio desperla-lo dos seus deva-
neios. Era o conde que com aspecto risonho dizia :
«A mui excellenlc rainha ordena venha immedia-
lamente perante cila o nobre alferes da hoste dePor-
'^ ■ (Conthniar-sc-ha).
(A. HcrculamiJ.
D. FBANCISCA FOSSOZ.O.
*' Obra de v^PÇO laria a Socieda-
de IVopaijadora dos Conhecimentos utcis
se assim como já bo seu Panorama pu-
blicou o retiato de M.ine de Stael, para
ahi trasladasse i"ualmeiite o da nossa por-
ta-;ueza sua traauctora. "
O .S>. ^. F. d,: Castilho, em a Xu-
Ucia Uttcrítria , qite pref^cde n rrr-
iâo lias Cfjiirfriaqôes subre a Plurii~
Hdade dos Mtmdos , a pag, CXl'I,
O CONVITE . que pela imprensa nos fez tão distincto
litterato, importava uma obrigação, que tinha de mais
a mais a circumstancia de ser de mui agradável de-
sempenho. Sollicitos procurámos um retrato da fal-
lecida poetisa , D. Francisca Possollo , diligencian-
do que a etTigie fosse inteiramente parecida ; e
eis-ahi que lemos a satisfação de appresentar a có-
pia , Ião perfeita quanto é possível ao buril cxecu-
ta-Ia , gravando em madeira.
Se não fossemos precedidos pelo Sr. Castilho , a
singela hiographia que tecêssemos teria ao menos o
sabor da novidade , e a valia de uma recordação c
homenagem litteraría ; mas como é possivel, depois
de escriptor tão culto e ameno tratar o mesmo as-
sumpto?. . A sua lembrauça nos recordou uma di-
vida , que se por um lado, apesar de dilliculdades,
podia solver-se , por outro nos collocava em grande
apuro. Bem quizeramos em seguida ao retrato es-
tampar a noticia litteraria , de que extrahimos a
epigraphe , mas a impresíão cm livro separado, e
a nimia extensão no-lo vedam. Apunlaremos pois
aos nossos leitores o livro da pluralidade dos miin-
ftoí (1) vertido em vulgar ; e para contentar os pri-
meiros impulsos da curiosidade nos cingiremos a
succinta narração , necessária simplesmente para
que conheçam a auctora os muitos que se tem re-
creado com a leitura de seus escriplos.
D. Francisca de Paula Possolo da Costa nasceu
em Lisboa aos 4 de outubro de íT83 de farailia
pertencente á feliz mediania social , mas dislincla
por suas qualidades moraes. Foram seus pais Ni-
colau Possolo e D. Maria do Carmo Corrêa de Ma-
galhães. De ânuos tenros manifestou a sua inclina-
ção poética ; viçosa lhe llorecia a imaginação ao sa-
bir da infância, e comludo apenas Cervantes, Ca-
mões . e poucos mais , eram os auctores , que co-
nhecia : alem das diversões caseiras, a musica e o
estudo da lingua franceza foram os seus entreteni-
mentos.— A serie de annos. passada' no lar domes-
tico , é de ordinário infértil de acontecimentos me-
morandos ; e se do varão , a quem abençoada Pro-
videncia concedeu tal sorte , nada ha que se conte
á posteridade , quaesquer que sejam as suas virtu-
des , e talentos, que haverá que dizer de uma de-
licada senhora , educada no regaço materno, pos-
suidora dos dotes qualificadores do seu sexo, e cre-
dores de respeito e estimação universal , n.as que
alem desses dotes só lera para titulo de gloria os
escriptos que a cultura do espirito e a vivacidade
do engenho produziram em suas huras dedescauço,
ou de melancholia?
Um casamento, segundo a própria inclinação, fe-
liz na constância delle , e n que a morte do cônju-
ge poz funesto remate, é o maior incidente da car-
reira vital da nossa Francilia , como a Sur.^ Posso-
lo, ao estilo arcadico , se appellidava em seus ver-
sos (2). A 10 de abril de 1S13 ligou-a o santo vin-
culo do matrimonio a João Baptista Angelo da Cos-
ta , benemérito oiricial de marinha ; por dezeseis
annos durou o acertado consorcio, no exercício de
amizade c ternura reciprocas . dos devores casei-
ros , e de actos de particular beneficcncia, em quo
os dois esposos foram , quanto podiam sè-lo , estre-
mados ; até que a morte delle os scparnu pela, pri-
meira vez, como se lè no epitaphio do mausoléu ile
mármore, que encerra os despojos mortaes d'am-
bos, erecto no cemitério occidenta! de Lisboa. Com-
prehendeu o mesmo tumulo os que tão unidos ha-
viam vivido [removidos seus corpos dos templos em
que se achavam depositados] por disposição testa-
(1) jV liem conbeciíla nlira i!e Fontenelle. Saliiii essa
Iraciíioçrio em Lisboa em lí!41. iiin vol. lie o." precediJu
(lo discurso Ijiocrapliico que temos cilaiiii.
(2) PubliCDU um vol. inlilulaJo FrnnciUa, PasUira do
Tiji). eque dislrlbuiu gratuitameale eulre as pcssuas de sua
intimidade.
110
o PANORAMA.
menlaria da Snr.^ Possolo , que terminou sua viu-
vez, sempre magoada e saudosa, aos 19 de junho
de 1838.
Para ofTerecer-mos o caracter distincto desta ama-
iel escriptòra , contemporânea nossa , reproduzire-
mos os delineamentos de hábil pintor , com quem
manteve ella constantes relações littcrarias , e que
muitos annos havia fora admiltido á sua estima e
sincera amisade (3).
«Foram suavidade e modéstia as principaes fei-
«ções de sua alma ; partes que rara vez se casam
«com aquelToutras de ingenho vivo e promplo , c
«de um saber maior que o vulgar : nem se arroga-
<< va mais do que lhe competia em matéria de lou-
« Torcs, nem ainda tudo o que lhe competia , o ac-
«iceitava: perante homens, se contentava de pare-
<icer mulher; entre mulheres, forcejava por se lhes
«igualar, encolhendo, e dissimulando cora muita
«industria a sua própria altura. A todos ouvia com
'caltenção e docilidade, como que de todos appren-
«dcra; comsigo discutia, e amadurecia os seus con-
«ceitos; em tempo e logar próprio, c sendo reque-
«rida, expunha-os com simplicidade; deffendia-os
«sem pertinácia; sem cólera os deixava refutar;
«refutados, os depunha, mostrando no renuncia-los,
«e confessar-se vencida, um género novo de victo-
" ria , mais engraçado, e honroso , que o mesmo
«triumpho. Havia a poesia pelo melhor de todos os
«males, pela mais efficaz distracção de trabalhos,
«e consolação de amarguras, e pela mais innocenle
•1 e fructifera das ociosidades : infância de adultos
«se lhe pude chamar, e com rasão ; que, se ha se-
« raphira de fogo, que possa deCTender a invasores
«e profanações o paraiso da alma, esse é a poesia,
«quando em paixão se chega a converter. Do afTe-
«cto, que no corarão lhe abundava, repartia com
"todos, e com tudo: debuxava em si as penas alheias
■1 para lhes acudir ; imaginava depois as alegrias ,
«dos que havia consolado, para por ellas , e delias
«compor as suas; de míngua de fantasia nasce o
«mais das vezes a falta de caridade.
«De virtudes, nenhuma se pôde particularisar ,
«em que excedesse, a não ser esta, de uma uni-
« versai e perenne benevolência; todas as outras ,
«as tinha com igualdade, inteiras, e sem quebra.
«Baldado seria o procurar pelo muito que escreveu
«o minimo vestígio, quer de orgulho, quer de ódio;
«nem menos desse ódio, que sendo de todos o mais
« vil, passa uo mundo por galantaria, e como tal se
«usa, oqual se disfarça com a máscara d'esperteza
«gracejadora ou de ingenho faceto para empolgar, e
«atassalhar, como por festa, aos que aborrece; ora
«aos maus, porque não são bons, ora aos bons, por-
«quc não são melhores, ora aos óptimos, porque
o não são péssimos. .\uni:a a sua alva penna cstillou
«fél de satjrn ; e com tudo em uma epistola a uma
«sua amiga fdcveu de ser desafogo, e foi único] se
«vè, que a inveja não a poupou, e que. desde que
«entrou ao poético estádio, mais de uma vez lhe
«vieram quebrar os espíritos , c desconsola-la , os
«motejos, e grosseiros apodos daquellcs que , ou
■■não crèm no talento, ou pelo menos não dão ás
«mulheres licença, para que o tenham ; ou teudo-o,
«para o mostrarem.»
A Snr.' D. Francisca Possolo deixou impressas as
seguintes obras , em testemunho de sua applicação
<■ talentos : — A traducção annotada da cxcellcnte
obra de M.°" de Stael , Corinna ou a líalia ; outra
(3) O Sr. Caslilho , <le quem tomámos a passagem que
Iraiiscrcvenios. ViO. cilada Xolic. pag. 109 a llS.
da Carta do Conde de las Casas a Luciano fíuona-
parte ; uma novella em dois tomos que tem o mé-
rito de ser composição original , intitulada Henri-
queta d'Orlcans; e a collecção de versos que já
mencionámos. Sahiu posthuma a versão do livro de
Fontenelle : e ficaram inéditas duas comedias, outra
novella , e numerosas poesias. — Os seus versos são
harmoniosos , no gosto a que chamam clássico , e
pela maior parte respiram branda melancholia ; as
suas traducções se não brilham pelo vigor e cópia
da dicção , são claras , fluentes e desempeçadas de
crassos e tediosos gallicismos. Bem mereceu a nos-
sa escriptòra as Dores , que em tributo á sua me-
moria , a lilteratura , que cultivou c amou , e a
amisade que soube prezar e manter, saudosas lhe
despargiram sobre a campa.
Roteiro da viagem , qce D. Joio de Castro fez
A l'BI3IEIRA VEZ , QCE FOI Á InWA ,
NO iN>0 DE 1538.
Dos RoTEiBos, escriptos por D. João de Castro, es-
caca e incompleta noticia nos deixou seu historia-
dor. Jacinto Freire, á qual nada, ou quasi nada
accrescentou o bibliographo Barbosa. As indagações
modernas tecm esclarecido mais este assumpto. As-
sim que , são três os Roteiros , que hoje se conhe-
cem indubitavelmente como obra daquellc illustrc
capitão , e não menos insigne sábio , e escriptor. —
O de Góa a Suez , por outro nome o do Mar-ròxo
[viagem de lo'tO e 1541], cujo original foi desco-
berto na bibliotheca do museu britannico de Londres
em 1828 , e publicado era Paris no anno de 1833
pelo Sr. doutor Nunes de Carvalho. O detiòa a Diu
[viagem de 1538 e 1539] , cuja publicação está já
annanciada pelos Snrs. Kopkc e Pinto Roby. O ori-
ginal deste Roteiro , possuído por pessoa particular
na província do Minho, passou recentemente ao po-
der do Sr. Kcpke. Sabemos que pertencera no sé-
culo passado ao arcebispo Cenáculo , sendo ainda
religioso da Terceira Ordem da Penitencia. J\ o Diá-
rio autographo deste prelado , que se conserva na
bibliotheca pública eborense , se lè , com referen-
cia ao mez de janeiro de 1767 : — «Este mez de
«janeiro foi fecundo em livros de estimação, por-
« que nelle alcancei o manuscripto original de D. João
(I de Castro , Roteiro de Goa a Diu , ^'c » — E mais
adiante, em data de julho do mesmo anno: — «No
«princípio deste mez de julho começaram a vir en-
«tre os livros communs alguns especiaes , e
«por este modo, se o segundo semestre deste anno
«fòr tão fecundo como o primeiro, ajuntarei muito
«bons cartapacios : pois desde 2 de janeiro de ()7,
«entre os communs, me vieram á mão, de livros par-
«tículares, os seguintes: Roteiro de D.João deCas-
«tro, da sua lettra, foi. ras. &.C. — » De como este
códice sahisse da mão de tão apaixonado collector
destas raridades, não achámos ainda memoria entre
os seus papeis. — Ultimamente o de Lisboa a Goa
[em 1538], qUe não deixará de sahir brevemente
a publico; e cujo original, porem, não foi até ago-
ra achado. O mais antigo exemplar , que dcllc se
conhece , é a, cópia , que pertenceu ao collogío dos
jesuítas d'Evora. Esta cópia traz em dois logares a
declaração de ter sido doada áquclle cnllegio por
elrei D. Henrique, dízendo-se n'uin dclles:=Foi
dom d'elrci D.Henrique, de gloriosa memoria, seu
fundador = , c no outro : = d'elrcí D. Henrique,
dado ao collegio do Espirito-Santo d' Évora , sendo
o PANORA3IA.
111
ainda cardeal. = A leltra de uma o outra declara-
ção parece ser já do século de seiscentos. Foi tam-
bém possuído depois pelo arrel)ispo Cenáculo , que
o deixou na sua rica liibliollieca eborense , aonde
lioje se conserva. Assim pertenceu j.í este livro a
dois respeitáveis prelados da igreja eborense, e por
cada um delles foi doado como estimável prenda ao
estabelecimento lilterario . que fundou na sua rae-
Iropoie. Por estes respeitos , e por ser obra desco-
nhecida do publico, merece aqui memoria mais ex-
tensa.
O tiíulo da obra ó o que deixámos transcriplo no
alto deste artigo. Tem o códice 103 folhas de papel
ordinário ; é escripto com boa lettra , que deve ser
um pouco posterior ao meado do século de quinhen-
tos ; opinião esta , a que somos levados por força
das declarações da doação . acima mencionadas ;
pois SC houvéramos de decidir a idade da Ictlra pe-
la sua só inspecção , não duvidáramos affirmar que
era escripta , entrado já o século de seiscentos. —
Andaria aqui alguma ])ia fraude dos filhos de Santo
Ignacio, substituindo esteapographo com seus acha-
ques, que não tem poucos, ao verdadeiro, e talvez
autographo , doado pelo cardeal? Não descobrimos
rasão para tanto, nem poderá porventura ser a mes-
ma que se deu era Alcobaça na supposta Biblia de
elrci D. Aflbnso. — Fique esta questão por decidir
por mais práticos paleographos , e eruditos diplo-
máticos, que nos n.io parece de todo inútil, ao me-
nos em quanto não appareeer o original , e o nosso
códice gozar das honras de decano. É ornado cora
algumas carias , que representam as umo^ícaí , ou
conhecenras das terras. Depois de conhecida a obra
lhe accrcscentou o auclor em notas marginaes algu-
mas das observações , que fez na segunda vez que
foi á Índia, no anno de 1545. Tem um Prologo [que
melhor disséramos Dedicatória] dirigido a elrei D.
João 3.°, mui judicioso e erudito , como obra de
tal auctor. É o seguinte^-.].
Prologo. — Por me parecer que Vossa Alteza re-
ceberia era serviço dar-lhe eu couta miudamente
da navegação , que fez esta sua grande e poderosa
armada, me quiz dispor a escrever estes commenta-
rios , ou para fallar mais próprio, este Roteiro, o
qual . posto que o estylo delle seja bárbaro e gros-
seiro , c a matéria , de que trata , mais que todas
estéril e sècca, dado que proveitosa , posso aílirraar
a Vossa Alteza que me custou grande trabalho , e
que o tempo , que nelle gastei . não foi outro , sal-
vo furtado daqiielle que é obrigatório ao somno o
repouso da carne : porque d'outra maneira não ou-
sara eu de consumir nisto, nem cm outra cousa al-
guma , o tempo deste cargo em capitania , de que
me Vossa Alteza fez raercè : mas sem embargo que
o interesse desta escriptura foi alumiar esta carrei-
ra aos simplices, e dar-lhe aviso c regras para que
mais seguramente a possam passar.
Verdadeiramente , senhor , que muitas vezes me
envergonho comigo quando cuido na grandeza de
seu estado, e no baixo serviço que lhe appresenio
com esta obra , a qual não digo eu ser capaz de se
pôr em suas altas e reaes mãos, mas em outras al-
gumas de marinheiros rústicos , como não somente
carece, e c falta de feitos heróicos, c é falta de ma-
iorias nobres cillustres, mas ainda de vocábulos
conhecidos, e termos usados enlre cortesãos, c gen-
te polida, porque jamais se faz festa d'oulra cousa,
que do nomes , de ventos , e de fortunas e mudan-
ças do mar , de alterações do ar, de apparencias
(•) Nie coaservânioí a orlhogra](hia antiga.
do céu , de caminhos e rodeios que faz a uáu , de
aves marinhas e pouco nobres ; c isto ainda com or-
dem assaz comprida c embaraçada. E pois os que
escreveram da imagem do mundo, e historia de cos-
niographia, tratando de gentes, terras, mares, mon-
tes, rios, promontórios e cidades, espantados de se
verem entrar em matéria tão árdua e dilticultosa .
chamam muitas vezes as musas cm seu favor, e não
acabam de se desculpar , dizendo não haver nesta
matéria eloquência nem graça alguma : com quanta
mais rasão posso eu tomar todas estas salvas, maior-
mentc sendo notório que não escrevo este livro pa-
ra se lèr ás damas e a galantes , e se aproveitarem
delle nas cortes e paços reaes; raas os de Leça e
Matlosinhos.
Ora, considerando eu como Vossa .4lteza seja Ião
grande, que nenhum serviço se lhe pode fazer, que
seja proporcionado a sua grandeza, tomei atrevimen-
to para lhe queimar este alecrim edefumadouros de
villa , por ser bem certo que os não receberá era
menos valia c preço que o muito estimado incenso
de Arábia : e também não sei como se me foi me-
tendo em cabeça que Vossa .\líeza no tempo passa-
do favoreceu algumas obras pequenas, que sahirara
de minha mão , |)elo qual não somente se contenta-
ram os homens de lhe comerem a carne , e rocrera
os ossos , mas ainda de lhe tirarem os tutanos.
E por tanto ser-me-ha necessário , ó bemaventu-
rado rei , que , ou Vossa Alteza não queira ouvir
juizos contra osta obra de pessoas, que sem nenhum
respeito reprehendem o que não entendem . e con-
dcmnam o que cm verdade não sabem , o que sem
nenhuma duvida em presença das partes não fariam:
ou me dè licença para lha dedicar; porque então
quem haverá no mimdo tão ousado, que sabendo ser
Vossa .\lteza o defensor, não fique espantado. Eque
freio pude haver, se este não. contra os maldizen-
tes e roedores , os quaes haverão por premio incor-
rerem na infâmia daquelles que combatem com os
mortos, com tanto que com seus sophismas e malí-
cias possam aniquilar meu trabalho e escurecer mi-
nha empreza. Porque como neste Roteiro vão escri-
plas muitas cousas , que parecem estranhas e im-
possíveis, as quaes escrevi medrosamente, não por-
que delias não fosse mui cerlílicado , mas por re-
ceio que tive de sahír da opinião commum , vendo
de uma parte que escrevendo-as poria espanto nos
que as lessem, e d'oulra (jue dissimulando-as ca-
hiria eni culpa e negligencia : terão ousadia para
me responderem, emais sabendo quão mal se guar-
da justiça aos absenfes.
Já me contentaria de ser julgado por juizes sus-
peitos , com tanto que fossem ofiiciaes desta arte e
ollicío domar; mas receio que aconteça nisto o que
ordinariamente vemos por experiência, que na scien-
cia de que os homens menos sabem , e na arte em
que são menos exercitados, naquellas querem pra-
ticar mais soltos, e mostrarem que são sullicientcs
mestres.
Apelles não somente solTrcu que umçapateiro li;e
taxasse um não sei que . que faltava a um çapalo .
que logo emendou; raas tomando o rapateiro a Mr
a pintura . soberbo do juízo que tinha feito , que-
rendo re[irelicnder falta na [lerna da imagem, sahiu
Apelles a elle, dizendo-lhe , não eon>em a çapntoi-
ro julgar de outra cousa que não são çapatos. Este
mesmo .\pelk'S teve ousadia de dizer ao grande .\lr-
xandre . que vinha muitas vezes folgar á sua oDici-
na , onde trabalhava, [querendo aporfiar com elle
em cousas da pintura! qxic se calasse , que os me-
112
O PANORAMA.
fl
niiios que estavam moendo as tintas se ririam delle.
E por(|iie neste tempo mais azinha se aeiíaruo mui-
tos Apelies , no primor c artificio da arte , que um
só na liberdade e franqueza de fallar e responder:
que devo cu fazer , senão pedir soccorro a Vossa
Alteza , e Vossa Alteza que menos pôde fazer que
tocar-me com uma sombra c mostra de seu favor.
Quem ha no mundo, que possa fazer uma sobeja
benevolência, sencão elle? Pedi-la cu é muito, mas
dá-la Vossa Alteza é pouco, mormente Iodas as vc-
7es que lhe lembrar como tem conquistado as duas
Mauritanias ; como os seus estandartes despregados,
c por caminhos públicos, se foram assentar no cu-
me do monte atlântico; como os ardentes mares das
duas Ethiopias são lavrados e subjugados das suas
armadas ; como as praias do oriente estão submetli-
das e sujeitas a seu império ; como os moradores dos
famosos rios, Euphratcs, Indo e Ganges lhe são obe-
dientes o tributários ; como Taprobana , que os an-
tigos criam ser outro mundo novo, reconheifu seu
alto nome, e lhe paga páreas. Quem nesta niachina
e redondeza , onde o immenso Deus deu o império
aos mortaes, gozou de tão gloriosos triumphos? Lo-
go rasão será que derribado a seus pés me atreva a
lhe otTcrecer esta obra , da maneira que ura lavra-
dor appresentou ao grande rei Artaxcrxes um vaso
de agua clara , por não ter outra cousa cora que o
servir e lhe mostrar gazalhado. Porque na verdade
parece cousa formosa e justa , e somente digna de
grandes e poderosos príncipes, que aos dons c ser-
viços, que lhe fazem, seja posto o preço segundo a
possibilidade e animo daquelle que os apprcscnta ,
e não pela valia e reputarão cm que são tidos do
mundo. (Conduir-sc-ha.)
J.U. daC. Rkura.
SaOlTOlCIA ECI^!:SS^:IC!A•
Pr.EDiCADos d'im Friteiiio.
De lodos os methodos de conservação das frutas ,
o mais provado e o mais simples consiste em colo-
ca-las n'um quarto , ou sótão destinado a este lim ,
com as seguintes condições : — que o quarto ou só-
tão seja situado, se poder ser, voltado ao norte,
guarnecido em volta com prateleiras ou estantes de
madeira, dispostas com a separação conveniente de
fi a S polegadas , c defendidas na borda exterior
com gradiídias ou defcza de taboas de ferro quanto
baste para defender da queda as frutas ahi depos-
tas. Convém que o quarto seja vedado e defendido
com boas portas c janellas, de modo que não pene-
tre muito o ar , o qual alteraria a temperatura , e
produziria bolor e podridão. Convirá igualmente
que ahi não penetre a luz , c que as frutas estejam
em cama macia de palha, ou feno muito sècco, que
se deve mudar quando humedecer , até para ir ti-
rando os pòmos ou frutas (jue começarem a detc-
riorav-se , para não contaminar as outras.
■ ., . CiiUiciiii das frutas.
Deve cscolhcr-se tempo enxuto, que não seja nem
demasiado sècco, nem húmido , o haver cuidado
cm examinar não somente as espécies, mas lambem
a exposição , a fim de não colher senão os frutos
que tem chegado ao grau sulliciente de maturação
em todas as suas partes. Deverão ser despegados da
arvore ou á mão , ou com um muito simples e fá-
cil instrunieuto bem conhecido , cuciUc-fruit , para
com aquellcs a que se não pôde chegar. Todo o ca-
so consiste em evitar a macerarão ou picadura dos
frutos , que occasionaria a decomposição ou altera-
ção. Devem ser depostos e conduzidos ao fruteiro
com melindre , c arranjados segundo suas espécies
nas prateleiras d'antemão preparadas, lendo a pre-
caução de passa-las por um panuo de laã a fira de
enxuga-las da sua humidade natural. Todos os po-
mos ou frutos que a(iprescntarem qualquer princi-
pio d'alteração ou defeito essencial devem ser re-
gcitados. Dispostos assim , e ficando os mais ma-
duros nas prateleiras inferiores, convém cobri-los
com folhas de papel pardo , ou com tiras de Dane-
la, que defendendo os frutos das moscas e da poei-
ra , tem a propriedade de absorverem a humidade
que elles largam. Isão se deve entrar frequente-
mente no fruteiro , nem deixar penetrar corrente
d'ar : convirá entretanto visita-lo de tempos a tem-
pos para a extracção dos pomos locados.
Supplcmcnlo aos fruteiros.
Quando não ha posses ou commodidade para cons-
truir um fruteiro regular, ou quando a abundância
é tal que este não basta , podem guardar-se c con-
scrvar-se os frutos em talhas ou cm toneis pela ma-
neira seguinte : nu fim da talha ou barrica , que
melhor será se fòr nova e bem enxuta , se lança
uma camada de farelo bem sècco e o mais limpo
de farinha que ser possa ; sobre esta camada se ar-
ranja a primeira ordem da fruta que se quer guar-
dar , tendo o cuidado de colocar o pedúnculo das
maçaãs para baixo, e o das peras para cima ; sobre
estas se põe outra camada de farelo que as cubra ;
e assim ir alternando umas c outras até que se en-
cha a vasilha. Depois se tampão com boa cobertu-
ra c SC depositam era logar enxuto.
Os adoradores de Xaca.- — Estes formam uma das
Ires principaes seitas do Japão. Vivem era com-
mum como frades; levantam-se ao bater a meia
noule para cantarem dilíerenles hymnos ; reunem-se
todas as tardes para escutar o discurso, que o seu
superior lhes faz sobre algum objecto demorai, fin-
do o qual lhes distribuo vários pontos doutrinaes
para meditarem. Algumas vezes lhes representa um
homem nos últimos momentos da sua vida , e lhes
refere as exi>robrações com que, segundo a crença,
o corpo e a alma nestes derradeiros instantes reci-
procamente se debcllão. — A meditação dura uma
hora ; quando esta acaba , cada um dá conta ao
superior dos pensamentos que o seu espirito conce-
beu , e das deliberações que tomara.
Estadística relif/iosii na, Áustria. — Segundo uma
csladistica recente da Áustria c dos paizes que del-
ia dependem , comprehendidos os estados que pos-
suo na Itália, numeram-sc neste império 2o:500:()00
catholicos, 3:500:000 que seguem a igreja grega,
2:i)00:()00 da igreja não-unitaria, l:-2(;0:000 luthe-
ranos , á::ií-0:000 da igreja protestante reformada,
ío:000 socinianos , e (i00:0O(l judeus. — O numero
de casas religiosas de homens ascende a 7fit> com
10:854 pessoas, sendo 27 ordens religiosas. Os con-
frades das Mercês possuem 3í casas com 542 pen-
sionistas, os bencdictinos 37 casas com 1:0!(3 pen-
sionistas , e os capuchos 98 casas com 1298 pen-
sionistas. Ha 137 conventos contendo 3:6Gl rau-
llieres. , ' ■
•11
68
o PANORA3IA.
ii;j
o MONUM£SiTO S£ QUI:NTA F£IB.A SANTA EM SEVII.HA.
ScMPTcosAS e graves são geralmente na Península
as solemnidades religiosas, sobre tudo as mui au-
gustas conj q,ie a Igreja catholica celebra a Sema-
na, santa por excellencia. Era a nobre e antiga Se-
vilha se fazem com excessiva pompa; mas o que
nessa cidade , e por esse tempo , mais captiva a at-
tenrão dos estrangeiros é o deposito , erecto na sé ,
c destinado unicamente para encerrar o Senhor em
Quinta feira Jlaior ; cbaraam-lhe vulgarmente «o mo-
numento» e é famoso cm toda a Hespanha , corres-
pondendo á magnificência e grandioso apparato cura
que o cabido celebrava as cerenionias desta sema-
na-— Levanta-se debaixo de uma das abobadas do
cruzeiro entre o espaço, dito cbarola , c a porta
grande , sobre o local da sepultura de litterato D.
Fernando Cólon. Delineou esta obra magnifica o
mestre António Florcnlim , e dando-lhe principio
em 1547 a concluiu em 1534: constava então de
três corpos, rematando com a cruz : as estatuas fo-
ram lavradas pelos mclhofcs esculptores que nessa
Abril lo— 18i3.
epocha tinham nome: depois lhe accrescentaram <?
quarto corpo ; e tem sido restaurado por vezes no
tocante a ornatos. É construído de madeira c estu-
ques , formando um composto de bella architectura
com quatro frentes livres. O primeiro corpo contem
16 coluranas dóricas, grupadas ás quatro e apprc-
scntando duas em cada frente , sustentando o euta-
blamento geral : tem dentro outro menor , constan-
do de coluninas pequenas que recebem uma cúpula
á maneira de baldaqulno ; ahi se colloca a famosa
custodia de Juan d'Arfe, cora uma urna de ouro,
que encerra a Sograda Forma ; sobe-se a clle por
um lauro de degraus. O segundo corpo é da ordem
jónica , com 8 columnas , e no centro quatro e pos-
ta no meio a imagem do Salvador : sobre oito pe-
dcstaes , onde se lêem inscrlpções latinas , levan-
tam-se as estatuas, de obra de li palmos, que fi-
guram .ibrahão , Melchlsedech , .Moysés e Aarão ,
e as allegoricas da Vida eterna . da Natureza hu-
mana , da Lei antiga , e da Lei da Graça : nos in-
2.' Sekie. — YoL. 11.
11 i
o PANORAiMA.
!
Icrvallús dos pedcstacs corre a balaustrada. A Icr-
rcira' divisão só tem 8 columnas corintliias ; collo-
cadõ no centro o Seniior preso á columna : r cireura-
dadi) pelas íis;uras de S. Pedro , Salomão , a raiiilia
Sabii , o sacerdote do conselho , o sayão da bofeta-
da, o soldado que jogou a túnica inconsutil, Abra-
l>ão c Isaac. Coroam este terceiro corpo pyramidcs
com globos dourados. — A quarta divisão, o sup-
plcmento moderno , na verdade apoucado , ó da or-
dem compósita ; nem guarda proporções com os de-
mais, nem com o lodo da obra; tem a forma cir-
cular, e sobre a cúpula, que sustentam pilastras ,
está arvorado o Santo Crucifixo. — A altura total
do mimumenlo é de 120 pés castelh. ,•) o o seu diâ-
metro na base é de 80. • — Em tempos antigos illu-
iiiinava-sc com grande esplendor e profusão , para
o (]ue , segundo o testemunho dó um escriptor do
sccnlo !(!." , se gastavam só em velas e tochas três
mil libras de cera , alem de I2S lam|)adas de pra-
ta que estavam accesas.
Cbristianismo — Philosopuía .
A EXISTÊNCIA de uma doutrina moral contém neces-
sariamente cm si a existência de muitos factos : as
acções dos homens são as substituições das fórmu-
las, por assim dizer, algébricas, chamadas ou cren-
ças religiosas ou theorias de ollicios e deveres. To-
da a importância de qualquer sciencia de applica-
ção deriva-se não tanto delia como dos seus resul-
tados práticos , e é por elles que devemos avalia-la.
A sciencia dos actos humanos pertence a esta ca-
thegoria.
Ouando a moral se firma uas revelações buscadas
no céu (lenomina-se religião : quando nas inspira-
ções espontâneas da consciência denomina-se lei na-
tural ; quando no estudo das relações sociaes , e
nas consequências lógicas do grande princípio hu-
mano chamado sociabilidade , deuomina-se philo-
sophia. Estas ires espécies de normas d'acções cou-
duzem forçosamente a resultados diflcrcntes, porque
as íuas condições são- diversas.
Philosophia — consciência — religião: três fontes
do bem obrar; do tudo quanto ha grande, bello, c
generoso no desterro da vida. Qual delias é mais
pura c caudal?
A religião: porque a religião não lluclua nos seus
preceitos, acceita o homem como um typo de misé-
ria e da grandeza , como corpo e como espirito , c
exige de nós a moralidade em nomo de uma causa
linal- — a vida das recompensas.
Ligados com especulações ontológicas , com dou-
trinas mctaphysicas , vacillantes , contestáveis , e
perpetuamente contestadas , os princípios moraes
das escholas philosophicas tem seguido de perto ,
arrastados por ellas, todos os desvarios dessas dou-
trinas até o nosso tempo. ;. Quem nos diz que as de
hoje lião serão regcitadas como erros, ou , mais ri-
gorosamente , quem nos diz onde está a rasão , c a
verdade no meio do combale, que ainda dura entre
as diversas parcialidades, nesta proviíicia do mundo
iijlellecinal ? Quem nos diz que a nossa sciencia não
será matéria de riso jiara a geração que ha-dc suc-
ceder-nos? I
A historia da philosophia (■ a historia de um edi-
fício começado ha milhares d'annos, em que um sé-
culo revolve os fundamentos que outro lançou , pa-
ra lançjr os seus, os quaes igualmente são rcvolvi-
(•) 152 palmus iiortugT: o iliiimclro 101 -*. ditos.
dos pelo scculo seguinte , cujos trabalhos condem-
iiará o que vier apoz elle.
Desde a moral de Platão deduzida do amor da
formosura divina ; desde a moral de Epicuro , mo-
ral negativa, que põe o profundo despreso da huma-
nidade como pedra angular do proceder humano :
desde as escholas da Grécia até o materialismo gros-
seiro dos eneyclopedistas , que máxima, que regra
de acções deixou de ler altares, deixou de ser con-
demnada ? .Nenhuma.
Constância, perpetuidade, só a teem os preceitos
iminulaveis das crenças religiosas.
Substitui, porem, o individuo á eschola : substi-
tui a inspiração da consciência aos raciocínios do
entendimento, mais incompleto , mais vacillante e
mais estéril será ainda o sentimento moral.
De que dependem os aflectos do coração? Da ín-
dole c engenho do homem , da sua educação , há-
bitos , propensões, e até da sua physíologia. Mais:
a doença ou a saúde , a felicidade ou o infortúnio ,
fazem variar o seu modo de sentir em relação aos
seus similhantes. Os instiiictos da consciência só
podem por isso produzir a anarchia moral , a con-
tradicção dos actos humanos.
A virtude sem fé não tem verbo que a explique ;
é uma linguagem escripta com caracteres hierogly-
phicos , que se vêem sem se compreheuderem , e
em que os eruditos só encontram matéria de discus-
são e de conjecturas.
Estas considerações rápidas e abstractas tornam-se
mais evidentes, applícando-as ás doutrinas especiaes,
e a um aspecto único destas. Deixemos de parte a
fonte moral da consciência, que ora derrama o mel,
ora o absinthio ; ora verte o bálsamo das consola-
ções , ora é árida como o rochedo tostado de serra-
nia núa e erma , o que será sempre na terra um
acas), ou um mysterio. Chamemos á prova a phi-
losophia do nosso tempo c a religião do nosso paiz:
estabeleçamos a comparação entre cilas no mais gra-
ve c importante dos seus resultados — a beneficcn-
cia.
D"onde viemos nós os que ora vivemos? — qual
é a nossa filiação intelleclual e moral? A geração
presente veio de uma geração argumentadora e in-
crédula ; a nossa epocha veio de uma epocha em
que o orgulho dos homens chamou a crença divina
de dezoito séculos ao tribunal humano de uma dia-
léctica implacável: nascemos no meio das blasphe-
mias e alaridos dos inimigos do Evangelho : assisti-
mos ainda aos últimos dias do julgamento : ainda
ouvimos coudemnar a doutrina de Jesus porque era
indigna da grandeza de Deus , e porque não era
athcistica ; porque era severa , e porque era indul-
gente ; porque era copiada de crenças antigas , se-
guidas largos annos por milhares d'homens , e por-
que era impossível segui-la ; porque era perturba-
dora dos estados, e porque era umelcmenlo de ser-
vidão. Aflerido pelas oiiiniões mais oppostas , c no
fim regcitado por contrario a todas ellas , vimos o
cbristianismo expulso do templo da philosophia , e
a cruz dcsterraila como iim symbolo inútil. As es-
cholas dos sophistas que não podiam couvir entre si
110 mínimo ponto de doutrina, concordaram todavia
n'um "csullndo : foi este, que a religião, clara, de-
finida , acceita pelas mais profundas e vastas intel-
lígeiícias que o mundo proiluzíra em perto de dois
mil annos , origem de innumeraveis acções nobres ,
formosas e sublimes , causa principal e quasí úni-
ca de todo o progresso das sociedades modernas ,
era absurdo c mentira , era um mal intolerável , ç
o PA]\ORA3IA.
llli
que no rahos monstruoso , canibianle , incerto das
doutrinas contradiclorias dos sopliislas, que nem
um só bem haviam trazido á terra, nem encluif;ado
uma lagrymn , nem gerado uma consolarão , nem
inspirado um só feito generoso e forte, eslava a ver-
dade , a evidencia , a felicidade , e o fundamento
seguro do crer e do obrar humano.
Era demasiado demente e ridícula esta pcrlenção
dos sophistas. para que a epocha actual lhe não vol-
tasse as costas com ledio edesprèso. Mas a cruz ja-
zia por terra, coberta de lodo espadanado contra el-
la por insensatos : o seu antigo prestigio estava des-
truido , e os homens passaram muito tempo por ci-
la, sem que houvesse uma intelligcncia robusta que
ousasse ajoelhar na encrusilhada , e abraçar-so com
o symliolo da redcmpção. Os primeiros que o tenta-
ram tinham por certo grande coração ; porque ocou-
trastar o escarneo das turbas é a mais subida pro-
va de esforço. A energia destas almas leve a sua re-
compensa — a consciência de haverem contribuído
poderosamente para a restauração moral da socie-
dade — e se o christianismo não Iriumphou ainda
completamenlc das preoccupações vergonhosas do
século passado , não se carece de grande perspicá-
cia para antever que não tarda o dia em que a Eu-
pa seja outra vez verdadeiramente christaã.
O espiritualismo c hoje sem contradicção o aspe-
cto caraclerislico da philosophia , como o da escho-
Ja, ou antes cscholas dos encyclopedistas fora o ma-
terialismo : estes dois systemas , ambos cllcs orgu-
lhosos por diverso modo , e por diverso modo in-
completos, ahi estão frente a frente, ahi luctam de-
sesperados , até que um seja esmagado pelo outio ,
sorte que , segundo parece , está reservada ao mais
velho — o da pura animalidade dos encyclopedistas.
Todos os homens , cujo espirito c mais ou menos
cultivado, seguem ou por inllucncia da auctoridade
alheia , ou por meditação própria, uma dessas dou-
trinas : ambas ellas actuam portanto no caracter mo-
ral das classes elevadas : quanto ás inferiores cus-
ta-nos a dizer que um sensualismo brutal predomi-
na nos seus hábitos e instinctos; que o materialis-
mo, pouco a pouco expulso do meio daquellcs, que
primeiro recebem as inspirações de uma civilisacão
progressiva, vai aninhar-se nas tabernas, nos prosti-
IjuIos , e o que muito é de sentir nas choupanas col-
madas. Em mais d'uma , quando a desventura se
assenta ao pobre lar do camponez , este , que d'au-
tes se abrigava na resignação, no orar, no derra-
mar lagrymas aos pés da cruz , procura agora o es-
quecimento na embriaguez , o remédio da miséria
no roubo , e até a salvação no suicídio. A incredu-
lidade , ameaçada de desterro nas regiões onde por
mais de cíncoenta annos imperara como rainha, faz-
se fabril e bucólica : senhoril c disputadora ninda
ha pouco, torna-se rude, bestial, e grosseira. Quan-
tas vezes temos ouvido sahir de humilde alvergne
os sons terríveis de profundo descrer 1 — quantas
vezes temos respirado o bafo mortal da blasphemia
sahido de habitações , onde a única excepção ás ex-
tremas misérias da existência fora a esperança 1 A
causa deste aíilictivo espectáculo buscai-a na histo-
ria dos desvarios dos últimos oitenta annos : os ho-
mens que podiam remediar tanto mal ; aquellcs que
na significação mais extensa da palavra , presidem
aos destinos populares , são filhos intellectuaes , são
discípulos da Encyclopedia. Todos os meios mais
santos , mais suaves , e productivos da felicidade
publica — os religiosos, teem sido condemnados no
lespirito superficial desses bomen» como perigosos e
ineíTicazes , e o christianismo, o grande cívilisador
dos tempos modernos — considerado como um ins-
trumento quebrado e inútil. Assim o povo abando-
nado a si mesmo , quasi sem culto, c sem pastores,
vai perdendo diariamente a sua riqueza moral , a
herança de crença e doutrina que lhe haviam lega-
do seus pais. A religião, cujo primeiro alvor come-
ça de novo a despontar no oriente do nosso íntimo
viver , tão descorado c triste , apenas se entreve no
liorisonte das alturas espiritualistas ; são . porem ,
(jrofundas as trevas uos valles e nas planícies ras-
teiras , onde pousam as névoas mephytícas de um
sensualismo hediondo.
Tal é o estado moral da sociedade : duas philoso-
phias contrárias, que pelejam mais um desses com-
bates travados entre ellas diariamente desde milha-
res d'annos : as almas nobres lidando cm silencio
para despertarem do somno estúpido do sccplicismo ;
e o povo dançando tristemente feroz sobre asruinas
do altar e da cruz. Vejamos como esses trcs elemen-
tos— as duas doutrinas rivaes, e a bruta indilTcrença
da ignorância se traduzem na vida : procuremos o seu
valor na applicação — n'um facto — e comparemos
este com o facto análogo como o produzia d'antes ,
como o produzira ainda hoje , se fosse dominadora
entre os homens, a moral divina do Calvário. Aca-
reemos o amor dos homens em Deus — a charidade
— com o amor dos homens pelas doutrinas das es-
cholas, não das que ensinam a dureza de coração e
o egoísmo, mas das mesmas que ensinam essa com-
paixão e humanidade, a que se chama pbilantropia.
Vede aquelle edilicio : as janellas estão abertas:
os espelhos das paredes , os feixos dourados dos
umhraes e portas , os adereços de pedras preciosas
que adornam as mulheres , custosamente trajadas ,
refrangem multiplicados os raios de luz derramados
dos lustres esplcndcntes : ouvcm-se lá dentro as toa-
das harmoniosas dos instrumentos, e vozes humanas
que modulam cantos voluptuarios : vè-se d'ahi a
pouco o turbilhão das danças passar cercado de um
ambiente de perfumes, que derramam as essências e
as Qores variegadas : os mais delicados manjares .
as bebidas mais deliciosas gyrara no meio daquella
turba que se agita como possuída de loucura fe-
bril : o deleite pinta-se cm todos os rostos , porque
a um tempo ahi o aspiram lodos os sentidos; — as-
pira-o , até , a imaginação , porque muitas vezes la
desabrocha a primeira esperança da corrupção e do
adultério ; lá , nessa atmosphcra impregnada de se-
ducções , de sensualidades , de delírio , as paixões
mais ignóbeis refervem e trasbordam despeadas' ,
porque a poesia de que ahi se reveste a vida mate-
rial e externa láz esquecer ainda as almas mais ge-
nerosas e fortes os contentamentos da vida intima ;
lá , emfim , a própria virtude troca seus brios em
languidez , e deíxa-sc morrer, como o viajante que
debaixo da sombra atraiçoada da mancenilha sente
coar-lhe a morte nas veias , e mal cuida que esse
adormecer suave que o consola seja um somno per-
petuo.
Esta sala esplendida é uma eschola de perdição,
instituída iior homens corruptos no meio da socie-
dade que locou a meta da decadência e do desca-
ro ? É Koma serva que se alevanta do seu pó e re-
nova entre nós os serões vertiginosos de Trimal-
cião? Nada disso. Sc quereis a explicação deste es-
pectáculo , o programraa deste ardente festim , eii-
trac em est 'outro edilicio, onde a custo vedes atra-
vez dos baços vidros de breve janella frouxo luzir
de lâmpada , semelhante a eslrella longinqu.i , vis-
116
O PANORAMA.
ta alravez de ar chuvoso por fenda rasgada em céu
negro. È ura convcntinho onde ha annos callaram
as orações monásticas. Entrac. O dormitório está
em silencio ; a lâmpada , cujo bruxulear enxergas-
tes de longe , pende do tecto no cruzar dos corre-
dores : esses quartos ou cellas estão povoados de
infelizes, que recuando ante o aspecto da fome vie-
ram acolhcr-se á morada destinada para aciuelle
que não adiou quinhão no banquete da vida. Este
logar melanchnlico e pobre é um asylo de mendi-
cidade ; aqucUoulro, alegre e esplendido, uma sa-
la de baile. A ebriedade do festim nocturno produ-
zirá um bem ; alimentará estes velhos e inválidos ;
foi essa a condição do deleite: as paixões — talvez
os vicios — fazem-se humanas, e civilisam-se. É
um progresso real ; e este progresso — sejamos jus-
tos— deve-se á illustração e á philanlropia. Elias
leera sabido fazer que propensões e alTectos cul-
))ados e menos nobres combatam contra outros ain-
da mais vergonhosos c destruidores ; e desses com-
bates tem sabido babilmcnle tirar vantagens pa-
ra o bom e honesto. Assim na grande inimoralida-
de das loterias existe pela cubica uma contribuição
espontânea para a infância abandonada ; assim n
avareza mata , nas caixas económicas , o jogo , a
embriaguez , a gula : assim a grande piostituição
dos theatros chega a ser digna de perdão quando o
preço d'indecencias vai fazer subsistir os institu-
tos de educação infantil. Agradeçamos tudo isto á
orgulhosa intclligencia humana : são estes os mais
brilhantes resultados do seu progredir, e, sincera-
mente o dizemos, se mais não tem feito, éque nun-
ca ella poderá ir mais longe do que a espalhar be-
neficios matcriaes. D'ahi avante só a religião acha
senda para caminhar. A generalisação é o caracter
das doutrinas da eschola. Estas quando ensinam o
beneficio, attendem a uma abstracção — ao homem,
não aos indivíduos. O amor ]iiedoso dos nossos si-
milhautcs chama-sc por isso philanlropia ; o chris-
tianismo chamava-lhe caridade. A caridade vinha
«lo coração; a philanlropia nasce do entendimento.
Hoje os corações eslão mortos porque a crença pas-
sou : vive a intelligcncia porque a excita e cultiva
uma civilisação vigorosa.
O christianismo entendia de bem diverso modo o
amor da humanidade , porque entre este amor e o
genero-humano estava a idéa de Deus. A caridade
era alTectuosa , modesta e espiritual , em quanto a
philanlropia é dura, ostentosa e grosseira. Entre
um coulro systema de bemfazcr ha a distancia que
vai da philosupiíia do céu á philosu(ihia terrena. O
christianismo sabia que no homem havia espirito c
corpo. O christão sabia doer-se de um e d ' outro :
a sua caridade não era materialista.
Oue vale a vossa virtude , filha da civilisação ,
comparada á que se estribava na fé? Que lucrou o
mundo emtrcjcar a humildade sublime dosque bus-
cavam por Ioda a parte amarguras da alma para
consolar, dores phjsicas para mitigar, pela sober-
ba fastosa daquellcs para quem é preciso velar a
lioa obra com a máscara atlractiva das paixões ou
do deleite? A vossa beneficência esquece completa-
mente ávida interior; cera a esta(|ue a beneficên-
cia religiosa dedicava os seus mais ricos thesouros,
a sua mais alTectuosa compaixão. Vós, que se vos
dá das agonias do espirito?
JNcssa morada, triste, pobre, silenciosa, e esque-
cida, reverso negro doípiadro brilhante de um bai-
le; nessa mesma habitação do mendigo, que é to-
davia uma das justituiçues mais formosas v puras
dos nossos dias, iremos buscar um exemplo. Vereis
que a philantropia não suppre a caridade , ou para
melhor dizer que a civilisação não suppre o chri-s-
lianisrao.
Sobre uma das duras enxergas , infileiradas pe-
las paredes desses aposentos desadornados , dorme
um velho cego , cujo rosto vos encobre a escacez
da luz qucallumia o dormitório. Interrompem-lhe a
espaços o respirar sereno esses gemidos, que ainda
em sonhos a dor moral sabe arrancar das profunde-
zas do coração , sem que os lábios se descerrem.
Que importa isso á philanlropia ? Ella deu-lhe pão
e uma enxerga. Que importa as chagas avenenadas
que lhe lavram lá dentro? — Deu-se-lhe um tecto
que o resguarde das injurias do tempo. É o que
basta : o cancro inlerior não se vè.
E todavia se indagardes, a historia do cego men-
digo achareis que havia ahi alguma infelicidade
mais profunda c tremenda , a que fcJra necessário
applicar , não os soccorros materiaes , mas o bálsa-
mo das consolações. Era um homem honesto , a
quem a cegueira fez pobre. Duas filhas o alimenta-
vam do produclo do seu trabalho : faltou-lhes este
um dia — uma semana — um mez — ; e a miséria da
familia desventurada chegou a extremidade horrí-
vel. Enlão a devassidão veio em nome da fome ba-
ter á porta das que até aquelle momento haviam si-
do puras, e ellas a seguiram ao proslibnlo. .\s duas
arvores frondosas nascidas da raiz do cedro carco-
mido, e que lhe encobriam a decrepidez cora a sua
verdura, foram cerceadas, e o sol ardente acabou
de mirrar o cedro moribundo. Aquclla alma dera
em terra nos trances de dilatado morrer. A philan-
tropia passou por lá — e encontrando-o no charco
da rua, afastou-o com o pé para o receptáculo caia-
do deste género de misérias , e depois foi bailar
nos suas salas douradas, para que o velho mendigo
tivesse um bocado de pão negro |)ara temperar com
lagrymas , e um pedaço de saial grosseiro para se
cobrir. Era só disto ; — era principalmente disto
que elle carecia?
Não, mil vezes não! — Mas a civilisação fez o
que pode. Seria loucura exigir impossíveis da phi-
lanlropia.
O que, porem, fora para ella impraticável, fa-lo-
hia sem custo a caridade do christianismo.
A beneficência , inspirada pela religião , não tem
essa triste faculdade de generalisar que para a be-
neficência philanlropica se converteu n'um princí-
pio. Os seus preceitos são universacs e rigorosos ein
si , mas na applicação tornam-se individuaos e va-
riados. A caridade cluislã teria cruzado talvez o
limiar daquella familia mesquinha, antes que a de-
vassidão houvesse chegado lá , guiada pela mão da
fome : teria sido para ella a provideucia. Mas quan-
do houvesse vindo tarde para impedir o mal , con-
tcnlar-se-hia de atirar ao infeliz e abandonado cego
ura pedaço de pão negro? Oh por certo que não!
Teria escutado os gemidos daquella alma atribula-
da : teria fallado ao desditoso de Deus e da espe-
rança : teria chorado com elle. Faria mais: procu-
raria arrancar á devassidão as suas viclimas : al-
cança-lo-hia talvez , e reconstruiria pelo arrependi-
mento a felicidade de uma familia ; por(iue só o
mundo, que se crc mais perfeito (]ue o céu , é ine-
xorável para com aquelle que uma vez errou : a fé,
essa tem perdão c esquecimenlo para o que se con-
verteu. Fora tudo isto o que fizera a beneficência
christã, c não arrojar o coração despedaçado do ve-
lho para um thoatro Uu juiscrias , onde muitas vc-
o PANORAMA.
117
2CS se misturam com ellas a cólera , os tícíos e a
desesperação.
O defeito capital de bcneCcencia, que não se es-
triba no christiauismo , c o esquecimento completo
dos alTectos humanos : é por isso que despedaça in-
rtiflerente os santos afTectos de família , para disse-
minar os indivíduos na realidade da vida pelos re-
parliraenlos e casas dos quadros estatísticos da mi-
séria publica. A paternidade, o amor filial c ma-
terno, as saudades do lar domestico, isso não com-
prebende ella : para tudo e para lodos tem asylos
e soccorros , nieuos para a mais importante entida-
de moral , para a sociedade que é origem de todas
as outras, para a família.
A beneficência (fhoje conhece apenas a sede, a
fome , a nudez : a nossa beneficência c essencial-
mente incompleta . porque é materialista.
Condemnàmos nós a sua existência? Sem duvida
não ! Abençoámos , ao contrario , os homens que
supprem, como um pensamento mundano pude sup-
prir, o sublime pensamento chrislão. Mas seja-nos
Jicilo deplorar que o orgulho da sabedoria terrena
acreditasse que em si linha recursos que lortiassem
inútil a eterna c insondável sabedoria do evange-
lho : seja-nos licito saudar a aurora desse dia que
já rompe no horisoule , em que a cruz triumphaule
se hasteará de novo sobre o mundo , para abrigar e
consolar oulra vez com a sua sombra divina todo o
género de desventuras.
(A. Herculano.)
EiTBACTO DO CAP. 1.° DO St.' EvANGELHO ,
SEGUNDO S. João (1).
«João (2) delle testificou e clamou dizendo: Este
era aquelle de quem eu dizia ; o que vem apoz mim
é antes de mim , porque era primeiro que eu.
E de sua plenidão recebemos todos lambem gra-
ça por graça.
Porque a lei foi daiia por Moysés ; a graça , e a
Terdade foi feita por Jesu-Chrísto.
A Deus nunca ninguém o viu : o Unigénito Filho,
que está no regaço do Pae , elle no-lo declarou.
E este é o testemunho de João, quando os judeus
mandaram alguns sacerdotes e levitas de Jerusalém,
que lhe perguntassem : Tu quem és?
E confessou e não negou ; c confessou : Eu não
iou o Christo.
E pierguntaram-lhe : Quem pois? És tu Elias? e
disse: Não sou. — És tu propheta ? c respondeu :
>'ão.
I)isseram-lhe pois: Quem és? Para quedemos
resposta aos que nos enviaram : que dizes de ti
Bjesmo?
Disse: Eu sou a voz do que clama no deserto;
endereçai o caminho do Senhor ; como disse o pro-
pheta Isaías.
E os enviados eram dos phariseus.
E perguntaram-lhe e disseram-lhe : Porque pois
baptisas , se tu não és o Christo , nem Elias , nem
propheta ?
João lhes respondeu , dizendo : Eu bapliso com
agua : mas em meio de vósoutros está a quem vós-
outros Dão conheceis.
Este é aquclie que vem apoz mim . o qual já foi
antes de mim, do qual cn não sou digno de lhe de-
satar a correa da al|)arca.
Estas cousas aconteceram em Belhabara , da ou-
tra banda do Jordão, onde João estava baptisando.
O seguinte dia, viu João a Jesus vir a ellc , e
disse :
(1) Seiuimns aqui a versão de João Ferreira d'Almei-
da , mais anliía e muilo menos conhecida que as dosPP.^s
Pereira e Sarmento.
(2) O Baptist» faltando do R«d«niptor.
Vedes aqui o Cordeiro de Deus, que tira o pecca-
do do mundo.
Este c aquelle , do qual eu disse : Apoz mim
vem um Varão , que já foi antes de mim ; porque
já era primeiro que eu. — Et reliqna.
A Meditação no Pkomo>'tobio. :•
[Fragmentos de um Urro inédito.)
I.
EitA por uma destas noites vagarosas do inverno ,
em que o brilho de um céu sem lua é vivo e tre-
mulo ; em que o gemer da selva é profundo e tris-
te ; em que a soledade das praias c ribas fragosas é
absoluta e tétrica.
Era a hora em que o homem está recolhido nas
suas mesquinhas moradas; em que pelos cemitérios
o orvalho se pendura do topo das cruzes, e sósinho
goteja das bordas das campas : porque a saudade
da viuva c do orpham , a desesperação da amante,
o coração despedaçado do amigo tinham tido pavor
das larvas da imaginação , e das iniluencias morbi-
ficas do rocio nocturno' Para se consolarem, os in-
felizes dormiam tranquíllos em seus leitos macios I ...
em quanto os vermes do sepulchro roiam o cadáver
do exlincto , amarrado á sua cama de mármore pe-
lo grilhão da morte chumbado nos seios da pedra.
Hypocritas dos affectos humanos , o somno enchu-
gou-vos as lagrymas !
E depois , as lousas eram já tão frias '. Debaixo
de um torrão húmido o sudário do cadáver tinha
apodrecido com ellc.
Haverá paz no tumulo? Deus o sabe. Para o que
ahi repousa sei eu que ha na terra o esquecimento '.
Os mares pareciam naquella horarccordar-se aiu-
118
O PANORAMA.
dá do rugido harmonioso do estio, e a vaga arquea-
va-se, rolava, e esprcguirando-se pela praia, reOe-
Ctia a espaços nas golfadas d'escuma a luz indeci-
sa dos céus '.
E o auimal que ri c chora , o rei da creacão , a
imagem da divindade, onde é que se esconderá?
Tremia de frio em aposento cerrado , c sentia
confrangido a brisa fresca do norte , que passava
nas trevas , c sibilava contente nas çarças rasteiras
dos maninhos desertos.
Sem dúvida o homem é forte, e a mais excellen-
te obra da creacão 1 Gloria ao rei da natureza, que
tiritando geme.
Orgulho humano, qual és tu mais? — feroz, bes-
tial ou ridículo?
Era, pois, n'uma destas noites em
que a terra, envolta no seu manto d'cscuridade, se
povoa de terrores incertos ; em que o sussurro do
pinhal c como um coro de finados , o despenho da
torrente como um ameaçar d'assassinos , o grito da
ave nocturna como uma blasphemia do que não crè
cm Deus.
Nessa noite fria e húmida , arrastado por agonia
íntima , vagava eu ás horas mortas pelos alcantis
escalvados das ribas do mar , e enxergava ao longe
o vulto negro das aguas balouçando-se no abysmo
que o Senhor lhes deu para perpetua morada.
Por cima da minha cabeça passava o norte agudo.
F,n amo o sopro do vento , como o rugido do mar :
Porque o vento e o oceano são as duas únicas
expressões sublimes do verbo de Deus , cscriptas na
face da terra quando ainda ella se chamava o cabos.
Depois éque surgiu o homem c a podridão , a ar-
vore c o vérmo , a bonina e o cmmurchecer.
E o vento e o mar viram nascer o geuero-huma-
no , crescer a selva , florescer a primavera ; — c
passaram , e sorrirani-se.
K depois viram as gerações reclinadas nos cam-
pos do scpulchro ; as arvores derribadas no fundo
dos valles sèccas e carcomidas ; as llòres pendidas
c murchas pelos raios do sol do estio ; — c passa-
ram , e sorriram-se.
Que tinham elles, de feilo , com essas existên-
cias mais passageiras c incertas , que as corrente-
zas de um , e as ondas buliçosas do outro?
in. . .
o mundo actua! nunca poderá entender plenamen-
te o alfecío , que vibraudo-me dolorosamente as li-
bras do coração me arrastava para as solidões ma-
rinhas do promontório , quando os outros homens
nos povoados se apinhavam á roda do lar acceso ,
c lallavam das suas magoas infantis , o dos seus
contentamentos de um instante.
E que me imporia a mim isso? Virão algum dia
homens que coniprehendam a minha alma, e as pa-
lavras que ahi lhes ficam cscriptas.
Arraslava-nie para o ermo um sentimento ínti-
mo : o sentimento de haver acordado . vivo ainda ,
deste sonho febril chamado vida , e de que hoje
ninguém acorda senão depois de morrer.
Sabeis pois o que é c-Stc despertar de poeta?
K o ter entrado na existência com um coração
que trasborda d'amor sincero e puro ])or tudoquan-
tii o rodèa, e ajuntarem-se os homens, e lançarem-lhe
dentro do seu vaso d'innocencia lodo , fd', t peço-
nha , e dejiois rirem-se d'elle:
K o ter dado ás palavras virtude, amor pátrio,
e gloria uma significação profunda ; e depois de ha-
ver buscado por annos a realidade delias neste mun-
do , só encontrar ahi — hypocrisia , cgoismo , e in-
fâmia ;
E o perceber á custa de amarguras que o existir
é padecer, o pensar descrer, o experimentar des-
cnganar-sc , e a esperança nas cousas da terra nma
cruel mentira de vãos desejos, um fumo ténue, que
ondea em horisonte áquem do qual está assentada
a sepultura.
Este é o acordar do poeta. Depois disso, nosabys-
mos da sua alma só ha para mandar aos lábios nm
sorriso de despreso em resposta ás palavras menti-
das dos que o cercam, ou uma voz de maldição
desabridamente sincera para julgar as acções dos
homens.
É então que para elle ha unicamente uma vida
real — a íntima ; unicamente uma linguagem intel-
ligivel — a do bramido domar e do rugido das ven-
tanias ; unicamente uma convivência não travada de
perlidia — a da solidão.
-■ n. ■'
Tal era eu quando me assentei sobre as fragas:
e a rainha alma via passar diante de si esta geração
vaidosa e má , que se crè grande c forte , porque
sem horror derrama cm luctas civis o sangue de
seus irmãos.
E o meu espirito se atirava para as trevas do pas-
sado.
E o sopro rijo do norte me alíagava a fronte re-
qucimada pela amargura , c a memoria me conso-
lava das dissoluções presentes com a aspiração sua-
ve do formoso e enérgico viver d'outrora.
F, o meu meditar era profundo como o céu que
se arquca immovel sobre nossas cabeças ; como o
oceano , que , firmando-se em pé no seu leito in-
sondável , braceja pelas bahias e enseadas, tentan-
do esmigalhar e desfazer os continentes.
E cu pude enifim chorar.
Que fora a vida se nella não houvera lagrymas?
O Senhor estende o seu braço pesado de maldi-
ções sobre um povo criminoso : o pai que perdoara
mil vezes couverte-se em juiz terrível ; mas ainda
assim a Piedade não deixa de orar junto aos degraus
do seu throno.
Porque sua irman é a Esperança , e a esperança
nunca morre nos céus. De la ella desce ao seio dos
maus antes que sejam precitos :
E os desgraçados na sua miséria conservam sem-
pre olhos que saibam chorar.
A dór mais tremenda do espirito quebrantam-na
e cntorpecem-na as lagrymas.
O Sempiterno as creou quando nossa primeira
mãi nos converteu em réprobos : ellas servem , por-
ventura , ainda de algum refrigério lá nas trevas
exteriores , onde ha o ranger dos dentes.
Meu Deus, meu Deus! — líemdito seja o leu no-
UK- porque nos deste o chorar.
VI. :,
O disco esplendido do astro do dia começa a sur-
gir do meio dos mares, balouçando-se tremulo so-
bre o collear das ondas.
Eu não te amo, oh sol, que alagando com os
turbilhões dos teus raios esta terra condemnada, te
o PANORAMA.
119
assemelhas ao homem cruel que vai dar uma risa-
da junt() ao leito do moribundo.
K porque te havia de amar se tu és o inimigo dos
sonhos da imagiuaeão ; se tu nos chamas á realida-
de , c a realidade é Ião triste?
Pela escuridão da noite , nos legares ermos, c ;is
horas mortas do alto silencio . a phanlasia humana
é mais ardente e robusta.
É então que elladá movimento evida aos penhas-
cos , voz c entendimento ás selvas , que se mcneam
e gemem á mercê da brisa nocturna.
É então que ella collige as snas recordações ; une,
parte, transmuda as imagens das existências que viu
passar ante si ; o estampa nas sombras que a rodeani
um universo transitório, mas para ella real.
E é bello esse mnndo de phantasmas aéreos, (lor
entre cujos lábios descorados não transpira nem per-
júrio nem dobrez , e a cujos olhos sem brilho não
assoma o rellexo de ânimos prostituídos.
Ahi ha o repouso , a paz , e a esperança , que
desappareceram da terra ; porque o mundo das vi-
sões cria-o a mente pura do poeta : ella dá ser e
vulto ao que já é só ideal ; c o passado deixando
cahir o seu immenso sudário , ergue-se em pé , e
pondo-se ante o que medita, lhe brada — «aqui es-
tou eu 1 1)
E este o compara cora o presente , e rccíia d' in-
voluntário terror :
Porque o cadáver que se aíevanta do pó é formo-
so e santo: e o presente, que vive. e passa, e sor-
ri , é horrendo e maldito.
E o poeta atira-se chorando ao seio do cadáver ,
e diz-lhe — «escondc-me tu '. »
V. lá que esta alma . árida como a urze da char-
neca no estio, sente, quando ahi se abriga , refres-
ca-la um como orvalho do céu.
A ti , oh promontório escalvado , cuja fronte nua
varre a procella , c que te penduras sobre o abys-
mo mysterioso das vagas ; a ti é que eu hei-de amar
^«"^P^^'- (Ã. Herculano.)
RorEiso DE D. Joio de Casteo em 1338.
(Conclusão).
Do Prologo SC vè claramente que os fallados 0>»í-
mentnrios de D. João de Castro não são obra dif-
ferente dos seus Roteiros : e se corrige um logar
de Jacinto Freire fL." 1.° n.° 16] , quando aflirma
que D. João passou a primeira vez á índia roni
praça de soldado , sendo pejo contrario aqui mui
bem expresso que ia por capitão de uma náu ; o
que já estava advertido e emendado nas notas, com
que ura sábio académico , c preciarissimo prelado
enriqueceu a obra de Jacinto Freire na edição pu-
blicada pela Academia em lí^.3b.
O r.oteiro começa assim : — « sabbado seis dias
«do mez d'abril de ío3S nos fizemos á\e!Ia de i5cl-
« Icm ; o vento era de lodo calma, mas ajudando-nos
«a maré', e alguns baleis, que nos ião rebocando,
«fomos surgir entre S. Gião e Santa Catharina. » —
E acaba cora estas palavras: — «Quarta feira onze
«de setembro até horas de véspera foi o venio cal-
«ma, e dahi começou a viração muito bonança, e
«logo nos fizemos á vclla ; duas horas da noite sur-
agimos na barra de Goa , mais por a bondade de
«Nosso Senhor, que por nossos merecimentos, arte,
«e saber; onde se acabou a nossa viagem, e este
« livro. — Laus l)co. »
O quanto D. João de Castro sabia temperar a na-
tural scccura da narração de observações astronó-
micas , e das dcscripções cosmographicas com a
amenidade de uma escolhida erudição , já será pa-
tente aos que tiverem lido o Koleiro do Mar roxo ;
c receberá nova conlirmação do que acerca dos dons
archipelagos , das Canárias , e Cabo Verde , cscre-
\cu neste nosso Roteiro, e aqui pomos, por nos
parecer que não será leitura ingrata.
Descripçrw das ilhas das Canárias.
Chamámos Canárias a umas ilhas postas no mar
atlântico , em a altura de 26 graus até 28 graus :
correm-se as quatro delias mais chegadas a terra
lesnordeste c oessudoeste , c as três mais ao mar
jazem em triangulo. A mais próxima a terra apar-
tar-sc-ha do cabo de S. Vicenle , em outro tempo
chamado Sacro promontório , obra de 160 léguas ,
e esta se chama hoje Lançarote , e a mais do mar
dista do mesmo promontório por espaço de 2-40 lé-
guas , e por ilha do Ferro hoje este dia dos ma-
rcantes e peregrinos é conhecida. A estas ilhas an-
tigamente chamaram bemaventuradas, e morada dos
deuses , como parece em Ptolomeu , Plinio , Pom-
ponio Mclla , e outros gravíssimos auctorcs , mas
todos clles escreveram mui confusamente o sitio ,
confrontação , e altura delias. Esta foi a terra mais
Occidental, que chegou á noticia dos antigos, e
por ella lançou Ptolomeu o meridiano , a que cha-
ma cero , do que me parece que nasceu o engano
de alguns pilotos cuidarem que na paragem destas
ilhas não variam as agulhas cousa alguma. E pos-
toque seja cousa commum a todos serem estas ilhas
das Canárias as bemaventuradas , o meu parecer é
que Ptolomeu sentiu oulra cousa , e chamou bem-
aventuradas ás seis ilhas do Cabo ^'erde , que es-
tão mais orientaes de todas. A rasão disto c que
pôz seis ilhas bemaventuradas , que é o numero
destas , que viu , e na levação do polo guardou
muito a conformidade e semelhança, porque a mais
septenlrional de todas, a que chama Aprosyto,
põe em altura de 16 graus, na qual altura está a
ilha do Sal , e á mais austral das bemaventuradas
põe em dez graus, e chama-lhe Pinctuaria , que
per rasão da altura parece ser a ilha do Fogo, pos-
toque as alturas variem Ires graus; c assi mesmo
põe Ptolomeu estas ilhas bemaventuradas debaixo
de um meridiano , como jazem parte destas seis
ilhas do Cabo \erdc. E se esta não foi a tenção
de Ptolomeu , as suas taboas nesta parte vão de lo-
do o ponto fora de rasão , porque as Canárias , e
as ilhas, que elle chama fortunadas, se bem olhar-
mos o silio , altura, rota, e longura , de umas e
outras, veremos claro não poderem as bemaventu-
radas ser as que agora chamámos Canárias : e po-
rem de todas as outras escripturas dos cosmogra-
phos se pude facilmente tirar serem as Canárias as
ilhas bemaventuradas , e somente Ptolomeu se em-
baraçar no conhecimento delias. Estas ilhas das Ca-
nárias foram descobertas e conquistadas no tempo
d'elrei D. Fernando o quinto de Casteila
È cousa muito para notar que sendo es-
tas ilhas tão visinhas, os moradores de uma não ti-
nham conhecimento dos que viviam na outra. Os
canárcos viviam sem casas; mas em covas e chou-
panas passavam sua vida : adoravam um só deus ;
tinham linguagem, que elles só entendiam : por ar-
mas usavam uns paus agudos; é gente bellicosa e
solfredora de muito trabalho ; correm c saltam pe-
las montanhas e logares ásperos como a outra gen-
te o pôde fazer por terra chã ; e assi trepara por as
rochas , como cabras. Estas ilhas , postoque cada
120
O PANORAMA.
nnia dollas tenha nome próprio, todas em geral
são chamadas as Canárias , por rasão de em uma
delias nascerem grandes e poderosos cães, como se
parece em 1'Iinio , livro (>." de sua Cosmographia :
a terra destas ilhas é mui abastada de toda a sorte
de mantimentos e gados, os ares mui sãos, e gran-
demente temperados.
Bcscripçuo das ilhas do Cabo Verde.
O Cabo Verde , ao que posso comprehcndcr , c o
promontório, a que Plínio e I'omponio chamam Hes-
perionccras. Estas ilhas são as insulas Gorgonas ,
morada dasMcduseas, e o mar, que lava estas
terras , o golíão hesperio. A causa de isto assi ha-
ver de ser , são as palavras de Plinio [livro 6.°
cap. 31], que dizem desta maneira = deste pro-
montório se começa a fronlaria das terras a virar
.lo occidentc e mar atlântico , e direito delle estão
as ilhas Gorgonas , espaço de duas jornadas navc-
gando = que quer dizer , duas singradiiras. E por
quanto as seis ilhas do Cabo Aerde, que estão mais
orientaes das outras , distam do mesmo Cabo por
70. .80 léguas, qne são duas singraduras de vento
galerno, a que Plinio chama jornadas , parece qne
fica claro o Cabo Verde ser o promontório Ilespe-
rionceras , e as ilhas , que se lhe oppucm , a sa-
ber , que se chamam do Cabo A^erde , insulas Gor-
gonas , morada das Meduseas. E faz muito a este
propósito sabermos que das Canárias, ou ilhas bem-
avcnturadas , para o sul não ha outras ilhas senão
estas, para que digamos que possam ser as Gorgo-
nas; nem outro promontório mais illustre , que es-
te do Cabo A'erde, e que con: tanta rasão possa ser
o llesperionceras. Porem se houvermos de conje-
cturar estas conferencias polias taobas de Ptolomeu
[taboa 3.^ da Africa] , olhando á altura , c longura
do promontório llesperionceras , parccer-nos-ha ha-
ve-lo então de ser a ponta da serra Leoa , com tan-
to que as ilhas do Cabo Verde , ou Gorgonas , se-
jam as fortunadas , o que não é rasão , porque em
tal caso as nossas alturas e longuras se conformam
com as de Ptolomeu , as quaes alturas e longuras
ficam mui differentes, fazendo das Canárias as ilhas
bemaventuradas, como é justo, e opinião commum,
Assi que nesta parte não devemos estar por Ptolo-
meu, nem é honesto poder-sc cuidar que estas ilhas
do Cabo Aerdc sejam as fortunadas, como quer que
a esterilidade delias, e destemperança do ar sejam
de todo o ponto contrarias ao que se escreve da
fertilidade e suavíssimos ventos e ares das fortuna-
das , as quaes qualidades se acham nas Canárias.
Destas ilhas do Cabo Verde 370 léguas a loeste
passa o meridiano , que determina a conquista e
navegação de tudo o universo entre os reis de Por-
tugal e Castella , a saber , 180 graus deste meri-
diano para o oriente é dos reis de Portugal , c ou-
tros 180 para a parle do occidente dos reis de Cas-
tella. Esta quantia de graus ccaminho, que perten-
ce a Portugal , até o dia de hoje não são acabados
de navegar , porque as armas dos portuguezcs so-
mente são mostradas aos povos da China e Aloluco,
ficando-lhe ainda muitos caminhos para fazer pelo
oriente dentro , até chegarem ao lim e termo dos
180 graus , que per direito lhes pertence.
Os curiosos de contrastes e myslerios não deixa-
rão de observar a sorte singular destes Roteiros ,
cm irem sahindo á luz na ordem inversa da sua
composição.
Que é feito do 2." Roteiro da cost» da índia , de
que D. João de Castro falia repetidas vezes no de
Goa a Diu , que c o 1.° daquella costa?
J. H. da (Junha Rivara.
Curso elementar d' Ãgrieullura, de Mr. Raspai I , tra-
duzido e annotado pelo Sr. Dr. A. J. de Fifjueiredo
e Silva. — Tratado o.° e ultimo. Economia rural.
Logo que se annimciou a vulgarisação desta obra ,
que versa sobre tão ponderosa doutrina , como são
os preceitos geraes porque se governa a Agricultu-
ra , tratámos de a inculcar aos nossos leitores. Vi-
de Panorama, N.° 1(17 [de 1840]. Dos primeiros
tratados , a começar pelo da Lavoura , dêmos espe-
cial noticia : e tivemos o prazer de ver posto em
corrente e linipa linguagem portugueza um livro
que em França mereceu notáveis elogios. E incori-
tcslavelmente um dos méritos do nosso Iraductor o
cuidado que lhe mereceu a língua, que com a maior
semrasão desprezam muitos, que para ahi trasladara
obras puramente lillerarias , com tanto menor des-
culpa quanto é sem compararão mais fácil a sua
tarefa , não tendo que atlender a terminologia par-
ticular , nem á concisão c perspicuidade d'cstilo,
que em obras didácticas são requeridas sem prejuí-
zo da indispensável clareza.
De todos os tratados, este da Economia rural é
o de mais gera! applicação, quasi que não precisa
do estudo de inducções e comparações : até para
facilitar mais o seu uso, ajuntou-lhe o traductor
notas profícuas , contendo , entre outros objectos , o
methodo simples para o lavrador formar suas con-
tas , a reducção de nossos pczos e medidas ás uni-
dades do moderno systema francez ; no corpo da
obra , onde convinha , tinha feito as reducções á
nossa moeda. — .\brangc o tratado — 1.° o q\ie diz
respeito ás habitações agrícolas , e aos apriscos e
dccommodações dos animacs domésticos; — 2.° o
que é concernente aos capitães para grangeio de
uma fazenda, e á sua contabilidade; — 3." quanto
convém saber-se acerca da creação dos gados em
geral e em especial , e melhoramentos das raças ,
sem desprezar algumas noções veterinárias. — \.°
trata do mel, dos laclicinios , das farinhas, e das
bebidas fermentadas : em snmma afora muitas cou-
sas úteis , remata com excellentes corollarios d'e-
conoinia publica e rural, que aos interessados mui-
to cumpre estudar.
Intenta o mesmo Sr. Dr. Figueiredo em seguida
a este curso publicar os^.Vnnaes d'.^grirnllura=r
por quadernos mensaes, para que este ramo impor-
tanlissimo tenha seu particular representante em a
imprensa portugueza, como já os teem outras scien-
cias , por exemplo — as medicas: — louvável é seu
empenho , e por isso damos em substancia o seu
programma. — Terá pois por lim — «Instruir os la-
vradores porluguezes acerca do estado actual e su-
bsequentes progressos da Agricultura nos paizes mais
adiantados; bem como sobre o que nas outras artes
e sciencias lhe disser immedialo respeito. — Regis-
tar quaesquer descobertas , observações e ensaios
feitos no nosso paiz ; para o que se acceita e se
agradece a collaboracão de todas as pessoas compe-
tentes.— .\dvogar os interesses da classe agrícola ,
propondo, discutindo e vulgarisando (]uaesquor al-
vitres , que possam concorrer para o augmento de
sua prosperidade. — Publicar as noticias, que che-
garem ao conhecimento da redacção , bem como to-
dos os actos do poder executivo , projectos de cor-
tes &c., que d'algnm modo vão iuUuir na sorte do
lavrador porluguez. «
69
o PANORAaiA.
121
■1
o CA3TELI.O SE SANTIAGO SE CACEPI.
A MLLA de Santiago de Cacem , na província do
Aiemléjo , c iiispado de Béja , eslá situada na en-
costa oriental d'um outeiro em cujo cume campeara
as ruinas d'um antigo castelio. Pela posição eleva-
da em que está, e pela solidez e rijeza de seus nia-
leriaes . mostra ter sido o dominador do paiz cir-
cumvisinho. A sua cerca ou muralha era rodeada
de dez torres, de que só existem nove, porque uma
foi derrubada era 1822 quando se edificou a fronta-
ria da igreja situada em um dos ângulos do sul.
Destas nove torres, cinco são redondas e quatro
quadradas , sendo a collocação destas ultimas —
duas nas frentes de sul e norte , e duas nos ângu-
los do poente. Tem no centro seu alcarar fortifica-
do, sua cisterna espaçosa, c sua torre de menagem
[de que apenas metade está em pé]. O desenho pre-
cedente mostra o lado oriental : devia appresentar
quatro torres; porem a igreja occupa , como disse-
mos, o logar da primeira da esquerda. — A sua ori-
gem perde-se nas sombras dos séculos. Se foi fun-
dação dos fenícios , dos romanos , dos godos ou dos
árabes, quem o sabe? — A historia nada diz a este
respeito, e apenas os monumentos e a tradição ele-
vara sua débil voz.
A pouco mais d'uma milha ao nascente deste cas-
telio, sobre outra eminência, junto á ermida de
S. Braz , se vêem os restos d'outro forte de diver-
sa construcção , e ao parecer mais antigo. Sendo
prior desta matriz Bonifácio Gomes de Carvalho ,
mandou cm 1800 , por ordem do Ex."" bispo de
Beja , D. Fr. Manuel do Cenáculo , fazer ahi exca-
vações: o resultado foi achar-se uma escada de pe-
dra , que Gnalisava em uma casa cuja abobada es-
tava cabida. — Xcsta mesma escavação se acharam
cinco pedras de mármore contendo inscripções ro-
manas , funerárias, que se lêem perfeitamente, al-
guns penates , e uma figura da divindade protecto-
ra dos jardins; o que o Ex.""" Cenáculo levou: e
um pedaço de pedra era que se viara distinctamen-
te as lellra3 = /'or/a Cicit Esta pedra dcsappa-
receu : é provável que esteja sepultada em algum
Abuij. 22— 1843.
cabouco , ou que o marrão a reduzisse a estilhas.
— Na parede do adro do hospital está encravada
uma pedra quadrada, cm cuja inscripção, já gasta,
se lè ainda ^^ Esculápio Deo.= Estes e outros mo-
numentos confirmam ser esta villa a Mirobriga dos
antigos, occupada depois pelos romanos; e d'aqui
se pôde coilígir que o castelio de S. Braz [nome
que lhe dão por estar junto á ermida] era fundação
deste grande povo, visto os monumentos que ahi se
acharam e se estão achando (Ij.
A fundação de Mirubriga é attribuida aos cyprios,
no domínio dos celtas , se acreditarmos Manuel de
Faria e Sousa. Eis suas palavras: — «Junto á la
«villa deCacen fundo esta gente [cyprios] la ciudad
« de Mirobriga : verdadcro lestimonio son de su as-
ei siento sus vestígios. Resulto el nombre de Ias oOi-
«cinas de fundir metal con artificio estremado, pro-
«prio dcstos fundadores, que por ello se llamavan
«Mirones. La primera mítad deste nombre junta ai
«otro de Briga [que es fortaleza, y comun á casi to-
adas las de Espana] hizo cl de .Mirobriga, qui tam-
« bien fué celebre por las excelentes obras , desta
«calídad, vistas en ella : y conocida por el culto
«que seguia de Vulcano , Dios de lales fabricas,
«cuya imagen bien esculpida fué hallada cn sus
n ruinas. u
Por estas palavras se vò qual foi a sua origem.
Os romanos occupando-a depois, ahi deixaram ves-
tígios bem evidentes de seu domínio.
Mas quem fundou o castelio de que primeiro fal-
íamos? Será obra dos fundadores de Mirobriga? se-
rá fundação dos romanos? Não o sabemos. — Só po-
( 1 ) No anuo de 1 841 snccecieii que andando um trabalha-
dor apanhando pedra junio das ditas ruinas, descobriu um
tumule de cinco palmos em quadro . ferhado com abobada
d'alvenaria : dentro continha muitos ossos qua^i desfeitos ,
um vasu , á maneira de garrafa, de vidro; um copo; um
anel lie prata em cuja pedra se via esculpida uma Osura
acavallo ; uma esj-ecie de chuço ; e uma moeda de bronze ,
em que ainda se di>liuiuiam as letlras — S. C Achou mais
em diversos sities jraude quantidade de telha etijollos: sen-
do estes de 2 palmos de cumpr. e 1 "^ de larjç.
2." Seiue. — VoL. II.
122
O PANORAMA.
'
dêmos saber alguma cousa a seu respeito do rei-
nado de D. Diniz por diante. — Ouramos primeiro
António Coelho Gasco , nas suas antiguidades de
Coimbra — c. 26.
«Foi a esclarecida princeza D. Balara filha do
infante Lascaro, que era filho de Theodoro Lascaro,
filho do imperador da Grécia , Cario João Bataço
(ou Valace] , e da nobre imperatriz Ilerenc , sua
primeira mulher. Depois da morte do imperador
succcdeu em seu império Theodoro Lascaro seu fi-
lho , c por seu fallecimento deixou seus filhos em
guarda do t\ ranno Paleologo , que barbaramente os
mandou matar, e usurpou aquelle império; por es-
ta causa , esta nobre infonta se intitulava filha do
imperador dos gregos ; veio a Aragão reinando el-
rei D. Pedro, trouxe comsigo duas filhas que leve,
sendo casada com o conde de Viulemillia, e deixou
um filho era Génova , chamado João Lascaro , que
foi conde de Vinlemillia. As filhas se chamavam D.
Violante , D. Beatriz da Grécia , e D. Balaça , que
•'• a de que escrevemos. D. Violante casou com D.
Pedro , ueto de clrei D. Jaime , de que houve suc-
cessão ; c D. Balara veio a este reino de Portiigal
por aia da rainha Santa Isabel , e foi com a rainha
D. Constança por sua camareira-mór a Castella ,
quando celebrou as bodas em Alcaaiz com D. Fer-
nando o 4.°, rei de Castella (2) , e ficou por tutora
<ios infantes D. Pedro c D. João , por o mandar a
rainha D. Constança, que falleceu em Sahagum (3).
Depois a infanta D. Balaça (4) , fazendo á sua cus-
ta uma poderosa armada , e com muitos soldados
navegou para Sines , onde junto delia ha^ia uma
fortalecida villa , que naquelles dias era habitada
de mouros. Junlaram-se com ella muitos cavallci-
Tos calhnlicos dos logares circumvisinhos , cavallei-
rosamente a tomou á força d'armas em um domin-
go , cujo combate foi animosamente combalido , e
houve finezas de cavallaria ; e por esta bellicosa
princeza a ganhar dia do apostolo Santiago , e ma-
tar a Casse , rei mouro delia , lhe chamaram a es-
to logar dabi adiante — Santiago de Cacem.»
No livro das Visitas da dita villa a fl'. io9 se
acha a seguinte memoria feita pelo ditoEx."" bispo
de Beja. — Depois de ter faltado de umas relíquias
achadas nas ruinas da velha matriz , continua di-
zendo : —
<i Povoação antiga c decorada com fidalguia e no-
breza , donde derivara , e com as quaes combinam
famílias nobilíssimas do reino: villa de assento le-
vantado, sadio , e rico das melhores producções da
terra: villa de muita religião em todas as idades,
c o que se me oflerece cm idéa geral ; contrahindo
a oração para o assumpto particular , foi esta villa
distinguida pela infanta da Grécia D. Balaça. —
Neste logar cumpre dizer desta insigne matrona ,
cuja ascendência ó como proponho. — Irene cu in-
fanta Lascara , era filha de Iheodoro Lascaro, filho
de João IJataço, e seu successor no império da Gré-
cia, por haver casado João lialaço, príncipe do me-
lhor daquelle império , com Irene , filha do outro
Theodoro Lascaro, o 1.° Esta Irene, filha de Theo-
doro Lascaro, o 2.°, casou em Génova com o conde
de Vinlemillia, depois que Miguel Paleologo, tutor,
lyrannicamenle arrancou os olhos ao pupilo João ,
b'gilimo herdeiro , e casou a Irene Lascara cora o
tlito Vinlemillia. Esta Irene Lascara teve de Vinte-
millia Ires filhas , Violante , Beatriz da Grécia , e
(3) Gar. liv. l."!. dcl. com. cap. 27.
(.1) S.irit. 1. p. liv. 5. in fin.
(4) Res. lib. 4 il« aut. Lus, - -
D. Balaça ; e com ellas veio para Aragão , no tem-
po delrei D. Pedro, pai da nossa rainha Santa Isa-
bel.— Balaça veio a Portugal dama da rainha San-
ta, e casou cora D. Martim Aniies dos de Sevorosa.
((Havendo Balaça creado em Portugal D. Cons-
tança , filha d'elrei D. Diniz , sendo sua aia, pas-
sou com ella a Caslella por sua camareira-mór ; e
a esta mesma Balaça deu elrei D. Fernando a crear
seu filho Affonso undécimo. — Accrescenlara os his-
toriadores castelhanos e jxirtuguezes , que I). Cons-
tança , filha dos reis de Portugal , e mulher d'elrci
D. Fernando de Caslella , morrera de paixão , por
lhe tirarem a educação de seu filho, que depois foi
rei D. Affonso , e do poder de D. Balaça , que o
creava , sendo entregue a seu avô , c aos infantes
D. Pedro c D. João. — Os desgostos de Balara na
tutoria d'clrci D.Atfonso, a fizeram vir a Portugal;
e está enterrada na sé antiga de Coimbra, e os pa-
peis a ella pertencentes se guardam no cartório da
mesma só , e pôde bem ser que alguns em Alcoba-
ça , porque o chronisla-mór do reino , Fr. Francis-
co Brandão, no que imprimiu, promello dizer mui-
tas mais cousas de Balaça, que por sua morte fica-
ram reservadas.
<(A combinação de Balaça com esta villa de San-
tiago , aponta Brandão ; porque o mestre daquella
Ordem , D. Diogo Moniz , fez com Balaça a troca
pela villa dePunoias e Santiago de Cacem, da com-
menda e rendas do logar de Villalar, que D. Bala-
ça tinha cm llespanha , feita a cscriptura em 1.302
nnnos. O moli\o das doações declara elrei D. Fer-
nando nas pala\ras que copiou Brandão : = j'»!" la
bnena crianza que ella fizo cm la dicha llcina D. Cons-
íaH3a.= Balaça, estando senhora do terreno de San-
tiago de Cacem , cuidou em ennobrccc-lo.
((A igreja prometia ser obra sua, pelo menos em
rer Jificação ; pois que a reclusão das lasquinhas do
Santo-Lenho, segundo as maneiras da igreja grega,
em relicário de [irata , depositado cm columna de
mármore, que sustenlava a mesa ou altar, assim o
desengana. — Estas lasquinhas seriam tiradas da
grande relíquia do Santo-Lenho que a racsraa Bala-
ça deu á igreja ['ój. Era fácil cousa ikc. éíc. [con-
tinua fallando da roliquKij , e mais abaixo diz:
((Comtudo o nome de Cassem do sitio próximo a
Santiago, é árabe, do tempo era que nellc dominou
aíiuella nação. — Revendo eu as bibliolhecas d'Her-
belol e Casiri , c outros escriplos com a geographia
nubiense , sim acho homens doutos , e imperantes
em outros paizes com o nome de Cassem; comtudo
não encontrei algum nestes sítios , havendo-me per-
suadido que a povoação Santiago deve este nome ao
esforço e serviços daquella Ordem.
Continua fallando das relíquias, e mais abaixo diz :
(iPara ser abonada esta resolução do culto, apon-
to abaixo as doutrinas c auclores que podem ser
consultados. — Começando pelas espécies históricas
acerca da vida c acções de Balara , veja-se Surila
Anuaes de Aragão I^. 3. c. 75. L. ii. c. 105. Mo-
narchia Lusitana L. 18. c. 38.
"Esta memoria offercço ikc. «kc.
(1 B('ja em 12 de Março de 1799. — Fr. Manuel
bispo tic Itcja. »
Copiámos quasi inteira esta memoria , porqnc é
por ella, e |)elos monumentos mencionados, que se
pôde saber alguma cousa a respeito da dita villa.
(5) lista relíquia , descoberta nos entulhos (l'ym aliar
arruinada ifireja , i niuilo venerada pelos haljilanle.s des-
villa , e a cila usam recorrer pur ijcca£iu(^ de cstereiií e
da
la V
aturadas sêccos.
o PANORA3IA.
122
Agora em quanto aos castellos ; qual dclles senho-
reava o inoiiro Cassem, é cousa Ião diflicil d'ave-
riguar como a sua origem. Talvez para o futuro al-
guma anlifiiialba venha resolver este problema , e
dar mais liu Js conjecturas que a este respeito se
formam.
A. de M. c S.
Hsíosi c costumes singiiUircsf.
Abobigenks da COLLMniA (*).
QcANDO os habitantes do velho mundo descobriram
o novo, encontraram nas regiões, que hoje conhece-
mos debaixo do nome de Columbia , duas socieda-
des de indígenas, perfeitamente distinctas. Compu-
nha-se a primeira d"iiidividuos selvagens, feros, an-
thropophagos , habitadores das vastas planícies de
Caracas, Cumana , d'Apure e dn Orenoco. Viviam
esses desgraçados povos do fructos agrestes, da pes-
ca e da caça. Na estação das cheias se aglomeravam
nas ramadas das arvores , onde momentaneamente
estabeleciam moradia , a imitação dos macacos. A
dilliculdade de correspondência os dividia em uma
quantidade innumcravcl do pequenas nações , difle-
rindo entro si era costumes e linguagem.
Os homens que formavam o que poderíamos cha-
mar segundo grupo , viviam em um estado adianta-
do, comparável ao dos antigos egypcios. Habitavam
as partes montanhosas. Foi uma das ires grandes
nações civilisadas que os europeus acharam , espa-
lhadas pelo solo americano, a dos muyzcas ou moz-
cas.
Os muyzcas residiam na província de Cundina-
marca. As chapadas de Bogotá eram o centro do seu
poder. Só as tradições fabulosas deste povo basta-
riam para indicar uma sociedade cuja organisação
remonta á mais alta antiguidade. Já seus avoengos
existiam , dizem elles, e a lua ainda não era com-
panheira da terra. \'essa epocha os habitantes das
chapadas de Bogotá viviam como barbaras. Anda-
ram nús, ignoravam a arte da agricultura, afimen-
tavam-se de comidas grosseiras, c achavani-sc, n'u-
ma palavra, no estado o mais abjecto e deplorável.
De repente , um ancião apparecc no meio d'clles;
vinha das planícies situadas a leste da cordilheira
de Chingosa. Trazia barbas crescidas e vestidos ,
o que os fez suiipòr que pertenceria a raça diííe-
rente. Esse homem tinha três nomes, mas o de ISn-
chica prevalesceu entre os mui/zcas. Foi quem lhes
ensinou a cultivar a terra , a lavrar , a semear , e
a tirar da colheita todo o partido que a industria
de um povo agrícola irella pude achar. Feito isso
ensinou-lhes também a arte de se vestirem segundo
a differente temperatura das estações ; a de edifica-
rem moradas solidas, a dcreunirem-se para viverem
cm sociedade, soccorrerem-se , e ajudarcm-se re-
ciprocamente. Tantos benefícios lhe haviam angaria-
do a veneração publica , e nada se opporia a que
elle gozasse d'uma inteira felicidade , se não fosse
a malícia de Umjlkaca sua consorte. Esta malvada
mulher dedicou-se aos mais abomináveis sortilégios
para fazer sahir o rio Fanzha do seu leito. Então
toda a planície de Bogotá foi destruída pelas aguas,
a maior parte dos homens eanimaes pereceram nes-
se diluvio , c o resto refugiou-se para o cume dos
(*) Viil. a reípeilo da Calumhia o que dissemos tratan-
do deBolivar, vol. S." pag. 348 e 355.
mais altos montes. ISochira , indignado , expelliu-a
para longe da terra , o que quer dizer que a man-
dou matar. A tradição accrescenta que ella se me-
lamorphoseou em lua , gyrando incessantemente a
roda da terra para expiar seu crime, tíncliica que-
brou os rochedos que fechavam o valle do lado de
Canoas, c de Tequendama , para facilitar o escoa-
mento das aguas; reuniu os homens dispersos, en-
sinou-lhes o culto do sol , e morre\i cheio (l'annos
c de gloria.
Faremos aqui observar , que esse ultimo acto do
poder de Bochica explica, no pensamento dos muyz-
cas , o phenomeno da celebre cascata deJequenda-
ma , onde se precipitam as aguas de uma altura de
mais de oitenta braças.
Esse culto do sol e da lua entre os aborigines
destas regiões é também atlestado por monumentos
de grande interesse para a historia. Taes são os ro-
chedos de granito das solidões do Orenoco, em Cay-
cara. Urbana, perto do Rio-Branco, e doCassiquiá-
re. A^èem-se ahi esculpturas de alta antiguidade,
que representam, quasi á maneira dos egypcios, as
imagens do sol e da lua, assim como serpentes, cro-
codilos , tigres , e diversos instrumentos ou uteusi-
lios caseiros , &c.
Outros monumentos depõem também a favor da
antiga civilisação dos povos achados no solo da Co-
lumbia. Vc-se, por exemplo, nos arredores deCuen-
ca , no departamento do Assuay [hoje republica do
Equador] os magníficos vestígios da antiga calçada
construída pelos Incas , ou soberanos do Perii , c a
fortaleza de Oinar ou Ingapilca. É um muro do mui
grossas pedras de cantaria lavrada , que forma um
oval, cujo eixo maior tem mais de IbO palmos de
comprimento. No centro acham-se as minas de uma
pequena casa, cuja idade iguala á da fortaleza. Es-
Ic monumento está situado cm uma assentada sobre
um pequeno morro. — Os arredores de Lalacnnga ,
sobre a vertente do Cotopaxi , são igualmente cele-
bres pelos restos de dois monumentos pcruvianos :
o Panecillo e a Casa do inca. O Pauecillo ou Pão
d'Assucar, c ura tumulo cónico, que devia ter ser-
vido de sepultura a alguma grande personagem. A
casa do Inca é um vasto edificio quadrado onde
ainda se vêem quatro grandes portas exteriores, oi-
to caraeras , dezoito nichos distribuídos syraetrica-
mcntc , e alguns cylindros próprios para pendurar
armas.
O governo dos muyzcas era \ima mouarchia abso-
luta. A aucloridadc do seu chefe supremo, ozaque,
não era moderada senão pela do supremo ponlilice.
O primeiro residia em Iroca , o segundo cm Ttmja.
Havia em Samngoso um templo do sol ou de Bochi-
ca , que os devotos iam visitar em peregrinação , c
onde se celebrava , lodos os quinze annos , um sa-
crificio humano. A victiraa era um menino tirado á
força da casa paterna era uma aldèa do paiz conhe-
cido hoje pelo nome de .S'. Juan de los Itatios. Era
o guesa ou o vagabundo , isto é a creatura sem asi-
lo ; e entretanto criavam-o com grande cuidado ate
á idade de 15 annos. Este período de la annos for-
ma a indicção chamada dos muyzcas.
Então o guesa era conduzido em procissão pelo
suna, nome dado ao caminho que Bochica havia se-
guido na epocha em que vivia entre os homens , e
chegava assim á cohimna que servia para medir as
sombras equinociaes. Osxéques, ou sacerdotes mas-
carados á maneira dos egypcios, figuravam o sol,
a lua , os symbolos do bem e do mal , os grandes
reptis , as aguas , e as montanhas. Chegando á ex-
121
O PANORAMA.
treraidade do suna , a victima era amarrada a uma
pequena coliimna , e morta a frechadas. Os xeques
recolhiam-llic o sangue em vasos sagrados, c arran-
cavam-lhe o coração para o oflcrcccr ao sol.
Este povo lambem é celebre pelo uso dos hiero-
glyphos , e pelo seu calendário lunar, gravado so-
bre uma pedra que foi descoberta pelo fim do 16.°
século. Sabe-sc alem d'isso que havia trcs espécies
d'annos, e por conseguinte Ires calendários. O pri-
meiro anno era ccclesiastico, e conipunha-sc de 37
luas : o segundo era civil, e conlava-se por áOluas ;
o terceiro era o anno rural de 12 a 13 luas. Entre
os muyzcas as luas se dividiam cm semanas de três
dias.
Depois do descobrimento do novo mundo, diversas
nações deste continente se appressaram a enviar pa-
ra l;í colónias. Os inglezes c francezes povoaram
as costas , os castelhanos foram aos Andes , e até
ousaram subir a montanha. Viram na Cundinamar-
ca , sobre a planície de Bogotá, c cm Quito, os
vestígios de uma antiga civilisação, c trataram com
esses povos illustrados , que se lhes submetteram,
para formar um império llorcscente. Os primeiros
não haviam encontrado senão tribus ferozes c hordas
selvagens que fugiam diante dos reccm-chegados, e
recusavam a civilisação que se lhes offerccia.
MOYSES.
O M-Gisunon do poTo hebreu, Moysés , era um is-
raelita da tribu de Levi , filho de Amram e Joche-
bcd (1) ; nasceu no Egypto no anno de 1571 antes
de Chrislo , conforme a vulgar cbronologia. Sua
mãi para o esquivar ao infanticida edicto de Pha-
rao , o expoz, <:ontando apenas trez mezes, cm uma
cestinha ou berço de vimes sobre as aguas do Ni-
lo (2). Ahi o encontrou' uma lilha de 1'haraó quan-
do tomava o banho, e compadecida o salvou e man-
dou criar , dando-sc a circunislancia de ter o me-
nino por ama sua própria mãi , pelo que nunca se
pôde dizer se p, Trado do povo escolhido. Foi cduca-
(1) Êxodo. cnp. 3.°— 1.°— ; eap. 6." — 19.
(2) Ex. cai), a."
do na corte , onde aprendeu toda a sabedoria dos
egypcios (3). Na idade de varão concebeu a idéa
de resgatar do capliveiro o povo seu consanguíneo,
e presenciando o niáu tratamento que um egypcio
dava a um israelita, matou aquelle , e o enterrou
na areia : querendo porem no dia immediato conci-
liar dois hebreus mal avindos , em vez de acceita-
ção achou repulsa, e lançaram-lhe cm rosto a mor-
te do egypcio : não recebido do seu povo , e teme-
roso da vingança dos estranhos, fugiu para o paiz
dos inadianilas na Arábia Pétrea , onde pastoreou
rebanhos , e tomou por mulher a filha de Jethro ,
sacerdote daquelle paiz. — Guiando os gados de
seu sogro nos descampados do Sinai, appareceu-lhe
Deus no monte Horeb , em meio da çarça incom-
busla , ordenando-lhe que voltasse ao Egypto , e se
collocasse á testa da gente de Israel , servindo-lhe
de conductor para a promettida terra de Chanaan.
Era Moysés tardo no fallar , e por isso lhe deu o
Senhor por companheiro o irmão delle Aarão , que
se explicava bem. Acceitou Moysés a missão por
obediência, e pelo flagello das dez pragas constran-
geu o Pharaó , que então reinava , a consentir na
partida dos israelitas ; e quando aquelle príncipe
enfurecido os perseguiu na retirada abriu as aguas
do mar-vermelho , que depois da livre passagem
franqueada ao povo dilecto se reuniram afogando
os perseguidores. — Acampados nas raizes do Si-
nai , o Senhor lhe promulgou a lei : por quatro de-
cennios continuou a guia-los na dilatada peregrina-
ção, pelos patriarchas annunciada ; e lendo nomea-
do a Josué por seu successor, falleceu de 120 an-
nos no monte Pisagh , do lado oriental do Jordão ,
de cuja summidade lhe foi permittido avistar a Ter-
ra da promissão; ficou seu corpo no paiz deMoab,
e o logar exacto da sua sepultura permaneceu des-
conhecido : como selo no Deuteronomio, ultimo ca-
pitulo ; e lambem na epistola catholica do apostolo
S. Judas, onde o v. 9.° é o seguinte : — Porem Mi-
chael o archanjo , quando contendia cora o diabo ,
e tratava do corpo de Moysés , não ousou a contra
elle pronunciar juizo de maldicção ; porem só dis-
se : o Senhor te redargua.
OPentateuco, isto é os cinco primeiros livros bí-
blicos, foi escripto por Moysés, menos o Si." cap.
do Deuteronomio , em que se trata da morte do
mesmo legislador : dcduz-se isto de xim grande nu-
mero de passagens dos mesmos livros; alem de que
a harmonia que entre elles se nota suppfiera o mes-
mo escriptor. As noticias , que encerram cm maté-
rias históricas e geographicas , especialmente rela-
tivas ao Egypto e Arábia, e sobre historia natural ,
artes , e scieucia militar , conformam com todas as
noções que pudemos formar do estado das cousas
nesse periodo remoto, descriplas como era de es-
perar de ura homem que fora educado na corte
cgypcia, e que depois se empenhara cm dirigir uma
nação inteira por meio de desertos no es()aço de
quarenta annos. A linguagem é a mais antiga he-
braica que se conhece: oeslilo dos cânticos annun-
cia a sublimidade característica da primeira poesia
de um povo. A disposição da matéria oITerece in-
terrupções ou saltos , ora narrações , ora leis e re-
gulamentos; c assim havia acontecer a quem esCTe-
(3) I.ií-se nos Jclos ilos .i/wsl- — cpp- 7." do v. 20 em
diante — No qii:il tempo nasceu Moysés, e er,i mui formo-
so, e foi criado três nie/.es em ca>a de seu pai. — E sendo
engeilado, a filha de Pliaraó o tom' n e o criou para si por
seu fillio. — E foi M(ijs(!s instruiilo em toda a sabedoria do»
Egjpcios; e era poderoso era dilos c feitos.
o PANORAMA.
12S
"vessc na sitnarão de Moyscs : a selecção dos malc-
riaes parece foila na inlcnrão de recordar Indo o
que era immcdiataraente conncxo com a legislação,
alvo principal de Moysés ; e vè-sc que as leis são
repelidas, algumas, mais de uma vez, e outras mo-
dificadas no decurso da obra, oque manifesta a in-
terpolação dos períodos, em que foram lançadas por
• ícripto: ludo indica que o legislador e o historia-
' r eram a mesma pessoa.
O Pcnlatei!co traz entre nós seu nome de origem
i;rcga , porque significa cinco volumes. Era a i)arte
do Velho Testamento , única reconhecida pelos sa-
maritanos , oppostos por nacionacs preconceitos c
usos aos judeus propriamente ditos. Os samaritanos
o conservaram , ao que elles diziam , intacto das
corrupções das copias hehreas : o caso c que nos
dois textos ha respectivamente diflerenças notáveis.
O Pentateuco samaritano só foi liem conhecido na
Europa, depois que o arcebispo Tshcr ePietro delia
Valle obtiveram genuínas copias eitrahidas no orien-
te : acha-se na Bíblia Polyglotta de .Aloríno , donde
passou para a de Walton. Deu-o também á \u? ví
Dr. Blayney em caracteres hebreus cm Oxford, an-
no de 1790. O original é cm samaritano , isto é a
mais antiga cscriptura hebraica.
O Bodo.
11Í28.
X.
Generosidade.
AroMPAXHA.vDO O conde de Trava, Garcia Bermudez
altravessou a serie dos aposentos que precediam o
quarto da rainha , até uma pequena sala immcdia-
ta á antecâmara real. Apenas os dois cavalleiros
chegaram alli , um donzel que estava era pé junto
da porta fronteira á da entrada , afastando um rico
panno que mascarava esta , e curvando-se respeito-
samente, proferiu algumas palavras que os dois não
perceberam. Pouco tardou que D. Thereza appare-
cesse : trajava ainda o vestuário esplendido com que
assistira ao banquete, e a viveza desacostumada que
conservava no olhar, fazia crer que a irritação do
seu espirito, despertada pelas ultimas novas recebi-
das do arraial do infante , não havia inteiramente
cessado. O numeroso séquito das suas donas e don-
zellas não a acompanhava , e com tremor involun-
tário Garcia notou que Dulce era quem unicamente
a seguia.
.\penas entrou , a rainha encaminhou-se para os
dois , que successivamente lhe beijaram a mão ain-
da formosa. Depois , dirigindo-se a Garcia Bermu-
dez , mas volvendo rapidamente os olhos de quando
em quando para o conde , lho disse : —
«Cavallciro, leal é o teu coração; o teu braço
esforçado , tua condição nobre e altiva : por isso te
escolhi para alferes da minha hoste. Houve ura tem-
po em que a filha d'Afi'onso de Leão mal soffrèra
que outra voz differente da sua surgisse no meio
do silencio dos cavalleiros de Portugal attentos ao
brado de accommetter. Esse tempo já lá vai ! — Ho-
je não sou mais que pobre viuva a quem filho in-
grato quer privar da herança que recebi dos reis
de quem descendo. Â ti e ao nobre conde de Portu-
gal c Coimbra pertence o salvar-mc. Elle será o teu
primeiro homem d'armas, e como elle todos os que
ainda não desmentiram o preito que me devem , te
obedecerão. Assim começo cu a provar-te quanto
preso ura dos mais illustres cavalleiros d'Hcspanha.»
K rainha fez uma pausa. O alferes-m('ir aprovei-
tou aquella interrupção — e respondeu visivelmente
perturbado : —
«De mais, senhora, me tendes provado a vossa
talvez infundada estima : maior do que a realidade
me tendes feito acreditar o esforço do meu braço.
Encontrando por vós uma honrada morte no campo
de batalha eu só poderei mostrar que era pela leal-
dade , se não digno de tantas honras, ao menos di-
gno da vossa confiança.»
«Não faltemos de morte' atalhou D. Thereza.
Taes pensamentos são de mau agouro nas vésperas
de combater. A tua vida me é cara , e brevemente
ella te não pertencerá toda a ti. A mais grata re-
compensa da tua lealdade, alfcres-mór de Portugal,
vais té-la. »
D. Thereza tomou então pela mão a filha de D.
Goraez Nunez , e fazendo-a adiantar alguns passos ,
proscguiu : —
«Esta c a recompensa !»
O conde que preparara aquella scena, dava todos
os signaes de contentamento aovêr o espanto de Gar-
cia Bermudez, que recuara ao ouvir similhantes pa-
lavras. Fernão Peres obtivera com grande difDcul-
dade que D. Thereza assim constrangesse Dulce a
dar a mão d'esposa a um homem que não amava.
Não lhe escondera elle que isto era uma violência ;
e sem o desgraçado predomínio que tinha no cora-
ção da rainha as suas diligencias sahiriara baldadas.
Por isso com sobeja rasão exultava.
['ma pallidez mortal cobrira o rosto de Dulce ao
ouvir as palavras da sua mãi adoptiva , que lança-
ra para ella o olhar que o algoz noviço volve para
a sua victima antes de desfechar o golpe. A rainha
sentiu-lhe palpitar o terror na mão que tinha aper-
tada na sua.
«Oh senhora! — murmurou adonzella alevantau-
do os olhos para a rainha, com uma iuDexão de voz
tão meiga , tão tímida , e tão dolorosa , que a bella
infanta sentiu apertar-se-lhe o coração.
« Vamos , formosa Dulce , — interrompeu Fernão
Peres , que lèu no gesto de D. Thereza o vacillar
da sua alma — sè comnosco sincera. São mal cabi-
das aqui palavras fingidas de desamor. — Certo que
tu suspiravas pelo momento em que podesses cha-
mar teu um dos mais gentis e esforçados cavallei-
ros d'Hespanha. Esse momento chegou »
"Mas, ... senhor conde!» — ■interrompeu balbu-
ciando o alfcres-mór.
«Basta, Garcia Bermudez — proseguiu o conde,
carregando o sobrolho. — És meu amigo, e a mui cx-
cellente rainha offerece-te para mulher a sua filha
adoptiva , a herdeira do nome dos Bravaes. Xão é
digna de ti? Não és tu digno delia ? Esta união prcn-
der-te-ha mais , se é possível , á terra que tomaste
por pátria — e eu assim t'o ordeno. Sei que era es-
se o pensamento contínuo do teu espírito , o alvo a
que tendiam todos os affcctos do teu coração'?»
O leitor conhece já o caracter de Dulce : o pri-
meiro instante de uma situação arriscada era para
ella o da fraqueza mulheril — mas era só um ins-
tante. Jfcdiu o abysmo que se lhe abria debaixo
dos pés... Um dia mais, e estava salva! — Era ne-
cessário resistir: era necessário colligir todas as
forças da sua alma. Trémula, mas com energia, ata-
lhou Fernão Peres: —
«Xão , senhor de Trava ! Aquella que foi segun-
da mãi de Dulce ; aquella que sempre se lhe mos-
trou generosa e indulgente ; a rainha de Portuga! ,
126
O PANORAMA.
tem direito a dispor da sua mão ; tem direito a re-
calcar-me no fundo d'alma todos os aflectos , a fa-
zer-me devorar em silencio as minhas lagrymas. Se
não podesse dobrar-lhc a vontade , se elía fosse in-
flexível, obedeccr-lhc-hia ou morreria talvez! —
Mas vós , senhor conde , qual c vosso titulo para
constranger minha vontade? Fostes vós que honras-
tes o solar dos Bravaes? recebeu D. Gomez Nunez
algum préstamo de vossa mão? Que vale que vós
digaes : — ordcno-o — se eu, nobre, e livre, se eu,
neta dos godos, vos responder; — não será?
A rainha olhava altonita para Dulce , cuja palli-
dez c voz trémula desmentia a resolução das suas
palavras. O furor do conde , cujo animo os aconte-
cimentos d'essc dia tinham sobejamente irritado,
ouvindo aqucllas expressões , que tocavam as raias
do despreso, rebentou subitamente. Esqueceu-se do
fingido respeito que em toda a parte mostrava pela
rainha , e principalmente na sua presença , para só
xe lembrar de que realmente elle era o verdadeiro
senhor nos paços de Guimarães, desde que D. Thc-
reza lhe entregara corpo e alma.
«Quem c que ousa aqui dizer — não será — ao
conde de Portugal e Coimbra? — bradou elle com
iim rugido feroz que fez tremer a donzella. — Quem
ousa nestes paços resistir á minha vontade ? — E
depois de uma breve pausa, proseguiu, dando uma
risada : — Ah, sois vós nobre herdeira dos Bravaes !
— vós a que não tendes nenhum préstamo de mi-
nhas mãos! Sois vós a que recusais obedecer-me ?
Depois de outra vez ficar alguns momentos callado,
continuou em tom de mofa : — Podeis , senhora po-
derosa , ordenar que soem as trombetas e timbales
nos vossos castcllos e honras , que os vossos alcai-
des juntem os cavalleiros, os vossos villicos os bes-
teiros, archeiros e fundibularios ; que os vossos al-
feres desenrolem os baisões dos Bravaes, para mar-
charem contra o misero conde de Portugal em lide
d'homizio ! Não , senhor de Trava ! ? — Sim , vos
digo eu , donzella ! Sim , que é forca assim seja !
Dizei-me só por muita mercê : é o pudor virginal
quem vos obriga a regeitardcs a mão de tão gentil
tavalleiro?»
Fernão Peres cruzou os braços, e cravou na don-
zella o seu olhar de girifalte. Dulce atterrada com
as palavras e gestos daquelle homem orgulhoso , ti-
nha cabido de joelhos aos pés da rainha, e apertan-
do-lhe com as mãos convulsas a barra do epitogio ,
exclamou: — oh, salvai-me , salvai-mc I »
Dolorosa era a situação de D. Thereza. Amava
sinceramente Dulce ; mas entre ella e o conde ba-
Tia laços que não podia , que não quizera quebrar.
Aquellas expressões insolentes de Fernão Peres , a
audácia com que elle substituía a própria vontade
á sua , tinham uma significação terrivcl ; dcspcrta-
Tam-lhe recordações e remorsos ! O primeiro im-
pulso do seu espirito altivo foi a indignação ; mas
a vergonha , talvez o temor , lhe embargou o mani-
festa-la. Abaixou o rosto , e duas lagrymas lhe es-
corregaram |)clas faces.
O alferes-mór , piireni , a fez sahir daquelle esta-
do violento.
«Não — disse elle approximaudo-se de Dulce :
não serás minha victima ! — Garcia Berraudez nun-
ca se esquecerá do dever de cavallciro. Seria aca-
so a minha vida mais risonha possuindo-lc, quando
o leu c<iraçã() me rcgeita ? — Sè livre! — Becu-
so a posse de Dulce , rainha de Portugal ' »
A pobredonzella largou os vestidos de D. Thereza,
e pegando na mão do cavallciro beijou-a soluçando!
«Eu te amarei como um irmão! — exclamou el-
la.—Eu te adorarei como um Deus. Oh ! tu sabes
que só assim... »
«Silencio! .. interrompeu nobremente o cavallci-
ro; porque percebeu que Dulce na agitação em que
se achava ia trahir-se a si própria , e revelar o seu
segredo.
O conde continuava a contemplar esta scena com
os braços cruzados e com um riso cruel nos lábios.
Dirigindo-se então á rainha proseguiu no mesmo
tom de ironia amarga: —
" Bera SC vê , senhora , que o vosso alferes-mór
foi armado cavalleiro pelo Cid Ruy Dias. Guarda
puras as tradições daquelle espelho brilhante de to-
das as cavallarias. Mas eu , fraco mortal , que não
ponho tão alto a mira, penso mais tranquillamente !
Garcia Bermudcz I — Dulce ! — ■ escutai o que vos
digo: são as minhas derradeiras palavras. Ámanhaã
a estas horas o alferes-mór de Portugal terá uma es-
posa, e esta esposa será a nobre e rica herdeira dos
Bravaes.
E voltando-se para D. Thereza ajoelhou , beijou-
Ihe a mão , e disse : —
n Espero que a mui excellente rainha no momen-
to cm que vai rccolher-se á sua camará, permittirá
que o mais leal dos seus vassallos se retire também
para não perturbar os colloquios de dois amantes
na véspera do seu noivado.»
A inflexão que o conde dera a estas ultimas phra-
ses tinha o que quer que era atroz e diabólico. D.
Thereza estremeceu como sacudida por uma corren-
te eléctrica , e atravessando vagarosamente a sala
dcsappareceu.
Fernão Peres encaminhando-sc para o lado oppos-
to , ouviu Garcia Bermudcz repetir com voz lirme ;
« Não ; tu nunca serás minha ! >>
t) conde voltou a cabeça sem parar , encolheu os
homhros , c sahiu.
Dulce , que licára na postura em que se achava
com a mão do alferes-mór entre as suas , e a fron-
te pendida sobre ella, alevantou então os olhos, c
fitou-os no cavalleiro : o rosto deste era solemne e
triste :
«Estás satisfeita, Dulce?» — perguntou o arago-
nez.
«Tu és bom c generoso , Garcia ! — tu és bom c
generoso! murmurou a filha de Gomez Nunez. —
Poderá cu otYerecer-te um coração ainda virgem !
Oh , de quanto amor eu cercaria os teus dias ! »
«Basta! — interrompeu o cavallciro perturbado.
— -Que te importa , anjo do céu , se ao passares na
terra os raios da lua luz devoraram uma existência?
Que importa?! Oh que nesta idade de
vida c de esperanças custa muito a morrer !»
O alferes-mór levou as mãos ao rosto. Era por-
ventura uma lagryma — e o mancebo cnvergonha-
va-se dessa lagryma neste doloroso momento ; por-
que não era só doloroso , mas lambem grave e so-
lenme.
«Oh Garcia, Garcia! — replicou Dulce. — Qual
gratidão poderá exceder a nossa para comligo?!
Tu me salvaste e o salvaste a elle. Egas, ser-te-ha
amigo, irmão, servo »
«Que nome sahiu da tua boca?! — bradou o ara-
gonez com olhos subitamente accesos de furor. —
Irmão! amigo! Amaldiçoada a hora em que entre
nós se dissessem essas inferuaes palavras ! Cuidas tu
que o amar-te, a ponto de renegar da miidia alma,
da minha perpetua felicidade , é não o detestar a
elle?.... Aqui apertando com força o braço de Dul-
o PANORAaiA.
127
ce c fazcndo-a erguer , conliiniou cora toz presa.
Olha , Dulce , — amanhaã ... Mas não ! ... Sc a sua
Tida for assaz lar^a para te possuir ... c essa vida
provará talvez que ellc é \\m covarde .... dizc-lhc
que se algum dia duas hostes estiverem freulc a
frente cm lide ou arrancada , c cu for cm uma , e
elle n'outra , que fuja do sitio onde vir esvoaçar o
lialsão de Garcia Bermudcz .... Que fuja '. — porque
ha ahi uma espada que tem sèdc do .seu sangue ;
porque ha ahi lábios que Ih'o beijcriam ; porque
bate ahi impetuoso o coração de um seu inimigo
mortal ! — K dizc-lhc mais ... que este inimigo sou
eu I — dize-lhe que não ha sobre a terra um logar
onde caibam clle , cu , e o meu ódio 1 »
Proferindo estas palavras , o gesto do cavalleiro
estava demudado. .\fTastou de si a donzella com
violência, c dirigiu-se rapidamente á poria dos apo-
sentos exteriores.
Um gemido de profunda agonia bateu ainda nos
seus ouvidos ao atravessar a sala immediala ; c o
desgraçado fugiu, .\^rasta^a-o a desesperação.
Aquclle gemido partira do seio de Dulce , que
dera em terra como se fora morta.
(Continuar-se-ha) .
(A. Herculano J.
Go>TALo Hehmigcez.
Kio basta o movimento, nem a rapidez das acções.
Não basta a importância dos acontecimentos , nem
o brilho e a transcendência dos factos para fazer
desapparecer do quadro de uraa epocha histórica a
monotonia , que repellc por vezes a attenção , can-
çaudo o espirito e afrouxando o interesse no leitor.
Proezas da mesma espécie , façanhas do mesmo gé-
nero , sentimentos sempre os mesmos, c produzindo
casos só diversos nos Jogares e nos tempos , dão a
similhantes quadros uma tinta uniforme, que osdes-
tiluc da graça , e , por assim dizer , da vida , pró-
prias para alimentar a imaginação. Se isto é verda-
de em relação á historia de todas as epochas , mais
o 6 ainda na historia dos povos semibarbaros , do-
minados por um sentimento único, empenhados u'um
esforço sempre o mesmo, e appresentando, por con-
sequência, a cada passo, caracteres similhantes, cs-
timuios idênticos, eresullados sensivelmente unifor-
mes. O espirito , na presença de taes quadros , ad-
mira por vezes o complexo das imagens , attingc
n'um momento a vastidão dos resultados , mas des-
cendo aos proraenores , e achando em todos clles
uma physionomia commum , não tarda em experi-
mentar tédio neste exame , e anhella por cuconírar
uma fórraa, uma gradação de còr diversa que o rea-
nime, .^contcce-lhe aquillo mesmo que ao viajante
nas planicies. Bclla , e por vezes sublime , c a im-
pressão primeira ! A vastidão , a regularidade im-
põem um momento pela sua grandeza ; mas bem de-
pressa a vista fatigada perscruta, com uma espécie
de impaciência, aborda illimitada dohorisonte, em
busca de um cume, de uma protuberância, de uma
saliência angulosa, que corte, que interrompa a sua
acabrunhadora uniformidade. Ivo momento env que
este objecto distincto apparece . a attenção lixa-se
sobre elle : a imaginação presta-lhe atavios, que as
mais das vezes clle não possue, e reagindo sobre os
órgãos, faz vèr gracioso e bello, nestas circumstan-
cias, o mesmo objecto que em outras parecera vul-
gar , e sobre o qual a nisla houvera passado inat-
tenta.
liaras batalhas, amiudados c quasi contínuos coín-
batcs entre chrislãos c mouros r assédios, surprczas,
tomadas c retomadas de torres e de caslellos : atre-
vimentos c arrojos de audácia , de tenacidade e de
perseverança , nma e muitas vezes repetidos , nas
terras montanhosas de entre Minho e Douro, de en-
tre Douro e Tejo , ou nas planicies elevadas de en-
tre Tejo c (luadiana , formam em geral o quadro ,
sobremaneira interessante , pelos seus resultados ,
I)cla sua importância intrinseca, mas até certo ponto
monótono , da vida c feitos do fundador da nionar-
chia porlugueza. Alguns factos, porem, destacados
da tinta commum, ornados d'um colorido c de ata-
vios d'outra espécie , c mais análogos a outras ida-
des , surgem , como adornos vivificantes deste qua-
dro , c sobre clles é por certo grato á imaginação
fixar-se , e licito á penna chamar por um momento
a attenção dos leitores.
Um homem, menos rude que os seus companhei-
ros, por isso mesmo que ao valor c ás forças de um
Mendes da Maia, ao génio destemido de ura Giral-
do , e de tantos varões fortes daquella idade , unia
o fogo do cerarão , a amenidade de espirito , que ,
em epochas mais civilisadas , tanto prenderam as
musas á nossa terra ; Gonçalo Hermiguez , a quem
seu braço ganhara o appellido de Terror dos mou-
ros , brilhava na corte , ou antes nos arraiaes d'Af-
fonso Henriquez. Precioso seria se á mão deslructo-^
ra do tempo houvessem escapado esses primeiros
gorgeios do canto nacional , esse accento , essa me-
lodia, por certo então novíssima para os nossos echos,
e talvez mais familiar ainda , naquella epocha , aos
agarenos , já então degenerados , do que a seus ru-
des vencedores. Achar-se-hiam alli , sem duvida ,
modelos da dicção a mais polida daquelles tempos :
costumes e imagens que , por assim dizer , nos fa-
riam assistir ao viver c sentir usual daquellas eras.
Tudo , porem , consumiu o tempo : tudo se perdeu
na névoa inseparável daquellas idades rudes, e de
toda a poesia d'Hermiguez só nos resta a parte emi-
nentemente poética da sua historia. Não a procura-
remos appreseníar alterada , não lhe ajuntaremos
atavios estranhos , dcixar-lhe-heraos as suas cores ,
a sua simplicidade |>roprias, porque o contrário se-
ria, cm quanto a nós, retocar com pincel grosseiro
o quadro original, perlendendo abrilhantar com tin-
ta pretenciosa a singella e antiga luz do painel pri->
meiro.
Em um dos curtos inlcrvallos, que a guerra con-
cedia raras vezes ao fundador da monarchia, inter-
vallos mais depressa empregados em preparar os
meios de levar avante novas emprczas da que em
descançar de fadigas já passadas , o filho de Her-
migo Gonçalves [que encontrara a morte na batalha
de Ourique] desejoso de accrescentar o nome que
entre os seus já possuia, passou-se com alguns con-
terrâneos ao sul do Tejo , cora o projecto de arran-
car aos mouros, e de entregar a seu rei e senhor,
algum desses castellos , núcleo c refugio do poder
dos contrários. Consta-nos que a sua attenção se fi-
xara sobre o castello de Almada, sobranceiro ao
Tejo , logar demasiado conhecido para que delle
juntemos uma descripção prolixa. A força com que
os sarracenos occupavam a praça não permittia a
Hermiguez, c á pouca gente de seu mando, leva-la
á força descoberta, o que resolveu o soldado a ten-
tar apoderar-se delia por ciladií. Talvez ao desejo
de mais illuslrar seu nome, accrescesse na alma de
Hermiguez o intuito, não menos natural, de vingar
a cada instante, no sangue dos infiéis, o sangue da
128
O PANORAJ>IA.
pai veitido na grande batalha. É mais (]iio provável
que n'ii[ua alma enérgica, sensível e ardcnle qual
a de Hermiguez, mais de uma paixão, mais de um
sentimento obrassem a um tempo , c o determinas-
sem a saliir das sendas vulgares.
Seja como for, o soldado, conhecedor dos usos e
costumes dos seus contrários, soube a[)roveita-los
no intuito meramente militar , que o conduzia ante
Almada ; mal cuidando que, na occasião em que só
buscava um laurel para a coroa de soldado , enla-
çaria nella o myrto do amor, e accrescentaria mais
uma corda á lyra suave, desgraçadamente perdida,
mas cujos sons ouviam com deleite os seus rudes
companheiros.
Costumavam os mouros , na epocha do estio , e
particularmente no dia de junho em que a igreja
celebra a festa do líaptista , pôr de parte os traba-
lhos, c fadigas ordinárias da vida ; c joviaes, ao mo-
do do seu tempo -e costumes, sahir ao campo e en-
tregar-se á folgança de seus usos. Alli gozavam, ou
dispersos ou reunidos, segundo o [ledia a inclinação
de cada um . a viração fresca das primeiras horas
do dia, tão grata no estio aos habitantes dos climas
meridionaes , esse ar matutino das praias do Tejo ,
mais depressa morno do que frio , e que , soprando
da parte do oceano , precede a hora em que o nor-
te rijo e fresco vem deslisar as aguas do rio formo-
so, na parte onde se confundem com as dos mares,
entre as alturas fronteiras de Lisboa e Almada.
A segurança, a paz, a tranquillidade e gozo, a
alegria e a dissipação que, quacsqucr que sejam os
costumes e iudole dos povos , quaesquer que sejam
as formas que lhes dè o progresso da civilisação ,
são sempre acompanhadas do desleixo , do abando-
no e carência de outros cuidados , entretinham os
mouros de um e de outro sexo , contemplando , ca-
da um a seu geito , as límpidas aguas do rio , em
que se redectiam a margem escarpada , as cristas
distantes das montanhas do norte , e os cumes me-
ridionaes da serrania da Arrábida , descendo pouco
a pouco ao mar, até perdcr-se nas ondas no ca-
bo extremo entre a foz do Tejo e a embocadura do
Sado.
De repente turva a alegria o grito tão conhecido
da guerra. Brilham de súbito as espadas de Hermi-
guez e dos companheiros. Velhos , homens , man-
cebos , matronas e donzellas precipitam-se para as
portas do castello. Buscam refngio no interior das
muralhas. O filho robusto ampara na fuga o pai já
provecto e pezado : a mãi carinhosa corre, apertan-
do contra o peito o fructo novel de suas entranhas ,
em quanto arraslra outro , quasi pendente da mão
que treme, .\quella clama pelo esposo que perdera:
aquelle pela amante que lhe escapara. A privação
das armas torna impraticável a resistência. Hermi-
guez carrega sobre os fugitivos , irapclliudo-os ante
si , mais com os clamores do que com os golpes ;
porque repugnara a peito tão generoso empregar for-
ça contra a fraqueza; nem lhe deslembra a lei fun-
damental de cavalleiros, que anathematiz.lra com a
infâmia a espada que manchara sangue feminil.
O tropel fugitivo procura debalde recolher-sc aos
muros. O temor c o susto calam o scntimeulo, tor-
nando egoista a turba escapada, recham-sc as por-
tas da fortaleza , negando toda a esperança de re-
fugio aos que de fora (içaram. Cessa desde então o
clamor dos vencedores. l'ra silencio profundo , si-
lencio como o de morte, exprime o desalento e pa-
ralysia dos vencidos. Kntregam-sc sem resistência
ao captiveiro , e vão ser conduzidos peio cbristão
triumphantc ao monarcha que o aguarda nos muros
de Santarém.
1'orcm um cavalleiro armado apparece de súbito
no meio da turba. Ninguém viu donde sahira , nin-
guém sabe a intenção que o guia. Chamejam fogo
os seus olhos, rellecte o sol o gume polido do seu
alfange. Apparecer , vibrar a espada como um re-
lâmpago , arrancar aos vencedores a mais formosa
das captivas , monta-la nas ancas do ginete coberto
de espuma , fexar esporas e partir como o raio , é
mais breve de executar que de dizer-se. Mas um
trovão responde a outro trovão : mas um corisco se-
gue a outro corisco : Hermiguez voa sobre o mou-
ro : chocara-se os cavallos : cruzam-se as espadas ,
e o campeão da cruz recolhe , no mesmo instante ,
a victoria e a preza (*j.
Assim cahiu , ou antes , assim teio aos amantes
braços de Hermiguez a suave, a formosíssima Oria-
na. Os rendimentos do cavalleiro , a magia suave
da expressão do poeta , o influxo divino , trajando ,
nesta circumstancia rara , em vez das asperiuadcs ,
com que por vezes se manifesta, todas as galas, to-
da fragrância e primor das flores terrenas, obraram
na alma sensível da gentil agarena. As cândidas ves-
tes baptismacs , graciosamente unidas com a alvura
do véu das virgens, com a cândida assucena da mo-
déstia pudibunda , acompanharam ao altar de hy-
menco a tríplice captiva. Foi ella as delicias do
scnsivcl Hermiguez , foi cila o objecto predilecto
do seu canto. Aos echos das montanhas portuguczas
ensinou o primeiro cantor o suave nome de Oriana,
e quando , depois que a morte lh'a arrancara , se
separou do mundo , votando-se ã piedade e ao reti-
ro , por vezes lhe ouviram as frescas aguas do Na-
bão , em que merencório fixava os olhos arrazados
de pranto [que expressivo é o pranto da saudade
nos olhos do soldado I ] ouviram-lhc, digo, as aguas
e as margens da corrente esse nome tão caro da sua
metade , da sua inspiração , da sua musa , cortar-
Ihc de quíindo em quando os últimos acccntos de
cysne moribundo, que votara á devoção, á peniten-
cia, e não menos á saudade I
Fernando Luiz Mousinho de Albuquerque.
O penhasco que halancéa. — Junto a Castres no
departamento franccz dito do Tarn existe um enor-
me volume de pedra , que terá 360 pés cúbicos c
o peso de COO quintaes; é de forma irregular, po-
rem mais sirailhante á de ura ovo aprumado sobre
uma das extremidades; está postado á borda d'um
grandíssimo rochedo na ladeira de uma eminência.
Por mui avultada que pareça mole tamanha, saiba-
se que basta simplesmente a força de um homcnj
para lhe incutir certo movimento vibratório ; e re-
cebendo o primeiro balanço , o repete sensivelmen-
te por seis ou sete vezes. Ousaram presumir alguns
que este penhasco, ao qual de algum modo pode-
mos chamar oscillatorio, foi assim posto em equilí-
brio sobre o que lhe serve de base por trabalho c
industria humana ; c accrescenlaram que seria al-
guma das celebradas pedras druidicas, symbolo da
antiga religião das Gallias em tempos bárbaros.
Não é o único , que assim balancèa ; outros se tem
descoberto com a mesma e grandemente nutave!
circumstancia ; é porem de todos c sem compara-
ção o mais volumoso.
(•) Temos em metro, no estilo <le xác.ira , este f.acto
roíuanceajo por outra i)eiina. ViJ. o n." 44 desta S.* Serie.
70
o PANORAMA.
129
AS MANUCOSIAXAS OU AVES DO PARAÍSO.
A míTORU das bellissimas manucoriiatas , mais ge-
ralmente denominadas = ares rfo Paraiso^= (oi por
muito tempo, desde que na Europa as conheceram,
um contexto de fabulas e absurdos. Disse-se que a
fêmea fazia a postura voando ; que não tinha per-
nas, pendurando-se pelos dois compridos filamentos
da cauda nos ramos d'arvores onde dormia; que se
alimentava puramente do orvalho celeste ; e só vi-
nha á terra ao cahir morta. Não admira que com
Abril 29—1843.
taes e tão estupendos allributos lhe dessem por ac-
crescimo a prerogaliva d'aninharem noParaiso ter-
real, único logar donde sabiam, segundo os crédu-
los affirmavam. Todas estas ficções estão hoje des-
vanecidas; regeiladas a princípio pela rasão, c con-
cludentemente combatidas depois pela observação
dos factos. São estas lindas aves naturaes da Xova
Guiné e das. ilhas Molucas , onde os habitantes as
colhem com as maiores precauções , para não des-
2.' Serie. — Voi. U.
130
O PANORAMA.
lustrarem a mimosa e variada plumagem , que é a
causal da grande estimarão que teem cm algumas
regiões , servindo as pennas para enfeites de senho-
ras.
As variedades das manucodiatas podem ser coor-
denadas cm duas principacs espécies : uma do ta-
manho d'um pomho naapparcncia, postoque o cor-
po não seja maior que o de um tordo ; outra do vo-
lume de uma cotovia. Os naturalistas que acompa-
nharam a expedirão franccza de 1817 descreveram
exactamente as propriedades destas aves : viram
muitas delias na ilha de Vaigion em a Nova-Guiné
e observaram que pertencem ao numero dos ani-
maes omnívoros ; porem que o alimento mais prin-
cipal delias consiste em fructas e insectos ; que se
aprazem de viver no recôndito e basto das Hores-
tas ; que cm tempo bonançoso pousam nas altas pon-
tas das arvores ; que voam mui rápidas c sempre
contra o vento, porque de outro modo suas boni-
tas pennas lhes cahiriam para a cabeça e lhes im-
pediriam o vòo ; que ao presentirem temporal mu-
dam de paragem e se recolhem a logar mais segu-
ro ; que apesar da corpulência diminuta são atre-
vidas , dispostas a resistir ás aves de prca que in-
tentem persegui-las; finalmente, que não ha exem-
plo de que alguma se tenha domesticado ; e que é
imperleitissima a noticia acerca de seus ninhos,
ovos, incubação, &c.
Não nos espraiaremos mais sobre o assumpto, por-
que acompanhámos a estampa da manucodiala apo-
da ou maior , a pag. 100 do vol. 2.°, de uma des-
cripção das cores brilhantes que a enfeitam , c de
algumas noticias concernentes aos hábitos communs
ás espécies congéneres.
Explicaremos a numeração apposta á estampa pre-
sente : n.° 1 é a Paradisea apoda , que tem o nome
vulgar de esmeralda: n.° 2 a paradisea áurea, cha-
mada de seis fios ou topes, emrasão de seis pennas
compridas que traz na cabeça: n.° 3 a incompará-
vel, descripta pelo celebre Le Vaillant : 4.° a ne-
iulosa, descripta pelo mesmo observador: 5.° aque
denominam manucodiata. soberba , que tem certa ar-
rogância de pavão guardadas as proporções quanto á
grandeza.
De Jebsey a Gra.wille.
(Fragmento.)
I.
Seria pela volla do meio dia quando saltámos no
chasse-marée que devia conduzir-nos de Jersey a
Saint-Maló atravessando aquella estreita porção do
canal que nos separa de França. Sentimentos en-
contrados eram nesse momento os meus. O sol res-
plandecia brilhante , e o ar estava puro e sereno :
era um dia d'outono tão bello como o que mais o
fosse era Portugal. De um lado alteava-se a ilha
com os seus outeiros e valles, solo anfractuoso si-
milhante ao nosso, e a povoação com os seus edi-
fícios cobertos de telha , que nos faziam esquecer
aquelles horríveis tectos iiiglczes de lousa negra ,
espécie de tabuletas do Spleen , penduradas pelos
bretões sobro as suas cidades , e em que parece
lèr-se a iuscripeão de Dante : . , ,
Per me si va nclla citlá dolente.
Do outro lado estendia-sc o- mar, chão c espelhado,
que nos separava da França; desse paiz que para
a mocidade das nações occidentaes da Europa é co-
mo uma segunda pátria : porque lá está o centro
das idéas que hoje agitam os espíritos, em socialis-
mo e em litteratura; lá vivem os escriptores que
melhor conhecemos , que até amámos como se fo-
ram nossos ; desse paiz, a cujos hábitos, tradições,
successos, e glorias, nos teem associado os seus li-
vros, sem o seutirmos, sem talvez o querermos. Ao
approximarmo-nos da França o coração não bate vio-
lento, nem se derramam lagrymas, como ao avistar
a terra em que nascemos ; mas o animo desafToga-
se , e abre-se á esperança : vamos tratar homens ,
que nunca vimos , mas com quem de largo tempo
vivemos pelas intimas relações dos alTectos e da in-
telligencia.
Éramos seis portuguezes a bordo do chasse-marée,
alem de dois marinheiros fraiicezes e um grumete ,
entidades análogas aos nossos antigos desembarga-
dores , cada uma das quaes cumulava seis ou sete
cargos daquclla vacillante c pequena republica, car-
gos disparatados , que todavia as três personagens
desempenhavam perfeitamente, destruindo assim em
parte a analogia radical, que tinham com esses ma-
gistrados de pedante e pesada memoria , que não
desempenhavam bem nenhum. Um cão e três ingle-
zes completavam a collecção dos animaes inclusos
entre as quatro taboas da frágil embarcação.
O chasse-marée é um transporte inarilimo, que na
minha profunda ignorância das cousas navacs me
parece similhaute ao hiale portuguez , ao menos na
inimundicie, e na carência absoluta de tudo o que
seja commodidade. Nisto , entre parenlhesis , não
sou eu ignorante ; porque tenho experimentado uns
e outros , e posso asseverar que seria mui difficul-
toso de resolver qual dos dois géneros de navios
t';m parentesco mais próximo com as rudes e aca-
nhadas galés, em que ha sele séculos Guilherme o
conquistador transportou da Normandia para Ingla-
terra os .■'scendentes da actual aristocracia britan-
nica.
Commoda ou incommoda, era necessário aprovei-
tar aquella detestável jangada para passarmos a Fran-
ça , e isto por duas rasões urgenlissimas : a primei-
ra porque nenhuma outra embarcação havia no por-
to de Saint-IIélier com destino immediato para a
costa fronteira : a segunda porque o preço da pas-
sagem era apenas uma libra esterlina , e uma libra
esterlina era o fôlego maior que podia sahir da bo-
ca das nossas bolsas , cuja phtysica pulmonar ia já
no ultimo período. Tendo-nos portanto ajustado com
o marinheiro que capitaneava o outro marinheiro, e
mettído a bordo os nossos bahus , que pelo leve c
desempedido podiam servir-nos de botes de salva-
ção era caso de naufrágio , sahimos da caldeira de
Saint-Hélíer com uma brisa forte da terra que bre-
vemente nos arremessou para o largo. Era muito
depois do meio dia. Algumas nuvens brancas do
lado do poente recortavam as suas franjas irregula-
res sobre o chão do céu , que a luz do sol tornava
de um azul desbotado. Uaras c diaphanas, aquellas
nuvcmsinhas l)alouçavnni-se no ar , ao que parecia
mais vohiptuariamenle do que nós, que sentíamos
arfar, |)inchando (l'entrc as vagas crespas, o nosso
[lequeno baixel. Pouco apouco aquelles vapores ac-
iiimulados, cujos contornos occidentaes barravam
orlas de ouro, engrossaram, tomando f('irnias deter-
minadas. Depois correndo gradualmente mais rápi-
das, c interpondo-se entre os raios do s(d ja inclina-
dos e o vulto rugoso das aguas, lhes remendavam o
dorso similhaute á pcUe mosqueada do tigre. Este
o PANORAMA.
131
jojTO da luz dava ao mar um aspecto verdadeiro, e
accorde com a sua natureza. Que é elle, de feito,
senão a mais terrivel das bestas-fcras?
E o vento refrescava d'instantc a instante , e os
mastros do cliasse-marée principiavam a sollar de
quando era quando um gemido doloroso, curvando-
sc para as vellas quadrangulares retesadas diante
delle.
O grumete ia ao leme : o marinheiro , que re-
presentava e resumia a companha, de bruços e com
os joelhos sob o ventre, no ademan de nm galo que
se apresta a saltar sobre o murganho iramovcl de
terror , parecia examinar os novellos de nuvens te-
nebrosas que se rolavam no horisonte e cresciam
para nós como uma visualidade de camara-obscura.
A barlavento o arraes ou capitão [capitaine lhe cha-
mávamos nós pelo menos] que representava e resu-
mia a oiricialidade do navio , com o corpo torcido ,
e encostado á amurada , firmando a barba nos bra-
ços cruzados em cima da borda , também parecia
esquadrinhar o céu e o mar. Dir-se-hia que o en-
capellar das ondas se regulava e media pelas rugas
que successivamente augmentavara em numero e
profundesa na fronte tostada do antigo marujo. Im
susto vago e inexplicável como que pairava no
meio de nós. Era que a postura e gesto daquelles
dois homens tinham um não sei que sinistro e mys-
lerioso , similhante ao bofar morno do vento que
precede e anuuncia a procella.
Nós os passageiros . assentados n'uma espécie de
canapé mal affeiçoado, que circumdava a coberta á
proa , tínhamos insensivelmente cabido nm comple-
to silencio : ou para fallar com mais exacção , nós
os porluguezes éramos os que nos havíamos cala-
do ; porque nem o cão, nem os três inglezes tinham
proferido , aquelle um só ladro , estes um só gras-
nido , desde o momento em que saltaram a bordo ,
na abra de Saint-Hélicr. O único ruído que sussur-
rava era o ranger do baixel , e o sibilo do vento
embatendo em nós, e abysmando-se nos nossos ou-
vidos , o que nos fazia escutar um som similhante
ao do pinhal que se estorce e verga ao redemoínha-
rem-lhe por entre as ramas os mil braços da tem-
pestade nocturna.
Os três inglezes eram um velho de cabeça intei-
ramente branca e rosto inteiramenle vermelho : a
primeira, certidão, cujos caracteres desbotara o tem-
po, de que a agua do baptismo passara por alli ha-
via muitos annos , o segundo de que também não
havia poucos que elle , levado de um santo respei-
to pela matéria do principal sacramento, abjurara
de coração o tocar-lhe com os lábios , contentando-
se de humedece-los com os trcs líquidos fundamen-
taes de todos os contentamentos possíveis dos netos
dos kimhris e saxonios — o rhum, o vinho e a cer-
veja. Dos dois, um mostrava ser inglez de cincoen-
ta annos , outro de quarenta : o primeiro , magro ,
da altura de cinco para seis pés craveiros , faces
encovadas, nariz meridional ou antes judaico , islo
é proeminente e adunco , tez , não tanto morena ,
como macilenta : o segundo , typo saxonico , islo é
rosto largo , e achatado , olhos azues , guedelhas
louras, boca profundamente vincada nas extremida-
des do beiço inferior, de aspecto aborrido e orgu-
lhoso como se todo o fumo de carvão de pedra brí-
tannico o cercasse com a sua aureola de gloria na-
cional. De resto uão havia que duvídar-lhes da pá-
tria : indicava-a o cheiro dos seus vestidos , suave-
mente impregnados do fortúm sebaceo de carneiro, e
aromatisados com os effluvios nauseantes da infusão
do chá preto, os quacs constituem a formula odorífera
da sociedade politici chamada os trrs reinos unidos.
Pois também ha cheiros nacionaes? — dirá o lei-
tor. Oue dÚNÍda I — Cada nação tem a sua crença ,
a sua língua , e o seu cheiro. O credo inglez é re-
presentado não sei ao certo por quantos centenares
de seitas, que se mandam reciprocamente para o
inferno , desde a igreja anglicana , em que os bis-
pos e arcebispos — poetas, amphyiriõcs, millionarios
e políticos — bradam anathema contra as vaidades,
luxo, e cubica de Koma , até os methodistas que
vão para os seus templos caçar as inspirações de ci-
ma , inspirações que muitas vezes são papadas por
velha fanática e tonta , e ouvidas pelos seus irmãos
com uma compunção que daria vinte comedias a
Gil Vicente se hoje vivesse, e viajasse pelo Might
Empire do vapor e da cerveja. Isto quanto ao cre-
do inglez : quanlo ao cheiro o que fica dito : quan-
to á língua o que logo direi.
A brisa, que ao sahir deJersey era em popa, ro-
dou successivamente para noroeste , e antes do pôr
do sol soprava já violenta do lado do oeste. Nós se-
guíamos pouco mais ou menos o rumo do sul , e a
mudança do vento posto que ameaçadora , tinha si-
do momentaneamente uma vantagem de commodi-
dade : o chasse-marée corria á bolina , e por isso
o seu arfar se tornara mais suave. No horisonte ,
quasi pela popa , divisávamos ainda o promontório
deNoirmont, e pela nossa esquerda proloogavam-se
quasi imperceptíveis as costas de França, como uma
linha negra lançada ao travez dos mares. O silen-
cio que reinava a bordo dava certa melancholia so-
lemne ao quadro do céu nublado , das vagas revol-
tas , e da terra que parecia quasi desvanecer-se na
orla das solidões do oceano.
O inglez veliio , que ia justamente assentado á
minha direita, a pouco mais de meia milha de
S.iint-Hélier começou a empallídecer. O ar mari-
nho p inimigo figadal do fastio , e por isso lería-
mos apenas navegado duas horas, quando começá-
mos a experimentar, nós osportuguezes pelo menos,
a immutabilidade inflexível desse axioma dietético.
Tirámos algumas das nossas provisões , e pozemo-
nos a despachar os requerimentos do estômago. Of-
fereci ao velho que tomasse parte naquella refei-
ção ; mas elle recusou , declarando-se sea-sick [en-
joado] ; todavia para não perder , como verdadeiro
inglez , os pn')s da minha boa vontade , entendeu
que podia trocar uma obra de misericórdia por ou-
tra , e deixando-se escorregar do banco ao convez ,
fincou-me sobre os joelhos a cabeça enlontecida e
cerrou os olhos. Uecommendei então a Deus os meus
pobres ossos cruraes , ameaçados de chegarem a
França em estado de para nada prestarem , visto
ser a cabeça do velho uma verdadeira cabeça in-
gleza : dura , pesada , e macissa , como o governo
da Companhia na Ásia.
Porque não repellía eu a familiaridade ominosa
do bom do inglez ; de um homem cuja nação , co-
mo portuguez , tenho a obrigação moral de desa-
mar'.' Era porque em conlrario havia duas conside-
rações igualmente moraes. Uma cabeça branca é
sempre respeitável, ainda que assente sobre o tron-
co ermo de coração de um filho da Graã-Brctanha.
Alem disso o cesto de verga em que iam as nossas
provisões estava alli como um espectro que me em-
bargava sacudir a fronte do ancião para o travesseiro
macio do convez gordurento. O porquê desta acção
simpathica do cesto sobre o meu espirito di-lo-hei em
breves palavras ; é uma historia como qualquer outra.
132
O PANORAMA.
Miss Parker de Plymouth era uma donzella de
sessenta annos — excellenle crcatura que nos hos-
pedou por dous mezcs naquella cidade , raedianle
a baeatclla de Ires shcllings semanaes por cabeça.
A Inglaterra , como todos sabem , é o paiz da fran-
ca e sincera hospitalidade. Éramos ahi nove porlu-
guezes , em seis camas e três aposentos , o que da-
va certo ar pythagorico e mysterioso á familia, que,
dirigida por Miss Parker, podia servir de modelo
ás outras ninhadas d'eraigrados que ainda viviam
em Plymouth. iVinguem tinha uma patroa como nós,
e os seus luãginys eram a pérola das albergarias de
Plymouth. A principio havia-se encarregado de nos
preparar a comida ; mas poucos dias podemos re-
sistir aos abomináveis temperos do paiz. íi precisa
uma raça d'estomagos que ainda fosse anlropo|ilia-
ga no meado do quinto século da era chrislaã para
luctar vantajosamente com a cosinha d'Inglalcrra ,
e estes estômagos só os inglczes os possuem , se-
gundo o testemunho do seu historiador Gibbon. Os
nossos cederam a tão dura prova , e vimo-nos obri-
gados a dispensar Aliss Parker do mister de nos en-
venenar. Quanto ao mais éramos verdadeiramente
seus filhos cm espirito ; em espirito , digo , porque ,
alóra muitas rellexões pias que se dignava fazer-
nos , a nós pobres idolatras do catholicismo , obri-
gava-nos a respeitar o domingo no pleno rigor da
igreja anglicana ; isto é a morrer de tédio e triste-
za prohibindo em sua casa todo o género de diver-
timento , ainda o mais innoceote, desde pela ma-
Bhaã até sol posto, momento em que naquelle aben-
çoado paiz Deus cede ao diabo o resto do dia do-
minical , e em que a devassidão e a embriaguez,
tripudiando nos prostíbulos c tabernas, se ving.im
das dez ou doze horas de sermões impertinentes dos
clcrfiymcn , e de psalmos dcsallinados pelas vozes
roufenhas e prosaicas da turbamulta , debaixo das
abobad.is santas , poéticas , e venerandas das anti-
gas igrejas catholicas , repartidas hdje em camaro-
tes de tlieatro pela pureza aristocrática e beata do
protestantismo inglez.
Miss Paiker foi o único fôlego vivo da (iraã-Bre-
tanba , a quem na minha curta passagem por In-
glaterra devi um beneficio: quando partimos para
Jersey deu-nos um cabazinho em que levássemos a
nossa matalotagcm , e derramou algumas lagrymas
ao despedir-se de nós. Aquelle cabazinho era o que
eslava ante mim , e me sustinha cm cima dos joe-
lhos a cabeça do velho. Sobre as vagas procellosas
do canal da Slancha , eu soldava assim as minhas
contas com a Inglaterra.
O vento continuava a rodar para sudoeste, e os
nossos dous marinheiros colheram parte do pan-
no e mudaram algum tanto de rumo: depois torna-
ram a asscnlar-se na mesma postura em que esta-
vam , e tudo voltou ao anterior silencio, que só
era interrompido pelo marulho das ondas espalman-
do-se no costado do chassc-marée.
Mas um llagicio, mais abominável ainda que os
condimentos ferozes do cosinha ingleza, veio cortar
atrozmente esle silencio triste, que representava
no meio de nós a previsão de imniinente procella.
O inglez alto, de gesto esguio, c nariz hebrai-
sante , se assentara ao pé do outro inglez aflciçoado
pelo lypo saxonio. no topo esquerdo da banqueta
corrida á popa. IJuas ou três vezes desde que le\;i-
mos ferro elle dirigiu ao companheiro uma rosna-
dura , a que este respondeu com o estirado monos-
sylaho IVs. A quarta vez, aquella resposta lacóni-
ca foi proferida com certa nielopéa Uc rcsiguação ,
que cortava os fios da alma ) e acompanhada d'um
volver d'olhos azues , cm que se pintava uma sup-
plica de piedade. Mas o inglez aguçado carregou o
sobrolho , e mettendo a mão no seio póz-se a pro-
curar o que quer que era na algibeira interior de
uma das quatro sobrecasacas que tinha vestidas.
Eu observava esta scena ; sabia o que pôde o splecn,
e o receio de algum anglicidio , me passou pela
mente , ao contemplar o aspecto torvo de um , e o
gesto confrangido e timido de outro. O vento sibi-
lava violento , as aguas começavam a tingir-se de
negro , e o céu estava completamente toldado : era
meio poema britannico. Um tiro de pistola , e um
cadáver baldeando no mar completariam uma cpo-
pca. Nas feições do inglez esgrouviado parecia-me
ler duas palavras — Spleen — e Poeta ; c por isso
os meus temores não eram tão infundados , como ,
no primeiro momento , talvez os tenha julgado o
leitor.
E o mais é que eu acertara farejando emMr.Gra-
ham Sénior [eram os dous inglezes irmãos , segun-
do depois soubemos] um fazedor das regrinhas, que
na lingiia ingleza correspondem ao que nas linguas
do ineio-dia c e se chama versos. O honrado Mr.
(iraham não procurava na algibeira o âmago e su-
bstancia da idealidade e poesia britannica — a pis-
tola suicida. Não I — Era cousa mais atrozmente as-
sassina— era um caderno grosso de letra micros-
cópica em que provavelmente se continham as suas
inspirações inéditas! Estava explicada a longa ta-
citurnidade dos dous. O perverso meditava aquelle
fratricídio inlclleclual desde a partida de Saint-Hé-
lier, e os quatro grunhidos abafados que lhe ouví-
ramos tinham sido quatro tentativas para predispor
a viclima. De feito quando elle sacou o alentado
canhenho, Mr. Ciraham Júnior parecia inteiramente
resignado.
Aquelle alanazador das orelhas do próximo co-
meçou a sua leitura pela primeira pagina. Era um
algoz de Cunseiencia , e j,í se podia prever que li-
nha a boa tenção de alormentar-nos cm quanto du-
rasse o dia , que felizmente se inclinava a seu ter-
mo. Como me foi possível percebi aos trinta ou qua-
renta versos que era um poeta da eschola de Pope,
ou , como quem o dissesse enlre nós , um poeta da
Arcádia. Cá teria fallado em Jovc, Marte, e Neptu-
no , nas St usas , nos Zagaes , nas Niraphas , na tu-
ba de Calliope , ou na sanfona não sei de que Deu-
sa : lá, nas inspirações de Mr. Graham , eram as
paixões, os vicios, os alTectos personalisados quem
fazia o serviço dos seus poemas : aqui a Esperança,
alli o Desalento: ora a Temperança , logo a Desen-
voltura. Aquella poesia frigidissima fazia-me lem-
brar do Olympo , do Pindo , e da Castalia , dos
nossos árcades, e de algum modo me consolava das
misérias domesticas, ao ver que a poesia cadavéri-
ca das formas e convenções não vivia unicamente
entre nós, mas ainda ousava no canal da Mancha
misturar as suas semsaborías académicas com o bra-
mido terrível do vento , e com o ferver cslrepiloso
das vagas, que entoavam acordes a sublime invo-
cação da procella.
O poeta esguio declamava as suas regrinhas len-
tamente e cora todos os requebros da melopea in-
gleza , género de canto semelhante ao gemer rabu-
gento de uma creança na primeira dentição. O po-
bre diabo, postoque provavelmente accredilasse que
nenhum de nós o entendia , pensava por certo , que
nova espécie de Orpheu bastavam os sons das suas
palavras harmoniosas para iios arrcLularcm e exta-
o PANORAMA.
133
siarcm a nós selvagens da Europa , como com tan-
ta grara e verdade denominam os escrevinhadores
de John Buli os haliitantes da Península '. 1'eiisava
assim, de certo; porque de quando em quando vol-
via para nós os olhos com a(]uclle sorriso de com-
placência estúpida que é peculiar na cara de um
inglc/. vaidoso , e conlenle de si.
Um dos exemplos mais lamentáveis da cegueira
do cspirito-humano , é a persuasão em que os es-
criplores d'Inglaterra estão de que possuem uma
língua lilteraria fallada , isto é que os sons quasi
inarliculados do seu chilrear e grunhir correspon-
dem sufíicientemcnte aos grupos de caracteres al-
phabeticos de que se elles servem para representa-
rem os próprios pensamentos. Todavia a língua cs-
cripta d'lngla(erra nada tem que ver com a lingua-
gem em que a nação se exprime : são dous typos
<liversissiraos que dão forma sensível ao pensamen-
to. Abri um li\ro cscriplo cm qualquer outro idio-
ma da Europa, e fazei ler por cllc um estrangeiro
completamente ignorante desse idioma ; c o natural
■do respectivo paiz, aquelle que o fallou desde a in-
fância entenderá tudo ou quasi tudo, sn escutar es-
sa leitura. Fazei a mesma experiência com um li-
vro inglez ; o natural d'lnglaterra não entenderá
provavelmente uma única palavra, t que na reali-
dade neste povo, em tudo singular, os signaes cha-
mados letras não tem um valor constante e deter-
minado , e por isso não podem corresponder rigoro-
samente a um som.
.\ Inglaterra ha visto nascer no seu grémio gran-
des poetas. Shakespeare e Byron ba.-.tariam para
lhe dar uma celebridade immensa. Mas a sua poe-
sia reside toda no pensamento , na essência da ar-
te.— As formas externas são rudes , barbaras, ou
lluctuantes. Shakespeare e Byron foram dous selva-
gens , um porque estava alem da civilisarão . outro
porque estava áquem delia : mas foram talvez as
duas almas mais sublimemente poéticas da Europa.
Porque pois não souberam elles ajuntar a melodia
material ás harmonias intimas das suas idéas? Foi
porque não podiam converter em palavras humanas
o intolerável grasnido dos seus compatriotas.
lima cousa que sempre me acontece em ouvindo
lallar um inglez é o notar as mysteriosas analogias
que ha constantemente entre a língua de qualquer
povo e os seus hábitos de moralidade. Considerai
por exemplo a litigua allcmaã : é um idioma per-
feitamente accentuado : os vocábulos escriptos cor-
respondem rigorosamente aos fa liados : não ha ahi
luxo inútil de letras : todas se proferem ; todas re-
presentam um som ou uma articulação. Os caracte-
res do alphabelo germânico nunca serviram para
enganar o estrangeiro. Não achais nisto umi ex-
pressão do animo leal , franco e singelo daquelle
povo? X Deutsche Trcue, a fc germânica, não se re-
flecte como em um espelho na língua desse paiz?
Agora escutai ura inglez : dous terços de cada pa-
lavra, como a representam os signaes alphabelicos,
não se proferem : devora-os o leitor : são uma ar-
madilha para obrigar os lábios peregrinos a darem
syllabadas: o inglez pronuncia com os dentes cer-
rados como se temesse que essas palavras-ouriços
lhe fizessem, ao perpassarem, os lábios em sangue.
Não achais nisto uni typo de cubica e avareza? —
Um pensamento enganoso? — o algodão tecido á sor-
relfa com a laã ? Não descubris lá o pensamento do
tractado de Methuen , ou do desembarque de Qui-
beron. Não se revela no coaxar das raãs de Words-
worlh c dos poetas dos lameiros o lintúh /n(c-
rest ?
Tacs eram as reflexões cm que eu estava embe-
bido em quanto o poeta mastaréu accreditava ter-
nos enleiados a todos com as ni('llilluas toadas do
seu poético lavor. A noite entretanto tombando de
castello em castello de nuvens , lançava sobre o
dorso do mar revolto o seu manto d'escuridade. O
sectário de 1'ope cedeu então ás trevas : fechou o
ranhenho , c resguardou-o outra vez dos olhos pro-
fanos debaixo da meia fabrica de Leeds , que fora
absorvida na mole immensa dos seus quatro casa-
cões.
Mr. Graham .lunior , apenas seu respeitável ir-
mão cessou de ler, volveu para elle o rosto melan-
cholico , c murmurou depois de ura suspiro :
Aije ! — y'eiy goud '.
Com os três Yes precedentes, fazia a conta de
seis palavras , ou grasnos , que despendera naquel-
le dia Slr. (jraham Júnior.
Dous inglezes ridículos são incontestavelmente as
duas cousas mais ridículas deste mundo.
1, •■ ,. (Conctuir-se-haJ.
; I (A. Uerculanu.J
saoiTcicii!. ?c
•^-^T •rriT'^
dà.
Considerações sobre o Curso d' Economia 1'vlitica. pu-
blicado em París^ em 1842 pelo Sr. Miguel Cheva-
lier.
I.
X PKOviNCiv das sciencias sociaes vai-se alargando
de dia a dia, e d'ellas ura ramo muito importante
— a Economia Politica — vai crescendo e avultando
á proporção do progresso material das nações. As
(]ue vão atrazadas , e ainda vagarosas na carreira
da riqueza , que são as que não lera empregado se-
não em mui limitada escala os poderosos instrumen-
tos da producção e da industria moderna , pedem á
Economia Politica lhes ensine o melhor methodo de
aproveitar esses instrumentos. As outras que lendo
pela applicação mais extensa delles chegado a uma
altura considerável de prosperidade relativa , se
achara de repente atacadas no próprio âmago da
sua existência , inquietas com o mal occulto que as
devora inquirem , profundamente sollicítas , a ori-
gem d'elle , indo buscar aos princípios económicos
— o único LSidipo capaz de decifrar o enigma da
sua situação — a chave d'esse mesmo enigma. l'ns
— os que são pobres — para enriquecer , pergun-
tam como hãode obter ou empregar as machinas ,
os capitães, as instituições de credito, e o commer-
cio, o qual não cor.íistindo, em ultima analyse, se-
não no mudar os productos de um logar para outro,
vem quasi a resolver-se nas vias de communicação
maritímas e terrestres. Outros paizes , já completa-
mente armados d'estas forças e instrumentos , que-
rem saber donde nasce a consumpçâo que os defi-
nha, o desequilíbrio que experimentam na sua eco-
nomia, o tremor que abala o seu edificio social, as-
sentado, segundojulgavara, em alicerces tão sólidos.
Todos se chegam, supplicantes , ao altar da scien-
cia , e a sciencia adquire d'aqui duplicada impor-
tância. Tentam-se ensaios: tirani-se iuforraaçõcs e
inquéritos índustriaes : cscrevem-sc livros. E nesta
hora Inglaterra, pátria dos bancos, das machinas,
dos capitães , do commcrcio , dos caiiaes e das es-
134
O PANORA3IA.
tradas, geme e revolve-se na agonia de uma crise,
causada por um solTriraenlo que resume todos os
soffrimenlos da industria — a estagnarão dos produ-
ctos : e rcsiimc-os todos, porque é sempre acompa-
nhado de parilisia nos instrumentos da producrão e
no trahalho dos productores , de qualquer classe
que sejnm. Outros paizes , e nós n'csse numero,
solTrera de outras causas — da falta ou insuílicien-
cia , nu frouxidão ou desacertado emprego dos ins-
trumentos produclivos, directos e indirectos. Quan-
do pois sahe da estampa uma obra destinada a re-
mediar este duplicado mal , o nosso que ó conheci-
do, e o alheio ainda escondido nas sombras do mys-
terio ou da duvida , e a obra vem recommendada
com o nome de um escriptor lãoabalisado comoMi-
chcl Chevalier, seria indesculpável deixar de lan-
çar-lhe os olhos , e de confrontar cora as idéas do
auclor o estado económico do nosso paiz.
Tratando do methodo seguido pelos dois econo-
mistas , Ricardo e Malthus , na exposição das suas
doutrinas , diz o coronel Torrens , talvez com bom
fundamento , que o primeiro generalisa muito e o
segundo mui pouco ; que nas mãos de um tem a
sciencia uma simplicidade que não é natural, e que
se torna um verdadeiro cahos nas mãos do outro.
Tendo por exacta , ate certo ponto , esta observa-
ção , longe estamos de imputar a Michcl Chevalier
o defeito notado a Malthus : desejáramos comtudo
que elle entrasse com o seu facho na escuridade ,
que ainda hoje o é, das questões sobre a origem da
riqueza e rigorosa delinição do valor, eque ahi der-
ramasse a claridade da sua intclligencia , visto que
sobre essas questões e acaso alguma outra , ainda
não está dita a ultima palavra, nem apprescntada ,
mesmo depois da obra de Rossi , solução que satis-
faça , a nosso entender pelo menos. Bem pôde ser
que o auclor obediente ao artigo — preceito — da
sua philosophia social que em economia e no mais
subordina e submelte as theorias abstractas ás tra-
dições, ás tendências, aos instinctos e aos votos das
sociedades e dos indivíduos, intente na ulterior pu-
blicação do seu curso , examinar aquclles e ou-
tros pontos duvidosos, separados não, unidos com
alguma questão prática de interesse material e pal-
pável. E se esse foi o seu intento , lique retractado
o nosso reparo , o qual , «linda assim , não significa
senão uma homenagem aos talentos do auctor , e
um excesso, se quizerem , de zelo nosso c de amor
que votámos á sciencia.
O auctor começa, e bem, tombando c demarcan-
do as províncias alheias á Economia l'(ditica ; e di-
zendo a esta : alli está o princípio da família ; aco-
lá o da propriedade , cuja origem se confunde com
a dos séculos; além o principio da igualdade legal
que classifica os homens segundo os talentos e os
serviços de cada um ; mais adiante o da ordem, que
quer dizer que o progresso material , successivo e
contínuo como hade ser , se deve realisar sem vio-
lência ; e por elle o pensamento religioso da frater-
nidade universal. Estes princípios elementares e
eternos respcítaí-os : nem discuti-los vos é permit-
lido. Agora o vosso domínio ei-lo aqui — os interes-
ses materiaes.
Vasto e importante domínio I Esses interesses são,
na opinião do auctor , apoio indispensável e condi-
ção essencial da liberdade; c porque o são? Por-
que a liberdade consiste, segundo elle , no assegu-
rar a cada um os meios de desenvolver as suas fa-
culdades, c de as exercer, depois, do modo mais
vantajoso a si e aos seus similhantes. E como o ho-
mem que tem fome não é livre , porque não pódc
dispor das suas faculdades , nem desenvolve-las ,
nem exerce-las ; moralmente , embrutece-se ; in-
telleclualmcnte , cahe em torpor ; fisicamente , fal-
lece-lbe até a força bruta. — É mister que a indus-
tria, que os interesses materiaes venham tira-lo d'es-
se estado, e levantar-lhe esse interdicto. Elles com-
tudo não bastam á liberdade , personagem do mun-
do moral : mais alguma cousa é preciso a esta : as-
sim o entende o auctor , e nós , também , o enten-
demos.
Continuando sempre o fio do sen pensamento , o
escriptor mostra com a historia na mão como aos
interesses materiaes se prendem os destinos da ci-
vilisação inteira ; como a liberdade e a industria
são solidarias ; como os progressos da primeira se
ligão aos da segunda ; e como se engrandece o al-
vediio, a liberdade do homem , estendendo as con-
quistas da humanidade sobre o mundo material. O
auctor quer chegar e chega ao facto da producção
e do seu augmento, á cultura do trigo — passo im-
portante do selvanismo primitivo para a policia das
sociedades modernas ; — á descoberta e applicação
do ferro — adiantamento mais considerável ainda ; —
ao desenvolvimento da potencia productiva ; á in-
venção dos instrumentos da industria , órgãos sup-
plementares que o homem acrescenta aos seus ór-
gãos naturaes. Olhando então para as sociedades an-
tigas, vè-as miseráveis ; e porque? porque a sua pro-
ducção e os seus instrumentos productivos eram mes-
quinhos. Contemplando as sociedades modernas, cn- |
contra-as cm muito maior auge de prosperidade com- i
parativa ; e porque? porque o seu poder productivo
é extraordinário em relação ao das outras — de seus i
antepassados. I
Assim conclue o auctor que o verdadeiro remé-
dio aos males que se sentem na economia das na- i
ções, é o augmento da producção: — produzir mui-
to ; produzir mais ; produzir melhor ; produzir com
mais brevidade : o que só com as machinas , com i
os instrumentos aperfeiçoados se ha-de conseguir. ;
.Alas esses, observa o auctor, não se adquirem se- I
não com a economia, resto sobejo dos productos do |
trabalho anterior. Sobre a economia, que é — seja- |
nos licito assim qualificá-la — a primeira forma, o \
estado primitivo (los capitães, é demasiadamente omis-
so : e não o devia ser n'este ponto gravíssimo da
sciencia, o qual, apesar de se ter escripto bastante j
acerca d'elle. não reputámos inteiramente explorado. '
Sem embargo d'esta falta nota que o governo fran-
cez poupa todos os annos, vai em 7 ou 8, cem mi-
lhões de francos para melhoramento das vias de
communicação, e que para o mesmo fim poupara os
departamentos e as communas (>0 milhões de fran-
cos cm cada anno. E nota também o peso excessi-
vo cora que grava a Europa a enormidade dos seus
exércitos, e as sommas que, segumdo-sc outro sys-
tema, ecouomisadas n'este ramo se podciiam appli-
car a uso mais productivo. De ambas estas consi-
derações podemos nós , creio cu , tirar no que nos
são appropriaveis , algum ensino c proveito.
No empcidio de augmentar a producção, neste
que o auctor reputa o grande c serio negocio do nos-
so tempo, prosegue. buscando, alem das machinas,
outros meios mais geraes de o conseguir , e esses
divide-os em trcs : vias de communicação, institui-
ções de credito — e educação professional. — E um
pensar systemaíico, naaccepção mais plausível d'cs-
o PANORAMA.
13S
ta palavra, fi um espirito superior que havendo des-
coberto, nomeio de suas meditarues, uma i d ('a fun-
damental, delia seapodera, enão alarga emqiian-
to a não tem considerado por todas as suas laces ,
cm quanto não vè estendidos as raizcs e os ramos
d'essa idéa até onde o comporta o objecto onde a
emprega. Convencido de que as classes mais nume-
rosas da sociedade se lia\iam de regenerar e felici-
tar á sombra do trabalho e da industria compoz a
sua obra — Dos interesses materiaes na França — c
n"essa obra tratou cspecialmcnlc dns vias de com-
municaião, qnc era a primeira parle do seu pensa-
mento ; promellcndo expor em publicações succes-
sivas a sua doutrina sobre instituições de credito e
educação professional , cora que julgava completar
esse mesmo pensamento. Agora vai , da cadeira do
magistério, p(ír o remate á promessa que havia fei-
to. N'este primeiro anno do seu curso reconsiderou,
c magistralmente, desde a 10. "" até á 15." lição que
é a ultima , o assumpto das estradas , rios , e ca-
naes , e nos seguintes ha-de examinar, como a pri-
meira, as outras duas questões , e com ellas fechar
o seu círculo económico.
Tratando da balança do commercio e da theoria
da moeda metallica em duas lições cheias de notí-
cias interessantes e observações engenhosas, refere
o auctor uma indagação curiosa que ha-dc , se lõr
coroada de successos, causar uma grande revolução
no syslema monetário. Um membro doinstilulo, M.
Becquerel, trabalha ha muitos annos para achar
meio de applicar a pilha galvânica ao tratamento
dos mineraes de ouro c prata : se o chegar a con-
seguir [e al!irma-se que está a ponto d'isso] empre-
gado esse agente processo, que ha-de ser rauilomais
expedito que o azougue, na exploração dasinexbau-
riveis minas do México, renovar-se-ha em nossos
dias a abundância, e a depreciação ao mesmo tem-
po , do dinheiro que se presenciou ha obra de três
séculos, e os estados que maiores soramas possuí-
rem experimentarão uma perda considerável. Isto
receia o auctor : nós accrcscentâmos que não só o
numerário, também as jóias e peças de ouro e pra-
ta hão-de soffrer baixa sensível no seu valor , se o
problema que occupa a attenção do cbimico fran-
cez se resolver. Na presença de um tal receio os
próprios partidários da balança do commercio, c
ainda os mais tenazes, abjurarão a sua errónea cren-
ça , e desejarão afastada , não atrahida ; escondida
para sempre no seio da terra , não lançada na cir-
culação commercial ; essa massa prodigiosa de me-
lacs preciosos qnc ameaça lançar u'ella o preconi-
sado substituto do mercúrio.
Depois das vias de communicação este assumpto
da moeda metallica é o mais bem desenvolvido pe-
lo auctor. Mas o primeiro é o seu predilecto, o the-
ma dos seus estudos especiacs. Dá-Ihe uma prefe-
rencia decidida : chama primordial á industria dos
transportes , porque todas as outras dependem d'el-
la ; e se tão atrasada ou tão susceptível de melho-
ramento e progresso a suppõe ainda em França, que
diria se lançasse os olhos sobre a de Portugal?
(Continuar-se-ha.)
A. d' O. Marreca.
AITTI^ITIDAS:
Medalhas achadas em Fcrmcdo : para melhor averi-
guação do que chamam — cidade rcsuscitada.
JoKTo a Fermedo estão apparecendo vestígios de an-
tiga povoação. Mas qual fosse olla c em que tempo
ó o que resta avcrigi--r. Mais de um edilicio roma-
no tem o nosso Portugal ; c se o castello da Feir.i
SC presume ser um delles , se ainda existem nas
nossas províncias do norte algumas lapides millia-
rias, nenhuma dilliculdade ha para conjecturarmos
que esses edifícios soterrados , que agora vão appa-
recendo sejam romanos e de remota antiguidade.
Felizmente o abbadc de Homariz encontrou naqucl-
les mesmos sitios uma quantidade de medalhas ro-
manas , que existem hoje no real Archivo da Torre
do lombo, as quaes ainda que poucas, talvez mui-
to e muito interessem para o nosso assumpto. N.t
verdade, .se essas medalhas , cujo uso iirimitivo foi
o de moedas, existiam em poder de seus últimos
possuidores com o mesmo uso primitivo , e não co-
mo um deposito de curiosidade , como hoje as tem
os nossos medalheiros, dão toda a rasão plausível a
accreditar que esses edilicios , sens companheiros
de fortuna , tem a mesma antiguidade que as mes-
mas medalhas.
Vejamos por tanto quaes são estas medalhas pre-
cursoras de um achado tão precioso para os ama-
dores de antiguidades [sendo a daquelles edificios
que se vão descobrindo, como presumimos, supe-
rior ádas duas cidades, que as lavas do Vesúvio ou-
trora submergiram]. Porem dêmos primeiro uma no-
ção geral aos índoutos da classificação que os liu-
misTualicos fazem das moedas ou medalhas romanas.
Di\idcm elles as mesmas moedas ou medalhas em
consulares e imperiaes. Ordenam as segundas chro-
nologicamente com referencia ao governo de cada
imperador: em quanto ás consulares , porem , não
tendo ellas caracter algum certo que dislinguam os
consulados as classificam pelas famílias dos magis-
trados , que tinham a inspecção da moeda.
Dada esta noção passemos a fallar das medalha*
em questão. São todas consulares, e todas ou qua-
si todas denarios ; e confrontadas com a magnifica
obra = Thesaurus Morellianus = se vè pertencerem
ás seguintes famílias: —
1 á família vElia — 1 á /Emília — 1 áAtilia — 1
a'Ca;cilia — 2 áCalpurnia — 1 á Claudia — 1 á Clou-
lia ou Clwlia — 3 á Cornélia — 1 á Cossutia — 2 á
Crepusia — 1 á Cupienna — 1 á Egnalia — 2 á Fa-
bia — 1 á Fannia — 1 á Farruleia — 2 á Flaminia
3 á Fúria — 1 á Herennia — 1 á Junia — 1 á Lu-
cretia — lá Lutatia — 1 á Manilia — 2 á Maniia —
2 á Mareia — 1 á Maria — 2 á Minutia — 1 á Ncr-
bana — 2 á Porcia — 1 á Uubria — 1 á Rutilia —
— 1 á Satriena — 1 á Saufeia — 1 á Sentia — 4 á
Sergia — lá Thoria — 2 á Titia — lá Tituria — 1
á Valeria — 1 áVargunteia — 7 ãVibia — 1 á Vol-
teia.— Sonima 63 ; 8 incertas; 1 do mesmo tama-
nho, propriamente hispânica com caracteres desco-
nhecidos. Total das medalhas remettidas ao Arcbi-
vo 72.
Se pois estas medalhas ficaram enterradas no mes-
mo tempo que os edificios, e se ellas então tinham
o uso de moeda corrente , está bem provado que a
desgraça commum desses objectos foi pelo menos
nos últimos tempos da republica romana , isto é ,
há já decorridos li> séculos completos.
,.. _ ,^ M. J. U.
Vantajosa separação das duas ameeicas.
Em sessão de 26 de dezembro de 1842 annunciou
o Sr. barão de Humboldt á Academia de Sciencias
encorporada no Instituto de França que os trabalhos
136
O PANORAMA.
preparatórios para o córlc do isthmo de Panamá
proggridem rapidamente. Empreza c esta mais gi-
gante que a do cgypcio Scsostris que iutentára cor-
tar u istliino de Suez ; e por um canal al)erto nessa
lingua de terra , que prende a Africa á Ásia, sepa-
rar os dois continentes.
A coHimissão, auclorisada pelo governo da ísova-
dranada [lara construir um canal entre o oceano pa-
cífico e o golpho do México, terminou o reconheci-
mento dos terrenos , e obteve um resultado tão fe-
liz como inesperado. O encadeamento das cordilhei-
ras não se prolonga , como se cria , atravez do is-
thmo, e ao contrario reconhcceu-se a existência de
um valle mui adequado á tentativa ; a disposição
uatural das aguas é igualmente mui vantajosa. Jun-
tar-sc-hão ao canal três rios fáceis de encaminhar;
aquelle lerá 49 milhas hispânicas d'extensão, 135
pés castelhanos de largo ao nivel d"agua , e 55 no
fundo, tendo de profundidade 20 pés; por onde po-
derão navegar embarcações de mil a l.iOd tonela-
das. Das plantas e orçamentos do ingenheiro fran-
cez. Morei, resulta que o cosleamento total, incluí-
da a compra de dois barcos movidos por vapor, não
excederá a 56 milhões de reales.
Se vier a realisar-so tão grande projecto causará,
como outrora a passagem á índia pelo Cabo delioa-
Esperança , revolução completa no commercio ma-
rítimo , fazendo que se abandone a navegação pelo
r.abo de Horn , e encurtando três mil léguas marí-
timas as viagens que procederem do mar do Sul ; e
o estabelecimenlo que osfrancezes ha pouco fizeram
nas ilhas Marquezas chegará a ser de alta impor-
tância , c Colónia mui llorenle.
O isthmo de Panamá propriamente dito é a mais
oriental e a mais estreita porção da grande facha de
terra pela qual estão unidas as duas Américas ; nie-
dindo-se pela curva que descreve achar-se-ha que
tem de extensão de leste a oeste perto de 500 mi-
lhas náuticas inglezas [150 léguas portug. de 18 ao
grau] ; porem a sua largura varia de 30 a 100 mi-
lhas [9 a 30 das ditas léguas].
1'ostoque a largura do isthmo , comparativamente
pequena, fosse descoberta cedo, e patentes as gran-
des vantagens que podia oflerecer de prompla e fá-
cil communicação entre o Atlântico e o Pacifico ,
por tresentos annos depois do descobrimento perma-
neceram desconhecidos os caracteres natnraes deste
terreno ; até que o inglez LIoyd em o nosso século
o visitou e examinou no sitio mais oriental e es-
treito ; e mostrou que bem longe de agreste e ári-
do , como alguns suppunham , é feraz e cultivável ;
só de arvores , de úteis madeiras , reconheceu 90 ;
e algumas delias dão fructos bons para comer. O
isthmo constituo um departamento da republica da
Nova-Granada , dividido em 2 províncias: mas tal-
vez que mais de um terço do território ainda este-
ja occupado pelas tribus aborígenes,
6ibli0ôvaj)ljia.
f — Compendiei dn Geometria prarlira applicada ás
operações de Desenho. Lisboa 1839. — // — No-
ções theoricas de Architectura civil . Ibi. Idem. —
IH — FAemrntos de Perspectiva Thcorica c. Pra-
fílica. Ih. 18Í2.
KsT\8 trcs obras publicadas succcssívamcnte pelo
.Sur. J. da C. .Sequeira, Professor e Secretario da
.\cademia de Bellas-Artes , e por elle destinadas
principalmente , segundo se colhe das suas mesmas
palavras, para ouso dos discípulos da .-Vcademia
das líellas-Artes de Lísbua , são um grande e im-
portante serviço feito pelo Sur. Sequeira ao seu
paíz. íi por isso que, attcntos sempre a tornar ge-
ralmente conhecido tudo aquillo de que pode resul-
tar utilidade ou gloria para esta pobre terra de Por-
tugal , julgámos dever nosso dar noticia destes es-
críptos que preenchem, não um só, mas ambos
aquelles fins.
A arte é una : as suas formulas são varias. Quan-
do ella toma a linguagem humana por expressão ,
precisa d'acceitar as condições positivas da lingua
que o artista escolheu para traduzir os seus pensa-
mentos; se a utilidade dos preceitos arbitrários das
doutrinas litterarias é mais que duvidosa , a da
grammalica é incontestável : assim nas formas plás-
ticas da arte, em que a matéria e a extensão cons-
tituem o domínio do artista , e portanto é seu mis-
ter fallar aos olhos , elle forçosamente ha-de accei-
tar as condições absolutas dos corpos e da visuali-
dade. É o conhecimento indispensável dessas con-
dições que o Snr. Sequeira qniz facilitar aos discí-
pulos da Academia, e aquelles artistas que porven-
tura as ignorarem. Cultor especial da Architectura
dedicou, porem, a esta arte um trabalho particular,
compilado em resumo do que melhor havia sobre a
matéria , e que o digno Professor completou com a
traducção do Tractado sobre as cinco ordens, com-
posto pelo celebre Vignola.
O Sfir. Sequeira entendeu perfeitamente o que
acima dissemos sobre as condições absolutas das
artes plásticas ; entendeu uma grande verdade, que
alguns artistas parecem menoscabar — a necessida-
de de se instruírem nos princípios scíentiDcos, que
sem estudo nunca o maior e mais alto engenho po-
derá supprír. Crccm elles que os artistas da edade
media eram homens de menos génio, de mais li-
mitada inspiração , que os dos tempos posteriores
ao renascimento? Não o eram por certo: porventu-
ra a sua fé na arte foi mais viva e pura que a dos
modernos ; porque a arte se estribava então na cren-
ça religiosa. Porque, pois, são geralmente as suas
obras inferiores ás que appareccram depois? Por-
que elles eram incomparavelmente mais ignorantes
das condições physicas do mundo, das leis que pre-
sidem ao modo de ser dos corpos. D'aqui nasce a
precisão do estudo positivo, sem o qual nenhum ar-
tista, sejam quaes forem os seus dotes intellcctuaes,
chegará a ser verdadeiramente grande.
O que nas publicações do Snr. Sequeira contri-
buc notavelmente para a gloria das artes portugue-
zas é a execução das numerosas estampas , que
acompanham os Elementos de Perspectiva e as No-
ções d'iArchilectura , desenhadas pelo illustre pro-
fessor , e gravadas pelos Shrs. Almeida , Monteiro .
Santos , e Uibciro. Estas (/raruras são , como obser-
vou já outro jornal, d'uma clareza, exacção, e até
elegância , que nada teem para invejar ás estran-
geiras neste género , obtendo assim o Snr. Sequei-
ra o que nem sempre cm semelhantes trabalhos se
alcança — excelleutes interpretes dos seus excellen-
tes desenhos.
(A. Herculano.]
Dkspreza os hypocritas. ou da-lhes o que anhelam,
verás logo desenrugadas as carrancas do seu embu.s-
le, que quasL sempre inclina á avareza e ambição.
71
o PATSORA^IA.
137
. - t,- ■
»Au£.£S.
Nobre e grandemente nacional foi o pensamento da
erecção de uni monumento á memoria do infante
D.Henrique, no próprio logar que elle havia esco-
lhido para estabelecer a famosa eschola de mathe-
maticas e navegarão, donde sahiram os nossos pri-
meiros navegadores , e que por consequência foi a
origem dos pasmosos descobrimentos que devassa-
ram á Europa os mares , portos e preciosidades do
Oriente. — Sagres, que o infante fundou á volta de
Ceuta , c onde residiu por muito tempo e veio a
findar seus dias , hoje sitio quasi ermo , reduzido a
uma praça marítima de diminuta guarnição , é um
nome tradicional e histórico , que percorre o mun-
do por beneficio da impressão : mas os olhos dos
que a visitaram até ISiO não descobriram uma pe-
dra , nma inscripção , que lhes avivasse a recorda-
ção, exarando a gloria do illustre D. Henrique. Es-
ta oodoa de negligente esquecimento , de que para
com tantos varões beneméritos da pátria somos cul-
pados, foi apagada no anno apontado , assentandq-
se o monumento , com as inscripções que diremos
adiante , a pag. 1 íO.
A ponta , ou promontório de Sagres , na costa do
Algarve , obra de uma légua a leste do Cabo de S.
Vicente (1) , forma uma península de 450 braças
d'extensão, desde o meio da garganta do islhrao ou
lingueta que a prende á terra até a ponta que mais
entra pelo mar e na direcção de nordeste a sudoes-
te , com 200 braças na maior largura , que é quasi
ao meio desta superficie (2). O solo é um rochedo
escalvado , que apenas em algumas fendas entupi-
das d'areóla mantém a enfezada vegetação de mat-
to rasteiro , que não cresce mais de ura palmo aci-
ma do chão : parece que esta assentado em aboba-
da feita pela natureza e o correr dos annos, o que
se confirma pelas concavidades na raiz banhada pe-
las ondas, e mais ainda pelas aberturas do nivcl su-
perior , que são outros tantos respiradouros , por
(1) Vid. estampa e nolícia a paf. 117 do vol- antece-
dente.
(4) Exiractátnos esla informação do relatório circums-
taDciado qiie o Sr. Ix)ureDçc Germack Possollo appreseDtou
ao Governo.
M.UO 6—1843.
onde resfolga impetuosamente o vento , e jorra o
mar a grande altura espalhando a larga distancia a
salsugcm , que esterilisa os campos contíguos ao
promontório.
X fortificação desta paragem [com toda a proba-
bilidade] deveu sua origem ao infante D. Henrique ;
em tempo de Filippe 3.°, pelos annos de i(i31 , a
repararam ; e foi reformada muito posteriormente ,
em 1793 : por isso é de crer que , tomando nós de
um a/6ií»i antigo o desenho , que copiámos , algu-
mas differenças possam notar-se : quanto ás casas
ou paços onde morou o infante e tivera as escholas,
não se encontram vestígios certos , apesar das pou-
cas tradições locaes que se conservaram ; nem as
conjecturas podem tomar bases seguras, porque fo-
ram destruídos os documentos e livros da camará
de Sagres , quando o seu mui limitado concelho foi
annexado ao de Villa do Bispo. A fortificação exis-
tente quadra o termo próprio de tenalha . sem fos-
so, nem estrada coberta, servindo-lhe d'esplanada
o terreno com a sua inclinação natural para o lado
da campanha, que é plana e se descobre na distan-
cia de mais de duas léguas; e quasi até o alcance
da artilheria , principiando da raiz da muralha , é
incapaz de admittir os trabalhos de apro.rcs , por
ser rocha da mesma natureza da península, com al-
gumas pequenas ondulações. Dos extremos dos meios
baluartes corre a muralha pelas extremidades da
rocha , fechando assim de ambos os lados os ba-
luartes , e nestes raraaes de muralha estão forma-
das duas baterias para guardar as bahias. Contigua
á cortina e quasi no meio delia para o interior da
praça , existe uma torre quadrangular , de 50 pal-
mos d'altura , com 12, 14, o 1!S de espessura no
pé das muralhas que a compõem. A entrada prin-
cipal da praça , no exterior ao moio da cortina por
um corredor que atravessa o seu reparo , é conti-
nuada por baixo da abobada da torre , onde forma
uma porta para o interior da praça, junto da qual
e encostada á torre está a entrada para o corpo da
guarda. O alto da torre ou a sua plataforma c guar-
necida de parapeitos , formando um pentágono re-
gular com o vértice para a campanha , com canho-
2.' Serie. — Voi,. II.
138
O PANORAMA.
neiras rasgadas, ficando a cavalleiro da recinto ma-
gistral, iv esta torre o único edifício existente , que
indica mais remota antiguidade , e por ser o mais
nobre da praça foi escolhido pelo hábil otficial, en-
carregado da coUocação do monumenlo, oSúr. ?os-
sollo , que o fez assentar na parede por cima da
porta. — Quanto aos quartéis , feitos em 1793 sao
edifícios acconimodados ao intento , mas pequenos ,
nem tem cousa que mereça especial menção. IVo ex-
tremo da peninsula ha duas pequenas baterias , a
leste e a oeste, que entre si distam cento e trinta e
cinco braças.
SaOlTOlCIii PSLITICA-
Considerações sobre o Curso d' Economia Poliiica, pu-
blicado em Paris cm 1842 pelo Sr. Miguel Clieva-
licr.
II.
£ FACTO verdadeiramente singular na historia das
nações este da nossa , que tendo nós descoberto e
dobrado o cabo de Boa-Esperança , doando assim á
custa de muito sangue e cabedal nosso aos povos
de ambos os hcmispherios uma estrada magnifica ,
muito mais facil e barata que a antiga para o car-
reto dos seus productos, despresassemos as commu-
nicações do nosso solo natal ao ponto que todos ve-
mos! Bastava que das riquezas, que grangearam no
commercio das colónias, consagrassem os nossos an-
tepassados uma parceila cenlesimal ;ís estradas c ao
aperfeiçoanienlo dos nossos rios para que hoje fos-
semos o que não somos por nus faltar este titulo de
civilisação — uma nação curopea. Não o fizeram.
Absolve-los do seu descuido , emendando-os , era o
que nos cumpria. Mas não só absolvidos, justifica-
dos estão por nosso desleixo.
E comtudo não ha nada mais fatal do que este
desleixo á prosjieridade do reino. As más eslr.idns
ou a falta delias podem dobrar e até quadruplicar
o preço dos géneros , sem que o produclor utilise
esse excesso que é prejudicial ao consumidor — o
preço do trabalho, sem que o trabalhador utilise es-
se excesso, que ó cm damno do proprietário — e o
lireco do transporte , sem que ninguém utilise es-
se excesso, que é todo em detrimento do produclor
c do consumidor juntamente. É uma perda gera!
para toda a sociedade.
Esta perda é incalculável no estado , para deplo-
rar , das nossas estradas, e navegação interna. Ha
porções consideráveis de terreno que carecera abso-
lutamente de caminhos transitáveis ; ha rios e cor-
rentes que não prestam nenhum serviço <á conduc-
ção , porque não tem sido aproveitados , canalisa-
dos, ou, emfim, meltidos no grémio dos instrumen-
tos productivos por meio de obras convenientes. O
principal damno que resulta deste abandono, é a
impossibilidade ou a carestia do carreto: o outro,
lambem assaz grave, é causado á saudc publica e à
cultura : á saúde publica pela estagnação das aguas
c deposito que fazem de resíduos animacs e vege-
taes expostos ao ardor do sol ; donde nascem inter-
mitlontcs no nosso Kiba-Téjo, em Silves e suas im-
niediações no Algarve, e em outras partes do reino:
;í cultura pela inundação, e repreza das aguas cm
terras aráveis , causada da sinuosidiídc e direcção
irregular das correntes. Quem esmar , não digo já
calcular , por um lado os terrenos que assim são
perdidos para a lavoura , e por outro os indivíduos I
que a morte dizima , ou a doença inutilisa tempo-
rariamente por esto motivo , ha-de affligir-se . c la-
mentar o descuido com que tem sido entre nós tra-
tado este ramo do serviço publico.
Mas não olhemos esta face do objecto , o nem
mesmo o ciamno negativo que está sofTrendo a cul-
tura cm algumas partes do nosso solo por falta de
irrigações : contemplemos somente o transporte. O
transporte onde elle é possível — que cm muitas lo-
calidades não é — está-nos custando, pelo menos,
duas vezes mais do que devia custar-nos , se as
nossas communicações , terrestres e Duviacs , csli-
vesscm em lermos , não quero que de perfeição , de
mediania. E digo de mediania, porque tomáramos
nós alcança-la em nossos dias. Suppondo — c sim-
[)lcs supposição , raas não pecca por excesso — que
actualmente íe dispenda no transporte de homens c
mercadorias dois terços sobre o esforço que devia
ser-nos necessário n'um estado regular de commu-
nicações internas , é evidente que esse accrescimo
de esforço que podia ser empregado n'outros traba-
lhos industriaes , fica absorvido nos d> carreto. Se
estimarmos em 5000 rs. a renda anuual de cada
portuguez da Europa , distribuída por uma popula-
ção de 3:300:000 habitantes, a totalidade d'essa
renda será ICo mil contos. E se calcularmos o cus-
to dos transportes no vigésimo d'ella , a totalidade
d'esse custo serão 8:230 contos , cujos dois terços ,
que é o que perdemos, por supposição , [não exag-
gerada] annualmenle no carreto , montam á somma
enorme de 7500 coutos I Eis-aqui o que desperdi-
çámos annualmeulc, só nntocantc adcspeza dctrans-
portes , por não allendermos á viação das estradas
e rios. Desperdiçámos uma quantia que excede ao
triplo do juro anuii.il da divida estrangeira , a dois
terços da nossa reccila , c é igual á subsistência de
75000 pessoas, orçada cm 100000 rs. annuaes por
cada uma.
Sem melhoramento n'este ramo não podemos dar
um passo em nenhum outro : e a nossa agricultura,
em que lemos obtido muitas vantagens desde as me-
didas económicas da restauração, ha-de parar no seu
adiantamento e até retroceder em chegando a certo
ponto , se lhe não facilitarem a locomoção ; porque
não basta tè-la desassombrado dosobslaculos moraes
que se oppiuiham á sua circulação , é indispensável
libcrla-la de outros, que são os fisicos , oficrccidos
pelas distancias, e a natureza do terreno.
Um dos iiiciinvenienlcs que appresenta esta con-
dição, verdadeiramente africana , das nossas com-
municações, a que bem pouca, se alguma, atlenção
seda, consiste na impossibilidade em([ue nos põem
de orçar o quantijm de impostos que, sem risco da
sua \ilali(ladc, podem supportar as nossas forças
productivas. Os cálculos que se fazem, comparando
a prrn I!a pecuniária de tributos que em Portugal
foca a cada individuo cora a quota análoga em ou-
tros paizes , para se concluir que os nossos contri-
buintes estão mais aliviados que os de algumas na-
ções, são completamente defectivos ; porque ainda
que oito vinténs sejam ígnaes a um franco, na rela-
ção mondaria , esta mesma quantia tem diirercntc
valor permutável segundo os diUcrentes paizes, c o
imposto de um franco pago na Bélgica não equiva-
le a um imposto de oito vinténs pago em Portugal.
Mas , sobre tudo , a importância das coiilrihniçõcs
que uma nação pôde [lagar não se regnl.i peio que
|)ag,im ou podem pagar as outras : regula-sc pela
facilidade, maior ou menor, da producção nacional
de cada povo. O povo onde a producção c facíl pó-
o PANORA^IA.
139
de ser mais tributado do que outro onde c dillieil ;
e as dilliculdadcs que ella cncoiilra são outros tan-
tos impostos , negativos para o estado que os não
recebe , onerosos para os particulares que os sup- |
portam em pura perda. Ora d'estes um dos mais
pesados que a nós nos gravam, cque ninguém nict-
te em conta , é a falta de comnuiiiicaçõcs. Tributo
d'esta cs(>ecic, tão avultado como o que nos oppri-
me , não opprimc a nenhum paiz da Europa , exce-
ptuando a Rússia. Por isso aflirmci eu que o esta-
do dos nossos caminhos e na\egnção interna nos
conslilnia na impossibilidade do avaliar ale onde
podia subir, sem damno das fatuldndes producti-
vas do reino , o algarismo dos nossos tributos.
Uma das maiores vantagens dasconducçõcs fáceis e
expeditas é a l)arateza dos géneros; e abaratezados
géneros, sobre tudo d'alguns dos de mais geral consu-
mo, é um dos indicios mais infalliveis da prosperida-
de de ura paiz. Esta barateza proiiorciona melhor aos
cidadãos, quando consomem , a satisfação das suas
necessidades , e até assegura mais aos que produ-
zem a extracção dos seus productos. Aos producto-
res , certamente , conviria mais a elevação dos pre-
ços , se a fortuna do grande numero que consome
podessc com estes : mas não podendo , o resultado
dos preços altos será sempre uma diminuição pro-
porcional na extracção das mercadorias , que nin-
guém ha-de allirmar seja favorável aos interesses
dos que as produzem. Não é dos géneros raros em
rasão de monopólio natural, nem de alguns artigos
agricoias, indispensáveis, mas de produccão, limi-
tada pela natureza das cousas, que trato, que os pri-
meiros não podem chegar ás classes mais numerosas
da sociedade, e por isso mesmo ou o seu preço ha-
de forçosamente ser subido, ou o seu fabrico aban-
donado ; e a depreciação extrema dos segundos não
pôde ser argumento da fortuna nacional : fallo dos
procurados por essas classes , e necessários á sua
subsistência : e reduzo a questão á ultima simplici-
dade dizendo : que a prosperidade não pôde conce-
ber-se sem a abundância , e que a abundância não
pôde casar-se permanentemente com os allus preços
dos productos cm muitos casos , c da produccão em
todos. Que se por outro lado se considerar, que ha
productos no nosso paiz, os quaes não podem sahir
do berço onde nascem , ou passar alem de um raio
mui limitado de consumo , por carestia ou impossi-
hilidade de transporte, q\iem se atreverá a duvidar
de que este mal está reclamando remédio, e prom-
pto?
Províncias e pontos ha no reino mais distantes de
outros pontos do reino do que de alguns paizes da
Europa ; mais distantes , pelas léguas não , pelos
maus caminhos. Esta casta de distancia obrigava
Lisboa a importar trigo de Odcssa : e ainda hoje a
obrigaria , como ha bem poucos annos , se o au-
gmcnlo dos cereaes no Riba-téjo e n"outras partes
a não bastecesse d'elles. A experiência de lodos os
dias , e o simples instincto estão ensinando que as
fabricas e as terras de lavoura quanto mais próxi-
mas ás grandes povoações c cidades , tanto mais
augmentam em lucro e em valor : e que tanto mais
diminuem em ambos, quanto mais se aflastara d'es-
tes grandes focos de consumo. Figuremos um trian-
gulo : os productos estejam no vértice : os consu-
midores na base : os dois lados sejam as estra-
das terrestres ou Duviaes, por onde se hão-de con-
duzir os productos ao centro do consumo. Quanto
mais próximos estes se acharem da base , melhor
consumidores. Mas se não poderem nascer senão
no vértice , quanto mais facil e rápido fòr o mo-
vimento com que desçam para a base , tanto me-
lhor. Sc o género se achar distante do consumidor
dez léguas que se possam vencer era 5 horas , es-
tará na realidade mais próximo do que achando-se
na distancia somente de oito léguas, as quaes com-
tudo , pela inferioridade dos caminhos , apenas pos-
sam vencer-se em (> horas. Assim é que Odessa es-
tá mais perto de Lisboa do que o Alenitejo, pela
economia Trapidez c barateza] dos transportes, não
pela medida linear das distancias.
Andai para diante — prourrssn , progresso! nos
clamam de toda a parle. — Também o queremos ;
mas como andar para diante, se nós não lemos es-
tradas! E como as escusaremos se ellas significam
tudo isto — na ordem económica , barateza, abun-
dância e eommercio — na ordem civil , segurança —
na ordem politica , nacionalidade — na ordem mo-
ral , civilisação? Era quanto as mercadorias , os ho-
mens , as idéas , os costumes , e as alTeições nacio-
naes não circularem facilmente por lodos os angules
do reino , eommercio interno , segurança , naciona-
lidade, civilisação serão vozes para nós, vozes vsns
sem significado real que lhes corresponda : Lisboa
e Porto serão cidades porlnguezas de Europa : mas
as nossas aldèas sertanejas serão terras calaras de
Africa. É preciso estabelecer estas correntes eléctri-
cas que communiquem o mesmo movimento aos
membros desatados e dispersos d'este corpo , e que
amanheça para nós o dia da vida activa e social da
nossa epocha. Olhai para todas ou quasi todas as
nossas povoações raariliraas , vereis demonstrada a
poderosa iniluencia da facilidade dos transportes
sobre o incremento da riqueza na vantagem, que em
eommercio e prosperidade levam ás do interior es-
sas mesmas povoações, ou situadas á beira-mar, ou
banhadas de grandes rios navegáveis , ou visinhas
das suas margens. Estas são, não outras, as verda-
deiras palhetas de ouro que rola o Tejo : e o maior
cabedal quo os nossos rios encerram em sua urna
opulenta é a potencia locomotiva.
(Continua.)
A. d' O. Marreca.
Manani-iacs sulphureos em summo grau. — Na pro-
vinda russiana de Orenburgo , nas margens do
Sourgout [como os francezcs escrevera] brotam den-
tro do limite de seis a sete léguas mais de uma dú-
zia de fontes , cujas aguas são por tal modo impre-
gnadas de enxofre que depositam um sedimento ,
que os povos visinhos ajuntara c vendem como se
fora aqiiellc mineral puro ; e é esta colheita obje-
cto lucrativo : apesar do rigor da temperatura nun-
ca gelam , nem quando as aguas daqiielles arredo-
res estão coalhadas pela intensidade do frio. — Ha
outra nascente com a mesma propriedade e igual-
mente pcrenne . que está distante uma légua da al-
deã de íchtulkina ; chamam-lhe tanque de enxofre ,
e as suas aguas claras deixam ver no fundo o leito
sulpliureo com toda a natural cor de aniarello es-
verdeado ; ha porem a notável circumstancia de
que n"um raio de meia légua o circuito da nascen-
te exhala um fétido insupportavel. O ribeiro que
deriva desse Ianque leva umas aguas turvas e bran-
cacentas : os aldeãos rnssianos , que por alli mo-
ram perto , para as designarem como á vista se ap-
presenlam pouco mais ou menos , pozcram-Ihe o
será a condição tanto dos productores , como dos | nome de «Ribeiro de leite.»
■TH'
ilÒ
O PANORAMA.
I.ado esquerdo.
AETERN. SACRrM.
BOC. LOCO. &.C,
Lado direito.
monum. consagrado
á eternidade. &c.
MONUMENTO AO ZNFANT£ D. HEXAIQU£ NA PRAÇA OE SACHES.
Consiste esta memoria n'uma lapida de mármore,
que faz um corpo de 10 "^ palmos de altura , c 5M
ditos de largura , cmlnitida na parede sobre a por-
ta interior da entrada principal da fortaleza de Sa-
gres : é o mesmo corpo dividido em dois planos,
contendo o superior , em meio relevo , o escudo de
armas do Infante, cora uma esphera armillar á di-
reita , e da parto esquerda um navio á vela ; o pla-
no inferior consta do duas almofadas, na do lado
esquerdo ha esculpida uuia inscriprão lalina, e na
do direilu lè-sc a versão em portuguez ; somente a
qual damos aqui aos leitores. Na estampa acima
vè-se o contorno geral c a disposição da memoria ,
c indicados os logares dos respectivos letreiros. Da
collocação lavrou auto aos 24 de julho de 1840 o
secretario da camará municipal da visinha villa do
Hispo, e o assiguaram o governador da praça, o ca-
pcllão, osodiciaes da guarnição, os membros da ca-
mará, e ocapilão de mar e guerra L. G. Possollo,
que os convidara para este acto, a que presidiu.
Inscriprão rin porliif/ucz.
monum. consagrado á eternidade, o grande
infante d. henri(|uc (illio de clrci de portugal
d. João I., tendo cnq)rehendidu descobrir as regiões,
ale então desconhecidas , de africa Occidental ,
e abrir assim caminho para se chegar por meio
da circumnavegação africana até as partes mais
remotas do oriente, fundou nestes lugares á sua
cusla o palácio da sua habitação , a famosa
escola de cosmografia , o observatório
astronómico , c as ollicinas de conslrucrão
naval , conservando , promovendo e augmentando
tudo isto até ao termo da sua vida com
admirável esforço c constância , e com
grandíssima utilidade do reino, das letras,
da religião, e de lodo o género humano, falleceo
este grande príncipe depois de ter chegado
com. suas navegações alé o 8.° gr. de latitude
septentr. , c de ter descoberto c povoado de
gente porlugueza muitas ilhas do atlântico
aos XIII. dias do novembro de 14tíO. d. maria II.
rainha de portugal e dos algarves mandou
levantar este monumenlo á memoria do
illustre príncipe seu cdusauguineo aos 379
aunos depois do seu fallecimento , sendo
minislro dos negócios da mariídia e
ultramar o visconde de s.i da bandeira. (•)
183!).
(•) Viisulámos fiara mais fácil leiuii
o PANORAMA.
141
O Bono.
iV2S.
XI.
O subterrâneo.
Depois de acabado o banquclc quando os cavallci-
ros comoravam a derramar-SL- pelas salas esplendi-
damente adornadas dos paços ile Guimarães , c a
descer aos patcos onde os cavalleriços os esperavam
( i)m os cavallos , dellos c dos seus acostados c pa-
sens ; Vr. Hilarião receoso de um novo encontro de
Gonçalo Mcndcz com Veremudo Percz , o (jual teria
provavelmente consequências que naquella melin-
drosa conjuncção era necessário evitar, com tal ar-
te soul)c reter o violento rico-homcm na sala d'ar-
mas, que ao descer ao terreiro interior, este começa-
va a estar deserto, porque mais de uma hora tinha
passado. .Vhi mesmo ainda o ahbadc procurava, pa-
rando, demorar a sabida do cavalleiro com inter-
mináveis reflexões e perguntas sobre os receios e
esperanças que agitavam todos os ânimos. No meio,
porem, da manhosa conversarão do velho monge um
caso inesperado veio inlerrompe-Ia.
O vasto pateo que precedia o palácio estava ape-
nas alumiado pela luz aftastada de uma almcnara
collocada no eirado da agigantada torre alvarran ,
c pelo ténue reflexo de dois fogaréus que ardiam aos
lados da ponte levadiça. A claridade dos dois fachos,
atravessando por baixo du portal soturno , ia bater
somente no átrio da escadaria que dava communi-
cação para a sala d'armas. De um e d'outro lado
do terreiro as trevas pareciam profundas aos que
seguiam da escada ao portal por aquella espécie de
estrada de luz, mas por isso mesmo estes eram per-
feitamente vistos por quem quer que estivesse de
uma ou da outra parte.
Xo momento em que parou, Gonçalo Mendez viu
ao pé de si um individuo , que elle suppunha já
bem longe de Guimarães.
«Como assim, Odorio Fromarigucz? ' — Ha mais
de uma hora que devíeis ter partido para a terra
da Maia. — Os annos , meu amo, teem-vos tornado
os pés tardos. »
A pessoa aquém o Lidador dirigia estas palavras
era um velho , pequeno de corpo, magro, olhos co-
mo duas ervilhacas , e tez simillnnte a um perga-
minho de sete séculos amarrotado. Trazia vestido
um lorigão negro , e na cabeça um camalho , que ,
eubrindo-lhe o pescoço até os hombros , c circura-
dando-lhe o rosto como a toalha d'uma freira, ape-
nas lhe deixava este visivel. Aquelle trajo militar
era o de um simples homem d'armas , ou acostado
de rico-homem ; porque o arnez de solhas c o elmo
ou capello de ferro brunido , ainda eram armadura
demasiado custosa para os que , pelo monos , não
pertenciam ;i classe dos simples cavalleiros.
A resposta do velho ás palavras de Gonçalo Men-
dez , nas quaes, posto que proferidas em tom sub-
misso, transluzia o despeito, foi pôr o dedo na bo-
ca, fazer-lhe signal que o seguisse, e encarainlinr-se
para um dos recantos do pateo , onde a escuridade
parecia mais profunda.
Odorio Fromarigucz era ovillico dosolar da Maia.
O villico do século 1-2.°, quer o fosse do rei , con-
de, ou senhor supremo, quer de um vassallo pode-
roso , correspondia não só ao moderno administra-
dor ou mordomo de rico fidalgo , mas lambera re-
presentava a auctoridade administrativa e ainda ,
em certos casos , a judicial , dentro dos limites da
honra, préstamo , ou senhorio respectivo. Era elle
quem por via de regra fazia calardo , e muitas ve-
zes capitaneava na guerra os peões , besteiros , fre-
cheiros e fundeiros, e na ausência do senhor fazia
as suas vezes cm todos os logares , salvo nos cas-
tellos on castrou, onde ao alcaide ou tenente toca-
vam em grande parte as attribuiçõcs do villico.
Conforíne a promessa que fizera ao homem do zo-
rame, Gonçalo Alendez ao subir para a sala do ban-
quete encontrando ahi entre os seus acostados Odo-
rio Fromarigucz , que nessa occasião se achava na
corte , lhe ordenara partisse immediatamcnte a to-
do o correr do cavallo para aterra da Maia, e con-
vocando oitenta acobertados e sessenta peões os ti-
vesse a ponto com caldeira e pendão, para cumprir
as ordens que brevemente lhe havia de communi-
car. Ucceando que o villico comraettesse alguma
imprudência , nada mais lhe fizera saber, resolvido
a enviar no dia seguinte um cavalleiro que devia
acompanhar aquella mesnada , ou força , como ho-
je diríamos , até o arraial do infante.
Tanto o Lidador como o abbade baviam seguido
o villico para o sitio , que elle parecia buscar com
toda a precaução. Chegados a um canto escuro en-
tre a sacada interior de uma torre e a escada que
subia para o adarve da quadrella contigua , o villi-
co parou , voltaudo-se para os dois.
iil'orque não partiste? — perguntou o cafalleiro.
— Que mysteríos são estes?»
«Não pude: — respondeu o velho. — Os vigias,
roídas , e sobre-roldas tem as mais estreitas ordens
para não deixarem passar alem das barbacans do
burgo ninguém ; seja quem fór: o prop-^io runde de
Trava não é exceptuado. Entre os homens d'armas
correra varias noticias. Se accreditarmos o que se
diz....» Aqui o villico hesitou e eallou-se.
«Que é o que se diz? — acodiu o Lidador depois
de alguns momentos , impaciente com o silencio de
Odorio Fromarigucz.
«Que — proseguiu o velho ainda hesitando — ha
conjurados contra a rainha dentro de Guimarães;
e ousara pronunciar o nome de ura dos mais illus-
tres e leaes rícos-homens de Portugal como o do
cabeça e movedor da conjuração." —
«E cujo é esse nome? — insistiu com voz firme
o Lidador.
«È .. — tornou o villico em tom quasi imperce-
ptível : — é o vosso ! »
«Oh, entendo, entendo! Murmurou com uma
cólera reconcentrada Gonçalo Mendez. Medem-mc
por si os miseráveis ! Porem , não ! Elles bem sa-
bem que lealmente cu diria á rainha : — Senhora ,
não será para estrangeiros meu preito : que o devo
a vosso filho. — liem sabem que á luz do meio-dia
eu movera os meus pendões para a hoste deAffonso
Henriquez. Conspiradores covardes são elles ; por-
que querem colher ás mãos indefensos os que te-
mem encontrar nas lides. Esqueccis-vos , meus no-
bres senhores, que tenho comigo vinte acostados,
e que vinte acostados meus são sobejos para , máu
grado vosso , romper larga sabida por essas tão vi-
giadas barreiras? — Villico — proseguiu elle vol-
tando-se para Odorio F^romariguez — vai-te ao meu
bairro: previne já os nossos cavalleiros que vistam
ímmediatameníe as armas; e que juntos na minha
pousada vigiem das ameias as ruas em roda , por-
que nos ameaça uma negra traição : eu breve serei
com elles.
O tom com que o esforçado rico-homem proferira
estas palavras não admittia observações : o villic>)
obedeceu.
142
O PANORAflIA.
Apenas ellc parlíra , Gonçalo Mendes dirigiu-se
a Fr. HilariSo.
«Abbadc rio Mosteiro de D.AÍuma, vós me acom-
panhareis. A vossa ainisadc para comigo pôde ser-
vos fatal : o ronde de Trava não ó homem que res-
peite a santidade do sacerdócio ; c a vida , ou pelo
menos a litierdadc , vos correria griio risco , se nas
prevenç("ies desta noite se esconde , como suspeito ,
um pensamento atroz. »
«Deixai o obscuro monge , — respondeu o frade
— e salvai o illuslre guerreiro. Que importa a li-
berdade ou a vida de quem como eu j;i demais
tarda ao sepulchro? A morte, posto que mo aterre,
achar-mc-ha resignado. JJas o que mais temo é o
vosso próprio esforço. Com vinte homens d'armas
que podeis fazer cm Guimarães , onde Fernão Pe-
rez conta mais de mil lanças dos seus parciaes?»
«Ao romper d'alva — replicou ocavallciro — por
meio desses vigias c roídas a minha acha d'armas
abrirá franca passagem aus vinte cavallciros do so-
lar da Maia. Os que então se opposerem á sua sa-
bida— proseguiu com um sorriso amargo — não te-
rão , juro-vo-lo cu, largo alento para dizer ao con-
de dcTrava: — (ionçalo Mcndcz, ei-lo que vai jun-
tar-se com os seus á hoste do infante de Portugal.
Ao menos terei ao partir sellado para sem[irc alguns
lábios desses que ousaram proferir o meu nome de
involia com o titulo de desleal.»
«A ousadia — tornou o abbade — vos faz parecer
fácil tão dilhcultosa empreza : mas o perigo é im-
menso. Se no primeiro impelo não poderdes salvar
as barreiras, estais perdido; c esta tentativa deses-
perada dará cor de verdade ás accusações dos nos-
sos inimigos. »
« IJ necessário sahir desta situação violenta — in-
terrompeu o Lidador. — Sei o que significa tão re-
pentino converter do burgo de Guimarães cm vasta
prisão de homens livres. Quando ahi se arrisque a
vida, que importa? Estes pulsos não foram feitos
para os ferros do scidior de Irava...»
«Mas se houvesse um meio — replicou Fr. Hila-
rião — mais seguro de vos pordes cm salvo cora os
cavallciros de vossa honra...»
«Há !» — disse uma voz que parecia soar do chão
junto aos pés do monge. Gonçalo Mendcz recuou mct-
tendo mão á espada ; c ambos procuraram no meio
da escuridão descobrir donde partira aquella palavra.
«Quem é que nos escuta? — bradou ocavallciro.
«Eu!» — disse a mesma voz, acompanhando es-
ta palavra com uma grande risada.
«í:; a voz e o rir de D. líibasl — exclamou o ab-
Lade ainda sobrcsallado. — Agora me recordo de
que fica [lara eslc lado a sua humilde pousada.»
O monge, o cavalleiro , c todos os habitantes dos
paços de Guimarães haviam-se completa e profun-
damente esquecido do Iruão — como porventura te-
rá acontecido a mais de um dos nossos leitores.
Neste momento a luz de uma lanterna de furta-
fogo deu de chapa nos vultos do Lidador e de Fr.
Hilarião. Atenue claridade que nos próprios corpos
se refrangia, elles viram um braço, que segurava a
lanterna no vão de unia porta baixa meia-cerrada ,
que mais parecia o adito da pocilga de um mastim
que de habitação de homens. Ao meio do vão escu-
ro luziam dois olhos, e alvejavam os dentes de boca
escancarada por um rir que devia ser feroz.
«Que fazes aqui, Iriião? — perguntou o cavallei-
ro colérico.
«Escutava: — tornou Iranquillanicnle o bobo es-
tendendo a cabeça [lara os dois.
"Foi desgraça tua! — porque me é necessário o
leu silencio : — murmurou o Lidador , largando a
espada na bainha, travando do braço de D.Bibas,
e levando a mão ao punhal que linha no cinto.
. O bobo não deu o menor signal de susto , e ven-
do esle movimento do cavalleiro , que porventura
só pertendia alerra-Io ; — com umtora d'amargo es-
carnco replicou ao ouvir aquellas palavras ameaça-
doras : —
i\ão gasteis comigo, nobre senhor, a nnica moe-
da com que vós outros os poderosos comprais não
só o silencio, mas tudoaquillo de que careceis para
satisfazer paixões brulacs. Se eu quizesse delatar o
que vos ouvi , não fora tão louco que vos fallasse.
«Respondo por D. Bibas — acudiu o abbade. —
Nào é elle capaz de trahir-nos. Quiz exercitar seu
mister, e bera sabeis que seu mister é gracejar.»
<' Fr. Hilarião 1 — interrompeu o bobo ; — entre a
vida que foi , e a que é e ha-dc ser , ha para mim
um abysmo. Cavaram-no os estrangeiros ^ mas eu
os despenharei ahi ! E depois D. Bibas , o folião , o
bobo assentar-se-ha na borda deile para lhes ale-
grar a queda ; para rir e zombar. Á pergunta que
fizestes se haveria modo de sahir de Guimarães es-
te nobre cavalleiro — que intenta manchar seu rico
bulhão no sangue vil de um jogral, — e os homens
d'armas da .Maia, respondi eu que havia. Juro que
não menti. Tenho para isso meio fácil. Podeis apro-
veitar-vos delle , se é que o beneficio de um bufão
não deshonra um rico-homem d'illustre linhagem.»
«D. Bibas ! — replicou o abbade, fitando nelle
os olhos como quem buscava ler na sua alma : —
é impossível que queiras escarnecer de um nobre
cavalleiro que nunca te maltratou e d'uni pobre ve-
lho que sempre achaste indulgente, em quanto os
outros monges te repelliam como a um réprobo, des-
de o dia em que despiste o nosso santo habito para
te atirares aos deleites do mundo e, di-lo-hci , á
devassidão da vida de um jogral. É impossível, re-
pito , que as tuas palavras sejam apenas uma cruel
zombaria. Mas como hei-de accredítar-le? Que au-
xilio nos podes prestar , tu humilhado e fraco ?
Bem sei que sou fraco ! Oh bem o sei ! — inter-
rompeu o bobo com um acccnto cm que se mistu-
rava a desesperação e a dôr. Essa terrível verilade
está escripta cora sangue no meu corpo pelas mãos
dos cavalleríços de Fernão Perez ; e com fogo nos
seios da minha alma pelo dedo da amargura ....
Sou fraco! .. porque não embraço um escudo, nem
meneio uma acha d'armas '. Sou um homem condem-
nado ao mais atroz dos tormentos ; a chamar o riso
aos lábios c a alegria ao gesto quando o coração es-
tá em noite. Sou fraco... ; porem não sou vil ! Mais
fraca ó a víbora.... c lambem o homem que é for-
te , a calca e passa avante: — mas pisada, ella al-
ça o collo , vibra a língua farpada... e passado um
dia, por cima do cadáver do forte — do homem, —
o ente fraco — a víbora — pôde arrastar-se , rolar,
sem que elle alevanle o pé para a esmagar de no-
vo ! ..»
O cavalleiro e o monge , cujos olhos se haviam
afleilo á luz escaca da lanterna do bobo , estavam
pasmados ouvindo aquellas palavras, c vendo aquel-
le gesto trnanesco , em que se pinlavam o ódio, a
raiva , a desesperação. Atlonitos , cuslava-lhes a
crer o que presenciavam , ignorando o que se pas-
sara no jardim pênsil. O Lidador largara o braço
de 1). Bibas; e a muito custo podcram <is dois per-
ceber dos seus discursos truncados o motivo do fu-
ror do chocarrciro.
o PANORAMA.
143
«Fico Iranquillol — disse por fim Gonralo Men-
dez. — A injuria cruel que recehcslc , e essa sede
de vingança são os teus fiadores. Agora afTaslemo-
nos d'aqui — accrescentou cUc dirigindo-se ao ab-
bade. — Não devo demorar-mc por raais tempo.
Cumpre ler tudo disposto para sahirmos ao romper
d'alva. .\ \irgem c Santiago sejam comnosco.
la a aPfastar-se. D. Bibas, porem, o reteve, se-
gurando-lhe com força a orla do saio.
«Não sabireis sem me ouvirdes 1 — exclamou o
bufão. — Quando os sisudos traçam, como vós, im-
possíveis, importa que os loucos tenbam juizo por
elles. Os vossos inteutos são vãos ; porque antes da
madrugada vinte homens d'armas da terra da Maia
terão sido arrastados aos calabouços desse castello ,
c talvez a cabeça de ilUislre rico-homem tenba ro-
lado aos pés do algoz. Certo cavalleiro, que ha pou-
co trajava um zoramc , deve , se cahir uas mãos do
conde de Trava , acompanhar o nobre senhor nesse
trance que o aguarda. O cavalleiro do zorame cl\a-
raa-sc Egas Moniz , c o rico-homem chama-se Gon-
çalo Mendcz da Maia.»
O abbade íicára estupefacto ouvindo as palavras
do bobo : porem no animo do Lidador , o perigo
iminente que este lhe annunciava só despertou raais
violenta indignação misturada de curiosidade. Como
soubera D. Bibas da vinda de Egas Moniz? Corao
advinhára ellc os intentos do conde de Trava? Qual
era esse meio que se gabava de ter para os salvar?
Havia nisto tudo um enigma , cuja explicação era
necessário encontrar. O chocarreiro porem lhe ras-
gou o véu do mysterio.
Apenas , lacerado dos açoutes , e manando san-
gue das costas , escapara das mãos dos cavalleriços
e pagens, 1). Bibas fora esconder na espécie de co-
vil , em que vivia , a sua dor; c vergonha. Era um
pesadello, um delírio aquillo por que passara : era
monstruoso e incrível! — Posto ás varas como um
servo , elle homem livre ; elle tão mimoso de seu
bom senhor D. Henrique ! As lagrvmas correram
abundantes por essas faces habituadas de longos an-
nos unicamente ás contracções das visagens trua-
ncscas. .\s Ingrymas , porem , nem o consolaram ,
nem bastavam á sua desesperação. Depois de se ro-
lar pelo chão mordendo os punhos cerrados, o bufão
assentou-se a um canto, como o lobo cerval colhido
no fojo, cansado de lidar em vão por salvar-se. To-
do o fel que o rir forçado de tanto tempo lhe fize-
ra por assim dizer absorver e calcar no coração ,
achou emfim \ira resfolgadnuro no ódio implacável
que a dolorosa e terrível alTronta recebida lhe ge-
rara lá dentro. O pensamento da vingança alcança-
ra o que não haviam obtido as lagrvmas: — D. Bi-
bas sentia agora que ainda havia para elle consola-
rão e esperança.
íías como vingar-se? Ignorava-o. Juraria comtu-
do que Belzebulh lhe dizia ao ouvido : — Pensa
bem ; que has-de atinar com o caminho que bus-
cas. Quem deixou de achar meios neste mundo pa-
ra satisfazer paixões más?
Slacbinalmenle D. Bibas despira as roupas varie-
gadas de folião , e vestindo um simples trajo d'es-
cudeiro galgara as escadas do paço. Na confusão
que reinava na salla do banquete ninguém o conhe-
ceu. Girando de uma para outra [larle elle cogitava
no modo por que poderia obedecer ao pensamento
irresistível que o agitava. A esperança de que a
festa terminasse segundo o costume por completa
embriaguez em que o sangue corresse , e que tal-
vez no meio da desordem alcançasse approiimar-se
do conde , lhe sorriu um momento. Então pensava
lá comsigo como uma boa punhalada pagaria a di-
vida do truão ao nobre senhor! Mas arriscava-sc a
errar o golpe, e elle precisava da vida alé obter
completa vingança. Também pela cabeça desvaira-
da do chocarreiro passou a idéa de envenenar a ta-
ça ou copo por onde Fernão Perez havia de beber.
.Mas fora impossivel sequer o tenta-lo sem ser dcs-
cubcrto. Fluctuando assim a sua imaginação desre-
grada de pensamento em pcnsarflento , D. Bibas se
conservara na sala do banquete alé o fim : vira en-
trar Garcia Bcrmudez ; e os signaes de accordo que
houvera entre ellc e o conde. Ao relirar-se a rai-
nha , o bobo se aproveitara do tumulto dos caval-
Iciros que sabiam, para renovar uma das suas usuaes
haliilidados , com o intento de observar alé o fim o
que se passava. Os sergenlcs e pagens appreSfavam-
se a lançar mão dos restos do banquete , e por en-
tre elles D. Bibas pode sumir-sc debaixo dos ricos
pannos, que, segundo o costume do tempo, cobriam,
alé rojar pelo chão, aquella v;.sta mesa. Alli, ora
escutando , ora coando pela memoria um a um os
açoutes que recebera e as chufas e apupos dos ca-
valleriços e servos, elle despertava na própria phan-
lasia um tropel de vinganças imaginarias , a qual
delias mais absurda e inexequível. O louco por ar-
te desde que deixara de rir tocava quasi us raias
da verdadeira loucura.
Daquelle escondrijo o bobo ouvira perfeitamente
o que se passara entre o conde de Trava, o alferes-
mór c o filho de Veremudo Perez. As revelações
deste , as ameaças do conde , c a commissão mys-
leriosa de que Garcia Bermudez encarregara o pa-
gem, nada escapou a D. Bibas. Para os seus inten-
tos esta conversação fora um raio de luz. Fernão
Perez rcceava-se de uma traição de senhores e ca-
valleiros illustres , e era elle villão humilde, ellc
jogral, elle verme desprezível que o mui nobre con-
de crera esmagar n'um momento de cólera , quem
podia entregar Guimarães ao infante, c despedaçar
nas mãos do ambicioso e altivo barão não to o po-
der mas a vida. D. Bibas esteve a ponto de soltar
ura rugido de coníenlamento ao occorrer-lhe essa
idéa , e um clarão de damnada esperança allumiou
as trevas da sua alma.
Desde a morte de D. Henrique, o seu bobo que-
rido cahíra da grande altura do valimento ao nível
dos animaes domésticos ; o seu fado fora o dos pri-
vados de príncipe que desceu ao tumulo ; e , como
succcde a estes frequentemenle , se não o expulsa-
ram do importante cargo que exercitava , foi quo
ninguém havia ahi que o substituísse. Lançatam-
no , porem, para aquelle aposento baixo, triste e
húmido, cm que D. Bibas desde enlão habitava,
consolando-se do desprezo com essas horas de glo-
ria e triumpho em que imperava, rei das festas no-
cturnas . nos saraus esplendidos e nos banquetes
sumptuosos, a que elle dava vida e còr com as suas
agudezas e chascos.
Nesta espécie de caverna . para onde fora dester-
rado o bom do truão , curlíra muitas hora? de té-
dio : a solidão para qualquer alma sem affectos é
um tormento real. e a alma de D. Bibas era por
esse lado uma verdadeira Thebaída. Certo dia em
que deitado no seu almadraque tinha os olhos filos
' n'uraa rcsiea de sol que dava de chapa na parede
fronteira , pareceu-lhe divisar nesta os vestígios de
uma poria eníaipada. A curiosid.Tde o incitou a fa-
zer mais altenta averiguação. ,\ão se enganara. A
força de tempo e diligencias pôde abrir suffiGÍent(;
lU
o PANORAMA.
passagem para o escoiidrijo que achara. Era este
ura daqiielles caiiiiiihos siilílcrraneos , coiiiuiuns em
quasi ti ;lo.s os caslellos da cdade media , [lur onde
nas ulliiiias cstrcilezas os defensores dos logares
forlific.idos alcançavam sahar-se qnando a resistên-
cia se tornava inipossivel. Este caminiio, qne pare-
cia pertencer á íundaçãu primitiva do castcllu de
D. Munia , fora provavelmente condemnado como
inútil qpiando o genro de AlTonso 6.° lançara em
roda dos seus paços soberbos uma cinta de muros
e torres inexpugnáveis.
Nunca D. Bibas revelara o descobrimento casual
que fizera. Este homem , que nada possnia , quizc-
ra ao menos possuir um segredo. E na presente oc-
casião aqnella innocente avareza lhe punha nas mãos
um rico thesouro — o cumprimento dos seus vin-
gativos desejos. A entrada do subterrâneo era lon-
ge , c o bobo atravessando-a algumas vezes tivera
o cuidado de tornar ainda mais cerradas as balsas,
carças e troncos que a encobriam. A idéa que lhe
occorrèra ao ouvir a conversação do conde e do al-
feres-mór fora a de fazer servir este caminho des-
conhecido ao ódio que o devorava. O infante diri-
gia-se a Guimarães, e na primeira noite elle lhe
podia dar nas mãos aquelle in^encivel castello. As-
sim apenas vira deserta a sala do banquete , sahíra
e viera fechar-se na sua pocilga , para cogitar no
modo de executar seus intentos. Deitado nu roto e
immundo almadraque estava embebido em refle-
-xões , quando ouviu fallar o cavalleiro e o monge.
Pôz-se a escuta-los, e do seu dialogo conheceu os
receios que os agitavam, receios que elle sabia se-
rem bem fundados. Deus ou o demónio lhe trouxe-
ra alli os instrumentos da vingança. Dando sabida
ao Lidador e aos seus cavalleiros ; o esforçado se-
nhor da Maia ficaria sabendo o meio de saltear es-
te vasto e solido castello, que aliás parecia incon-
quistavel.
Tal foi em substancia a narração de D. Bibas ,
que fechando a porta conduzira o monge e o rico-
horaera ao lado do aposento onde elle abrira entra-
da para o subterrâneo. — «Por aqui — dizia o bo-
bo com um rir diabólico — c o caminho da salva-
ção para vós, e para mim o de ver realisado o que
será d'ora avante o único pensamento da minha
vida. »
O Lidador ficou por algum tempo em silencio , c
por fim exclamou :
«Mas quem ha-dc salvar os meus bons e leaes
íavalleiros , que me aguardam?
«Eu: — acudiu o bobo. — As portas do castello
ficam abertas, porque os vigias e roídas correm pe-
las barbaeans. Sabi vós outros , e esperae-os á bo-
ca do subterrâneo. Dentro de poucas horas todos
estarão comvosco. iíasta qne me deis um signal com
que eu possa fazer que elles me obedeçam.»
O Lidador pareceu assentir á proposição de D.
íibas ; porque tirando da escarcella uma taboasi-
nha cuberla de cera , com um anel que tinha no
dedo estampou nella o seu sello de camafeu, c cn-
tregando-a ao bobo , lhe disse :
«Vai — appresenta isto ao meu villico — e serás
obedecido cm tudo. »
"Falta ainda uma cousa! — continuou D. líibas.
Revercndc) abbade , vesti esse trajo de escudeiro
que .alli vedes, c dcixai-me vossa coguUa. Não sei
o que me diz o coração. . . Talvez me seja necessá-
ria. Será esta a primeira recompensa do serviço
que ora vos faço.»
Fr. Ililarião hesitou ; mas o terror das ameaças
que o Iruão ouvira ao conde só lhe dava logar a
uma idéa — a de saliir do Guimarães sem risco.
Depois de cincocnta annos de vida monástica , pela
primeira vez o monge trocava por trajos profanos o
seu santo habito.
D. Bibas entregou a lanterna de furta fogo aos
dons amigos, que se internaram no subterrâneo.
Tanto que desappareceram , elle abriu ás apalpa-
dellas a porta exterior da sua pocilga , e cosendo-
se com oníuro do paleo, atravessou a ponte levadi-
ça e encaminbou-se para o bairro do senhor da Maia.
(A. ilerculano).
O manná purynlivo. — Wellsled , que peregrinou
a Arábia e outras regiões d'oriente ha poucos an-
nos, diz que a notável substancia, dita manná, pur-
gante dos mais brandos e muito usual , é colhida
de varias plantas em vários paizes d'.Asia. lia sitios
na 1'ersia onde altribuem sua origem á secreção de
certos insectos, e apanham-a n'uns arbustos, que
nomoam gavan, de dois a três palmos d'aUo, e pa-
recidos com a giesteira. — No território de Luris-
tan , Mesopotâmia , viu que o tiravam de umas ar-
vores da ordem das amentilhosas , espécie de car-
valho anão; c que para o obter faziam assim: es-
tendiam á noite lençóes debaixo das ramas, e an-
tcmanhaã o recolhiam na forma de gotas cristalinas
de orvalho , quaes nas madrugadas observámos nas
plantas do nosso continente. — A propósito citare-
mos o infatigável Burckbardt que examinou em Er-
zerum , Pérsia, uma substancia que similbava o
manná em gosto e consistência , e o produzia certa
arvore que dava galhas, e os habitantes a usavam
por alimento. — Talvez porem que sejam estas ma-
trrias ditrcrentcs do manná da Sicilia c Calábria,
empregado nas boticas, e que só temos aqui pro-
vindo da Itália ; os botânicos o tem por gomma ve-
getal , ex^udação da arvore , parenta do freixo , o
que so chama fraxinus ornus , ou rotundifolia ; a
qual escorre naturalmente das folhas , no estio e
por tempo sereno, do meio dia até anoitecer, na
forma de um licor claro, que depois se condensa.
Castigos ejctravagantcs. — No reinado do impera-
dor dooccidente, Otton o grande, que decorreu en-
tre os annos 936 e 973, filho mais velho de Henri-
que o passaritiheiro [assim chamado, porque, quan-
do os deputados foram annunciar-lhe a sua eleição
á coroa, foi encontrado a caçar pássaros] iníligiara-se
penas sobremaneira singulares , segundo a diversi-
dade d'estados. O harnescar era a punição da alta
nobreza ; consistia em levar um cão aos hombros na
distancia d'uma ouduas léguas. .V nobreza mais in-
ferior era condemnada a carregar uma sella de ca-
vallo : o clérigo um grande missal : e os burguezes
uma charrua ou arado. . .
É nMA máxima hoje assaz bem reconhecida , que a
agricultura, sendo animada, é o verdadeiro funda-
mento da povoação e força dos impérios ; o solido
esteio cm que se sustem as manufacturas , as artes
c commercio ; a fonte , de que emana a sua firme
prosperidade ; o thesouro e verdadeiras minas de
qualquer estado; ounicomcio d'euriquecer de con-
líntui tanto o súbdito como o soberano; e cmfira o
melhor regresso para poder pagar as dividas publi-
cas c não coDtrabir outras. — liroiero,
72
o PANORAMA.
14a
te!i.i;ij:jiiiiMHii!iiiiiyiiiiiiiiiiiiiiiyiiiiii!jyiji^
PȐvixciA DE S. Peduo du Rio-Gka>de do Sol.
I.
Das províncias em que o vasto império do Brazil se
reparte , a do Rio-Grande do Sul , denominada ho-
je de S. Pedro , é a que em geral menus conhece-
mos ; porque o trato e negocio mais frequente e di-
recto , que mantemos com esse estado coirmão, an-
da d'ordinario encarreirado para as províncias mais
ao norte , que por numero avultado de portuguezes
são annualmente visitadas, fi comtudo assaz irapor-
lÍAio 13—1843.
tanle esta porção extensa do território hrazilciro pe-
la situação e fertilidade, e nada menos o é pelo mo-
vimento commercial de Porlo-Alegre, q"C ésua ca-
beça.— Estampando o aspecto desta cidade (1) to-
mado do fundeadouro , inverteremos a ordem mais
natural da descripção que intentámos . começando
agora por darmos breve idéa da capital, e concluin-
do no próximo numero com a noticia da província.
(1) Reduziíi-se <-s(a vista ile uma que ocoinpaiilia a per-
feila planta de Porlo-Alejre , que nos foi rerjpllida pelo
Doss) correiponOente alli . A- M. do Amaral Rilieiro.
2.° Serie. — Yoi.. li.
146
O PANORAMA.
Porlo-Alcgre não foi sempre a capital deUio-Gran-
dc do Sul ; iiaverá 40 aniios, pouco mais ou menos,
que lhe foi dndo este titulo que anlcriorinente per-
tencia á villa do Hio-Gnindc. É cidade formosa, edi-
ficada em lóriíia d'ampliitlieatro n'um isllimo mon-
tanhoso, á lieira oriental da lagoa de Viam.io (2)
quasi defrontei da foz do rioGuaiha oujaruí. Opaiz
que a circumda, a bella vista que oITcrece, n,To des-
mentem o acertado nome , que lhe impuzeram , do
Porto-Alegrc : eis como a descreve um viajante que
publicou a sua relação em 1835 (3). «Cinco rios,
Tindo alli pagar o tributo de suas aguas fecundas,
e junlando-se para formarem o Rio Grande do Sul ,
appresentani na frente da cidade uma caldeira vas-
ta, semeada de grão numero de ilhas mui selvosas,
povoadas de habitações campestres. Da banda de lá
da cidade, ou da eminência, a distancia de légua,
uma fieira de morros , d'aitura de noventa braças
pouco mais nu menos, vai descrevendo um meio cír-
culo , encaminhada ao sul e orlando desigualmente
e rio por oito a nove léguas. — Entre a cadeia de
alturas e a povoação dilata-se uma baixa, nivelada,
e cora três a quatro léguas de circuito, encravada
pelos montes ao sul, pelos cabeços de nascente e
norte , e da parte de poente pelo Rio-Grande , que
soberbo do cabedal de suas aguas corre magestosa-
mente para sul atravez de rochedos de conglome-
rações , e vai formar, na sua corrente, a Lagoa dos
Patos.
Para fallar exacto, a situação de Porto-Alegre fi-
ca entre duas bahias , separadas pela colima em
que tem seu assento : uma , septentrional , ancora-
douro e porto ; outra , merid:onal , que as aguas
em parte deixaram , e que ao presente já constilue
uma espécie de cidade baixa, enfeitada de jardins,
veigas, casas de forjas &c. Vè-se que seria laciili-
mo ilhar Porto-Alegre, cortando a eminência a les-
te, e abrindo o canal de juncção com o ribeiro que
serpèa na planicie.
Quereis desfructar ura spectaculo sccnico?. ..
Chegai ao mais alto da coUina , na praça princi-
pal, e vereis por ahi abaixo, para o norte [que co-
mo sabeis é o sul do hcmispherio austral] a cidade
que se estende cm pendor ou ladeira , a enseada
cheia de navios, as ilhas e o curso tortuoso dos
sinco rios, qne se dilatam exactamente como os de-
dos de mão aberta afastados uns dos outros; depois
as casas de recreio que guarnecem semi-circular-
mente a praia, cuberta de sombras, da bahia ; os
valles forrados de maltas, que se prolongara em li-
nhas parallelas aos outeiros do nordeste ; a várzea,
posterior á povoação, com suas hortas, pomares de
laranja, bananeiras, coqueiros, cochonilheiras , era
cercas de tapumes de mimosas amarellas , verme-
lhas , violetes, ou brancas, quasi sempre carrega-
das de llores ; c alera disto , para lá dessa campi-
na repousará aprazivelmente a vista nas lindas chá-
caras , quintas ou fazendas, bem preparadas, e pi-
cturescamente postas no declive dos cabeços.
Suppondo que escolhestes para gozar este painel
delicioso um desses dias tão eommuns naquella zo-
\u\ , por horas de sesta e tempo bonança , occasião
(jue transmitle á caldeiía das aguas e ao rio a ap-
(2) IC" o extremo seplei.trional lía Lagoa ilos Paios ;
Irazeiíi-llie o riuiiu- Ji'slas |ialanas : I ! a mão, pi-rque cin-
co rins alli vem parar, como os cinco ilcilos disliiictos e
afastados ila inào Iiiimana Item aherla.
(.)) Via;;cin a IJiienos-Ai res , &.c. impressa no Havre,
ciluda pelo Sr. í' . Ueuis a paj. 161 do seu livro sobre o
Brasil.
parencia de ura espelho immenso ; lereis iim admi-
rável panorama. Tudo que virdes se dobrará refle-
ctindo-se; as ilhas cora seus gados, as rasas e os
contíguos plantios da zona tórrida , as embarcações
á vela , c unia infinidade de elegantes barcas sera-
piulidas de diversas cores, que sulcam os sinco
coniluenles. Finalmente, encaminhando a vista pa-
ra o norte, descnbrireis [não sendo myope] , lá no
horisonte , a (Quinze léguas distante a cordilheira
da Serra Grande encuberta em parle pela cerração
de vapores.
Nem só agradáveis vistas se gozam era Porto-Ale-
gre ; lambera se desfructa boa sande : não ha cli-
ma mais adequado aos temperamentos europeus :
nada dos calores ardentes do Rio de Janeiro; nem
das polvaderas e nniles frias de Buenos-Ayres : o ar
é temperado, balsâmico, puro e salubre; por isso
os facultativos não grangeiam aqui fortuna , e as
boticas convertem-se em lojas de perfumes.»
E301TC1CIA FCLI^ISA.
Considerações snbtc o Curso d' Economia Politica, pu-
blicado cm Paris cm 1842 pelo Sr. Miguel Chcva-
lier.
III.
Supérfluas não estimamos quaesqner observações
sobre a importância das vias de communicação ,
nós que quasi de lodo as carecemos, quando em
paizes muito melhorados n'este ramo ainda hoje se
eslão esirevcndo obras com o fim especial de de-
moi;sIrar as vantagens das estradas de Ioda a casta
de terra eagua. Pelo contrário, julgámos que o pri-
meiro passo para oblc-lasé illustrar os entendimentos,
e irazc-los a uma convicção unanime sobre a neces-
sidade que temos d'ellas. íi mister que esta convic-
ção penetri a todos, não só aos que votam c aos
que administram e dispendem os tributos, aos que
os pagam principalmente : porque quando os con-
tribuintes tiverem uma só opinião sobre este ponto,
está conseguido o mais dilficil ; o grande impulso
está dado.
Limito-me á questão da necessidade e deixo as
outras — a dos fundos, e do modo de os haver —
c a do plano de communicações mais apropriado tan-
to á configuração do solo , e hydrographia do paiz ,
como aos seus recursos. Mas não devo omittir que
me parece oiTerecer muitas vantagens o meio de
conslrucção de estradas que fòr menos demorado ,
sem por isso prejudicar á perfeição d'ellas; para
que esta geração possa começar a gozar do benefi-
cio, c gozando-o resignar-se de melhor vontade aos
sacrilicios que elle impõe.
De pouco, comtudo, serviriam os transportes fá-
ceis, se os productos a transportar fossem escaços
pelas dilliiculdades da producção. E uma das maio-
res (lifliculdades que entre nós entorpece a produc-
ção é a taxa demasiado alta do juro dos capitães ou
avanços qne o lavrador precisa tomar de emprésti-
mo para a cultura de suas terras. O rédito qne el-
le paga d'esles avanços comparado com a renda lí-
quida <|ue percebe da sua propriedade rural mostra
uma desproporção assustadora ; porque em quanto
pede enqnestailo desde 12 até 24 por rento e mais,
só lira da terra um lucro , livre de despezas , de
S^j e 4 por cento. Calculando os avanços em cinco
mil contos, c o juro d'elles a 18 por cento, vem
este juro a importar em 900 contos. Se em vez de
o PAINORAMA.
147
18 fosse a C por cento , importaria em 300 contos ,
c a dilTorcnça entre 300 c '.lOO que são 600 contos,
seria o que anuualnicnlc se havia de poupar em
proveito da agricultura. Ou este excesso de 000
Coutos nos gastos da producção agricola se conside-
re lesivo ao agricultor, empol)recendo-o, e obrigan-
do-o a abandonar a cultura das terras ou inipossi-
biiitando-o de as melhorar; ou ao consumidor ra-
reando os cereaes e lodos os outros pruductos do
solo em consequência do abandono de uma porção
d'elle ou da incúria do cultivador; ou a outras in-
dustrias , causando em delrinienlo d'ellas uma ele-
vação exorbitante e artilicial na taxa do juro ; cm
qualquer das sutiposições é um grande mal que con-
vém remediar. E aiuda que esta elevação da taxa
do juro possa nascer, em grande parle, de uma má
administração de justiça, e de umniáu systema hy-
pothecario, m.iu por oITereccr pouca segurança de
reembolço aos que emprestam ; no caso especial de
que trato , procede ella , principalmente, de um
monopólio de ea|)itaes, o qual monopólio só pôde
cessar , aproveilando-se , como convém , o elemen-
to do credito. O credito , comtudo , na hyputhese
que figurámos não será empregado em crear valo-
res de pura convenção , emprego contra o qual se
levantam maiores objecções e que inspira alguns
receios : o seu serviço ha-de consistir em tornar
valores preexistentes disponíveis para a producção
de valores futuros. Os valores preexistentes não nos
faltam a nós, porque lemos terras de semeadura,
cellciros cheios e abundantes para a semente , ani-
maes para a lavoura, comestiveis de toda a espécie,
e armazéns de fazenda para o vestuário , e com as
matérias primas e os instrumentos necessários á
agricultura e os comestíveis e vestuário precisos
aos trabalhadores , temos os trabalhadores indispen-
sáveis ao fabrico rural. O que falta pois para que
se possam pór em acção todos estes meios , sem cu-
jo concurso se não consegue a lavoura das terras?
Falta ao proprietário ou ao rendeiro que o repre-
senta o instrumento das trocas que é a moeda ou o
seu substituto , porque sem esse instrumento não
podem circular todos aqiielles objectos, e não po-
dem circular e servir ã agricultura , porque não
podem trocar-se uns pelos outros. Não é , portanto ,
necessário, para sahir d'este embaraço, crear va-
lores meramente con\encionaes ou fictícios, basta
crear uma moeda que tenha fundamento e hypolhe-
ca no valor da terra e até numa ^asoavel reserva
metallica, e que representando, d'cste modo, um
valor real , possa permutar-se por todos os outros
valores , productos , serviços , ou instrumentos de
que carece o lavrador até realisar a producção
agrícola. Aquella moeda será emittida por estabe-
lecimento de credito : o estabelecimento adianta-
rá d'ella ao lavrador, por um juro mui módico,
as quantias de que este carecer : e o lavrador obte-
rá com a mesma moeda , p<iis representa um valor
incontestável , todos os serviços e objectos de que
precisar para o amanho da sua propriedade. E co-
mo o credito não é cousa que se crie e se adquira
á vontade , seria para desejar que a instituição, fa-
vorável á agricultura , fundada e organisada d'esta
maneira, se prendesse a alguma outra instituição,
também de credito, já estabelecida e arreigada, ou,
pelo menos, a alguma companhia que já o tivesse;
pela rasão , mui obvia e simples que os capitães , á
similhança das povoações , e das tropas , e das for-
ças de toda a espécie, valem mais, muito mais,
condensados que disseminados. ,. -,,u .
Tma tnneda papel assim fundada , oITereceria to-
da a segurança que presta odinheiro, pela circums-
tancia de exprimir valores determinados e reconhe-
cidos : inteiramente dilferente do papel itiocda que
sendo , não numerário verdadeiro com a forma de
papel como a moeda de que acabo de fallar ; mas
papel , sem valor real , com a máscara de numerá-
rio , se estriba c aiictorisa unicamente na vontade
do imperante ou na lei ; lei de que o mercado zom-
ba porque obedece a outras , c se regula por ou-
tros principiíis.
Ue se não ter applicado o instrumento do credi-
to aos avanços ou empréstimos de que a nossa agri-
cultura precisa resulta, como acabámos de vêr, estar
a producção nacional privada de um beneficio , ou
antes sugeila a um encargo equivalente pelo menos
a 600 contos annuacs. (Juanlos tem lido a obra do
marqucz de AudilTrct sobre as rendas publicas de
Trança sabem que a propriedade de r/iiz está alli
gravada em dividas que montam a mais de 11 bil-
lióes e 233 milhões de francos , que é uma somma
superior a cinco annos e meio da renda liquida dos
proprietários ruraes ,' se avaliarmos esta em 2 bil-
liões de francos por anno segundo o calculo de Du-
pin em 1831. Não sei se sobre os nossos campos
pesa ura ónus proporcional áquelle ; mas posso af-
firmar sem escrúpulo, creio eu, que a industria
agrícola está mais aperfeiçoada em França do que
em Portugal. Se apesar de robusta, lá tem um can-
cro para devorar-lhe as forças, a nossa que ainda
é débil como ha-de supporlar parasitas tão dani-
nhos como são os usurários? É mister expulsar es-
tes e outros inimigos que ainda a perseguem e anão
deixam medrar, policia-la , e dota-la com os aper-
feiçoamentos modernos. Duvidaes da ellicacia des-
tes aperfeiçoamentos? Consultai o seguinte quadro
comparativo dos productos da agricultura ingleza o
franceza era 1833.
Designação.
A (r lã- Bretanha so-
bre 13 milhões d' he-
ctares c cnm oní/.rí-
/io de 0,209010 rra-
balhadores, produz :
A Franca sobre 40
milltões d'hectarcs,
e enm oainilio de
22 a 24 milhões de
trabalh. , produz:
Hcct. o6,000J000
170',i>000
1,2.10^^000
10,200jiOOO
133,000^000
40^000
800^000
3.200^000
Este mappa que foi appresentado á consideração
dos agricultores francezes, ofTereçu agora á dos nos-
sos para que vejara n'este exemplo que é possível
com menor extensão de terreno e menor numero de
braços obter maiorquanlidade relativa de productos
ruraes. É phenomcno que se explica pela superiori-
dade das vias de commuuicação, das machinas,das
instituições de credito que proporcionam avanços ba-
ratos ao agricultor, c pela excelleiícia dos mètho-
dos — em Inglaterra. E em França o phenomcno op-
posto, que essa oflcrece, de muito mcnur |Moducção
rural, ou comparativa ou absoluta , com mais vasta
extensão de terras de lavoura e muito maior nume-
ro de trabalhadores efToctivos , explica-se , ao con-
trario, pela inferioridade que lá manifestain os mes-
mos instrumentos productivos , que deixo enumera-
dos , quando se confrontara com os <ie Inglaterra.
(Continua.)
A. d' O. Marreca.
1Í8
o PANORAMA.
l;í,.j.i-.i' .' .Moral r.NlTEnsAL. i'\ '•',•' /,i
.SV o limnerii fosse dotado da presciência do futuro ,
seria etle mais feliz nu mais infeliz do ijuc
o c actualmente?
Esta queslão íoi venlilada ultimamente com muita
erudição , e desenvolvida cora muita sagacidade e
eloquência por um grande numero de jovens ora-
dores e por um dos mais antigos e distinclos pro-
fessores desta còrle , na illustre Academia Lisbo-
nense das Sciencias e das Lettras. Fechada a dis-
cusíão , eis-aqui , como o presidente resumiu os de-
ijales alim de appresentar , debaixo d'ura ponto de
■vista claro e desembaraçado de todo o equivoco, o
estado da questão , que ia por a votos.
*
Senhores: Quando, enunciada uraathése, pessoas
dotadas de saber e de boa fé se pronunciam deci-
iliilamenle em sentidos inteiramente oppostos ; é for-
çoso concluir ou que a queslão foi mal posta ou que
os contendores tomam as expressões , de que cons-
ta a thése , em sentidos absolutamente diversos uns
dos outros. As vezes a divergência das opiniões de-
riva d'ambas estas causas.
Fazendo applicação deste principio de dialéctica
ii queslão que tão erudita e eloquentemente tenho
ouvido debater neste recinto , direi : que a diver-
gência d'opiniões, manifestada pelos illustres ora-
dores , me parece provir , principalmente , de que
a queslão , com eITeito não foi bem posta. Eis-aqui
como eu entendo que ella deveria ser concebida :
Seria o homem mais feliz ou irais infeliz se previssc
os futuros?
Como é que os homens prevêem os futuros? Me-
diante a analogia das cousas que lhes indica a con-
formidade dos effeitos. Se a analogia c perfeita e
constante , a jirevisão c acompanhada de certeza :
isto verifica-se raras vezes. Se as analogias são fra-
cas e as observações variáveis , a previsão é duvi-
dosa ou mais ou menos provável ; mas não certa :
isto é o que acontece á maior parte das previsões
humanas. Mas as mais das vezes nada podemos pre-
ver , nem presumir. Estas são todas as phases de
presciência humana. Portanto perguntar: se o ho-
mem seria mais feliz ou mais infeliz se previsse to-
dos os futuros, vai o mesmo que perguntar: se o
homem seria mais feliz ou mais infeliz, se não fos-
se homem ; porque o ente que conhecesse todos os
futuros, seria d'uma natureza inteiramente diversa
daquella que só pôde conhecer alguns poucos com
certeza ; mais alguns com duvida ; não lhe sendo
dado, em quanto fòr o que é , conhecer todos os
futuros.
Ora como ninguém discutiria seriamente a ques-
tão : Se o homem seria mais feliz se não fosse ho-
mem ; também se não podo discutir seriamente a
questão proposta do modo como ella foi enunciada.
Para cila ser uma questão seria e susceptível de
se tratar com utilidade pratica , deveria ser conce-
bida nestes termos : Era igualdade de circumstan-
cias , qual é mais feliz cio homem que prevê um
maior numero d'acontecimentos futuros, ou aquelle
que só prevê um pcíiucno numero? Depois de as-
sim posta a questão, debaixo do seu verdadeiro
ponto de vista , segue-se ponderar até que ponlo a
sim[des previ^-ão dos acontecimentos futuros entra ,
como elcuienlo de felicidade do homem ; pois éevi-
denle que esta depende de muitas outras condi-
ções ; sendo certo que a desgraça prevista pelo lio-
mem de bem o alTecta mui differentemente do que
jior aquelle que não acha na sua consciência cor-
rompida e aviltada, nem resignação, nem coragem.
Alem disso , os futuros podem ser mais ou menos
prováveis, mais ou menos fáceis de prevenir, quan-
do elles são contingentes : c nesses casos também a
previsão , por si só , não basta para fazer o homem
que delia é dotado, nem feliz, nem desgraçado. Se
é [irudente, essa previsão lhe proporcitmará os meios
de evitar ou de minorar as funestas consequências
com que o futuro o ameaça. Se lhe falta a prudên-
cia , essa previsão augmcniará a sua infelicidade.
Assim o conhecimento do futuro , sendo todas as
outras circumstancias iguaes , nada influe sobre a
felicidade humana. Se suppozermos dois homens
igualmente circumspectos , e probos , mas um mais
hnbil do que o outro em prever o futuro , esta pre-
visão contribuirá a diminuir-lhe a somma de ma-
les , sem por isso o fazer mais feliz : porque o ou-
tro achará na sua consciência motivos para viver
satisfeito cora a sorte que lhe houver deparado a
Providencia.
Dos perversos é que se pódc dizer que a previ-
são do futuro os tornará mais desgraçados; porque
lhes oflerecerá mais meios de seguirem os impulsos
da sua perversidade , tornando-os mais dissolutos
ou desesperados.
Não é sem grande satisfação que no decurso des-
te interessante debate , observei , que todos os il-
lustres oradores concordaram em que a felicidade
do homem consiste no gozo de pureza da alma e de
saúde do corpo ou , como se exprimia o philosopho
romano: Mens sana incorpore sano: duas condi-
ções que se podem realisar no mesmo grau era pes-
soas dotadas do talento da previsão dos futuros em
graus muito diversos. N'uns essa previsão pôde tor-
nar mais diUicil a conservação da pureza da alma
e da saudc do corpo; n'outros torna-la-ha mais fá-
cil ; mas como aquellas duas condições da felicida-
de são resultados d'uma boa constituição physica e
moral, recebida da natureza, c da educação (obra
da arte humana exercida sobre o homem desde a
sua nascença] ; já se vè que o seu adimplemento
precede a esta previsão dos futuros , cujo grau de
perspicácia não gera , nem inllue d'um modo inva-
riável sobre aquellas condições.
Portanto a thése ventilada não só foi mal posla ,
porque tomou a palavra presciência n'ura sentido
que , a verificar-se , o homem não seria homem ;
mas lambem porque encerra a palavra felicidade,
cuja existência é independente do maior ou menor
grau de previdência do futuro, quanto ii sua exis-
tência : c só a sua conservação é que n'uns seria
mais dillicil , n'outros mais fácil ; porem não já em
rasão do grau da previdência de que cada um é
dotado , mas do grán de energia moral e de força
physica com que cada um é conslituido pela natu-
reza e aperfeiçoado pela arte da educação.
Donde resulta : que devemos fazer uma segunda
modificação á thése , enunciando-a deste modo : A
previdência do futuro contribiic a augmcniar ou a
diminuir o numero de males a que é sujeita a es-
pécie humana ?
Assim appresenlada a questão, fica muito mais
obvia a resposta ; porque logo occorre cpu' , segun-
do cada um fòr dotado de mais ou menos jiruden-
cia , de mais ou menos energia de caracter , nuiior
será o parlido que elle tirará dessa previsão. I.ogo
occorre : que o homem frouxo ou co\arde, o homem
dominado pelas suas paixões , não pódc deixar de
o PA?SORAaiA.
149
aterrar-se cora .i certeza dos males inevitáveis, que
o esperam cm (Ictcrminatla epocha ; liem como com
os que , sendo contingentes por sua natureza ou
porque dependem da vontade de nutrem , o trarão
cm continuo sobresalto , e o reduzirão á horrivcl
qualidade do misantliropo. Pelo contrario o homem
prudente c avisado, tomando conselho das circums-
lancias, procurará e conseguirá muitas vezes ate-
nuar os males que não pôde evitar , e mesmo se
forrará a muitos que não teria declinado se os não
tivesse previsto. Virtuoso c confiado na sabedoria
do Creador , esperará com animo lirme c resignado
os males que prevc não estar na sua mão o evitar :
c. longe de considera-los como um verdadeiro mal,
rcllectirá : que , se o"homcm vulgar os appelida
males , porque lhe causara incoraniodo , o philoso-
pho, emais ainda ochristão, não vêem nesses acon-
lecimcntus senão um decreto emanado da infinita
sabedoria , da infinita bondade de um Deus , que
não pôde querer nem ordenar senão o que é bora e
acertado, o que é mais conforme aos fins imper-
scrutáveis , mas infallivcimcntc uleis e justos da
crcação.
Com efTcito, diz o philosopho, recorramos ao úni-
co meio de chegar ao descobrimento da verdade ,
isto é á definição : e examinemos o que se entende
por mal.
Todas as vezes que , refleclindí> nós sobre o en-
cadeamento d'uraa serie de causas e cffeitos, obser-
vámos quo algum acontecimento superveniente des-
arranja esse systcma , dizemos que esse aconteci-
mento foi um mal para aqnellc systcma ; mas uma
segunda rcQexão nos faz descobrir que sem o des-
arranjo daquclle systcma [isto é sem o que é máu
para elle] não poderiam funccionar muitos outros:
o que seria maior mal. Certo: as doenças que, a
final , causam a morte dos entes organisados , são
males para esses entes ; mas na ordem da crcação
devem-se chamar, c são na opinião de todos verda-
deiros bens. Quando se diz, e diz-se com verdade,
que não ha males sem compensação, quer-se dizer :
que a experiência mostra, não acontecer jamais cou-
sa que, sendo má, debaixo de certo ponto de vista,
não seja um bem considerada a outros respeitos.
Se o mundo é um todo maravilhosamente ordena-
do como não ha ninguém que o desconheça ; e essa
admirável ordem resulta do complexo dos aconteci-
mentos que nelle se passam ; isto 6 , tanto dos que
nós chamámos bens porque nos causam prazer , co-
mo dos que chamámos males porque nos incommo-
dam ; segue-se que relativamente ao grande fim da
ereação, esses que nós appellidàmos males, são ver-
dadeiros bens.
Voltando pois á questão que tem feito objecto das
nossas discussões, a saber: se a presciência dos fu-
turos fazia o homem mais feliz ou mais desgraçado
concluiremos que não se Irata de saber o que o ho-
mem seria se prevesse todos os acontecimentos fu-
turos ; porque para poder prevè-los seria preciso que
o homem fosse constiluido d'oulro modo; isto é:
que o homem não fosse homem ; e então já vedes
que a questão se reduzia a perguntar : se o homem
seria mais feliz se não fosse homem : e propor tal
questão seria uma inépcia.
Mas se, reduzindo-a aos seus verdadeiros termos,
perguntarmos : se é mais conducente para a felici-
dade do homem conhecer elle os futuros, que hu-
manamente se podem conhecer: occorre logo que
dessa previsão umas vezes hade resuUnr maior bem,
outras vezes menor , segundo o uso que a pessoa
souber fazer delia : c logo. o ser feliz ou desgraça-
do, depois da presciência daquelles futuros aconte-
cimentos , não provém dessa presciência, mas das
qualidades moraes do individuo cm que ella se ve-
rifica.
Klucidada assim a nossa questão porei iirimoirn-
nientc a votos: se ella é susccpti\cl de ser decidi-
da pela votação cathcgorica de sim ou não. E se se
vencer que o é , procedcr-sc-ha á votação sobre a
Ihcsc , tal como cila foi [irimciramcnte concebida.
Silvestre Pinheiro l'crreii-a.
DlSClBSO ■ ' '
Em que Alexandre de Gusmão mostra o.i interesses
f/ue resultam a S. M. F. e a seus rassallos da e.Te-
cueão do tractado de limites da colónia do Sacra-
mento , ajustado com S. M. CaUwlica {•].
Pdblicar trabalhos alheios, quasi mortos por escon-
didos , é de certo mais por desejos de ser útil do
que por ambição de adquirir honra ou gloria. O
Sr. J. M. T. de C. çollecionou c publicou no Por-
to era 18Í1 , vários escriptos políticos e litterarios
do celebre americano, Alexandre de Gusmão, con-
selheiro de capa e espada do conselho ultramarino,
cconfidcnte e secretario privado dVlrei D. João5.°:
— é serviço para agradecer-se. Também desejoso
de ser útil de algum modo á nossa historia politi-
ca , e á nossa litteralura , julgo dever publicar um
manuscripto do mesmo auctor , que não achei na
collecção do Sr. J. M. T. de C. , nem nas Jlemo-
rias da Academia llcal de Historia Portugueza, nem
na Bibliotheea de Barljoza ilachado , nem cmfim
nos diflerentcs jornaes litterarios, onde se hão publi-
cado differenles escriptos de A. de Gusmão.
A 10 de janeiro de 17S0 ajuslou-se entre a cor-
te de Lisboa e a de Madrid um tratado de limites,
relativo á colónia do Sacramento , situada na mar-
gem septentrional do rio da Prata : — foi este tra-
tado vivamente impugnado , logo depois da morte
do Sr. D. João o.°, em um papel escripto pelo bri-
gadeiro. António Pedro de Vasconccllos , que linha
sido governador da colónia. A resposta que Alexan-
dre de Gusmão deu a este escripto ó curiosa e ins-
tructiva , pelas idéas politicas e económicas, que o
auctor expende , e pela vastíssima scicncia topo-
graphica que nella se acha: — está publicada na
collecção do Sr. J. M. T. de C.
O manuscripto , de que hoje trato , é acerca da '
mesma negociação; — foi escripto quando A. de
Gusmão, cm consequência da demora da execução
do tratado , começou a sentir vivos receios , que se
lhe não desse cfltilo : — c um complemento do pri-
meiro manuscripto; que deverá ser inserido cm uma
segunda edição da Collecção do Porto , e que no
entanto parece acertado tirar á luz publica.
* J. P.
O estado cm que o rei defunclo , nosso .\iigus-
tissimo Alonnrclia de eterna memoria , havia deixa-
do a ncgiiriação, que na còrtc de Madrid se mane-
java sobre a colónia do Sacramento , situada na
margem septentrional do rio da ]'rata , nos tinha
cheio de esperanças de ver fiualisada por um meio
amigável a antiga controvérsia das duas cortes de
Portugal c Castella, a respeito dos limites da Amc-
(•) Refere se ii A. em piírle ilo sen ilisciirso á Provín-
cia de S. Pe.lro , cuja capital é Purlo-Alegre ; viJ. gravu-
ra anteposta a esle n.* '
150
O PANORA3IA.
TÍca : porem havendo-se demorado a execnrão des-
te plano, entramos a dar algum assenso ao que ou-
Tinios, de que as representações feitas ao nosso mi-
nistro [cm que se mostra que as vantagens ofíereci-
das nos paizes commutados não recompensam de
algum modo os interesses com que nos contribue
aqiiella prara] tem causado movimentos contrários
ao que se havia regulado : — somos obrigados a en-
trar nesta pequena dissertação sem espirito de par-
cialidade , antes bem desejosos de que se nos dêem
melhores rasões , do que as que nos illustram , pa-
ra abraçarmos dilTerentes sentimentos dos que se-
guimos.
A guerra passada, a que pòz termo o tratado de-
finitivo , concluido no congresso de Aqiiisgran no
mez de outubro de 1748, mostrou á Hcspanha as
grandes sommas de prata , que se extrahiam dos
seus domínios pela colónia do Sacramento , e quan-
to inúteis eram as providencias dos seus governado-
res a remover o contraliando. Da mesma sorte leni
sido reconhecidas inlVuctuosas todas as diligencias
a fim de impedir a inlroducção nos seus portos e
povoações dos géneros que transportânios para o Bra-
sil ; cujas informações , longe de chegarem diminu-
tas , são referidas com toda a afTeclação imaginá-
vel, pelos ofliciaes a quem toca evitar os ditos con-
trabandos, na intenção de que se lhes não imputem
ommissões.
A mesma còrle de Madrid fez publico os desca-
minhos da prata de suas minas pelo canal da coló-
nia , tendo em Lisboa emissários para tomar noticia
dos hespaidioes , que iam nas nossas frotas, e par-
tecipar-lhes os cabedaes que levavam, o que se na-
quellc tempo pareceu meio de segurar os importan-
tes direitos que dclles lhe toca, algum dia desco-
brirá que para esta averiguação concorreu outro oI>-
jecto !
Nada prova mais quanto somos capazes de enga-
nar-nos nas nossas coMsas, como entender que Hcs-
panha dorme tão descuidada dos seus interesses ,
que podendo fcchar-nos a porta do rio da Prata ,
permitte nelle o trafico que com os seus vassallos
entretemos. Ninguém ignora quanto os príncipes são
zelosos de que dos seus reinos se não extraiam as
riquezas que nelles ha , ou entram ; sacrificando-se
por e^ita conservação, em muitas occasiões, [quando
se illudem outros recursos] aos males de uma guer-
ra.
Acaba de apparecer a em que a mesma Hcspa-
nha entrou com Inglaterra no anno de 173'J , não
tenilo mais causa que impedir o comniercio clan-
destino : — nada contra[iesaram o rompiniento as con-
siderações de que os bons successos das armas são
contingentes, e os daninos indofinivcis , maiormen-
tc com um tal contrario , que motiva terror á Eu-
ropa : — nenhuma inclinação fizeram á balança pa-
ra a mover á dissimulação.
Neste supposto , que podemos esperar se ofiereça
tão natural , como uma infracção entre portuguczes
e caslellianos , aos quacs sempre será vantajosa to-
da a acção obrada no rio da Prata , por serem se-
nhores de seus portos e das campanhas de uma c
outra parte? Na deleza , que fizemos ha quinze an-
nos na colónia , se nos pòz á vista esta superiorida-
de. I^^stavamos nella empenhados com todo o nosso
poder , c apenas mostramos uma (lasmosa constân-
cia em sollrcr trabalhos, ao passo que os hcspa-
nhoes , sendo recolhidas as suas naus nas muitas
enseadas (la(|u('lles rios, desfructavam as commodi-
d^ades do seu paiz, sendo testemunhas da nossa mi-
séria e consternação, e de que ainda se não extin-
guiram as cicatrizes.
Tudo corria de nossa parte a um êxito lamentá-
vel; — já a esquadra que foi mandada cm soccorro
da mesma colónia , em que estava toda a nossa re-
putação , havia sido obrigada , por falta de amarra-
ções , a abandonar aquellas costas , e o que então
eram forças, principiaram a ser exforços. Finalmen-
te [por dizer de uma vez o que occorre] teríamos
tocado o ponto da ultima miséria a não estar no
Rio de Janeiro o ardente espirito do general Go-
mes Freire de Andrade , a quem se não poderá ne-
gar toda a gloria , que adquiriram nesta occasião
as nossas armas.
A vista disto, em que parece não pode haver
contestação , será conforme ás máximas de algum
politico votar contra a cessão [e é aggravo, pôr em
questão a equidade do convencionado por uns reis
de quem a posteridade não ouvirá fallar sem admi-
ração] de um domínio que por deposito tem a Hes-
panba nas nossas mãos, com o título d'einphytcu-
lico para o haver todas as vezes que quizer?! Ao
zelo de algumas pessoas que chegaram a proferir,
que a corte de Londres, tendo opportunídade , pro-
curaria arvorar sua bandeira naquella paite donde
retirávamos a nossa [nad<i se tem poupado que pos-
sa servir a incntir-nos as idcas de que este é um
phenomeno sem exemplo] , se responde , que se os
inglezes interessassem cm possuir alguma feitoria
no rio da Prata se teriam lançado sobre Maldona-
do ou Monte-Video , cujos portos [que não são me-
nos commodos para o contrabando] tem mais capa-
cidade que o da colónia , aonde não ha o necessá-
rio fundo para a ancoragem dos navios grandes , e
para as suas esquadras que forem montar o cabo
de llorn. Mas esta nação sabe [e qualquer outra
na liuropa] que não é o mesmo conservar nas An-
tilhas Jamaica , Barbada , Coraçau e Martinica ,
que uma colónia no quinto clima do continente da
America Meridional '.
Com isto estava também satisfeito o panto, e eva-
dido o receio de introduzirem suas manufacturas
nas nossas conquistas ; porem como esta matéria é
tão delicada , que ainda assim se não vencerão âni-
mos capazes de vagas impressões , deler-nos-hemos
sobre algumas reflexões, que rodavam sobre o mes-
mo ponto ; porque também se nos faz temer que os
hespanhoes conduzam os seus géneros ao centro das
nossas minas: piojccto espantoso, c que em qual-
quer medíocre discurso passará por allucinação.
Quem não soubesse os dilatadíssimos sertões de
([uasi SOO léguas, que se entrepoem ; as asperida-
des do caminho por onde se havia de fazer o tran-
sito por causa de umas elevadas serranias, facil-
mente daria assenso a quanto se nos propõe para
acautelar o defraude do nosso ouro : — porem os
que estão verdadeiramente informados destas insu-
jicraveis diliícnldades , de necessidade se bãode rir
de similbantes proposições : maiormente consideran-
<lo-se os módicos preços por que correm entre nós
[ainda nos mais remotos jogares] toda a qualidade
de mercadorias transportadas nas nossas frotas , po-
dendo os que do rio da Prata intentarem este trafi-
co conduzi-las ás vastíssimas províncias de Chercas,
Potosi , Chili , c ao resto do Peru , aonde as repu-
tariam com avanços de duzentos por cento mais do
que lhe produziriam nas nossas povoações.
Se achamos lucro em vender os nossos efTeitos
aos hesfiaidioes , que as vem buscar á colónia, ain-
da maior que leva-los ás nossas mesmas minas, que
o PANORAMA.
151
interesse tirariam os estrangeiros que procurassem
eslc trato com ellns? Sem pnom<'rar os coiiimissos
a que se cvpiioliam os Ir^ms^Mcssores das leis para
esle lim cslahclccidas , qiic despczas não fa/iam?
Quem oii\e dizer que de lodos aqoellos pxcogita-
dos incon\(Miicnles nos põe a cobiTto a dila colónia
comprchcnde , que ella é o sagrado palladiura , em
que csla posla a sorte do nosso destino; que no rio
da Prata não ha mais purlo que o seu , para o que
esporam oiilras potencias o praso de que o largue-
mos , para nellc se fuuilarem , c que é algum ba-
luarte ou haircira, que impede o passo ás nossas
terras; porem os que tem in^lrucção mediana dos
primeiros elementos de geographia , alcançam que
o mesmo clTeito faria o forte de S. Filippc cm Ca-
dix a um exercito, que qiiizcsse por Portugal pe-
netrar o seio de flcspanha , ou os Dardancllos nu
estreito de Gallipolli , e o golpho de Pairas no 1-e-
panto contra uma irrupção pela Ungria no império
ottomano , do que as muralhas daquella praça aos
que achassem commodidade em commcrciar com-
nosco pelo caminho de Curilaba. Pelo que toca a
transferirmos com ella o direito que temos a uma
grande extensão de paiz , que nos pertence , e de
que estão de posse os hespanhoes [ainda que não
entramos na discussão desta matéria , porque esta-
mos certos , que por mais volumes que se publi-
cassem a este respeito seriamos respondidos de ou-
tros tantos da parte dos nossos limitrophcs , nem
esta empreza é igual ;is nossas forças, pois para ou-
tros engenhos de mais profundos pensamentos está
reservada , contenlai>do-nos de mostrar aos que es-
tão mais abaixo dos nossos alcances, que segundo
a consistência presente do nosso reino, por todos os
princípios nos é muito conveniente a cessãoj per-
guntámos que poder tomos para o cobrar? A que
guerras se não exporá a monarchia , e que tempos
se não gastarão nesta guerra?
Quando só a defeza da colónia nos custou snmmas
consideráveis, e de que em muitos annos nos não re-
sarcimos '. ou se os bollandezes, que nos despojaram
das melhores províncias da índia , tivessem a bon-
dade de nos deixar um pequeno terreno na ilha de
Java , e comliido temos bom direito a todas aqucl-
las conquistas '. O equivalente que se nos dá é mui-
to mais im()ortante do que conhecemos. As dilata-
díssimas campanhas que se comprehendem dentro
da demarcação, que nos fica, são capazes de susten-
tar muitas mil pessoas: na creação das vacarias ,
bestas muares e cavallares , se farão opulentos os
que tomarem este modo de vida, navegando os seus
couros e carnes para os portos do Brasil, e os mais
animaes leriam uma grande sabida para o serviço
das povoações aonde teem delles necessidade. Não
seria menor o negocio, que se entreteria com os
hespanhoes de Buenos-Ayres , Santa Fé , Paraguay ,
aos quacs sempre faria conta o ir buscar os nossos
géneros para os provimentos de suas casas , e para
os irem vender a outras províncias.
Fazem-nos porem cargo de que pelo Rio Grande
nos não chegariam em forma que fizesse conveniência
o repula-los pelo mesmo que na colónia , podemos
responder que nas perdas que temos experimentado
de navios desde o anno de 1740, em que se tem
diminuído uma grande parte da importância na-
quelle ramo do novo commercio pelo rio da Prata ,
ha bem donde compensar 6 ou 8 por ccnio , que
mais importarão de custo os transportes pelo mes-
mo Río-Grande, em cuja navegação não havemos
experimentado prejuízo considerável.
O excessivo numero de mulas e machos , que
aqucUes paizcs produzem , onde de ordinário valem
;! (Ui i pesos , e o grande numero de rios navegá-
veis, que descarregam suas aguas na lagoa IVIerim,
facilitaria muilo as conducçôcs, principalmente sen-
do lodo o mais caminho por campanhas rasas e
abundantes de ribeiros e casas , c(un que se faz Ji
jornada commodamcnle , devendo-sc advertir , que
não se atigmentaría mais caminho, que o de fiO lé-
guas que ha de diirercnça da colónia a ("astilhas,
as quaes ruariam na metade fazendo-se transito por
Monle-^'ideo.
A ponderação dos que dizem , que com a (roca
não'e\ilàmos que os hespanhoes nos venham iiiquie-
lar nas nossas colónias se satisfaz allirmando-se, (]ue
não só nos seguramos melhor das suas hostilidades,
c incursões dos índios , tendo unidas as nossas for-
ças , tanto para conservar o que está adqiiiiido no
Kiú grande de S. Pedro , d'onde leremos com que
encher os nossos armazéns e manter sutllcienles tro-
pas, mas lambem podemos intentar desde alli algu-
mas conquistas nos vísinhos, quando nos dêem mo-
tivo para a justa represália. Que vantagens não ti-
raremos da Capitania de Malto-grossoscndo-noscom-
mum a navegação dos rios que desaguão no das
Amazonas! por onde se tem aberto comnionícação
entre o Maranhão e a dita capitania , á qual neces-
sariamente se opporão os hespanhoes por estarem
senhores das suas margens , não tendo eITeilo o re-
ferido tratado ! Que utilidades se não sacariam do
commercio por aquella parte, podendo-se livremen-
te alfirmar chegariam as fazendas por Santa Cruz de
la Sierra a Potozi e a todas as mais cidades que
lhe ficam visínbas , menos cento por cento do que
lhe podem entrar dos dois portos de Buenos-Ayres
eLíma, de cujas costas somente se podem fornecer,
pela distancia de mais de 600 léguas que delles
dista : alem de segurarmos aquelles rios descober-
tos , pois os hespanhoes lêem feito publicar cm vá-
rios impressos, que o Cuyabá está dentro dos seus
domínios I
Deus queira que o diffcrir-se a execução do tra-
tado dos limites não seja causa de que a corte de
Madrid , informando-se com o tempo do muilo que
a nosso favor se acha feita a transacção e permuta-
ção , admitia ideas menos conciliosas das que nos
lem mostrado, e que valcndo-sc de outros recursos
reclame o ajustado , deixando-nos depois de uma
tão laboriosa negociação sem uma nem outra cousa.
^ Disse. =
Os AKTiGOS germanos denegavam os direitos de che-
fe de família áquelles que não provassem haver
plantado em suas herdades certo numero d'ar\<)res.
Os gaulczes deram ás llorestas a maior consideração
que podiam conferir-lhes , consagrando-as aos bcus
(leuscs : os romanos lambem divinisaram os bosques
quando os dedicaram ao culto d'algumas de suas
divindades ; d'ahi veio o lucus snccr , que a cada
passo encontrámos nos escriplores latinos ; costume
que passou á Lusitânia , e do que ainda lemos ves-
tígios nos logares chamados = logo de Deus= que
ó a versão lilteral de lucus Dei. A utilidade c van-
tagens das arvores , dos bosques e llorestas foram
152
O PANORAMA.
assim proclamadas , c asseguradas pela sabedoria
dos legisladores antigos por meio do cunho religio-
so que mais poderusamcnlc inlluc na imaginarão
dos homens.
Nossos soberanos , apenas dcscaneados da fadiga
das armas pela total expulsão dos mouros do solo
portugucz , se não esqueceram daquella tareia be-
néfica, tão proveitosa nos usos domésticos e sociaes
quanto preciosa (lara a salubridade dos ares. Elrci
D. Diniz , o mais sábio e providcnle monarcba do
seu tempo, saliiu clle mesmo de IJsboa, sua córle,
com a rainha St." Isabel, sua mulher, c foi estabe-
lecer-se nas charnecas Ínvias c eáfaras entre Leiria
e o Oceano, fazendo arrotear e plantar esse famo-
so c gigante pinhal da Marinha Grande , que ain-
da hoje , apesar de grandes desastres , c um dos
maiores thesouros do estado. O logar chamado Mu)i~
te real , ahi visinho , de que clrei fez presente á
rainha por essa mesma occasião, está ainda hoje at-
testando com o seu nome a residência que alli fize-
ram os dois Ínclitos soberanos. EIrei D. Pedro 1.°
fez igualmente romiier c ])ovoar d'arvores e searas
uma parle da charneca entre Óbidos e Alouguia ; e
no meio delia, para animar esses trabalhos, levan-
tou paços e eastcllo, cujos muros ainda se avistam
direitos no logar chamado Serra d'clrci.
A solicitude dos legisladores, e a sancção penal
seguiu mais tarde aquelles bons exemplos. João Pe-
dro Ribeiro na sua Dissertação 22, no tom. S.° del-
ias, apontou um alvará d'elrei D. Manuel , datado
em 13 de dezembro de 1499, relevando por aquella
vez das penas em que haviam incorrido os moradores
do reino por não terem plantado arvores: boa prova
de que antecedentemente havia legislação precepti-
va a tal respeito. O auctor do Elucidário na palavra
«outeiro, refcrindo-se a documentos que encontrou
no archivo da camará de Coimbra nos deu a conhe-
cer que já desde o tempo d'elreiD. Afl'onso5.°, por
alvará régio de 146i , se inhibiu debaixo de seve-
ra punição que alguém fizesse queimadas junto ao
Mondego a fim de imo prejudicar us matlas e arvo-
redos nas encostas e vertentes ao mesmo rio. EIrei
D. Manuel renovou a prohibieão em 1504 ; e o al-
vará novíssimo de 28 de março de 1791 para o en-
canamento do Mondego não foi omraisso nesta pro-
videncia, antes prescreveu expressamente a conser-
vação dos antigos , e plantação de novos arvoredos,
os quaes hoje alegram os viajantes que por terra ou
agua atravessam aquelles deliciosos cincciraes des-
de Coimbra até Montemor velho.
Tudo altesta o cuidado e sabedoria passadas, o
nosso desleixo e barbaridade actual neste rclevan-
tissimo olijecto ! Se nos não dermos pressa cm acu-
dir ao pendor e licenciosiilade presente, brevemen-
te liciírá o reino convertido em escalvada serrania e
estéreis abrasados plainos. D'um lado o furor com
que para plantar bacellos se arrancam olivaes, mal-
tas , pinhaes e mais arvoredos, c do outro a devas-
tação progressiva e ascendente dos sobreíraes, azi-
nhos e carvalhos p.ira os reduzir a carvão, tem fei-
lo já desapparccer immonsas florestas. E se ao me-
nos estas contínuas subtracções fossem substituídas
por o plantio de outros arvoredos, alguma compen-
sação haveria ; porem não acontece assim : á exce-
pção de Lisboa e Porto, e poucas mais terras gran-
des onde sevècm, e se goza já, com grande gosto c
eouimodidade , da sombra e oxigénio das arvores
novamente plantadas, tudo o mais existe em deplo-
rável abandono ; e nem os particulares em suas her-
dades, nem os concelhos c municipalidades, apesar
do dever de seus regimentos, se lembram de pôr
uma só arvore , cobrindo e abrigando da acção do
sol as fontes jmblicas, os rocios, as sabidas da po-
voação, ou ainda mesmo os pântanos insalubres que
todos os annos dizimam a população contagiada. Nós
damos rebate com este artigo aquelles aquém cum-
pre precaver e remediar tão graves absurdos : c in-
dispensável fazer executar as leis antigas , e esta-
belecer uma norma regular c systematica d'alguma
legislação fioreslal. Uma liberdade illimílada neste
objecto é insustentável ; o capricho e a inexperiên-
cia d'alguns, a incúria e perguiça de outros recla-
mam a acção da auctoridade. Todas as nações o
tem reconhecido , sigamos seus passos com discri-
ção , e envergonhemu-nos de sermos menos indus-
triosos que nossos passados.
Não nos pertence dar a norma dos preceitos le-
gislativos para pór um dique á permissão indellini-
da e arbitraria dos pro[irietarios a respeito do cor-
te e arrancamento das maltas e florestas , nem pa-
ra tornar ellectivas e sjndicadas as obrigações dos
membros do município a quem incumbe essa im-
portante tarefa. Persuadimo-nos porem quedeis pon-
tos principaes são de tão evidente e clara regulação
que podemos abalançar-nos a os fixar aqui : 1.° pro-
hibir absolutamente o corte e arrancamento das ar-
vores, maltas e florestas nas collinas , encostas e
areaes. 2.° defender de cortar ou arrancar em mais
d'um decimo annualraenle as que estiverem plan-
tadas em valles ou planícies ; menos que não pre-
ceda inspecção e accordo do conselho do dislricto ,
que poderá permillir em casos graves e excepcio-
naes exceder aquella quota , substiluindo-a devida-
mente. Istoquanto á ingerência prohibiliva daacção
legislativa : quanto ás exhorlações e preceitos in-
dustriacs e domésticos, diremos no artigo seguinte.
Nós não ignorámos o axioma tão encarecido dos eco-
nomistas modernos , de que o auxilio ás artes e á
industria consiste na liberdade que se lhes deixa ,
e na benevolência e favor que se lhes distribue.
Assim o cremos lambem ; mas accrescenlàmos que
favor e protecção é lambem livra-las da irreflexão ,
da inexperiência , do desleixo e da insensata phan-
tasia.
(J. da C. N. C.)
Exemplos di cobiça de sabbr.
Sócrates appreudeu a tocar instrumentos sendo ve-
lho.
Catão na idade de oitenta annos apprendeu a lín-
gua grega.
Plutarco achava-se avançado em annos quando
quiz apprender o latim.
João Gcllida , de Valência , tiidia quarenta annos
quando se entregou ao estudo das líellas-letlras.
Henrique Spelman lornou-se a applicar ao estudo
das sciencias, e com grande aproveitamento, conta-
va então cincoenta aunos de idade.
Fairfax, depois de ler commandado como gene-
ral as Iropas do parlamento inglez , quiz receber o
grau de doutor na universidade de Oxford.
Colbert , quasi sexagenário , recomeçou os estu-
dos de direito e do latim.
LeTellier, sendo chanccller de França, |)edia lhe
repetissem lições de lógica, para fazer perguntas a
seus netos.
Voltaire dizia , pouco antes da sua morto . que
lodos 05 dias apprundia.
<•■«■»
éó
o PANORAMA.
153
Piure o feroz leàn . dura monarcha .
Que funda no lerror seu sceptro e tbrono-
Mas li nolire e mainaninio mil vtzes ,
K' symíjolo d'heroes . deixa n vencido ,
F. jó no que resiste cmpreja a sanha.
P.' MicEno. Mediluc- Cant. °.
Nvo obstante ser animal rarniceiro, c para assim
'iizer-mos um enorme gato , a cuja Iribu pertence ,
I- reputado o leão o rei dos aniraaes. Esta supre-
Maio 20— is '(.3.
macia dala dos tempos . cm cjue a forra , o animo .
c a faculdade de disseminar assombro e espanto,
eram consideradas as qualidades mais excelleníes
no individuo; e similhante persuasão tradicional-
mente transmitlida, de mistura com fabulas enxer-
tadas ás vezes em factos, mantiveram o titulo áquel-
le raammifero carnívoro, classe em que por seus
hábitos o arrumaram os naturalistas. Se a prcferer-
cia, coroo devera ser, fora dada d brandura sent
fraqueza, e ao instincto que dá visos de raciocínio,
3 soberaiua das selvas fiíra de duvida pcrtcncêri
2.' Serie. — Voi.. 11.
154
O PANORAMA.
»o clcphantc , que até leni physicamcnte a seu fa-
vor a desmedida corpulência : pelo lado da utilida-
de para o homem, ingrato seria este se lh'a dispu-
tasse. Mas nem sequer em cathegorias de hrutos
animaes leva a palma o que mais a merece. Toda-
via , SC meramente attcndermos aos carnívoros , de
direito será d'entre elles o leão o imperante, pela
robustez e porte , c porque é sóbrio , ás vezes ge-
neroso , c n'alguns casos tem provado affeição , c
conhecimento de benefícios. Veja-se o que em o n.°
61 da serie presente dissemos, comparando-o ao
tigre sanguinoso.
1' originário dos tisnados desertos d'Africa e da
Ásia ; os africanos são maiores. Ha-os de nove a
doze palmos de comprido ; mas a sua mais com-
jnum estatura não passa de metade desia medida :
é vividouro, alguns tem chegado a 70 annos , ape-
sar de muitos de capliveiro. r^ão é só forte ; tam-
])era muito ágil. Tem a espaçosa cabeça adornada
de uma juba , ou clina basta , de que a leoa c des-
provida ; scintillam-llic ferozmente os olhos , que
nas trevas reluzem como de gato ou raposo ; tem a
lingua armada de bicos aspérrimos : o pello da par-
te posterior do corpo é curto e sedcúdo ; termina
a cauda em borla : a côr é de ordinário fouvcira :
medonha c a sua voz e quando ruge embrenhado
em serras parece ouvir-sc o echo de trovoada re-
jnota. Exceptuados o clcphantc, o rhinoceroto , o
tigre, c o cavallo marinho, nenhum animal prova
com clle valentias. — A Icôa é menor uma quarta
parte em todas as dimensões ; postoqiio mais fraca
excede o macho em ferocidade quando no covil é
assaltada, ou llie perseguem os filhos ; anda pre-
nhe cinco mezes, c pare cm sítios intratáveis, usan-
do da astúcia de varrer o chão com a cauda para
apagar as pegadas : se qualquer perigo instante so-
brevem , logo muda de cova. Pela prole combate
desesperadamente até a morte , donde veio a phra-
se proverbial de leoa embravecida. Ficaremos aqui
porque assaz tratámos desta casta de feras a pag.
í>7 e 13o desta publicação.
Dií Jersev a Gi;anviile.
H,
(Conlinuado de paij. 133. J
O TKMPoiiAi, que se preparara diiraníe a tarde des-
fechou em cinia de nós com o cerrar da noite. O
vento saltara inteiramente ao sul, de modo que nos
licava ponteiro. As vagas accumulavam-se ení*ser-
ras, que alçando-se e topando cm cheio, se enlaça-
vam e confundiam como dois lucladorcs furiosos.
Depois a mais possante, sumindo debaixo de si o
grande vulto da sua contrária, erguia o topo esguio,
<|ue vacillava um instante, c cahia desfeito em cata-
dupas do escuma nos valles profinidos cavados mo-
ineutaneamcnte em volta delia. O embate daquellcs
vagalhõesgigantes, empe sobre oabysnio dasaguas,
estrcitando-se e despedaçando-se como as hyenas e
tigres n'um circo romano , visto ao lusco-fusco sob
um céu achatado c cinzento , era uma sublime pe-
leja I Todos os espectáculos da terra — dos homens
ou da natureza — que são, ou que valem, com|)a-
rados com a cólera da procella que passa no ocea-
no'.' Menos que farça esttipida de tilcres compara-
da com o Ilamlet ou com o Otbelo representados
jior Dclterton ou porGarrick. O mysterio dos mares
é de todas as obras da creação aquella em que mais
profundamente o Senhor estampou o seu verbo ; a
inscripção indelével c incontestável, que narrará per-
petuamente ao género humano o seu infinito poder.
O chasse-marée se havia posto ácapa. O vento não
consentia já que surdíssemos avante , e o arraes ,
depois de uma breve conferencia á proa com o seu
companheiro , veio declarar-nos que seria impossí-
vel seguir o rumo deSaint-Maló ; — que era neces-
sário pôr a proa nas costas da Normandia , e dirí-
girmo-nos aGranville ; — e finalmente, que só aqui
poderíamos tocar em terra namanhaã seguinte. Re-
cebemos esta desagradável nova cora mais heróica
resignação, se c possível, que a de Mr. Graham jú-
nior ao levar a sova poética das inspirações frater-
nas. E que não nos resignássemos ! A immulabili-
dade do nosso destino proclamavam-na os silvos do
vento , c o que mais era , a declaração do arraes.
Um ca[)itão de qualquer baixel é o absolutismo in-
carnado : as suas decisões equivalem a fatalidade
moslemíca. Em muitos sermões políticos , que é a
espécie mais importíneníe do género litterario —
sermão — tenho lido comparações fulminantes con-
tra os tyrannos , buscadas no despotismo asiático.
Se eu canísse na miséria de fazer eloquência polí-
tica, não ia tão longe busca-las. — Saltava no pri-
meiro hiate, chasse-marée, ou Sloop, e travando do
arraes dizia ao mundo : — ecce homo; — eis-aquí a
flor, a maravilha, o ideal de todos os despotismos
possíveis. Os que andam incommodandoAttila, Kou-
lilsan, ou Timur , para aíTerir por elles os tyranuè-
tes quasí-ridiculos da Europa moderna , são dísser-
tadores d'agua-doce , que [para me servir d'uma
phrase do auctor de Micer llarold] nunca poseram
a mão sobre a juba crespa do oceano. Tyrannia e
arraes são synonimos : — digam o que quizerem os
extirpadores implacáveis das synonimias.
Maitre Jean Legris , era um verdadeiro arraes
normando : duro , carrancudo , e inexorável como
os piratas do século 12.° seus antepasssados, de que
Ião pavorosas memorias restam nas costas de Portu-
gal e de Galliza. Ouvimo-lo com magoa , mas com
respeilo, porque não havia replicar. O chasse-marée
obedecia ao leme , o leme ao marinheiro , o mari-
nheiro ao capitão, e o capitão pactuando com o
vento, resolvera empalmar-nos Saint-Maló e a Bre-
tanha, para nos dar cm troco Granville e a Norman-
dia. Por isso antes de nos communícar as suas in-
tenções , mestre João tinha dado a popa á tempes-
tade e tomado o rumo de leste. Contava d'antcmão
com a obediência , que não lhe podíamos refusar.
Emfim anoitecera : a única luz que víamos nas
campinas do céu e das aguas era aquella espécie
de branquejar phantastíco e transitório da escuma ,
que é para o luar o que um retrato de morte-cór
para um vulto original — n}enos que frouxíssima
claridade e mais que o crepúsculo esbranquiçado c
indeciso de um corpo alvo e que mal se divisa no
meio das trevas. O chasse-marée galgando por cima
das ontlas , no meio do reflexo delias, devia pare-
cer, visto de longe, um baixel myslerioso e infer-
nal perseguido por espectros que surgiam successi-
vamente dos abysmos , e em roda dellc dançavam
danças maldictas , iiivoltos em seus alvos sudários.
iiem importavam a Mr. Graham, o fratricida psy-
chologico, aquellas solernnes tristezas de uma noite
procellosa ! Tirou uni frasquinho de aguardente que
trazia a tiracollo, bebeu um largo trago, e alevan-
lou-se dirígindo-sc á escotilha da espécie de camará
que nos ficava debaixo do tombadíllio. Era um pi-
o PANORAMA.
lliB
nhciro ! Quando o vi em pé receei que o sul o par-
tisse ; mas iiciu sequer rangeu. Se me não men-
te ura calculo rápido , Air. (iraliam era , ao menos
physicamonte , um poeta da Torra de oitenta cavai-
los, medida hritannica : era um poeta de alta pres-
são : era um poeta ivarrantcd , para me exprimir
como os lacónicos letreiros de todas as peças de fa-
zendas inglezas falsificadas. Mr. (irnhani júnior se-
guiu Mr. Graham sénior, non pas.silnis arguis, como
mais curlo que era. Ouvimos lá cmliaixo ainda dois
ou três regougos : depois tudo cahiu de novo em
silencio.
O velho que se me encostara sobre osjoellios ape-
nas viu os seus dois compatriotas buscarem acolhei-
la para a noite, ergueu-sc , e cambaleando chegou
á Íngreme escada que conduzia á estreita camará.
Poz um pé no primeiro degrau; poz o outro no se-
gundo ; tornou a pòr aquclle no ar , c disse com o
corpo no fundo — pan I
Era o som d'um casl; de cerveja cahindo de vin-
te pés d'altura. Ouviu-sc-lhc um grito routo e mais
dois grunhidos dos seus respeitáveis patrícios. Ti-
nha arrebentado o saxonio , ou espalmado o poeta?
Talvez ambas as cousas. Corremos a acudir-lhes le-
vados pelo primeiro impulso de humanidade. Os
primeiros impulsos nestes cases não prestam nem
para Deus , nem para o diabo , porque são estupi-
damente involuntários. Seja isto dito , cora paz do
leitor , como desculpa da nossa caridade e como
descargo do consciência nacional.
Para clareza desta importante narrarão é de sa-
ber que apenas Viráramos de rumo o marinheiro
substituíra o grumete no governo do leme , como
ministro responsável de mestre João , e o grumete
fora assentar-so á proa no logar que deixara o seu
successor , exactamente como um ministro diraitti-
do que vai tomar assento nos bancos da opposição.
D'alli olhava para o tombadilho , fazendo a segun-
da com um assobiar monótono ao bramido do vento.
Chegámos dois ou três á escotilha onde soara o
baque do velho. Íamos a descer, a risco de nos
despenharmos também , quando a cabeça de Mr.
Graham sénior começou a surgir como uma visão
de Manfredo :
«
What dost tlíoii see? —
I see a dusk and airful figure risc.
A luz da bilacola , que envia\a um raio frouxo
ao rosto do grumete , o poeta acenou-lhc que se
approximasse , sem se dignar sequer de olhar para
nós humildes creaturas , que havíamos parado em
roda de Sua Grandeza.
O rapaz chcgou-se a Sfr. Graham.
'tíirandyl [«) — rosnou este com o aspecto teme-
rosamente carrancudo e imperativo de ura Nelson
dando a ordem de accommettcr na batalha de Tra-
falgar. — 'Dizendo e fazendo, mostrava o seu frasco
de aguardente virado de boca para baixo. O rapaz
poz-se de novo a assobiar.
iVós então ousámos perguntar a Sua Extensão se
porventura succedéra algum fracasso aos seus com-
patrícios. Elle lançou-nos um olhar obliquo , e em
voz mais alta bradou ao grumete :
« Rhum ! »
«Não ha : — respondeu o rapaz entre dois asso-
bios. »
« Brirtg rhum , boy ! — insistiu o cantor da Tcm-
perança , já colérico, e fazendo-se desentendido. »
i,«) Aguardente-
(ViiVn d'anglais , não percebes? .... exclamou o
grumete na sua lingua nativa , cora um gesto de
impaciência ; — e accrescentou voltando-se para nós :
— Que diz este diabo?
(iQue lhe ponhas para alli cachaça: — ia eu a di-
zer , paraphraseando em Irancez os Ires monosylla-
lios brilannicos , quando fui interrompido por um
mugido , súbito , incisivo , retumbante , que sobre-
levou o rugir da tempestade. Soltára-o Air. Graham,
que, cerrando os punhos com todos os aílcmanes de
ura professor de sòcco, crescia já para o pobre gru-
mete , o qual avaliara erradamente a linguistica do
poeta. Elle percebera ás mil maravilhas as duas
person?lidades de cão e diabo, que ousara dirigir-
Ihe o imberbe e enfarruscado normando.
Felizmente para este uma onda, galgando exacta-
mente nesse momento a popa, veio lavar o tombadi-
lho , c um forte balanço, fazendo perder o equilí-
brio ao filho da Grau-Breianha, o estendeu ao com-
prido na agua que passava em demanda da proa ,
(•oní grave perigo do precioso manuscriplo do casa-
cão. Estirado sobre a tilhá do chasse-marée , e Go-
leando e bufando para se alevantar , JMr. Graham
representava sotTrivelmentc o papel de um congro
tirado naquellc instante do mar. Quando elle , em-
fim , pôde concluir o plagiato que fizera ao tombo
do seu velho compatriota , o grumete se havia já
retirado ao anterior posto, sobre osescovens, e con-
tinuava o seu acompanhamento de assobio ao estre-
pitar do vento.
Mr. Graham meditou um momento. Parece que o
abalo da queda e a frescura da agua lhe modifica-
ram poderosamente o órgão da combatividade : —
porque sem dizer palavra desceu outra vez para a
limitada camará da frágil embarcação.
Este incidente, que passara com grande rapidez,
podia ter dado motivo a uma seria desavença entre
o arraes e o poeta , porque mestre João moslra-
va-se demasiado cioso da própria auctoridade para
consentir que ura dos seus súbditos fosse punido por
haver recusado uma cousa que talvez não houvess<'
realmente a bordo , c por ter dito duas verdades
duras a um conterrâneo dos nevoeiros e dos beefs-
teaks. Mas porque não se exprimiu Mr. Graham de
modo que o grumete o entendesse? Como imaginou
elle que o pobre rapaz podesso perceber os seus
três monosyllabicos grunhidos? E que o orgulho e
o patriotismo britamiico andam aninhados em tudo.
O que nos outros paizes se olha como um primor
d'cducação , em Inglaterra é uma indecencia. Lm
inglcz parece cnvergonhar-se de saber algum idio-
ma estranho , e muito mais o francez , que nos pai-
zes continentaes não épermittido ignorar aqualquei-
individuo medianamente instruído.
A lingua franccza , pela sua simplicidade, regu-
lar sintaxe , determinada prosódia , e mais circum-
stancias que a tornam faeil para os estrangeiros ,
tem obtido uma certa universalidade, que a vai
convertendo, por assim dizer, em lingua geral, prin-
cipalmente na Europa. Este predomínio da língua
franccza deve ter talvez n'um remoto futuro graves
consequências politicas. E por essa rasão , que aos
inglezes doe excessivamente tal predomínio. Primei-
ra nação do mundo como potencia material ; repre-
sentando nos tempos modernos uma imagem da an-
tiga Uoma , a Inglaterra solTro de m.iu-grado o ser
inlcllcctualmente inferior á Alemanha e á França.
A iniluencia moral que pelos seus livros esta ulti-
ma exercita na Europa , nomeadamente nos paizes
occidenlaes , tende a augmentar ahi a sua influen-
i:íg
O PANORAMA.
tia social , na r.isão direcla do progresso de civili-
sarão desses pai/cs. A França actua pelas idéas ,
em quanto a Inglaterra o faz pelas esíiiiadras : mas
a acção das idéas cria a siinilhança de crenças ,
de cuslnmcs, c de alTectos , em quanto o temor das
esquadras , o apparato do poder , as insolências do
(orle contra o fraco só geram ódios fundos , que se
vão legando de pães a lillios ; que se vão accumu-
lando no thesouro corumum das gerações que vera
surgindo. Estes ódios são um incêndio que lavra ,
lí que pôde alnazar a Inglaterra num desses dias
aziagos, que anianhcceni para as nações como para
as famílias. Uma crise basta para perder o Reino-
t.nido , e esta crise é fácil n'um corpo moral cuja
phisioiogia é monstruosa e autinomica. AGran-Bre-
taniia deve saber que os ccchos do continente repe-
tem de contínuo a grande voz dopuvo, que em mais
de um paiz murmura aquelle terrível verso do poe-
ta italiano :
Siam'serii , si : — tua servi oíjnor fretitenti !
Xinguem como os inglezes tem o instincto da vi-
lia politica. N'uns este instincto é ajudado pelo ra-
ciociíiio, n'outros pelo orgulho nacional. A Ingla-
terra desejara tirar á França as iulluencias intelle-
ctnaes : para isto fora necessário generalisar a pró-
pria lingua. Abi é que bate o impossível. Eulrelan-
lu o ínglez vai fallando íuglez na terra e nos mares,
quer o entendam , quer não, e só em casos deses-
perados recorre a algum idioma estranho , não sem
o torcer , estafar e mutilar , com toda a barbarida-
de de um verdadeiro Kimhri. K uma teima i>erpe-
lua entre a Europa e a Gran-Bretanha :
«O mundo a porfiar que os bretões grunhem ;
I' K os bretões a teimar que o mundo mente.
Aquelle caso de JIr. Graham fora mais um capi-
tulo desta polemica eterna.
Nós os portnguczes pensámos enlão em buscar
uma guarida para passarmos a noite , porque al-
gumas pingas grossas de chuva nos anunciavam um
aguaceiro ímminenlc. i)irigimo-nos a mestre João,
que nos declarou calliegoricamente ser impossível
dar-nos entrada na toca miserável a que elle tivera a
ousadia de pòr o nome de camará ; e isto [lela rasão
composta de que os três inglezes a occupavain in-
teiramente, c não podiam serd"alli expulsos, tendo
pago trinta shellins por cabeça, em quanto nós pa-
gáramos só vinte. O argumento era de uma solidez
irreprehensivcl. I'edimos-lhe todavia humildemente
nosdeclarasse emque sitio nos poderíamos resguar-
dar da agua do mar c do céu ; porque se houvés-
semos pertondido passar a nado dcJorsey para Fran-
ça escusáramos ter-lhe pago a malaventurada capi-
tação d'uma libra esterlina, que nos fazia descer na
<íscala social dez shelfings ou dez furos abaixo dos
trcs inglezes.
Us selvagens teeni mais que os homens civílisa-
dos a eloquência do gesto , e o bom do normando ,
forçoso é coníessa-Io, dava todos os indícios de ver-
dadeiro botocudo. Tomando a postura sublime de
um sccliocniij , o rei do mar, dos antigos sagas da
Islândia, c com um — lá! — que jiodia fazer ainda
nuii decente papel ao lado do — quil mountl — de
Corneille; o arraes , espécie de Cuonaparte junto
ás l'yramidcs , nos apontava para a escotilha d'a-
vante — a escotilha da boca do iiorão — e parecia
dizer-nos no seu gesto mu<lo : — Ahí quarenta dores
rhcumaticas vos esperam I — Melhor era isso, com-
ludo , que amanhecer inteiriçados sobre a lolda ; e
assim, dando-no! por avisados , arremellemos eona
o abjsniO.
Escada não a havia ; e as trevas interiores não
eram menos densas que as trevas exteriores, de que
resa a Uiblia , onde ha o choro e o ranger de den-
tes. A altura, porem, não devia ser grande. Como
os cavalleíros do Palmeirim d' Inglaterra cada um
de nós se cncommendou ádarna dos seus pensamen-
tos, e do modo que pôde desceu aquella espécie de
botf/ia dantcsca.
O chasse-raaréc destinado a transportar gado de
França para as ilhas do (".anal , ia cm lastro , e o
lastro crad'areia. Se não fossem os terríveis balan-
ços da embarcação , a pocilga em que nos acháva-
mos podia passar ao tacto , único sentido de utili-
dade uaqnella situação, por uma praia deserta. De-
pois de ajuilparmos por largo tempo em volta de nós
achámos por lim uma vella, e alguns cabos, lança-
dos para unia extremidade do areal fluctuaute. Ao
menos linliamos um leito , se não mais macio , ao
menos mais enxuto que esse com que já contávamos.
Fma pouca d'areia húmida por pavimento, algumas
braças de lona por leito, e por agasalho c cobertu-
ra a tolda d'ura miserável barco eram, com as tre-
vas que nos rodeavam nesse momento, toda a nossa
consolação e abrigo.
Sc este capitulo de um pobre livro de recorda-
ções, tão humildes e obscuras como seuauctor, pas-
sar ante os olhos do major C. í») elle ha-de por
certo !embrar-se de que essa noite foi uma das Lera
dolorosas e tristes da sua larga vida de solTrimento
c abr;egação — da sua vida de honesto c valente
soldado. Padecimentos antigos haviam crescido com
os trabalhos e estroitczas do desterro, c posto que
o seu animo de ferro lhe não consentisse o soltar
um só queixume , o incêndio lavrava lá dentro , e
a dòr que não podia subjugar-lhe o espirito, ás ve-
zes se lhe revelava no gesto confrangido. O seu es-
tado gerava em nós, que sinceramente o amávamos,
sérios receios. Mas como o padecer se não (raduzia
em gemidos , no meio da escuridão , e entretidos
com a sccna ridícula do poeta da temperança o da
aguardente , havíamo-nos persuadido de que esse
padecimento diminuíra consideravelmente.
Deitados em cima da vella convertida em colchão,
os meus companheiros breve adormeceram. Quando
a consciência está Iranquilla a mocidade encontra
facilmente o repouso ainda no mais duro leito. Só
cu velei ; porque lhes levava nina vantagerri • — ■ tal-
vez antes desvantagem — uma imaginação mais ar-
dente. O major G. também parecia dormir.
Achava-me finalmente só!
Havia muito que para mim não existia ávida ín-
tima senão no silencio da noite. O dia. esse passa-
va-o como embriagado na agitação tumultuosa de
peregrino , vendo fugir por ante os olhos , na terra
e nos mares, os quadros e as scenas de nma natu-
reza e de uma .sociedade diversas daquellas que me
tinham cercado na infância e na primeira juventu-
de. Era de noite que a imagem da pátria , lerribi-
lissima de saudades , se me assentava como um pc-
sadello sobre o coração , e mo expremia delle bem
amargas lagrymas ! Aos vinte ânuos a nossa alma
viçosa e virgem tem alTcctos para derramar com
mão larga por tudo o que nasceu c cresceu junto
de nós; por todos aquelles que nos ensinaram a
balbuciar as primeiras palavras, c nos guiaram os
|irimeíros passos no caminho da vida. Para achar
deleite cm vaguear fora do nosso ninho paterno é
(, •) Ãctimlmcnle (1843) brigadcíra C. S^
o FAINOllAMA.
157
pieciso haver passado a idade das csperanras ; é
pieciso ler já calcado aos pés. iiileiíaincnlc siiirado,
u pomo das illusões, c assistir ao drdma da cxisleií-
cia , não como aclur possuido do seu papel , mas
como espectador iiidiírcrciile, que sabe ser esse dra-
ma um embuste algumas vezes attraclivo, mas scm-
sabor as mais delias; — r jireciso ser liomem ; c eu
não linha então vinte ainios. Por isso oslc errar en-
tre estranhos teria para mim demasiado tédio e tris-
teza , quando se lhe não ajuntassem outras magu.is
e privações de muitos géneros.
O desterro é uma das mais profundas misérias
humanas : mas a pobreza no desterrado é o lormen-
lo mais intolerável do espirito , porque é um com-
poslo monstruoso de saudade , di: humilharão , de
abanilono, de desesperança, que vos lembra cada
dia, cada hora, cada instante, a vossa situação des-
graçada ; que vos recorda sem cessar que sois uma
espécie deAshavero, de judeu errante, que a mal-
dição de Deus guia , em meio do despreso dos ho-
mens, dos vitupérios, dos trabalhos, por uma pcri-
grinação sem termo, c sem horisonte. Tendes de
experimentar a alTronta c callar , os maus tralos e
soffrer , a fome , e a nudez e não ousar pedir uiua
esmola , porque o pobre estrangeiro é ura ente mé-
dio entre o homem e o animal , a saa linguagem
inintelligivel e ridícula , a sua dòr e sentimento
quasi um impossível , o nome do seu paiz a fabula
c cscarneo das gentes , sobre tudo se este paiz é
fraco, limilado e obscuro. Então vem o comparar tu-
do isto com oscommodos e gasaihado do lar domes-
tico , cora o amor c amisade que >os cercavam de
suavidade o viver de outro tempo , e a comparação
vos converte em fel e lagrymas o sangue mais puro
das veias. Tombastes de pedra cm pedra no fundo
de um abysnio : lá acharam os vossos membros pi-
sados c feridos ura leito de çarças; e d'ahi medis
de continuo a altura da queda, porque vos luz lá em
cima o céu da pátria, e a saudade vos conta palmo
a palmo a distancia que vai do despenhado a essa
imagem querida.
Que todos aquclles que nunca sahíram de sob o
tecto da sua infância ; que nunca buscaram de bal-
de o sol esplendido do occidente para o saudar na
manhaã de primavera; que nos remansos do seu
rio nalal não imaginara o eunove)ar-se e bramir das
vagas do oceano ; que nunca viram o céu chato do
norte pesar sobre a campina , estendida como um
radavcr , e cuberta do seu sudário de neve ; que
esses alguma vez se recordem c compadeçam do
pobre foragido , a quem as intolerâncias insensatas
c ferinas de paixões politicas arremessaram para es-
tranhas regiões. Seja qual for a vossa crença , a
vossa parcialidade , doei-vos delle porque as dou-
trinas podem ser erros; mas não são crimes. E de-
mais quem vos diz que essa opinião, que vos parece
verdadeira , e sauta , vos não parecerá cora o tem-
po absurda e má, se de sincero coração a seguis?
Engolfado nestas idéas , postoque bem ilesperlo ,
conservava-me callado no meio dos meus compa-
nheiros , que dormiam placidamente ao murmurar
da agua no costado do chasse-marée , que rompia
pelas vagas agitadas. De vez em quando os mastros
rangiam cora os turbilhões de vento, e senlia-se um
golpe soturno e cmbaçado sobre a tolda. Era algu-
ma onda que salvava por cima do baixel , como a
que viera acalmar a cólera do esgrouviadoMr. Gra-
ham. Depois ouvia-so a voz do arraes, que proferia
algumas palavras ininlelligivcis : depois outra vez
só o silvar da procclla. ,. . ,
O major C. revolvia-se entretanto perlo de mim ,
ao (]ue parecia gramlemenle inquieto. A persuasão
talvez de que ninguém o escutava , c a intensidade
da dòr lhe arrancaram , enilim , um gemido. A sua
energia moral succumbíra. O veterano, depois de
largo combate de muitas horas, declarou-se vencido.
Fallei-lhe em voz bai.\a : na tristeza da uoilc o
padecimento physico parece achar consolo no som da
voz humana. Era o único soccorro que na situação
em que nos achávamos lhe podia ministrar.
A nossa cimversação durou por algum lempõ :
nesta conversação havia para mira o refrigério do
espirito , porque nos recordávamos da pátria ; elle
buscava assim um allivio para dous géneros de an-
gustias, as do espirito e as do corpo. Era mais in-
feliz do que eu '.
1'or este modo passou graude parte da noite. V
tempestade crescia progressivamente , c o balanço
do chasse-marée era já intolerável. Começámos cn-
tíio a ouvir por cima das cabeças os passos apres-
sados dos marinheiros , c um som estranho como
de mar quebrando ao longe em agra penedia. Este
som, semelhante ao disparar de artilharia por sota-
vento , approximava-sc gradualmente.
D'ahi a pouco percebemos correr rapidaVnentc a
amarra pelos escouvens. Era incrível que tivésse-
mos chegado tão depressa ao termo da nossa via-
gem. As seguintes palavras de mestre João , prece-
didas de uma praga, r.ão nos deram vagar do fazer
sobre isso largas conjecturas :
<c Vcjitre-Saint-Gris ... a amarra . . . vamos a pi-
que I » (•)
Foi o que podemos perceber. E era sobejo.
O major C. ficou immovel. Quanto a mim o pri-
meiro pensamento que me scintillou no espirito foi
o de despertar os nossos companheiros. Mas porque
não haviam de morrer tranquillos? Deixei-os.
O brado do arraes fOra seguido de um momento
de tremendo silencio : depois senti que o chasse-
marée fazia um singular movimento, como galgando
pelo dorso de enorme vaga ; apoz isto pareccu-me
que subiíametite parara , c ouvi de novo fallar )ia
tolda. Era a voz de lír. Grahara , o poeta agourei-
ro e esguio.
Este momento de incerteza foi horrível. Então
conheci bem a verdade de uma phrase de ililtou
«a r.tcundão visivcl ; » Nas trevas profundíssimas cm
que estava via o reluzir do mar ao redor da vela
branca em que jazíamos; e os olhos da rainha ima-
ginação enxergavam atravez da agua os rochedos
de sorvedouros submarinhos, onde os nossos cadá-
veres deviam dcutro em pouco achar uma sepultura
desconhecida.
Não sei o como , mas a verdade é que no ni!.;o
do terror de morte affiiciiva e demorada , me veio
á cabeça uma idéa ridiculamente consoladora, foi
esta a imagem de Jír. Grabam sumindu-se nas goel-
las de um tubarão com a sua fabrica inteira de
versos , e a meia fabrica de Lecds , que trazia dis-
tribuída pelos seus quatro casacões incommcusn-
raveis.
Passou um minuto : passaram dous : passou ter-
ceiro ; e a nossa vela enxuta , e o baixel perfeita-
, mente tranquillo. A morte , se tinha de vir, era
I tão lenta e derreada como a melopia da dcclama-
, cão ingleza.
j Porventura havíamos encalhado n'algura banco
d'arcia , porque o chassc-raaréc evidentemente não
abrira ; aliás o mar devia ter-nos já sorvido.
I (.) Teilual. '■
158
O PANORAMA.
Lembrei-mc de subir á tolda. Mas como? O Jo-
gar em que nos achávamos rcpresenlava uma ver-
dadeira masmorra de castello-fcudal : o cscotilhão
por onde descêramos era mais alto que um homem ;
alem disso o estrado da boca linha sido ahi collo-
cado como a campa sobre um tumulo , c em cima
do estrado sentiramos lançar uma lona breada pa-
ra impedir a invasão das ondas que galgavam pelo
tombadilho.
Esperei pois que amanhecesse , e que então ob-
tivéssemos a luz, c a liberdade, da munificência de
Micer Jean l.egris. Entretanto o major parecia mais
tranquillo : a quietarão do chasse-marée , e a som-
nolencia da anle-manhaã eram apparenteraentc a
causa disto.
A alvorada assomou enifiui no oriente : alevan-
tou-se o estrado , e a luz branda do romper do dia
>eio allumiar o nosso calabouço marinho cora uma
claridade frouxa e suave. Não esperara debalde
em mestre João : o seekucnig concedia-nos o favor
de aspirarmos um ambiente puro e livre.
Sulii á tolda. O sol surgia como ura grande or-
be vermelho íluctuando sobre as ondas levemente
crespas. No sudoesie uma nuvem negra e ampla
parecia firmar-se cm pé no horisonte , prolongando
os cimos dentados pelas alturas do céu : era a pro-
cella que fugia varrida pelo nordeste. A superlicic
enrugada do oceano tiuha não sei que, similbante a
iim gesto humano que sorri. Eu contemplava uma
dessas raras alvoradas do navegante , cm que no
aspecto do mar se lè o nome de Deus, e no sussur-
rar da brisa se escuta o hymno da creação.
Onde estávamos nós? No recife do um ilhéu, vi-
sinho das costas de Normandia , cujo nome se me
varreu da memoria. A caldeira cm que nos achá-
vamos teria Ires vezes o comprimento do chasse-
marée e ainda menor largura. Olhei para a entra-
da, e os cabellos se rac eriçaram ao vè-la. Custava
a perceber como o nosso baixel a atravessara sem
se fazer om pedaços ; era um labyrintho de roche-
dos agudos quasi indelineavcl.
Mestre João Legris , não sei por qual rasão náu-
tica, pcrtcndòra fundear junto aos penedos que de-
lendem a boca daquclla abra , alé (jue chegasse a
nianhaã. .\o lançar ancora a amarra se partira ro-
çando pelas rochas. Este successo desastrado arran-
cara da boca do arraes a enérgica exclamarão, que
Ião tcrrivel fora ferir-me os ouvidos no meio das
minhas dolorosas cogitações. Felizmente uma vaga
monstruosa erguendo o chasse-marée sobre o dorso
o arrojou por entre os parcois , — talvez por cima
dellcs — c nos salvou da morte, que aliás seria ine-
vitável.
A sabida do recife deu mais trabalho aos nossos
marinheiros do que lhe dera a entrada. O sol ia já
mui alto quando abrimos todas as vellas ao vento.
Ksle era de feição ; e dentro em poucas horas apor-
támos a Granville.
(Ã. Herculano.)
'kMM^^smít,
Para sermos entendidos de toda a espécie de leito-
res cumpre antes de entrar cm matéria dar aqui
algumas noções cm frase corrente c purtugucza, af-
fastando-nos quanto possível for da nomenclatura
clássica e scientifica.
Todos os vegetaes considerados no ponto de vis-
ta florestal se podem arranjar em trcs classes: plan-
tas d'hervagem oulunas, plantas áematto, e plan-
tas d'arvore(ío. Nós tratámos, principalmente, aqui
da 3.° classe.
Arvoredo dizemos nós dos vegetaes, cujos troncos
robustos são consideráveis em dureza e tamanho.
Estes vegetaes dividem-se em arvores e arbustos.
Florestas chamámos ás arvores e arbustos silves-
tres e bravios, ou sejam de folha ordinária espal-
mada, ou de folha ponteaguda e estreita, a que cha-
mam agulha. Arvores são asquctem umtroucosim-
ples ou tigc alta , mais ou menos ramosa , d'ondo
brotam olhos, botões c lançamentos. Arbustos, pro-
priamente taes, não tem tronco ou tige simples, co-
mo as arvores , porem muitas vergonleas ou varas
sabidas d'uma só raiz: sua grandeza e grossura ra-
ras vezes chega á das arvores pequenas. Duram mais
que o matto , e morrem mais cedo que as arvores.
Ordinariamente chama-se alamedas ás filas d'ar-
vores silvestres, simples ou dobradas, dispostas em
linha, e que os fraucezes denominam atlee ; e mattos
os arvoredos compostos d'arvores , arbustos , e de
malto mesmo, que foi originariamente o que lhe deu
o nome. Nós conservaremos esta nomenclatura vul-
gar c nacional , com significação perceptível de lo-
dos.
Os proveitos e utilidades das maltas e arvoredos
são muitos e diversos , e bem se conhecem pelos
seus contrários. A diminuição das mattas e arvore-
dos lira a humidade necessária ao terreno , c torna
o solo árido enú. Diminuídos os orvalhos e chuvei-
ros , diminuem lambem as nascentes das fontes c
dos rios : o soão abrazador c o sècco nordeste do
estio varre sem defeza os campos e os esterilisa.
A ;;lectricidade felizmente entretida , e derramada
pelos díffercntcs conduclores das arvores , se con-
densa , e faz de tempos a tempos saltos e explosões
ou funestas ou ruinosas nos locaes escalvados. As
febres malignas c intermittenles , que dizimam lo-
dos os aimos a população de lugares pantanosos, pro-
cedera da falta de bosques e arvoredos , os quacs
absorvendo o carbónico, e expellindo o oxigénio, pu-
rificam o ar. Do entretenimento das maltas c arvo-
redos cm logares que não servem á cultura resul-
ta , alem daqucllas vantagens de salubridade, — a
caça , que augmenta os productos do consumo ; —
os estrumes pelos depósitos das folhas , da limpesa
dos ramos , e das ervas e mattos , que ahi se criam
espontaneamente; — a filtração das aguas e enxur-
radas que passando atravez dos arvoredos c balsas
nas encostas e assomadas , trazem eomsigo partícu-
las nutrientes que fecundam os vallcs c os campos
cullivaveis. As vantagens politicas não são menores
do que as naturaes e ruraes. O estado adquirirá no-
vas riquezas no plantio dos bosques e arvoredos ,
que, jiassados sete annos, começam a produzir ren-
dimento útil , crescendo sempre na proporção pro-
gressiva dos tempos. Os arsenaes c estaleiros terão
sortimeulo de madeiras ; — as fabricas c laboração
das minas , a navegarão interior e outros estabele-
cimentos lerão madeiras de coustrucção c lenhas
para combustível. Um dos nossos mais doutos na-
turalistas (•) disse : = «Sc os canaes de rega c na-
«vcgação aviventam o commercio e lavoura , não
«pôde have-los sem rios; não pôde haver rios sem
t») O Dr. João Buuifacio d' Andrade n'niua de suas me-
morias académicas.
o PANORAMA.
ISÍT
«fontes ; não ha fontes sem chuvas c orvalhos; não
«ha cluivas c orvalhos sem aivorciios.»=^0 mesmo
naturalista ealcnUui em 3(t libras dngua a liumida-
(Ic que (listilla uma arvore de dez annos , c concluo
que um chão desabrigado de 3'á pés quadrados per-
de diariamente ;tO onças d'agua. De que utilidade,
de que necessidade não é então cobrir d'arv(iredos
essas campinas ardentes do Alemtéjo e da Kstrema-
dura , e os arcaes c charnecas que avisinham nossa
costa ! ■ - .
Da sementeira e plantio das arvores silvestres.
Seis requisitos c preciso ter cm vista na semen-
teira silvestre. — i." as espécies d'arvores; 2.° a
bondade da semente ; 3." a quantidade da mesma ;
4.° a escolha e preparação do terreno ; o.° o tempo
o sasão própria; (i." a semeadura.
Quanto ao 1." — A escolha das arvores e arbustos
deve ser adaptada ás circumstancias da localidade
e do paiz ; devem preferir-se as mais utcis e de
maior interesse ao consumo.
Quanto ao 2.° — A bondade da semente depende
de estar bem formada, saã e haver chegado ao grau
de perfeita maturação ; deve ser apanhada sêcca , e
bem guardada em sitio enxuto , quando se não lan-
ça logo á terra.
Quanto ao 3.° — A quantidade da semente deve ser
proporcionada á força e bondade do terreno, e á na-
tureza das arvores ou arbustos ; porque alguns exi-
gem estar bastos para se apoiarem uus aos outros ,
e outros raros e compassados.
Quanto ao 4.° — Da escolha c preparação do ter-
reno depende sobremaneira o bom exilo da semen-
íeira ; aliás é caminhar ás cegas. Se o terreno ó solto
e leve basta um lavor comaraveça ; se é mais forte
e compacto , porem livre de pedras, de raigotas ou
raizes , deve ser lavrado fundo ao arado ; mas se
pelo contrario é empeçado , forçoso será surriba-lo.
Quanto no S." — O tempo próprio da sementeira é
quando as sementes formadas c amadurecidas caem
per si mesmas, porque então grelam promptamente.
Isto porem não pôde ter logar senão nas pequenas
sementeiras : em todo o caso convém que a semen-
te seja nova.
Quanto ao 6." — A semente não deve ficar enter-
rada muito funda , nem tão alta que se seque ou
esterilise na superfície. Cumpre nesta parle imitar
a natureza , que ordinariamente a faz germinar e
brotar coberta apenas de apodrecida folhagem. .\os
sitios porem descobertos, desabrigados, c maiormcn-
te sendo as sementes aladas ou nicmbranaceas, que
as leva o vento, ou leves e miúdas, cumpre cubri-
las de terra ou areia de meia polegada d'espessura.
Isto pelo que pertence aos princípios geraes, que
regulam sempre : as regras e jireccitos particulares,
relativos a cada um dos seis indicados requisitos ,
expenderemos em artigos especiaes.
J. da C. X. C.
Delrei d. João 2.° e do cahdeal d'Alpedrinha.
Eji historia assim como na conversarão . e no de-
mais tracto da vida social ha certas phrases que fa-
zem fortuna ; agradam e seduzem pela graça e es-
pirito conceituoso cora que são arranjadas ; e o vul-
gar, naturalmente leviano ou indolente, se compraz
em repeti-las , e sem indagar nem examinar suas
provas, atira-as como axiomas, explica por ellas os
acontecimentos a que as mesmas se referem ; e com
este modo de proceder e d'ajuizar se vai muitas
vezes transtornando e desfigurando a verdade histó-
rica. Poderíamos apontar muitos exemplos deslc
máu resultado ; por agora alteiulam os leitores ao
seguinte :
È niuilo conhecida na historia de nossos reis aquel-
!a conversa que se diz tiveram nas praias da Jun-
queira ou de lielem o príncipe I). João [depois rei
2.° deste nome] com o duque de Bragança, D. Fer-
nando , e o arcebispo de Lislioa , D. Jorge da Cos-
ta , mais nomeado com o titulo de cardeal d'Alpe-
drinha. Foi o caso, que havendo elrci I). AfTonso
5.° colhido na corte de França o desengano de que
nenhum soberano pôde confiar demasiado no auxi-
lio dos estranhos para o arranjo c melhoramento de
seus negócios ; obrigado pela força e politica ma-
chiavelica de Luiz 11.° a voltar ao reino e á coroa,
de cujos pungentes espinhos havia resolvido fugir ;
chegando na frota franccza , que o conduzia , á en-
seada de Cascacs , mandou adiante um mensageiro
prevenir o príncipe seu filho daquclla estranha no-
vidade. Este , que nada menos esperava do que a
volta de seu pai , que pur sua ordem , c de suas
instancias havia tomado o sceplro por formal abdi-
cação daquelle, ficou confuso e embaraçado, e per-
guntou aos dois : = como 6 que hei-de receber meu
pai , que está chegando ? = O cardeal , mais preca-
tado e astuto , calou , postoqne nisso mesmo se de-
clarava assaz ; mas o duque , vivo e prompto , res-
pondeu = como recebè-lo , principe? Como vosso
pai e como vosso rei. = Seguidamcnte o principe
sem contestar pegou d'uns seixinhos daquelles que
costuma haver nas praias , e começou a joga-los
disfarçando o negocio , e alirando-os pela lona d'a-
gua os fazia ir saltando e fazendo pulos. O cardeal,
percebendo com isto que o conselho fura recebido
de má mente , disse para o duque , mansinho : =
aqnella pedra me não hade dar na cabeça ; =e pas-
sados dias, aforrado largou o reino e se foi a Ro-
ma, donde não voltou mais. Aii aqui c a relação
commum e popular , que pouco imporia seja falsa
ou verdadeira em si mesma. O caso porem é que
delia se lira uma illação injusta e depressora do
grande caracter do soberano a quem a historia cha-
mou principe perfeito. Tem passado . como cousa
sem replica , que deste fraquíssimo principio, des-
te supposto conselho, que aliás faria muita honra
aos seus auctores, que de nenhuma serie era obri-
gatório , e que devia merecer louvor e estimação ,
mesmo d'um homem tão atilado e tão bom aprecia-
dor das acções briosas ; desle successo , diremos ,
deduzem a má vontade que D. João 2.° mostrou
sempre ao cardeal , e que mais tarde levara o du-
que ao cadafalso em Évora , postoque acompanhada
ou mascarada com a resistência ás correições da
coroa em suas terras. Ora isto não é assim : a des-
graça destas duas personagens teve principies mais
altos , e é Fernão Lopes , o mais antigo , o mais si-
sudo, c o mais verídico de nossos chronistas. quem
os indica ; e foram estes : quando o malaventurado
rei de Castella , Henrique 4.°, se lembrou de pro-
ver á successão da coroa , ofTereceu a Portugal o
seguinte convénio : casar o próprio rei D. AiTonSD
5." com a infanta D. Isabel sua jrmaã , jurada já
naquella corte princeza hábil para succeder ; e o
principe D. João com sua iilha única e herdeira , a
princeza II. Joanna , chamada depois a exeellente
senhora. Desle modo fica>a a successão da dynaslia
portugueza á coroa de Castella segura pelos dois
lados. A princeza Isabel e seu partido ficariam li-
160
O PANORAMA.
songeados de a verem rainha de tantas coroas, c as-
scfturada a preponderância e valimento dos grandes
d'Hespanlia , que por seus particulares inlcrcsses
lançavam somliras ignominiosas sobre a legitimida-
de (la lillia do rei ; e esta, sctido casada com o her-
deiro nuico o legitimo de Portugal, empunliaria o
sceplro i)em depressa, salvos assim os princípios
das leis de successão em ambas as coroas ; cessa-
vam os escândalos , e se punha um freio ás ambi-
ções , parcialidades e maledicências. Esta alliança ,
estas disposições aggradavam muito ao príncipe, co-
mo é natural ; mas achou poderosos contradiclores
no cardeal e no duque que a desapprovavam , ex-
])ondo ao bondoso c indeciso Aflonso o.° que seria
isto metter-se c ao reino em camisa de onze varas ;
que seria empenhar n'uma guerra terrível sem ap-
]iarencia de bom snccesso , porque nem a princcza
Isabel era de molde n renunciar ao throno d'Kes-
jianba que lhe promellia seu grande c formidável
partido , ncni os grandes d'Hcspanha , feros e or-
gulhosos , sofTreriam jamais soberano estrangeiro ,
lanto mais quanto Fernando, rei de Aragão, que-
ria o b'>lo para si , c atiçava os dissidentes. D. Af-
fonso resignou-se ; e todos sabem qual foi o de-
plorável resultado da sua politica : c D. João 2." ,
que era a alma da política contrária , sempre de-
pois lançou na cara dos dois as conseq^uencias do
ruim conselho. Isto quanto á má vontade , porque
quanto á jnsliça , boas rasões lho não faltaram.
J. da C. N. C.
' . ■ Bútãnkã. '
SoijRE a cAPiiinciCÃo dos figos (>).
A cAPr.iFicAçÃf) é conhecida , e praticada no Algar-
ve talvez ha muitos séculos , e desde o nosso anti-
go commcrcio com os carthaginezes ; pois qnc este
modo de fertilisação artificial c antiquíssimo n'.\-
frica, Grécia, e em todo o Levante. Delia faz men-
ção Aristóteles c seu discípulo Theophraslo , Plínio
e muitos outros auctorcs antigos, gregos c romanos:
entre os modernos Tonrnefort, Pontedera, Línneo e
Bernard de Marselha são os que mais se occnparam
de a indagar ; isso não obstante , ainda restam al-
gumas observações que fazer , para perfeitamente a
í Iluminar na sua cansa e effeitos.
Consislia antigamente, 1.° cm plantar figueiras
bravas defronte dos figueiraes cultivados da banda
donde o vento soprava mais ordinariamente nos fins
da primavera , para que ccrlos mosquitos , que en-
tão costumam sahir dos figos bravos, fossem mais
farilmenle pela direcção do vento conduzidos aos fi-
gos das figueiras domesticas, ncllas entrassem, c os
impedissem de cahir, accelerando ao mesmo tempo
a sua túmida e doce madureza : os gregos chama-
vam a esta casta de figueira brava crinos , os roma-
nos raprilicus . e os porluguezes lhe dão o nome do
itaforr.ira ou fif/urira de tocar. 2.° Consistia era pen-
durar ramos ou enfiadas de figos bravos nas figuei-
ras domesticas para o mencionado fim. Esta segun-
da prática está ainda boje em uso nos mesmos pai-
zcs , cm que antigamente se usava , e lhe chamam
raprificação. No Algarve enfiam era tiras de folhas
(•) Estas notas, escriplas pelo nosso insigne naturalista,
FelÍ!(d"Avellar Rrotero. foram impressas na Irailucção, pou-
co conhecida , ila obra do Blanchard , pulo beneUciad» M.
.1. da Costa , tom 2."
de palmeiras os figos da figueira de locar , e pen-
durara cslas enfiadas nos ramos de algumas figuei-
ras domesticas, ou de certas variedades serodeas ,
cujos figos, ainda que de boa casta , cahem coratu-
do sem amadurecer, se não são capriticados.
O insecto, que contribue para a capríficação , foi
antigamente conhecido dos gregos , com o nome ds
psni , c os cntomologicos modernos lhe chamam r;/-
nips })scHcs : é do comprimento de um grão de sal-
sa com pouca dilfereuça, e todo negro ; as suas an-
tennas são quasi do comprimento do seu corpo, e
compostas de doze nós ou articulações ; tem quatro
azas membranosas sem malhas, c as de cima maio-
res : o individuo feminino tem de mais disso na
extremidade do ventre um ferrão escondido entre
duas laminas. Este insecto, ou mosquito, dizem que
gosta mais dos figos bravos do que dos mansos ou
domésticos: nellcs põem seus ovos, e as suas lar.vas
nclles se criam até delles sabírem transformadas cm
mosquitos ; pois não é destes figos podres que se
gerara, como os antigos philosoplios gregos e roma-
mos pensavam , porque a podridão destroe , desor-
ganisa , e não pódc gerar ente algum orgânico , os
qnacs todos nascem de ovos , ou germes formados
pelos pais da sua espécie, segundo as luzes da pbí-
losophia moderna. Quando os mosquitos não acham
figos bravos, introduzem-se nos mansos ou domés-
ticos, que acham logo visiuhos , e mesmo na falia
de uns e outros , dizem que se introduzem nas se-
mentes tenrinhas dos fiosculos da cangarinha (sco-
h/niiif; Itispatiiciis) e de algumas outras plantas. Ao
Archipélago estes insectos dão-se nasbaforeiras, que
produzem três castas ou camadas de figos successi-
vamenle no mesmo anno ; em maio, agosto, c fim
de setembro ; não são bons para comer, mas só pa-
ra caprificar, porque cm todos se dão mosquitos;
os da camada de maio comtuiio , chamados ornos .
são os que empregam os gregos |)ara a capríficação
em junho e julho : os fiosculos em todos elles pro-
vavelmente são raonoicos ; nos da camada de setem-
bro os ovos dos insectos ficam depositados até a pri-
mavera do anno seguinte, em que as suas larvas sa-
bem dos ovos, nutrem-se das milharás do figo, e
transformados sahem a iulroduzir-se cm outros figos.
Em todos os figos das figueiras bravas até agora
observados em Portugal se te;n achado sempre fios-
culos dos dois sexos , e mesmo entre elles alguns
hermaphroditos ; as baforeíras do Algarve são aná-
logas ás que dão os figos lampos.
Os mosquitos , que sabem dos figos bravos pen-
durados nas figueiras mansas , tem immcdiatamente
cópula entre si; depois disto as fêmeas cuidam lo-
go de pôr e aninhar os seus ovos de tal maneira ,
que a sua prole ache no próprio ninho o seu conve-
niente alimento, sem mais trabalho algum materno;
romi)em pouco a pouco o olho dos figos verdes do-
mésticos, penetram no seu interior, picam as mi-
lharás com o seu ferrão, e em cada um destes grãos-
inlios põem um ovo : neste ovo , com o calor com-
petente, descnvolve-se uma larva, ou lagarlinlia mí-
nima, cnjo corpo é composto de doze anncis, bran-
co e sem pés; nulre-sc do miolo das milharás, sem
comtudo evacuar excremento algum , até se trans-
formar em nympba e perfeito mosquito ; rompe en-
tão a casca da milhará, c sabe delia c do figo, vóa,
e cuida em propagar a sua prole especílica do mes-
mo modo que seus pais lhe deram a sua existência
indi\idual. Um mcz basta para que as larvas che-
guem á sua ultima metaraorphose.
l Continuar-$e-ha ) .
74
o PANORAJIA.
161
UMA VISTA DO FAIAI..
Se os nossos leitores quizercm consultar os índices
dos primeiros volumes deste semanário , por elles
irão buscar muitas noticias do importante archipe-
lago dos Açores, jóia engastada na coroa porlugueza.
De obra estrangeira tomámos a precedente estampa.
em que a imperfeiçiio do desenho c gravura , mos-
tra ao longe mal designada a ilha do Pico , que é
para assim dizer o jardim ou a quinta do Faial. —
O Sr. Júlio de Lastcyrie diz assim : — «A ilha do
Faial forma uma vasta meia lua, no recesso da qual
está posta a cidade d'Horta : as ruas parallelas ao
mar sobem successivamente com as latadas de ro-
meiras e outras arvores pelo declive de uma escar-
pada eminência. Casas e flores fazem um composto
engraçado , donde á vontade se pôde admirar o es-
plendor do painel , que ante os olhos se estende.
Em face está a ilha do Pico , e a sua extremidade
peneira na bahia do Faial , que sombrèa com seu
magcstoso cume. Na falda da montanha, visinha ao
mar , crescem as larangeiras e as plantas dos tró-
picos ; á proporção que o terreno altèa distinguem-
se as oliveiras , e as cepas da vinha ; mais alem as
arvores do septenlrião da Europa , e em lodo o ci-
mo as neves perpetuas. A esquerda prolonga-se a
ponta de S. Jorge , e se entreve o canal estreito e
comprido , que separa esta terceira ilha da outra
do Pico : por entre estas terras tão próximas desdo-
bram-se , sob esplendida atmosphera , as vagas tu-
multuosas do oceano atlântico. Activa navegação dá
vida a esta enseada magnifica. Sendo o Faial o pon-
to dos Açores onde os navios podem sem perigo dei-
tar ferro, acodem estes alli em grande quantidade :
os baleeiros americanos vem renovar aparelhos e
fornecer-se de mantimenlos : embarcações do Mara-
nhão , que o vento obriga a tio larga Tolta para
Maio 27—1843.
irem ao Rio de Janeiro , arribam á cidade de Hor-
ta ; e outras inglezas carregam-se do vinho do Pi-
co , que ajudado de alguma aguardente semelha o
da Madeira. O movimento commcrcial influe nos
costumes e hábitos dos moradores, e dá á popula-
ção d'IIorta uma physionomia europea , que não sr;
encontra tão distincla em qualquer outra terra dos
Açores. » —
«Para ir do Faial á Terceira dobra-sc a ponta oe-
cidental da bahia d'Horta , cntrando-se pelo canal,
que ao occidente é apertado pela ilha de S. Jorge .
e a leste pela do Pico passagem perigosa de na-
vegar , onde o mar quebra com igual violência nas
duas margens : as correntes são arrebatadas , e os
navios que a tempestade tomar de súbito nesta pa-
ragem , varrida pelo vento , não tem refugio, a que
se acolham. — A pouco e pouco a ilha do Pico , de
figura oval , afasta-se de S. Jorge ; em curto espa-
ço transpõe-se a extremidade desta : descobre-se
então a Graciosa, pequena e rotunda, que sahe das
aguas como um açafate de flores; e na frente ve-
mos a Terceira com suas penedias escalvadas , e
montanhas nevoentas. »
riz-se que o nome de Faial proviera das muitas
faias , que os descobridores lhe encontraram : ven-
tilar questões d'etjmologias , sobre desnecessária
ociosidade, é cousa fora da moda. Chania-se aspira,
c não' ha vozes que desmintam nomes que o povo
diz, que os livros geographicos consagram, porque
não podem deixar defazè-Io. Esta ilha tem de com-
primento cinco léguas , e de largura quatro ; pode
quasi chamar-se redonda : orça-se em vinte e qua-
tro mil habitantes a sua população . divididos pela
capital, [que foi elevada á calhegoria de cidade por
D.Pedro deBrasanca, de Saudosíssima Memoria] c
2.' Serie. — VoL. II.
162
O PANORAMA.
por nove aldeãs c outras povoações de pouca mon-
ta. O vinho que produz c de inferior qualidade ; o
que embarca provem-lhc do Pico ; dá ccreacs para
Consumo pro|)rio e da ilha visinha ; produz Iialalas
c inhames ; mas o género de cultura , que lhe ó
mais vantajoso é a laranja, de que exporta uns ân-
uos por outros carregação para doze e qualorze na-
vios : assim mesmo nutre bastante gado. A indus-
tria limita-se ao fabrico de manteiga, pannos de li-
aho , c loiça ordinária de barro.
O DIELLO DAS DAMAS.
1."
O vAiLE dc Carriedo é dos sitios mais românticos
da vertente septentrional das Astúrias : parece que
nelle se reuniram todas as naturaes bellczas para
simullaneamentc realisarera o ideal do poeta e do
pintor." Vegetação vigorosa e aromática , florestas
virgens , ordenadas sobre amphithealro de rochas
variegadas ; espumosas torrentes , que desde o ci-
jno das montanhas se precipitam como artificiaes
cascatas ; jardins que a natureza criou espontâneos,
|)cnsís c fora do alcance da mão dos homens ; ca-
minhos de fantasiosas formas , que remedara esca-
das assestadas para as nuvens , frequentadas só pe-
la corça selvática, ou pelo contrabandista que con-
jeguiu ser o seu intrépido companheiro : nada falta
áqiicUa paizagcm, verdadeiramente meridional, pa-
ra fazer um dos quadros mais grandiosos que i)o-
dcm imaginar-sc. — J\o centro deste espectáculo
admirável dão os olhos com a villa da Vega , gra-
ciosamente collocada no meio do painel que a cir-
cumda , ostentando ainda hoje sob aquellc ameno
clima as amêas do castello , cnnobrecido pelos que
em o século 1(5.° o habitaram.
IVuma serena tarde do mez de fevereiro de 1302,
divisava-se um cavalleiro que a passo raiudo subia
pela escarpada ladeira , que findava no relvoso ro-
cio, sobre o qual o campanário de uma ermida
campeava : era esta consagrada a Nossa S." de la
A'ega , padroeira de muita veneração ; c a sua fes-
tividade annual tinha nesse dia concluido , como
aimunciavara os repiques dos sinos , e os magotes
de gente rústica , que se recolhiam ás pousadas ,
cantando seguidilhas ao divino. O homem que su-
l)ia o serro era D. Félix de Vega , senhor e dona-
tário do solar e casaes dessa villa, que com seu
appellido era honrada : morador naquelle torrão des-
de que nascera , no sitio que para assim dizermos
seu pai fundara , tinha crescido , e prosperado , e
vivido , sem conhecer um instante de desgraça ou
melancholia ; e a donzella asturiana , que puzera
remate á ventura delle , porventura que não teria
jias llesp.ndias rival na belleza , como na graça , e
ternura d'esp()sa. Havia porem quinze dias que pe-
la vez jirimeira , depois de sinco annos dc matri-
monio , a formosa Francisca Fernandez se achava
ausente dc seu nobre esposo.
No momento em que D. Félix chegava á coroa
do cabeço altrahiraui-lhe a attenção os clamores
que sabiam da ermida , c viu um troço dc campo-
nios encolerisados , c no meio delles agitada e li-
vrando-so uma mulher bastante moça com uma crean-
ça nos braços.
« Fora , fora a cigana . . . não está aberta a igre-
ja para lacs cxcommungados» — bradava a chusma
empuxando a mísera para fora da capella.
«Não sou cigana , nem excommungada , meus ir-
mãos , . . .» — contestava a rapariga com ademanes
de supplicante. — «Se o é meu marido, nem por
isso deixo de ser hespanhola c calholica , como vós
sois ; e não podeis empeecr-me que venha requerer
para meu fdho o baptismo , que merece tanto como
vc')s merecestes. . . » —
«Não ha baptismo para os malditos. .. » — Re-
plicavam sem caridade os fanáticos. «Vai para a
cova dos feiticeiros ; Satanaz que te benza o fi-
lho. » —
A desventurada mãi tinha de ceder á força, c
retrocedia já banhando com lagrimas a crcança ,
que via réproba; neste passo, um sacerdote ancião,
como pelas muitas caãs demonstrava , apparcceu
revestido de sobrepelliz no batente da porta, cha-
mado alli pelo alarido dos rústicos: a mãi expulsa
correu a elle aniznada d'esperança. D. Félix, sus-
tido por este incidente que complicava a scena, re-
primiu o seu primeiro impulso , que o levava a
aquietar o tumulto ; e chegou-se ao logar da alga-
zarra para melhor indagar a causa e presenciar o
desenlace. Um minuto de attenção pôz o ecclesias-
tico pastor ao corrente do qne se passava, e conhe-
cendo sua obrigação melhor que o tropel de amoti-
nados, rcprehcndeu-os de sua dureza para com a in-
feliz mulher. Restabelecido o silencio , pôde inter-
rogar a mãi , que para seu filho re(|ueria baptismo.
«Quem es?. . E donde vens, minha filha?. . .»
— lhe perguntou com voz meiga.
«Sou Joanna Valdês, mulher d'um cigano, que
vaguea nesta comarca : meu marido não c calhuli-
co ; mus eu não deixei dc sè-lo , e venho otTerecer
a Deus este fructo que dei á luz quinze dias ha.»
«Ainda que christaã não fosses, teu filho linha
jus a sè-Io , já que assim o pedes ; porque as fon-
tes sacrosantas do baptismo estão patentes a todas
as humanas creaturas.» —
Em seguida , tendo admoestado de novo os cam-
ponezes , expiíz-lhes que o meio de expiarem seu
erro e cegueira era abençoarem elles próprios o
menino , que acabavam de amaldiçoar.
«Escolhei do meio de vós [proscguiu] padrinho
6 madrinha. . . » —
Apenas o ministro do Evangelho pronunciara es-
tas palavras , teve de interromper com dòr o seu
discurso conciliador , vendo que os aldeãos , reco-
brando deshumanos sentimentos, lhe davam as cos-
tas, todos a um tempo, ao retirarem-se murmuran-
do outras pragas contra a presupposla cigana.
«Que é isto? [bradou indignado o sacerdote] to-
dos abalam ? . . . Nem um ficará para envergonhar
os mais?. . . Não haverá uma mulher, uma mãi,
qne se apiade de sua irmaã em Jesus-Christo?)) —
E no instante em qne este caritativo chamamento
era pronunciado, som proiluzir o elTcito de que uma
só cabeça para aiiuella banda se voltasse, chegava
uma senhora pela parte opposta a essa por onde vie-
ra I). Félix : presto descavalgou ante o pastor , di-
zendo : — Serei eu a madrinha desse menino.
— <' E eu o [ladrinho. )) — acudiu D. Félix imitan-
do a desconhecida.
Fora de duvida que teve muita parte a humani-
dade no rápido impulso da vontade do Sr. de la Ve-
ga, que apenas por nnnutos foi prevenido pela pro-
posição de sua futura comadre : porem outro senti-
mento mui humano também o fizera approximar á
lórmosadama, pois que vira entre as pregas da man-
tilha elegante brilharem dois pretos olhos, como es-
trcllas veladas por nurcm rara.
o rANORA3IA.
163
Entraram loiío na capella ; soaram os sinos , e o
mcninn Fclix Paulo ^"aldcs foi dcviJa c solemnc-
mente ba|)lisado , inscripto seu nome no registo pa-
rochial de N/ Sr/ de la V(>!;a , a par dos do nobre
fidalgo D. 1'elix , e da senliora Paula de los .Mon-
tes. Nada mais pódealcanrar o nosso cavalheiro na-
quella occasião a respeito de sua linda equasimys-
leriosa comadre, e se quiz obter permissão de visi-
ta-la teve de usar do seguinte estratagema. — Ao
descer pressurosamente da eminência, acompanhan-
do a senhora e a cigana , encontrou os magotes do
povo que se recolhia, o lembrando-se de por á pró-
Ta o rigorismo dellcs , convidou-os para no dia se-
guinte assistirem ao banquete pelo baptismo do no-
vo afilhado : tão gololões como lanaticos, sem repa-
ro de se contradizerem, acccitarara promptos o gra-
to offerccimento ; e depois de por entre dentes sol-
tar ura cpitheto que caractei-isava a turba , D. Fé-
lix passou a convidar a juvenil madrinha , que não
pôde recusar-se a uma festa, dada em obsequio delia.
Separaram-se, nolificando-se a reunião para o dia
iraraedialo no easlello de la Vega , e D. Félix veio
á sua pousada. — Ainle c quatro horas depois teve
logar o banquete; a linda madrinha fora obsequia-
da com honras quasi reaes no castello de la Vega ,
e I). Félix fizera dois descobrimentos que consigna-
remos neste logar : — o primeiro, concernente ámar-
queza de la Puebla de los Montes, da qual soubera
quanto cubiçíira saber : era uma senhora da princi-
pal nobreza do Madrid, e viuva : o segundo desco-
brimento dizia immediatamente respeito ao próprio
B. Félix ; advertira que se achava perdido de amo-
res por I). Paula.
Longe dos olhos, longe do coração; diz o adagio.
Tanto mais conhecera este axioma a bella Francisca
Fernandez , quanto os zelos haviam tomado assento
em seu coração desde o momento em que de seu
esposo se apartara. Sabendo que D. Félix tão fraco
era d'anectos quanto fácil de apaixonar-se , emprc-
hendêra com bastante custo uma jornada indispen-
sável para negócios de familia : e ao mesmo tempo
que fazia todo o possível por abbreviar sua ausên-
cia , fingia prolonga-la para dar a seu marido ou o
prazer, ou a licção de uma sorpreza. ISo mesmo dia
em que emprehcndeu voltar a Vega, escreveu a D.
Félix que sn ao cabo d'um mez poderia ter o gos-
to da sua vista. Porem ao chegar ao castello foi el-
la a sorprehendida em vez daquelle que pertendia
tomar de sobresalto. — D. Félix no dia antecedente
partira sem dizer para onde, nem quando tornaria,
e sem abraçar seus filhos que entregara a mãos mer-
cenárias: não contara com a hospeda, e fácil c ima-
giuar-se que suspeitas entrariam no animo de D.
Francisca : perguntando a quantos encontrava com
a sagacidade própria do ciúme exaltado, não tardou
que soubesse a aventura da capella, eeste fio a con-
duziu á morada da cigana. Interrogada esta, inno-
«entemente relatou a historia de seus accidentaes
bemfeitorcs; e que por vezes a visitaram, distri-
buindo-Ihc dádivas até que a marqueza annunciára
sua partida para a corte. — «E comeffeito partiu....
perguntou a esposa de D. Félix sobrcsaltada. » —
"Antes d'hontcra : respondeu a mulher : e sem per-
ceber o efTeito de sua declaração ajuntou — «O Sr.
Vle la Vega veio de tarde fazer-me a mesma per-
gunta ; creio que lambem partiria , porque não tor-
íiei a vê-lo. — Não inquiriu Francisca mais noticias ;
comprehendcu o enigma ; fez esmola á cigana ; e
sem resfolgar oamirdiando direita ao castello , bra-
dou .i entrada a seus criados: — Já, cavallos apa-
relhados, cavallos promptos ; carruagem a caminho,
quero sahir já ; que seum pai noaccesso de paixão
desordenada pôde csquecer-se de seus filhos, a mãi
também só pôde esqucce-los no desesperado auge
do ciúme.
. ■ ,•• . . 3.' ■• ■
Á entrada de uma rua estreita de Madrid , con-
tigua á porta de Guadalajara, uma lanterna pendu-
rada defr(]ntc do nicho de S.Fernando despedia va-
cillante luz e soturna: ao clarão débil e intercaden-
tc via-se ura cavalheiro , de estatura baixa , com
sombreiro carregado sobre os olhos , mascarado , e
de esi)ada á cinta; passeava lentamente, parando a
intervallos, para advertir se era observado. Tão so-
cegada c silenciosa estava aquella rua , como agi-
tadas as demais da tumultuosa capital : o embuçado
já começava a inquictar-se porque só trevas descu-
bria e tudo era mudo ; eis que outro cavalheiro ,
mascarado também, de figura e aspecto cm tudo si-
railhantes , approxima-se deliberadamente , e met-
tendo mão aos copos da espada , diz com voz temie
mas resoluta.
«Que fazeis aqui, senhor?»
«Faço o que não tenho tenção de explicar.» —
replicou o passeante com mais soberba que firmeza.
<t Sc não tendes tenção de o declarar, necessito
eu sabè-lo. » E o tom da voz era já ameaçador.
O primeiro fez um movimento d'espanto , acom-
panhado de gestos d'indignação, c indiciava reunir
todo o seu valor para pedir ao inesperado interlo-
cutor que se retirasse.» — «Era o mesmo que iape-
dir-vos , cavalheiro , [replicou o segundo] necessito
de aqui estar só, onde espero outra pessoa.» —
— «Também cu espero; e se o não levais a iiial
aguardaremos ambos.» —
— «Digo-vos que não pôde ser... Segui vosso ca-
minho por vontade ; que senão o fareis por força.»
Esta ameaça proferida insultuosamente fez sem
duvida subir ao rosto do primeiro passeante todo o
calor do sangue hispano que lhe corria nas veias ;
porquanto sem consultar se as próprias forças Ihi!
permittiriam arrostar com o provocador, metteu tre-
mulo de raiva mão a espada : o outro o imitou lo-
go , como desejoso de levar as cousas ao peor ex-
tremo ; c ambos se acharam em guarda , frente u
frente, cubiçosos de vingança, como doisrivaes que
sem conhecer-se presumem que o são , e reccau) ,
não obstante , desfechar o primeiro golpe , quacs
meninos que se espantam do sangue derramado. As-
sim os dois reciprocamente se esforçavam porcncu-
brir a turvação de espirito sob as apparcncias da
cólera. Novo e pungente insulto da parte do provo-
cador poz termo á indecisão : alçaram-se os braços,
e os ferros se cruzaram. — Apenas durou um minu-
to oduello; ao cabo delle o primeiro cavalheiro me-
diu o chão , soltando ura grito , que fez estremecer
o outro : accudiu o vencedor a eertificar-se de (jue
o seu adversário tão somente n'uma das mãos fora
ferido , e inclinando-se lhe disse ao ouvido : —
— «Marqueza de la Puebla de los Jlontcs, have-
mos desempenhado o nosso papel tão bem ou me-
lhor que homens. Lembrai-vos que vos feriu na mão
aquella a quem feristes no coração.» —
Neste relance apparcceu nova personagem na rua
de S. Fernando: Francisca, que reconheceu D. Fé-
lix, correu a ellc, Irarou-lbe do braço, e mostrou-
164
O PANORAMA.
lhe a marqucza dcsiDaiada , que ^>or ordem sua era
)(;vadu por dois creados.
■ — uUnia hora mais tarde, a mataria, disse a cio-
sa hespaulioia) — Vós, scnhur, ainda |)odcis ser di-
j;no do mira : vinde pcdir-iiie perdão , e ver nossos
lilhos. »
Ahalido pelo sobrcsallo e conliisão . D. Félix se
deixou guiar por sua consorte, como o menino por
sua mãi. .\arn)u-lhe elfa o como soubera da sua
partida da ^'e.í;a em seguimento da niarqueza ; co-
mo os descubrira e espiara cm Madrid nas funcrões
do carnaval , e os colhera na primeira entrevista ,
designada para a rua de S. Fernando ; c a liual co-
mo havia consummado sua vingança , prevenindo a
deshonra. — L>. F'el!X , mais leviano do que culpá-
vel , mereceu iuimediatamentc o seu perdão. Pas-
sados nove raezes depois desta reconciliação intei-
ramente hespanhola nasceu I). Lope de Vega Car-
piu , o primeiro poeta dramático do seu século.
Este homem insigne comprazia-se em repetir ás
vezes que por pouco cbtivcra o não ser fillio de sua
iiiãi ; e accrcsccntava qne o lilho da cigana de Car-
riedo era o celchre Félix Paulo Valdês : o melhor
interprete de suas obras, e primeiro trágico d'J!es-
panha.
Quanto á marqucza de la Puchla de los Montes ,
aproveitando a seu raodo a terrível licção de Fran-
cisca, rccoHicu-se a um mosteiro de freiras em Ma-
drid, onde chegou á dignidade d'abhadeça ; c ainda
ha poucos annos nelle mostravam o seu retrato, lacil
de reconhecer pela funda cicatriz. na mão direita.
MAFOMA.
PoK certo que não seria desprovido de natural ta-
lento e sobeja andacia , apesar da falta d'educação
de sua mocidade , nm lumiem que crcou , e impoz
a muitos milhiics dlionicns, uma religião nova. Te-
nacidade na pro.Hcução <las enqjrezas , actividade
c- [icrspicacia . fi.ram sem duvida os dotes do falso
pr<ipheta , Maíoira , roinn lhe chamámos . ou Abul
Kasem Ibn .Mídaljab Muhan;nicd, como c o seu ver-
dadeiro nume. Nasceu este individuo extraordinário
em Meca ; segundo alguns, aos 10 de novembro de
o70 , c conforme outras ancíoridades . aos 21 d'a-
bril de iui. Foi filho único, e seu pai pertencia á
familia llasbem , ramo mui distincto da nobre tri-
bu de ICo-.cish , que presumia descender directa-
mente de Ismael, reputado progenitor da casta ará-
bica ; e que tinha adquirido dclerminado predomí-
nio sobre as tribus circuravisinhas. tanto pela opu-
lência que lhe facilitava o grosso cummercio que
faziam , como porque eram os guardiões hereditá-
rios do culto arábico. Osanctorcsraahomctanos não
deixaram de inventar prodígios annunciadores do
nascimento de Maforaa , assim como fabulados mi-
lagres que em vida lhe altribuiram ; o que de boa-
mente largámos á credulidade de seus cnlhusiasma-
dos sectários.
Logo na meninice Jíaloma licou orphão de pai c
mãi , e o tomou para si seu idoso avô , principal
ministro da Kaaba , a quem succedeu no cargo , c
tutoria da crcança , Abu Taleb , lio desta. Mafoma
fez com seu lio algumas jornadas ás grandes feiras
da Syria, e correu vários passos da vida de contra-
bandista , em que a sua astúcia se desenvolveu :
aos vinte annos entrou n'uma expedirão contra as
tribus predatórias que roubavam as caravanas de
Meca : aos 24 casou cora uma rica viuva desta ci-
cade , alliança que o melteu de posse de muita có-
pia de cabedaes. Nas viagens á Syria cultivara seu
talento ; porem do tudo o que maior impressão lhe
fez foi observar a adoração que assim os christãos
como os judeus tributam a Deus uno e indivisível ,
ao passo que os seus patrícios d'Arahia tinham as
paredes da Kaaba cobertas de idolos : traçou desde
então mudar a lei do jiovo em qne nascera. Tendo
ou\ido com admiração muitas passagens da santa
ISililia , dotado de viva imaginação , fez uma niis-
cellanea das verdades e factos da Historia sagrada
com os delírios de sua cabeça, e as tradições, con-
tos, e visões orienlacs, que abundavam no seu paiz
natal ; c assim compilou o disparatado livro , dito
Al-Koran , onde todavia se encontram preceitos de
saã moral, e em meio de absurdos algumas allego-
rias engenhosas. Querem auctores que neste traba-
lho fosse ajudado por nm monge grego , fugido de
Constantinopola por seguir a heresia de Nestorio.
Verdade c que muitos dizem que não sabia lèr ,
nem escrever; mas querem outros que lingia esta
ignorância para melhor representar o papel de ins-
pirado , e que o tal monge era o seu amanuense.
Seja como fór , por audácia , enthusiasmo visioná-
rio, força de riquezas, c auxilio do poderosa paren-
tela, fez-se conquistador, legislador, e porlim ou-
sou inciilcar-se prophcta e em iado de Deus, tiran-
do até partido da moléstia de c|)ile|isia, de que era
por vezes assaltado, capacitando os crédulos que
os accidentes eram cxtascs em que recebia revela-
ções divinas por mensagem do anjo S. Gabriel. Pe-
lo terror das armas propagou depois a religião mixta
que fundara ; no que etlicazmente foi auxiliado por
seu sogro, c seus parentes; distingnindo-se Ali e
Ornar, cabeças das duas prineipaes seitas, em que
se subdivide boje o islamismo , seguindo os persas
o rito do primeiro, e os turcos as práticas altrilnii-
das ao segundo.
Não obstante tamanhos recursos , experimentou
Mafoma ao principio contrariedades , c até perse-
guições ; da sua fugida de Mera (hégira] fizeram
os árabes uma nova era . donde computam o tem-
po. Porem se o embusteiro sahiu de Meca expulso,
entrou eui Medina triuropbanlc , c desde então da-
o FANORAÍIA.
16S
iam as suns façnnhns friicrrcir.is : tal influencia ob-
lovo , que l)a.vlar;i dizer que daiido-liio a mania de
Msilar a Kaalia , pouco tempo antes da sua moitc ,
" acompanharam nesta pcrciirinação mais de cem
mil pessoas. Era homem de costumes devassos , a
que dava falsas cores cxcogilando pretextos para
enganar acerca de suas más qualidades a nniUidão,
que o acreditava : com os des[)ojos de rápidas e ex-
traordinárias conquistas enriqueceu os seus prose-
lyios. Morreu cercado das honras de seu bárbaro
povo aos 8 de junho de (iáá , dizem que cm resul-
tado de veneno que uma judia para vingar a mor-
te de seu irtiião lhe ministrara , prepaiando-lhe
umas costeletas do carneiro.
Dos ritos , festas , vários pontos de crença , o iia-
liitos dos scqua/es de Mafoma , temos escriplo em
diversos n."" deste Jornal.
Cunsideracões sobre o Curso d' Economia Politica, pu-
blicado em Parit em 1842 pelo Sr. Miguel Cheva-
lier.
IV.
Torno a atar o fio das minhas ideas , roslringindo-
nie ás instiluirõe?; de credito , e digo que não só á
agricultura , a outros ramos da economia nacional
devem estender o seu inlluxo. Insistindo n'esta ge-
neralisação do principio do credito , o meu fito c
não deixar immoveis nem ini[)roduclivos nenhuns
dos capitães que existem no reino , grandes ou pe-
quenos , e não só os capitães que estão em forma
de moeda , que são os menores, todos os outros de
differente espécie que são os mais consideráveis , e
iinportantes pelo seu valor total : porque tomando-os
eomo unidade , o dinheiro capilalisado equivale a
uma fracção decimal muito afastada d'essa unidade.
Partindo d'este pensamento, e applicando-o, pri-
meiro, aos capitães pecuniários , acho seria de pro-
Treito incalculável que essas mesmas somraas, assaz
avultadas, que os negociantes e pessoas ricas, c
também as estações, e estabelecimentos particulares
costumam ter de reserva cm seus cofres sem dar-
Ihe destino [iroductivo , se depositassem n'um ban-
co o qual segurando o deposito de todo o risco e
accidcnte se encarregasse de fazer quaesquer paga-
mentos auctorisados á ordem escripta dos deponen-
tes até á importância das quantias depositadas ; e
em uma palavra , servisse de seu caixeiro , rece-
besse e pagasse por conta d'elles sem exigir cora-
missão. Para indemnisar o banco tanto do seu tra-
balho como dos riscos e perdas a que se aventura-
ria , serviria aquella parte das quantias depositadas
que os deponentes não reclamassem, a qual poderia
ser empregada em descontar leiras, ou cm qualquer
outra operação mercantil em proveito e sob a res-
ponsabilidade do mesmo banco.
K verdade que o banco de Lisboa está usando
esla prática lUilissima , mas com muito menos be-
neficio geral do que deveria ser; t)orque nem a
maior parte das reservas dos particulares , nem dos
cofres perlencentes a eslabelecimentos públicos ou
outros . lá eslão concentrados , como foca para de-
sejar. Talvez não fosse desacertado que para outros
pontos commerciaes do reino , onde a níTluencia
do numerário desempregado pedisse este expedien-
te . depulasseni cada um dos dois bancos de Lisboa
c Porto caixas Cliaes , no ÍQlui'.o de recolher e tor-
nar fecundas as reservas mctallicas que por hi an-
dassem dispersas: c senão agora, de futuro, pelo
menos , não se deve , me parece , abrir mão d'esle
alvitre. A. creação , para este fira, de outros esta-
belecimentos, alem dos que lemos, não aconselho,
nãc só porque o giro das transacções do paiz é li-
mitado como cllc ; mas, principalmculc , porque o
credito, base essencial das instituições de que me.
estou occupando , não se conquista de assalto , ins-
pira-se com o decurso do tempo , cora a permanên-
cia, com o bom desempenho e o bom succcsso r cir-
cuiiistancias que só se reúnem em estabelecimentos
fundados de longos annos.
b'csle expediente que acabo de suggerir que não
é senão a inulação do que se pratica em Inglaterra
com tanta utilidade, c o desenvolvimento da nossa
prática própria , resultaria , alem de outras vanta-
gens que não enumero , esta que a|)prcsento isolada
para melhor sobresahir ; c vem a ser — lançar na
circulação commcrcial capitães que o não eram, por-
que estavam inactivos , c contribuir por cllcs jwcíi o
profiresso da riqueza publica e particular.
Como estas reservas de negociantes , pessoas ri-
cas , e estabelecimentos públicos e particulares ha
otitras reservas oti antes parcellas pecuniárias tenuís-
simas e impotentes na isolação em que se acham ,
mas que cliaínadas a uni ou mais centros , e mclti-
das no movimento productivo, constituiriam, por
serem muitas era numero , um capital de grande
importaucia. São as economias que formam as clas-
ses pobres , os operários e trabaliiadores de ambos
os sexos que espalhadas por tantos milhares de mãos
não podem convertcr-se cm instrumento de (iroduc-
eão para seus donos, nem prestar á industria do
paiz os avanços de que eila carece a cada momento.
E essas economias poderiam concen'rar-se e utili-
sar-se pela fundação de caixas cconoiuicas. Do mo-
do de orgauisar as ultimas nada accresccnlarei a
um trabalho meu que, ha alguns annos, foi publi-
cado, e só direi que de todos os paizes da Europa,
com excepção talvez da Rússia, onde ignoro se exis-
tem estabelecimentos d'esta natureza , Portugal é o
único que ainda os não possue. E não os possiic
porque liic faltem elementos para isso, ou porque
seja complicado e dillicil de coniprchender o me-
chanismo dos mesmos estabelecimentos: pelo con-
trario sobram-lhe os elementos , e cousa mais fácil
do que o mcchanismo das caixas não é possível ha-
ver. Bastava boa vontade n'uma dúzia de indivíduos
ricos , inUueutes e respeitáveis das duas cidades
priucipaes do reino , ou ainda mesmo n'um ou dois
chefes de estabelecimentos iiidustriaes, para as cai-
xas se fundarem em Lisboa e Porto. Fundadas nes-
tes dois pontos, lavraria bem depressa n'outros o
exemplo , mesmo sem intervenção e auxilio de lei
que seria conveniente, mas não é indispensável, e
então cederia Portugal do privilegio que ainda con-
serva, sem que lho inveje , supponho eu , nenhuma
nação , de estar mais atrazado n'csta matéria do
que a Jioruega , a Hespardia e o Brazil.
Cora a adopção do systema dos depósitos avulta-
dos no banco, e dos depósitos diminutos nas caixas
económicas, poucas reservas ou valores pecuniários
das classes abastadas, ou das que o não são, ficariam
por capitalisar.
Restara, paralyticos como já adverti, alem dos
pecuniários, outros valores, de dilTcrente es|)ecie, e
I de muito maior monta , aos quacs deveria também
i imprrmir-se o movimento da rotação commcrcial.
i O modo de o conseguir vou explicas com o excin-
166
O PANORAMA.
pio de Inglaterra apontado no Diccionario do Com-
mercio, artigo =DocLs=, donde o tirei. Em In-
glaterra logo que entra nos armazéns d'estcs por-
tos íiclicios [não lhe chamo tercenas, porque comeste
Tocabulo daria unia idca imperfeita doqueellcs são]
uma carregação completa , ou uma porção de mer-
cadorias, assucar, chá, café, algodão, bebidas espi-
rituosas &c. , a administração entrega ao deponente
um certificado (warrantj em que attesta a nature-
za, a qualidade, c aquanlidade ou o peso das mer-
cadorias c a sua procedência. O proprietário d'este
titulo pôde negocia-lo por endosse , troca-lo a di-
nheiro , consigna-lo cm penhor de um empréstimo ,
c com cHe emprehender quaesquer operações com-
Dierciaes, sem ter que pagar direitos de alfandegas
nem despezas do transporte , e sem se aventurar a
Tendas precipitadas , a baixas e aos accidentes va-
riadíssimos dos preços , e um valor que sem este
recurso do credito seria morto e improduclivo por
algum tempo , com elle circula desde logo com a
rapidez de uma letra de cambio em beneQcio de
seu dono, e do commercio nacional.
O expediente que acabo de referir poderia , até
certo ponto , ser praticado em Portugal , e amplia-
do talvez a muitos casos cm que os géneros c mer-
cadorias se acham , por alguma circumstancia , se-
questrados da circulação. E meio , engenhoso cer-
tamente , de as mobilisar. Mas se é util este me-
Ihodo de mobilisar as mercadorias, porque não será
[dir-me-hão] igualmente proveitoso algum outro aná-
logo de mobilisar os bens de raiz? Emthcse, não ha
duvida, se alíigura de vantagem incalculável repre-
sentar estes bens por um papel que girasse com a
mesma presteza que as letras de cambio ou as notas
de banco: ditTerentes projectos, mais ou menos es-
peciosos , tem apparecido com este pensamento e
intuito : nem agora me deterei eu a reproduzi-los.
1'óde ser que da sua execução pendam os brilhan-
tes destinos que estão reservados , ou promettidos ,
ás sociedades futuras. Síasque outros tentem a aven-
turosa experiência : nós devemos ficar de observa-
ção , á espera do resultado, para nos guiarmos por
elle. Promova-se a circulação da propriedade rural
ou dos seus productos , abrindo estradas, e canaos.
r>epresente-se o mobilise-se aquclla parte da mes-
ma propriedade, com que se hão-de pagar os avan-
ços feitos á cultura , por uma moeda papel como
propozemos. Mas não ensaiemos uma mobilisação
completa c absoluta , com receio , como exprimiu
I>egerando, de que a escrava ha pouco emancipada
das cadèas feudaes — a terra — não vá, como o li-
berto licencioso , embriagar-sc nas orgias da agio-
tagem , ou perecer nu abysmo das lotcrias !
Similhanle á que se usa com as mercadorias na
Inglaterra , ha entre nos uma mobilisação , que
é a dos ordenados vencidos dos empregados ])ubli-
Gos , c se realisa por muio de um titulo que se
lhes entrega c elles podem negociar. 5!as em ri-
gor não são ordenados que assim se mobilisani : o
<(ue de leito , postoqiie indíreclamentc , se mette
em giro é aquella parte da propriedade rústica e
urbana , e do trabalho donde sabem os impostos ,
com os quaes se hão-do pagar os vencimentos do
servidor do estado. Esta mobilisação, parcial c in-
directa , é util ao credor , sem ser damnosa á ri-
(|ueza publica. Outra ha porem , cujos resultados
desastrosos nos devem precaver contra a latitude
demasiada e o abuso deste recurso: — a mobilisa-
ção do trabalho, dos capitães, da propriedade de
íiossos filhos c netos operada por empréstimos rui-
nosos. Mobilisa-se assim , na verdade , completa-
mente, e representa-se com papeis de credito a for-
tuna antecipada das gerações futuras : mas alienam-
se, vendem-se, sujeitam-se a uma escravatura hor-
rorosa , por este meio iniquo, quando é desordena-
do , essas gerações. Este exemplo c um aviso per-
manente contra os perigos de abraçarmos, sem dis-
crição , tão arriscado recurso.
(Continunr-sf-ha) .
'1.: • ' A. d'0. Marreca.
&útãn\cã.
SOBBE a CAPRIFICAÇÂO DOS FIGOS.
fConclusãn.)
Os FIGOS caprificados engrossam c amadurecem den-
tro de poucas semanas ; os cultivadores tem cuida-
do de os colher logo , de os seccar ao sol e depois
no forno , não só para os fazer durar, mas também
para lhes matar os germes dos insectos nos ovos ,
que sem isso não deixariam de dar bichos no inte-
rior dos figos : maduros , e comidos no seu estado
fresco não deixam de ser agradáveis , mas com o
calor do forno perdem muito da sua delicadeza e
bom gosto ; por isso, e pela sua constrangida ama-
duração geralmente são menos estimados do que os
figos não caprificados e somente passados ao sol.
A causa porque os figos caprificados não cahem
e amadurecera mais depressa , tem sido variamente
explicada. Segundo a theoria dos antigos philoso-
phos , que Plínio nos transmittiu , dependia da di-
minuição dos suecos lácteos do figo verde , que o
insecto chupava , auxiliada pelo ar fertilisante , e
luL do sol , que entravam pelo olho do figo aberto
pelo insecto : clles pensavam que os ditos suecos
eram demasiados , que faziam o pé do figo muito
tenro , que pesavam demasiadamente sobre elle , e
o faziam frágil e cahidiço ; mas que sendo o figo ,
pelo assim dizer, desmammado na sua infância mui-
to cedo, enrijava no seu pé mais cedo e não cabia:
accrcscenlavam , que a força deseccativa da poeira
das estradas , c do vento norte , como também a
magreza dos terrenos, faziam o mesmo que os inse-
ctos , e que por isso as figueiras plantadas em laes
situações não precisavam de ser caprificadas. Esta
theoria foi seguida por muitos botânicos até estes
últimos séculos, c ainda por J. Uauhino na sua eru-
ditíssima Historia dosvegetaes; mas ella parece in-
compatível com a ordem phvsica da vegetação ; por-
que a diminuição dos suecos alimentares deve fazer
emmagreccr e não engrossar , c a força deseccativa
deve fazer cahir os fructos em vez de os suster :
pelo contrário , o que faz acudir mais suecos aos
figos, e nelles estabelecer uma fermentação saccha-
rina , como fazem as picadas dos insectos , parece
antes ser a principal c;iMsa dos figos não cahirem ,
de engrossarem , c de am:iilureccrem mais depres-
sa. Quando os figos, tanto bravos como domésticos,
são muito numerosos, de modo que a arvore mater-
na lhes não pódc subministrar a porção sullieiente
de suecos , que clles exigem para se nutrirem , fi-
cam pequenos , enfezados , e muitos delles cahem
pecos; isto mesmo succede ás vezes, ainda não sen-
do muito numerosos, se sobrevent tempos muito sec-
cos ; ou quando a arvore se acha doente e as suas
folhas enferrujadas ou atacadas domorilhão; emlim
o PANORAMA.
u:
quando as folhas siio duras , velhas e caducas , que
já não podem absorver da alniosphcra fluidos, nem
bem elabora-los para nutrir os ligos , os quaes en-
tão cahem ou apodrecem , como seralmeate succe-
dc aos do outono.
O grainie e célebre Liuneo rellectindo que os len-
rinhos germes dos fructos , que por causa das chu-
▼as , geadas c outros contrários incidentes, ou por
falta de pollen dasantheras dcflosculos masculinos,
não são fecundados, ordinariamente cabiam, pensa-
va que o mesmo succedia a alguns figos domésti-
cos , persuadido de que estes constavam somente
de llosculos femininos , cujos germes dos pistillos
não eram fecvnidados por lhes não poder de fora en-
trar pollen algum , o seu olho ou orifício achando-
sc na florescência nimiamente fechado : pelo con-
trário , pensava que elles não cabiam quando eram
caprilicados , isto é , quando nos ditos pislillos os
mosquitos espargiam o pollen das antberas dosDos-
culos dos figos bravos que apegado a si traziam ,
fiosculos que elle julgava serem todos masculinos.
.Cajtacitado de que isto assim era na realidade cha-
mava ao mosquito , conductor do pollen , o cupido
da caprificarão, eallcgava este facto como uma pro-
va mais de haver sexos e geração nos vcgelaes , no
que foi seguido por toda a sua eschola. Aias boje
alguns botânicos pensam que este facto , bem longe
de ser convincente, é muito duvidoso, e mesmo fal-
so, como se pôde reconhecer pelas rasões seguintes.
O figo bravo [em qualquer estado que se consi-
dere, quando delle sabe o insecto] deve sempre sup-
por-se ser composto de sementes férteis, quer o in-
secto nelle se tivesse criado até á sua transformarão
e sabida , quer nelle de fresco tivesse entrado para
picar as tcnrinhas sementes, e depois disso logi> sa-
hir carregado de pollen para ir picar outras em ou-
tros figos ; por conseguinte em ambos estes casos o
figo bravo não c puramente masculino ; no primei-
ro caso o insecto criou-se nas sementes , no segun-
do picou-as, e sahio com pollen capaz de fecundar,
isto indica um figo perfeitamente monoico , e faz
crer que igualmente o fosse o do primeiro caso.
Quanto ás variedades de figos domésticos, que se
caprificam , não lia prova alguma certa que nellas
hajam iudividuos puramente femininos ; antes é pro-
vável que lodos são monoicos , isto c , que os seus
figos contem fiosculos masculinos e femininos; to-
dos os que até agora se tem observado em Portugal
assim são ; ora sendo neste paiz , e outros de tem-
peratura similhante , o pollen dos outros figos mo-
noicos suliicieiíle , e de perfeita qualidade para po-
der fecundar os llosculos femininos, porque não se-
rá assim o pollen dos fiosculos dos figos caprilica-
dos , ficando superDuo o que uelles introduzem os
insectos? Ha toda a probabilidade que assim succe-
da ; e se isso não obstante , cahem quando não são
caprificados , a causa deve attribuir-se á falta sufiTi-
ciente de suecos, como por ella succede a muitos
outros fructos posto que bem fecundados ; falia que
é prevenida com as picadas dos insectos, que fazem
acudir uma allluencia de seiva sulíiciente para bem
nutri-los e suste-los. Com eiTeito , as picadas com
que os mosquitos estragam os vasos do orilicio do
figo e do germe do pistillo, devem na verdade occa-
sionar uma grande estravasação dos suecos, que en-
tão em grande parte devem refluir para a polpa do
figo , e faze-lo engrossar ; o ovo, e larva do insecto
dentro das sementes são um estimulo continuado ,
que faz entreter a afluência seivosa , como observá-
mos suçceder na formação de toda a sorte de i;a-
Ihas , ou bugalhos ; o ar , luz , c calrtr introduzido
pelo olho do figo contribuem ao principio para que.
se não cicatrizem as feridas, paraoccasionar inUam-
mação, e por fim para se estabelecer uma certa fer-
mentação saccharina , com que os fructos se ado-
çam , e SC aecelera a madureza do figo , da mesma
sorte que succede ás peras, maeaãs c outros fructos
picados pelos insectos , e succede aos mesmos figos
ainda verdes, quando ferimos e alargámos o seu
olho com um alfinete, palito, ou palha.
Do que fica exposto se deduz, que não ó a fecun-
dação dos flosculos dos ligos, quaesquer que sejam,
feita por meio do pollen dasantheras, nem é o con-
terem clles sementes com miolo, a verdadeira cau-
sa porque deixam de cabir e vingam bem, mas sim
a afluência dos suecos necessários para a sua devi-
da vegetação, quer estes sejam com abundância na-
turalmente subministrados, quer artificialmente, aju-
dando-se, ou constrangendo-sc a natureza a subini-
nistra-los, quando ella quer ser mesquinha. Em In-
glaterra, IloUanda, Alemanha, cem todos os paizes
frios do norte da Europa, aonde o pollen dasanthe-
ras dos figos monoicos se não pôde bem aperfeiçoar,
as sementes são estéreis e chochas, mas os figos me-
dram o vingam muito bem , porque a natureza alii
lhes dá os suecos necessários para o seu pleno cres-
cimento c madureza ; vemos suçceder isso mesmo a
muitos fructos bastardos , isto é , a muitos receptá-
culos , pericarpos , cálices , e outras partes acces-
sivas dos órgãos sexuacs, e das sementes, os quaes
pelos suecos competentes , e forças vitaes podem
crescer e vingar bem , sem conterem em si semen-
tes férteis, e ás vezes mesmo nem vestígios delias,
como as bananas, alguns morangos, algumas laran-
jas, peras, uvas, e muitos outros fructos denomina-
dos sem pevides.
•, .: DaPOTASSA.. ,, ■ ,. ,.r ',(
A poTASSA é um sal alkali fixo , que se extrahe das
cinzas das madcirasqueimadas. Fabrica-se em abun-
dância na Suécia , l'olonia , Dinamarca , &c. e em
todas as florestas de Allemanha.
A boa potassa oblcm-se deixando queimar as ma-
deiras ao ar livre , afim de que a sua parte gurda
e oleosa se dissipe ; separnm-se então das cinzas
tanto quanto é possível os carvões que vão mistura-
dos ; e a agua fria que serviu a lavar estas cinzas ,
estando suliicienlemente carregada deste sal , filtra-
se e cvapora-se até a seccura ; e logo que o sal es-
tiver bem secco , aquece-se em uni forno, onde se
tem algum tempo neste estado , sem lhe pcrmittir
que entre em fusão. Esta calcinação lepete-se taulo
quanto é necessário , o que fornece por este meio
um sal alkali fixo, livre de todo o phlogistico.
Na fabricação do salitre , a polassa é preferível
ás cinzas ordinárias de que vulgarmente se servem,
por diversas rasões. 1.^ As cinzas, sendo a maior
parte o refugo das outras artes, contém muito pou-
co ou nenhum alkali fixo. 2.^ A cinza occupa um
terço da capacidade das covas na qual se faz a le-
xivia ; a quantidade de terra salilrosa é tanto me-
nor , e delia resulta uma diminuição proporciona-
da na quantidade de salitre que se oblem ; jior ou-
tra parte , a cinza , que é um corpo jioroso , releni
em pura perda uma dissolução de salitre proporcio-
nada á quantidade de agua que esta cinza é susce-
ptível de absorver. 3.^ As cinzas, commummente
impregnadas de muitas partículas gordurentas, c
168
O PANORAMA.
estraclivas de matérias que só podem prejudicar á
qualidade du salilrc, cmpatam-no e impedem-no de
bem se rrislalisar.
È pois necessário para a fabricarão do salitre ,
não por no fundo das covas senão uma mui pequena
porção de cinza para servir de filtro , e suíiitituir
cresto por uma addicão de polassa ; isto, é que de-
pois de liaver enchido as covas de terra, põe-se em
cinza na abertura destinada a levar a agua a quan-
tidade de potassa que se quer empregar, depois do
que se faz a Icxivia da maneira coslumnda , c en-
tão a agua dissolve a potassa , a qual , fillrando-sc
atravcz da terra , encontra o nitro na base terrosa ,
e decorapondo-o Iranslorma-o cm salitre ; em pon-
to , que, se a quantidade do potassa fui bem pro-
porciunada , a Icxivia que correr não tem agua
amargosa.
Só as terras novas é que se tratam por meio da
potassa , porque sendo lavadas successivamente por
trcs dillercntes aguas , nenhuma potassa restará so-
bre a terra que por ella foi tratada.
G. ....»
MeTHODO de dar a cor BRONZEAOi AOS CANOS
DE ESPI.\C,AIiDA.
Os ingredienips que entram para a composição que
hade produzir esta còr são os seguintes:
Acido nilrico ^ onça.
Espirito de nitro doce ... J^ onça.
Espirito de vinho 1 onça.
Vitriolo azul 2 ditas.
Tintura de aço ou ferro .. 1 dita.
Tendo antecipadamente dissolvido o vitriolo era
uma sullicieule quantidade d'agua , de sorte que a
totalidade da mistura faça 2S quartilhos, mistu-
ram-se os outros ingredientes , c teremos a compo-
sição com a qual.devemos operar para se obter a
eôr bronzeada, e a applicaremos do modo seguinte.
Primeiramente limpar-se-ha o cano da espingar-
da muito bem , de qualquer cousa oleosa ou suja ,
c pondo-lhe na boca uma cavilha, ou rolha do páu,
de modo que o vento fique bem tapado, se lhe da-
rá a sobredita composição com uma esponja limpa ,
havendo cuidado em a distribuir cora igualdade pe-
lo comprimento do cano, depois do qual se deixará
exposto ao ar por espaço de -li horas, passadas as
quaes se esfregará hera o dilo cano cora uma esco-
ra áspera , e com ura trapo , para que a superficie
llquc livre do oxido.
Este processo será repetido segunda , c terceira
Tez [sendo necessário] e assim ficará o cano com
uma perfeita còr abronzeada , e depois de bem es-
fregado cora a escova , e liem lirapo , metle-sc era
agua a ferver , na qual previam;-'nle se terá lançado
uma pequena quantidade de matéria alkalina , afim
de destruir a acção do acidn sobre o cano, e a im-
pregnação da agua polo acido neulralisado. Quando
o cano da espingarda se tira d'agi!a , e está intei-
ramente enxuto , aliza-se com um brunidor de páu,
feito de madeira bem rija, e dá-se ao cano um grau
de calor quasi igual ao da agua a ferver, para ficar
prompto a receber o verniz composto dos seguintes
ingredientes :
Espirito de vinho 2Z quartilhos.
Sangue de drago 3 oitavas.
Laca de conxa moida.. 1 onça.
Dado oTcruiz, c quando estiver inteiramente sue-
co, esfrcga-sc com o brunidor para lhe dar poli-
mento e lustro fixo.
O uso desta composição nos canos das espingar-
das dá a vantagem de os conservar por mais tem-
po , livres da ferrugem , e dos damnos e trabalho
resultante da assídua limpeza, etorna-os menos ca-
ptivos e de mais duração : hoje é quasi geral o uso
que delle se faz na Europa , e até se pódc applicar
ás peças de arlilheria de pequeno calibre.
Modo de restituir e conservar a sobredita cír.
Quando o cano da espingarda está muito roçado
em consequência do uso que delle se tem feito, dá-
se-lhe um pouco de acido vitriolico , e praíica-sc o
que deixámos dito no processo para a primeira còr
bronzeada , tendo precisamente tido o cuidado de
enfraquecer a acção do acido por meio dagua fer-
vendo.
Aos canos bronzeados que tiverem continuo us<i
pôde conservar-se constantemente a mesma còr, pon-
do-lhe vinagre que se deixará na sua superficie por
espaço de ura dia , e lavando-o depois muito bem
com agua a ferver.
Este processo sendo repetido mensalmente con-
serva a còr de que temos fallado , por espaço de
muitos annos.
. (r-, ***^*
Pais barhnros. — Kolff na viagem doDourga diz :
— «Alguns naluraes da >ova-Guiné {•) dignos de
credito me aliirmaram que se ura papua da costa
cubica alguns dos géneros levados pelos negocian-
tes estrangeiros , e não tera outros da terra que dè
era troca , não hesita em pegar de um ou dois de
seus filhos e permuta-los pela fazenda que deseja :
e se acaso os íilhos não estão alli á mão no acto do
ajuste, pede os rapazes emprestados a qualquer vi-
sinuo , promettendo dar-lhe outras tantas cabeças
logo que os seus lhe appareçam ; e este empréstimo
nunca é recusado. Parecia-me isto quasi iucrivel :
porem os naturacs, já policiados, e merecedores de
fé, unanimes confirmam o facto : c eu conheci pais,
que venderam seus filhos, quando acharam que lhes
era mui pesado sustenta-los , sem lhes importar se
os tornariam mais a vèr , nem o que seria feito
delles.»
Um individuo que se prezava de ser fidalgo, porem
mal procedido , lançava em rosto a Iphicrates a vi-
leza de ser filho de um çapateiro. O general Athe-
niense sem se estomagar olhando com desprezo pa-
ra o devasso nobre lhe respondeu: — Amigo, a mi-
nha geração principia cm mim , mas atua acaba
em ti.
Tendo noticia elrei D. João •2°. que corto eorrípc-
dor da corte era pouco limpo de mãos , e mui re-
misso para as partes, lhe disse um dia, em que em
audiência este lho ia beijar a mão: — Corregedor,
olhai por vós, c da maneira que viveis, porque me
dizem que tendes as portas cerradas e as mãos aber-
tas 1
A resistência enfraquece, a resignação fortalece.
(«) Graiule ilh;i n lesle ila-f Mohicas ; cliamuii Itie aniai
Alvaru Saavcdr.n (]uaii(lii a ilescobriíi , pela preliilSo du còr
c carapijilia revulla dos liabílanies; lamlieni é dita un ter-
ra dijs papilas. " Hnr |í'nip s se creu que era pejada h No-
va-Hollanda : tcpara-«í porem g eslreilo de Turre*.
75
o PANORAMA.
169
CASCATAS DO CJaYDB.
É DOS sitios mais formosos da Escócia o valle por
onde corre o Clyde : niiiilas sceií.is póz o graíide
pintor de costumes e paizes , Walter Scott , toma-
das deste districto, em suas novellas nacioaaes; ac-
cresceutando aos allraclivos próprios da localidade
recordações de suas interessantes, bem escolhidas,
e sempre bem retratadas personagens. Alem disto
Giasgow com seu porto tão frequentado , assentada
nessas margens , e Paislcy , que não demora longe ,
dão ao rio alta importância, commercialniente con-
siderado. — Xasce elle nas empinadas montanhas
da provincia de Larnak , onde tem igualmente ori-
gem outros, o Tweed e o Annan: os três vão de-
sembocar a mares dillerentes. Muitas superstições
andara arraigadas no povo cscocez , relativas a es-
tas paragens , querendo até explicar sobrenatural-
mente obras d'arlc, cujos auetores são conhecidos :
mas nem similhantes contos , por vulgares , nem as
descripções, por desconhecidas, interessam o ieitor
portuguez. Daremos o que mais convém saber. —
O Glengouar é ura dos afluentes do Clyde; acha-
ram-se palhetas d'ouro em suas areias, mas a apa-
nha não pagava o trabalho, nem se descobriu pro-
veito em minerar os arredores. Bom é que também
a frigida Caledónia possa gabar-se de um rio que
merece as duas vozes esdrúxulas — aurífero e in-
fructiferii. Nas visinhanças de outro ribeiro afluen-
te ha cousa mais importante, as minas de chumbo,
pertencentes ao conde de Ilopetown , exploradas
por uma companhia , que paga ao proprietário o
Ji.\Ho 3—1843.
sexto dos reditos, e produzem annualmente mais
de tresentos mil quintaes de metal.
Próximas á cidade de Lanark «stão as catadupas
ou quedas da corrente do Clyde; até alli o rio vai
niiinando tão sereno , que não dá indícios de haver
depressão no seu aheo ; mas logo era Bonningtori
Linn faz um salto perpendicular de obra de 40 pal-
mos, e dahi proscgue arrebatado : meia milha mais
adiante é Corra Linn , a mais formosa cascata do
Clyde , appresentada na gravura supra-estampada :
reparle-se cm duas , cahindo impetuosas de 80 pcs
d'altura ecomsolerane estampido cm fundos pegos,
cobertos de borbotões d'espuma: rodeam-na silves-
tres arvoredos ; e descortinam-se na próxima emi-
nência os residuos melancholicos de um castello
dos SommerviUe, familia notável nos annaes da Es-
cócia.
O Bobo.
112S.
XII.
' Á mensagem.
Algiks instantes mais que o trovador se houvera
demorado no jardim pênsil , lhe tornariam impossí-
vel o sabir de Guimarães. Abul-Hassan linha lido
a prevenção de communiear ao mestre dos enge-
nhos, — a seu irmão, o tornadiço , como elle lhe
chamava na ausência , — o logar onde o devia en-
2." Serie. — Yol. II.
170
O PANORAMA.
i'ontrar no caso deoccorrer algum succcsso inespera-
do. Oarabc-christão ouvira a ordem do alferes-mór
para se dobrarem as vigias e roídas, lançar-se uma
quadrilha ao campo, c prohihir-se a sabida do bur-
go a todos , apenas se fizesse o signal de acabar o
banquete. Então o tornadiço correra ao arco escuro
(lo jardim pênsil, e relatara tudo isto aAbul-Iíassan.
O silvo do árabe , que tão cedo soara para Dulce ,
procedera desta causa, e por isso o cavalleiro tivera
de atravessar , correndo á rcdea solta , o recinto do
castello e do burgo. Passando a carcova das barrei-
ras, ainda vira dobrar o numero dos atalaias noctur-
nos , c sentira o tropear dos cavallos rodeando os
andaimos das barbacans. Para se não tornar suspei-
toso, depois de sahir junto ao cubello da couraça,
caminhara lentamente cm volta da povoação , e fa-
zendo um largo rodeio viera outra vez meller-se no
caminho , que levava á margem do Avicella , onde
o esperava o seu pagem.
Ainda ellc galgava no valente ginete uma senda
;igra e tortuosa na selva contigua aováu doMadroa,
quando sentiu a pouca distancia , do lado opposto
do rio, um estrupido de cavallos, os quaes pareciam
caminhar por entre os choupos e salgueiros que po-
voavam tanto uma como outra margem. Pelo ruido
que faziam facilmente se conhecia que era uma nu-
merosa cavalgada. Fatiavam era voz alta , e pare-
ciam seguir um caminho contrário ao seu , appro-
ximando-sc do váu , em quanto o cavalleiro se af-
fastava dclle. Talvez o perseguiam. Este pensamen-
to, que lhe oceorreu, o fez parar subitamente. Ape-
sar de conhecer que mal poderia resistir áquelle
tropel d'homens d'armas , não receiava um comba-
te nocturno , mas era-lhe necessário evitar toda a
<5emora em voltar ao arraial do infante , a fim de
poder cumprir o que promeltêra a Dulce. Assim
descavalgando do ginete, e levando-o de redca man-
so e manso, approximou-se da ribeira junto daqual
o arvoredo e matlo eram mais frondosos e bastos ,
aílastando-se da senda por onde forçosamente os al-
mogávares, haviam de passar no caso de transpo-
rem o váu.
No momento em que o trovador guerreiro chegou
a uma balsa, na qual era quasi impossível ser des-
cuberto , á luz scintillante das estrellas as armas
dos que vinham ladeando o rio reluziram na mar-
gem fronteira. Pareciam altercar entre si , e como
.1 corrente era estreita, Egas que se conservava cal-
iado e quedo , pôde facilmente escuta-los.
Aqueiie tropel de homens d'armas era uma qua-
drilha , ou piquete , como hoje diríamos , que Gar-
cia Bcrmudcz enviara para rodear exteriormente as
barreiras e obstar á fuga dos que podesscm esqui-
var-se á vigilância dos atalaias e roídas. A disputa
que o trovador ouvira linha-se alevantado entre o
coudel dos besteiros de cavallo, c um cavalleiro
seguido de dez lanças , o qual acaudelava toda a
quadrilha.
«A-la-fó, dom coudel — bradava o cavalleiro —
que não deveis passar o váu. Já vo-lo disse : a or-
dem do alferes-mór ó que rodeemos o burgo c o
castello a dois tiros de besta das barreiras. Segui-
me , cnde , se vos praz. »
«Não praz , por Santiago ! — replicava o coudel.
icnho andado cm mais de vinte arrancadas , tanto
cm hoste como cm cavalgada : tenho sabido trinta
vezos de castros e burgos, era appelido contra mou-
ros e leonezes : nunca vi lançar osculcas para vigia-
rem sagas do mosnada ou barbacans de castello.
Que Satanaz? I — O infante não vem , creio eu , de
Guimarães , mas para lá se encaminha : ao menos
assim no-lo dizem. E não havemos de atalaiar bos-
ques e pacigos alem Madroa?»
«Fu , fu , perro e villão que és ! — murmurou
o cavalleiro. — Vedes vós — proseguiu elle fatian-
do com os seus homens d'armas — como vai ancha
c crescida a ousadia de peões? Culpa tem quem fia
delles cavallo , saio , e cervilheira como a uma no-
bre lança. Ai, meu mano — accrescentou dirigin-
do-se de novo ao coudel — digo-vos eu, que não
passareis o váu.»
«Somos homens de rua : — retrucou o coudel en-
colerisado — burguezes por nossa carta de privile-
gio e bom foro : e a nenhum de nós pôde ser dito
fu , f u , perro e villão («) sem villa e aífronta de
vinte soldos depena. Aqui está Pedro Amarello ,
mestre armeiro ; Ruderico Spassandiz , mestre fer-
reiro ; Sandamiro Eiriz , mercador , e eu Gavino
Paez que valho por qualquer delles. Tende tento ,
senhor xavalleiro , com vossas falias , que podeis
ámanhaã ouvi-las mais pesadas da boca dos alvazis. »
«Estaes bravo , dom coudel ! — acodiu o caval-
leiro , que porventura não achara inteiramente in-
fundada a advertência do besteiro. — Foi por chan-
ça que o disse. Deus me livre de doestar tão hon-
rados burguezes ! Mas dir-vos-hei agora porque não
passaremos a váu. Sabeis o que vai de novo?
A esta pergunta ninguém respondeu : mas homens
d'armas e besteiros pararam , apinhando-se á roda
do que fallava.
«Vai, que entre os ricos-homens da corte ha quem
pense em fazer deslealdade á nossa mui cxccllente
rainha, e o nobre conde de Portugal e Coimbra quer
talvez colhe-los ás mãos. »
«Mas porque credes vós isso?' — interrompeu o
coudel.
«Porque o alferes-mór me jurou que cu expunha
a cabeça se alguém passasse por nós viudo do bur-
go , que não fosse logo tomado , ou se me affastasse
alem das barreiras um tiro de balista. Que signifi-
cam similhantes disposições, senão o intento de co-
lher ás mãos os dcslcaes?»
«Isso agora é outro fallar ; — rosnou o coudel —
em tal caso é claro »
A quadrilha havia seguido de novo sua roída , e
o trovador só pode perceber mais essas poucas pa-
lavras truncadas.
Encostado a uma arvore com a rcdea do ginete
no braço , o cavalleiro ficou embebido em cogita-
ções. Um acaso lhe dera a conhecer a impossibili-
dade de pôr por obra os seus intentos , se ainda na
seguinte noite durassem as precauções de que ou-
vira fallar. Mas donde haviam nascido as suspeitas
que despertaram a tal ponto os receios do conde de
Trava? Te-lo-hiam reconhecido atravez do seu dis-
farce? Fora acaso ouvida a conversação que tivera
com o Lidador? Pcrdia-se n'um mar de conjectu-
ras , e successivamonle imaginava e desfazia rai!
alvitres para salvar Dulce , para cumprir sua pro-
messa e xcT coroado seu amor , mas no meio da agi-
tação cm que o lançara a nova que escutara, bara-
Ihavam-se-lhe cada vez mais os pensamentos tumul-
tuosos. Lemhrou-se de voltar a Guimarães, mas nem
já , provavelmente , a entrada era fácil , nem clle
(•) Fu,/u.' — era um dos doestos daquelle lempo, con-
tra o qual alguns foraes põem muletas pesadas. Ignorámos
em que consistia o aflrontoso destas duas syllabas , salvo se
era uma abbreviação de outra injuria de que resam também
os foraes, e que a decência nos i\r»o permilíe transcrever
aqui.
o PANORA3IA.
171
podia deixar de se dirigir ao arraial do infanle a
dar couta da missão de que se encarregara. Assim,
posto que vivameutc inquieto , cavalgou de novo , e
breve se achou túra da extensa selva que naquella
epocha se estendia ao norte de Guimarães.
Em quanto neste famoso castcllo e no seu burgo
se passavam os acontecimentos cuja narrarão pro-
curámos fazer ao leitor nos antecedentes capítulos ,
o fogo da revolta estendia-sc largamente por quasi
todos os districtos do condado de Portugal. O cam-
po de Affonso llenriquez augmentava diariamente
com as bandeiras das behetrias e concelhos, com os
homens d'armas dos coutos e honras dos mais illus-
tres ricos-homens, e com muitos alcaides dccastcl-
los do próprio infantalico ou regalcngo de D. The-
resa. Assim, ao passo que o conde Fernão Peres cha-
mava os cavalleiros de Galliza e das outras provín-
cias d'Hespanha para se defender, a guerra ia mu-
dando o seu caracter de lucta civil em lucta de in-
dependência, e fazendo que o espirito de individua-
lidade nacional se desinvolvesse e fortificasse.
A pouco mais de ires léguas de Guimarães Egas
encontrou os esculcas e almogávares de D. Affonso.
O arraial alvejava sobre os visos de uma serra com
os arreboes da manhaã , e as armas polidas scínlíl-
laram em breve aos primeiros raios do sol oriental.
O cavalleíro tendo-se dado a conhecer , atravessou
por entre as tendas , e chegou ao pavilhão do moço
príncipe , que já se achava em conselho com o ar-
cebispo de Braga e com outros prelados e barões.
Ahi deu conta do que podéra alcançar das disposi-
ções tomadas pelo conde de Trava para a defcza ,
do grande numero de lanças estrangeiras juntas em
Guimarães , e das fortiCcações , accrescentadas ás
já tão formidáveis do castello, e alevantadas de no-
vo em roda do burgo. — «Mas essas torres e enge-
nhos— dizia elle — não creio tenhamos de as com-
bater; porque se diz que Fernão Perez pertende vir
comnosco a lide em campo ; e a avultada somma de
cavalleiros que se acham em Guimarães, e o peque-
no numero de peões e besteiros são disso evidente
signal. »
« E Gonçalo Mendez da Maia ? — interrompeu o ve-
lho aio Egas Moniz. — Porque se conserva um dos
mais esforçados e poderosos Clhos-d'algo do Portu-
gal entre os inimigos do infante? — Viste-o? — Al-
cançaste acaso saber quaes eram seus intentos?» —
n Os seus intentos foram o impedir a guerra entre
homens da mesma fé e da mesma linhagem : hoje
a sua lança será a primeira que se enriste nessas
lides que Deus quiz fossem inevitáveis. »
Estas palavras proferia-as um cavalleíro queaffas-
lára o reposteiro da entrada da tenda , e cruzando
os braços ahi ficara parado.
Era o senhor da Maia.
O sohresalto foi geral. O trovador correu para el-
le, e depois de o abraçar, tomando-o pela mão o fez
approximar do infante.
«Eis-aqui — disse — um dos vossos maisleaes ri-
cos-homens. No momento do perigo elle não podia
faltar-vos. »
«.\o menos não foi por culpa do filho de Pedro
Froylaz — interrompeu o Lidador sorrindo. — Se por
inesperado meio a Virgem me não salvara , a estas
horas a minha morada seria a masmorra do castel-
lo de Guimarães , c a minha esperança de liberda-
de a tumba que dentro em pouco me lavaria o ca-
dáver asotlerrar nagalílé do mosteiro de D. Muma.»
O súbito apparecimento de Gonçalo Mendez , e
ainda mais as suas palavras , até certo ponto inin-
tclligíveis, excitaram vivamente a curiosidade do
infante e dos seus prelados c cavalleiros. O nobre
barão satisfez essa curiosidade , narrando não só o
que su passara no ajuntamento da cúria , mas tudo
o que depois succedéra, e como o bobo o salvara e
a Fr. Hilarião. « O pobre D. Bibas — concluía cUe —
cumpriu á risca o que prometleu. O villico da hon-
ra tí solar da Maia e os vinte cavalleiros meus acos-
tados vieram succcssivamente ajunlar-sc comnosco
á sabida do subterrâneo. O bobo lhes deu passa-
gem pouco a pouco, e até vi com espanto que o ul-
timo me conduzia a destro o meu cavallo de bata-
lha. Deixando os homens d'armas acompanhando o
virtuoso monge, adianlcí-me á rédea solta em bus-
ca do arraial de meu senhor o infante, para lhe di-
zer; «Guimarães será vosso logo que vos approu-
ver ! )> Sabia que vos encamiub.aveis por esta par-
te , posto que mais longe vos suppunhn. «Agora —
accresceutou voltando-se para o arcebispo — ■reve-
rendíssimo padre, por mercê mandai um de vossos
palafrens ou mulas de corpo , em que possa caval-
gar o mui honrado abbade do mosteiro de D. Mu-
ma , que , velho e trôpego , mal vencera até aqui
a pé , os montes e valles, algares e serranias.»
« Não terá de vir tão longe : — respondeu o se-
nhor de Crcsconhe — com o favor de Deus , espero •
que nós todos vamos bem depressa encontra-lo. »
O bom do aio era de opinião que sem tardança
se accommettesse Guimarães , c a preponderância
de que gozava no conselho fazia-lhc tomar muitas
vezes o seu parecer singular por uma resolução com-
mum e definitiva.
«Por essas palavras — replicou o Lidador — vejo
que a vossa intenção é fazer encurvar brevemente
ao redor das altas muralhas de Guimarães as bes-
tas e arcos , e as manganellas arrojarem contra os
eirados de suas torres as pedras e as setas de fogo.
se, o que não creio, o lobo cerval de Galliza deixar
que o cerquem no covil em que veio aninhar-se nes-
te nosso Portugal. Mas se quizerdes ouvir-mc — »
« Sabemos , sabemos o que nos ides dizer — ata-
lhou o arcebispo de Braga D. Paio, que , emulo do
velho Egas Moniz de Riba-de-Douro, não perdia oc-
casião de mostrar a sua influencia , c a capacidade
politica e militar de que era dotado. — Com cem
homens d'armas e no silencio da noite abrir-nos-
heis, sem combate, senão as barreiras e portas do
real castello, ao menos o caminho delle.»
Alludindo á passagem subterrânea por onde o Li-
dador se tinha salvado, o guerreiro prelado pronun-
ciara com emphase particular a palavra caminho.
«Perdoai-me, reverendíssimo padre, (*) outro era
o meu pensamento. Na escala arvorada aos muros ,
sob a vínea ou gato rolando para elles , nas trevas
nocturnas salteando d'improviso pelo subterrâneo os
cavalleiros do conde de Trava, ou finalmente em re-
contro de lide campal, estou prestos para combater
a todo o trance. Mas é em nome da paz que ainda
fallarei uma vez....»
O infante, que até então estivera callado, ouvin-
do os seus optimates , poz-se em pé, e com as faces
abrazadas , apertou o punho da espada , e bradou ;
« A paz 1 ? — Oh , isso nunca ! »
« A paz — insistiu o Lidador com firmeza — como
eu a pedi mil vezes na cúria de vossa mãi. Que o
conde vos ceda a herança de meu senhor D. Henri-
que ; que D. Theresa ceda a seu nobre filho o se-
(•) Pattr reverendissime é c tratamenlodado aos bispif
e arcebispos na Historia compostellana e nas mais memoriai
daquelle tempo. .
172
O PANORAMA.
nhorio desta (erra de cavalleiros !... Qae um mensa-
geiro vá em nome do infante e dos filhos-d'alf;o de
Portugal propor estas condifões, antes de as otrere-
cermos nas pontas das lanças. Ainda uma vez o re-
queiro, era que pese aos (fue ousarem accusar-me
de desleal, porque guardo o esforço para o momen-
to das obras , e dcspréso o que se revela cm feros
e ameaças antes do conilialer. »
O rico-homem olhou cm roda com nr altivo. Al-
guns dos barões do conselho cravaram a vista no
chão.
« Mas lerabrai-vos — atalhou Affonso Henriqiiez, —
de que a memoria de muitos nnnos de opprobrio ,
só pôde derisca-la o sangue correndo abundante em
campo de lide. »
«E vós, senhor, não vos esqueçais de que tam-
bém nessa primeira batalha o sangue que ha-de cor-
rer será dos vassallos e dos peões , cujo principo
sois, — o sangue de christãos, e não de agarenos e
ismaelitas.»
O infante ficou por algum tempo mudo: depois
fitou os olhos no seu velho aio , que lhe fez um le-
ve signal de assenso.
«Seja, pois, como pertendeis , — disse elle por
íim — ainda que tenho por certo será uma bem inu-
lil mensagem. Ao menus meu primo clrei de Leão,
que tão contrario se nos mostra , saberá que procu-
rei evitar a guerra.»
«E quem ha-de ser o mensageiro? — perguntou o
arcebispo de Uraga D. 1'aio, que no gesto carran-
cudo dava signaes de estar mais longe do espirito
do evangelho que o duro c impetuoso Gonçalo Men-
dez.
A narração que fizera o Lidador convertera cm
certeza as desconfianças que o trovador concebe-
ra de alguém o haver conhecido na corte, apesar
de seu disfarce. O coração palpitava-lhc ao lein-
brar-se da promessa que fizera a Dulce, e de que,
amda quando lhe restasse esperança de poder vol-
tar a Guimarães sem cahir nas mãos do feroz conde
de Trava, nenhuma podia ter de salvar a sua aman-
te: a proposição do Lidador lhe reanimou, porem,
as quasi mortas esperanças. Adiantando-se , pois ,
disse :
«Se ao illuslre infante approuvcr, serei eu quem
vá a Guimarães com essa mensagem. Pouparei ao
conde de Trava o trabalho de por mais temi>o me
procurar debalde. »
«Bem dito, meu collaço I — bradou o infanlo. —
K d'esforçado eavalleiro iralírontar o inimigo entre
os seus homens d'armas; mas não consinto (jue vos
arrisqueis de novo á cólera dos estrangeiros. Outrem
irá agora era vosso logar.»
O trovador apiinjximon-se cnião de AUbnso Ilen-
riquez , e vollando-se para os prelados e barões:
«Depois de três annos de ausência — disse com
visivel agitação — voltei a I'ortugal para servir na
]iaz ou defender na guerra o filho de meu senhor.
Como o ceifeiro (|ue abandonasse a seara , quando
as es|)igas se lhe olíereciam mais bastas c formosas,
assim eu abandonei as pelejas daTerra-santa quan-
do mais douradas esperanças me prometliam larga
colheita de gloria. Fi-lo por ser leal a meu preilo
e á fraternidade das armas. Dizei vós se o infante
de Portugal me deve por isso algum premio?»
AlTonso Henriquez fez signal de silencio estenden-
do a niãii p:ira o senhor de C.resconlie , que ia tal-
vez repreheiuier seu primo desta inteuipesliva [)er-
tcnção , c respondeu :
«ÍSão prccisaes de requerer aos filhos dos bem-
nascidos que julguem vossa demanda , como é foro
d'Hes|ianha. Confesso o direito que tendes, e juro
que a recompensa será qual vós a pedirdes.»
«Ouvistes, senhores prelados e barões? — inter-
rompeu Egas cora viveza. É um juramento d'infante.
O galardão que peço c que me deixeis seguir esía
aventura da embaixada. Não podeis já refusar-mo. »
«Seja assim pois, — replicou o infante — c a mãi
de Deus e o santo apostolo das llespanhas vos guar-
dem do perigo, qne voluntariamente buscaes , racu
bom eavalleiro. »
IVeste momento um pagem veio annunciar a che-
gada ao arraial de cem villões da behelria de Bri-
tiande , oitenta frecheiros e vinie besteiros , cujos
brados selvagens de guerra começavam a soar ao
longe como um trovão rebombando no valle. O in-
fante correu a vè-los em quanto os do conselho ins-
truíam o trovador da forma em que devia propor
sua mensagem. Ao perpassar, Aflonso Henriquez aper-
tou com força a mão de Egas , e disse-lhe em voz
baixa : «Egas, eu não quero perder-te ! lerabra-le
do teu irmão d'armas.>>
D'ahi a pouco tempo , o eavalleiro voltava para
Guiniarães , montado em mula robusta, e seguido
de um pequeno pagem, que cavalgava o seu ginete
de batalha , e de seis acobertados trajando saios e
cervilheiras, tudo segundo o costume daquella epo-
eha. (Jual seria o tumulto de alíectos que passavam
pela alma do mancebo, facilmente supporá o leitor.
Todos eiles se resumiam n'um só, o de tornar a
vèr Dulce: era este o único ponto que descobria no
horisonle do seu futuro , c era este unicamente que
elle queria descortinar. O resto pertencia aventura.
Entretanto nos paços de Guimarães o conde de
Trava rugia de fúria e pesar. Pelo quarto de mo-
dorra fizera accommetter por cem cavalleiros a pou-
sada do Lidador e de alguns outros Ulhos-d'algo de
P:jrtugal , que suppunha addiclos ao iifiço AUbnso
Henriquez. A morada , porem , do .'íeniior da Maia
estava deserta. Sabendo tal nova eile próprio cor-
rera ao mosteiro de S. Salvador, ou de D. Muma ,
resohido a arrancar c<im tormentos da boca do ve-
lho abhade a revelação do logar onde o rico-homem
se escondera. Era impossi\el que Gonçalo Mendez
houvesse escapado com os seus por meio dos vigias
e roídas, e porventura Fr. Hilarião lhe dera aco-
lheita. Com admiração dos monges e dobrado furor
do conde a cella do reverendo abbade eslava deser-
ta. Fernão Perez corria com olhos cbamejanles as
vielas estreitas e tortuosas do burgo. Na desespe-
ração que o ralava, o seu primeiro Ímpeto fora man-
dar decepar as cabeças a alguns simples cavalleiros
que haviahi sido presos, e a muito custo o genero-
so alferes-niiir impedira este acto de inútil barba-
ridade, liiirlado até na esperança de colher ás mãos
o audaz primo do senhor de Crescouhe , Egas , que
elle suppunha em Guimarães, e para achar o qual
liiiham sido vaãs as mais severas pcsciuizas, a rai-
va do nobre conde de Portugal e Coimbra subira a
indizível grau de violência.
O desleixo do drama, qne se preparava havia lau-
to tempo, estava próximo : — a tempestade acastcl-
lada no horisonle ia estourar emlim. l'ela madru-
gada daiinella mesma noite alguns espias chegaram
trazendo a nova da a|i|)ioximação da hoste inimiga.
Segundo clles diziam a sua força era principalmen-
le de peões: os concelhos tinham armado os homens
livres e os de creação ou servos (|iie habitavam nos
po\(iados |iriucipaes e nosallozes (ju aldeolas comar-
cans. Os senhores de coutos e honras haviam na ver-
o PANORAMA.
173
dade Irarido alguns bésleiros de rarallo e de pé :
mas as peoadas concclheiras formavam o grosso da
mesnada, e entre ricos-homons, iufatioõcs, escudei-
ros, cavallciros de soldo ou acostados, e almogáva-
res , os homens d'arraas eram muito menos nume-
rosos no arraial do infante que dentro dos muros e
barreiras do castelio e Imrgo de (iuimarães.
Fora sobre este resultado da revolta que Garcia
Bermudoz e Fernão l'erez tinham alevantado desde
o principio a machina das suas traças guerreiras.
Longe de esperarem o ser accommettidos atraz de
mnros e barbacans, onde se lhes tornava inútil a su-
perioridade da cavallaria, convinha-lhes accommet-
ter os contrários em cnmpo aberto. Alii a vicloria
parecia segura. Xaquelle tempo os peões, ou infan-
leria , chusma indómita , rude , e mal armada , era
tida em nenhuma conta, e nos arrolamentos dos exér-
citos quasi que não se contava senão com o numero
das lanras.
A certeza obtida emfim daqnellas circumstancias,
que podiam produzir para o infante a deshonra e a
morte no momento em que chegava ás cercanias de
Guimarães no meio de sonhos d'ambi(;ão e de es-
peranças de gloria, mitigou algum tanto o furor do
eondc de Trava. Posto que ainda carrancudo, pas-
seando na sala d'armas rodeado dos seus cavallei-
ros , elle dispunha tudo para sahir a campo. Pelas
escadas dos paços viam-se descer e subir os pagens
levando peças de armaduras lisas e pulidas , outros
arrastando os pesados saios e cervilheiras de cama-
Iho, tecidos de grossa malha de ferro, para se dis-
tribuírem pelos homens d'armas de soldo e pelos ca-
Talleiros peões. A signa real da bella infanta se plan-
tara diante das barreiras ; os balsões variegados dos
cavalleiros de solar e linhagem enfileiravam-sc já
apoz essa bandeira pnra um e para outro lado , e
os atambores ou timbales mouriscos, adoptados en-
tre os christãos, começavam a soar pelo burgo con-
vocando a gente de guerra em volta de seus pen-
dões. Os rostos dos duros homens d'armas de Gal-
liza , Aragão e Castella , ferozmente alegres , sor-
riam com a esperança da festa de sangue que nes-
se mesmo dia porventura os aguardava.
No meio , porem , do nitrir dos cavallos , do re-
demoinhar do pó , do lampejar dos capellos ou el-
mos brunidos, do vozear dos cabos das quadrilhas,
um som agudo c prolongado de buzina sobrelevou
por cima de todo esse ruido. Vinha da orla do bos-
que visinho do vau do Jladroa , e tirava-o um ca-
valleiro, seguido d'uni pagem e seis lanças, o qual
se dirigia evidentemente a Guimarães, e com aquel-
las toadas parecia annunciar intenções de paz. Dois
almogávares sahiram a reconhece-io ; e depois de
fallarem com elle poucos instantes, voltaram dizendo
ser o recera-vindo um rilho-d'algo que da parte do
infante trazia mensagem á mui excellente rainha e
ao nobre conde de Trava.
Era Egas. Atravessando rápido a distancia que
mediava entre o castelio e o arraial , elle chegara ,
muito antes que o sol subisse ao zenith , ao ter-
mo da sua viagem. O coração balia-lhe com for-
ça. Ainda talvez visse Dulce ! — ■ Eis o pensamento
ao que se limitavam já suas esperanças, porque a
missão de que se encarregara era terrivelmente ar-
riscada. Durante o caminho fora que elle medira a
extensão dos perigcjs a que se expozera ; mas a ima-
gem de Dulce varria-lhe da alma o temor. Jurara
a seus pés voltar nesse dia : e para não ser perju-
ro, que lh'imporiava affrontar a cólera do senhor de
Trava , e o ódio profundo que devia devorar o co-
ração de Garcia IJermudez? E todavia a mensagem
que trazia, mais de guerra que de paz, forçosamen-
te havia de despertar aquclla cólera , c a sua pre-
sença este ódio. a ponto, que não era fácil prever
q\ial seria o modo porque sahiria do passo estreito
em que se aventurara.
Ainda estas cogitações o agitavam, quando ao lo-
gar onde esperava , lura das barreiras , a licença
para se appresenlar perante a rainha e o conde ,
chegou o pagem Tructezindo , que o leitor já co-
nhece . c fallou com os homens d"armas que rodea-
vam a cavalgada dos recem-vindos. A entrada do
burgo e castelio lhes era franqueada, c Fernão I'e-
rez esperava o trovador para ouvir sua embaixada.
O cavalleiro allravessou então , seguido dos seus .
a ponte levadiça da carcova . e passando alem da
da grossa cinta dos muros e torres do castelio, en-
caniiuhou-se para a sala d'armas dos paços da bel-
la iiífanta de Portugal.
(Continuar-se-ha.J
(A. Herculano},
O BIUEZaiN NA TOr.RE DA MESOUITii.
Todas as religiões falsas, posteriores ao paganismo,
imitaram este na creação de um sacerdócio ; pelo
que' também arremedaram a verdadeira : nenhuma
deixou de levantar uma corporação do ministros ,
ou empregados do culto, aquém mais especialmen-
te era confiada a mantença , a explicação gcnuina
de seus pontos de fé , e que tinha a incumbência
174
O PANORAMA.
das ceremonias c actos religiosos. Admira portanto
que Mafoma , conhecedor do sacerdócio judaico se-
gundo a lei do Lcvitico ; scicnte, pelas suas viagens
íi Syria , da organisação do clero do christianismo ,
não instituisse clerezia a seu modo , e que ao con-
trario deixasse a cada um seguir o rito novo, sem
que alguém o presidisse , e sem distincção de je-
rarchia ; porque tal não pôde dizcr-sc a que era
jiuramente militar entre os seus adeptos. Os douto-
res da lei mosleraica, os derviches ambulantes, são
do data muito posterior á fundação do islamismo.
Adoptando a crença de Deus único e indivisível ,
deixou á piedade dos falsos crentes a erecção dos
templos ; e as mesquitas foram em geral edificadas
á custa de príncipes ou por doações de particula-
res ; mas não apparece a obrigação de erigirem igre-
ja : com o andar dos tempos , c a inevitável preci-
são de conservar estas casas , deram-lhes guardas ,
e outros custodes e administradores dos rendimen-
tos , e por consequência empregados que velassem
pelo culto , Ião simples no templo , quanto oneroso
flos que o praticam em seus domicílios. Digamos
de passagem que o mahometanismo tem muitos re-
negados ao disfarce , que assim como se indcmni-
sam a occultas do rigor da prohibição de viuhos e
carnes gordas , também se esquecem de resas c ge-
nuflexões ; tão somente o habito e o- clima os obri-
ga aos repetidos lavatórios , sem que isso prive de
haver muito musulmano , irremissivelmente porco,
que de tal preceito não cura. Onde a lei é á risca
mais seguida , segundo o testemunho dos modernos
"viajantes, é cm Constantinopola e suas visinhanças ,
na Ásia Menor, e varias cidades da Pérsia: em todos
os mais logares , notavelmente na Africa , ha des-
manchos , que indicam a vaciilante crença no Al-
Koran , ou o desejo de corameltcr peccados por ne-
gligencia ! (»)
Seja o que for , é comtudo verdade que os mu-
sulmanos não poderam dispensar padres a seu gei-
to. Formaram nações , ou lhes incutiram o culto ;
chegaram a ricos ; fundaram mesquitas sumptuosas ;
mas o seu sacerdócio é simples. Se a casa d'oração,
como elles lhe chamam , é ampla e muito frequen-
tada tem dois imans ; um prega , e recita as ora-
ções á sexta feira [que 6 o seu domingo] ; o segun-
do reza em publico as cinco orações diárias na mes-
quita ás horas estabelecidas : nas mesquitas meno-
res um só preenche os dois encargos. Também ha
em cada uma destas casas um ou mais mitezzins ,
liomens , que substituem as vezes dos sineiros ; so-
licm a horas certas ás varandas dos coruchéus das
mesquitas, e dalli bradam chamando o povo á ora-
ção nas marcadas estações do dia ; nas grandes ci-
ílades empregam nisto de ordinário os cegos para
não devassarem os recintos c jardins dos serralhos.
Como os sectários do Al-Koran aborrecem os sinos,
e não os usam , este é o meio de que se lembram
para supprirem o solcmne som do instrumento mc-
tallico , que por tão singelas percussões , espalha
nos paizes catholicos a muita distancia a recorda-
ção de Deus. Imprópria e deficiente c a substitui-
<;ão ; e todos podem ajuizar como alcançará a voz
humana chegar de grandes alturas a ouvidos alor-
(•) O P." Manuel Godinho falla-iius do rcmedan ou
«luaiesma liirca e viu como pra cumprida em Alcpo da Sy-
ria : — íiOs mais observantes não comem lojo que se põe o
íol , senão depois que apparece al^,'nma estreita. Não assini
os araliios da Deserta que eu via comer a toda a hora nes-
ta sua quaresma. " — Vide a curiosa Relação deste viajante
jjortugnex a \y,ií;. 213 da moderna edição publicada por es-
ta Sociedade Proiiagadora dos Couliecimenlos Uleis.
doados pelo bulicio e algazarras de uma terra po-
pulosa.— Mas como o culto era novo, e tratava-se
de o diffcrençar especialmente do christianismo ,
Mafoma e os seus adoptaram mais este modo ridí-
culo de seggregação. — Consolemo-nos que se por
cá não acodem todos á pancada retumbante dos si-
nos ; ha por lá maioria que se faz surda ao clamor
do muezzin : consolação não será , mas cada reli-
gião tem seus tibios e remissos.
Na estampa vê-se o gosto de architectura que
predomina na construcção dos minareis , eoruchéus
das mesquitas, pináculos desses edificios , que em-
parelham de algum modo com as nossas cúpulas ou
zimbórios: lá se divisa n'um bem alto o muezzin,
tapando com as mãos os ouvidos , e bradando aos
crentes que venham cumprir seus religiosos deve-
res. ;. . ... ... ,, ,
Da lavodra em campo aberto ou lavrada :
e da sementeira.
Dissemos n'um artigo [a pag. 333 do 1.° vol. desta
2.^ Serie] em que consistia o lavor da terra a que
chamámos lavrar, o fim ou utilidade desta operação,
os instrumentos e os auimaes indispensáveis para el-
la. Continuando agora a mesma matéria diremos o
que nos parece mais essencial : 1.° sobre o modo de
lavrar , isto é , sobre a direcção e profundidade do
rego ; 2.° sobre o tempo próprio de o fazer. E ain-
da que acontece alguma vez pela ligação das idéas
que caíamos em alguma repetição, não seja isto oc-
casião de reparo, porquanto em objecto de tão gran-
de utilidade nunca os preceitos de reconhecida evi-
dencia e vantagem se repetem assaz. Com efleito
ben lavrar e bem estrumar são os dois pontos em
que repousa todo o segredo da agricultura : tudo o
mais são accessorios e consequências dclles. Recor-
dem-se os leitores daquelle celebre processo de que
nos deu noticia Tito Lívio := Um lavrador da cam-
pina romana foi accusado perante os magistrados
de praticar sortilégios por meio dos quaes, ao mes-
mo tempo que seus visinhos , igualmente agriculto-
res , só recolhiam de seus suores uma colheita fra-
ca c mesquinha , elle pelo contrario tinha sempre
as melhores searas, e a mais copiosa c abundante
producção. O accusado , para descarregar-se desta
imputação , compareceu no furnm romano acompa-
nhado de seus criados fortes, calejados, robustos ;
de seus bois gordos, reforçados e optimamente tra-
ctados ; e de seus instrumentos de lavoura bem
construídos , limpos , c admiravelmente proporcio-
nados ; feito o que disse para os juizes: eis-aqui
cia que consistem meus sortilégios e encantamen-
tos ; bons trabalhadores , instrumentos adequados ,
e as grandes serras d'estrume que tenho promptas
para o meu campo , são todo o mysterio de minha
agricultura ; que meus visinhos façam outro tanto ,
terão igual resultado. =
Profundidade e direcção do rego do arado.
A profundidade do lavor depende da qualidade
do solo : se a torra é boa , e a camada vegetal ci-
meira é larga c rica , deve lavrar-se profundamen-
te ; porque quanto mais volvida fòr a terra boa ,
melhor arreigará c prosperará a planta ; da mesma
sorte se fará quando a camada inferior ou sob solo
fór de qualidade superior á primeira ; porque nesse
o PANORAMA.
175
caso convém Iraze-la á superfície. Nas terras mais
leves ou fracas a profundidade deve ser menor,
porque quanto mais se volve o solo , mais se au-
gmentam aquelles defeitos , c mais facilmente chu-
pam a humidade , c evaporara os gazes nutritivos.
Os regos devem praticar-^c guardando, quanto pos-
sivel for , uma linha recta , descrcvcndo-a longitu-
dinalmente de norte a sul, afim de que a seara ten-
do a mesma exposição amadureça ao mesmo tem-
po. Nas collinas porem, nas encostas, e em geral
nos terrenos montuosos deve lavrar-se horisontal-
menle, e não d'alto abaixo, afim de que com as
enxurradas se não arraste ou deslave a terra.
Do tempo próprio para lavrar.
Em geral deve escolher-se para lavrar um estado
da terra entre humidade e seccura : o caso c que
a terra se esboroe facilmente pela lavoura que é a
significação do testo latino : =aut puire solum , hoc
cnim insistamur arando. =
Nas terras seccas e ligeiras é bom esperar tem-
po húmido , mas não frio ; nas húmidas lavrar em
estação secca e enxuta. O lavrador experimentado
apalpando a terra entre os dedos facilmente verá
se está ou não em estado de poder lavrar-se. Algu-
mas vezes acontece que o tempo continuadamente
secco estorva a lavoura no tempo adequado , e en-
tão aquelles que tem posses para isso , costumara
metter-lha agua por igual afim de refrescar o cam-
po , e lavram depois.
La sementeira.
Depois da terra lavrada segue-se ordinariamente
nos cereaes a sementeira. Deve escolher-se para se-
mente o grão mais grado e perfeito ; e melhor será
se fòr nascido e criado em outro terreno : as plan-
tas amam também até certo ponto a variedade. Co-
mo por um lado seria perdido o grão partido , ou
furado do bicho , ou cariado , que se lançasse na
terra ; e por outro lado de má semente se não pôde
esperar boa planta , convirá experimentar primeiro
o grão. Para isso se lança em agua bastante a fa-
zer vir á superfície o que estiver deteriorado ; e es-
te se tira para fora destinando-o a outros usos. Es-
ta immersão n'agua por algumas horas [o ou 6] ,
dispõe o grão a fermentar e a nascer mais rápido.
Os francezes preferem lava-lo remexendo-o muitas
vezes n'um banho d'agua de cal ligeiramente colo-
rada, em consistência a que chamam — leite decai.
— Depois se enxuga posto ao ar, e secco se seraèa.
O methodo de semear cnlre nós é qnasi geral-
mente o que chamámos semear á mão. O semeador
trazendo o grão D'uma cesta pendente do braço es-
querdo , ou n'um sacco aberto pendurado ao pes-
coço , vai espalhando a semente com a igualdade
approximadamenle calculada por toda a terra , re-
gulando o braço pelo movimento do pé nas passa-
das que vai descrevendo. Este methodo requer um
grande habito : é o mais expedito, mas é igualmen-
te o mais sujeito a contingências desagradáveis ;
um leve descuido , xim esquecimento momentâneo
do semeador pôde causar graves inconvenientes ;
pôde repetir a sementeira no mesmo local , ou pas-
sar em claro alguma porção de terreno : em todo o
caso desperdiça-se semente.
Nos paizes onde a agricultura está em progresso
tem-se inventado grande numero de semeadores ,
ou machinas mais ou menos úteis para bem semear
e poupar semente. Algumas destas desempenham
bem sua destinação, mas infelizmente por sua com-
plicada estructura, e por seu preço, não podem con-
vir a pequenos cultivadores , ou nos paizes onde a
agricultura está em atrazo. Tm dos últimos inven-
tos desta natureza que tem tido grande voga cm
França é o semeador de Mr. Hugucs, o qual serve
para todo o género de sementes , e dizem que cco-
nomisa muito grão. É uma machina que semèa e
grada a terra ao mesmo tempo ; isto c , depõe a
semente n'um pequeno rego traçado por uma re-
lha , e depois a cobre immcdialamente , e a enter-
ra n'uma profundidade regulada. Consiste esta ma-
china semeadora em um ou dois taboleiros , com»
aquelles que contém o grão que vai raoer-se nos
moinhos ou azenhas : destes taboleiros vai descen-
do a tubos que são ordinariamente de três a sete ,
e pelo bocal destes tubos vai cahindo o grão cm li-
nhas rectas parallelas. Á proporção que esta machi-
na vai passando , puxada por um ou dois animaes ,
se vai operando a sementeira d'uma larga banda
de terreno , e a grade , ahi pegada posteriormente ,
vai logo cobrindo o grão. Este instrumento vem de-
senhado no Jornal dos Conhecimentos Úteis , no n."
de março de 1840. Mas os redactores tiveram logi
o cuidado de advertir que este e outros instrumen-
tos aperfeiçoados só poderão adoptar-se quando mui-
tos cultivadores se concertem entre si para os terem
em commum.
Outro instrumento semeador mais simples , me-
nos dispendioso e complicado , c que nos parece
encher a indicação , é o de Mr. Bareau : compõe-
se de 2 partes ; 1." a caixa que contém a semente,
e um cylindro escova que rolando dentro , tocado
por uma manivela pela mão direita do portador ,
vai despejando o grão nos orifícios dos tubos ; 2.'
deste mesmo tubos [3 ou 5] suspendidos no ar pe-
lo diâmetro d'uma pequena roda preza ao tubo do
meio. Estes tubos latcraes estão presos á caixa de
maneira que o portador desta machina , pendente
dos hombros, pôde aparta-los ou approxima-los con-
forme a necessidade da sementeira , e as desigual-
dades da lavoura. Esta caixa pôde conter uma quan-
tidade de sementes para occupar até três quartos
d'hora. Eila é presa por uma corrêa que pende dos
hombros, como dissemos ; e o portador, com a mão
esquerda levemente apoiada sobre a caixa , a con-
serva fixa e immovel. Com a mão direita toma a
manivela , e esta faz rodar o cylindro , o qual pos-
to em movimento agita os grãos e os faz cahir nos
orifícios mais ou menos bastos, segundo a maior ou
menor velocidade que o homem dá volteando a ma-
nivela. Em alguns departamentos da Erança empre-
gam mulheres neste mister , e calculam que uma
delias com um semeador de três tubos pôde semear
um hectar e meio de terreno [vide o Jornal supra
indicado].
Nas terras mui ligeiras ou areentas, onde se não
pôde esperar que a vegetação prospere , sempre na
raiz da planta esteja o estrume em posta : depois
da terra lavrada c gradada, e limpa das herdas e
raizes costumara fazer regos com uma relha , e ahi
d'espaço a espaço deitam um punhado d'es[rume e
um , dois , ou três grãos de semente , cubrinuo-os
logo com o mão , ou com o pé. Outras vezes fazem
isso á enxada, praticando buracos ou covas em que
depõem o estrume e a semente. Tudo isto porem
depende de consideração , attendendo aos costumes
práticos do paiz, e á natureza e qualidade do so-
lo. Nas sementeiras porem em grande , ó certo que
se não pôde adoptar senão a sementeira á mão , ou
pelo methodo Barreau. — J- <hi C. A. C.
176
O PANORAMA.
Os ARVOREDOS fructifcros produzem mais que os grãos
semeados, porque sua superfície é muito maior que
o terreno que a arvore occupa. Na cultura deste
género de riqueza agrícola a |)rinicira regra ó a es-
colha dos silios priiprios para a |ihiiitação.
Assim que , nos terrenos montuosos , e em suas
encostas ao nascente e meio-dia , se plantarão cora
vantagem oliveiras , e se semearão pinheiros.
Nas terras leves se plantem cerejeiras, nesperas ,
o til , e outras espécies semelhantes.
Nas terras fortes , macieiras , pereiras , noguei-
ras , amoreiras, carvalhos, olmeiros, faias, casta-
nheiros.
No solo pedregoso , as amendoeiras , romeiras , o
bordo, aveleiras, e outras.
Nas terras húmidas , ou nas margens dos rins ,
ou riheiros, as plantas que amam frescura, como
salgueiro, amieiro, chorão, vimeiro.
Quanto á sna cultura cm particxdar.
Amoreiras. — As q\ie são destinadas para a cria-
ção dos bichos da seda , vem de muitos modos: de
semente, d'estaca, d'al|)orque , e de planta com
raiz. Para semear grainlia da amoreira é preciso
uma terra solta e preparada quatro mezcs antes:
semea-se em abril , cobre-se com uma camada de
terra de quatro linhas, c melhor se for tcrriço ou
esterco vegetal muito fino e apodrecido de longo
tempo. Quando se plantam de raiz refresca-se esta
com agua , c se lhe corta o pirot ou espigão : plan-
tam-se cora dois pés de distancia umas das outras ,
sendo para transplantar; porque se forem dispostas
para ficar devem dispòr-se em covas de quatro pés
de l.irgo e ires de profundidade, abertas dois me-
res autes. As estacas piantam-se no meado d'outu-
bro , á sombra , e defendidas com apoio de madei-
ra : fende-se-lhe embaixo a lige , e se lhe mettem
nas fendas grãos de cevada. As amoreiras em geral
gostam de estrume e de lavouras no terreno que
occupara ; e convém limpa-las do musgo que as
persegue , dos paus e ramos seccos , ou inúteis.
Cerejeiras e gincjciras. — Querem terra solta , le-
Tc , porem sècca ; semeam-se de caroço nos fins de
fevereiro , fazendo-os primeiro fermentar e grelar
em saibro ; enxerlara-sc nos primeiros dias de se-
tembro no mesmo anno. Estas arvores são muito
vivazes; renovam-se facilmente por meio da enxer-
tia a ponto que depois de grandes e frondosas se
podem tirar , e enxertar com qiiasi certeza de bom
resultado. Não gostara d'eslrume nem de lavouras
que lhes mordam a raiz ; devem antes ser cavadas
á enxada ; e limparem-se do musgo e dos ramos
seccos. Apressa-se-lhes a maturação do fructo pon-
do-lhescal ao pc , c regando-as com agua aquecida.
Sòrvciras ; amam logares frescos, húmidos, e su-
hstanciaes : se se pertcnde have-las de semente ha
um meio fácil : toma-se uma corda de linho , ou
d 'esparto velha c sem outra serventia ; passa-se es-
ta pelo fructo esfregando-a ; e quando pela adhe-
rencia a graã está pegada á corda , cstcnde-se esta
rrum rego feito em terra preparada, o ligeiramen-
te coberta, enterrada no mez de oulubro. Nascidas
rcgam-sc , sacham-se , e se transplantam cm covas
de quatro pés em quadro e três de profundidade.
As sorvas gostam de terra lavrada e cultivada, (luar-
de-se o fructo em vasos de barro bem tapados , c
barrados , metlidos em terra sccca a um palmo de
profundidade , em sitio soalheiro.
Nespereiras ; tem a mesma cultura que as sorvas.
Oliveiras: — amam terra grossa, mas sècca c
quente , exposta ao meio-dia ou ao nascente , mais
nos altos que nos baixos. Propagam ou dos reben-
tões que deitam do pé , e que se deixam crescer e
engrossar alé terem duas polegadas, ou das estacas
que se lhe tiram dos ramos ociosos , ou de raiz a
que chamam de cabeça. Este ultimo modo é o qoe
produz mais depressa. Devem escolber-se os reben-
tões e estacas fortes , direitas , e sem mazellas ou
esfoladuras ; tira-se-lhes a casca no pé, deixando só
a verde ou entrecasco ; plantam-se em novembro nos
paizes quentes, em fevereiro e março nos climas
temperados, era covas de quatro pés de largo etrcs
de fundo , abertas dois mezes antes, misturando na
terra da raiz esterco e cinza ; bale-se bera a terra,
deixando alguma debaixo do toro ou raiz da plan-
ta : depois devem regar-se e sachar-se. Transplan-
lam-se no fim de cinco annos [se foram nascidas e
ciiadas em viveiro], e se devem cultivar, sachar
c estercar, podendo ser, todos os annos. Não se
talham nem podam nos dois primeiros annos; no
terceiro se lhes deixam duas vergonteas : no quarto
anno a mais fraca das duas se corta e se planta pa-
ra ser transplantada noquinto. A transplantação de-
ve ser feita levando a terra pegada ás raizes, quan-
to poder ser. Todos os práticos sabem já que as oli-
veiras devem ser limpas amiudadas vezes , e que
convém abri-las de modo que o ar e o vento as pe-
netre ; e se costuma dizer por isso que devem ap-
presentar a forma d'um sino de boca para o ar. A
limpeza não deve demorar-se mais de seis ou oito
aiuios , por um Icrapo sécco e soalhoso ; no fim do
inverno será bom cobrir a chaga ou córtc com bor-
ras d'azeile.
Enxertam-sc em maio de borbulha ; um anno de-
pois se cortam rente do enxerto. Quando a oliveira
esiá velha e se quer cortar ou arrancar , tira-se em
cada ramo principal um anncl de casca circular ,
que se cobre com o aparelho dos enxertos : esta
operação serve para fazer dar naquelle anno tudo
quanto pôde dar de fruto.
Nogueiras; gostam de terra gorda, como terra de
trigo ; dão-se nos quiutaes e nos caminhos , ainda
em chão duro. Semeam-se as nozes em fevereiro, e
pJanlam-se dois annos depois cm viveiros no mez
d'outuhro. Não se plantam muito grossas ; e preci-
zara ser sachadas : (jorta-se-lhes o espigão quando se
transplantam ; dispõem-se distante umas das outras.
Enxertadas dão melhor fructo, e dobrado cm quan-
tidade.
Amendoeira; ama terreno rude c pedregoso, séc-
co e quente : o melhor modo de cultiva-las é o plan-
ta-las logo no solo em que devem ficar. São muito
\ivazcs, e boas até para tapumes.
Alfarrobeira: — plantam-se os rebentões em no-
vembro ou fevereiro em covas profundas , terreno
sécco, e com boa exposição ao meio-dia. Enxer-
lam-sc na ameixieira brava ou na amendoeira : rc-
gara-se a miúdo.
Castanheiro: — dá-se em todo o terreno nos cli-
mas de teni|)cratura que lhe convenha ; nas encos-
tas e altos princi|)almente. Semeam-se as castanhas
nos ouriços mesmo ; formam viveiros , e transplan-
lam-se aos seis annos. Os enxertados dão melhor
castanha, em maiorquantidade, e fazem larga copa.
Esta arvore é jireciosa na provincia do Minho, por-
<]ue serve d'encosto ás videiras que dão uvas; o cas-
tanheiro lança vcrgontea que no alto dá castanhas, c
passados annos bella madeira. — J. <í« C. N, C.
76
o PANORAMA.
177
; .:.,^5Sli,UN.IÍLJ]ii:lJ,l.JLni:.ili.lL
PS
<
s
H
>M
H
M
u
<
<
M
0
u
o
o
n
es
EH
(4
H
g
Ikaiando agora da capital ila Franra , nSo recopi-
laremos as noticias , que vamos dar, de escriptores
daquelle paiz. ou iiialczes, mas d'um viajante lies-
panhol, ameno e judicioso, que costuma as6ignar-se
— cl curioso parlante. — i»)
(•) Imprimiu as suas recordacjòes em 1811.
JiNuo 10—1843.
Todo o mundo sabe que a antiga lulecia dasGal-
lias reduzia-se em sua primeira epoclia a uma ilho-
ta formaria pelo rio Sena , e que subsiste hoje e <■
conhecida pelo nome de laCile: aggregaram-se-lhe
successivamente outras duas , pequenas; a de S.
Luiz e a deLouvois. Andando os tempos, e não ca-
%' Sebie, — Voi.. II.
178
O PANORAMA.
bendo já a povoarSo de Lutccia em tão estreitos li-
mites, alargou-sc por ambas as margens do rio, tras-
bordando prodigiosamenlo cm cada século alem das
iiarreiras , de forma que pôde dizer-se hoje que o
principal berro d'aquella metrópole apenas se divi-
sa enlrc a immensa extensãi) das outras duas povoa-
ções ;i direita e esquerda do Sena. — Este rio, pois,
encerrado no meio , e atravessando aiiualmente a
cidade cm toda a sua extensão, é a artéria princi-
pal , a linha de demarcarão , entre as três princi-
l)acs divisões, c a separação que ella estaheicce não
bó é perceptível na phisionomia material das cons-
Irucções, mas também na social e politica da popu-
lação : assim vemos que a parte septentrional , is-
to ó as Tolherias c a Chaussée d'Antin, é mais ha-
bitada pela corte e membros de coramercio ; a me-
ridional, a saber, os quartéis de S. Germain e a
tJniversidade , é património da antiga aristocracia e
das escholas ; e o centro correspondente ás ilhas ,
e onde se acham situadas a cathedral c o edifício do
Iribonal de justiça , é mais especialmente habitado
l)eIo clero c a cúria.
Reunidas , pois , estas três divisões , compõem o
lodo assomhroso de quasi sete léguas de circumfe-
rencia , coberto de 46 mil cdificios, cortado por
1:200 ruas, e povoado por perto d'nm milhão de
habitantes. Singela muralha (: :) rodèa este recin-
to , interrupta por 5S entradas ou barreiras , ás
quaes vem convergir as estradas principaes do rei-
no. Vinte e duas pontes sobre o rio estabelecera as
communicações entre bairros tão apartados , e en-
tre ellas sobresahem algumas de primeira ordem
pela sua solidez e elegante fábrica. — A nossa gra-
vura mostra a ponte nova na parte Occidental , com
os edifícios adjacentes, a qual passa sobre o pontal
da cidade; foi começada em 1578, e acabada em
160Í.; tem de comprimento 1:020 pés franc. sobre
78 de largura : aforraosea-se com a estatua eques-
tre do rei, pai da pátria, o clarissimo Henrique i.°,
inaugurada em 1G14; os revolucionários a derriba-
ram em 1792 ; como diz o nosso poeta , P." Fran-
cisco Manuel do Nascimento ,
Ruins te derribaram , que não visses
Os dolos , os llagicios ,
Que haviam commettcr &«. —
Foi porem restabelecida em sua base, em 24 d'a-
gosto dèl818, mediante subscripção voluntária dos
parisienses para as despezas. — A ponte tem 14 pés
d'altura.
O terreno sobre que' está situada a cidade é ge-
ralmente plano, á excepção d'algumas ladeiras nos
extremos para a parte do Pantheon , e a porta de
S. Dionísio.
Afora a divisão central, marcada pelo rio, ha ou-
tra na banda septentrional , c que é formada pelos
formosíssimos passeios , conhecidos pelo nome de
baluartes , ou couraças (bonlcvards) , e abertos so-
bre o pavimento por onde outrora corria a cerca da
cidade ; os quaes, descrevendo em sua extensão de
obra d'oito mil passos uma curvatura immensa des-
de a praça da SIagdalena até a da Bastilha, subdi-
videm a parte mais vital c magestosa de Paris [que
é a comprehcndida á direita do Sena] em duas gran-
des porções, que podem appellidar-se nnva c velha:
cain|>èa n'aquclla a moderna aristocracia mercantil
com toda sua magnificência ; ostenta na outra a in-
dustria e o rnminercio a retalho a sua inexplicável
(::) 'ruiKis sal.ein (pelo" Joinaes puliiicus) (jual a exte-
rior furlificaçãu que se etlú fubricaadu.
actividade. — As ruas principaes ou seguem paral-
lelas as duas máximas linhas do rio, e osboulcvards,
em prodigiosa extensão ; ou se communicara entre
si desde um a outro extremo da cidade , estabele-
cendo assim uma planta bastante uniforme , e não
diliicil de compreliender ao forasteiro.
Quem chega a Paris, vindo d'Arcueil, não tem
qne felicitar-se muito da primeira impressão que
lhe causa esta capital ; pois atravessando por largo
tempo muitas ruas estreitas , sujas e escuras , ain-
da que d'extensão desanimadora , contemplando a
triste c sombria fábrica das casas , pela mór parte
velhas e denegridas pelo tempo e a humidade do
clima, e observando-as habitadas por gente, que se
bem que activa e industriosa parece revelar o rigor
da miséria , achar-se-ha de prompto desmaginado
do suas ilUisões, julgará que falharam suas brilhan-
tes esperanças , e vingar-se-ha em silencio das en-
comiásticas relações dos viajantes , uialdiçoando de
todo o coração tão bondosa credulidade. — Mas aguar-
de o recem-chegado com paciência ; siga com a ima-
ginação e com a vista o curso de sua carruagem ;
saia enTfim do embrulhado cabos do paiz latino [bair-
ro da Universidade] ; dè vista ao rio ; atravesse a
poidf-^iova ; e se tiver a fortuna de que a innume-
lavel multidão de carruagens que de todos os tama-
nhos a certas horas cruzam nessa paragem obrigue a
deter-se a sua por alguns minutos, deite a cabeça pc-
bis portinholas, alargue a vista para um e outro la-
do , e seguindo os braços gigantes da cidade, con-
temple [se poder] diante de si o romântico palácio
das Tolherias e seus bellos jardins, a magnifica fa-
chada do Louvrc e sua elegante columnada , a in-
terminável serie de formosas casas que orlam os
fortes diques do rio ; a linda perspectiva das pon-
tes, o antigo lloíel do Vilíe [casa do município] e a
torre de Santiago limitando o painel á sua direita ;
o (/belisco egypcio , e o arco trinmphal da Estrclla
á sua esquerda. Pelo opposlo lado do rio , poderá
abarcar a sua vista os palácios do Instituto , e da
Caso da Moeda, os do Conselho d'Eslado, e da Ca-
mará dos Deputados, os elegantes zimbórios do Hos-
pital dos Inválidos e o sumptuoso Pantheon; e no
meio do rio a ilha engraçada , que parece uma ci-
dade lluctuante, que derivando da ponte e sitio, em
que suppomos o espectador, vai lindar ostentando
entre as nuvens as torres sombrias e magestosas da
sé parisiense ( Nolre DaineJ.
Ignorámos se o viajante sedará por satisfeito com
esta primeira inspecção ; porem nos persuadimos de
que não será assim ; antes nos capacitámos de que
não largando as suas visões [pelo que ouvira] que
nunca semelham a realidade , e sendo-lhe irapossi-
vel qualificar de uma só vista espectáculo tão va-
riado c magnifico , cederá por instantes ao atordoa-
mento dos sentidos , do que não saberá dar conta ,
mas que lhe empecerá gozar do painel magestoso ,
que o rodea. — Mais adiante e depois de acalmada
a primeira e indefinível sensação , só poderá dizer
que tem achado o que procurava , Paris niagnilico,
Paris cheio de movimento c d'induslria , tal como
lh'o debuxava a fantasia, quando, dirigido por guia
inlelligenle, tiver percorrido em sua largura immen-
sa as regias ruas de Rivoli , Casliglionc , c da Paz :
as mui frequentadas de Montmarire , S. Dinis , e
S. Martinho , as elegantes e industriosas de Riche-
lieu , Vivienno , e Si. ° Honorato , as opulentas e
aristocráticas da calçada d'Anlin e <le S. (Herma-
no ; quando levado á soberba praça da Concórdia
vir ao redor de si a ostentação dos principaes pala-
o rANORA3IA.
179
cios, jardins, pnsseios e monumentos piiblicos de 1
Paris moderna ; quando tiver corrido as duas or- |
dens dt diques que guarnecem o rio, animadas por !
numerosa e activa população ; quando tiver segui-
I do a linha interminável dos boulcrards desde a re- .
I cente colnmna das victimas da rcvoluvão de julho
até o maçrnillco templo da Magdalciia , construido
no cslylo grego , e por toda essa extensão tiver oh- [
servado o espectáculo (]ue alli se olTcrecc uuico cm
seu género pelo movimento c sumptuosidade ; quan-
do do lado opposto do rio houver admirado o so-
berbo Panthcon , o quartel dos Inválidos, o paro e
jardins de Luxemburgo , o delicioso jardim botâni-
co , a catbedral de >'ossa Sr.' , e o palácio do Tri-
bunal de Justiça , na ilha central ; c os das Tulhc-
rias e do I.ouvre , a columna de Napoleão , a Casa
municipal , a bolsa , o arco da Eslrella , e outros
mil monumentos de primeira ordem , na margem
direita do Sena ; quando tiver contemplado ;i noite
esto dilatado painel illuminado por infinidade de
lampiões , e tiver transposto as encantadoras gale-
rias [passagtsj de ^'ivienne , Colbert , Saumon ,
Choiseul , Panoramas , Verododal , &c. ; finalmen-
te , quando houver examinado as bellissimas arca-
das que rodeiam o jardim do palácio real d'Or-
léans , e encontrado nellas o bazar mais magnifico,
a mais rica exposição de géneros d'industria , que
- existe na Europa. Então ficara estupefacto o obser-
Tador ; e aconselhàmos-lhe que não pertenda quali-
ficar de prompto tantos e tão variaiios objectos ;
que não ceda ao enthusiasmo nem á fadiga que es-
ta vista poderá causar-lhe , mas que liraitando-se ,
quanto fòr possível , á observação meramente pas-
siva, aguarde que o tempo venha colloca-lo na ver-
dadeira posição, donde deve examinar este compos-
to grandioso.
Sem nos apartarmos da rápida inspecção mate-
rial da cidade diremos que não pôde aflirmar-se que
Paris, tomada emconjuncto, seja uma povoação
bella , uma perspectiva mui aprazível : isto por va-
rias rasões. — A considerável extensão de seu re-
cinto , povoado e augmentado em differcntes epo-
chas e sob o influxo de civilisações diversas , reve-
la o sello de cada uma em seus vários bairros. Se
penetrámos , por exemplo , nos bairros centraes de
Paris antiga , achámos um inextricável labyrintho
. de ruas estreitas e tortuosas , de casas altíssimas e
informes, onde nunca entrou a luz do sol, cujas
fachadas e ogivas maltratadas pelo tempo offerecem
um desgraçado prospecto daquella cpocha tão ga-
bada em nossos dias por novellistas e poetas. . . To-
davia, Paris de Luiz 11.° e d'Henrique 4.° vai de-
sapparecendo rapidamente ante as poderosas exi-
gências da moderna civilisação ; e hoje só conserva
como documentos da antiga , alguns bairros tortuo-
sos , algumas ruas sombrias , e alguns edificios pú-
blicos, por sua importância e ancianidade respeitá-
veis : estendendo seus limites até onde nunca o so-
nhariam seus primeiros fundadores , levanta sobre
as margens do Sena infinidade de ruas , direitas ,
uniformes, amplíssimas, cheias de prédios d'ele-
gante forma , calçadas de cantos quadrangulares ,
que offerecem ás carruagens superfície unida e so-
lida , com passeios laleraes para comraodidade dos
viandantes.
Muitos destes melhoramentos se tem feito de pou-
cos annos a esta parte , porque ainda não ha bem
quinze eram as ruas, em geral, porcas, destituídas
pela maior parte de passeios lageados, e os que ha-
>ia eram acanhados: a illuminação , hoje de gaz
nos sitios principaes, era feita com azeite em toda a
parte, e os lampiíies estavam pendentes de cordas
atravessadas nas ruas de banda a banda. Certos in-
convenientes e em certas partes não se tem removi-
do , porque Paris, como os seus projirios escripto-
res lhe chamam , é por antonomásia buuibcuse , isto
é , lamacenta.
Daremos mais outra rasão jiorque aos habitantes
lio sul da Europa não pôde parecer bella no seu
todo a capital da França. — Primeiro que tudo, os
nossos olhos acostumados a uma almosphera pura ,
ao Sol resplandecente , buscam no compacto d'uma
povoação esta transparência do ambiente , c a har-
monia das cores , que só achámos em nosso clima :
embellccidos os objectos mais somenos, e appro-
ximadas remotas distancias, adquirem pelo refle-
xo do nosso claro sol um loque gradual de colori-
do, uma harmonia na aggregação dos objectos, que
debalde buscaremos onde as nuvens e brumas tem
qnasi constante império e imprimem naquelles um
aspecto antecipado de velhice. De mudo que con-
tcm[dada de grande altura Paris só oITerece uma
immensa mole de sombras cinzentas , um apinha-
do de coruchéus pardos ou negros , uma montanha
de lousas , em cujo horisonte deslavado e sombrio
vão apagar-se os raios fracos do sol ; das ruas, ain-
da as mais largas e maiores , também se não goza
a inteira extensão , pela opacidade da atraosphera
na maior parte do anno ; e os objectos mais salien-
tes e remotos , torres e arcos triumphaes , appare-
cem como que encubertos com véu de gaza mais
ou menos espesso, que por outro lado não deixa de
prestar-lhes certo realce e mysteriosa formosura. —
Resultado da permanente humidade é a sombria
cór que adquirem prestes os edificios , em termos
de chegarem a denegrir-se completamente os de
cantaria , e darem logar nos interstícios das pedras
a certo musgo verdeiiegro que os desfigura , se não
são limpos. Assim, por exemplo, a fachada da ca-
tbedral , a columnada do Louvre , e outros edificios
não produzem sobre nós o effeilo , que nos arreba-
tava quando os contemplávamos em estampas ; e
por isso a Bolsa , a igreja da Magdalena , o arco
d'É!oile , mais modernos e que tem resistido á ac-
ção da atmosphera , nos agradam e seduzem mais.
O pavimento calçado das ruas de Paris é solido
e compacto : formando uma leve curva com a ele-
vação no centro, é por extremo próprio para o tran-
sito do carruagens , ainda que as regueiras que fi-
cam dos lados e as escoanies junto ás casas não
deixam de causar incommodo á gente de pé, apesar
da multidão de sargentas e canos, que impedem o
ajunlamento das aguas : mas este inconveniente se
tem ido remediando por um novo syslema, que era
1841 já estava praticado nas ruas Vivicnne e Mon-
tesquieu , o qual consiste em fazer passar as ditas
regueiras por baixo das lages alteadas , com o que
não se verá nas ruas corrente d'agua ainda na oc-
casião de maiores chuvas. As ditas escoantes são
de conveniente largura segundo a da rua , e de la-
ges ou d'aspbalto, e ofTerecem, por serem um pou-
co alteadas . abrigo contra os perigos , que de con-
trario acarretaria o contínuo transito das tarrua-
gens. — A limpeza das ruas se eflectúa com admi-
rável expedição se attendermos ao vastíssimo re-
cinto ; e só quando sobrevem as grandes chuvas ou
neves do inverno é que realmente e por algumas
horas se põem intransitáveis.. Já fica dito que a il-
luminação é feita por meio de gaz no principal da
cidade , e alem disso é poderosamente reforçada
180
O PANORAMA.
com a profusão de luzes da infír.idc-idc de lojas :
l)oreni as ruas mais apartadas do trafico mercantil
ainda permanecem pouco menos que ás escuras com
os pallidos revérberos pendurados ao meio das ruas
e seguros por cordas passadas de uma a outra par-
le.— A numeração das portas é fácil c commoda
pelo mclhodo geral dos números pares á direita e
os impares do lado esquerdo , e crescendo ou de-
crescendo segundo a jiroximidade do rio. — Final-
mente , a policia urbana c numerosa , vigilante c
activa , empregando as mais das vezes persuasões
e meios conciliatórios.
Taes são as Icições gcraes do nomeada Paris : —
não caberia em longa serie de artigos a miúda enu-
meração de todas as suas particularidades: — to-
davia d'alguns de seus priuci[iaes monumentos já
lemos faltado , e porventura trataremos de outros
quando se nos offereçam desenhos , que os repre-
sentem.
■ ■ '•■ O CAVALLEIRO .\EGRO.
,,.:. i ,. . Episodio histórico.
■.:-■.;;•:...,, :■.■ 1 .<■ ■ , , ,
D. João o Torto.
Mancebo ainda , porem valente e generoso , era o
filho de D. Fernando, o cmprazado (•) quando to-
mou as rédeas do governo. Nunca os revezes des-
truíam suas esperanças , antes o alentavam , tendo
em mais conta vencer os maiores obstáculos a pró
de seu povo que desfructar regalados festejos: mas
nem por isso deixava de ser afeiçoado a divertimen-
tos e ao fausto, e participar dos públicos regozijos,
ataviando-se com ricos vestidos bordados de ouro e
pérolas, e que faziam realçar seu porte nobre e ma-
neiras engraçadas. Quando a guerra contra os mou-
ros o não apertava , ardia em desejos de mostrar a
lorça de seu braço ; voava aos torneios coberto d'ar-
raas luzidas, e por mais de uma vez obrigou a bei-
jarem a arena esforçados paladinos.
Entre os principaes senhores que concorreram pa-
ra as revoltas internas, que alborotaram o reino du-
rante a menoridade d'.\nonso 11.°, eram os mais
temidos e influentes D. João Manuel, senhor de Vi-
lhena e pai da rainha D. Constança, c o famoso in-
fante D. João , o torto. A arrogância e menospreço
lom que este tratava até os nobres da mais elevada
jerarchia, o constituíam uma casta delyranno, abor-
recido de todos, mas a quem todos temiam por seu
desmedido poder, pois como divido de Atlonso obti-
nha parte da privança deste, e a Biscaia o reconhe-
cia por senhor. Tempo havia que no coração abri-
gava ódio mortal contra o rei , e seu génio altivo e
turbulento só esperava propicia conjunctura de ar-
Tancar abertamente a mascara de lealdade cora que
se enculiria , introduzindo-se no entanto cora raa-
nha na confiança de D. João Manuel , o qual olha-
va a amizade do infante, como um recurso não des-
inciendo para chegar a mandar tudo. Os enredos
occultos destes cortezãos não escapavam á penetran-
te sagacidade do rei, que justamente desconfiado do
infante começava a deixar de o tomar por confiden-
te , sem comtudo o apartar de seu lado, porque re-
ceava dar-lhe occasiãopara novos distúrbios, quan-
do era tão necessária a paz interna , e voltar todos
os esforços contra os mouriscos d'.\ndaluzia.
(•) Lcaibraifos estariío os leitores ifa lastimosa liisloria
iloB irmãos Carvajales , narrada no 1." vol. e romanceada
aos íol. perlencrjiles noi annos de 1841 e 1813.
Achava-se a curte cmValhadolid ; e á mesma ho-
ra que D. Alfonso recebia na sala regia do paço as
vassallngens da nobreza passeava D. João Jlanucl ,
de semblante carregado , pelo corredor immediato ,
era cujo remate ficava uma espaçosa escada de pe-
dra , serventia dos quartos inferiores: — não tardou
a apparecer no cimo delia o senhor de Biscaia, que
reparando quão estomagado estava o seu amigo, lhe
disse : —
«Que novo cuidado vos molesta , senhor de Vi-
lhena ? ... »
« Bagatella !. — tornou este era voz baixa. — Que
havemos de fazer agora ? ... Ignorais que o rei já se
vai pòr a caminho? ... »
"Que diabo dizeis! .. E para onde vai elle?...)i
«1'ara Victoria com toda a corte.»
«E isso vos contrista?... Em Victoria faremos o
que estava talhado para A alhadolid. «
«Sias é o caso que tenho ordem para sahir hoje
mesmo para as fronteiras da Andaluzia.»
II l'elo olho que me falta ! que não parece senão
que o rei adivinha nossas tenções. —
« E preciso buscar-mos refugio. »
«Bom é de dizer buscar refugio... mas como?»
n llecolhcndo-nos a \ilhena.»
" E se o rei vos mandasse prender dentro de Vi-
lhena , e degolar como vassallo rebelde?.. Que me
diríeis sendo levado a passo grave pelas ruas , ma-
nietado entre. luzido acompanhamento de guardas ,
escutando as santas admoestações do compassivo con-
fessor ? E dahí a pouco, ao divisar o patíbulo bem
empinado, e em círaa o alentado carrasco preparan-
do a ferramenta »
«.41to ahí , senhor infante ; que não hei trepado
tão alto que tenha de soffrer Ião desatinados pro-
gnósticos : tomai tento não se verifiquem na vossa
pessoa.»
" Cousa é essa com que tarde ou cedo devem con-
tar os que andam, como uós-outros, remexendo cons-
pirações. »
«Eu creio que em Toledo estaremos seguros.»
«E eu dígo-vos que em Toledo lereis o mesmo
desastrado fim que em Vilhena.»
«O demo vos leve e a vossos vaticínios.. Pois
onde é que iremos parar?...»
«.\o Aragão. »
«Percebo, percebo.. Almazan fica na raia desse
reino. »
«E c logar seguro para urdir ousadas eniprezas.»
"Sim, sim... E emquanto o guerreiro afia o gu-
me da espada, não faltará alguma donzella formosa ...
"Mas sobre tudo rica , senhor de Vilhena.
« Que ameníse com a luz de seus olhos a triste
solidão daquelles bosques
«Encantadores se ás possessões de Almazan se
ajuntarem as fazendas d'Alcocer.
«Kuim serpe vos morda o coração ! .. Sois um ho-
mem incoraprehensivel .. . disse o senhor de Vilhe-
na , retirando-se, —
«Ajuda-nie tu a conseguir a mão da bella her-
deira d'.\lraazan, depois vè-lo-hemos ... — disse por
entre os dentes o infante quando o companheiro ia
descendo os degraus da escada. — IVestc passo o
confuso motim, que ])rovinha dos aposentos interio-
res , i)rendeu-lhe a attenção , e em breve appresen-
tou-sc na galeria o rei seguido de brilhante comiti-
va de nobres. Chegado que foi a curta distancia do
infante , este se adiantou e pediu-lhe a mão para
beijar ; e o rei lhe perguntou : — «D. João, quereis
acompanhar-rae a Victoria?» —
o PANORAMA.
181
— oE porque não?... A Vicloria e a Ioda a par-
te, senhor — respondeu com alguma turbarão.
aBasta.. [ajuntou o rei] tudo a ravallo. Sereis
meu amigo, infante, quando me houverdes provado
fora actos Icaes o parentesco que comigo tendes. —
Passados poucos minutos toda a còrlc seguia caminho.
O passo do Zadoira.
Não muito longe da estrada real que vai de Vi-
ctoria a Salinas , c no sitio onde outrora duas ren-
ques d'azinheiras vedavam entrada aos raios do sol,
apeava-sc um guerreiro c entregava o corcel a seu
creado : trazia calada a vizeira, c capacete tinto de
negro ; da mesma eòr era toda a armadura : de cre-
pe luctuoso tinha cuherto o mollo do escudo trian-
gular : e ondeavam sobre a cimeira do elmo plumas
bastas c negras. — A postura de tal campeão, que
manifestava intrepidez e animo fogoso , e a altencão
com que olhava para a próxima ponte de cantaria
indicavam desejos de conimettcr arriscadas proezas,
ou de levar a feliz termo aventuras começadas.
Era ura desses dias que D. Aflonso de Castella
desejando fazer alarde dos guerreiros , que o se-
guiam aos combates, percorria os campus d'Arria-
ga. Cora clle estava a tlòr dos cavalleiros de Viclo-
ria e Treviriho, ataviados com a preciosa facha car-
mezira , que lhes concedera o rei em premio de fa-
çanhas obradas contra os infiéis , sendo os princi-
paes, D. Gonçalo de Jlendoza com sua cota de per-
fis d'ouro ; o valoroso llendibil, sopeando o mesmo
cavallo que nas margens do Guadalhorce fora ca-
valgado pelo possante sarraceno Osmin ; e o inven-
cível D. Lopo de Vendanha , cujo brio assaz era
denotado pela letlra de seu escudo : sempre cartel
ao mais forte. A cortez amabilidade do principe en-
thusiasmava estes animosos aventureiros , e ainda
mais a demonstração de confiança que lhes dava ,
pondo-se em mãos delles , quando ardia o reino in-
teiro agitado por enredos de grandes. Mas Affonso
bem conhecia quanto era amado da maioria da no-
breza , e sabia que os fidalgos fieis na guerra , que
lhe suscitara seu esforçado competidor , o monar-
cha do .iragão , se oppozeram sempre á entrada
deste no território das duas Castcllas, c elle os pre-
miara com a insígnia da ordem de la Banda : e co-
mo o cavalleiro que ao diante etcrnisou sua me-
moria nas ribeiras do Salador poderia temer trai-
rão dos que havia tão pouco o elegeram capitão e
principe seu ? . . .
Tomado das altas esperanças que de seu glorioso
reinado já lhe presagiava o coração , cucaminhava-
se á ponte do Zadorra , que lava uma campina tão
aprazível como as mais jucundas que a imaginação
pôde delinear cm seus impulsos creadores. Alheio
de si, e embevecido nos desígnios que postoque dif-
ficeis, prestes havia depor em prática, não reparou
que indo na dianteira alguns cavalleiros , como ba-
tedores e á descubcrta , fizeram parar os ginetes ã
entrada da ponte. D. Lopo de Vendanha, que se
chegou delle, apontou-lhe o cavalleiro da negra ar-
madura.
« A meu respeito não vos desassocegueis [respon-
deu] ; será talvez mensageiro que da rainha me ve-
nha trazer novas.»
E nisto , o som rijo da tuba de guerra feriu os
ouvidos daquella fidalguia , e todos a um tempo
cora o rei á testa esporearam os cavallos.
Ao entestar com a ponte, perguntaram-lhc os ex-
ploradores :
" Passaremos , senhor ? —
«(Juem no-lo estorva?» — replicou Aflonso im-
paciente.
<■ A minha lança . . . n — bradou o cavalleiro negro.
« A tua lança '. . . . Barreira débil contra o meu
braço. . . . Quantos sarracenos tens derribado com
essa lança ? . . » —
uEmpunha-a um nobre; e Deus e a minha ilama
a protegem. »
«O sol te é contrario. Se em realidade és caval-
leiro, e não foragido disfarçado, vem a meu cam-
po; dois reis d'armas nos partirão o terreno.»
«Depois de vcnccr-tc . . . agora cedo-te essa van-
tagem. » —
«E de mim que farás, arrogante campeão, se
me venceres? ...»
«Se ferido cahires , sendo quem se me afigura,
dar-te-hci o golpe da graça , introduzindo-te a mi-
sericórdia ate o coração ; depois . . . arrojarei tens
mortaes despojos á corrente do Zadorra." —
Todos os guerreiros fizeram cerco ao monarcha .
nos olhos do qual sciutillava o prazer ouvindo as
rasõcs do enlutado ; e vendo que o de Vendanha
predispunha-se a castigar a insolente arrogância ,
inlimou-lhe com auctoridade que permanecesse que-
do : deu d'esporas ao ginete, calou a viseira do el-
mo reluzente , embraçou a rodela , pediu a lança ,
e despediu a galope.
Partiu também a encontra-lo o desconhecido ; <;
iá se acercavam com furioso impeto; iam talvez ía-
*cr-se pedaços no terrível embate ; eis que de sú-
bito o corcel do cavalleiro negro desviou-se da pri-
meira carreira , ladeou , e quem o mandava excla-
mou aprumando-se sobre os estribos :
« Como , Senhor ! . . Sois o Mestre da Ordem do
la Banda!... cavalleiros, foi engano... Eu nu-
confesso vencido. »
«Abaixa a lança, infame [gritou D. AfTonso, de-
tendo o cavallo] . . quem não sabe sopeza-la , nem
é , nem pode ser cavalleiro. »
« Senhor, — respondeu o outro — sou nobre, mais
que todos os vossos nobres , e tanto como vós. »
«Aqui D. João, aqui senhor de Biscaia ! [bradou
mais alto o enfurecido monarcha]. . . . Que castigo
merece este cobarde?. .»
« Cobarde '. . . Viva Deus , ó rei de Castella , que
homens do meu prol não soffrem tacs demasias ! . . »
"Que castigo merece?. . « volveu a perguntar n
rei.
«Confessor c verdugo ...» respondeu D. João.
« E eu digo-te [redarguiu logo o incógnito] , dom
torto , dom villão, o dom traidor, que tu és o infa-
me que ando buscando. Testemunhas sede, podero-
so rei de Castella , e vosoulros valentes cavalleiros ,
de que eu , conhecido pelo nome de cavalleiro ne-
gro . accuso ao infante D. João de traidor e insti-
gador de maldades ; e em prova do dito o desafio
á lança e espada, a pé ou acavallo, e a todo o tran-
se : levantai a minha manopla , D. João. . . Rei de
Castella , vede ura signal de minha nobreza. . .» —
E dizendo approsimou-se de Affonso, e moslrou-
Ihe um pergaminho.
« Como é isto I . . . Vós por aqui ! . .
«De longes terras venho buscando vossa alteza
para contra seus inimigos defende-lo.»
«Que é feito de vosso pai? .»
«Renunciou todos os seus direil06 em favor de
vossa alteza. » ■ ,
182
O PANORAMA.
«D. João [continuou o rei dirigindo a falia ao
infante] podeis levantar essa prenda : é nobre este
guerreiro. »
«Pois que o prove.» — " ,
«Serei cii nobre, D. João?..» — inquiriu Aflbn-
so com atroadora voz.
«Senhor , sim ; c o primeiro d'cntre os d'ambas
as Castcllas. »
«Pois então dign-o eu e basta.»
«E basta» — repetiu á uma a chusma dos caval-
leiros.
D. João o torto recolheu a luva seu m.iu grado :
c o rei levando ao lado o das armas negras, c se-
guido pelos demais , retrocedeu para a cidade.
3."
A proposta.
Erguem-se para o lado das montanhas d'Aragão,
a pouca distancia da celebre serra d'Albarrazii), as
arruinadas torres de um castello antigo , que ape-
sar de venerandas servem de guarida aos innnme-
raveis lobos que nellas se asylam , quando o nebu-
]oso Moncayo arroja sobre as florestas suas violentas
enxorradas. — Nem sempre estiveram condemiia-
dos ao silencio os páteos espaçosos daquelle edili-
cio ; e na epocha dos successos, que vamos referin-
do , lai magnilicencia e solidez ostentava que com
rasão se lhe deveria suppòr direito a mais extensa
duração. — N'um de seus aposentos passava com-
pridos dias e tristes noites a bellissima Branca , fi-
lha do infante D. Pedro, que morreu n'uma refie-
ga ante os muros de Granada. Acompanhava-a sua
mãi D. Maria , e embalde procurava dissipar coifi
afagos as nuvens sombrias que entenebreciam o co-
ração da donzella, que victimada á sua paixão com-
prazia-sc em cursar os mais apartados sitios da for-
taleza , assim dando pábulo ao desasocego que a
ralava , produzido pela ausência do enlutado caval-
leiro , que poucos dias antes partira caminho de
Castella , comsigo levando a paz d'espirito, e o
amor da terna herdeira da casa d'Almazan.
Uma manhaã ouviram os moradores do castello o
soído de trombeta , c repentina agitação suceedeu
a quietação que desfruclavnra ; cruzaram o páteo
em vária direcção os homens d'armas; e d'unia
das torres pronunciou uma voz estas palavras : <■
f/entc de paz . Reslabelcceu-se a Iranquillidade , e
todos , menos Rodrigo , o chaveiro da praça , se re-
tiraram.
Nisto , appareceu ;í sabida do bosque um caval-
leiro armado de ponto em branco , fatigando com
seu peso os ilhaes do brioso corcel : indicava qua-
renta annos , era enxuto de carnes, um tanto cur-
vado para diante e como que vestia as armas con-
tra vontade. Quando chegou próximo ao fosso , seu
escudeiro trcs vezes tocou a trombeta , a cujo si-
gnal respondeu a atalaia ; e adiantando-se Rodrigo
lhe mostrou a entrada para o páteo , onde o caval-
leiro desmontou , c seu crcado expòz ao chaveiro o
desejo que seu amo tinha de tril>utar pessoal home-
nagem á bella castellaã. Mediu-o Rodrigo d'allo a
baixo c perguntou-lhc ; —
«Quem é teu amo; e qual o titulo de que goza
110 foro fidalgo?»
"K o cavalleiro de la Torre.» — tornou o cscii-
<leiro.
.Vtravessou Rodrigo o terreiro e annunciou ás se-
nhoras o recem-cliegado.
«Não me consta que haja cavalleiro aragoncz ,
que assim se appellidc» — disse D. Alaria.
«Será talvez castelhano ou algum dos cavalleiros
da ordem de la Banda» — lembrou I). Branca.
«Seja quem for — accrescenlou a mãi — aqui en-
conlrará hospi alidade. Que entre o cavalleiro de
la Torre , e bemvindo seja aos domínios da casa
d'Almazan. »
Admiltido o hospede , Branca cuidou morrer de
espanto , ao reconhecer D. João o torto : porem D.
Maria manteve tanta serenidade que lhe oíTereceu
que descançasse.
« iVão largarei minhas armas, nem ao repouso
entregarei meu corpo , em quanto me não escutar-
des sobre assumpto que a todos nos interessa , e no
qual hade decidir minha formosa prima.»
"Dizei o que vos apraz explicar» — acudiu logo
a mãi.
«Muito me exaltaram a lindeza de Branca os pa-
ladinos, que passaram por estes sitios, mas confes-
so que foram diminutos em demasia, pois que a
formosura da prima eclipsa > —
«Tinhcis dito que o negocio, que vos trazia, res-
peitava interesse meu. .»
c( E assim é , senhora. . . Sabei que o rei de Cas-
tella dispõe-se para despojar-vos de Almazan e de
Alcocer. . . »
«Não o acredito, D. João: porem se tal fosse,
valor e armas tenho para defender-me. »
«E que hãode fazer duas fracas senhoras contra
o poderio do pérfido Affonso e o aviltado esquadrão
dos cavalleiros de la Banda.»
«Infamais esses guerreiros — disse Branca — : sa-
bei pois que são valentes e generosos ; e cavalleiro
ha entre elles que sem embargo de ainda não tra-
zer a tiiacollo a honrosa fita romperá em rainha de-
feza a melhor lança . .» —
«Será por acaso o de Vendanha ! . . Não ; que já
pertence á ordem detestável . . Branca , quem é es-
se afortunado campeão?. Diga-o , diga-o já.»
« D. João , — interrompeu D. Maria — não vos
olvideis que estais na presença das caslcUaãs de
Almazan. » —
«Como é preciso que eu salte o vallo , declaro-
vos sem rodeios que venho sollicitar a mão de Bran-
ca. Se acquicsceis a meus desejos, levantarei exer-
cito nesta fronteira, e me farei forte nestes muros
contra o poder de Allbnso e até contra o inferno.
O senhorio de Biscaia reunido aos vossos estados
accrescentará nossos domínios , e »
«Nunca vos cri tão atrevido , \^. João — respon-
deu com altivez a senhora do castello — pedis a
mão de minha filha , como se fora vassalla vossa ,
e esqueceis-vos de que o alvedrio de unia dama
tem força que baste a desprezar descorlezes ollere-
cimentos e rejeitar allianças desiguacs. »
«Desigiiaes ! . . E a minha nobreza !...»•
"Não lia nobreza sem virtude.»
«Isto já é demais. . meu orgulho não so abaixa
a supplicar. . Por ultima voz , minha prima . . . ac-
ceitais ou repudiais minha mão?.. .»
«Não acccilo, D. João. . » — respondeu a donzel-
la resolutamente.
]\lordeu exasperado o infante a manopla d'aço ,
exhalou a raiva n'uma praga horrível , c descendo
a Ioda a pressa ao páteo do castello , tornou a ca-
valgar , e correu a toda a brida.
Desfecho d'um banquete real.
Dois mezes depois da entrevista de D. João o
torto com as nobres scuhoras d'.Vlmazan, celebrou-
o PA1NORA3IA.
183
se o famoso torneio de Yalhadolid , no qual o ca-
valleiro negro salvou a vidn ao rei : alguns traido-
res disfarrados entre os contendores que justavam
accommelteram na lira o rei, c esle deveu a salva-
rão aos certeiros botes do desconhecido , ajudado
dos cavalleiros de la Banda. Grato a tão assignala-
do serviço , ordenou o numarcha um lianquete a
que foram couvidaiias as principaes damas da cor-
to e também os nobres que haviam assistido ás jus-
tas , numero em que entrava D. João o torto.
Grandes preparativos se haviam feito para a fes-
ta, cora régio c liberal apparato : iliuininaram-sc
as amplas salas do paço ; revestiram-se de colga-
duras mui ricas os balcões, entradas, c paredes:
e as cadeiras primorosas , mesas c aparadores ma-
gnificamente ornados , os serventes trajados rica-
mente , as bandas de musica repartidas em locaes
convenientes . davam bem a entender que nunca
em Castella se vira tão fastoso recreio.
Occupava a cabeceira da meza , sentada sob um
docel d'azul e graã , a bclla herdeira de Alniazan ,
como rainha que fora do torneio; tinha a seu lado
esquerdo a infanta I). Maria , sua mãi , e á direita
clrei D. Afibnso : seguiam-se damas e cavalleiros
alternadamente, distinguindo-se alli nomes illus-
Ires , afamadas reputações de guerreiros , c formo-
suras estremadas ; e todos em repetidos brindes ce-
lebravam a grandeza de Affonso , e a boa sorte de
suas emprezas.
Concluido o convivio , ergueu-sc elrei com uma
taça de d'ouro na mão; todos o imitaram guardan-
do silencio.
«Damas gentis, cavalleiros valorosos, brindai co-
migo ,ís faustas núpcias da rainha do torneio com
o paladino da negra armadura.»
«Vivai viva', [se ouvia de toda a parte] : saiba-
se-llie o nome . . viva I »
"Também meu rival!» — disse em voz baixa D.
João o torto.
«Hei de Castella, tempo é de descubrir-me, pois
que meus votos estão cumpridos : vossa alteza j<á
não tem inimigos ; e eu chego a alcançar o único
premio a que o meu coração aspirava. . . »
« Sou eu a quem toca deseobrir-vos e premiar-
vos. Nada por ora em beneficio vosso tenho feito ;
e, por Deus, que é tempo de não parecer ingrato! . .
D. Luiz de La Cerda , primogénito de D. Afionso
de La Cerda o deshcrdado , que mercê pedis ao rei
de Castella ? . . » —
«V de morrer no sen serviço.» — E um clamor
de admiração havia sabido de todas as boccas ao
ouvirem pronunciar o nome do incógnito.
Aqui não pôde conter-se D. João, e vendo que a
mãi de Branca faltava complacentemente ao cam-
peão . adianiou-se para ella e disse :
«Olhai, senhora, que ha um ducllo pendente en-
tre esse cavalleiro e a minha pessoa : todavia não é
ainda esposo de minha gentil prima. . . .» —
«Que estais dizendo, D. João.'. .» — perguntou
clrei indignado.
« Peço que vossa alteza revogue essa alliança que
nsarpa os meus direitos.»
«Teus direitos , traidor!... — bradou-lhe o de
La Cerda — Vem, vera discuti-los, e devolver-me
minha luva : a que te arrojei na ponte doZadorra. »
« .\gora mesmo..» — liespondeu furioso o infan-
te , e d'espada núa arremetteu para D. Luiz , que
declinando o primeiro golpe , e no meio da confu-
são e alarido , que tal e tão inesperado incidente
gerara , investiu com o adversário tão briosamente
que o levou recuando até a porta da sala, onde pô-
de alcança-lo ; e jogando-lhe uma estocada , disse-
Ihe : «morre em paz.» Cahiu D. João, e no baque
resoou sua armadura sobre o pavimento.
Foi este o fim trágico de D. João o torto: e a
sua morte assegurcu por muitos ânuos a tranquilli-
dade de Castella. Poucos dias depois deste succes-
so celcbraram-se com pompa extraordinária as võ-
das de D. Branca de .\lmazan com o primogénito ,
herdeiro dos La-Cerdas.
Jo
Dos TAPIJIKS , 01 DEFENSAS DOS CAMPOS.
Os TERRE.Nos abcrtos valem menos que os terrenos
murados , ou fechados : mais sujeitos do que estes
ás avarias dos animaes domésticos, ás depredações
e latrocínios dos passageiros, e aos atravessadonros
dos viandantes, tem de mais a desvantagem de não
guardarem os gados em seus pastios , e de serem
deslavados ou cortados pelas enxurradas nas gran-
des chuvas por falta d'um dique ou embaraço ás
aguas. Nas províncias do norte onde a pedra c vul-
gar, e a povoação e industria dos habitantes ruraes
maior , quasi todos os campos cultivados são fecha-
dos por muros ou paredes : na província do Minho
as mesmas bouças ou tomadias, que apenas produ-
zem matlo ou tojo, são defendidas por paredes de
pedra ensoça : para ahi mettcm seus gados sem pas-
tor , e os recolhem á noite para o curral. Nas pro-
víncias ao sul, grande parte dos terrenos cultivados
estão abertos , principalmente nas terras transtaga-
nas , onde não ha pedra , e a povoação é enorme-
mente desigual, k propriedade , destituída de li-
mite apparcnte e fixo , soffre deteriorações no gozo
e fruição exclusiva , c o seu valor é despreciado.
Os tapumes são portanto um dos meios d'augmtn-
tação de riqueza agrícola ; e os camponezes e pro-
prietários deveriam empregar nisto muito maior so-
licitude.
Os tapumes ou defensas dos campos podem ser
de três maneiras: parede, valado, sebe. Todos el-
les tem suas vantagens , e inconvenientes que lhes
são próprios. A parede é o mais simples e indepen-
dente , porque não exige cuidado ou trabalho an-
nual , e dá menos abrigo aos insectos e reptis que
se costumam alojar nas balsas c arbustos; mas c
também o mais dispendioso, e não dá abrigo ás ter-
ras contra osvendavaes e ventanias. Valados despro-
vidos d 'arbustos são pouco duradouros : as chuvas os
desconjuntam , os animaes bravios os furam e atra-
vessam facilmente, os gados os esbarrondam : reque-
rera portanto conlinuos reparos; e demais, sendo
construídos de terra ou torrão privam esta de ser
productiva. A sebe é o melhor dos tapumes, se fór
bem feita, e d'arbustos discretamente escolhidos ;
porque muitos ha que dão fructo e Dores que au-
gmentam o rendimento do cultivador , c defendem
ao mesmo tempo a propriedade , quer seja das ava-
rias dos homens e dos gados , quer dos temporaes.
Deste género pois c que vamos tratar com prcleren-
cia . até porque é praticável em quasi todas as lo-
calidades.
As sebes ou balsedos , simplesmente taes , não
formara tapume sutlicienlc nos primeiros annos de
sua plantação, porque em quauto os arbustos são
novos e tenros não fazem obstáculo. Indispensável é
184
O PANORAMA.
porlanlo ou misturnr na plantação os dois methodos
levantando valado sol)rc o qual se firmom as plan-
tas e sementeiras , ou deíeiídcndo cstis com barro-
ca ou garganta de fosso largo e profundo. Arraiga-
das porem as plantas , e fcilo balsedo , preciso não
é já o trabalho da conservarão e repararão do va-
lado c barroca.
A escolha das arvores ou arbustos para as sebes
será determinada pelo clima e pela natureza dn so-
lo : os cultivadores porem não necessitam fazer gran-
des observações e raciocínios para isto; basta atten-
dcr para aquellas que mais facilmente crescem e
|iros[ierani espontaneamente na localidade, e prefe-
rir estas. Convém entretanto em todo o caso mistu-
rar neste género de plantações arvores e arbustos ,
ou estes com as hervas e plantas que se emniara-
idiam c se prendem naturalmente áqucUes , porque
somente assim se consegue ura tapume impenetrá-
vel. Assim que , o espinheiro , o azevinho , o pilri-
tciro , a silva , o junco bravo , o tojo , e a figueira
do inferno , e outras plantas espinhosas e ponleagu-
das serão convenientemente intermeadas com os de-
mais arbustos ou arvores. Em geral eis a resenha
das plantas que mais se costumam adaptar aos dif-
fcrcntcs climas.
Áo mcin-ãia.
Homãscira [grcnadier].
Açofeifcira [jujubierl.
Zimbro [gencvrier].
Sabugueiro [sureau].
Carrapateiro [ricin , ou
pignon de 1'lndc].
Abrunheiro [nerprun].
Esteva [lada]. _, ■;,
Ao iwrtc c no centro.
Loureiro [laurier].
Canna [roseau].
Pilriteiro [aubepine].
Alfenciro [Iroène].
(irozelheira [groseillcrl.
Azevinho [houxl.
Marnrelleiro [cognassier],
Sanguinho [cornouiller].
Amexieirabr. [prunelier]
Acácia [acácia].
Com quaesqucr destas espécies se deverá plantar,
segundo as circumstancias e as localidades, o jun-
co , a silva , a carça , o tojo , e muitas outras que
ajudam a formar o balsedo. i\os campos desabriga-
dos , e mais sujeitos ás impressões do vento , con-
virá preferir as plantas que formam maior altura ,
como a canna , o loureiro , o carrapateiro , e ovitros
que prestam melhor abrigo. Nas localidades cm que
houver melhor industria , e consummo productivo ,
convirá preferir o marmeleiro , a romeira , o sabu-
gueiro , a silva fêmea que produz amoras , a amei-
xieira brava , e outras que fructificam. O espinhei-
ro alvar , ou pilriteiro [aubepine] , alem de ser um
arbusto formoso que alegra , regala o olfato com
suas flores odoríferas : a esteva , que não regeita o
terreno mais ingrato , e que resiste á sequidão e
temperatura abrazadora do Alemtejo , embalsama o
ar na primavera , c no estio com suas llorcs c fo-
lhagem aromática.
l'ma rccommenilação porem devemos aqui consi-
gnar , «til aos cultivadores e proprietários que se
servirem desta espécie de tapumes ; e c que clles
tem também seu género próprio de cultura , c não
[jodem ser abandonados ao desleixo , muilo com-
mum na nossa terra. O que or(iinariamcnte se vè é
deixar crescer e estender á vontade as arvores c
arbustos das sebes c valados, o que produz muitos
inconvenientes, como são , comer demasiado a su-
bstancia do solo alargando suas raizes . assombrar
as searas e os fruetos da terra, prestar asylo c cria-
ção aos pássaros , bichos , e auiraacs damninhos ,
alem da deformidade desagradável de um balsedo
informe e desigual. Indispensável é portanto que os
cultivadores se provam d'uma tizoura de jardineiro
para irem aparando e dispondo os arbustos, em
quanto tenros , a formarem fda direita c aprumada.
Devem igualmente revestir e encher os vasios ou
laciuias cora a nova plantação , tapar os bociros ou
foramines que lhes fazem os bichos , e puxar a ter-
ra para a raiz das plantas. Estas precauções se to-
mam na estação morta, isto é , no inverno, quan-
do os trabalhos do campo cessam.
J. da C. iV. C.
Receita para fazer tinta verde d' escrever. — Dei-
tem n'uma panella pequena, ou tacho, de barro
vidrado , meio quartilho d'agua com duas onças de
vcrdete moído : façam ferver o mixto por espaço de
meia hora, mexendo-o sempre com um cavaco, de-
pois juntcm-lhe uma onça de cremor de tártaro , e
cilem o liquido . que porão novamente ao lume ate
íicar em duas terças partes. Esta tinta serve per-
feitamente para escrever, como as vulgares, preta
ou encarnada.
Áynas comhustiveis. — Citam-se muitas fontes que
tem a singular propriedade de lhes pegar fogo nas
aguas , como se fossem materiaes combustíveis ; c
a verdade é que ardera como os licores alcoólicos ,
ou os óleos. Presurac-se que algumas contém gazes
de sua natureza ínflanimavcis, emanados de minas
de ferro , de cobre , de zinco c de estanho , dissol-
vidos pelos ácidos muriatico e sulphurico ; e que
outras se achara impregnadas de bitumcs , princi-
palmente de naphta e petróleo {•) , matérias que
fluctuam acima d'agua, c ardem no meio delia, co-
mo o pez e o alcatrão.
Á primeira classe pertence o lago ardente da Is-
lândia , que 6 provável se tenha muitas vezes in-
tlammado espontaneamente, queremos dizer sem in-
tervenção externa , e por combustão produzida pela
combinação e eíTervcscencia dos materiaes, que ncl-
le supcrabundam. — lia pouco , descobriu-se na
Carolina [União Americana] uma fonte que fornece
gaz sufficiente para allumiar uma povoação ; para o
que é bastante encaminhar tubos ou canos deriva-
dos do manancial para as casas particulares. (::)
Tva segunda classe estão as fontes bituminosas. A
mais celebre é a de lialaghan , na Ásia ; pois que
fornece diariamente 500 libras de naphta. A pouca
distancia das margens do famoso Tigris acha-se o
bitume em tal abundância , que apesar de recolhe-
rem muito , vai parte dellc para o rio , onde voga
á tona d'agua ; quem por ahi navega faz ás vezes
seus fogos de S. João , pondo fogo a essas parcel-
las, quando tem vento e corrente de feição que som
perigo o possam fazer , porque a tão larga extensão
se pode comraunicar que appreseiila aos cspoctadu-
res a vista de um rio incendiado.
1'Aiii não offendermos cm nossos escriptos a opi-
nião publica dos contemporâneos expomo-nos a fi-
gurar de tolos c ignorantes na posteridade.
{') Vide solire eslas duas substancias a pag.
vol. 1.° da 1.' Serie.
(::) E'Fredonia. na Nova-Yorck ; vid. pjg
Tol. 5.° da Serie l-"
23 n d<.
280-
77
o PAI\ORA3IA.
18j
TEII1PI.O I>£ S. GONÇALO S ANASANTE.
S. Go.vçAio d'Aniarante , tão venerado nas provín-
cias do norle como Santo António em todo o reino,
leve o berço na limitada aldèa de Arriconlia á bei-
ra do pequeno rio Vizella , termo de Guimarães:
poucas memorias ha de sua meninice . rans sabe-se
que nascera da nobre familia dos Pereiras : cres-
cendo em virtudes, destinou-se ao estado ccclesias-
lico , para o que se preparou, e seguiu os estudos,
no paço do arcebispo de Braga cora tal aproveita-
mento e exemplar vida , que o prelado o pro>eu
sendo ainda sacerdote moço na igreja de San-Pajo
de riba de Vizella com o titulo d'abbade: foi cum-
pridor fiel dos seus deveres , e zelosíssimo do bem
do rebanho que lhe haviam commettido ; e só o dei-
xou para levar a cabo a peregrinação , que intenta-
ra a Roma e a Terra-Sania : tornou á pátria depois
de dilatada ausência de quatorze annos , mas achou
jsurpada a igreja pelo eucommendado que nella
deixara , o que o poz em muito apuro de pobreza :
ieu-se então a fazer missões por todo Entre Douro
e Minho com verdadeiro zelo evangélico, a cujo
respeito diz o elegante chronista dominicano. —
'Era o tempo miserável era desconcerto de vidas,
3 cegueira nas cousas da fé. Foi sua pregação tocha
para as ignorâncias , norte e guia para desviar dos
perigos da culpa e encaminhar os peccadores para
) céu. Ensinava e allumiava , como pai zeloso a fi-
lhos amados. Xo meio destes cuidados tomava co-
mo ferias alguns dias para si. Buscava logares soli-
tários em que desse pasto ao espirito de divinas con-
templações. Era naquella idade verdadeiro deserto
todo o sitio e comarca , onde hoje é a villa d'Ama-
rante , sitio não só ermo, por apartado da genle e
povoado, mas temeroso por altura de montes, pro-
fundeza de valles, aspereza de penedias e mattas
sspessas , e sobre tudo pela corrente impetuosa e
;scura , com que profundamente lhe lava as raizes
3 rio Tâmega , entalado aqui cora outras montanhas
JcjiHO 17—1843.
da parte confraria, igualmente dependuradas c a-
gras, e que fazem crer a quem eslá sobre ellas que
não pôde haver divisão, nem corrente daguas em
meio. Accrescenla horror a vista da empinada ser-
ra do Marão , que coberta de neve , grande parle
doanno, parece ficar pendente sobre as cabeças.
Xeste posto se escondia , e achava sua alma tanla
consolação [devia ser com a lembrança de outros
similhantes que vira nos desertos de Palestina e ri-
beiras do Jordão] que veio a edificar nelle uma pe-
quena ermida, que dedicou á Virgem Mãi de Deus,
para o lograr mais de assento, quando podesse.u
.indados tempos entrou na ordem religiosa de S.
Domingos, na casa de Guimarães, admiltido por
outro varão porluguez , de quem reza também a
Igreja , S. Pedro Gonçalves Telmo , sanlo a que os
navegantes professam grande devoção. Julga-se que
tomara o habito no anno de 12ol. Disputaram os
monges benedictinos aos frades dominicanos .i glo-
ria de lerem por confrade a .S. Gonçalo, sobre o
que houve porfioso litigio , e se deu sentença em
Roma , no anno de 1615, a favor da Ordem de S.
Domingos.
Religioso professo, continuou Gonçalo a luzir em
santidade, empregando-se no ministério da divina
palavra : e entre as suas mui dignas emprezas é
sem duvida memoranda a edificação da ponte d'A-
marante ; obra [segundo as expressões do citado
chronista] que para muitos povos juntos f<)ra de
grande carga , e para um rei parecera muito custo-
sa , quanto mais para um pobre frade que de seu
não tinha mais que o breviário em que resava !• .
Cheio de zelo fervoroso, sollicilando esmolas, con-
vidando a gente das visinhanças, e dirigindo os tra-
balhos , sabiu com seu intento levantando a obra
pro\eilosa. Xarram os historiadores de sua vida por
essa occasião vários milagres.
(•) 3.* Parte Ja Historia do S. Dumingos
2.° Serie. — Voi.. II.
186
O PANORAMA.
Na ermida c local da sepultura do santo [que
ainda se venera] se erigiu o mosteiro , de que fize-
mos menção a pag. 34 deste vol. , e que se vè re-
presentado em nossa gravura , tal como se achava
no século passado. A pedido davilla de Guimarães,
(; por persuasão dos frades de S. Domingos, elrei
1). João 3.°, grande amigo e patrono destes, man-
dou metter mãos á obra, que teve começo emlS43,
tratando-se de a cfTectuar desde 1340.
Para que a capcUa-raór ficasse no sitio da sepul-
tura de S.Gonçalo foi mister empregar grandes di-
ligencias c não menos despezas : pendendo sobre es-
se logar um monte alio e fragoso, tiveram de o des-
fazer a picão « mas, [para nos servir-mos outra vez
dos termos de Fr. Luiz de Sousa] tudo vence um
trabalho aturado. E se for bafejado do céu, que
cousa lhe poderá resistir I Ficou o monte talhado a
prumo , tanto até as entranhas e centro delle , que
(orre toda a igreja a clivei com a sepultura do san-
to; e alem de todo o comprimento delia, que é
grande , faz no mesmo andar uma boa rua, entre a
jiorta principal e a rocha , que dá serventia para a
portaria do convento. Mas aqui se mostra e é de
vêr o muito que se alcançou com a força e mãos
di)S homens : porque sobe a rocha talhada e direita
para o céu , como se fora um muro de uma só pe-
dra; e em tanta altura que senhoreia todo o con-
vento e o mais alto ponto do telhado da igreja. Fi-
cou o convento com dois claustros , e suas fontes ;
obra bem feita , mas moderada na grandeza , como
convinha para em (erra fria , e pela baixeza do si-
tio ser sujeita a grandes nevoeiros ehumidados: os
dormitórios, ao mesmo respeito , de bom gasalhado
mais que fausto e sumptuosidade ; cerca grande de
horta , e frescura de arvoredos , ao longo do rio ,
de propriedades que depois se foram comprando.»
ECOITOMIA POLITICA. ■' ■ -''■
Considerações sobre o Curso d' Economia Politica do
Sr. Miguel Ckcvalier.
Depois de ter discorrido sobre dois dos pontos que
escolhêramos — vias de communicação , e institui-
ções de credito — resta-nos o terceiro que é a edu-
cação industrial , sobre o qual nos limitámos a no-
lar que não contestando ninguém a necessidade del-
ia, nem sendo, no geral, resistida pelos prcjuizos,
o que já não é pequeno passo , comtudo o desen-
volvimento de que carece está mais dependente do
que se cuida de certos commodos sociaes que hão-
(le ir nascendo do incremento da riqueza publica ;
porque a marcha ([uc cila segue c sempre esta —
\\r depois daqnclles commodos e melhoramentos ;
imitando, neste caso, as sociedades c os estadus
aquillo mesmo que usam , com bem raras exce-
pções , os particulares , que é não curarem do seu
aperfeiçoamento sem terem adquirido a segurança
da subsistência , e de certas fruições que tornam
agradável a vida.
Accusando o nosso atrasamento em todos es-
tes ramos , não devemos occuUar que se obser-
vam symptomas de melhoria conq)araiiva em al-
guns, i; um artigo da nossa fé que os esforços do
interesse |)articular são mais cllicazes para o bera
da sociedade do que a desvigilancia , os erros i e
as dissi|)ações dus governos o são para o detrimen-
to delia. Consoladora como esta crença é, ainda te-
mos penhor mais seguro de que não somos exem-
plo contrario ao principio regulador do progresso
económico das nações. Descobrem-se , entre nós ,
signaes que nunca mentiram de crescimento indus-
trial. Antes de os apontar , vejamos quaes contam
nessa classe economistas de celebridade nas quatro
escholas em que se divide a siencia , e nas cinco
principaes nações da Europa.
Segundo Smith (1) é um destes signaes a elevação
no preço da caça , porque a caça multiplicando-se
e barateando na proporção das terras incultas , di-
minuo c encarece á medida que estas se vão culti-
vando — isto é — á medida que a riqueza nacio-
nal augmenta. Outro signal é a elevação no pre-
ço do gado, o qual diminuo c encarece á medida
que os terrenos de pastagem se vão convertendo cm
terras de lavoura. E a elevação no preço dos ce-
reaes que denota a necessidade de explorar , ou o
facto da exploração de terras de inferior qualidade
em consequência deaugmento no consumo, augmcn-
to que resulta sempre de um acréscimo na produc-
ção. O ultimo signal é abaixa no preço real dos pro-
ductos fabris , que é sempre nascida de melhor di-
visão de trabalho , de aperfeiçoamento na industria
e nas machinas , e de abundância de capitães ; Ires
demonstradores infallivcis de que um paiz vae pros-
perando.
Say repete , por outras palavras , a mesma dou-
trina no que toca a productos da agricultura ,
guardando silencio sobre os cereaes , talvez porque
sobre a renda agricola segue iheoria differenle da
ingleza. Mas é a excepção, pois a regra geral, o
verdadeiro thermometro de que se auxilia para me-
dir a prosperidade de uma nação c o grau de ba-
rateza dos productos , os qiiaes o são tanto mais
quanto menos custaram a produzir; e o valor da
fortuna ou renda dos particulares tanto maior quan-
to mais forem os productos que possam obter com
ella.
Storch adopla , geralmente , a opinão de Smith
(Í2) : mas o seu meio particular do avaliar a condi-
ção económica das nações c este : divide-as nas que
emprestam , e nas que pedem emprestado : ás pri-
meiras considera — ricas, ás segundas — pobres (3).
Kau (4) , assentando ser mais fácil formar idéa
clara da riqueza de uma nação comparando-a a ou-
tras , do que comparando entre si as fortunas dos
seus naturaes , olha como indícios de que um po-
vo é mais rico do que outro, os seguintes — modo
de viver das classes de operários , ou gozo que lhe
permitte o seu rendimento — natureza e importân-
cia das emprezas em que se interessam os cidadãos
— grandeza das despezas governativas , feitas com
fins de utilidade publica , quando a nação as sup-
porla sem ruina e sem empobrecimento — emprés-
timos tomados ou feitos ao estrangeiro — c distri-
buição das fortunas pelo maior numero.
Schmaiz (5) contempla como signal de que uma
nação prospera ganharem as ultimas classes , pela
sua industria , alem do necessário ; eslender-se o
huo [palavra cora que elle designa a satisfação do
(t) Recherchcs , S,c. — Iradiicçuo de Ganiier tom. 2.°
pag. 139 e st-suinii-s Paris U:OSi.
(2) Coiirs d'Ecoii. J'ol. lum. 2." pai;. JUl alú lOj —
Paris 1I!2;!. ,,i. . ;
(■A) Tuni. I.° pag. 22C até 228. ^ •
(4) Triiili' cVEcon- Pot. Trailuci;r>o de Kemmeler pag.
66 e 67 vS^ ao e 81 —Paris 1840.
(.5) Econ. Pvl. — traducção — tora. l."paj. 10 — Pa-
ris 11)26.
o PANORA31A.
187
todas as precisões creadas pela civilisarão] pouco a
(Kiuco ; augtneiitando-se nas classes superiores era
gradação lai que os seus gozos não contrastem com
as pri\ações das outras..
Verri (6) descobre na multiplicação da popula-
ção o annuncio iofallivel do crescimento produ-
ctivo.
Sismondi (7) objecta a cada ura dos symplonias
<[i- prosperidade, quando isolados, poderem indu-
zir em erro : em seu conceito um acréscimo de po-
pulação , ou de producção , ou de exportação , ou
de numerário não prova que o paiz onde acontece
seja feliz, nem mesmo que se enriqueça: mas a
proporção, ajusta relação entre estes progressos ,
conservando a todos o commodo , essas provam.
Ferrier (8) assc^ora que uma nação é tanto mais
rica quanto mais artigos de consumo produz an-
nualmcntc.
Flores Estrada (9) julga que a única medida
exacta por onde se pódc apreciar a prosperidade
de um paiz é a elevação dos lucros que dá o seu
capital , porque essa elevação provém necessaria-
mente ou da sua industria ser mais productiva , ou
da faculdade de accumular e augmentar a riqueza
e a população ser maior ; em quanto ao contrario ,
a diminuição dos reditos procede necessariamente
da industria ser menos productiva , de ter diminuí-
do a faculdade de accumular a riqueza , e emfim
de terem augmentado os obstáculos que estorvam
o progresso da população.
Maltbus 1 10; affirma que o trigo tende natural-
mente a subir de preço a medida do adiantamento
da sociedade, o qual, augmentando o consumo,
obriga a recorrer a terrenos menos ferieis e de
mais dispendiosa cultura ; e que por uma rasão in-
teiramente opposta — a diminuição nas despezas do
fabrico nascida do aperfeiçoamento successivo da
industria e das machiuas — o preço dos artefactos
tende a baixar á medida que se amplia a rique-
za nacional. Reputa , pois , por característico deste
desenvolvimento a alta no preço do trigo , e a bai-
xa no dos productos fabris.
Por differentes ou encontradas que sejam as opi-
niões destes auctores na questão do que se trata ,
lia comtudo um testemunho de adiantamento eco-
nómico que nenhum delles recusa , confessando-o
uns, e outros admittindo-o implicitamente, em suas
obras. Esse testemunho de progresso que todos ac-
ceitam é o acréscimo na cultura e producção dos
cereaes. Estará estampado em nossos campos este
documento de prosperidade"? Sem duvida ! A abun-
dância mora hoje em districtos agrícolas onde a es-
cacez e a pobreza reinavam ha dez annos. Povoa-
ções apoquentadas estão convertidas em terras flo-
reccntes. Xumerosos trabalhadores se alcvantam á
cathegoría de pequenos proprietários. E quantos ,
pequenos proprietários antes da reforma , depois
que meia dúzia de leis lançaram sua benção ao so-
lo, não estão deitando á terra mais charruas do que.
em tempo anterior , deitava o mais poderoso dos
seus visinhos? Não importámos de fora um bago
(6) Econ. Pol. — traducção — pai. 108 e 109 — Paris
1799.
(7) Etudes, Sf-c. tom. 2.° paj. 168 e 169 — Briixel-
las 1838.
(8) Du gouvernement líans ses rapporls arec le com-
mcrce paj. 6 — Paris 1833.
(9) Cours . í"<"- — tradiiccão de Galiberl — tom. ].''
pag. 194 e 195 — Paris 1833. '
(10) Príncipes, í\-c. lraducq*io — tom. 1.° pa:. 278 —
Paris 1820.
de trigo , nós que ainda ha pouco veríamos morrer
de fome a l(iO mil dos nossos compatriotas se não
comprássemos a paizes estrangeiros o pão para ali-
menta-los. Os ceroaes que importávamos pelo ter-
reiro e outros porlos seccos o molhados , tomando
um termo médio entre os annos decorridos desde
1790 até 1819, montavam annualmentc a 100:000
moios, ou pouco mais; e tomando outro termo mé-
dio entre os annos decorridos desde 177!l ate 1831,
chegavam a 89:1)00 moios poranno. Quanto dispen-
diamos na compra destes 89:600 moios? :>:oOO con-
tos, reputando o trigo a tiOO r.' o alqueire, eaSOOr."
os outros cereaes. Produzindo nós agora o género
que comprávamos, que somraa acrescentámos áquel-
la que representa a renda bruta do paiz? 1:07o con-
tos, estimando a áOO r.' o alqueire de trigo, e das
outras espécies; estimação a que ninguém chama-
rá exorbitante. Se considerarmos o que deixámos
de dispender com cereaes estrangeiros, são 2:500
contos. Mas se attendermos á verdadeira vantagem
que alcançámos, a renda addiccional que havemos
de lançar em receita são 1:073 contos, os quaes se
distribuem em cinco partes — uma em salários pe-
lo trabalhador — outra em rendas pelo proprietário
— outra em lucros pelo rendeiro — outra em juros
pelo capitalista que empresta e adianta ao lavrador
— outra em impostos que recebe o estado. Se, con-
templando somente o principio da riqueza , despre-
sarmos o elemento da felicidade , e contarmos co-
mo quantidades negativas a vida , a subsistência ,
a receita do trabalhador , do rendeiro , do capita-
lista , e do estado , supprimindo , eliminando como
verli.TS de despeza as verbas que a estes tocara nos
1:07.5 contos, para deduzir, em ultimo resultado.
a renda do proprietário liquida de todo o gasto , e
offerecer o fructo da arvore sem avaliar nem o tra-
balho do tronco , nem o dos ramos , nem o das fo-
lhas , nem o de quantos agentes externos coopera-
ram para fecunda-la — ainda assim, o valor desse
fructo, dessa renda liquida — esqueleto descarna-
do , mas riqueza na mais escrupulosa accepção do
termo — será um valor considerável, seja este
valor ou renda liquida 30 contos que é menos de
3 por cento da renda total : estes 30 contos corres-
pondem a um capital de 1:000 contos incontesta-
velmente acrescentado aos capitães da nação. E não
só esse , senão também outros em bemfeitorias . em
gados, em utensílios ruraes que se hãode ter amon-
toado, porque sem elles não seria crivei ura au-
gmento de cultura como temos visto.
Haverá , alem deste , outros indícios de melho-
ramento? Xão posso duvidar de que os ha , porque
os encontro no cresciraento de alguns ramos da re-
ceita publica. Para demonstrar este crescimento es-
tabelecerei um ponto de partida e um termo de
comparação. Seja a epocha de 1820. A confronta-
ção de certos rendimentos públicos dessa epocha
cora os seus análogos na actual demonstram au-
gmento attcndivel nos últimos. Tenho diante dos
olhos um mappa dos rendimentos da mesma epo-
cha, e o orçamento de 1843 a 1844, e comparando
um com outro não affirmarei quanto o producto do
correio — da decima — do real d'agua — do subsi-
dio litterario tem augmentado ; e o rendimento das
alfandegas mostrado-se igual aos tempos mais prós-
peros do nosso commercio. — E não o affirmarei ,
não só porque orçamento e receita deGnitiva não são
a mesma cousa; mas ainda porque os dados, existen-
tes, de receita definitiva não poderiam entrar no meu
calculo sem os sujeitar a alguns descontos, cuja jus-
J88
O PANORAMA.
tificação spria prolixa e minuciosa demais para um
artigo de jornal, e sobretudo enfadonha piíra osqiie
o lêem. Mas assevero, sem lemor de errar, que
aqnella.s einco fontes de receita que apontei , tem
in(/ross(iil() , alg;nmas notavelmente. E para mim
teniio que ura .lugmenlo no rendimento do eorreio
se em parte pódc indicar melhor arranjo e systema.
que não disputo , neste estabelecimento , na maior
parle indica maior numero de transações commer-
ciaes , e até, diria eu , que maior numero de pes-
soas com noções de leitura e escripta, se assim co-
mo me proponho averiguar symptomas de progres-
so na riqueza , fosse meu intento buscar indícios
delle na civilisação. — (Conlhwa). A. d' O. Marreca.
A CAVERNA DE DIONYSIO.
As CAVERNAS ftindas appresenfam muitas vezes a
geral estrnctnra do orf;ãii do ouvido, aec mmoda-
da para receber e reflectir o som. Ha uma na Si
cilia , em que se nota ailificio humano ; c combi-
nada esta circumslancia com algumas ruinas, e cer-
tas disquisiçõcs de antiquários: parece qi-e ahi fo-
ra o decantado cárcere do tyranno da Sii Ília , que
[dizem os antigos fabuladores] o mandara construir
sob as abobadas de ura seu palácio , com tal estru-
ctura que havia um conducto encaminhado a uma
camará , secreta , onde quem applicasse o ouvido
podia escutar quanto na prisão se dizia; c era essa
a prisão dos criminosos contra o estado, isto é, da-
quelles de quem se arreceiava a tyrannia de Dio-
nysio. — É necessário saber que em Syracusa hou-
ve desse nome dois tyrannos , como enião chama-
vam aos que regiam os estados com poder quasi ab-
soluto , ou usurpavam o mando supremo, posloque
se conservassem certas convocações de assembleas
populares cm tempos incertos , e oulras formulas
das republicas gregas, donde a Sicília tomou em
muita parle leis, costumes, c industria. Esses dois
homens , Dinnysio o velho , e seu filho do mesmo
nome, apiiellidado o moço, viveram e dominaram
entre os aunos MO e 344 antes da era de Chrislo.
O primeiro sobresahiu nas discórdias civis da sua
pátria , quando dividida nos bandoí de Diocles e
llcrmocrates e prestes a cahir nas mãos dos car-
Ihaginczes , que invadiam toda a ilha , tendo-se já
apossado de Aggrigcnto. Coni o favor popular , e o
prestigio dos serviços políticos c militares para li-
bertar Syracusa do jugo dos estranhos africanos ,
medrou e conquistou o primeiro lugar da republi-
ca , promovendo a accusação e a queda dos outros
gcncracs e magistrados ; e por fim fcz-se o que dia-
mavam tjranuo, dominador do estado. Foi homem
hábil , que senhoreou meia Sicília , e ganhou pos-
sessões no continente italiano , teve allianças com
iis republicas gregas, rodeou a sua corte dos sá-
bios do seu tempo, cultivou as leltras e prote-
geu-as ; porem ao mesmo tempo era fero , e ciu-
mento , vingativo , e inclinado á rapina , tanto que
espoliou os templos e a este respeito conta Cícero
anccd'itas engraçadas. Commelleu atrocidades, con-
dcmnou cidadãos justos ; mas quanto ao modo de
exercitar as crueldades contaram alguns escriptores
cousas, que hoje ningucm acredita : tal é a histo-
ria do touro de metal onde as viclimas eram encer-
radas para que o fogo as assasse lentamente , sa-
hindo pelas ventas do louro os clamores dos mise-
ráveis por tal forma modificado que imitava os ber-
ros c bramidos do animal que representava. A fa-
brica da prisão especial e o conducto auscultatorío
no palácio de Dionysio é provavelmente outra pa-
trnnha. — Alguns attribucm ao filho as crueldades
do pai ; verdade é , segundo os mais acreditados
historiadores, que este sem possuir os talentos do
progenitor não degenerou antes requintou em malí-
cia.— O fim que (ivernm foi este: o pai morreu
d"cmbriaguez e enfartação de comidas n'nm ban-
quete , no atuio 307 antes de Chrislo , contando de
idade 63 annos , e de gt^verno 3S. — O filho, ex-
pulso de Syracusa , pela expedição de gregos sabi-
dos de C<irintho , capitaneados |)elo famoso Timo-
leon , c requeridos pelos súbditos que não podiam
su])p(irtar o tyranno, veio a acabar na (írecia, na
ridiíde de Ciirinlho , para onde o mandaram ; ahí
ensinou meninos, c confundiu-se com as mais or-
dinárias classes da povoação; o que elle fazia de
propíisito , para ser esquecido , se é verdade o que
rebita Justino no liv. 21.° cap. 6." de suas his-
torias.
o PANORAMA.
18'»
DCAS EPOCHAS E DOIS MONTMKNTOS , OD A GRANJA
BEAL DE AIaFRA.
HoivK entre nós um rei nnscido com urna indole
fíenerosa e mngiiifica : foi I). João 5." Favoreceu a
fortuna a grandiosidade do seu animo. Durante o
reinado desle princi|)e as entranhas da America pa-
reciajn converter-se em ouro, e a terra brotar dia-
mantes para enriquecerem o tliesouro portuguez —
c o nosso primeiro rei do século IS.° pode emular
Luiz 14.° cm fasto e magnificência. Il.i, porem, dil-
ferenças entre os dois mooarclias: l,uiz li.°. niai-.
gucrreador (|ue guerreiro, malliaratou o sangue de
seus súbditos em conquistas otereis ; 1). Joiio .'5.°
mais pacífico que tímido, comprou sempre, sem
olhar ao preço , a paz externa dos seus naturaes.
Luiz 11." levou a altíssimo grau d'esplendor as let-
tras c as sciencias : D. João o.° tcntou-o ; mas fi-
cou muito áquem do príncipe francez. Devemos to-
davia lembrar-nos de qae Luiz 14." era senhor de
uma vasta monarchia , e D. João 5.° rei de uma
nação pequena. Uma litteratura extensa e ao mes-
mo tempo vigorosa só apparece onde ha muitos ho-
mens. É como a grande cultura, que só pôde fazer-
se em opulentas propriedades, e dilatados terrenos.
D. João 5." teve como Luiz 14.° o seu Louvre;
mas um Louvre em harmonia com o caracter, não
tanto religioso como beato e hypocrita, do seu paiz
naquella epocha. Jlafra ficou duvidosa no desenho,
entre o mosteiro e o palácio. As duas entida<les ar-
chitectonicas compenetram-se ahi d*um modo inex-
tricável. A purpura está lá remendada de burel ; o
burel alindado com purpura, e o sceptro de rei en-
laça-se cora a corda d'esparto , ao passo que a al-
pargata franciscana ousa pisar os degraus do thro-
no. Os que sabem quão corrompidos foram os cos-
tumes em Portugal no princípio do século passado ,
e quão esplendido e ostentoso foi o culto divino ;
quão brilhante foi a corte porlugueza nesse tempo, e
por quão frouxas mãos andou o leme doestado, não
precisam vèrMafra. Mafra é a imagem de tudo isso.
Um grande edificio, fosse qual fosse o destino
que seu fundador lhe quizesse dar. é sempre e de
muitos modos um livro d'hisloria. Osquenelle bus-
cam só um typo por onde aíTerir o progresso ou de-
cadência das artes na e|iocha da sua edificação ,
Icem apenas um capítulo desse livro. Os castellos ,
os templos, e os palácios, — triplice género de mo-
numentos que encerra em si toda a architectura da
Europa moderna — formam umachronica immensa,
em que ha mais historia que nos escriptos dos his-
toriadores. Os architectos não suspeitavam que vi-
ria tempo em que os homens soubessem decifrar
nas moles de pedras afTeiçoadas e accumuladas a
■vida da sociedade que as ajuntou , e deixavam-se
ir ao som das suas inspirações , que eram determi-
nadas pelo viver e crer e sentir da geração que
passava. Elles não sabiam , como os historiadores ,
que no seu livro de pedra , também como nos da-
quelles, se podia mentir á posteridade. Por tal mo-
tivo foi a architectura sincera.
Sfafra é um monumento rico, mas sem poesia , e
por isso sem verdadeira grandeza : é o monumento
de uma nação que dormita apoz um banquete co-
mo os de Lucullo : é o toucador de uma Laes ou
Phrine assentado dentro do templo do Deus dos
christãos, e sob outro aspecto, é a beataria d'uma
velha tonta , affeclando a linguagem da fé ardente
e profunda d'Origenes ou de Tertulliano.
Sem contestação — Jlafra é uma bagatella mara-
vilhosa , o dixe de um rei liberal , abastado , e
magnifico; é pouco mais ou menos o que foi Por-
tugal na primeira melado do século 18.°
(lollocai pela imaginação .Mafra ao pé da Batalha,
e podereis entender quanto c clara e precisa a lin-
guagem destas cbronicas, lidas de poucos, em que
as gerações escrevem mysteriosamcntc a historia do
seu viver. A Batalha é grave como o vulto homéri-
co de D. João 1.", poética e altiva como os caval-
leiros da ala de Mem Itodriguez , religiosa , Irau-
quilla , santa como D. Philippa rodeada dos seus
cinco lilhos. As mãos que edificaram St.'' Maria da
Victoria , meneando as armas em Aljubarrota , de-
viam ser vencedoras. A Batalha representa uma ge-
ração enérgica , moral , crente : Mafra uma geração
afeminada, que se finge forte e grande. A Batalha é
um poema de pedra : SIafra é uma semsahoria de
mármore. Ambas, ecclios pcrennes que repercutem
nos séculos que vão passando a expressão complexa,
e todavia clara e exacta, de duas epocbas históricas
do mesmo povo, sua juventude viçosa e robusta, e
sua velhice cachetica.
O caracter de um monumento do tempo presente
não pôde ser por certo um edificio gigante, um
templo, ou ura palácio. Onde as crenças religiosas
vacillam como a luz que se apaga , o templo seria
uma pngina d'hisloria fabulosa : onde a pobreza ex-
trema substitue a riqueza, um tanto estúpida e fas-
tosa com mau gosto , o palácio esplendido seria um
capitulo anachronico. O monumento deve resumir a
sociedade , e em nenhum desses géneros de memn-
randiím se acharia representado o actual existir.
Que somos nós hoje? Uma nação que tende a re-
generar-se : diremos mais: que se regenera. Re-
genera-se, porque se reprehende a si própria ; por-
que se resolve no lodaçal onde dormia tranquilla ;
porque se irrita da sua decadência , e já não sorri
sem vergonha ao insultar d'estranhos ; porque prin-
cipia, emfim, a reconhecer que o trabalho não des-
honra , e vai esquecendo as visaicns senhoris de fi-
dalga. Deixai passar essas paixões pequenas c más
que combatem na arena politica , deixai flucluar á
luz do sol na superficie da sociedade esses cora-
ções cancerosos que ahi vedes ; deixai crguerem-se,
tombar, despedaçarera-se essas vagas encontradas e
confusas das opiniões I — Tudo isto acontece quan-
do se agita o oceano ; — e o mar do povo agita-se
debaixo da sua superficie. O sargaço immnndo , a
escuma fétida e turva hão-de desapparccer. Um dia
o oceano popular será grandioso, puro e sereno co-
mo sahiu das mãos de Deus. A tempestade é a per-
cursora da bonança. O lago asphaltite — o Mar-
Morto — esse é que não tem procellas.
O nosso estrebuxar, muitas vezes colérico , mui-
tas mais menlecaplo e ridículo, prova que a Euro-
|)a se enganava quando cria que esta nobre terra do
ultimo occidente era o cemitério de uma nação ca-
dáver. Vivemos : e ainda que siniilhante viver seja
o delírio febril de moribundo, esta situação violen-
ta , aos olhos dos que sabem ver . é uma crise de
salvação, posto que dolorosa, e lenta. Confiemos e
esperemos: o nome portuguez não foi riscado do li-
vro dos eternos destinos.
Um dos signaes evidentes da restauração social
do paiz, e ao mesmo tempo o caracter mais notável
que distingue esta epocha é o seu movimento in-
dustrial — industrial na mais extensa significação
da palavra. — Primeira entre as diffcrentes indus-
trias é a agricultura, e a .Tgricultura tem incon!'-^-
tayelmente sido o uosso principal progresso.
li)(l
o PAINORAMA.
Qual será portanto o monumento que melhor re-
suma este período de regeneração? — Será o aspe-
cto do solo, o viro dos campos, a abundância substi-
tuída á escaccza na morada do homem laborioso.
Arroteai algumas geiras de terra : em um marco
esculpi a data dessa transformação : cobri a super-
fície de Portugal destes marcos. Eis ahí , não um ,
porem mil monumentos que significarão o espirito
«lo presente.
Plantai o bosque na serrania escalvada : que elle
braceje virente para o céu , e enrede as suas raízes
nas rachas da penedia. Agitada pelo vento, a sel-
va com o seu rugir irá contando a cada século
que nascer as tendências laboriosas do nosso , que
já começam a appareccr. Os cimos das montanhas são
as verdadeiras aras de Deus : é lá que oravam as
uações virgens. Santificai a vossa religião de patrio-
tismo pelo culto universal e primitivo : o bosque
murmurando com o espirar da aragem é um hymno
ao Ancião dos Dias : que este hymno nos consagre
a memoria ao amor e gratidão de nossos filhos !
Ao lado dos paços monásticos de Mafra , monu-
mento de uma era de vaãs grandezas, vai-se hoje
alevantando sem ruído o monumento modesto , mas
eloquente e santo, da idéa progressiva da actualida-
de. Ao lado dessas pedras amontoadas , desses tor-
reões gigantes, macíssos, e pesadamente estúpidos,
serpeam já os prados virentes por veigas e valles ,
cobertos ainda ha pouco de abrolhos e urzes. Con-
trastando com os lanços de muralhas caiadas da
ochre , que amarelleja bestialmente , como um cor-
dão de ouropel enfiado em diamantes , por entre
a còr severa dos mármores tisnados pelo tempo ,
vèem-se ao longo verdejar os pinheirinhos, que co-
roam as alturas ao norte e oriente daquelle edificio
monstruoso, hybrido, e extravagante como u.ma com-
posição pseudo-poetica da Phenix-Pienascída. As fo-
lhas do terra cultivada dílatam-se pelas chapadas
ií encostas , várias na còr segundo a altura das sea-
ras , ou conforme a qualidade do solo , nos sítios
onde ainda as sementeiras não surgem no começo
do germinar. É como um xadrez enorme, cujas ca-
.sas se houvessem repartido ao acaso n'um tabolei-
ro irregular e immenso.
A vontade real fez appareccr o edificio : outras
Vontades Reaes fizeram nascer agranja-modelo. Pa-
ra a primeira requcría-se ouro e força ; pnra a se-
gunda intelligencía e amor do paiz. O sceptro foi
robusto c potente quando amontoou aquella penedia
lavrada e esculpida : o sceptro é o symbolo da paz
e da beneficência quando em vez de converter pão
em pedras, converte gandra bravia e estéril em um
nobre exemplo que mostre ao povo onde está a sua
«Icrradeíra esperança — o progresso da industriai e
o amor do trabalho.
Para a maravilhosa inutilidade de D. João 3."
gastaram-se por largos aimos os milhões que de
contínuo nos entregava a America : o lidar accu-
mulado de cincoenta mil homens consumiu-se em
<lesl)astar e polir essas pedras hoje esquecidas ,
([lie apenas servem para alimentar por algumas
horas a curiosidade dos que passam. È uma ver-
dade cem vezes repetida , que o preço de Mafra
leria coberto Portugal das melhores estradas da
linropa ; mas nem por ser trivial essa verdade dei-
xa de ser dolorosa. E todavia tal preço era o me-
nos '. — As maldições submissas dos que foram ar-
rastados de todos os ângulos da monarchia para es-
ta grande anuduva nacional, e aslagrymas das suas
famílias, não as pòdc suífocar a adulação cortezaã ;
transsudarara até nós nas paginas da historia, e ca-
hindo sobre o ataúde dourado do príncipe que as
fez verter, deixaram ainscripção do seu nome man-
chada de uma nódoa que o tempo não gastará.
A vasta e risonha granja que veceja ao lado do
negro e carrancudo edificio não custou uma só mea-
lha dos dinheiros públicos ; não arrancou uma la-
gryma. Não são maldições o seu fructo : são bên-
çãos dos que vivem : serão no futuro bênçãos da
posteridade.
O convento-palacio , nascido sob manto de pur-
pura , alegre na sua juventude e habituado a pom-
pas de longos annos, ahi está, illustre mendigo, as-
sentado hoje n'um como ermo , onde a vida robus-
ta de séculos , que lhe fadara o fundador , se vai
convertendo em antecipada deerepidez. Inutilmente
com a sua grande voz de bronze elle pede que o
abriguem das injurias das estações. As aguas do
céu, filtrando-lhe por entre os membros, lá os vão
lentamente desconjuntando, o sol cresta-lhe a fron-
te e faz prosperar os musgos, que lhe arrugam a ri-
ja epiderme : o vento redemoinha atravez das suas
janellas mal seguras, e bramindo naquellas solidões
do seu recinto, atira ao rosto das estatuas, aosacan-
thos dos capiteis , á face polida das paredes de
mármore , o pó que tomou nas azas passando pelas
serranias. No meio doestrepitar do mundo ninguém
escuta o gemer do gigante de pedra ; ninguém se
lembra de tirar do pecúlio do estado a mais pe-
quena somma para elle. E porque? Porque a sua
miséria não falia aos corações nem aos entendimen-
tos. Memorias gloriosas? Não as ha lá. Utilidade?
Para que serve essa pedreira immensa.
A Granja , porem , de Mafra nem teme as aguas
do céu , nem os raios creadores do sol : povoa os
seus agros outeiros de pinhaes , a cujo abrigo zom-
bará em breve da fúria dos ventos. Não vae pedir
soccorros á munificência publica : — útil já aos pe-
quenos e humildes , sè-lo-ha também algum dia a
Quem a fez nascer — útil cm proveitos matcriaes ,
e , o que mais vale , em fructos de verdadeira glo-
ria.
Ha quatro annos apenas , que os muros da cerca
ou tapada de Mafra, estirando-se como serpe mons-
truosa por três léguas , alravez de valles e outei-
ros, encerravam um vasto maninho cuberto de çar-
ças rasteiras, onde raro se via alevantar uma arvo-
re solitária , curva e pendida pelo açoutar contínuo
das ventanias, ou algum pequeno e enfezado pinhal
perdido no meio daquelles maltos inúteis. Era um
symbolo de barbaria ao pé d' um symbolo de opu-
lência. O edificio e o parque pareciam significar no
seu conjuncto — o orgulho tendo por fundamento
o nada.
lia três annos ordenaram SS. MM. se começas-
sem a desbravar esses terrenos incultos. O actual
intendente das cavalheriças reaes , o Snr. A. Seve-
rino Alves , foi encarregado de administrar as can-
delárias alli estabelecidas , e da direcção daquelle
arroteamento. Obra de uma sexta parte da tapada
mais próxima do edificio dcstinou-se immediata-
nicnte para a cultura , e os trabalhos principiaram.
O estado em que estes se acham , comparado com
as despczas , proporcionalmente diminutas , que se
tem feito , provam que talvez houvesse quem fosse
tão digno de ser encarregado de rcalisar o pensa-
mento generoso , nobre , c civilisador dos nossos
I'rincipcs, mas que ninguém por certo o seria mais
que o Snr. A. Severino Alves.
O que vamos dizer não é completo ; não é a his-
o PANORAMA.
191
toria particulnrisada de tudo o que c\aminámos
com os próprios olhos ; porque não queremos ser
Iirolixos. O nosso intento c ver se contribuímos pa-
ra o verdadeiro progresso da terra em que nasce-
mos. Sc os grandes ou pequenos |)roprietarios que
abandonam os seus campos c herdades, ou que des-
prcsam os meios de as tornar mais produclivas , se
mostrara surdos ao bradar da imprensa e de lodos
(IS homens sisudos , revocando esta malavcnturada
nação á actividade e ao trabalho , que se envergo-
nhem ao menos com exemplo que lhes dá o throno.
Em quanto os governos c os parlamentos ponderam
a conveniência , a necessidade do estabelecimento
das quintas d'estudo , em Mafra , sem ruido , sem
verbosos relatórios e discursos , se vae estabelecen-
do e aperfeiçoando uma granja modelo, que esperá-
mos faça sentir dentro de pouco á agricultura por-
lugueza o seu benellco iniluxo. Certos de que SS.
MM. SC collocarão <á frente do movimento agricola
do paiz , porque o augmento da agricultura deve
trazer a prosperidade aos seus súbditos , neste jor-
nal, que se derrama por todos os ângulos de Portu-
gal, daremos noticia das experiências que se forem
fazendo , dos melhoramentos que se forem introdu-
zindo nas propriedades do apanágio da Coroa. A
nossa situação especial nos habilita para obter a es-
te respeito exactas informações. A utilidade que da-
hi possa resultar aos agricultores , retribuam-na el-
les em gratidão aos Principes que souberam ser di-
gnos do amor dos porluguezes , e entenderam ple-
namente o grave e progressivo pensamcnlo deste
século.
Escolhida a porção de terreno na tapada de Ma-
fra , que se devia destinar á cultura , dividiu-se
aquella parte em oito grandes tractos ou folhas,
cujo arroteamento se tem seguido succcsiivamenle
e sem interrupção até hoje.
O systema adoptado para este fim foi o melhor
que era possível imaginar. Alem da cultura feita á
custa da Casa Real , vão-se distribuindo aos habi-
tantes da villa de Mafra os terrenos que elies que-
rem desbravar. O inteiro uso-fructo destes terrenos
fica pertencendo por três annos a quem os converte
de maninhos que eram em terras aráveis , e ainda
que o solo da tapada me pareça de inferior quali-
dade, e se achasse muito deteriorado pelas plantas
ruins de que estava cuberto , todavia essa cultura
tem dado excellentes resultados. A producção da
batata , planta tão conveniente para terrenos arro-
teados de novo. ha sido tal. que no anuo passado se
alevanlarara na tapada 1.800 carradas deste utii
solano , cuja introducção na Europa tornou im|)os-
siveis as fomes espantosas, que d'annos a annos lhe
desbastavam a povoação. Nessas encostas e veigas
onde , tão pouco tempo ha , os olhos esmoreciam
alongando-se pelos çarçaes , vèem-se estendidas as
searas ,: os campos de milho e os íjatataes, e nos
rostos dos habitantes da villa e dos districtos cir-
cumvisinhos, e nos seus trajos e porte, vè-se que se
o amor da taberna tem diminuído , os hábitos do
trabalho , e por isso a abastança tem augmentado.
Mais de vinte egoas, mais e filhas, e de quaren-
ta poldros, constituem já uma candelária que vai
adquirindo rápido crescimento. Cincoenta vaccas
entre as de casta vulgar , torinas e de uma excel-
lente raça asiática, ahi são tratadas com esmero tal-
vez não inferior ao que se emprega na começada
candelária. Os estábulos e curraes , ordenados pe-
los melhores methodos modernos, e com atlenção
a importantes considerações hygienicas , seriam um
bom modelo para aquellcs que pensam reduzir-se o
tractamento dos gados unicamente a dar-lhes muito
de comer, não imporia se bom ou máu.
Ainda que na granja de Mafra os animaes sejam
alimentados, por via de regra, á manjadoura. syste-
ma boje aconselhado nos paizes mais adiantados co-
mo preferível Jior graves mcjtivos, nem por isso dei-
xa de haver neste estabelecimento agricola muitos,
prados ])astaveis , compostos , alem da azevém , de
uma mistura de certo numero daqucllas plantas de
que separadamente se compõe os arlificiaes. Estes ,
porem , merecem com rasão os espcciaes cuidados
do Sfir. Severino .\lves.
As plantas que constituem estes prados , tanto
regados como scccos , são a luzerna , os trevos ,
branco c encarnado, o onobrychis [sainfoin], a ana-
fa , a cenoura , e a ervilhara. .\ cultura d'algumas
destas forragens ainda se limita a diminutas expe-
riências , mas a de outras já tem adquirido bastan-
te extensão. — .Vdmirámos sobretudo um luzernal ,
onde o mcthodo da transplantação produziu magní-
ficos resultados. Cada pé de luzerna lançando em
roda os seus muitos rebentões ou filhos, forma uma
espécie de mouta robusta , que produz em cada
corte muito maior porção de pasto do que produzi-
ria uma superficie egual á que occupa, semeada de
luzerna que não fosse transplantada.
O incremento que estes prados podem ter naqucl-
les , d'antes tão pobres e tristes , hoje tão ricos e
risonhos terrenos , é d'extrema importância. Duas
enormes lagoas , uma das quaes é constantemente
refrescada e suprida por uma pequena veia d'agua
pcrcnne , foram limpas e vedadas , construindo-se
canos subterrâneos por onde se hajam de sangrar
convenientemente. Estas lagoas, collocadas em cer-
ta altura , podem regar um valle extensíssimo , óp-
timo para o augmento de prados.
A silvicultura , essa parte tão interessante e tão
bella da sciencia de agricultar . tem em Mafra um
terrivel inimigo — o noroeste. Este vento sopra ahi
com violência extraordinária. Alguma arvore sil-
vestre, que vivia solitária no meio daquelles mai-
los rasteiros, vergada para sueste na altura das ar-
rancas , estende rachytica os seus ramos açoutados
pelas ventanias quasi parallclos cora a terra. Esta-
bcleccu-se porem um systema d'abrigos , que deve
dentro d'alguns annos tornar não só possível , mas
até fácil , a propagação de arvores de floresta e de
fructo. Os pinheirinhús bravos [pimis marilima 1 co-
brem já os cabeços escalvados que se alevantam
por meio das chapadas , encostas , e valles , e os
castanheiros, carvalhos, e azinheiros bordam os ca-
minhos : estes bosques , quando crescidos , annula-
rão em grande parte a violência dos ventos , e en-
tão será possível o plantio de outras arvores silves-
tres e fructiferas , principalmente das oliveiras , de
que já se ^ão preparando extensos e bem ordenados
viveiros.
Uma consideração que occorre naturalmente ao
imaginar semelhante extensão de cultura , é a dos
adubos, c a do modo de os fazer progressivamente
augmenlar. Acerca deste ponto capitalissimo, dare-
mos brevemente curiosas e interessantes noticias
em um artigo especial. Então tiremos occasião de
fallar dos differentes methodos de amanhar as lei-
ras , que progressi\amente se vão introduzindo na
granja de Mafra.
Os instrumentos aratorios e mais macbinas do
serviço agricola são construídos no mesmo estabe-
lecimento em ofllcina para isso priccinalmeule de-
192
O PANORAMA.
putada. Ahi se enconlra a charrua inglcza , a ara-
vera grande de uma aiveca , a pequena de duas ,
o semeador , as grades triangulares e de diversos
Icitios , o trilho de debulhar, o engenho de traçar
cevada, carros inglezes , &c. alem dos inslrumen-
tus próprios do paiz construídos com perlVição.
Tal é o rajjido quadro da transformação que ap-
presenta uma parte desses maninhos inuleis da ta-
pada de Mafra. Importante em si, semelhante trans-
formação muito mais o tem sido pela iniluencia
que o exemplo produz naquelles arredores:, o agri-
cultor, que por assim dizer palpa as >anlagei;s que
resultam de um sysLema illustr.ido de agricultar ,
vae abandonando as suas grosseiras usanças , que
lodos os discursos dos livros não alcançariam ex-
tirpar. Mafra está sendo um foco de luz, uma fon-
te de progresso agrícola. Entre os benefícios que
tem produzido este é porventura o maior. Aquella
Vasta granja, se proporciona a muitos a abastança,
o alimento para o corpo , otíerece a muitos mais as
revelações da sciencia — o alimento para o espi-
rito.
O edifício ahi está mendigo, abandonado, cance-
roso já , e inulil , ao lado da granja cheia de viço ,
rica, generosa, e abençoada d'esperanças. São dons
monumentos de dous séculos diversos, ambos obras
de Reis. Que a philosophia julgue um e outro , e
julgue lambera as vontades e as intelligencias que
lizeram surgir um c outro.
(A. Herculano.)
botânica JHíííira.
N. B. Tendo recebido a seguinte memoria , não
hesitámos em dar-lhe publicidade para que as au-
ctoridades e os facultativos , que exercitarem seus
cargos na Africa oriental, verifiquem as propricila-
des dos vegetaes aqui mencionados ; e lambem nos
lembra que alguns pharmaceuticos poderão mandar
buscar specimens, por onde se reconheça a sua uti-
lidade e applicação.
Desrripção de varias arvores, arbustos, hervas e plan-
tas mcdicinaes que existem na villa de Tcte , e da
appliearão que delias fazem os naluraes do paiz
ans usos mcrlianicos da vida, e nas doenças de que
são allacados.
A VILLA deTéte está situada a 60 léguas ao noroes-
te da villa de Senna , a qual dista também outras
CO léguas da villa de Qiiilimane que está situada
5 graus ao sul de Moçambique.
Arvores.
Muxetécf) , nu raiz de Santo Agostinho . como lhe
chamam cm Moçambique. — A llòr desta arvore [que
floresce nos mezes de novembro e dezembro] é pe-
quena , araarella e cheirosa : dá umas vages cor de
quina , do comprimento de mais de dois palmos, e
feijão do tamanho de caroços de tamarindo : as va-
ges depois de sèccas, servem de archotes para cora
oUes entrarem nas concavidades onde se refugia o
porco-cspinho , para o apanharem.
A infusão da casca da arvore , e da raiz , appii-
ca-sc a indigestões, dores de dentes, cólicas, vó-
mitos, c a lavar feridas, para as fazer sarar: lam-
bem provoca a menstruação.
Mucorongo. — Esta arvore é a que em Inhambano
chamara Jambolão , do fructo da qual fazem vinho
e vinagre ; a llór é branca , redonda e similhante á
da mangueira ou sabugueiro ; o fructo que dá , o
qual se come, é como as azeitonas d'Elvas , c cm
maduras tomara a cor do vinho tinto e deitam çu-
mo da mesma còr : o cosimcnto da raiz, tomado em
banhos semicupios, faz recolher as bcmorroid..se sus-
pender a [lurgação , e a raiz cortada em bocados c
enliados cm cordel a modo de contas e trazidos ao
pescoço, é remédio para quem padece inllammação
de olhos ou ophtalmía.
Jilíitarára. — A llòr é muito miúda e da còr das
fobias; o fructo c do tamanho de ginja, e de còr
amarelln, quando está maduro é capaz decomer ; a
pelle nuiilo rija , o caroço redondo e còr de vinho
linlo: o cosimento da raiz applica-se em bochechos
para a dòr de dentes. Como as asteas , pela maior
parte , são direitas e llexivcis , é delias que os ne-
gros fazem os arcos a que chamara uta. Esta arvo-
re quasi sempre nasce cm morros de Muxem.
Mupanda-panda. — O cosimento das raizes dest<i
arvore, reduzido a papas ou a amendoada , appli-
ca-se aos que padecem do peito.
Chinissa. — A Uòr é amarella, e similhante á ca-
sula cheirosa, o fructo é como o caroço da macaã :
o cosimento da casca pisada applica-se em banhos
semicuijios aos que padecem puxos, c a lavar cha-
gas para as fazer seccar. As folhas machucadas c
aquecidas fazem transpirar muito, e destruir a fe-
bre , esfregando o corpo com ellas.
Mutacha. — A flor é miúda e còr de rosa secca ,
o fructo 6 muito doce, e do tamanho de azeitona
miúda , e quando maduro toma a còr araarella ; é
então capaz de comer ; depois de sccco é pilado
para lhe tirarem a casca , que reduzera a farinha ,
de que IV.zem papas raisturando-lhe farinha de mi-
lho: a infusão da casca tomada em bochechos, é
remédio para dores de dentes; e bebida cura a
hemorragia das vias menores ; assim como bebendo
o cosimento das cascas e raizes da mesma arvore
se curam hérnias.
l'ussi, era lingua asiática «curo.» — O fructo des-
ta arvore são umas vages mui delgadas que dentro
dão uma espécie de algodão: os naluraes do paiz,
e os asiáticos attribuem-lhe os mesmos efleitos c
virtudes da quina, e por isso dão a beber, aos que
tem febre , o cosimento da casca , e lambera com
elle lavam as chagas para as fazer sarar.
Mupumpua.' — As raizes desta arvore applicam-so
ao curativo das boubas e dagonorrhéa, deitando-as
de mídho e bebendo a agua.
fldóo. — A flor é raiuda e araarella ; o fructo é
do tamanho de um grão , e em cachos que se con-
servam na arvore. Os negros servem-se deste fru-
cto para verificar a certeza da arguição de feiti-
ceiros de que alguns são accusados ; para este fim
pisam a casca , e deitando-a era agua fria a côam
depois de tomar uma tintura carregada, c lhe mis-
turam uma porção de agua a ferver , tal que fique
cm termos de se poder beber , e dão ao arguida
de feiticeiro duas, três, até cinco garaellas desta
agua para beber ; se resulta evacuar por baixo, sus-
tenta-se a arguição , e é punido como feiticeiro ; e
ao contrario se evacua por ciraa é absolvido.
A esta prova judicial chamam os negros e cafres
— wmarí , ou iucasse.
Citámos esta substancia , não pela superstição ;
mas porque pódc ter virtudes purgativas ou vomi-
livas.
(Continuar-se-ha.)
78
o PANORAMA.
193
<
15
<
O
H
(h
ri
O
ti
ia
H
tf
O
P
H
E
tffi;iiia,íijA;tHiiiiaiisL:::'^iii:ii>UiiÍliJl^
A MORTE do íTcneral Wclfa prendeu-se cora um suc-
cesso, que infiiiiu muilo na conservação e extensão
das possessões hritannicas na Araerica ; foi este q
cerco e tomada de Quebec no Canadá. Relataremos
l)reyemente as circumstancias geradoras desse acon-
tecimento.
O Canadá chegou a ser conhecido das nações ou-
ropeas no começo do século 16.° ; e a França foi a
primeira que tratou de colher vantagens commer-
ciacs daqiiella região. Em loií Francisco 1." man-
dou quatro navios a explora-la ; parece porem que
não foram favoráveis e lucrativos os resultados da
expedição. Dahi a dez annos demandou-a Cartier ,
levando só dois navios pequenos, e velejando ao
longo das costas da Terra-Xova debalde procurou
achar caminho occidenlal para a China : voltou por
conseguinte quasi desanimado. Mas no anno se-
guinte, 153.D , empregou melhor as suas diligen-
cias , proseguiu pelo grande rio de S. Lourenço a
novecentas milhas da foz , e tias margens edificou
JiMio 24—1843.
um forte. Receberam os fraucczcs acolliimcnlo be-
nigno da parte dos naturaes , mas sendo acommet-
tidos do escorbuto , logo em 1536 , Cartier , e seus
companheiros que haviam escapado á moléstia e
aos perigos do mar, recolheram-sc a França. Pas-
sado pouco tempo , outro francez qniz alli formar
colónia , porem sahiram iiifriicluosas as suas tenta-
tivas ; até que em 1.598 o marqucz do la Roche foi
nomeado commandanle da colonisação , que sob a
bandeira franccza , quizeram estabelecer naquellc
solo americano : malfadada foi também esta nova
expedição. Todavia em 1600 um conniiercianlc es-
peculador comiiictteu a mesma viagem , e teve a
fortuna de trazer uma carregação de pclles , que
cobria sufRcicnlemente as dcspezns : o facto outra
vez suscituu a attenção do publico c do governo ;
mandaram gente com os necessários recursos e em
1608 estava fundada Quebec, que ficou sendo a ca-
beça da colónia : fortaleceu-se e cresce» o estabe-
lecimento gradualmente, e os francezes alcançaram
2.° Serie. — Yol. 11.
194
O PANORAMA.
conviver, c fazer pazes e negocio com os indíge-
nas.
Convém trazer ;i memoria que a região próxima,
a qne chamámos agora a União americana , mais
vnlgarmentc, Estados-Unidos da America do norte,
era então sujeita ao dominio inglez , como o Brazil
» Portugal , e o México c Peru a Hes|)anha. Nas-
ceu desta visinhança inquietação ao gmerno Ijritan-
nico , que não via de liom grado o incremento de
potencia estranha tão perlo das possessões, que do-
minava ; e muito mais porque os francezcs tinham
ganho a confiança dos naturaes. Deste eiunie se
originaram guerras purfiosas : em 1629 Quehcc foi
tomada pelo almirante inglez Keit , restituída po-
rem no subsequente tratado de paz. Em 1G!)0 os
habitantes da iVova-Inglaterra [colónia britatmica]
premedilaram subjugar o Canadá, mas sem elfeito :
nova tentativa einprehenderam , e com despezas
mui pesadas no armamenlo. em 1711 ; tamliem sa-
liiu frustrada. Teimaram posteriormente c lof^raram
o intento em 17SÍ), redn/indo Qiiebec e pnuco de-
pois toda a Cfdiinia á obediência da coroa d 'Ingla-
terra : nesta facção deu-se o nutavel caso de perde-
rem as vidas dois olliciacs , guerreiros dislinctos ,
que capitaneavam as tropas de ambas as nações ,
-Montcalm o general francez , e o inglez Wolfe.
Wolfe era (ilho d'nm militar; nascera cm Kent
cm 1726 : rva juventude mostrara sobresalientes qua-
lidades de esforço c entendimento, e os irmãos d'ar-
mas o apontavam como possuidor dos doles que ca-
raclerisam o valente scddado , capaz de mandar os
outros no campo da peleja ; fora experimentado nas
cauqianhas (iessc tempo, e obtendo o commando de
lim regimento , fez-se este notável pela ujanobra e
disciplina. Lord Chatam , que lhe conheceu o me-
reciínr:nlo . aproveilou-o em algumas occasines ; e
jiorfim deslinou-o á empreza sobre Quebcc. Era es-
ta de considerável dilficuldade , e de perigos de
grande monta. A cidade tem assento nas ribeiras
do S. Lourenço , muilo acima da foz ; é fíjrte por
arte e posição ; e então a sustentava boa guarnição
de francezes , canadienses , e Índios , preparados
para repellirem qualquer accommetlimenlo c tan-
to que se acampavam ao longo da praia , tendo a
(lefeza interna bem apercebida. — Wolfe desembar-
cando na ilha de Orleaus assentou que era absolu-
tamente necessário furtifica-la , e alem disso cons-
truir obras para se encetar o bombardeamento da ci-
dade; mas os ailversarius trabalhavam por iin[iedir
a traça do inglez , e a esse Jim passavam o rio ,
que foi theatro de lucta cucarniça<la. Wolfe adver-
tiu depois que por esle meio nada conseguiria , e
conseguintemente deliberou-se a fazer o attaquo [)e-
lo lado da terra ; quiz desembarcar as suas tropas
abaixo de Quebcc algumas milhas , próximo ás ca-
taractas de Aionímorenci , mas foi repellido com
(lerda. Falhando este desígnio resolveu-se ao feito
arrojailo de sahir a terra , fazendo que os soldados
trepassem os despenhadeiros alcantilados, a que
cm geral clnunaru as alturas ou píncaros d'Âbra-
liam , e que (icaiu na margem su|n'ríor :i cidade:
íi tropa teve d'eni;alín!iar como os anímaes bravios,
ajndando-se dos troncos da matla silvestre, que au-
tapiza aquellas ribas alias e íngremes; o as espín-
garilas e onlros petrechos foram içados mediante
cabos e moitoes seguros no arvoredo de cima. Des-
de essa [laragem começa um chão plano até as mu-
ralhas lia cidade, cujos defensores não esperavam
<)ue |ior allí podessem sor investidos, allenta a in-
lialavel escabrosidade da ribanceira , que era an-
temural da planície. Tiveram de sahir a campo; e
os inglezes venceram , custando-lhe a victoria a
morle de seu capitão. Quando mais acceso andava
o combate , recebeu Wolle uma baia n'um braço ,
mas não descontinuou de mandar; pouco depois
atravessado por outra ao meio do curpo , foi pelos
Seus retirado do campo, mas a tempo que os adver-
sários estavam desbaratados ; ainda ouviu a noticia
do ganho completo da batalha, e logo expirou. —
A nossa gravura , copia de um famoso quadro de
Benjamin West , relcre-se á occasíão em que 6
transmíllida ao general moribundo a participação
da victoria.
izijcjcii: ?cli:?:c;a.
Considerações sobre o Ctirsn (V Ecnmmúa Politica do
. . Sr. Mi(jncl Clievulicr.
VI.
o ArcRi;sciMO no producto da decima manifesta an-
tes uma tendência do que addição real ; mas essa
tendência denuncia augmento ou do valor da renda
das propriedades que pagam aquelle tributo, ou do
numero d'essas propriedades, ou de ambas as cou-
sas juntamente. O do subsidio litterario manifesta
que se tem estendido a cultura das vinhas. O dos
direitos das alfandegas, com ser em não pequena
parle devido á nova reforma d'cllas, mostra com-
tudo uma direcção no commercio tanto mais favo-
rável quanto é certo que a base do rendimento das
mesmas alfandegas foi atacada de dois modos — pe-
la separação do Brazil que era o manancial mais
fecundo dos nossos lucros , e o fulcro principal das
nossas operações commerciaes ; primeiro. Edepois,
pela cxtincção do direito do peixe que alli se co-
brava , c de outros impostos como avenças , sisa do
pellonrinho, adellas &c. que figuravam muilo na
sua receita. E ultimamente por augmento de direi-
tos sobre certos artigos , que tolhe absolutamente a
sua importação. Não devo comtudo dissimular que
na epocha que me serve de baliza, já os lucros com-
merciaes que tirávamos do Brazil se achavam mui-
to atlenuados , porque , francos os portos d'aquelle
império ás mercadorias de todas as nações , eram
ellas que lá as levavam, e que ao mesmo passo ex-
portavam os géneros do Brazil , reccdhendo os ])ro-
veilos que nos perlenceram exclusiv.imcnic em quan-
to fomos únicos carreteiros d'a()uelle commercio.
Juntavani-se a esta causa de depressão por um lado
o ()agari;m menores direitos no Brazil do que cm
Portuj;al grande parte das fazendas estrangeiras ;
por outro os cxorbilantes de sabida impostos em
lodos os produclos da industria portugueza , que
se exportavam para o Brazil , exceptuando somen-
te os das fabricas privilegiadas ; direitos que im-
portavam nm verdadeiro tributo sobre o consumi-
dor brazileiro quando clle era obrigado a com-
prar as nossas mercadorias ; mas que , depois que
lhe foi licito preferir as estranhas , se tornaram ura
vexame fatal ás fabricas da melropolo. E não só os
produclos fabris , lambem os agrícolas, o sal, o vi-
nho , o vinagre, o azeite, c as carnes, eram tribu-
tados na sua sabida para a America de maneira (]uc
ao entrarem alli , não podiam compelir com iguaes
[)rodnilos estrangeiros. Alem da vanlagem denavios
manobrados com simplicidade, eeijuipados com par-
cimonia, vinha o commercio estrangeiro nu Brazil
a ter sobre o portuguez um favor de S [)or cculo !
o PANORA31A.
195
Istotronxe ou pnra concluir que o nosso [o externo]
já anlcs de 18:20 estava rauilo abatido do que lora ;
não duvidando coniliido reconhecer que a sua de-
cadência (■ hojo maior do que então era ; mas ao
mesmo tempo notando que apesar dos gcilfies que
elle leni solTrido . o rendimento médio das alfaniie-
gas nos annos anteridres a 1S20 comparado com o
actual patenteia, pelo menos, que o consumo dos
géneros importados é maior no reino doquc no tem-
po em que os mais delles eram trazidos para ser
vendidos a outras nações; eque sendo maior aclu.il-
Diente o consumo interno, deve, na mesma escala,
ter augmcntado a prudncçâo interna.
D'augmento no producto dos direitos solire a car-
ne que se consome em Lislioa , não perteudo ti-
rar inducção mais — que na capital tem crescido
consideravelmente este consumo. Somente adverti-
rei que este augmenio n'uma cidade que contém
um decimo-quinlo da população total do continente
portuguez significa alguma cousa. — Peln menos
mostra que a renda tem angmentado , porque um
accrescimo no consumo da carne e prova de que se
prefere ao peixe um alimento mais caro. Tanibera
SC tem observado que o humera que consome mais
carne do que outro , se pertence á classe dos ope-
rários , presta trabalho mais luzido e melhor: por-
isso , de um angmento de consumo n'este artigo se
revela uma vantagem na productividade do paiz em
que elle apparece , que, pela sua imporlaucia , não
pode ser demasiadamente apreciada.
Suspeito, não assevero, que igual augraento no
consumo da carne ao que ha em Lisboa , ha no ge-
ral do reino, e nas cidades e villas mais abastadas
talvez maior, por não estarem sujeitas a direitos co-
mo os das sete casas. E se me disserem que isto de-
nota crescimento na população, não na renda, ou na
riqueza que é o mesmo — responderei que pelo cres-
cimento da população sem ser acompanhado ou pre-
cedido do crescimento da renda , não pôde expli-
car-se o do consumo ; porque se a população au-
graenta , sem as subsistências aogmentarem , cila
perece : se as subsistências crescem também, man-
tem-se. e o consumo augraenla : mas esse augmen-
to não existiria ainda que a população crescesse ,
se a renda ou a producção ficasse estacionaria ; de
maneira que não bastando , para elle se verificar ,
que cresça o numero dos consumidores, vem a ser
preciso que cresçam também os meios de consumir,
que são as riquezas. E, por isso, que ellas tem cres-
cido com rasão o infiro eu , ou posso inferir , da
maior extracção de carne no reino.
Regra geral. Todas as vezes que aqiiolles impos-
tos, directos ou indirectos, que abrangem ás peque-
nas fortunas e ás classes industriosas , sobem em
rendimento , quaudo não c devido exclusivamente
a melhor syslema ou melhodo no lançar e arreca-
dar , essa mudança é annuncio seguro de progres-
so económico , de movimento ascendente na rique-
za , absolutamente considerada , sem referencia ao
modo, mais ou menos justo, por que está distribui-
da ; e lambem de distribuição , mais justa e mais
igual, da mesma riqueza pelas mais numerosas clas-
ses da sociedade; pois são as pequenas collectas pa-
gas pelos indivíduos d'essas classes as que mais
avultam na verba total dos tributos. Singular desti-
no do pobre ! Dos seus ceitis é que se forma o the-
souro do Estado. Das suas pequenas rendas c que
se custeiam as esquadras e os exércitos. Do seu
suor e trabalho é que se IcNantam e edificam as
grandes emprezas publicas. E pelo vulto, maior ou
menor, que suas ténues quotas fazem na somma to-
tal dos tributos , é que se pode rectamente decidir
até onde o rendimento progressivo d'ellcs é Ihcrmo-
metro da marcha da riqueza e da renda.
Os resultados que me ministra o augniento na ex-
tracção das carnes ad(]iiireni tanto mais pezo , isto
é , provam t.intu mais o crescimento da producção ,
quanto é certo que contemporâneo áqucllc augmen-
io nasceu e existe iima procura de gados maior do
que era anteriormente , e proporcional ao serviço
que d'elles reclama o progresso da cultura das ter-
ras : de sorte que se o primeiro phenomeno accusa
melhoramento até certo grau , o segundo cunfir-
nia-o , e em grau ainda mais subido.
Alem d 'estas considerações alguns dados vou ap-
presentar , que não podendo, pela sua isolaçâo , e
por diminutos, servir de base suUiciente a proposi-
ções e corollarios geraes, não são comludo destituí-
dos de importância, e oílerecem thema a serias me-
ditações.
Como exemplo , destacado sim , mas de momen-
to na circulação dos valores de credito, e nas van-
tagens económicas d'este , apontarei o numero e
importância das letras de cambio descontadas no
anuo findo tanto pelo banco de Lisboa como pela
caixa filial que elle tem no I'orto , que foram 39(tl>
letras na primeira e :2íOO na segunda cidade; e
quantias descontadas 3880 contos pelo banco, e
:2790 contos pela sua delegação ; vindo a ser o to-
tal das letras 6300, e a quantia, que, pelo descon-
to d'enas, se poz em circulação 6670 contos. E se
exceptuarmos o desconto de algumas letras do the-
Souro, esta quantia, pode crer-se, foi toda ou quasi
toda empregada em operações productivas , porque
a prudência do banco não lhe consente negociar senão
com boas firmas [posto possa, uma vez ou outra, re-
cusar alguma que o não mereça] ; c as boas firmas
não costum.im dissipar os recursos, que lhes ministra
a confiança que ellas inspiram, em gaslosestereis. ou
afiançar sob o seu nome valores curamerciaes aquém
os mal use. E digo isto porque o banco emprestan-
do sobre letras, ou desconlando-as que é o mesmo,
aufere um lucro do dinheiro que adiantou ou do
seu equivalente : mas se o portador das letras des-
barata a somma que por ellas recebeu , essa somma
é um capital perdido, e ainda que o banco seja
reembolçado d'ella no praso do vencimento já o
ha-de ser com uma outra somma , visto que a ori-
ginaria está destruída , c a riqueza social dirai-
nuiila e privada d'esse valor. O empréstimo de uni
ca[iital prova , quando muito, que o capitalista tem
direito a um rédito: somente o uso que do mes-
mo capital faz aquelle para cujas mãos passa , dá a
conhecer se elle foi aproveitado ou estragado , se
convertido em instrumento de industria e reprodu-
cção , SC gasto em profusões e consumos sem resar-
cimento do valor primitivo.
Como facto , desligado e não próprio a determi-
nar per si só qual é entre nós a taxa dos lucros do
capital, uias nem por isso insignificante, notarei
que foi de 17 por cento o dividendo do anuo passa-
do que se repartiu pelos accionistas da comjianhia
e fabrica de tecidos de algodão estabelecida a Xa-
bregas, e de 16 por cento o da outra fabrica, da
mesma espécie , estabelecida no Campo Pequeno.
E reputo esta circumstancia não insignificante, pri-
meiramente porque mostra que em Portugal os ca-
pitães empregados nos ramos de industria cujos pro-
ductos se accommodam á fortuna e as necessidades
das ciasses numerosas, abonam mais certo e maior
1Í)G
O PANORAMA.
ganho. E depois porque vendo em documentos offi-
ciacs que o algodão de iiinnufaeliira estrangeira en-
trado na alfandega de Lisboa no 1." semestre, so-
mente , do anno de 18'(1 produziu de direitos í 47
contos, e o entrado no Porlo no anno económico de
18Í0 a 18Í1 produziu 254 contos, entendo, ain-
da que se não consuma no reino uma pai te d'esta
mercadoria, que sendo liio considerável a exlracção
d'c!la como indica a importância dos direitos, este
ramo fabril, se o deixarem medrar, ó capaz de ex-
tensão muito maior que a que tem, c promcttc gran-
des benefícios aos fabricantes, e capitalistas, que o
cultivarem.
Lançando um golpe de visla sobre o complexo
d'estes dados, observa-se que o melboramenlo na
agricultura porliigueza é real c indubitável , e que
na industria labril ha, pelo menos, uma disposição,
talvez mnis pronunciada do (|ueniinca houve, a mc-
Jhoramento. E boje que estão , api)roxiniadamente ,
.yOOOO pessoas ou occupadas ou interessadas na mes-
ma industria , eomprehendcndo fabricas regulares ,
e outras , que o não são , já não é permiltido olha-
la com desattcnção ou pelo lado económico ou por
qualquer outro.
Posto se deva contar precária a existência das fa-
Lricas em quanto os seus productos não chegarem
a rivalisar com o preço dos estrangeiros no merca-
do portuguez, aquellas que com o decurso do tem-
po e o zelo do Iraballio puderem consegui-lo , ain-
da que seja com algum sacrilicio do consumidor,
são manifestamente úteis ao reino por uma rasão ,
para a qual poucos atlcnlam , c que por ser lunda-
jiicntal me escusa deallegar outras, c é — por cha-
marem dos bancos estrangeiros capitães portuguezcs
que lá estavam depositados — ou desterrados que é
mais expressivo. O desenvolvimento da agricultura
o das fabricas leni , ninguém o ignora , restituido á
pátria muitos d'estes capitães que cst.ivam alimen-
tando a agricultura e as fabricas alheias. Nem me
opponbam que é indifferente o logar do seu domici-
lio com lanto que ellcs prestem um rédito , e esse
rédito venha para Portugal — porque me obrigam
a perguntar se Inglaterra julgaria indifferente trans-
porlar-se o seu numerário (lara o banco de Lisboa
com tanto que desse um lucro , e esse lucro fosse
emprcgar-se n'aquelle paiz? Qual conviria mais a
Portugal que um inglez, aqui residente, proprietá-
rio de terras na (iraã-Bretanha gastasse entre nós o
rendimento d'ellas , ou que essas terras ou o seu
valor capital se transplantassem para o nosso solo,
fixando-se n'cllc e accrescentando a sua riqueza?
Não é dillicil de resolver. Capitães ou valores, de
qualquer espécie, é bom que circulem; mas que
não possam fugir, e que lenham a raiz sempre ua
terra natal , particularmente os das nações pobres,
ou pouco industriosas e desenvolvidas em relação a
outras, como acontece á nossa. Se é proveitoso ao
capitalista nacional receber um juro de seus fundos
meltidos em bancos estrangeiros , mais proveitoso é
á nação que esses fundos regressem a ella , e er-
guendo fabricas e arroteando campos, sobre o juro
que prestavam a seu dono plantados cm terra alheia,
prestem também voltando á própria ao trabalhador
salários, ao emprezario e ao retideiro lucros, ao Es-
tado tributos — salários, lucros, tributos derivados
do emprego do seu valor total, osquaes não |)odiam
dar á pátria longe d'cl!a. A nação pobre que pelo
abandono da agricultura e da industria força as ac-
cumulações dos seus habitantes a emigrar para ou-
tros paizes, faz, de facto, empréstimos, não os po-
dendo fazer, porque não tem sobejo, a esses paizes.
A que não tem sobejo caminha loucamente para a
sua ruina , se não procura emprego vantajoso aos
fructos do trabalho anterior , e os obriga a ir bus-
car esse emprego lora do seu território : assim offe-
recc ella a outras aquillo de que carece , e repre-
senta o papel ridículo do mendigo dando esmola ao
miilionario '. Prudente e precavida é aquellaque se-
gue dilTerente rota, retendo com a es|ierança do ga-
nho os capitães próprios, e com a mesma fazendo
convite aos alheios. ■ . (Conlimuir-se-liaj.
A. d' O. Marreca.
ABA £GT?CIA.
Assim os judeus como os egj|)cio3 faziam de ordi-
nário de forma cubica os altares do sacrifício san-
guinolento , em que havia aspersão do sangue da
victima ; vpja-se a este respeito o Êxodo cap. 29
V. 21. — No mesmo livro bíblico determina Moy-
sés cora toda a individuação o como deve ser cons-
truído o altar em que se queimavam as oblações ,
c que acompanhava o tabernáculo : vid. cap. 27
V. 1—8.
A gravura representa ura altar egypcio , onde
o PANORA3IA.
197
qDeiraaTam incenso c oíTcrtavnm dadivas a falsas di-
vindades. Tamlicm o aliar do incenso difieria dos
outros , que apontámos , na ley nioysaiea ; fazer ar-
der esta aromática substancia em honra de Deus
era uma das cspeciaes prerogalivas do ministério
sacerdotal : para o que roparc-sc na punição de Co-
ro, Dalan c Aliiron, por intentarem usurpa-la [Nu-
mcr. cap. 10. "J. A passagem do livro dos Números
c reforçada pelo psalmo 106. — E nem só o offer-
torio do incenso era reservado á posteridade de
Aarão, mas também estavam determinadas a espécie
e as porções ; só devia accendcr-se com o fogo sa-
grado do altar, c a perdição de Nadali e .Vbiu foi
usarem de fogo propliano. De tal importância era
esta oblação e seu methodo, que o propbeta Isaias ,
querendo exprimir a indignarão de Deus contra os
pcccados do povo , imagina que diz o Omnipotente
«e cu abominarei o incenso,»
Entre as nações pagaãs não era , geralmente , re-
servado a seus sacerdotes o otlcrccimento do incen-
so , mas sempre o consideravam como o acto mais
solemne de homenagem tributada á divindade. Da-
hi vem que nas primeiras perseguições contra os
christãos, a primeira prova a que os sujeitavam era
ordenar-lhes que na presença dos ídolos queimas-
sem alguns grãos de incenso, do mesmo modo que
tinham obrado os reis do tronco dos Seleucidas
para constrangerem os hebreus á idolatria em tem-
po dos Macchahèus. Mas os martyrcs gloriosos ,
era testemunho da fé verdadeira, sellaram com seu
sangue a crença viva qnc possuíam , mais queren-
do com sobrenatural fortaleza expirar em tormen-
tos do que render-se i adoração dos falsos numes.
*<*
í:
Catão, Collumella, c Yarrão nos deram testemunho
de que os romanos faziam servir a folhagem d'arvo-
res sylveslres de pasto aos gados; sccea d'inverno,
verde no verão. Os choupos, carvalhos, o freixo,
a hera e outras lhes forneciam alimento saudável.
Kossos camponezes conhecem bem quanto os gados
são gulosos das folhas e ramos tenros d'algumas das
arvores, principíilmente na primavera quando os no-
vos rebentões lhes appresentam manjar doce e ten-
ro: nós temos visto algumas vezes dar aos bois e
vacas até os ramos tenros dos sobreiros , e come-
rem-nos cora extraordinária avidez. Isto porem não
é entre nós senão como excepção , é uma espécie
de regalo , ou accepípe , que nada inOue ua eco-
nomia rural. Entre tanto é indubitável que esta
é uma outra vantagem que se pude tirar da cultura
das maítas e arvoredos , aliás já recoramendaveis
pela salubridade que produzem , pelo abrigo aos
campos , pela humidade que conservam , c pelas
madeiras que fornecem.
As matlas entre nós são ordinariamente povoadas
na sua quasi totalidade de pinheiros, de carvalhos,
de castanheiros. — Não incluímos aqui azinheiros
c sobreiros que pertencem melhor á arboricultura
ou cultura de arvores fructiferas ; e ainda que os
castanheiros lambem o sejam, não faltaremos aqui
dos castanheiros , arvores formadas na sua perfei-
ção , mas sim daquelles que eslão sujeitos aos cor-
tes regulares d'annos em annos , e que se cultivam
somente como madeira sem produzirem fructo.
A arvore mais ulil para as maltas é o pinheiro,
porque não da trabalho algum depois da sementei-
ra , e porque começa desde os primeiros annos a
produzir a paga do cuidado e serviço do cultivador
nas lenhas dos seus desbastes c alimpa. Demais, cl-
le se dá bem nos peiores terrenos . nos pedrcgaes ,
nas encostas áridas e sèccas , c alé nas arèas sá-
fias e cegas da beira-mar , em que nenhum outro
vegetal pôde viver. Trataremos porlanlo neste arti-
go da sua cultura em particular.
O pinheiro pertence á família das arvores conífe-
ras , c segundo o syslcma sexual de l.ianeu á or-
dem da monnecia monadelphia ; o seu género é jii-
nus. Entre nós as duas espécies bem caracterisadas
deste género é o piínis pinça , pinheiro manso , 'e o
pinus marilima , pinheiro bravo. O pinus marilima ,
ou dito vulgarmente pinheiro bravo, é o que fará
objecto principal deste escríplo por ser omaiseom-
muni , por ser o mais próprio das terras más, cres-
cer rapidamente , ser muito resinoso , c dar cxcel-
leule madeira de cerne quando tem a idade con-
veniente. Escusado c dcscrevè-lo porque lodos o
conhecem. (•)
Da sementeira dos pinheiros.
O preparo c lavor do chão depende da qualidade
do terreno : se é arèa fina e sália hasta gradá-lo ;
se esta mesma é empeçada de hervas , juncos, ou
matto pequeno, indispensável será o mcttcr-lhe ara-
veça ; mas se é terreno mais forte ou compacto é
preciso lavrar fundo , e depois dar-lhe ura segundo
lavor mais ligeiro para eslorroar. Se o terreno fòr
de charneca dura e encruada , ou coberta d'arbus-
los e matto forte , exige ser surribado á enxada e
alvião , e depois lavrá-lo.
Promplo o terreno lança-se o pinhão á terra sc-
meando-se ú mão como o trigo, calculando-se d'al-
queire e meio alé dois alqueires por cada geira de
terra. Semeado , alisa-se o chão com uma grade
sem puas se o terreno é areento ou pulverulento ;
se é mais forte gradr.-se primeiro com grade denta-
da , e depois se alisa com ella deitada. A semente
não deve ficar funda. A semente deve estar d'antc
mão preparada: o pinhão deve ser com preferencia
do mesmo anno , apanhado no oulono e semeado na
primavera ; e estar maduro e perfeito ; a natureza
raesr(]o jjarece indicar a sazão da colheita . porque
as pinhas começam a abrir em abril e maio, e é
então o tempo próprio de preparar a semente , to-
mando as. pinhas bem formadtis e ainda não de to-
do abertas , pondo-as a seccar em pannos ao sol ou
na eira ; sèccas raalham-se , limpa-se o pinhão es-
fregando-o e privando-o das azas mcmbranaceas, ou
padejando-o como o trigo.
Ordinariamente semea-se o pinhão misturado com
outras sementes , proporcionadas estas ao local : se
a sementeira é em arêa convém mistura-lo com se-
menlílbas de plantas arenosas; na terra vegetal jun-
tam-lhe semente de centeio, ou aveia. Esta pratica
tem por lim abrigar os pinheirinhos dos calores, da
iulempcrio, dos ventos, e prestar-lhcs apoio na sua
primeira infância : alem disto cortados os cercaes
(•) Riícommendàmos sobreluilo aos pruprielarios de pi-
nbaes , e a loilos us inleressados neste raim» florestal o ex-
cellenie opiiscido , reclieado de dculrinas e faclus avericua-
dos , e ao mesmo lempo perceptirel a todas as inlelli<;encias
que se intiliila — Manual df inslriieQÔfS praticas sabre a se-
menteira dos pinheiros ,Vc- , por F- L. G. de Varnliagen. —
Pu.licoii-o a Academia das Sciencias : custa 160 rs.
Os UR.
198
O PANORAMA.
altos depois de maduros deixam na terra nm prin-
cípio de estrumada que ajuda a vegetarão dos pi-
nheiros. Se é era arèa maiormente na costa do
mar , as plantas arenosas defendera os pinheirinlios
dos ventos e curso das arèas , e lhes fornecera es-
peques , sem os quacs seriam mais facilmente aba-
lados.
Os pinheiros devem semear-se econservar-sc bas-
tos, aliás distrahera a seiva para os ramos lateraes,
c estes se formam era figura de candelabro ; cres-
cem menos, e em prejuízo da hastea ou tige se en-
iioselham , e perdem a belleza e utilidade de seus
destinos futuros. Nós temos visto nas ladeiras que
avisinham as margens dos rios na província do Mi-
nho pinhaes de poucos annos , tão bastos que um
homem os não pódc penetrar sem dilliciild.ide , tão
altos e direitos como uma vara arredondada ao tor-
no. Quando a idade os vai engrossando, desbastam-
se graiiual e discretamente, dando logar a que se
Ibrniem arvcues , aproveitando-se os que se tiram
jiara mil misteres, o que produz rendimento útil
aos cullivadorcs.
O pinheiro é verdadeiramente, apesar do desprè-
-so cominum, uma arvore preciosa: a pluma serve
para o lume c para as eslrumeiras ; a ramada ou
alimpas para os fornos , para as sebes e tapumes
<iue defendem as arèas ou a approximação dos ga-
dos damninhos; a casca pode suprir a do carvalho
nos cortumes ; as varas servem para a empa das vi-
nhas, estacas, e para outros misteres; cortados de
talhadia dos lo até 20 annos d'idade dão exccllen-
te lenha ; de 2o aos 30 começam a dar rezina pe-
los talhos ou incisões no tronco, que avivadas c re-
vesadas a produzem por espaço de 30 annos. linlão
se cortam e dão madeira de carpinteria : quando
chegam a ser arvores de perfeito crescimento dão
mastros, vigas, taboado, e outras madeiras decons-
Irucção : as achas de seus lòcos e rechegas , os nós
e raizes dão alcatrão; o pinhão dá óleo; o cerne ,
cmPim , velho , dividido em estilhas , faz caiidèas ;
c as pir^has espertam o lume e aquecem o lavrador
cançado do trabalho do dia, c recolhido á sua chou-
pana nos serões d'inverno , posto á fogueira , em
quanto as mulheres ao clarão de um lume radioso
e claro fiam nas rocas c preparam a collação no-
cturna. /. da C. N. C.
Do S.VNGIE.
Composição. — O sangue compõe-se d'aliiumina,
agua, fihrina , uma substancia animal curada , uma
pequena quaniidade de matéria gorda e dedifTcren-
tes sáes ; a saber : iiydro-chloratos de potassa e de
soda ; sub-phosphalo de cal ; subcarbonatos do so-
da, de cal e de magncsia ; oxido de ferro, e segun-
do M. lierseliiis, de lactato de soda junto com uma
matéria animal.
Praprirdail (■■■<. — Suas propriedades physicas são
geralmente conhecidas, lille está sempre no estado
liijuido na economia animal; sua còr é vermelha
nas artérias, e d'um vermelho escuro nas veias;
cheiro insípido, sabor ligeiramente salgado, seu
peso específico varia , porem é mais pesado do que
a agua.
Submcttido á temperatura d'agua fervendo , o
sangue se coagula em consequência d'albumina que
contém. A matéria coagulada é d'um azul escuro,
c resulta , [lela calcinação , um carvão voluminoso,
ídilíicil de incinerar.
Quando se expõe á temperatura faz-se n'uma mas-
sa que se divide em duas partes : uma líquida, trans-
parente amarcllada que se chama serum , [soro de
sangue] a outra molle , opaca , d'um avermelhado
escuro chamado grumo [posta de sangue]. O serum
não c senão agua conservando em dissolução muita
albumina e sáes. O grumo contem toda a fibrina ,
matéria corada, uma pequena quaniidade de serum,
e certa porção de sáes. Ora, pelo repouso, a fibri-
na e a matéria corada se separam inteiramente : é
preciso concluir que ellas não estão , por assim di-
zer, senão suspensas no sangue. Outros phenomenos
se appresentam quando ao sahir da veia o agitámos
em logar de o abandonar , então não se torna mas-
sa ; conserva-se no estado líquido, esepara-se d'el-
le somente uma certa quaniidade de fibrina, debai-
xo da forma de longos lilamenlos que e fácil torna-lo
branco pela agua : algumas vezes agita-se o san-
gue á medida que seextrahe para poder convertè-lo
em coalho. l)esenvolve-se provavelmente calor du-
rante a coagulação espontânea do sangue; porem
segundo as experiências de M. .lohn Davy , c tão
insensível que se lhe não acha dilVerença no ther-
mometro.
Posto era contacto com os gazes , e agitado nes-
tes , o sangue se mistura diversamente : é o que se
observará na tabeliã seguinte.
Sangue ve.xoso.
Gaz
Oviíeiíio
\r alin >plierico ....
AmiiHini.iCd
li: i o\i(l(i liecarbune.
Deiil-iixulo d'azule. . .
Hyclriigenio carbonado
Gaz azule
Gaz carbónico
Gaz hydrcgeiíio. , ....
l^rot-oxiilu d"azo;e . . .
Hydrojenioarsenicado
Hydrugt'níosiiI])tiiirado
Gaz hydro-cldorico.
Gaz sulphiiroso. . . .
Cliloro
Cures.
Encarnado rosado. . . .
Iilem.
Encarnado carregado-
D." um (luuco azulado.
Idem.
Iilem.
Encarnado escuro.
Idem.
Idem.
Idem.
Roxo escuro , pas-
sando pouco a puii*
co a um esverdiulia-
do escuro.
Roxo escuro
Pardo escuro
Negro, passando pou-
co a pouco a um ania-
rello eshranqiiu;atl(
Observações.
Eslesansueli-
nha sido ba-
lido , e por
consei.'uinle
privado de
librina.
Estes 3 ga-
zes coagu-
lam au mes-
mo tempo o
san-ue.
Traduzido por l. J. Gonçalves.
6oíanica illcbica.
Descriprão de varias arvores, arbustos, herras e plan-
tas meilicinacs que existem na villa de Téle , e da
applicação que delias fazem os naturaes do paiz
aos usos meclianicos da vida, e nas doenças de que
são atlacados,
(Continuação de paq. 192.^
Mutõa. — \ casca desta arvore [que cresce ale a
altura da laranjeira] asscmelha-se á cortiça na cór
c grossura ; as folhas são longas ; c extrahe-se lei-
te do tronco e ramos, por meio de qualquer golpe
que se lhe faça ; applicam o cosimento da raiz ao
curativo da tosse. A madeira é muito oleosa . e o
o PANORAMA.
191)
rasembe e os régulos maravcs usam delia cm pc-
. laços cortados como as vellas , c licUes se servem
para se alhimiarem.
\liamuru-Hcúii. — As cascas desta arvore , redu-
zidas a pó , e cheirando esle , são remédio clliiaz
j)ara as vertigens . e o mesmo se consegue tonian
do suadouros á cabeça, feitos com o cosiuiento das
folhas.
Musequrssc. — A folha desta arvore é simillinnte
á de vide, ou parreira; a grande applica-se para
feridas, e da pequena faz-se chá que se appliea
aos doentes de peito; a casca é grossa e muito ra-
chada , parecida cora a do goôu , a (|ual depois de
fervida , bebcndo-a , suspende os elTeitos que pro-
duz o gomi preparado para o í/mai'c,- isto é para a
prova que j;i dissemos.
Muddmii. — k de cor branca, folhas grandes, ás-
peras c inllexiveis ; osucco das folhas misturado em
agua fria, e bebido, é remédio edicaz para as diar-
rheas de que alli são accommettidos os europeus.
Miipiibuzo. — As ramas c o corpo desta arvore,
são cobertos de picos grandes c rijos: os negros
servem-se da raiz para tingirem de vermelho a li-
nha , cordas, e palha com que entrançam o cabello
para o enfeitar.
Miiaiqiiizi. — É a que em Inhanibane chamam
vxafurreira. e ao fructo rnafurra. Esta arvore é mui
copada , sombria, e fraca, tem as folhas estreitas e
compridas , a Qòr branca e miúda similhante á da
mangueira ou do sabugueiro, ofrueto é em cachos e
do tamanho de figo miúdo, cora a casca rija, e pe-
nugem , estando maduro racha por si mesmo, g ex-
pelle um caroço preto com olho vermelho , do qual
extrahcm azeite e sebo ; a casca esmagada era agua
fria , ou quente , toma a cor do leite , c é com esta
agua que os negros adubam os seus comeres , e fa-
zem papas: o sebo é bom para curar a erisipela un-
tando com clle a parte doente.
Mucuiu. — È a que na historia santa se chama sij-
cnnwro. Esta arvore ésimilhanle á figueira mansa, e
dá como ella o fructo em troncos, e dilTere em ser
miúdo e indigesto. A raiz sendo deitada de molho,
e bebendo desta agua cura as cólicas e palpitações
decoração; lambera se applica para o mesmo effei-
to o pó da raiz sécca ao sol misturado em qualquer
liquido.
Cantinca-utarc. — As raizes são da cor da laran-
ja , e tem a propried.ide de aíTugeutar a cobra pela
actividade do seu cheiro , e delias se servem para
este fim.
Mucuiiili. — A (lór é como a do limoeiro, com a
differença de ser comprida ; o fructo é redondo e
miúdo; a madeira ó roxa , e óptima para obras de
marcineiro , é muito cheirosa , e as raizes ainda
mais.
Fundi. — E uma palmeirinha da espécie de pias-
sáva , cujas folhas são longas e estreitas como a pa-
lha, e com uns riscos pelo comprimento que parece
fusião ; servem-se delias para fazer vassouras, e es-
covas para esfregar cestos e gamellas «kc. No Zum-
bo , os cafres morenges applicam-na a tajiar o rom-
bo das embarcações.
Mussniizôa. — O fructo desta arvore é como a ga-
lha , com ditTereuça que esta não tem picos e faz o
mesmo eITeilo daquella , servem-se dellc as mulhe-
res dos calTres para tingirem de preto os pannos
brancos , pelo modo seguinte : |)isam muito bem o
fructo, e gradualmente lhe botam uma qualidade
de terra negra que elles conhecem, a qual tem par-
tículas de capa-rosa , e fica uma perfeita tinta pre-
ta muito fixa ; as papas feitas do cosimento das rai-
zes applicam-se a (|uem padece de hérnias, cora e
que sara brevemente.
Miissio. — A qualidade desta arvore é como a d»
espongeira , tanto na folha e picos como na llòr ,
com a dilTerença de não ser cheirosa ; produz uns
feijões a que chamam quissin , dos qiiaes se servem
como do fructo da mussoiizáa , c por ser um forte
ailstriugente os deitam de molho e com a agua la-
vam as feridas.
(Continuar-sc-ha.)
Pnovi.NciA DE S. Pedro , ou Rio Grande do Sul.
2.0
P\iiA cumprir-mos o que proinettemns, tratando da
ca[)ilal dc>ta provinda, Porto-Alegre, cm o N.° 72,
não podemos desempenhar melhor a palavra , do
que transcrevendo as noticias dcscri()tivas , inclui-
das no cap. 3.° da obra do Shr. Visconde de S.
Leopoldo , Ámuirs da Proviíicia de S. Pedro , com
uma carta, 2." edição — livro importante, mas qua-
si desconhecido em Lisboa.
n .\ pro\incia de S.Pedro, anteriormente governo
doRioíjrande de S.Pedro do Sul, demora entre as
latitudes austracs da America Meridional, contadas
na costa do mar, desde a barra do rio Mombiluba,
ao nordeste do presidio das Torres , antiga guarda
de S. Jorge, na latitude au-.tral de 29°, o'. 36i',
até o arroio Chiii , na latitude austral de 33", 42'.
10"M. .\ntes do anno de' 180b, diversa era a de-
marcação ; recuou onze léguas , mais on menos ,
áqem da barra do Araranguá , on mais etimológico
Ararenguay. onde se acha ainda hoje postada a ul-
tima guarda, que assignala o limite da província
de St.'' Catliarina ; e avançou para o sul até o refe-
rido arroio Chui , onde era a antiga divisa dos do-
mínios hcspanhoes pelo tratado de 1777, e que fica
distante da cidade do Rio Grande quarenta e ires
léguas e um quarto , e do arroio de Ytaym , onde
fora collocado o primeiro marco portnguez , vinte
sete léguas e meia ; porem a latitude no interior
do paiz começa mais ao norte ura grau , cora pou-
ca dilVcrcnça , sendo de 27° oO' o parallclo do rio
de Pelotas, o qual serve de divisa deste com a pro-
víncia de S. Paulo : e entre as longitudes de 321"
2i-', e de 328" 44' [contadas da ponta mais Occi-
dental da ilha de Fcrroj. 'lerá na sua maior largu-
ra de leste a oeste cento vinte e oito léguas era li-
nha recla, das que entrara vinte em grau de circu-
lo máximo ; mas no lado occidcnlal não excede de
sessenta e cinco léguas, contadas na direcção geral
do Uruguay. O seu littoral computa-se de cem lé-
guas em direitura; de cujas dimensões, e da ins-
pecção do mappa topographico se lieduz , que esta
província tem a figura de um trapézio mixtilineo .
formado por dois lados opposlos desiguaes e rectos,
e por outros dois curvos , todos com" suas irregula-
ridades ou seios , abrangendo por consegiiiutc a su-
perficie pouco mais ou menos de oito mil trezentas
e vinte léguas quadradas.
CouíruiUa pelo nascente com o oceano ; pelo nor-
te com o rio Momhituba , Pelotas , e incultas ser-
ras do L riiguay ; pelo poente com uma parte do
mesmo Uruguav , que a separa da piovincia d'En-
tre Rios; c pelo sul, com uma pequena extensãi»
do Ibicnry , que desde a sua barra , corre ás cabe-
ceiras dos seus g;ilhos mcriílionaes , atravessando a
serrania descoberta da campanha, e seguindo pc!';
200
O PANORAMA.
seu ultimo galho austral , que conOue no denomi-
nado Ponche Verde, para daquellc baixar ;i harra
do arroio Piray no Uio Aegro, e por este acima alç-
as suas vorleiitcs mais oricniacs. Finalmente busca
a linha divisória o rio Jaguariio , que desagua na
lagi'>a JMrrini ; segue parte desta lagoa , e i>rocura
o anoyo Chui , até que se perde uo mar.
Toda esta grande extensão é dividida cm duas
partes, quasiiguaes, pela serra geral do Brasil ,
que acompanhando a costa do mar nas [irimeiras
\inte e sete léguas desde o Araranguá até a latitu-
de austral de 29° 40', pouco mais ou menos, vol-
ta a oeste mais oitenta léguas até acabar no inte-
rior desta província. A parle septentrional , em fi-
gura de outro scmelhautc trapesio , é subdividida
cm três , conhecidas pelas denominações vulgares
de Campos de cima da Serra , dos da Vacaria , e
dos das i\!issões orientaes do Uruguay. A parte bai-
xa ou meridional, de Hgura triangular, é talhada
cm duas pelas isoladas serras do Herval e dos Ta-
pes , c pelas lagoas dos Patos e Mirim; licando ao
occidenlc destas serras os campos denominados do
continente, e ao nascente das ditas duas lagoas c
da serra geral os intitulados da costa do mar.
Os Cam|ios de cima da Serra, e os da ^^acaria ,
cuja superfície é de seiscentas léguas quadradas ,
figurados em ura quasi triangulo , são transversal-
mente cortados pelo rio das Antas, que arrebentan-
do da encosta occidenlal da mencionada serrania ,
a torna a atravessar, para ser conhecido ao sul del-
ia com o nome de Taquarí , derivado do primitivo
de Tibiquarí. A aquelles campos limita jielo sul o
angulo da serra geral , e a estes pelo norte o rio
Pelotas , grande galho das cabeceiras orientaes do
Uruguay , que , nascendo como o das xintas , e cor-
rendo para o occidcnte , serve de divisa entre os
limites septentrionacs desta província , c os meri-
dionaes da de S. Paulo ; e pelo oeste confinam com
a commarca dos sete povos orientaes de Missões, e
pela picada denominada de Santa Victoria e lios-
ques adjacentes.
Os campos de Missões , conquistados na guerra
de 1801 , os quacs abrangem os povos de S. Ange-
lo, S. Joiio, S. Miguel, S. Lourenço, S. Luiz (Jon-
zaga , S. Nicolau , c S. Francisco de Borja , lera
uma superfície de perto de 1,400 léguas de cam-
po , sem comprchender os bosques e sertões , que
lera ao norte e ao nascente , os quaes talvez mon-
tem a outro tanlo. Pelo occidenlc o Uruguay os di-
vide dos outros povos sujeitos á Hespauha , e pelo
sul o rio Ibicuy e a extremidade da serra geral os
separam dos campos propriamente ditos do conti-
nente. Ksta commarca das Missões orientaes é re-
gada pelos rios Ijuí , Piraliuí, Icabaquá , e Mhu-
luí , que desaguam no Uruguay cm direcção de N.
O. .^. O. ; e pelo Itú , Taquarí , Nanduí , Jaquarí,
Miri , Jaquari (irande , e 'foropí , que allucm no
Ibicuy Guaçú em direcções de norte a sul; e em-
fmi das cabeceiras e parte superior do rio .lacuí ,
com seus galhos mais consideráveis Ibirayepiró, Ja-
cayoibí , Ijuíílrande, e outros menores, que fe-
chando um bos(|ue da figura de um trapesio irre-
gular, e de superfície de cera léguas, nelle se ajun-
tam lodos ao Jacuí , que sahc pelo vértice meri-
ilioiíal do dito bosque, para logo descer atravessan-
do a serra geral , e apparecer ao sul.
A parle occidenlal daquelles dois indicados trac-
tos inferiores, que anteriormente á conquista de
1801 apenas alcançava até o Albardão grande [que
reparte as aguas para o Uio da Praia, c para o Rio
Grande de S. Pedro] , se estende presentemente ao
sul alé ao rio Jaguarão, que desagua na lagòa Me-
rim ; e a oeste pela margem de noroeste das pri-
meiras oito léguas do Uio Negro , que segue pelo
território de Montevideo para o Uruguay ; e pelas
cabeceiras dos Ibicuys , galhos principacs do Ibi-
cuy Guaçú, abraçando estes parte da escalvada Ser-
ra da Campanha , fértil pela undação dos seus ga-
lhos occidentaes o Iliicuy Mirim, Ibirapuilã , Pai-
passo, e Nandui ; alem dos quaes regam também
estes campos as aguas do Guarócai a oeste do refe-
rido Ibirapuitã ; e pelo lado oriental do mesmo Ibi-
cuy Guaçú os seus galhos Toropí , Caassiquei , Ina-
tuí, Jaguar! , Taquarembo , e mais duas vertentes
do mesmo Ibicuy. Destas ramificações a mais cen-
tral é conhecida pela denominação de Uio de St.*
Maria até distancia , era que se confundo com os
outros Ibicuys , bem que na demarcação de limites
de 1758 , teve por si opiniões de que era o prin-
cipal , e verdadeiro Ibicuy. Todos estes esgalhos
correm no território conquistado do semicirculo do
nascente para se perderem a oeste no Uruguay pe-
lo seu tronco geral o Ibicuy Guaçú, e vão por fim,
juntamente com os do Rio Negro, inisturar-se no
i;io da Prata.
Era direcção opposta discorrem , na outra meta-
de oriental desta mesma subdivisão occidenlal e do
dito Albardão principal para leste, o grande Jacuí
ou Guiaba , de cuja origem já acima tratámos, o
caudaloso Icabaquam ou Camacuam , o Piratini do
Sul , c finalmente o Jaguarão. No Jacuí entram pe-
la banda do norte o Taquarí , tão copioso como o
próprio Jacuí , o Uio Pardo , c o Butucaraí , alem
d'outros arroios menos notáveis; e pelo sul o arroio
dos ratos , o do Conde , o do Francisqninho , c o
Capivarí, nas direcções do sul para o norle, sahin-
do da serra do Herval , c dos seus extremos se-
plentrionaes ; o de D. Marcos, o de Tabatingaí, e
o rio Pequerí com o seu galho oriental Iroi, o Cam-
pané , o ramoso Irapuá , c uUimamente o Vacacaí
com os seus ramos meridionaes ; o rio de Santa
Barbara , o de S. Sepé , os arroios Cambai , de S.
Jeronymo , e do Salso, já immediato ás suas cabe-
ceiras ; e pela banda do norte o arroio do Arsenal ;
fechando esta ramificação dos galhos do Jacuí ao
sul da Serra geral o pequeno Araricá , conhecido
ordinariamente pelo nome de Vacacaí Mirim , e o
Tupaetuá , quasi lodo embrenhado na mesma serra.
(Continuar-sc-haJ.
Pauild e mania do.i orientaes nn Iralamento dos
cães. — Digno é da curiosa altenção do viajante o
cuidado singular c ao mesmo tempo extravagante
com que são tratados os cães do grão-seuhor , ha-
vendo para isso deputados certos serventes , como
se fosse para pensar e vigiar cavallos de muita es-
limação; conservam-os em aposentos extremamente
limpos, c quando sabem os adereçam com fatos de
veludos , e paunos de cores mimosas , com borda-
dos d'ouro. Indo o sullão á guerra , caminha com
lamanlio apparato de comitiva e tal sumptuosidade,
que move a espanto ; e luiuca deixa de levar adian-
te de si inuumcravel canzoada com ricos atavios ,
por.do nisso lauto luxo, como os príncipes da Kn-
ropa nos cavallos d'cstado. — O grão-mogol não lhe
fica atraz e porventura é mais excessivo , alé fez
passear de palanquim uns lebréus de boa raça que
lhe mandou de presente o governo inglez. :■ '■
79
o PANORA3IA.
201
y> .
PONT f FRIDD SOBRE O TAFF.
PoxT r Prtdd na linguagem céltica significa «pon-
te formosa» ; e assim c denominada a que esU lan-
çada sobre o TafT, dislriclo de Glamorgan, no paiz
de Galles. — Não é porem cila celebre somente pe-
la bclleza da localidade e da construição , como
pelas circumstancias peculiares do architecto que
a edificou. — Guilherme Eduardo nasceu naqnellas
visinhanças no anno de 1719 : foi filho de ura ca-
seiro, e com seus irmãos mais velhos trabalhava no
amanho da granja : a Providencia o dotou de pene-
trante comprehensão , vigor d'alma, e vontade per-
severante , como logo veremos. Todo o ensino que
alcançou limitou-se a ler e escrever a lingua pá-
tria . a gaelica , e aos rudimentos de contabilidade ,
que lhe ensinou um visinho : contava apenas 18 an-
nos quando se applicou a fazer muros de pedra sol-
ta , que são geralmente as cercas das fazendas no
principado de Galles; tal foi o primeiro ensaio pa-
ra o officio de pedreiro , em que não leve mestre ,
vindo a sè-lo depois c habilissimo como suas obras
mostram : observando com inteira allenção o traba-
lho de uns olficiaes que foram chamados a exerci-
tar seu mister naquella comarca aprendeu a servir-
se de melhor ferramenta e a construir de pedra e
cal, e tomando pequenas empreitadas aos seus com-
parochianos adestrou-se singularmente no officio que
por inclinação escolhera , e quasi por instincto ap-
prendêra. Durante pequena estada em Cardiff, capi-
tal da sua provincia, estudou a lingua ingleza : com
tão simples noções, como as que declarámos se creou
o architecto da ponte do TalV [sua primeira tentativa
em grande escala] e depois d'outras muitas pontes.
O TafT, que cursando ao sul vai desaguar no Sc-
▼ern , é sujeito a grossas e frequentes cheias, e na
paragem escolhida para a ponte, para juntar as es-
tradas das margens opposUs, é bastante largo : duas
JcLHO 1.°— 1843.
difficuldades estas que obstavam á conslrucção, mas
que não assombraram Eduardo , como o não fize-
ram descoroçoar dois desastres consecutivos. De
três arcos levantou a primeira fabrica , mas esbar-
rando nelles os troncos, pedras e ciscalbos, carrea-
dos por enorme alluvião , represaram-se as aguas ,
que crescendo em volume e violência levaram a
ponte. Teve d'erigir outra, conforme seu contracto,
e para evitar o que aconteceu á primeira dispôz
que fosse de um só arco : só faltavam para comple-
tar a obra as guardas ou parapeitos, quando os bo-
taréus deram de si com o crescido peso da alvena-
ria c calçada , e tudo veio ao meio do rio. Não de-
sanimou o emprehendedor , e reconhecendo a ori-
gem do mal construiu a que ora permanece , como
se vé na gravura , e que foi concluída em 175.5 :
notam-sc nesta uns buracos , ou óculos cylindricos ,
Ires por cada lado do fecho do arco, que ascendem
com vários diâmetros e segundo a respectiva cur-
vatura do arco : usou desta engenhosa traça para
diminuir o peso, e com eITeito alcançou a estabili-
dade, devendo adverlir-se que a abertura ou lar-
gura do arco excede muito á da celebrada ponte
do Rialto cm Veneza ; por quanto é de 140 pcs ,
medidos de pegão a pegão.
Este homem , de natural talento e extraordinária
perseverança , morreu em 1789 , estimado dos seus
conterrâneos. Construiu elle outras obras de igual
natureza , e o condado de Glamorganshire . sua pá-
tria , carecia com effeito de taes construcções e ou-
tras , como estradas, &c. que facilitam a commu-
nicação , porquanto é o districto , no sul de Galles ,
onde mais se exploram minas de carvão de pedra
e de ferro , em que consiste toda a sua industria :
e na verdade depois de Guilherme Eduardo ahi se
tem feito importantes obras deste género.
2." Serie. — Vol. II.
202
O PANORAMA.
■<r-
O Bodo.
1128.
XHI.
A boa corda de cãnave de quatro ramacs.
A SITUAÇÃO de D. Thereza , quando o Trovador en-
trou em Guimarães, era na verdade terrível. A có-
lera que nessa noite trasbordara do corarão do con-
de , e a sede implacável de sangue e de vingança
que o devorava fizeram conhecer claramente ;i rai-
nha que para Aflbnso Henriquez não havia esperar
delle nem paz nem perdão. Esta certeza avivara,
emfim , na sua alma os sentimentos de mãe, senti-
mentos que já não podiam ser para 1). Thereza se-
não uma nova causa de desventura. Tinha jurado
perante os cavalleiros do conde sahir com eiles á
lide , e quando ousou fallar de reconciliação , o se-
nhor de Trava com palavras de respeito hypocrita
e de verdadeiro escarneo lhe recordou a promessa
que tão recentemente havia feito. Subjugado pelo
predomínio infernal, que nelle alcançara Fernão l'e-
rez, aquelle pobre coração de mulher, que cria sen-
tir em si os brios de um coração d'horacm , sabia
apenas des[>edaçar-se n'uma contínua alternativa de
afFectos. Temendo que as suas palavras revelassem
;io mensageiro do infante a fraqueza materna , o fi-
lho de Pedro Froylaz lhe prohibíra o escuta-lo, re-
servando para si o regeilar todas as proposições que
não fossem as de completa obediência. Ouando, po-
rem, soube quem era ocavalleiro que trazia a men-
sagem, o condo não pôde deixar de sorrir da audá-
cia insensata do mancebo. Apesar do silencio que o
generoso Garcia Bermudez guardara acerca desamo-
res de Dulce , o conde concebera vehementes sus-
peitas da existência destes. Avindad'Egas a Guima-
rães disfarçado podia ter bem diverso motivo: mas
a indiflercnça da filha de U. Gomez Nunez para com
a paixão do alferes-múr , de um homem que aliás
olla parecia presar ; a missão inútil que este dera a
Truclezindo, c que o fallador e inquieto pagem não
tardara a relatar ao seu poderoso parente e senhor ;
o empallídecer de Garcia Bermudez apenas ouvira
proferir o nome de Egas Moniz ; tudo isto foi para
1'IIe um raio de luz. Resolveu perscrutar o efleito
que a presença do cavalleiro produziria no alfercs-
mór. Era o modo de verificar as suas suspeitas ; e
por isso lhe ordenou o acompanhasse com outros fi-
lhos-d'algo á sala do conselho , onde devia receber
a mensagem do infante.
Tal é o caracter das almas vingativas, que se nas
mais graves situações da vida se lhes offercce o en-
sejo de uma vingança mesquinha , seguem este en-
sejo com o' mesmo ardor que empregam naquillo a
que estão ligados os seus mais importantes interes-
ses. A idca de atormentar Egas — o pupillo queri-
do do odioso senhor de Cresconhe — e de achar tal-
vez na revelação do amor do mancebo pretexto para
faltar á IV; que devia a um mensageiro indefenso ,
por isso mesmo que era uma idéa vil e maligna, se
lhe tornava n'uma espécie de deleite c remanso no
meio da tcn)|)esta(le que lhe agitava o animo.
Entrando na sala , onde o conde , empe e rodea-
do dos mais illustrcs barões , o esperava , o Trova-
dor se dirigiu [)ara elle com passo seguro c gesto
altivo. Parou , fazendo uma leve inclinação de ca-
beça ; depois , mirando em roda , os seus olhos se
encontraram com os do alferes-mór , cujo cargo o
logar que occupava junto ao conde sufficienteraentc
indicava : tanto os de um como os do outro parece-
ram lampejar: abaixaram-nos ao mesmo tempo. O
rosto de Garcia Bermudez empallideceu ; ao de Egas
subiu a vermelhidão da cólera. — «O ódio de Gar-
cia Bermudez é mais profundo — pensou Fernão Pe-
rez que os observara. — E com rasão, elle é o des-
presado.i) As suas suspeitas realisavam-se.
Immovel , callado , e alçando de novo os olhos
para os fitar no conde de Trava, Egas Moniz espera-
va que este o mandasse fallar.
«Doe-me, senhor cavalleiro — disse o conde —
que os paços de Guimarães vos não possam receber
como hospede e amigo. Má demanda vos traz aqui
por mensageiro de rebeldes , se não c que em no-
me dclles vindes implorar a piedade da mui excel-
lente rainha de Portugal, que me ordenou recebes-
se vossa mensagem. >>
«Ao que vim dir-vo-lo-hei , senhor Fernão Perez
de Trava — respondeu Egas. — Pelo antigo foro
dos nobres-homens d' Hespanha , e pelo foro dos
francos : como filho de um barão leouez , e como
filho de um barão de Borgonha , — por uso e lei
d'aquem e d'alcm serras , toca a herança da honra
de Portugal ao mui illustre infante D.AITonso. Não
venho em nome de rebeldes. Uicos-homeus e infan-
ções, burguezes e villões desta boa terra in'enviam
dizer á mui excellente rainha , e a vós, senhor de
Trastamnra , conde de Trava , prestameiro do cas-
tello dePharo, nobre-homem deGalliza, que d'ora
avante , o filho do conde Henrique é o senhor do
Portugal. — D. Alibnso offerece a sua mãe os direi-
tos , villas e caracteres do infantalico , e a vós li-
vre passagem para o solar e honras de vossos ante-
passados. Doe-me também, senhor conde — accres-
centou o cavalleiro — de ser eu quem vos houvesse
ue trazer Ião desagradável mensagem.»
'(Acabastes? — interrompeu Fernão Perez com voz
presa e um leve tremor de lábios.
(1 Ainda não : — proscguiu Egas Moniz. — Devo
também declarar-vos que se recusaes a paz , araa-
nhaã diante deste caslcllo, ou sobre os seus próprios
muros, se pelejará brava lide, lide que durará até
que o juizo de Deus resolva de que lado está a jus-
tiça , de que lado a iniquidade.»
«.Mais nada? — perguntou de novo o conde, com
um sorriso indizível d'escarneo.
«Só uma cousa , senhor conde de Trava : — res-
pondeu o cavalleiro com alguma perturbação. — X
vós c á rainha era dirigida esta mensagem. Vós ten-
de-la ouvido : resta que ella a ouça. Scrme-ha per-
mittido fallar-lhe?»
« .\nles disso, cavalleiro: — replicou o conde em
cujo rosto transparecia a lucla que linha comsigo
mesmo i)ara conter o furor que lhe sciutillava nos
olhos : — antes disso cumpre advertír-vos uma cousa.
Conheço-vus : de sobejo vos conheço eu ! — Mas não
basta vosso simples testemunho c vosso ar altivo pa-
ra vos crermos mensageiro do mancebo Alibnso Hen-
riquez, que se intitula senhor e infante de Portu-
gal ; mensageiro dos ricos-homens, infanções e con-
celhos que dizeis vos enviaram. (Juem pódc aflirmar
que um homem é o que parece? Muitas vezes mo-
tivo occullo obriga o cavalleiro a vestir as bragas
d'almafega e o zorame de burel do peão ; muitas
vezes o villão ousa trajar o saio escudado de caval-
leiro , e piir sobre a cabeça o capello de ouropel.
Para responder ao que dissestes , por mercê raos-
traí-me a vossa carta de crença.»
Estas palavras do conde foram vibradas com um
o PANORAMA.
203
sorrir Ião desusado, que o trovador precisou de to-
da a energia de que naluraliuciitc era dotado para
disfarçar a impressão que na sua alma ellas haviam
produzido. Eram demasiado ciaras para não as en-
tender. Teria sido atraiçoado por Abul-IIassan .' —
Tremeu ao pensar em Dulce. Sem replicar tirou do
peitilho do saio um pequeno pergaminho dobrado ,
c appresentou-o ao conde , o qual o passou ás mãos
do reverendo Kicha iMartim , que exercitava então
o officio de chanceller.
« Em termos, e sera duvida : — murmurou o digno
cónego examinando a escriptura. — Kada falta: si-
gnaes , notário, e testemunhas.»
«De quem são os signaes? — perguntou Fernão
Perez sem tirar os olhos docavalleiro cada vez mais
perturbado.»
"De D. Affonso , — respondeu Eicha Marlim. —
É o seu rodado e a cruz , tudo ao que parece feito
por quem pintou a carta , que diz ser e me parece
escripta da mão de Pedro o chanceller do infan-
te )
Infante ? I — interrompeu em voz baixa o conde
batendo com força no punho da espada.
«Item — proseguiu o cónego — de D. Paio, que
louva e confirma »
«Do arcebispo de Braga? Vinga-se da prisão em
que o leve a rainha. Como sempre , revoltoso e in-
trigante. Continuai.
<iE de Fernão Captivo , alferes-raór de Portugal,
diz a segunda regra dos que confirmam do lado di-
reito. »
«Mente ! — retorquiu o conde em tom já mais
alto e colérico. — O alferes-mór de Portugal está a
meu lado , e não é um miserável traidor. Lede. »
« E de Egas Moniz de Cresconhe — mordomo da
cúria. »
«Da cúria dos sandeus evisl — atalhou o conde,
cujo furor conlinuava aaugmentar. — Velho infame,
movedor principal da revolta'.»
« E de Gonçalo Mendez , rico-homem »
« Que ! ? — bradou Feruão Perez arrancando o per-
gaminho das mãos de Eicha Martim e olhando es-
pantado para aquelles caracteres , que a sua igno-
rância de nobre lhe não consentia entender. — Elle
no campo de D. AfFouso '. ? Elle também mandou es-
crever seu nome nesta carta de crença?'. Não é pre-
ciso lèr mais. Ttlensagciro, que vieste afTrontar-me,
sahe já de Guimarães, porque te juro que nãofalla-
rás á rainha; que não fallarás aos traidores que tal-
vez buscavas ; porque traidores andam no meio de
nós'. Vai dizer aos villões que te mandaram, e aos
cavalleiros mais villões do que clles, que eu conde
de Portugal e Coimbra os despreso : que se ousa-
rem approxiraar-se de Guimarães os mandarei de-
sarmar pelos meus cavalleiros , e arraucar-lhes os
olhos pelos meus cavalleriços e servos. Entendes?
É isto o que lhe deves dizer , e dá graças a Deus ,
de não começar por ti o castigo de desleaes. »
Durante a leitura do reverendo cónego de Lame-
go a perturbação de Egas se havia asscrenado com
as observações violentas do filho de Pedro Froylaz,
que pouco a pouco alinham convertido em indigna-
ção. Esta subira de ponto com as suas derradeiras
palavras: o cavaileiro conteve-se todavia.
«Senhor conde de Trava, não creio digno de um
nobre-homem d'IIespanha gastar affrontas inúteis
contra os que não podem responder-vos. Pedistcs-me
as provas do que aífirmava. Dei-vo-las. O recusar
admittir-me á presença da rainha podeis faze-lo ;
mas faltareis á lealdade que deveis a vossa senhora.»
«E quem te deu direito, miserável , de me en-
sinar meus deveres? — bradou o conde furioso. —
Quem te assegura, vil toupeira, que minas no silen-
cio da noite o chão que pisamos, porque não ousas
mostrar á luz do dia a fronlc covarde , que sahirás
a salvo de Guimarães sem que te faça arrancar a
lingua insolente? — Tu que ousas fallar de lealda-
lic, a que vieste lionlem a cslc castcllo como um sal-
teador nocturno ? Mas hontem como hoje os teus
passos foram perdidos '. X minha resposta aos con-
selhos que me d.is é esta : servirá ao mesmo tempo
de resposla aos que te enviaram.»
Ao ouvir as ultimas phrases , o trovador sentiu
fusligarem-lhe as faces os fragmentos lio pergami-
nho , que o conde despedaçara entre as mãos.
O lume fugiu dos olhos a Egas. Era uma afFron-
ta monslruosa a que recebera. Recuou : os dentes
rangiam-lhc como em accesso febril.
«Infame c covarde és tu, villão de Galliza 1 gri-
tou elle. — Infame porque vendeste o teu corpo co-
mo unia mulher perdida : covarde porque só sabes
injuriar no meio destes Icbreus esfaimados que te
cercam. Salteador és tu que roubas a nobre terra
de Portugal a seu verdadeiro senhor. Assassino, le-
vanta esse guante se ousas I »
E alirou a luva aos pés de Fernão Perez.
«Alevanlarei eu o teu guante , cavaileiro Egas
Moniz I — exclamou Garcia Bermudezadiantando-se.
— A lança e a espada do nobre conde de Portugal
e Coimbra não devem cruzar-se com as tuas. Se-
nhor conde , uma estacada , e nomeai os juizes do
campo. »
A raiva suffocava e tolhia a falia ao conde de Tra-
va , cujos olhos banhados de fel pareciam não lhe
caberem nas orbitas : estendeu apenas a mão tre-
mula e conlrabida fazendo signal que recusava. (►
seu terrível silencio durou por alguns instantes.
Quem se atreveria a quebra-lo ?
Finalmente aquella espécie d'espasmo terminou
por uma risada medonha. Uma escuma ensanguen-
tada borbolhava-lhe dos cantos da boca , e pendu-
rava-se-lho em glóbulos cor de rosa na barba negra
e revolta.
«Uma estacada , alferes-mór? — rugiu elle em-
purrando para traz com violência Garcia Bermudez.
— Estacada e juizes? Uma das ameias da torre al-
varraã serão a estacada : o algoz, oreptador eo juiz.
O cepo e o cutello são para ricos-homens : este san-
deu, enforquem-no como um cão ismaelita? Homens
d'armas , lançai-mo na prisão do alcaide no fundo
da carcova '. »
Egas olhara em roda : estava só : os seis almo-
gaures haviam sido retidos no paleo exterior. Ain-
da íenloa defender-se ; mas opprimido pelo nume-
ro , e desarmado em breve , arrastaram-no para fo-
ra da sala. A imagem de Dulce lhe appareceu en-
tão serena e pura : um gemido de desesperação lhe
fugiu do peito. Este gemido de desalento era o der-
radeiro adeus que lhe inviava. Entre elle e a sua
amante a morte e a ignominia se tinham naquelle
momento assentado.
O alferes-mór seguiu com os olhos o trovador, ti-
nha licado immovel era quanto durou aquella hicfa
deshonrosa para Fernão Perez e para os seus caval-
leiros. >o gesto do generoso Garcia pinlavam-se ao
mesmo tempo a vergonha, o ódio, e a piedade. El-
le quizera vingança ; mas repugnava ao seu coração
uma vingança atroz e covarde.
Apenas Egas sahiu entre os homens darmas o
conde voltou-se succcssivamente para Eicha .Mar-
204
O PANORAMA.
lim , para o villico do castcUo, e para os cnvallei-
ros que o rodeavam : —
«Senhor capellão-inór, tende promplo um monge
de S. Salvador para esta noite confessar um liomem
que antes do romper d'alva deve ter legado seu ca-
dáver ás aves do céu. Senhor villico, lende prom-
tas Ires braças de boa corda de cànavc de (|uatro
ramaes. Que seja saã e lorte : não defraudeis por
mesquinha essa pariu da herança que hoje receberá
o algoz do caslello. Bem sabeis que por costume
lhe pertencem acorda da justiça e as roupas do jus-
tiçado ! — Senhores cavallciros, breve nos veremos :
agora se vos praz podeis relirar-vos. »
Logo que se achou sosinho o conde atirou-se a
uma cadeira d'espaldas , aperlando a fronle entre
as mãos : as artérias pulsavam-lhe com violência ,
e o coração agitado por paixões más ,■ e por temo-
res bern fundados , balia-lhc apressado. Havia na
serie dos successos daquelle dia e do antecedente
algumas circumstancias ininlelligivcis, algumas la-
cunas tenebrosas que não podia aclarar. Como es-
capara o Lidador com os seus vinte acostados e com
Fr. Ililarião? — Alguém favorecera esta fuga. SIas
quem? Vinham-lhe á idéa os desejos que D. There-
za moslrára de recorniliação , e as diligencias que
fizera (;arcia Bermudcz para salvar os cavalleiros
presos nessa noite, os quaes clle no seu furor qui-
zera metler a cutello. Chegou a desconfiar da rai-
nha c do alferes-mór : e estas desconfianças eram
um tormento infernal. Trahido por elles , quem lhe
restava? Se ao menos podesse dizer-lho, pedir-lhes
provas da sua lealdade! — Era uma idéa insensata.
Refugiu delia com horror. A própria imaginação se
lhe converléra em verdugo impbicavel , e a alma
dura e orgulhosa do filho de Pedro Froy la z debatia-
se no meio dos seus receios , como se em longo pe-
sadello visse surgir ao redor de si todos aquelles a
quem o prendiam mais estreitos laços, converlidos
por leiliçaria diabólica em disfarçados mas impla-
cáveis inimigos. Estas duvidas terríveis se modifi-
cavam , porem, com a lembrança das probabilida-
des que tinha de triuniphar do infante. Depois da
victoria elle obteria facilmente do imperador AlTonso
de Leão os condados de Portugal e Coimbra como
feudos rcaes , e então arrancando a mascara de um
amor que expirara , usaria como senhor do poder
que muitas vezes se via constrangido a deixar va-
cillante nas fracas mãos da infanla-rainha.
Ivo meio de similhanles reflexões o conde não se
esquecera do mensageiro caplivo. No seu ódio con-
tra a família de Riba-de-Duuro , ódio que naquelle
momenlo parecia accunnibir-sc lodo sobre a cabeça
do desgraçado mancebo, não lho bastava assassinn-
lo : era preciso ajuntar á morte a ignominia ; por
isso o condeninava ao supplicio dos peões e servos.
O cadáver d'Egas, pendurado dos muros do castel-
lo , seria uma prova terrivcl de que entre o infante
c a rainha eslava o senhor de Trava ; e que a si-
gnificação deste nome era a de uma guerra d'ex-
tcrminio.
Na serie dos pensan)cn(os que em turbilhões pas-
savam pelo cs|iirilo de Kcrnão Perez, surgiu um te-
nebroso e maldito que fez sorrir o perverso. Era
um oásis em que a sua alma, correndo despcada por
deserto ardente de temores, incertezas, c agonias,
SC reclinava para repousar volupluariamente. O mo-
mento de entregar Dulce nos braços de (larcia Ber-
mudcz lifilia finalmente chegaiio.
Qu.u\(lo K^-ns entrou na sala do conselho, onde já
o allercs-mór se achava, o conde se confirmara até
certo ponto nas suas suspeitas; — lèra no gesto de
um e d'outro que eram de feito rivaes. A idéa de
prender a si o esforçado aragonez , fazendo-lhe ob-
ter a mão de Dulce , já não era a principal motivo
que obrigava Fernão Pcrez a occupar-se de alheios
amores no meio dos sérios cuidados que o cerca-
vam. Havia nisso mais graves rasões. Cumpria-lhe
vencer a resistência de nma herdeira illustre, e fa-
zer callar a repugnância da rainha diante da sua
forte Vontade. Naqu"lla cpocha um dos privilégios
mais importantes, introduzido na Hcspanha pela in-
fluencia feudal dos costumes francos , tendentes a
auginenlar o poderio dos príncipes e barões, era o
direito d'escoiher marido para as orphaãs nobres ,
filhas de feudatarios dos seus estados ou senhorios.
Este direito, conhecido na França pelo nome de
maritagio, estabelecido depois entro nós debaixo da
-denominação de cartas de casamento , vigorou , cs-
lendenilo-se ás mesmas orphaãs plcbeas , pelo me-
nos alé o século 13.°, postoque fortemente comba-
tido pelas cortes ou parlamentos. Fernão Perez con-
sidera\a-se já como senhor dos condados de Portu-
gal e Coimbra , e por isso devia impedir aquelle
exemplo de resistência contra um dos direitos de
maior valia nos novos costum.es feudaes , ao passo
que lhe importava obrigar a rainha a ceder do pró-
prio alvedrio n'um dos affeclos mais profundos do
seu coração — o amor que tinha a Dulce , a sua fi-
lha adoptiva.
A estas considerações se ajuntava um prazer mes-
quinhamente ferino ; e por isso no rosto do conde
deslisára sorriso atroz. Sc Egas amava Dulce, elle
poilia accrescentar-lhe na morte mais um marty-
rio: SC Dulce amava o mancebo, ella própria seria
o instrumento desse martyrio , crendo salvar o seu
amante. Era um desígnio bárbaro o que o senhor
Ue Trava formara ; mns por isso mesmo deleitoso
[lara aquella alma repassada de maldade e de fel.
llavcnd) saboreado por algum tempo a requinta-
da vingança que traçara contra o nobre cavalleiro ,
que, provocado por uma acção brutal, tão duramen-
te o afirontára , o conde de Trava passeou durante
algum tempo de um para outro lado procurando re-
cobrar apparentctranquillidade. Depois encaminhan-
do-sc para uma porta exterior chamou o seu pagem
valido , que poucas vezes se afastava delle. Tructe-
ziiuio appareceu.
«Dirige-le aos aposentos da rainha , meu gentil
sobrinho: — disse elle ao pagem, pondo-lhe a mão
familiarmente sobre a cabeça. — Preciso de fallar
com Dulce , e importa que seja breve : mas é ne-
cessário que não o saiba D. Thereza.»
Tructczindo pegou no braço do tio , e levando-o
para uma janella , sem dizer palavra , apontou pa-
ra o jardim pênsil que d'alli se descobria em gran-
de parle. Dulce, assentada á sombra de um teixo,
tinha na mão nma saudade, para a qual olhava sem
pestanejar, absorvida em profunda meditação.
«liulrão! — proseguiii o conde rindo — Dizes
(|ue é melhor aquelle logar? — Não é assim? —
Para li, gentil pagem, talvez I — Não para mim
que já não trato de amores , como tii que matas as
lindas donzellas com mil trovas de queixumes. Mas
repara que para ser cavalleiro importa mais o jo-
gar pontas e tavolado e encalvagar um ginete que
o aprender os cantares dos jograes e dos trovado-
res. »
"Oh não, meu tio csenhori — replicou o travesso
rapaz. — l'elos ossos de São Cucufate, que com tão
liuas artes o sanio arcebispo Gelmircz furtou de
o PANORAMA.
20t
Braga par.i Icvnr a Composlolla , vos juro qiio não
pensava d'ainores. Mas como qncricis que eu po-
dasse fallar a Dulce nos aposentos da rainha , sem
que ella me enxergasse?. . Aqiiclla porta que vedes
acolá — accrescentou maliciosamente — segue-se um
corrcilor escuro, que vai da salad'arnias ao jardim.
Se eu soubesse quem possuia a chave iria por alli
chamar DuUe. »
« Aillanete '. — continuou o condo no mesmo tom
de gracejo. — Kssa chave não sahe deste cinto se-
não para esta mão. Querias que a fiasse de ti? Por
Santiago, que não, meu gentil pagem I — Atraves-
sa os palcos do caslcllo; acharás provavelmente
aberta a poria do jardineiro ,\bul-[lassan. . . . Mas
não; — proseguiu depois de pensar alguns momen-
tos.— Melhor ó que eu vá. Tu cnlretanlo vè se en-
contras Garcia Bcrmudez , e dize-llie que me espe-
re nesta sala. Depois vai-le a folgar. Prestes , meu
guapo donzel ! »
Dizendo isto , o conde affaslou brandamente Tru-
ctezindo , e encaminhou-se para a porta que o pa-
gem lhe indicara. Tructezindo fcz-lhe uma visagera,
de modo que clle o não visse , e cm dois pulos sa-
hiu do aposento, dando um silvo agudo que restru-
giu pelas abobadas, e que se confundiu com o som
da porta, que Fernão Percz , cutrando no corredor
escuro, cerrara apoz si.
O senhor de Trava entrou no jardim : Dulce con-
servava-so ainda no mesmo logar e na mesma pos-
tura. Fernão Percz achava-se já ao pé delia ha-
via alguns instantes, quando esta alcvanlando os
olhos encontrou os do conde , qne em silencio a
contemplava com ar risonho. A pobre donzella es-
tremeceu : a saudade que tinha na mão cahiu-!he
em terra. Mal pensava a desgraçada que assim de-
via em breve cahir para sempre a sua ultima es-
perança de felicidade I
Dulce ergueu-se e ia partir; mas o conde a re-
leve , e fazendo-a de novo assentar , disse-lhe com
brandura :
«Foges de mim , donzella? — Á fé que não t'o
mereço eu. Vinha buscar-te para me queixar de
me leres escondido um segredo , cuja revelação te
houvera poupado amarguras, e a mira um procedi-
mento involuntariamente cruel. Quiz ainda ha pou-
co constranger-te a dares a mão d'esposa ao nobre
Garcia Bermudez, porque ignorava que amavas um
cavalleiro, que foi meu inimigo, mas que já o não
é. Cria que o teu refusar nascia de um capricho
infantil; não de um amor ardente. Agora sei tudo.
Egas Moniz , o nobre trovador , que ha Ires annos
deixou a terra em que tu respiravas para ir colher
louros santos junto ao sepulchro de Christo , voltou
a Portugal , e hoje entrou nestes paços como men-
sageiro do illustre infante D. AÍTonso. Vinha trazer
palavras de amor e de paz, e a paz e o amor renas-
ceram entro a rainha e seu filho. Guerra, ódios,
tudo acabou. Muitos me accusam de orgulhoso e
inexorável; Egas, porem , não os creu. Dcclarou-
me o seu amor, e D. Thereza por meus rogos lhe
concede a sua Dulce , e o solar dos Bravaes. Dis-
seste-me que não tinhas de mim prestamos: dou-te
o que vale mais. Vamos , donzella , agora o raneor
fora injusto. Dcixa-me beijar-le a mão : é um rou-
bo que faço ao nobre Egas, mas elle me perdoará.
O cavalleiro neste momento está com a rainha , e
eu vou couduzir-le aos seus braços. »
De feito, o conde beijava afTectuosamcnte a mão
de Dulce. O seu gesto era Ião sereno e alegre : c
as suas palavras pareciam vir tanlo da alma ; fatia-
va com tanta certeza do amor de Egas , que a des-
graçada cahiu no laco infame qne Fernão Percz ar-
mara. Succcssivamente ella empallidecèra e cor,'í-
ra , e as lagrymas que lhe rebentavam dos olhos
misturavam-sc com o sorrir dos lábios : o seu cora-
ção abri.i-se á felicidade depois de tanto padecer
devorado em silencio , como a fiòr açoutada por
noite de ventania desabrocha ao assercnar da ma-
nhaã com os primeiros raios do sol.
i'Ob que essas palavras são suaves ; são para mim
o céu : — exclamou Dulce. — Sou eu que devo lan-
çar-me a vossos pés , senhor conde , beijamlo a ter-
ra que pisaes, e sois vós que deveis perdoar-me, por-
que vos detestei e amaldiçoei quando qucrieis unir-
me a Garcia Bcrmudez, a esse nobre cavalleiro que
eu amaria com todo o amor que elle merece, se o
meu coração fosse livre. Era fazer a minha ventura
que vós perlendieis, e eu insensata maldizia e odia-
va o meu anjo da guarda, o meu segundo pae '. Pu-
nir-mc-hei , fazendo a confissão que mais custa ao
pudor : — amo Egas ; elle linha de mim o juramen-
to de antes morrer que trahi-!o. Ha um momento
cu tremia , porque soubera parte do que me dizeis
— soubera que elle estava em Guimarães como men-
sageiro do infante. Era uma angustia intolerável a
minha : vós me arrancaes úc um abysmo. »
«Mas tu, minha Dulce, — continuou o conde no
meí'iio tom — não dizes tudo. Hontem á noite cer-
to cavalleiro entrou disfarçado cm Guimarães. ...»
«Tendes rasão , senhor conde — interrompeu a
desgraçada. — Aqui neste horto elle veio jurar-me
de novo o que me jurara Ires annos antes , que
amava a sua Dulce com o mesmo amor ardente e
illimitado. Perdoar-me-ha minha mãe adoptiva ? . . >>
«E porque não? — atalhou Fernão Percz — Não
sabe ella o que é o amor de uma donzella louqui-
nha? — Áquelles que favoreceram a arriscada ten-
tativa de Egas é que cu não sei se cila perdoará ;
porque foi falta de lealdade. »
"Deilar-me-bei aos pés da minha boa rainha —
acudiu Dulce — para que perdoe ao pobre .\bul-
Hassan. . . »
" É verdade .... a AbuI-IIassan — interrompeu
de novo o conde cora alguma hesitação como quem
começa a achar o fio de um labyrintho intrincado.
— A esse ainda será fácil.... Fallou-me nelle o
bom Egas. . . . Mas cavalleiros que devem preito e
menagem a D. Thereza I . . . Gonçalo Mendez que
o seguiu ao arraial de meu senhor o infante. . . Em-
fim tu sabes o resto : bem vês que em taes casos ,
apesar de uma reconciliação completa. ..."
• Não sei mais nada. Desde que Egas partiu igno-
ro tudo . . . juro-vos que o ignoro. Mas que impor-
ta ? — -A rainha. ...»
«Demónio I- — bradou o condo mudando repenti-
namente de (om c de gesto — Que não possa achar
a urdidura desta negra léa I Não sabes mais nada ,
mulher? — Pois eu sei de ti o que desejava! Mise-
rável , que apenas os olhos da águia se cravaram
nos teus , sem rubor lhe patenteaste a tua infâmia !
— Insensata ! Creste que eu podia ter paz com re-
beldes , e ouvir pacientemente as amorosas endei-
xas d'um jogral da vil e detestável raça dos Gas-
tos de Piiba-de-Douro? Em tudo o que te disse ha
uma verdade só. Egas está em Guimarães: está
em. meu poder , e cu já lhe preparei o seu leito dft
noivado. — Uma bem segura ameia da torre alvar-
ran. c uma boa corda de cànave de quatro raraaes.
Linda e innocente donzella, amanhaã ao romper da
aha podes ver o leu gentil trovador: olha para lá
206
O PANORAMA.
il'aqui nresmo ; ahi o has-de divisar dançando ao
sopro rijo do vento. Quem cauta deve saber bai-
Jar. »
As primeiras palavras do conde Dulce rahíra ful-
minada. Mas as derradeiras a revocarara á vida
com a imagem de uma terribilissima realidade, co-
mo o réu , desfallecido no primeiro trato , se rea-
nima crescendo a intensidade dos tormentos. De
joelhos, com as mãos erguidas, os dentes batiam-
Jhe com força , e não podia dizer nada. Mas o ter-
ror da sua alma melhor o exprimia o gesto , que
outra qualquer expressão.
«É a vida do teu querido jogral que me pedes!
^ão é assim ? Pedes ao leão esfaimado do deserto
que não devore a zebra que tem nas garras ! Af-
fronlou-me , c eu pago a alTronta : rcplou-me , c eu
acceitei o repto. Morrerá morte infame de peão cri-
minoso ! . . . » E depois de uma breve pausa , cm
que Dulce o abraçava pelos joelhos , proseguiu : —
«Nobre neta dos Bravaes, não deshonrcs o sangue
«le teus avós , arrastando-te aos pés do desprezível
estrangeiro ! Por quem sois : — nobre dama, alevan-
tai-vos. I)
«Não peço piedade para elle — murmurou Dul-
ce.— Bem sei que fora inútil espera-la. Peco a
morte para mim antes d'elle morrer.»
«De que me serviria a tua morte? — replicou o
conde depois de cravar alguns momentos os olhos
naquella fronte pallida , onde se pintavam todos os
extremos do intimo padecer. — Quero que vivas pa-
ra chorares o galante jogral , e para com as luas
lagrymas servires de pranteadeira á mui illustre
rainha , ;í tua mãe adoptiva , que , espero em meus
lions cavalleiros , ha-de amanhaã ficar orphaã de
.seu filho. )>
«Oh, senhor, lerabrae-vos de que ha um céu,
e que no céu ha justiça ! Que mal vos fiz eu ! ■ —
3íatae-me , Malae-me ! «
"Sei que ha céu , e que ha justiça; por isso a
faço na terra. Sei mais : sei que o céu é clemente :
quero sè-lo também. Egas ainda talvez pôde evitar
seu fado : o leão ainda péide largar a presa. »
Um vislumbre d'esperança surgiu e desappare-
ceu no rosto demudado de Dulce.
«Meu Deus! — disse cila , e depois deixando ca-
hir a fronte sobre o peito suspirou: — «Ai, é ura
pensamento vão I »
"És tu que podes restitui-lo á liberdade — pro-
seguiu Fernão Pcrez. — Da tua boca pende a sua
\ida ou a sua morte. Serei misericordioso."
"Que pcrtcndeis que eu diga? — exclamou a
donzella n'uraa espécie de exaltação ou antes de
phrenczi , e alevantando-sc com a energia do pere-
grino , que se arrasta moribundo de sede por des-
vios pedregosos c áridos , ao ouvir o súbito mur-
múrio de uma fonte. — Jurar que vos entregarei
meus feudos? — que me sepultarei n'um claustro?
— que nunca mais o verei? — Juro-o mil vezes!
Salvac-o ! »
«Não é a pobreza do dcshcrdada , c o captiveiro
perpetuo de monja que cu te peço em preço da vi-
<la de Egas. . . Sou mais generoso. Quero quo vivas
no meio dos deleites do mundo , na grandeza de
iiolire dama; quero que sejas amada por homem
digno de ti. . . . »
'iMatae-mc, malae-me! — exclamou a donzella,
^•ahindo de novo aos pés do conde. A imagem de
fiarcia Bcrmudcz alluraiára com a luz medonha do
raio as trevas do seu martyrio. O conde continuou :
«llontem prometti ante a rainha que tu serias
mulher de Garcia. Esta promessa ha-de cumprir-se,
ou tu serás a assassina daquclle por quem trocas o
alferes-mór de Portugal , o mais valente e gentil
cavalleiro de toda a Hespanha.»
n IVfas cu morrerei primeiro, senhor conde! —
Tende dó de uma desventurada.»
«Não t'o aconselho. Se morreres, Egas te segui-
rá ao sepulchro. »
u E se Garcia de novo recusar a posse da sua vi-
ctima? — interrompeu a infeliz, procurando ainda
segurar-se na borda do abysmo.
u Egas morrerá : — respondeu tranquillamente Fer-
não Perez.
«Vós, homem bárbaro, jurastes perder o desgra-
çado. Por violência nunca o generoso Garcia accei-
tará a minha mão. »
«Por violência ? — interrompeu o conde em tom
d'espanto. • — Violento-te cu? — Quero esquccer-me
do meu ódio por amor de ti : tu não queres esque-
cer-te de uma paixão louca e impossível. Eis a que
tudo SC reduz. Cede, e Egas será salvo. Direi a
Garcia que te arrependes dos teus desprezos ; que
queres ser sua. Se as tuas palavras, se o teu gesto
não desmentirem meu dito elle será feliz ; e Egas
livre , e persuadido do que o trahiste, breve se es-
quecerá de li. Faço a ventura de três; é por isso
que me chamas bárbaro?»
Dulce parecia suffocada : o arquejar do seio da
infeliz soava como o de um moribundo. Foi o som
que se ouviu por alguns momentos sussurrar nos
seus lábios. Finalmente com a energia da ultima
desesperação, que simula a tranquilidade, disse em
voz submissa e lenta , mas firme :
<( Serei mulher do Garcia Bcrraudez. . Depois ! . . »
"Depois o que aprouver a Deus e á Virgem 5la-
ri.-í : — respondeu o conde alçando os olhos devota-
mente , e apontando para o céu.
O malvado sahira com seu intento. Voltou as
cosias a Dulce, e desappareceu na escuridão do
longo corredor que dava para a sala dó conselho ,
e para a sala d'armas.
Nessa mesma tarde o muito valente e gentil ca-
valleiro Garcia Bermudez linha recebido por sua
mulher de benção na capella dos paços de <iuima-
rães a mui formosa e rica dama D. Dulce , senho-
ra do solar e prestamos dos Bravaes. Um banquete
de voda estava preparado para festejar os noivos.
O aposento destinado para a festa se atulhara de
donas, donzellas e cavalleiros. Faltava apenas D.
Thcrcza e o conde. Este finalmente chegou, condu-
zindo pela mão a rainha até cila se assentar no es-
trado real. Depois o conde desceu, e veio tomar o
seu logar. Apenas se assentou , chamou o pagem
Tructezindo , que estava cm pé atraz da sua cadei-
ra d'espaldar , e disse-lhe :
«Corre, e vae perguntar ao villico do castello se
está bem segura a ameia do angulo do norte na
torre alvarran , c se elle tem puída e prompta a
boa corda de cànave de quatro ramaes. »
, , ..... (Conlinuar-sc-ha).
. .. - , (A- lícratlano.)
A COniJ.V ALVADIA.
AssTRiCEs, aves noclurnas, formam o ullimo gé-
nero dos Ires em quel.inncu dividiu as aves de ra-
pina, comprchcndendo os bufos, as corujas, os mo-
chos , e a tuidara do Brasil. A maior de todas é o
bufo maior, que terá o tamanho d'um pcrú ; segue-
o PANORAJ>IA.
207
SC o medíocre igual no volume do corpo a gralha ;
o bulo mais pequeno regula cm grandeza com o
mocho ordinário : estes três constituem a divisão do
género, distinguindo-se por terem na caberá dois
marlinètes , de que são desprovidas as corujas bem
como o mocho pequeno, que entram na segunda di-
visão. Estas aves tem o bico encurvado era todo o
comprimento , a cabeça achatada verticalmente na
parte anterior e posterior , olhos grandes e redon-
dos , e próprios para ver de noite , siniilhantes aos
do gato , quadrúpede com o qual tem ellas muita
aRinidade pela guerra destruidora que fazem aos
ratos : são guarnecidos os olhos d'um circulo de
pennas finas e rijas que lhes dá um aspecto ex-
traordinário, ao passo que serve para cobrir a gran-
de cavidade da orelha ; os pés são cubertos de pen-
nugem , inclusive os dedos, e destes podem mover
o externo á vontade , quer para traz , quer para
diante : a muita luz lhes fere os olhos de modo que
expostas á claridade do dia ficam ás vezes immo-
veis c fazendo Iregeitos ridículos : tem as azas cur-
tas e o voo fraco ; o grito é lúgubre , pelo que em
algumas terras os simples as consideram de ruim
agouro: todavia os athenienses as honraram e até
as deram por aves estimadas de Jfincrva. Quando
apparecem de dia, Iodas as outras, ainda as peque-
ninas , em bandos as investem e insultam : por ma-
neira que alguns curiosos servem-se delias ou de
figuras que as imitem , como de negara , para at-
trahir e tomar os passarinhos. — A mais bonita das
/•^.^^
corujas é a strix flammca , ou coruja alvadia das
torres , cujas formas se mostram na gravura aci-
ma : 6 do comprimento de palmo e meio ; tem o bi-
co esbranquiçado ; o dorso misturado de cinzento e
ruivo com pequenas malhas pretas , e no meio de
cada uma destas um salpico branco : o ventre ama-
rellado. Acouta-se nos campanários , torres e edifí-
cios altos c desamparados, o seu grito é rijo c agu-
do , e goza de ouvido muito subtil , como todas as
suas congéneres, .\cha-se cm todos os continentes,
inclusive a America : os tártaros mugóes e calmu-
cos lhe tributam grande veneração , porque voga
entre elles que o seu grande capitão, Gengis-Kan ,
fugindo n'uma batalha que perdeu , se escondera
n'um balsedo , no qual veio logo pousar uma coru-
ja ; um troço de inimigos que batia matto a procu-
ra-lo, vendo naquella mouta uma ave tão espanta-
diça, suppozcram que não entrara lá gente e deixa-
ram de a basculhar ; salvando tão ténue incidente
a vida ao celebre guerreiro, que dahi avante usou
sempre de uma penna de coruja no barrete ou no
turbante.
Gotãnicã illt^ica.
Descripíão de rarias arvores, arbustos, hervas c phin-
tas medicinaes que existem na villa de Téte , e da
appliearão que delias fazem os naturaes do paiz
aos usos meehanicos da vida, e nas doenças de que
síio altacados.
(Continuação de pay. 199.^
Mutengtieni: , — era lingua asiática nimo. — Este
arbusto, que floresce nos mezes de novembro e de-
zembro , tem uma pequena Oòr branca e longa , a
qual sendo aberta apprcsenta o fructo denominado
— tengueni — que é do tamanho de uma amêndoa,
e toma a cor vermelha quando está maduro e capaz;
de se comer, o qual é liastante acido, e o óleo que
delle se extrahe applica-se ao aniaciamento de pel-
les , e na arte de curar a resolver tumores.
O pó das folhas pisadas, e misturado com sum-
mo de limão, cura as chagas inveteradas ; e o sum-
mo das folhas bebido raatta as lombrigas.
Cangóme. — A flor e o fructo deste arbusto é co-
mo a do café de Móka , e serve d'alimento aos ne-
gros em tempo de carestia, dando a este fructo em
quanto está verde três ou quatro fervuras , e mis-
turando-o na ultima com cinza para lhe extinguir
o amargo.
O pó da raiz sècca , ou a casca fresca , servem
para sarar os golpes deilando-o sobre elles, e a in-
fusão da casca para lavar chagas antigas, applican-
do-lhe também o pó da mesma raiz para as fazer
sarar.
Canc'mbe-mtmbe. — Tem a Hór amarella , e assc-
melha-se muito á arvore — muxetcco — e não tem
nenhum aroma ; o fructo é em vages do comprimen-
to de meio palmo , as quaes se comem quando es-
tão tenras; a infusão da raiz feita em.panella nova
é muito diurética.
Catutiíjurú. — A flor é amarella claro, e asseme-
Iha-se a umas borlas de franja ; o fructo quando es-
tá maduro é da cór e tamanho do limão ; a raiz c
do feitio da batata, a qual sendo feita cm bocados,
seccando-os ao sol , e reduzindo-os a po , se appli-
ca ao curativo das bobas, como também lavando-as
com a infusão da raiz em quanto fresca ; as folhas
pisadas applicam-se ao curativo de feridas profun-
das por pancadas; e os suadoiros das folhas cosidas
tomados á cabeça , curara as névoas c cataractas
que existirem nos olhos , e finalmente a raiz fres-
208
O PANORAMA.
ca , sendo pisada e espalhada na alagóa , mala o
peixe que nella existir.
Tindinliava sensitiva. — A flor fornia primeira-
mente um butâo como uma pinha do tamanho do
grão de bico , que vai abrindo gradualmente , e
forma um suspiro de còr bromea , sendo a cabeça
dos alfinetes de côr verde desmaiada ; o fructo é
em vages chatas do comprimento de duas pollega-
das , ou pouco menos , còr de rapé e coberto de
penugem ; encontra-se em ribeiros e beiras de rios,
e era lhe tocando nas folhas murcham até oiule che-
ga o tremor do toque. A raiz é muito bramia , c
atada sobre aparte inllammada a faz desinchar;
os banhos da casca pisada e cosida applii:ani-se á
erisipela.
Mulava-nlicrere. — O nome que este arhuslo tem
de nhcrere denota que é perseguido de formigas.
A Dor é amarella similhanle á do (janalinho; o fru-
cto é do tamanho da beringella , com a differenra
de ter quinas, e nasce aos monlões, isto é uns pou-
cos de pés juntos; o cosimenlo das raizes applica-
do em banhos semicupios é remédio para as diar-
rheas ; as folhas pisadas applicam-se ao plcuriz, no
qual operam como o cáustico.
Miitavaii-salo. — A llòr é similhanle ;i da maciei-
ra , e o fructo que dá é muito pequeno e fica sem-
pre acompanhado de folhas ; a infusão da raiz to-
mada em bochechos é remédio para as dores de
dentes; o sueco das folhas pisadas e misturadas com
agua , e tomado diariamente , cura os padecimen-
tos do baço.
Buaze. — As folhas deste arbusto são miúdas, e
as flores pequenas e do feitio das do gerzelim , e
cheiram a pimenta da índia; a semente é propria-
mente linhaça em tamanho, còr, e configuração ;
os negros aproveitam-se do fio que dá para forma-
rem as suas redes de caça , pescaria , aboizes &c. ,
cm fim é uma perfeita similhança do linho que na
Europa se manufactura.
Mudia-córo. — Mudia significa «a que come» co-
ro significa «macaco.» — Tem as folhas brancas pe-
la parte do avesso , como se as tivessem borrifado
de cal ou cinza. Os negros servem-se da raiz deste
arbusto mascando-a, pondo-a de infusão, e seecan-
do-a ao sol, e reduzindo-a a pó para a misturarem
em pombe [amendoada] no que produz o elleito das
cantharidas , tomadas internamcnie.
Titifili. — Este arbusto encontra-se era logares
pantanosos , cm beiras de rios e riachos ; a folha
assemelha-se á do carungasuro e é muilo aromáti-
ca , e delia e doutras ervas c plantas se faz cosi-
mento que se applica em banhos semicupios aos
que padecem puxos, c o cosimenlo da folha serve
para suadoiros e obriga a copiosa transpiração ; a
raiz cortada em bocados e trazida ao pescoço, á
maneira de conlas , é remédio para a doença ner-
vosa de sobresallos , devendo lambera para maior
eíficacia defumar o quarto de dormir cora a raiz
e folhas do mesmo arbusto.
Capande. — A fiòr é miúda e tirante a roxo, a
semente é do tamanho de ginja e similhanle á fru-
cla da arvore mnlurara. — Os cafres applicam este
arbusto ao moavi [juramento ou prova judicial en-
tre clles] preparado da maneira do jjoóo , que lam-
bera é moavi entre clles [torno já dissemos]. O chá
da raiz applica-se á febre denominada itáca , por-
que faz transpirar bastante , com o que declina a
febre c se evita o perigo ; o pó da raiz sècca ao sol
e tomado lomo tabaco alivia o maior defluxo, por-
que íaz espirrar muito.
Enlaça. — É o mesmo que o capande que acabá-
mos de descrever , tem as mesmas virtudes, e pro-
duz os mesmos efleitos.
Canmyasuro. — Esta herva tem a flor amarella e
similhanle á da macella , o cosimenlo delia appli-
ca-se em suadoiros e banhos semicupios aos que pa-
decem puxos, e niisturando-o cora a erva cacici ou
cscnrcioncira , e com as raizes do arbusto capande,
e tomando delle um suadoiro melhora-se da febre.
( Conlinuar-se-ha) .
Opinião de Frayildin sobre o duelo. ■ — Este varão
respeitável diz n'uma carta a um seu amigo que se
espanta de haver quem no meio das misérias e er-
ros humanos conservo tamanha soberba e vaidade
que presuma digna de morte qualquer offcnsa con-
tra o seu pundonor. — E accrescenta que estes pe-
queninos lyrannos não duvidariam dar o nome de
lyranno ao príncipe que mandasse impor a pena ca-
pital a alguém por ditos menos respeitosos acerca
de sua jicssoa e soberania ; ao passo que por inex-
plicável conlradicção não duvidam conslittiirera-se
juizes era causa própria , condcmnnrcm o adversá-
rio scra processo nem jurado, e o que mais é que-
rerem ser elles os algozes. —
A consciência é um monitor que ergue a voz do
peito do homem , e como testemunha o aecusa ou
justifica perante o Creador. Tanto o que se confor-
raa com este guia , como o que rejeita as suas ad-
vertências , se vêem obrigados a reconhecer-lhe o
poder : e quer o bom se regozije com a perspectiva
da imraortalidade , quer a victima do remorso es-
mrreça sob essa influencia invisível e se atemoríse
antecipadamente da conta futura , ambos cedem ao
peso de uma convicção [tal como nenhum argumen-
to é capaz Je produzir] de que a essência principal
do ente humano é dislincla do corpo , e sobrevivirá
scra diminuição de vigor quando o corpo jazer já
desfeito. — Abercromhie.
Tempo da laclacuo. — Por dilatado periodo foi cos-
tume em Ilespanha ammamentar as creanças dois
annos inteiros; lalvcz que os sarracenos o deixas-
sem , porque o alcorão ordena ás mães dar o peito
a seus filhos durante dois annos completos , se por
tanto tempo elles o quizerem tomar. — O nosso D.
João 3.° só deixou de mamar aos Ires annos e meio
de idade, e foi porque elle assim quiz. — Também
refere Southey ( Uone otiosiorcs) que no século des-
te raonarcha era uso em muila parte da Alemanha
desmamar as creanças logo ao primeiro mez , ali-
menlando-as dahi por diante a leite de vacca minis-
trado por um funil de pau ; de Ires cm trcs dias as
banhavam em agua quente.
CORRECÇÕES.
No Panorama N." 71 artigo — Economia Politica
— pag. 138, col. 2.', lin. 23, onde se lè 5000 rs.
= lèa-sc 50000 rs. = na lin. 31 , onde se lè =
7S0O contos = lèa-ser= 5500 contos = na lin. 34,
onde se lè = excede = lca-se = aproxima = na lin.
37, onde se lè=: 75000 =:lca-sc = 55000.
N." 58. — Por noticia menos exacta , dissemos a
pag. 33 que d'Aniarantc a Enlre-ambos-os-rios iam
diiaslcguas: ura nosso assignante daquclla villa nos
informa que a distancia é de cinco léguas estiradas.
80
o PANORAJLA..
209
TATIBA.
A CIDADE de Tavira é das mais agradáveis povoa-
ções do Algarve pela belleza da sua siluação : uma
formosa ponte de cantaria e de sete arcos dá com-
municação entre as duas partes em que a divide o
pequeno rio Aceca : na margem direita deste liça
uma vistosa praça rectangular ennobrccida pelos
paços do concelho cujo frontispicio assenta sobre a
bella arcada de cantaria, na qual e na praça se faz
diariamente abundante mercado: n'um angulo da-
quella existe embutida a figura da cabeça de um
homem , feita de pedra , e que a tradição diz re-
presentar o esforçado D. Paio Peres Correia , que
tomou aos mouros esta cidade , reinando D. San-
cho 2.°
Tavira offerece linda perspectiva a quem a con-
templa entrando pelo rio : para qualquer dos lados
se descobrem fazendas de vinhas e arvoredos , al-
vejando por entre ellas os casaes branqueados , e
notando-se os vários cursos dos regatos . que lhes
prestam frescura e fertilidade ; vèera-se na margem
as marinhas , choças de pescadores , e moinhos , e
áquem e alem da ponte os edificios da cidade bem
caiados fazendo contraste com os seus quintaes es-
paçosos cheios de verdura : fecha o horisonte a ser-
ra coberta de arvores de folhagem perenne , como
alfarrobeiras , oliveiras e medronheiros , a par das
figueiras , amendoeiras e cepas , que matizam a
paizagem nas estações próprias, juntamente com as
searas e os prados viçosos.
São duas as freguezias , comprehendendo acima
de cinco mil habitantes : a de Santa Maria que fo-
ra mesquita de mouros , benta e dedicada ao No-
me da Virgem , logo immediatamente á conquista ,
encerra o precioso deposito dos ossos do conquista-
dor , D. Paio , que jazem ao lado do evangelho do
altar maior, sendo para ahi transportados, por sua
ultima disposição , do convento de Velez , cabeça
do mestrado da Ordem de S. Thiaeo , onde falle-
Jii.HO 8— 184S.
I cera. Da parte da epistola do mesmo altar vè-se
uma lapide na parede cora sete cruzes avermelha-
' das ; indica o local da sepultura honorifica , que
j o mesmo D. Paio mandou dar aos cavalleiros , que
durante a trégua pereceram traiçoeiramente ás mãos
dos mauros , não sem venderem caras as vidas ,
quando confiados no armislicio sahiram de Cacella
para o divertimento da caça. Foi esta perfidia a cau-
sal para o accommettimento de Tavira , que veio a
cahir para sempre em mãos dos cavalleiros da fé
christaã. O templo de Santa Maria , não obstan-
te os estragos do terremoto de 1755 , ainda na ca-
pella-mór , que permaneceu illesa , testemunha a
primitiva construcção gothica : reconstruido pelo
bispo D. Francisco Gomes , ao estylo moderno , é
actualmente uma igreja espaçosa de três naves, e
que recebe bastante luz. — Na parochia de S. Tia-
go ha para notar a capella do Sacramento em rasuu
das pinturas e ornato. — .\a capella dos terceiros
do Carmo , cdificio particular da ordem , ha boas
pinturas do painel do Rasquinho. Nas outras igre-
jas não ha que mencionar-se , á excepção de que
110 mui antigo convento de franciscanos os respe-
ctivos irmãos terceiros tem sua capella aformoseada
com mármores pretos , extrahidos do serro do Ca-
vaco , visinhanças de Tavira. O mosteiro de reli-
giosas de S. Bernardo é situado extramuros e n'uni
vasto rocio , que facilita aos habitantes da cidade
ameno passeio , donde se desfructa a vista de mar
e da variada paizagem circumvisinba. O hospital a
que chamam de S. José tem de rendimento Ires
contos de réis , e a casa da Misericórdia perto de
um conto de réis : os seus edificios não offereceiu
incentivos á curiosidade. — Esta cidade goza a mui
apreciável vantagem de possuir abundância d'aguas.
Os géneros produzidos pela agricultura do con-
celho de Tavira são em geral de boa qualidade :
dá este território bastante vinho , que é o melhor
2." Serie. — VoL. U.
210
O PANORA3IA.
do Algarve , c abundância de azeite , cujo fabrico
muito importa melhorar , pois que estú sendo obje-
cto attcndivcl d'exportação ; nos annos de boa co-
lheita d'azcitona sahem dos 27 lagares do concelho
para cima de setenta mil almudes , que não só se
consomem nos outros districtos do Algarve e no bai-
xo Alemtejo , como lambem se exportam para Gi-
braltar , porto que também daqui recebe muita e
boa alfarroba , a qual c igualmente procurada por
embarcações de Catalunha e da Sardenha , tendo
chegado a vender-se a mil réis o sacco. Os outros
géneros são , amêndoa , figo , rezinas , cera , mel ,
e feixes de canna , que se exportam para Inglater-
ra e Paizes-Baixos : alem destes merece especial
menção a graã de carrasco, ou kermes (») tão pre-
ciosa na tinturaria e que obtém aqui bom preço ,
vcndcndo-se para Gibraltar, onde a vem tomar em-
liarcações de Génova , Liorne , Marselha e outros
portos. Este producto do nosso paiz, que não apro-
veitámos é como se acaba dever tão procurado pe-
los estrangeiros : só no anno de 1836 se despacha-
ram, para exportação, na alfandega de Tavira 1430
arrobas desta droga , havendo quem presuma que
íalvez outro tanto sahisse (irado por alto.
Nos contornos da cidade ha bellas quintas , po-
voadas de arvoredo fructifero ; e os pomos são de
cxcellente qualidade. Postoque o terreno crie boas
searas, comludo não são quantas eram precisas para
abastecer de cereaes os habitantes do concelho, que
^'ão buscar o supprimcnlo de trigos ao baixo Alem-
tejo cm retorno do azeite da própria lavra , que
para essa província transport.im.
As pescarias , assim de peixe mindo , como de
atum e outro peixe grosso , foram aqui de grande
monta ; mas progressivamente tem chegado a mui-
ta decadência. O porto admittia outrora navios de
alto bordo , e íloreceu em commercio , como pode
ajuizar-se das providencias tomadas em cortes, e
das isenções e regalias concedidas pelos nossos mo-
iiarchas , que vem citadas na Corographia do Al-
garve pag. 367 e scgg. — Na allcgação que pelos
annos de 1662 c 1GG3 fez por parte dos habitantes
a Comarca de Tavira para obter feira franca no 1 .°
de outubro [perlenção que os de Faro impugna-
vam] entre os serviços provados com documentos ,
que se apontavam , vinham como principacs os se-
guintes:— ((Que á custa dos moradores desta ci-
dade, então opulenta, foi a maior parle do soccor-
TO mandado á praça de Mazagão : e com effeito por
occasião do cerco desta em 1576 c do de Arzilla
cm 151G tinham elles feito assignalados serviços.
— Que alli invcrnavam as galés de Portugal, e
dalli sabiam com gente e munições a tomar ou afu-
gentar os mouros e oulros piratas que infestavam a
costa. — Que soccorreram Faro, quando os ingle-
ses lhe pozeram fogo , e obrigaram estes a embar-
car , conseguindo que a cidade não fosse inleira-
menle incendiada. — Que Tavira cm mais antigos
tempos fora tão rica e populosa que possuia mais
de 70 embarcações , sem fallar nos barcos e artes
de pescaria : gozava então de feira franca, isenta do
jnuitos direitos d'alfandega, em lodos os trps mezcs
de setembro , outubro e novembro.» — Vários e
importantes privilégios, qnc por brevidade omilti-
mos, lhes foram em diflcrentes dnlas concedidos. —
j\s armas da cidade constam d'uma ponte com dois
cas^cUos e um navio á vela por baixo da ponte.
(•) Viil. .1 respeito da jfrari do c.-iirasco o art.° inserto
a pa^'. 2;í.í do 1," vol. desle Jornal , c o adJitamciito a
pag. 53 do 2."
EOIOlTCMIii. rOLi:?ICll..
Considerações sobre o Cttrso d' Economia Politica do
Sr. Miguel Chevalicr.
VII.
Sendo, na nossa situação pelo menos, preferível vin-
cular os capitães ao paiz ao deixa-los andar vagos
por estranhos , ou bemfeitorisando emprezas que
não são nossas , e sendo o estabelecimento das fa-
bricas ura expediente aposto a recolhe-los ao gré-
mio da nação , facilitá-lo é de bom conselho , c da
mais acertada economia publica. Aspirar a produ-
zir tudo é aspirar a um absurdo : c querer dispen-
sar-nos absolutamente de commcrciar com outras
nações : e a certos respeitos é quasi prctenção a
natnralisar por meio de estufas productos exóticos
e repugnantes ao clima : é violentar a natureza ,
não é ajudá-la da arte. Ao mesmo passo que outros
productos, e outras fabricas se podem gradualmen-
te levar á perfeição dos paizes mais industriosos ,
obrigando o consumidor nacional a um sacrifício tem-
porário ou a um tributo Ião útil, n'este caso, como
o que se lhe impõe para construir uma boa estrada.
Mas este meio indirecto que tem por fim arredar da
concurrencia no mercado nacional a alguns artefa-
ctos estrangeiros para que os do reino possam ter
extracção n'elle, e a extracção possa contribuir pa-
ra o progressivo adiantamento das fabricas portu-
gnezas , é inefiicaz e não produz resultados sólidos
e duradouros, se outros meios quacs são os instru-
mentos directos e os únicos, se pôde dizer, do aper-
feiçoamento industrial, o não acompanhara. Não pre-
ciso mencioná-los , porque muitos de nossos fabri-
cantes dão testemunho de que os conhecem c apre-
ciara bera , lestcmunho patente cm seus estabeleci-
mentos.
Outros instrumentos ha todavia cuja formação ex-
cede as faculdades dos particulares, e só cabe ou
nas atlribuições dos poderes políticos do Estado, ou
nos recursos de que dispõe a administração central;
e um d'elles são as vias de communicação , sem as
quaes é impraticável progresso que valha c perma-
neça cm qualquer ramo do industria; na agricultu-
ra , por os seus artigos serem os mais pesados de
lodos, e os mais dilTiceis de transporlar ; na indus-
tria fabril , para que aquellas de suas ollicinas que
estão muito alongadas das grandes povoações, se
approximem d'ellas pela execllencia das estradas :
no commercio, por fim, que não llorece senão on-
de as conducções sãoexpeditissimas ; o externo i)ro-
curando a orla marítima ; o outro os mais rápidos
vehiculos do interior.
Na ordem e successão natural das industrias , é
a primeira aque alimenta o homem: acaça, a pes-
ca, o pastorar, a agricultura. A segunda a que lhe
ministra commodo, vestidos, habitação , utensílios :
a industria fabril. E a terceira , a que presuppon-
do maior adianlainento , e já salisleilas as necessi-
dades mais essenciaes , procura contentar os dese-
jos c necessidades factícias , indo buscar os produ-
ctos exóticos em troca dos indígenas — o commer-
cio externo. .\ historia mostra, comtudo , que cau-
sas estranhas tom invertido , mais ou menos , esta
ordem, c nós mesmos somos exemplo de símilhante
alteração. Mas a|ienas um povo sabe do estado sel-
vagem e enira no civilisado, c complelamenle ocio-
so indagar qual industria ba-dc adoptar , porque
precisa de todas , o de aproveitar a cada uma cm
maior ou menor amplitude. A divisão da industria em
o PANORAIUA.
211
três classes foi dictada pela conveniência do mclho-
do, porque as operações productivas do homem so-
bre a maleria limitam-se , essencialmente , a duas
únicas que são — mudar-lhe a fúrma , o mudá-la
de logar — fabricar, e commerciar. Na realidade a
agricultura não é senão uma fabrica; e a industria
não é senão fabril e coraniercial. fíào se differen-
çando pois da fabril a industria agricola pela natu-
reza do trabalho que ambas exigem, que é absolu-
tamente similhanle n'uma en'oulra, ililTcrcncam-sc.
comtudo, pela constituição orgânica do homem, que
tendo estômago capaz somente de certa quantida-
de de alimento , producto da industria agricola ,
não tem ao contrario limite em seus desejos e ap-
petites , no que pertence a commodos , a vestuário ,
a raobilia, a adornos, a casas de habitação, a luxo,
o a quanto são artigos da outra industria a que a
sciencia poz nome = fabril. Tendo pois um termo
na saciedade a vontade de comer , e até a gula de
Vilellio ; o desejo de possuir e ostentar é iniinito e
insaciável : phenomeno da nossa natureza , ao qual
parece quiz amoldar-se a producção agricola, ou
dos alimentos , sendo muito menos prolífico o seu
poder que o das artes , cujos productos se multi-
plicam sem termo.
Esta diflerença porem , nascida da natureza múl-
tipla do nosso ser , longe de tornar adversos entre
si os interesses das duas industrias , torna-os mú-
tuos e estreitamente dependentes uns dos outros ;
porque ao lavrador, á medida que a sua cultura pros-
pera, sobejam mais productos, que depois de satis-
feita a necessidade de nutrir-se , possa destinar ao
coramodo, trocando-os por artigos das artes fabris ;
e os fabricantes, pela sua parte , não podem multi-
plicar-se senão ao passo que crescem os alimentos,
ou a agricultura que os gera ; em quanto , por ou-
tro lado , os progressos da agricultura , e a abas-
tança da classe occupada nos trabalhos ruraes ,
fornecendo , segundo advertimos , um sobejo a esta
classe , asseguram com elle ás fabricas aquella fre-
guezia e consumo que estas não dispensara. Dimi-
nuindo o consumo, diminuem os lucros que ellas
dão, e faltando ou diminuindo demasiadamente, não
podem as fabricas continuar. E demais da necessi-
dade de alimentos , e de commodos , a de matérias
primas , que são a base dos artefactos , põem em
correspondência c intimidade os interesses das duas
industrias. '
Na presença de verdades tão simples e elementa-
res como estas , ainda haverá quem se atreva a ne-
gar que um paiz como o nosso , cuja principal in-
dustria é a agricultura, precisa de fabricas para de-
senvolvè-la? Os princípios que deixámos registados
não são theorias cerebrinas, são a historia, o resul-
tado, a expressão ultima dos factos: mas se a es-
tes unicamente se dá credito, vamos busca-los a In-
glaterra, onde acharemos , que as fabricas tem alli
causado um augmento deoO por cento á proprieda-
de rural , como confirmam observações repetidas :
tanto esta depende das fabricas. E virando o rever-
so á medalha mostrar-nos-ha aquelie mesmo paiz que
a miséria dos fabricantes , e estagnação dos produ-
ctos fabris , é devida á acanhada área da cultura ,
acanhada para população tão numerosa , e circums-
cripta pelos limites do território : tanto as fabricas
dependera da agricultura. Se me disserem que não
é á pouca extensão do solo , mas aos direitos sobre
o trigo estrangeiro que os inglczes accusam da cri-
se que os afflíge : respondo que por serem insufli-
cientes para o consumo da população os seus terre-
nos aráveis c que elles querem abrir a porta ao gé-
nero dos alheios ; pois se os próprios lhes bastas-
sem os grangeariani sem recorrer aos estranhos. A
sua cultura é perfeita como nenhuma no continen-
te , e onde o céu e a terra lhe são irapropicios ,
com quanta arlc não procuram remediar esse des-
favor? capitães, amanhos, methodos , machinas ,
tudo empregara , não lhe escapando expediente ,
nem poupando fadiga para tirar o maior partido
que podem, do solo. E apesar de tantos esforços
qucixam-se de que o seu trigo lhes não chega para
o consumo interno , e de que sobre ser pouco , é
demasiado caro! Mas estes queixumes são uma li-
ção para nós , uma profunda lição que não deve-
mos perder ; porque significam e demonstram que
nos paizes onde ha muitas fabricas , como no seu ,
os productos agrícolas encontram sempre no mer-
cado domestico uma extracção prorapla e fácil ;
porque significam e demonstram que se onde as fa-
bricas são muitas, e a agricultura pouca era pro-
porção delias, as primeiras se arruinara, como sue-
cede ás inglezas, pela escacez e a carestia do tri-
go; naquelles paizes onde a industria fabril está
muito menos desenvolvida do que a agricola , e a
agricola promette , pela virtude do solo , a bonda-
de do clima , e a grande extensão das terras ainda
incultas , como promette a nossa , muitos progres-
sos ulteriores , o melhor modo de os promover é a
propagação e aperfeiçoamento das fabricas nacio-
naes.
Se não é licito duvidar que estas concorrem ef-
ficazmente para o adiantamento da agricultura , não
é menos certo que o adiantamento da agricultu-
ra contribuo muito para o progresso das fabricas ;
e tanto , que uma das mais poderosas rasões por-
que ellas nunca chegaram a adquirir certa consis-
tência e perfeição entre nós foi a escacez de ce-
reaes que nos obrigava a tira-los em grande copia
de paizes estrangeiros. Este deficit , e tão conside-
rável como era, no alimento, obstava á multiplica-
ção das classes fabris , e combatia a sua industria
por dois modos , cada um per si só bastante a an-
niquila-la ; a um tempo privando em parte os arte-
factos nacionaes de ura elemento de troca no mer-
cado domestico tão importante como o pão , e esta-
belecendo á medida que cllcs se fossem multipli-
cando uraa progressão permanente na baixa do seu
preço, comparado com o do trigo. Similhante bai-
xa , que seria uma vantagem quando originada dos
progressos industriaes, era grave damno, tendo por
origem a decadência de uma industria, qual a agri-
cultura. Podéra então , com verdade , dizer-se de
nós — quanto mais roupa , menos pão — porque, de
feito , quanto mais crescesse o fabrico delia , tanto
maior quantidade da mesma seria preciso dar por
uma certa medida de trigo. Haveria lavradores mais
bera vestidos ; mas fabricantes esfomeados : e a mi-
séria a que condemnariam os trabalhos das fabri-
cas em brcíe as deixaria desertas.
(Continuar-se-ha.^
A. d'0. Marreca.
Segunda victoria de Duarte Pacheco.
Ardendo o Çaraorim em ira e em desejos de vingan-
ça, veiosegunda vez contra elrei deCochim, noannn
de lo()4 , com poderosa mão por mar e terra , in-
tentando passar o rio que divide aquelie reino di'
de Calicut. Procurou a passagem por muitas par-
21â
O PANORAMA.
tes , para que na divisão achasse menos íorle a re-
sistência. Sahiu-lhc Duarte Pacheco com os seus
cento e cincoenta porluguezcs, divididos também
por mar e terra . e obrando proezas que excedem
todo o credito, romperam os inimigos e os fizeram
nesle dia voltar destroçados, com perda de mais
de seiscentos e cincoenta. Viu-so porem em gran-
de aperto , porque os vassallos d'elrci de Cochim ,
(jue o acompanhavam iiaquella guerra . o desampa-
raram no maior ardor do cunllicto. K faltando-lhe
pólvora o não soccorria com ella o principe do f,o-
chim , postoque o avisou, tendo a culpa quem le-
vou o aviso que astuciosamente lh'o deixou de dar.
Mas tudo suppriu o destemido valor e prudente rc-
solnção daquelle insigne e famosissimo heroe. Cres-
ceu no (Jamorim o temor , c nas azas delle se reti-
rou velozmente ao abrigo de um palmar, aonde cer-
cado dos seus , os alcançou uma baila que matou
nove, que juntos lhe cahirani aos pés, e pouco de-
pois lhes sobreveio um contagio que levou seis mil.
Os seus feiticeiros lhe haviam prognosticado victo-
ria , e cllo agora cheio de indignarão , por se ter
vencido, os mandava matar. Mas tiveram arte pa-
ra lhe introduzirem outra patranha, dizendo: —
que aquclles maus successos eram eíTeito de indi-
gnação dos seus deuses , por elle não haver satis-
feito um voto que lhes fizera de edificar cm seu
obsequio um novo pagode. (•)
(Ann. Uist.)
(•) Vid. Vol. 5.° da 2.» Serie do Panorama pag. 188.
'^vxvít*!%L^t^^i^^-ll
os GAMOS.
Estes formosos animaes são e'specie de veação man-
tida em parques ou tapadas , donde por vezes e
n'alguns sitios fugiram indo depois propagar em
maltas abertas.
O macho é armado de galhos que a fêmea não
tem, os quaes muda annualmente ; costumara ca-
hir-lhe do nieiado d'abril até principies de maio,
e já em setembro estão em parte regenerados : a fê-
mea pelo commum pare pelos fins de maio ou nos
primeiros dias de junho. — As caçadas de veação,
principal divertimento da nobreza na idade media,
tem pouco a pouco passado de moda , até na In-
glaterra onde estas montarias chegaram ao auge de
mania : os seidiores inglezes com dispêndio não pe-
queno alcançaram introduzir nos seus parques e
por consequência nos montes do rcino-unido mais
duas variedades destes animaes ; uma delias man-
dou Jayme 1.° buscar á Noruega , pondo-a logo na
Escócia , donde se espalhou por ontras partes : ou-
tra bonita casta malhada fui transportada de Ben-
gala.
O gamo , de còr fouveira , antes pardo-arrniva-
da , na parto superior do corpo , e esbranquiçado
na inferior , é mais pequeno que o veado , e lam-
bem diíferc deste jia arjna<;5<J lic S'^\hos espalma-
dos ; porera na forma não ha quadrúpedes mais pa-
recidos , e comtudo são encarniçados rivaes : nun-
ca as duas espécies pastam em commum, nem cru-
zam as raças; parecem com poucas ditíerenças co-
irmãos , tem os mesmos hábitos , e não obstante a
aflinidade natural mantém reciprocamente inalterá-
vel aversão. Os gamos são mais frágeis e delicados
que os veados , e cncontram-sc menos no estado
selvático, ao passo que os primeiros abundam nas
florestas da Europa. Não espanta que estes animaes
aborreçam a outra espécie mais forte , porque as-
sociando-se de ordinário em bandos, estes entre si
contendem por causa das pastagens , e cada parti-
da tem seu guia e capitão ; o combate renova-se
em dias successivos até que a manada mais fraca
se retire deixando os vencedores de posse do tor-
rão disputado. A carne do gamo é mais mimosa
para alguns paladares , supposto que toda a veação
tenha o que chamámos sabor ao matto , c só preste
l;cm condimentada e cm pastelões e empadas: o
couro do veado convenientemente preparado é ma-
cio e muito bom cabedal para calçado.
A rcs|)onsabili(ladc não intimida os velhacos, c dis-
suado dos empregos aps homens probos. ,
o PANORAMA.
213
.;-:v, , o Estio. . >. ■ -i,".
i^(iMP.iRADAs com o Liilho c liilgor do nosso radioso
Eslio todas as luzes são pnllidas , todos os resplcn-
Joros mortos , porque o estio é pai dos dias lumi-
nosos, o dos ardentes reflexos.
/ ' lícluz-liic o suor
>ia fronte queimada ;
.Na face tostada
Reluz-lhe o suor. .1
È moço e robusto
Vivaz e fogoso ;
Seu braço pod'roso
É moço e robusto . . .
Moro c robusto : e bera o precisa porque é rude
c penosa a tarefa a cargo do nosso amigo lístio. A
Primavera deixou tudo muito alegre e folgado, não
lia duvida , mas a Primavera foi rapariga desejosa
de agradar , que só tratou de seus enfeites c ador-
nos sem curar do preciso. Cumpre por tanto que o
Estio se encarregue do substituir os tapetes floridos
por boas e proveitosas relvas — as gallas c formo-
sos vestidos das veigas, dos bosques e dos pomares,
por úteis e saborosos fruclos. \ Primavera é delei-
te que encanta. — O Estio c utilidade que aprovei-
la. Uma e outro são precisos na vida, que do agra-
dável hemos mister para repouso do espirito , e do
necessário para satisfação do corpo. — Se a Prima-
vera é de mais acabada lindesa, o Estio possue
mais preciosas faculdades. — Uma é joven melin-
drosa : outro é mancebo valente e trabalhador infa-
tigável. Vède-o , vède-o :
I-
Doirando ampla seara da campina
Que ondea como um mar ,
E quando sobe o sol e mais se empina
Pela encosta a trepar ,
Porque vá sobre o dorso pampanoso
Grato sueco espremer do solo annoso ,
Inunda inteira a várzea luz ardente.
Que importa? — Xão descança ,
Prepara ao lavrador co'a mão potente
A túmida esperança
Que irá depois , em fructos rebentando ,
Seu trabalho e fadigas coroando.
E dizei-me — tendes porventura visto por ahi
cousa de maior e mais brilhante magnificência do
que a formosa tarde de um formoso dia de verão?
— Depois de um calor abafadiço, a aragem conso-
ladora— depois dos ardores a frescura e as sauda-
des do por do sol e o suave aproximar da noite. —
.Nadando em oceano de chammas, desce o astro ma-
gestoso confundindo a própria face com os fulguran-
tes reflexos que o rodeiam até mergulhar nas ondas
inflammadas. — Roxo véu franjado de ouro corre
iramenso por todo o occidenle que se encurva sobre
os montes d'alera, já meios carregados os cimos vi-
çosos com as próximas sombras. — A esguia serra
fronteira , tendo a base gigantesca enterrada já em
suave penumbra, reflecte ainda no pincaro mais al-
to uui raiosinho extremo do sol, que nem já se vé.
— E as mil cabeças do basto arvoredo meneando-sc
airosas a sussurrarem juntas desconhecidas harmo-
nias. — E as despedidas da luz , tão encantadas e
amorosas, a hora amena do crepúsculo. — E o ale-
gre resfoUegar de todos os seres apoz opressivo ca-
lor. — E o canto misterioso da natureza jnteira que
respira folgadamente sacudindo do manto requei-
mado a poeira do dia e aprestando-se a recuperar
no silencio da noite a galhardia e lustre tão man-
chados , porque depois no alvorecer da manhaã de
novo se mostre ao mundo com toda a solcmnidade
e pompas de rainha.
Decididamente o moço Estio alem de ulil traba-
lhador é guapo mancebo. Passemos-lhc pelas baga-
tellas de abafar tudo com calma , de seccar a gar-
ganta e a paciência , e de nos tornar languidos ,
molles , e frouxos no trabalho ; passemos-lhc ainda
pelas constipações, e ardores caniculares ; deixa-nos
ainda que admirar e gozar. São inconvenientes ; •'
certo. Masque ha neste mundo que os não tenha? —
Ostheatros tem as peças que fazem somno e os em-
presários que o tiram. — .As assembléas tem o en-
fado c os abrimenlos de boca , não fallando u'uma
boa dose de cotoveladas em dias de enchente e na
suave penitencia de passar toda uma noite de pe
fazendo sentinella , ou de se agarrar perpetuamen-
te á cadeira pilhada uma vez por felicidade pouco
vulgar. — O somno tem os pesadellos ; e o traba-
lho a fadiga. O prazer tem o durar pouco ; e os
pezares o durarem sempre de mais. Que muito que
o amigo Estio tenha também a sua pecbasinha '. In-
commóda pelo calor , mas alegra com o brilho dt;
seus dias — bem vedes que isto tem de bom; e
não só isto — muitas mais cousas. . . . ISão aconte-
ce o mesmo com outras deste mundo que lendo tu-
do máu não tem nada bom. — Ora pois façamos pa-
zes com o bom do mancebo , e folguemos de i>
vermos tão desvellado a preparar-nos colheitas e
vindimas, que por virem depois nem por isso Ih»;
são menos devidas.
E a belleza de uma de suas noites tão formosas
e puras neste nosso abençoado clima que mais va-
lem por certo que todos os pallidos dias da terra
estrangeira ! Quantas vezes á margem do nosso Te-
jo ameno tereis vós contemplado a lua e o céu da
noite , espelhando-sc nas vagas buliçosas e que-
brando-se ncUas em mil diffcrenles reflexos I .Alem,
a Solitária luz d'um barquinho aíTastado , e quasi
que perdido na solidão das aguas: em frente, o al-
vejar suave das povoações da outra margem : dis-
tante , o monótono cantar do nauta , que acompa-
nhado pelo accorde do sussurrar das vagas com a
cantiga se allivia do trabalho : e aqui e alli resal-
tando da sombra o brilhar phosiihorico d'um peixe
a pular ao lume d'agua. Que imaginais vós ahi
mais cheio de doçura e encantos?
E que longos espaços vos tereis demorado a con-
templar o suave desta scena , deixando escorregar
as horas sem as sentirdes passar , embevecido na
contemplação do que vicis e porventura do que não
vicis — que muita vez a alma, ferida pela belleza
d' um quadro presente, pinta e retrata na imagina-
ção outro bem formoso no passado. — Sc o dia traz
fadigas e cançassos ; a noite dar-vos-ha consolação
e refrigério; e a manhaã desenrolará diante de vos-
sos olhos absortos o mais acabado painel que das
mãos de Deus sahiu : todas as suavidades da noite
com todas as pompas e resplandores do dia. Vereis
as potencias das trevas e da luz disputando o im-
pério do mundo. — Tereis idóas grandes e raages-
tosas ; tè-las-heis brandas e lemas. — Tereis. . . .
Ouvi :
Dorme o outeiro , dorme o vallc ,
Dorme a selva e dorme o prado ,
Dorme inquieto o rico vil ;
Dorme affoito o pobre honrado.
214
O PANORAMA.
Pallidos astros da noite
Tremem sósinhos no céu ;
Cobre a face do Universo
Das trevas o denso véu.
Eis que á banda d'Oriente
Alva cinta as sombras corta :
Mensageira da alvorada
Vem ao dia abrir a porta.
Hymno roystico se espalha
Pelos ares perfumados :
Accordai , vós que dormis,
Accordai , selvas e prados.
Chega a Aurora , a livre trança
Dando á brisa matutina ;
Chega a Aurora e corre ao mundo
Ampla , rosada cortina.
E no céu negro da noite
Estrcllas já não scinlillam ; '
E, fugindo ;i luz que as vence.
Trémulas sombras vacillam.
Sorri toda a creatura ,
Abrindo os olhos ao dia , '
Desperta da Natureza
A suave melodia.
E os cabeços da montanha ,
Obliquo sol reflectindo ,
De luzes se vão c'roando.
De raios se vão cingindo.
Murmura o arrojo n'arêa ,
E a fonte na pedra dura.
Murmuram no bosque as ramas ,
E a vida em tudo murmura.
A vida sim , porque todas as cousas no desperta-
mcnto acharão voz e echo , murmurarão e fallarão
alto dos louvores deste bemavenlurado Estio , que
nos prepara para gozar o que o seu infatigável tra-
balho foi arrancar das entranhas da terra e pedir
ao ar c ao sol. Abençoado pois seja o nosso Estio.
Silva Leal — Jiuiior.
Dcscripção de varias arvores, arbustos, hervas e plan-
tas medicinaes que existem na villa de Téte , e da
appUeaeãn que delias fa:em os naturaes do paiz
aos tisos meehaiúeos da vida, e nas doenças de que
são attaeados.
(Concluído de pag. 208.^
Cacivi camuzuqiia , ou cscoreioneira. — Ha duas
qualidades desta herva , uma grande , outra peque-
na ; a llòr é amarella e miúda. ;i proporção das fo-
lhas , e parece-se com o açafrão do reino ; o fructo
c do tamanho d'Hm grão de missanga ou conta pe-
quena ; o cosimcnlo das folhas appiica-se em sua-
doiros ;i cabeça para extinguir as dores que a afle-
clam ; a casca da raiz cosida juntamente com a raiz
d'almeirão, c bebi<la , atalha a lebre que se enca-
minha a maligna ; o o cosimcnto simples da raiz
applica-sc a febres terçaãs , c sendo junto com a
da arvoro mueorotu/o , ás gonorrhéas comi)licadas.
Caciei camuzuqua pequeno, ou csroreioneira menor.
— Untando o corpo com o cosimcnto desta raiz, mis-
turado com raspas de marlim, c cascas de laranja c
folhas pisadas , destroe-se a febre que tiver o pa-
ciente.
Avenca. — São bem conhecidas as qualidades e
préstimo desta herva , entretanto os negros não se
servem delia para cousa alguma.
Munhaze. — Tem as folhas oleosas e pegajosas;
os negros servem-se da raiz para a composição do
óleo de Fr. Pedro , que tem a propriedade de ex-
tinguir o veneno que se introduz nas feridas feitas
por flechas hervadas, também se servem da mesma
herva para extinguir os percevejos pondo-a debaixo
das esteiras em que dormem.
Uomhue. — Esta herva tem as folhas largas como
a abóbora , mas longas e muito felpudas , cria uma
batata muito grande, que sendo pisada e espalhada
na alagòa mata o peixe que nella existir ; o emplas-
to da raiz pisada applicado ao picuriz extingue a
dor que elle produz.
Casuzumire. — É uma herva muito pequena, e co-
mo a hortelaã ; os cosimcntos delia tomados em ba-
nhos são remédio para as hemorrhoides ediarrheas.
Cácumate. — Esta herva parece-se com as unhas
do gavião quando está morto ; o cosimcnto é appli-
cado ás febres intermitentes, e esfalfamenlo : os ne-
gros costumam deita-la nos vasos em que bebe a
criação , pela superstição que tem , que por ser de
folhas encolhidas, e simiihantes ás unhas do gavião,
a criação de penna , que beber esta agua , não se-
rá presa do milhafre , gavião , ou de qualquer ave
de rapina.
Mudossua ; figueira do inferno. — A flor desta plan-
ta é branca , grande , e afunilada ; o fructo é como
a papoula do amphião , com a dilTerença de ter pi-
cos á maneira de pepinos de S. Gregório , e sem-
pre fica com algumas folhas , as quaes se applicam
inteiras como emplastos ao curativo das chagas , e
tem a propriedade de comer toda a carne corrupta ;
das pevides da papoula extrahe-se olco que combi-
nado com qualquer liquido faz adormecer ; emsum-
ma produz os mesmos efieitos que o laudano.
liange, é o canamo de Portugal. — Os negros, no
tempo em que esta planta começa a seccar, colhcm-
na haste por haste , c fazem molhos , e fumam-na
por gurgurís , ou caliauas que fabricam ; e beben-
do-se a agua por onde passa o fumo immediatamen-
te provoca o vomito. Os negros sertanejos cultivam
esta planta nas suas povoações, e ha taes, como os
morenges , que a fumam com mistura de tabaco ,
pimenta longa , c galinhaça , de que resulta o fica-
rem mui trémulos.
O fumo das folhas c semente, recebido nos olhos,
curam a belida que nclles existir.
Conge. — Esta planta é a que no Brasil chamam
= pita. = Os negros do muzexuro [sertão onde se
lira ouro] servem-se delia , isto é , dos fios , para
fazerem pannos cora que se cobrem ; e os zimbas
[povos do Zimbavé] e cafres, para fazerem redes de
caça e pescaria.
Inhafoncori. — Esta planta é formada de talos ou
hastes direitas , escamosas , e de folhas muito miú-
das, e na consistência parecidas com as beldroe-
gas : ainda que esteja secca , pondo-a de infusão
reverdece scnijue que assim se pertencia.
A infusão delia é applicada aos que padecem de
peito.
Carúeo-rueo. — A fl('jr é de côr amarello-claro , e
pequena ; o fructo c cm pares , e similli.intc ao da
pánheira , depois de maduro estala , e larga uma
penugem amarella que c uma espécie de algodão ,
(' ficam as duas cascas como umas colheres, d'on-
de lhe vem o nome de carúco-ruco , que significa
colherinhas ; o pó da raiz sêcca ao sol é remédio
para chagas venéreas lançando-o sobre ellas , c o
o PANORAMA.
215
cosimcnto da raiz lomado em bochechos 6 remédio
para as dores de dentes.
Combe. — Esta trepadeira dá um fructo longo, do
tomprimeuto de mais de um palmo , e tem a casca
rija como a amêndoa , c produz em pares ; o inte-
rior do fructo contém umas favas pequenas , c no
intervallo delias tem uns cabcllinhos que juntos
com as ditas favas, c reduzido tudo a pó, e mistu-
rado com fel de lagarto, c de cobra capelo, c ba-
lia d'herva babosa, serve para hcrvarem as frechas
o lanças , com as quaes ferindo qualquer animal ,
morre em menos de meia hora por causa da subti-
leza do veneno que por toda a parte se communi-
ca , deixando negro o logar da ferida.
Mupessa. — Parreira brava, cujas uvas são ro-
xas , e com algum acido. O cosimculo da raiz ap-
plica-se ao curativo do plcuriz , bebendo-o , e pon-
do no logar da dòr a raiz cosida c molhada em vi-
nagre ; o dito cosimento lambem serve para resol-
ver as apostemas , para quedas , para expulsar as
jiareas , para tirar as dores de cólica , e para a go-
uorrhéa.
Miiluhzi. — A flor 6 redonda, c amarclla ; o fru-
cto chato e com um feijão só ; o cosimento da Dór
applica-se a quem tem pux'os, cursos, &c. também
fazem dcUe amendoada , e a dão a beber ao doen-
te ; esta herva é de um cheiro iasoíTrivcl.
Àbutua. — A raiz desta herva rasteira, dissolvida
cm pólme, dá-se a beber aos que dão quedas gran-
des , applicando também sobre as partes inllamma-
das o mesmo pólme quente em emplastos.
PnoviNciA DE S. Pedbo , 01" Rio Gbaxde do Sll.
3.°
O RIO Icabaquam , vulgarmente dito Camacuam ,
recebe pelo rumo do norte , desde a sua barra na
Lagoa dos Pitos , vários arroios , os quaes bem que
pequenos, são comludo abundantes, e derivados da
]ionta austral da referida serra do Herval ; reparti-
do porem na sua origem cm dons : destes o meri-
dional, denominado Camacuam Chico, ou pequeno,
tem varias vertentes , alem das quaes enriquecem
o Camacuam uma plebe d'arroios, que nelle en-
tram da banda do sul, a saber o das Palmas, o
das Torrinhas , o grande de St.° António , o do Ca-
margo, o das Pedras, o Carahá , &c. Tanto este
rio , que atravessa do poente para o nascente pela
espaçosa faxa de campo entre as duas isoladas ser-
ras do Herval e dos Tapes , como o Jacuí . são os
principaes alimentadores da mesma Lagoa dos Pa-
ios , que recebe ainda pela margem occideutal as
aguas de vários outros, que borbulham das referi-
das duas serras do Herval e dos Tapes, até o rio
de Pelotas, o qual descendo do interior da segun-
da , desagua já dentro da embocadura septcntrional
do sangradouro da lagoa Merim , appellidado tam-
bém rio de S. Gonçalo ; neste se escoa pelo occi-
denle o arroio do Pavão, que traz sua origem do
extremo meridional da referida serra dos Tapes. Se-
gue-se o rio Piratiní , cujas fontes no interior da
campanha entestam com as do sul do mencionado
Camacuam-Chico , e com as do norte do rio Ja-
guarão, ultimo que, perdendo-se já na lagoa Me-
rim , fecha com o seu tronco ou galho principal as
possessões portuguezas, mesmo as conquistadas a
oeste da dita lagoa, que d'entre estes dois rios
Piratiní e Jaguarão , recolhe as aguas dos arroios
da Palma , do Chasquciro , do Herva} , dos Arrom-
bados , dos Arrependidos , e do Juncal.
O terreno entre a costa do mar e as ditas lagoas,
desde o rio Slombetuba até o Marco na latitude de
311° 42' , sendo desde o principio cultivado , e o
que está actualmente mais povoado , é cortado pe-
los rios Mombetuba e Tramandaí, os quaes da Ser-
ra geral se preci(iitam no mar ; e pelos rios Cahi c
dos Sinos , que do interior da mesma serra rolam
para a lagoa do Aiamão , extremo septcntrional da
dos Patos : naquella entra também o Garvataí , im-
mediato pelo nascente ao dos Sinos , e nesta pela
margem oriental desemboca o pequeno Capivari .
cuja cabeceira é uma lagoa semi-circular, que tor-
nèa a fralda austral da Serra geral , de diâmetro
de mais de légua , entre as freguczias de St." An-
tónio e da Conceição do Arroio.
As aguas das duas grandes lagoas, Merim e dos
Patos, encontrando-se na latitude austral de 31° o
4"', formam o lago do Rio Grande , o qual estrci-
tando-sc para a barra, fica somente de duas miihas
com pouca difTerenca na latitude sul de 32° 6' , p
na longitude 320° 3i.
A lagóa dos Patos , desde a de Viamão inclusiva
até a sua juncção com a de Merim, tem quarenta
e uma léguas de comprido na direcção de IV.\.Ii.
S.S.O., e oito na maior largura : a de Merim, com
igual direcção , tem de comprido trinta e três lé-
guas e meia até o seu desaguadouro ou boca meri-
dional do rio de S. Gonçalo, e sete no seu maior
bojo. Alem dos rios notados até o Jaguarão, c cu-
ja direcção é quasi de oeste para leste , entra ain-
da na lagoa Merim pela margem oriental , e com
similhante curso outro rio Taquarí , e seguindo o
rumo de S.O. N.E. o grande Sebollati , cujos ga-
lhos occidentaes são o Parado , o Limar grande e
pequeno , o Abestruz , c o de Godoi ; e pelo lado
oriental o Malmaragá , e finalmente o rio de S.
Luiz , que se perde na mesma lagóa junto a foz do
Saco de S. Miguel, que nasce dos serros de S.Mi-
guel , em cujos fragosos picos se divisa o desman-
tellado forte da mesma invocação. Todo o terreno
desde o Jaguarão até as origens do Sebollati, é dos
questionados entre as duas nações limiírophes , c
apesar disso aHespanha os foi povoando desde 178Í.
O extremo austral da lagóa Merim é o Saco, que
forma o arroio de S. Miguel , o qual se deriva dos
serros assim denominados. Na sua margem orien-
tal apeníis desembocam o arroio d'Elrei, que ma-
na de uns pântanos , e o arroio Itnym ou Tahim ,
que é o escoamento da estreita lagóa da ^Mangueira
ou Saquarumbó , entre a costa do mar e os campos
que se estendem até a lagoa Merim.
As abas da Serra geral desde o rio IMombctuba
até o Tramandaí são cingidas de pequenas c estrei-
tas lagoas, com sangradouros ou canaes de commu-
nicação , por onde desaguam no Tramandaí; assim
como se enfiam outras mais pequenas ao correr da
costa até o insignificante arroio Chui , que entra no
mar em 33° 42' 10' '-5, onde existe postada uma
guarda brasileira desde a conquista de 1801 , c
dista da cidade do Rio Grande quarenta e ires lé-
guas para o sul.
Esta província, por qualquer lado que se olhe,
é uma das mais bellas de todo o Brasil : seu cli-
ma é geral uiente agradável c tão excellente , como
bem se pôde avaliar pela variedade e exuberância
das suas producções ; puros ares , que dão saúde :
muitos rios perennais, duas grandes lagoas a hume-
decem ; na parte superior densas e sombrias Dores-
216
O PANORAMA.
tas ; tem larguíssimas campinas , que se tapizam
de mui graciosas pastagens ; medra cm rebanhos ;
os de gado armentio já são fora de algarismo ; abun-
da em fructos , e depara deleitoso entretimeuto em
pescarias , veação , e passarinhagcm ; e para dar
ainda idéa mais exacta do seu temperamento , se-
gundo as observações meteorológicas que fiz na ca-
pital , no verão o calor chegou a 87" e a 88° do
thermometro de Fahrenheit , e no inverno , quando
sopra o oeste , tem marcado 44° et 40° no mesmo
• hermomelro. Providamente reinam de ordinário com
forra ventos , que dissipam os miasmas originados
dos frequentes trasbordamentos dos numerosos rios,
e exlialação pútrida dos pântanos. Estes ventos do-
minantes são o N.E. e o S.O. , o primeiro dos
quaes principia brando, e tornando-se mais forte,
turva a atmosphera , até que desata em trovoada e
chuvas , e rondando então pelo \.0. , vem a cahir
cm O. , e S.O. , que alimpam o céu. A parte se-
plentrional ou superior do paiz é comparativamen-
Ic muito mais fria. («)
A natureza e formações do solo variam conforme
ns situações : a cordilheira geral do Brasil , que ,
segundo notámos, reparte esta província em duas
taxas quasi iguaes ; e lá onde principia a mcrgu-
)har-se no 1'ruguay , é encontrada por outra sinii-
Ihante serrania escalvada , que partindo das visi-
iihanças do Salto grande desse rio , separa de um
lado aguas para o Daiman e Rio Negro , e d'oulro
para o Arapey e Quaraim ; estas serras , e todo o
território ao norte e oeste delias , isto é , quasi to-
do o districto d'Enlre Rios, de Missões, de S.
Marinho , da Cruz Alta , da Vacaria , e de cima
da serra , constam inteiramente de terreno basálti-
co. A parte meridional da província , subdividida
em oriental e occidental pelas serras do Herval e
dos Tapes, e pelo Albardão, que acompanha a mar-
gem occidental da lagoa Merim, são primitivas es-
tas montanhas , e são de alluvião as planícies , ao
nascente das grandes lagoas, e não parecem ter ou-
tra base, que o mesmo granito, e grés ou crés ,
de que aqucUas são compostas : porem a parte oc-
cidental é de estructura mais vnriada. Ao poente
das frondosas serras do Herval c dos Tapes, se en-
contra um território elevado , transversalmente cor-
tado pelo rio Camacuã , composto de granito , e de
schisto primitivo , alternando com micas-schisto , e
coberto de grés carvoeiro , entre Santa Barbara ,
Encrusilhada , e Caassapava : depois , de granito e
grés , sustentando schisto primitivo com gabbro ,
schisto chloritico e talcoso , serpentina e calcareo
granuloso no grupo de montes de Caassapava : fi-
nalmente de porphyrio de transição , grauwake , e
sranito de transição , sobrepostos a schisto talcoso ,
e granito primitivo , e cobertos de grés carvoeiro
entre Caassapava e S. Gabriel : os logares mais bai-
xos desta subdivisão, o valle de Guaiba , o territó-
rio banhado pelo Vacacay c pelo Santa Maria , e o
valle do Jaguarão , são cobertos de uma formarão
secundaria , composta de argilla schistosa , calca-
(•) Por maior t\m' fosse o meu receio de que o extenso
ijuadro , que tenho dcscripto , parecesse árido e faslidioso ,
nSo julguei comtudo dever oinilli-lo ás vistas calculadoras
do leitor philoíoplio, que da configuraçrio admirável desle
paiz , qual [loderia traçar o pr(i|>rio génio do coinmercio ,
|iresentir,i as vantagens , que, em beneficio da agricultura
e da industria, proporcionam os innunieraveis rios, e us
duas graniles lagftas , ou antes dois Mediterrâneos ; á exten-
são e facilidade da navegaçiio interior , e de um commercio
domestico , deveu o Egjplo e a China o estado florccenle a
liue chegaram.
rco c grés : e toda a fralda meridional das serras
basalticas é occupada por um grés deformação ter-
ceira , frequentemente interrompido , ora coberto
ora não , de basalto.
Tão considerável desenvolvimento de basalto e a
existência de porphyrios de transição, são pheno-
menos geognosticos os mais interessantes que offe-
rece esta provinda , não constando até agora que
em alguma outra parte do vastíssimo Brasil se ha-
ja descoberto basalto , ou porphyrio , a ponto de
duvidarem celebcrrimos geognoslas da existência
destas rochas a leste das Andes.
(Concluir-se-há . )
Paute de PoRTrcAi paba a Índia o primeiro vick-rei
D. Francisco d'Almeida.
No dia 15 de março de 1506 partiu de Lisboa pa-
ra a índia o nobilíssimo eavalleiro , e insigne ca-
pitão , D. Francisco d'Alraeida. Assistia então em
Coimbra com seu lio D. Jorge d'Almeida, bispo da
mesma cidade , bem fora de similhantes pensamen-
tos, quando o nomeou elrei D. Manuel vice-rei da-
quclle estado , pela fama notória do seu valor , e
disciplina militar, e pelo illustre nome que alcan-
çara nas guerras c conquistas de Granada, cm ser-
viço dos reis catholicos, a que se ajuntavam outras
muitas prendas e virtudes que nelle resplandeciam
cora singular luzimento, quaes eram prudência,
industria , constância , magnanimidade , resolução ,
e um ardentíssimo zelo de reputação da sua pes-
soa , da gloria da nação , do serviço do seu prínci-
pe. Levou á sua obediência uma numerosa e pode-
nsa armada de vinte e duas velas , em que iam ,
alem dos homens do mar , mil e quinhentos solda-
dos luzidissimos , e muitos da primeira nobreza ,
entre os quaes sobresahia por seu grande esforço
e generosos brios D. Lourenço d'Almeida , filho do
mesmo D. Francisco. Foi este o primeiro vice-rei
que sahiu de Portugal para aquellas conquistas.
Não houve quem não approvasse esta acertada elei-
ção , e cora cila se comprovou o parecer que cor-
reu geralmente de que elrei obrava com lume su-
perior nas disposições daqucUe descobrimento. Na
despedida lhe fez elrei singularissimas honras , e o
acompanhou até o logar do embarque cora toda a
nobreza , que então se achava em Lisboa , e infini-
to povo. (•)
(Am. Uist.)
II\ na ventura uma expansão ou dissipação que nos
enerva c debilita, como na desgraça uma certa con-
centração que nos alenta e fortalece : na primeira
pertencemos ao nnnido externo , na segunda a nós
mesmos solidariamente.
A IDÉA geral c instructiva d'uma vida futura é ar-
gumento irrefragavcl de sua realidade : se o homem
fosso umanimal ephemero e inteiramente mortal, não
seria capaz de Ião sublime pensamento nem de es-
peranças tão transcendentes : nossa vida se verifica
porque a concebemos.
O universo natural e concreto é obra de Deus , o
mundo abstracto creação dos homens c origem dos
seus maiores erros.
O Sr. MARQUEZ DK Mabicá. — Maximus.
(•) Vid. a respeito deste valoroso capitão a pag. 18?
do 4.° vol. da Serie 1.* ■ ■'•'■'
81
o PANORAMA.
217
i^% / ..' j..
O
n
<
w
n
t)
o
o
ti
o
a
<
«4
H
O
CS
Nas porfiosas guerras , que em lodo ou parle nas-
ceram da revolução franccza , poucas batalhas se
pelejaram Ião importantes como a do Nilo , dita
também de Aboukir , e não só considerando-a pelo
lado da arte militar, como também pelas suas con-
sequências politicas.
Depois da rápida serie de conquistas na Itália
em 1797 , Napoleão voltando a Paris foi acolhido
cora excessivo enthusiasrao : aproveitando o fervor
da opinião publica , traçou e pót por obra a inva-
são do Egypto , empreza arrojada e ponderosa para
a qual allegava os seguintes motiros: 1." Que es-
tabelecida uma colónia franceza nas margens do
Nilo , podia abandonar-se o systema da cultura co-
lonial pelos escravos, e tirar dalli os géneros que
produziam as possessões de S. Domingos e Anti-
lhas. 2.° Que se abririam novos mercados para as
manufacturas francezas na Africa , Arábia e Syria ,
obtendo cm retorno as desses paixes. 3." Que t oc-
Jumo lo— 1843.
cupação do Egypto era uma base de operações, pa-
ra depois dahi mandar um exercito de cincoenta
mil homens ás margens do Indo e fazer causa com-
mum com os maratús c mahometanos contra o po-
der da Inglaterra na índia. £ provavelmente esla
uUima rasão era a verdadeira causal da tentativa.
Preparada a expedição , fcz-se á vela de Toulon ,
com Bonaparte á testa, nos 19 de maio de 1798,
compondo-se de 23:000 combatentes, 13 naus de
linha, 6 fragatas, e uma armada de na\ios de
transporte , a que depois se reuniram novas forças
sabidas de Génova e outras parles; de caminho con-
quistaram Malta no curto espaço de doze dias : e
chegaram ao Egypto a o de julho. ElToctuado o de-
sembarque , os transportes entraram para o porto
de Alexandria , e as embarcações de guerra fun-
dearam ao longo das praias da bahia d'Aboukir.
Deixaremos Bonaparte , capitaneando as tropas , in-
ternar-se terra dentro ; por qaanto é agora o nosso
2.' Serie. — Vol. 11.
21S
O PANORAMA.
objecto o que se passou com a esquadra que toma-
ra estarão na mencionada bahia. O governo inglez ,
impor(ando-Ihe muito frustrar os desígnios de Bo-
naparte , havia mandado uma esquadra ás ordens
tio conde de S. Vicente, para observar o armamen-
lo de Toulon, com determinação de atacar a fran-
ceza, se fosse necessário com toda a força naval do
seu commando, c quando não com uma divisão que
devia ser mandada por Xelson (»). O conde de S.
Vicente expediu Nelson do porto de Gibraltar com
três naus de 7i peças , quatro fragatas e uma cha-
lupa : com estes navios dirigiu-se ao golpho de
l.eão para espiar os movimentos da frota franceza ;
succedeu que um nevoeiro denso impediu chega-
rem á vista , e passando mais algumas léguas ao
mar a armada de Napoleão , foi este incidente tal-
vez a salvação dos poucos vasos britannicos que
não poderiam arrostar com força desmedidamente
superior. — Nelson, segundo as informações que al-
cançou, fez aviso ao commandante superior, e rece-
beu o considerável reforço de onze naus , e a au-
ctorisação de manobrar e seguir a campanha á sua
discrição, como o pedissem as circumstancias. —
Nelson vagueou pelo Mediterrâneo , e a porção da
costa d'Africa , onde presumia encontrar os adver-
sários ; as suas diligencias foram infructuosas , c
veio acondicionar os navios e fazer as obras preci-
sas á Sicilia ; daqui escreveu n'um olíicio ao almi-
rantado uma rajada, propriamente britannica, mas
que a sua reputação de olíicial de mar e os succes-
sos posteriores justificaram : dizia — «que os fran-
cczes estão no Egypto é fura de duvida , mas vão
ellcs para os antípodas, ou seja para onde fòr, per-
suada-se V/ S/ que não perderei momento de os
procurar e chamar a combate.» — Da Sicilia de
novo sahiu em demanda dos contrários ; o poucos
dias antes do combate disse aos seus officiaes ; —
«ou eu ganharei o pariato , ou uma sepultura ho-
norifica no abbadia de Westminster.» — No encon-
tro de Aboukir o numero de vasos era igual , tre-
ze navios de linha por cada parte ; só os ingiezes
tinham de mais uma embarcação de 30 peças ; mas
assim mesmo a frota de Napoleão contava ao lodo
1:19G canhões e 11:230 homens, e a britannica
1:012 peças d'artilharia e 8:068 homens. Os na-
vios francczes formavam em curva a linha de bata-
lha; a nau almirante tomara posição quasi junto a
um lianco d'areia, e todos na disposição em que se
j)ostaram na vasta bahia estavam para assim dizer
resguardados pela terra ; Nelson concebeu o atre-
vido plano de os mcttcr entre dois fogos ; um de
seus primeiros olliciacs sabedor do desígnio disse-
Ihc : — «Se nós sahirmos bem o que dirá o mun-
do!— Tornou-lhc o almirante: — Aqui não se tra-
ta de se: que sahireraos bem é certo ; agora quem
iicará para contar a historia é caso á parte." —
Com estes ânimos de ferro se concluem emprezas ,
e se vencem combates. — Não copiaremos aparte
ofBcial da batalha , nem reuniremos as particulari-
dades delia , é facto contemporâneo assaz conheci-
do , c por isso nos limitámos á parte que podemos
chamar anccdotica. Fui pelejada de noite rompen-
do o fogo ás Gji da tarde; pouco antes das nove
Nelson estava ferido na testa , e o almirante frati-
oez , Brueys , morto ; dahi a poucos minutos pegou
fogo cm a náu almirante franceza , 1' Orient , de
120 peças , que aiipresenlou pavoroso espectáculo ;
Nelson no calor da acção deu ordem para que as
(•) Vid. a biographia de Nelson a pag. g57 ilo nosso
TOl. 4.»
lanchas recolhessem quantos podessem dos que Oa-
ctuavam nas ondas por tão desastroso incidente ;
salvaram-se ainda setenta marujos francezes. De-
pois da explosão recomeçou o combate : nove dos
navios de Bonaparte foram tomados , três arderam ,
e um foi a pique.' — Extraordinárias foram as hon-
ras que recebeu Nelson por este vencimento.
O BRAZEIBO.
1.
Era na tarde de 31 de março de 1621 : — na pri-
mavera. Havia reunião na camará d'elrei D. Filip-
pe 3.", no palácio de Buen-Iletiro. O ar era ainda
frio , como de ordinário em Madrid nesta estação.
— Eslava no meio da sala um brazeiro de cobre
dourado. Diante deste brazeiro e de uma janella
que olhava para os jardins do palácio, c para a es-
tatua equestre de Carlos S.°, estava sentado n'uma
cadeira d'espaldar elrei D. Kilippc 3." Conhecia-se
pelas Ires condecorações reaes que lhe brilhavam
no peito , a de Sant-Iago , de Calalrava e de Alcân-
tara ; pela sua pallidez , c pelas cabellos ralos de
uma duvidosa còr loura ; assim como pela barba
ruiva que lhe rodeava a parte inferior do rosto ;
que pertencia á casa d'Auslria , e que era um dos
polidos descendentes do glorioso monarcha , cuja
estatua ornava o Buen-Uetiro.
Havia pouco tempo que Filippe se levanta'ra de
uma doença ; c ou fosse que a sua saúde ainda se
não tivesse bastautemente fortificado , ou fosse que
a força vital ]á se lhe ia extinguindo na idade de
•Í3 annos, é certo que todas as suas feições mostra-
vam uma caducidade prematura. Com a cabeça in-
clinada sobre o peito, couio se lhe não podessc com
o peso ; as faces encovadas ; os olhos amortecidos c
sem expressão ; as mãos — as compridas, magras,
ossudas mãos — negligentemente c sem vigor dcs-
cançando nos joelhos ; parecia nesta posição um mo-
ribundo de lucto por si mesmo. Até o logar da sce-
na , apesar da presença de muitas pessoas, era ta-
citurno e mudo como a morada dos mortos.
A esquerda da cadeira d'elrei estava scntadon'um
raoxo coberto de velludo o mordomo-raór , que se
conhecia pela chave de ouro bordada no vestido :
um pouco mais afastado , mas do mesmo lado , es-
tava o duque de Medina Cadi , uchão-mór d'elrei ,
que gozava do privilegio , annexo ao seu cargo , de
diariamente vestir e despir elrei. Ainda mais afas-
tados estavam também o eslribeiro-mór , o montei-
ro-mór , c outras grandes dignidades. Todos cora
rostos severos e immovcis , vestidos de preto , man-
gas largas e pendentes, c as cabeças cobertas se-
gundo lhes competia.
Do lado direito d'elrei havia só duas senhoras;
uma velha c outra moça : a cara de uma enrugada
o a testa cheia de cuidados ; a da outra rosada e
branca, ornada com os encantos vencedores e com
o brilho que aos vinte annos adorna o rosto feminil.
A primeira era a camareira-mór , e a outra a jo-
ven [)rinceza das Astúrias, nora d'elrei, a amável
Isabel de França , que ainda ha pouco havia troca-
do uma vida cheia de festas e prazeres , e o bello
clima da sua |iatria , pela vida uniforme e claus-
tral das rainhas d'llespanha ; troca que já cm ou-
Iro tempo lóra Ião funesta a uma princeza do seu
nome. A sua cabeça loura e rosto tranquillo , que
o sol de Castclla ainda não tinha tido tempo da
crestar , estava era visível contraste com as physio-
o PANORAMA.
219
' nomias vivns do sul , mas marcadas com o sello da
etiqueta. EIrei cndircilou-sc c rompeu o silencio
[porque na córtc d'Jlcspanha a etiqueta prohilio a
todos o fallar sem serem perguntados por elrei] , e
disse com voz fraca: «Esta audiência que me vi
obrigado a dar ao embaixador francez gastou-me as
forças. — Que horas são?» — «Senhor — respondeu
com vivacidade a princcza das Astúrias — apenas
são quatro. »
A estas palavras todos os olhos se voltaram com
espanto para a princcza, e elrei franziu atesta.
".Minha filha, — disse elle com severidade, depois
de ter lançado um olhar terrível — a camareira-mór
devia ter prevenido a V. A. que só ao esmoller-
raór, o duque de Medina Csli, c permittida a hon-
ra de responder , quando elrei pergunta as horas.
A princcza corou, c uma lagrima cahiu dos seus
olhos. Filippe 3.° pareceu não ver tal e continuou:
"Não c hoje 31 de março?»
Uma voz se ouviu , como resposta em ladainha
de moribundos: «Sim, senhor.»
«Este dia — continuou Filippe 3.° — era em tem-
pos passados um bello anniversario na corte d'Hes-
panha : celebrava-se na praça maior com uma cor-
rida de touros , e no Buen-Retiro havia Leija-mão
solerane ; porque neste fausto dia casei com Mar-
garida d'Austria, vossa rainha. Quem se lembra
ainda da rainha ? Era- bella como vós, minha filha :
mas eu não sei porque as rainhas d'Hespanha vi-
vem tão pouco. Jlargarida foi-se na Dor da sua bel-
leza, e já me está esperando ha dez annos no Escu-
rial. — Isto ó triste : não fallcmos mais nisto
Aonde está o príncipe D. Filippe?»
iVinguem respondeu a elrei , que duas vezes com
visivel impaciência repetiu a pergunta. A segunda
vez dirigiu-se á princcza , que mortificada respon-
deu : «Não sei.» Mas elrei sem commiseração com
a joven esposa , disse em tom colérico : « Enganas-
te . mordomo; eu, eu muito bem sei aonde cslá
D. Filippe. Está com alguma daquellas malditas có-
micas. Porque não se apprescnta elle quando me
levanto, como é da sua obrigação?»
« Senhor , — respondeu timorato o monteiro-mor ,
a quem compete guardar a porta em quanto elrei
dorme — o príncipe das Astúrias veio cá esta ma-
nhaã , mas V. il. ainda dormia ; por isso lhe não
p\ide permittir a entrada. A etiqueta prescreve que
os príncipes dllespanha se appresentcm no quarto
d'elrei uma vez de manhaã e outra á noite, o ne-
nliuma vez mais, senão forem chamados.» — El-
rei inclinou a cabeça , e depois de um longo silen-
cio , disse : <i Chama-me o reverendo Fr. Ambró-
sio. »
Fr. Ambrósio era um dos cento c trinta monges
Jerónimos do convento de S. l^ourenço do Escurial ,
que , como 6 sabido , não tinham outra obrigação
senão rcsar pelas almas dos reis e rainhas d'Hes-
panha. Com profundo saber em historia e genealo-
gias conhecia as chronicas mais raras, e elrei o es-
timava sobremaneira pela sua sciencia da etiqueta
e usos antigos. Dizia-se que era de uma das mais
illustres casas d'Hespanha , mas que por humilda-
de o occultava. Elrei quando visitava o Escurial
sempre o havia distinguido, até que lhe deu um
quarto no paço para mais frequentes vezes lhe fa-
zer supportar o enfado da còrtc. Dizia-se que era
muito aíTeiçoado a elrei ; c durante a ultima doen-
ça de Filippe 3.° se linha observado que andava
muito inquieto e agitado, c que continuamente per-
guntava aos médicos o estado do real doente, c pe-
dia que o dci.\asscm ir ao pé da cama d'elrei, por-
que morreria se clrei fallecesse sem elle o ver ain-
da uma vez : e lambem mostrou singular alegria
quando clrei deu signacs de melhora.
Em poucos Ujinulos foi introduzido Fr. Ambró-
sio. Era um aucião bcllo , ainda forte para a sua
idade que parecia de setenta annos. O seu sem-
blante , enrugado pela força das paixões , assimi-
Ihava-se ao de ura leão. Nunca levantava os olhos
do chão ; mas algumas vezes lhe sabiam chammas
scintillanlcs debaixo das fortes sobrancelhas. Pros-
trou-se quasi diante d'elrei , que o fez sentar-se ao
seu lado.
«Keverendissimo — disse Filippe 3.°, — perdoc-
rae se o interrompi no exercício de alguma pratica
de piedade : mas não pude resistir ao desejo de me
illustrar com a sua opinião. Não me podereis di-
zer , pois que tendes tão solido saber , se fiz bem
ou mal nesta occasião? Veio appresenlar-se o em-
baixador de França , e quando se retirava no fim
da audiência , deí-lhc a mão a beijar , c levantei-
mc depois para o saudar. Fiz bem, ou deveria tcr-
me levantado antes de lhe dar a mão a beijar?»
«Senhor — respondeu gravemente Fr. Ambrósio,
— foi efTeclivamente um erro que V. M. commet-
leu contra a etiqueta , e o embaixador com rasão
se podia dar por aggravado. A representação d'el-
rei de França , e os dobrados laços que o unem a
V. M. , como esposo de vossa Ulha , e irmão de
vossa nora, exigiam imperiosamente que V. M. se
levantasse primeiro e depois lhe desse a mão a bei-
jar.»
E conhecendo um riso imperceptível nos beiços
de Isabel de França, o monge continuou; uA eti-
queta c uma cousa mais seria do que muitos pen-
sam ; c em tempos vindouros será gloria da casa
d'Austria tc-la estabelecido eniHcspanha sobre ba-
ses solidas, gloria que principalmente hade reca-
hir no reinado de S. M. elrei D. Filippe 3.°, que
nunca soffreu a menor quebra da etiqueta. Eu da
minha parte , se Deus me der ainda alguns annos
de vida , hcide emprega-los em escrever ura livro
em que heide dizer ludo o que sei desta matéria.»
— «Desde já acceito a dedicatória dessa obra» —
disse elrei. — O monge inclinou-sc.
«Reverendo padre — proseguiu Filippe 3.". —
não poderia , para fazer passar o tempo , contar-nos
alguns dos acontecimentos que hãode achar logar
nesse livro?»
A estas palavras o monge não podia encobrir uma
violenta agitação nervosa cm todo o corpo, mas
cora um esforço sobre-humano a reprimia , e res-
pondeu em tom inteiramente tranquíllo : «Com mui-
to gosto, senhor; mas qual devo preferir?» — «Qual
quízerdes. »
Fr. Ambrozio recolheu-se por alguns instantes ,
e depois principiou desta maneira :
«Senhor, quando durante a sua residência no Es-
curial , V. >[. tiver casualmente caçado nas mon-
tanhas de Guadarrama , não lerá observado do cu-
me oriental donde se vè a torre de Segóvia . um
castello velho, hoje abandonado e que cabe cm mi-
nas?»
«È verdade — respondeu elrei ; — no outono pas-
sado matei um lobo perto dclle. Não é o castelio
solar dos condes de Penacerrada ?» — «Sim, meu
senhor ; uma das mais nobres e antigas casas de
Castclla estes Penaccrradas. » — «.\ssim consta.)'
"Lcmbra-me, padre, ter na minha mocidade ou-
vido fallar em um conde desse nome: era ura va-
220
O PANORAMA.
Icule cabo de guerra, qae ainda militou com o du- 1 Inr.n — «Não leve filhos?» — «Dois filhos teve, se-
iHicd'Alva. c que sempre se distinguiu. KIrei meu | nhor.»- — ^«Ouc foi feito delles?» — «Apraz a V. M .
}>ai apreciava-o muito.» — «Senhor, a memoria de
V. M. é rauito liei ; justamente desse ia eu fal-
ouvir a hi>toria delles '.'n-
assentimento.
Klrei deu «ra signal de
í Continuar-sC'haJ.
rORTICO E nUIWAS be pansb.osio.
Erectheion ó um formoso templo no cstylo jónico ,
situado na cima occidcntal da Acropolis em Athe-
nas , e que nos fins do século passado fazia par-
te desta moderna fortaleza. Lngo pegado está ou-
tro , a que chamam templo dePandrosio, ou de
Minerva Polias , com um [lequeno pórtico , que em
vez de coluninas ou pilastras se firmava em seis ca-
ryalides , uma das quaes existe ao presente no mu-
seu elginense de Londres ; e tem como .is que em-
parelhavam cora cila sete pés d'a!tura. Caryalides
cm architeclura são figuras humanas, a que pri-
meiro chamaram persianas, porque as inventou Pau-
sanias , pelos ânuos 478 antes de J. C. , para ornar
um monumento cm memoria da batalha de Platea ,
em que os persas invasores foram totalmente derro-
tados ; essas figuras representavam os prisioneiros
de guerra, e por isso as de vulto de homem tinham
as mãos atadas atraz das costas ; pozeram-lhc de-
pois o nome de caryatidcs , por motivo igual , em
commemoração do desbarate dos círios, j)ovos d'.V-
sia , inimigos dos athcnienscs : tal é a origem des-
ta denominação segundo o grande mestre da archi-
tectura Vitru\io; outros escri|itiires porem as repu-
tam de origem muito mais antiga que a invasão de
Xerxes , e dizem que os gregos tomaram do Egy-
pto essa moda : finalmente ha quem supiionha que
as figuras , sendo femininas , symbolisam as virgens
dedicadas ao culto de Diana trazendo á cabeça os
■vasos do serviço do templo.
Krectheion é^ o titulo de um livro, que trata es-
pecialmente do edificio do mesmo nome; composto
pelo architecto inglcz Inwood , que não contente
com esse trabalho imitou o templo grego , c o seu
adjunto Pandrosio no risco exterior de parte da no-
■va igreja de S. Pancracio cm Londres.
EaClT02<CIA PCLIvriCA.
Considerações sobre o Curso d' Economia Politica do
Sr. Miguel Clicvaticr.
VIU.
K CERTO que o sobrecellente dos productos do la-
vrador , em geral , c a regra e a baliza do cresci-
mento das classes que não cultivam a terra. Mas
hoje que está preenchido o deficit annual d'esse5
productos , c que temos o alimento , pode sem in-
conveniente, c deve a par d'elie nascer e fructificar
o commudo , apanágio das artes fabris.
Seja-nos guia no futuro a nossa historia econó-
mica que é esta. Fomos agricultores no berço da
mimarchia como quasi todos os povos principiantes :
não exclusivamente , porque á similhança de todas
as outras nações era circumstancias análogas, fabri-
cámos ao mesmo tempo vestidos grosseiros para nos
cobrir , e móveis para nos servirem ao uso diário.
Depois fomos commerciantcs , d'aquella espécie de
cororacrcio a mais instável que se conhece, porque
se funda na ignorância eterna e na fraqueza infini-
ta dos outros povos — que é o monopólio. Um tem-
po houve que (juizemos applicar os nossos desvelos
para as artes fabris ; masfaltava-lhes o pão que não
tirdianios ; as machinas que não adoptávamos da in-
venção alheia , ou que não armávamos da própria ;
a emulação adormecida com a certeza, enganadora,
do mercado exclusivo das colónias; e a paixão pro-
gressiva , a energia das artes , esse formidável rea-
gente , inimigo do repouso, que as esmorece, ami-
go do pensamento que as punge sem descanço ; c
(lesassistidas de todos estes apoios , apenas as desa-
pussaram do mercado exclusivo do lírazil , assalta-
o PANORA3IA.
221
das poiífo tlepois cni ISIO pela irnipriio dos aríffa-
itos cslrangeifos , iiiglczcs, c de outros povos , foin
rapa e rotulo inglez , declinaram rapidamente até
qiip cm fim siictiiml)iram estas excclleiílcs artes.
Tamliem pcrlendcmos voltar os olhos para a ter-
ra , mas que podia ella dar-nos , posto .não fosse
avara nem estéril de tiiesonros , se opprimida ao
peso dus grilhões fendaes a não libertava-mos? Ten-
ilú malciiidado a agrieiíllnra e asfahricas, liados
unicamente no monopólio commercial, quando oper-
ileraos , chegámos a (lonto de nos vermos obrigados
a subsistir quasi unicamente das accumnlações do
trabalho anterior; estado que durou desde que foi
transportada para o Brazil a sede da inouarchia até
a revolução de 1820. N'esse periodo de i'2 ânuos
pôde dizer-se, que appresenlámos ao mundo o es-
pectáculo , único na historia das nações civilisadas ,
de um povo vivendo, quasi sem crcar renda annual,
dos seus capitães , esgotando toda a sua forra , es-
tancando todas as nascentes da producção ; vendo ,
ao mesmo tempo perecer o seu commercio, definhar
as suas fabricas , fechar ao solirecellentc d'alguns
prodiiclos da sua agricultura o único ou o melhor
mercado externo que tinham ; e aggravando as vi-
cissitudes inevitáveis da fortuna com os erros eco-
nómicos cuja imputarão , toda , pertence ;i cegueira
c ignorância dos homei.s. Era preciso sahir desta si-
tuação violenta, c eniharnçosa, sobre quanto se pos-
sa imaginar, á economia de um paiz ; e irrisório
intenta-lo sem revolução politica. Ed'abi a de 18:20.
Depois d'ella ainda que fosse possível vjontinuar a
predilecção para o anterior systema commercial com
menosprezo da outra industria, era força trocar por
outros os regulamentos, ruinosos sobretudo depois de
abertos os portos do Brazil , os regulamentos pelos
quaes se governava o nosso commercio externo. Mas
perdido o Brazil , a pedra angular d'esse systema ,
era então indispensável descontinua-lo, e lançar mão
da agricultura e das fabricas. O peso dos hábitos era
tão poderoso ; os espíritos tão affeitos asupprir-se no
mercado estrangeiro do pão e dos vestidos e com-
niodos que o paiz não produzia ; o geito da carrei-
ra da America tão antigo, que a custo, e como con-
trafeitos, nos fomos encaminhando para nova vere-
da, e novo regimen económico, com tamanha repu-
gnância q^e só passados doze annos , três guerras
civis, a ultima semeada de grandes catastrophcs, e
remível somente por grandes reparações, íUustrados
e pungidos de desenganos tão estrondosos , só en-
tão nos resolvemos a entrar , francamente , era ca-
minho diverso do até ahi cursado. Emancipou-se a
terra , e cinco annos depois a terra retribuía agra-
decida, e até generosa, o beneficio. Soltaram-se cer-
tas prisões á industria fabril. Não bastava. Mas pres-
tnu-se-lhe favor directo, e logo começou ella a mos-
trar signaes de vida , e mesmo a engrossar e cres-
cer ; c engrossava e crescia, porque alem de desas-
sombrada de uma lucta perigosa a sua fraqueza in-
fantil se ia prevenindo e fortalecendo de meios de
resistência , de machinas e capitães e experiências
c ensaios para quando a sua robustez a habilitasse
combater sem desavantagem , e mesmo a aperfei-
çoar-se nas lides da concurrencia.
Em quanto os factos tomavam assim um rumo de-
terminado , Contribuindo a que se acordasse por
uma vez n'um systema económico definitivo , os juí-
zos incertos e vários ílucluavam , ou divergiam. Ora
se dizia : a nação é essencialmente agrícola : do so-
lo c que ella ha-de extrahir a sua riqueza e prospe-
ridade ; asfahricas atrazam-na e empobreccin-na.
Ora insinuavam qun a agricultura não promcllia n
que se cuidava , c que se o reino se achava basle-
cido de cereaes era [lelo contrabando , não pela co-
lheita. Estes iiroclamavara então o commercio úni-
ca ancora de salvação : arrazar as barreiras que lhe
oppunham as alfandegas , quebrar as algemas que
a natureza ou a nacionalidade tinha forjado aos prin-
cipaes dos nossos rios, destruir quanto se lhes re-
presentava empecimcnto á entrada c circulação dos
produclos estrangeiros — tal era o seu voto.
Mas veidio ao nieu pensamento que é — a neces-
sidade de pôr termo a estas frequentes oscillações
e de lixar por nina vez o nosso systema económico.
E este systema deve ser mixto ; — ao mesmo tempo
agrícola , fabril , c commercial. Agrícola pela fer-
tilidade do nosso torrão , a extensão o preeminên-
cia da nossa agricultura sobre as outras industrias,
e a necessidade do alimento a que todo o estado
deve consultar. Fabril para supprir ao nosso mer-
cado domestico meramente, porque nem a superio-
ridade industrial de outros povos , nem os capitães
que precisámos plantar na terra, nos permittem dar
ás fabricas tamanho impulso que nos babilite a na-
ção exportadora de artefactos. Commercial , para
conser\armos as possessões do ultramar. E maríti-
mo também; porque, para sermos commerciantcs de
commercio externo , havemos de ser navegadores.
Temos assaz capitães para manejar tantas indus-
trias ao mesmo tempo? Não são bastantes, eu o con-
fesso, para despregar a desejada energia e actividade
era todas cilas. Em tal caso, dir-me-hão, não convi-
ria applicar esses capitães que temos á agricultura
somente para tirarmos d'ahi o beneficio que a nossa
inferioridade , e a disseminação dclles por dijferen-
tes emprczas nos não promette '. Este conselho pôde
traduzir-se assim : comprai os artefactos ás nações
fabris : fazei o vosso commercio externo nos vasos
das nações marítimas ; ou encarregaí-as de fazer
por vós esse commercio : porque d'este modo os ar-
tigos fabris , o commercio , e o carreto marítimo
vos sahirão muito mais baratos. A querermos ser
cohereutes , deveríamos também comprar trigo era
Odessa , no Báltico , nas duas Castellas , abando-
nando a agricultura pelo mesmo principio porque
largávamos as fabricas , a navegação , e o commer-
cio. Alimentados, então, vestidos, transportados
por estrangeiros , em completa ociosidade , víviria-
mos á lei da nobreza , mas de que havíamos de vi-
ver? De que rendas, de quaes minas?
Sc nós tivéssemos um monopólio natural tão im-
portante como o do chá, com mais fundamento des-
viaríamos das outras industrias os capitães para os
empregarmos exclusivamente no grangeio d'esta .
suppondo que , muito mais lucrativa que todas as
outras juntas, fosse bastante a manter-nos uo esta-
do de nação. Mas se nós não possuímos senão o mo-
nopólio dos viulrns do Porto, ínsuíncicntc a índem-
nísar-nos da perda de outros rendimentos, e demai.s
enfraquecido e combattido todos os dias por outras
nações , e pela inconstância da moda e os caprixos
do paladar , que havemos de fazer senão valer-nos
dos motores industriaes communs a todos os povos
civilisados , e 'produzirmos nós mesmos os artigos
reclamados pelas necessidades mais geracs do nosso
mercado interno? Que pelas difierentes industrias
se distribuam em proporções justas e adequadas á
quantidade d'ellcs c á importância relativa de cad.i
industria os capitães , bem é : essa distribuição se
executará pela simples premoção o ínstincto do in-
teresse particular com mais acerto do que o seria ,
«22
O PANORAMA.
SC opodesse ser, pelas combinações, fossem ellas as
mais apuradas, do legislador. Mas que não sendo o
nosso solo dotado cora nenhum produclo natural pri-
vilegiado, de grande exportação , e extraordinário
consumo , vamos consagrar á terra Iodas as fadigas
c cuidados desamparando as artes faJjris , c desde-
nhando-as como agente muito subalterno da rique-
za , só nos occupenios delias nas horas vagas , por
curiosidade e desenfado , não me parece prudente.
Se como os Estados-Unidos produzíssemos em
grande copia algumas matérias primas de imniensa
procura para as fabricas , como o algodão e outros
géneros — se as machinas vorazes o as insaciáveis
oflicinas da nossa Europa deparassem em Portugal
o principal artigo da sua elaboração infatigável,
demittissemos então de nós , muito embora , o offi-
cio de fabricantes : não seria erro : posto mais se-
guro fora , talvez , não o demittir de todo. Convém
sempre, eratbese, a uma nação essencialmente agrí-
cola tecer por suas mãos próprias os vestidos singe-
Jos da classe que rega a terra com o seu suor : e
o mais ardente egoisrao da nacionalidade, os precon-
ceitos mais exaggcrados ou mais poéticos da inde-
pendência fraternisão neste ponto com os preceitos,
áridos e inexoráveis, da snicncin. Por patriotismo
e por calculo, seja cioso, pois o deve ser, de ves-
lir-sc a si mesmo o povo agricultor. Se na exporta-
ção do algodão consiste a sua riqueza, a sua rique-
za não ha-de padecer quebra , ainda que elle recu-
se acceitar pannos em troca do algodão , porque c
este um producto Ião afreguczado , que na actual
situação económica do mundo não haverá, por mui-
tos annos, probabilidade de que afTrouxe o seu con-
sumo : c d'este modo o paiz que ó agricultor, es-
teja tranquillo sobre a sua extracção. Eaqucllepaiz
agrícola , pelo contrario , que não é exportador, ou
cuja maior riqueza se não cifra na exportação de
productos de monopólio , com dobrado motivo deve
fabricar vestidos para as suas classes laboriosas ,
porque limitaudo-se quasi ao interno todo o seu mer-
cado, aproveita-lhe mais que a qualquer outro am-
plia-lo por agencia das fabricas , que serão um
acrecido de consumo para os seus productos ruraos.
Resulta , pois , que somente os paizes , como os
Estados-Unidos c o Brazil , opulentos em productos
iiaturaes , c esses exclusivos ou quasi , e alem de
exclusivos muito superabundantes ás necessidades
do consumo domestico , e muito procurados para
uso das fabricas ou do liomem , podem , sem grave
darano, escusar o cxcrcicio da industria fabril, mas
não tanto, esses mesmos, que vão comprar a nações
estranhas as alfaias mais ordinárias do serviço das
suas classes pobres. E que os outros, como o nos-
so , desfavorecidos de similbatite vantagem, se qui-
zerem adiantar-se cm riqueza , ou reaniraar-sc do
abatimento , bão-dc combinar com a agricultura as
artes fabris.
X nós é esta combinação muito favorável , pois
com cila, ao lado da nossa principal producção que
é a agrícola creâmos tim mercado activo para as
matérias primas e os alimentos que fornece a terra,
o qual del)alde jirocurariamos fora do reino , visto
(jue do próprio vinlio , que é o principal artigo da
nossa exportação o grande consumidor é Portugal.
E esse mesmo artigo não o exportámos ]ior sobre-
pujar muito ao su[)primeiilo interno , como o assu-
(•ar no lirazil , c o algodão na America do Norte ,
porque do vinho que produz o nosso solo, segundo
indica o rendimento do subsidio litlerario, se fosse
cscançado pelas duas terças partes dosporluguezes
da Europa , tocaria a cada um pouco mais de meio
quartilho por dia ; circumstancia que mostra não
só que elle não chegou ainda ao máximo da sua ex-
tracção possível e rasoavel dentro do reino ; mas
que Portugal está longe de ser verdadeiramente ex-
portador, ou de poder basear na exportação de gé-
neros agrícolas todo o seu systema económico , sa-
crificando outros recursos e instrumentos de rique-
za social. Alem do vinho vendemos , na verdade ,
aos estrangeiros outros productos agrícolas , como
c o sal , mineral valioso que nos sobeja em grande
excesso , mas de rendimento muito inferior ao do
vinho. E também frutas e hortaliças , sobre os pro-
veitos de cuja exportação não haverá quem, certo,
erga o princípio anti-fabril sem excitar um riso
mais inextinguível do que o dos deuses de Homero.
(Continuar-se-ha. )
A. d' O. Marreca.
CCIDADOS QUE SE nEVEM TEB COM OS E.fFEBMOS.
Deparou-se-nos um artigo assim denominado por
Mr. Raticr , doutor em medicina pela universida-
de de Paris , pratico mui conhecido por seu zelo .
luzes, e publicações hygienicas , que por sua im-
portância , precisão , clareza , c utilidade pareceu-
nos conveniente extrabir do Jornal dos Conheci-
mentos Úteis tom. 1.° pag. IG. Raras addições nos
pareceu juntar-lhe. =Imagina-se , diz o citado au-
ctor , haver desempenhado tudo quanto é nccessa-
rii ao enfermo quando se ha ministrado tantos cal-
dos por dia , tantos copos de remédio , tantas co-
lheres de cordeal , &c. , o pouco se inquietam do
ar que ello respira , do regimen alimenlario que se
deve seguir, da limpeza e accio era que deve estar,
c principalmente do repouso de corpo e d'cspirilo
que lhe são indispensáveis. Por uma imperdoável
condescendência, cm logar d'executar arisca as
ordenanças do medico, se facilitam ao doente ali-
mentos defczos , como vinho , c outros ; conservam
o quarto do enfermo sempre fechado , não renovam
o ar, nem lhe mudam a camisa c lençoes da cama,
assentando que lodo o ponto está em reduzir o en-
fermo a uma immobilidade perfeita , e em afastar-
Ihe o contacto do ar almosphcrico. A barbaridade
e a preoccupação neste artigo chega muitas vezes
ao excesso de privarem inteiramente <la luz do dia
a camera do doente , fazendo-o respirar , alem de
um ar corrupto o carbónico das luzes perpetua-
mente ncccsas. Outra prejudicialissima prevenção é
assentarem que se não podo viver , nem tratar do
enfermo sem lho fazerem tomar algum alimento diá-
rio , ainda mesmo que o medico o tenha prohibido
[o costume generalisado ilos caldos de galinha está
neste caso]. Quantas mortes, produzidas por um si-
milhnnte absurdo, tem acontecido nos casos em
que é absolutamente indispensável uma abstinência
total !
Mui felizes os enfermos a quem não rodeiam se-
não pessoas discretas , inlelligentcs , zelosas , c as-
saz lirnies para executar á risca as recommeuda-
ções do medico. Km vez de taes pessoas . os ami-
gos , os parentes , os domésticos clieios de ternu-
ra , e (Fuma muito mal entendida binnanidade ce-
dem aos desejos, ou phantasias do enfermo ; minis-
o PANORAJMA.
223
tram-lhc refrigerantes c outros allivios passageiros,
mas uocivos ; diminuem as quantidades dos medi-
camentos prescriptos por comprazer ao doente ; c
quasi sempre os aturdem por um palavreado inútil
a titulo de distraliir, ou animar o pobre pade-
cente.
Assim que ; limpe:a , discrição , bondade mislura-
da com firmeza , intclligencia , c exaclidão em exe-
cutar as ordens do facultativo, cuidado, e reminis-
rciiria para dar a cslc conta de tudo o que lhe im-
porta conhecer : eis todas as qualidades que se re-
([ucrem no enfermeiro ; e é isto o que mui rara-
mente se encontra. Mas estes predicados do espiri-
to não bastam só : convém que seja assaz forte e
robusto para supportar as fadigas e a vigilia ; para
levantar , ou volver o doente ; e desembaraçado c
geitoso para praticar as miúdas applicações e cura-
tivos periódicos que não estão a cargo do medico
ou cirurgião. Desgraçadamente este oliicio c empre-
go , tão necessário quanto delicado , não está cm
voga , nem é seguido como cumpria. As mulheres
são ordinariamente mais próprias para isto do que
os homens ; e povos ha onde esta importante tarefa
faz o objecto d'ura instituto religioso ; taes são as
beguiuas na Bélgica , as irmaãs da caridade em
França , e n'outras partes.
Apesar de tudo seria para desejar que só amigo
e parentes se quizessem encarregar de guardar e
servir os doentes de consideração. Ima guarda de
algumas horas repartidamenle não é demasiado pe-
nosa ; e tudo iria melhor , e mais discretamente
feito tendo o cuidado d'afastar aquelles que por
sua fraqueza, ou demasiada ternura são inaptos pa-
ra isso. Se as pessoas nimiamente afiectadas d'inte-
resse c estremecido cuidado pelo enfermo se dedi-
cassem a esta tarefa substituiriam o sentimento á
rasão , c ver-se-hia talvez cm logar dum enfermo
dois ou três.
O que for nocivo para um são, não poderá jamais
ser útil a um doente. Assim um ar demasiado es-
pesso e carregado , uma temperatura muito quente e
ithafada é cousa absolutamente prejudicial. Pelo
contrario é preciso que o ar do quarto seja puro,
fresco e renovado a miúdo , havendo todavia a pre-
caução de desviar a corrente d'ar frio: dever-se-ba
.ibrir as janellas e porta alguns instantes cada dia ,
tbchando então as cortinas do leito, ou resguardan-
do com coberturas o enfermo. Xo inverno se deve
conservar n'uma temperatura doce e agradável afo-
gueando a camcra com brazas vivas de lenha de
vides , no caso que ahi não haja chaminé em que
possa alimentar-se fogo brando ; de modo que haja
sempre 15 ou 16 graus de calor de thermometro
deReaumur. [Nós estamos persuadidos que ha uma
verdadeira preoccupoção em snppòr que nos paizes
temperados . nos chamados mesmo de clima quente
como em líespanha e Portugal , não ha jamais ne-
cessidade de fogo' senão nas cosinhas: em Lisboa
mesmo ha nos mezes de dezembro e janeiro dias
muito frios era que não só os doentes, os sãos mes-
mo ganhariam era commodidade e saúde aquentan-
do-se ao fogo. O receio das constipações é ura pa-
pão , ura phantasma ridículo para com as pessoas
sensatas c discretas que tomassem as precauções
communs e ordinárias a todos os seres rasoaveis : o
contrario disto é solTrer um mal actual pelo receio
d'um futuro incerto].
Deve empregar-sc todo o cuidado em evitar to-
dos os cheiros fortes e desagradáveis. Convirá mui-
tas Tezes renovar e purificar o ar com fumigaçõc»
de chlorato , empregadas com moderação : todas a$
demais triviaes , como dos fumos de vinagre, d'as-
sncar , d'alfasema , de pólvora , de genebra , ou
d'agua de colónia , (5ic. não servem senão de mas-
carar a infecção e podridão do ar sem remediar o
mal.
lin outro costume, desgraçadamente muito com-
mura , é o de sobrecarregar os enfermos de vestidos
c col)erturas demasiado (jtientcs: nem muito, nem
pouco é a regra adoptavel. V. necessário que ne-
nhum aperto nem ligadura oppressora cerre o doen-
te : os colchões de pluma , e outros demasiadamen-
te moles devem ser banidos da cama dos enfermos :
os melhores leitos para estas occasiões são os mo-
veis ; aquelles era volta dos quaes se pôde andar ,
que facilmente se podem mudar c desfazer sem in-
commodo do doente. Já se vè por isto que os mais
ricos e luxentos leitos são os menos próprios para
estas occasiões : uma cama levantada sobre bancos
ou cadeiras será a mais conveniente ao tratamento
do enfermo. Para os casos de fractura e deslocação
de membros são excellentes os leitos mechanicos
de Danjon , por meio dos quaes o doente se pôde
levantar e voher sem ajuda doutrem. Deve procu-
rar-se que o doente tenha sempre os pés quentes ;
e muito refrigera e consola os enfermos mudar-llic
a roupa da cama de tempos em tempos. Outra abu-
são muito espalhada c que não convém aos enfer-
mos lavar-se ; e não é raro verem-se doentes que
durante trinta e quarenta dias não tem chegado ao
rosto, á boca, e ás mãos uma gota d'agua por lim-
peza ; que emfim são conservados n'um estado com-
pleto de desalinho, e esqiialidez repugnante. Alem
do rosto , da boca , dos dentes e das mãos , que
lodos os dias devem ser lavados com agua morna .
é indispensável também lavar com uma esponja mo-
lhada n'agua avinagrada ou aguardentada as partes
do corpo, que estando naturalmente mais sujeitas
á pressão contínua , necessitam de serem limpas a
miúdo.
O regimen alimentar é tão essencial que muitas
vezes elle só completa o tratamento , e oppéra a
melhora. Era quasi todas as moléstias agudas, prin-
cipalmente nas que são acompanhadas de maior ou
menor desarranjo de digestões, o principal, e mui-
tas vezes o único remédio , é a abstinência de co-
mer ; isto é , o curativo em tal caso é pôr em re-
pouso o órgão fatigado. A dieta portanto é ponto
capital : ministrar alimento a um doente de febre ,
é augmenta-la (•). Kão se deve sob pretexto qual-
quer dar vinho aos enfermos sem uma expressa or- .
dem do medico. A melhor bebida que se possa for-
necer a um doente e convalescente é agua pura ,
ou ligeiramente assucarada, ou misturada com uma
colher de bom vinho muito velho. É um costume
reprovado dar muitas vezes de comer aos doentes ;
pouco e digerivel c o que convém : e para que se
não encontrem no estômago os alimentos com os
medicamentos é forçoso que haja íntervallo rasoa-
vel para que os segundos não sejam annullados pe-
los primeiros.
Não se deve jamais forrar a natureza: convém
(•) Nus eocunfrámos n'inr.a oollecrào d'ohservaçries hr-
çieiíicas dum homem mui illiislrado iim.i que cabe aqui
muito a propósito : ^Tem-se communicado da índia o uso
da canja darroz (arroz cosido em agua) como o alimento
mais próprio para dieta : o caldo de galiiilia sendo absur-
damente ministrado aos doentes de febre. Descobriu-se este
uso na índia por occasiào d'unia epidemia, em falta de cu-
mesliveis ; com uso d'arroz cosido multo raro em acua e sa!
Eararam.
224
O PANORAMA.
obscrva-Ia , c ajudar seus esforços : por conseguin-
te na suppressão das evacuações é preciso sim pro-
curar remover a dilliculdadc, porem jamais com vio-
lência c repetições cjue cscandalisem c mortifiquem.
Sc o repouso physico é necessário aos doentes , o
rcpnuso e tranquiUidadc d'alma não é menos impor-
tante. As comoções fortes podem fazer degenerar
om moléstias graves ligeiras indisposições. A cspc-
ranra v a mãi da alegria , e é por taes caminhos
que se aligeiram os males do enfermo.
As mortes apparciites reclamam igualmente um
especial cuidado da parle dos enfermeiros, c|ue de-
sorientados pela illusão ou abandonam os pobres
enfermos , ou os tratam como cadáveres dcscobrin-
do-os , lirando-os do leito, &c. A decisão decreto-
ria do finado pertence aos homens da arte.
(J. da C. N. C.)
Op.rUEU , SEGL.NDO i FABILI E A IIISTORU.
OiiiMiEU , filho dc Apollo e da musa Calliope , nas-
ceu em Thracia , e habitando junto ao monte Ro-
dopes casou com Euridice , princeza daquelle paiz.
Arislaco , príncipe visinho , se namorou desta apai-
xonadamente, e premeditou viola-la; mas cila, pa-
ra se subtrahir á violência do fogoso príncipe , fu-
giu para o campo aonde falleceu da mordedura de
uma serpente. Tão atribulado ficou o marido cora
a perda de sua mulher que desceu ao inferno aon-
de esperava encontra-la. Orpheu era dotado de ra-
ro talento para a musica e poesia , e tão bom uso
fez delles nas regiões infcrnaes que ÍMutão e Pro-
sérpina lhe restituíram a esposa , com a condição
de que não voltaria a cara atraz sem que chegasse
a ver a luz do. mundo. Ou Plutão não sabia que
cousa era amor , ou então quiz zombar do pobre
Orpheu; porque sujeitar um marido a que em tão
extenso caminho se não mova para ver se sua ama-
da consorte o segue, era querer um impossível. Im-
paciente Orpheu por ver Euridice, e desejando cer-
lificar-se se cila o seguia , quebrou a promessa , e
perdeu para sempre sua mulher. Orpheu cm quan-
to esteve nas trevas elogiou nos seus cânticos a to-
dos os deuses ; esquccendo-se de líaccho por olvido
inexplicável. Este deus , estimulado com a affron-
ía , instigou por tal forma as Menades , suas sa-
cerdotizas , que fizeram cm pedaços o poeta musi-
co , espalhando-lhc os membros pelo campo ; — as
musas , porem , os juntaram , em premio de ter el-
le excellentemcnte cantado cm louvor d'ApolIo. Ha
quem descreva mui diversamente a sua morte ; mas
isso pouco nos importa , pois agora só trataremos
da vida.
Todos concordam em queOr[)hcu foi um dos mais
antigos poetas da Grécia , e o primeiro que iiilro-
duziu os ritos dc JUaccho. — Era pessoa dc consu-
mados talentos , e o mais sábio dos discípulos de
l.ino. Estabcleec\i expiações para os maiores cri-
mes , e ritos para applacar a cólera das mais olTen-
diiias divindades, sendo ao mesmo tempo medico
liahilíssirao na cura dc todas as enfermidndes. Al-
trihucm-se-lhe muitos livros em que trata da mu-
tua geração dos elementos; da força do amor nas
pnxlncções naturaes; das guerras dos gigantes com
•lopilcr; do rapto e queixa de Prosérpina; das pe-
regrinações dc Ceres ; dos trabalhos dc Hercules ;
das ccremonias dos Coribantcs ; das respostas rays-
teriosas dos oráculos ; dos sacrificios de Vénus e
Minerva ; das lamentações dos egypciuí por Osi-
I ris ; e da interpretação de sonhos , signacs , prodí-
gios , e expiações pelos defunclos. Orpheu jactava-
se de possuir a arte de ensinar aos homens a lin-
guagem dos pássaros ; c dc descobrir a vontade de
Júpiter pelo vòo das aves ; de poder deter os dra-
gões em sua carreira; dc tirar a peçonha ás ser-
pentes , e de adivinhar cm muitos casos as inten-
ções dos homens. Kão deve pois admirar que po-
desse amansar as feras com os sons da sua lyra ,
fazer parar o curso dos rios, amainar as tempesta-
des , nem que se movessem montes e arvores para
o escutar I !
Os antigos snppozeram que Orpheu viveu no tem-
po dos Argonautas , e que tonKÍra parte naquella
expedição. Esta fabula teve origem no Egyplo — o
paiz das ficções. Quando no mez de julho o sol en-
tra no signo dc Leão o Nilo inunda os campos. Pa-
ra significar a alegria do puhiico ao ver que a pro-
picia inundação chegava á altura desejada, figura-
vam os egypcios um joveu tocando lyra sentado ao
pé de um leão manso ; c quando as aguas uão cres-
ciam representavam o Horus estendido sobre o leão
como se estivera morto. Chamavam a este symbolo
Orcph , em lingua cgypcia , que denota a parte in-
ferior da cabeça , para significarem que a agricul-
tura se aciíava então inteiramente parada ; e as
canções com que o povo se divertia neste período
de inactividade, por falta de occupação , se appel-
lidavara hynuios de Orpheu. Com o crescimeiíto das
aguas volviam os lavradores aos seus trabalhos , e
isto deu occasião a dizer-se que Or[)lieu voltava do
inferno. A uma imagem collocada junto do Horus
chamavam os egypcios Euridice [i)alavra composta
dc cri, leão; c dc duca , manso] para significarem
que a violência ou raiva da inundação tinha acal-
mado ; e como os gregos interpretavam as figuras
dos egypcios cm sentido litteral , e não emblemáti-
co , fizeram de Euridice a mulher de Orpheu.
Polimento para tnovcis. — Muitos marceneiros de
Paris e Londres usara dc uma espécie de polimen-
to , a que chamaram da China, c que tem a vanta-
gem de fácil preparação e de conservar os moveis
lustrosos e na bclleza primitiva. Faz-se c usa-ac
pela maneira seguinte. Díssolve-sc cera em aguar-
raz , partes íguaes : se o polime;ito é destinado a
trastes de mahógaao ou de cõr similhantc , proce-
der-sc-ha assim: — dei!e-se uma pouca de herva
lingua de vacca de infusão cm seis onças d'essen-
cia de thercbcutina , por espaço dc 48 horas; coe-
so o liquido e juntc-se-lhe seis onças de cera bclla
feita em migalhas ; depois de encorporada com a
essência esta nova substancia , põe-se de parte me-
clicnilo dc tempo a tempo: ao cabo de oulras -iS
horas achar-se-ha dissolvida a cera, e formada uma
quasi massa mui branda ; a qual applicarão sobre
os moveis esfregando com um pedaço de flanella
sem descontinuar a fricção cm quanto não estiver
sècco o polimento e até que não haja na madeira o
menor vestígio dhumídadc. — Se o polimento que
SC pcrlcndc é amarcllo ilcita-sc-dMnfusão páu ama-
rello dos tintureiros em vez da horva supramencio-
nada. Sendo os moveis de mármores . dissolvr-se
cera branca em vez de amarella ; e dá-sc o ])oli-
mento do mesmo modo. — Esta substancia deve ser
guardada cm vasilha bem tapada.
As máximas são como os números, que compreben-
denj grandes Talores em bem poucos algarismos.
82
o PANORA3IA.
22u
e
o
M
M
O
<
ti
h
O
P
M
n
M
H
t>
Oí
M
ti
ti
M
S
Os THBONos d'Inglalerra , França e Alemanha eram
occupadus por ires poderosos monarch.is, Henrique
S.", Francisco 1.°, e Carlos 3.° Malavindos os dois
últimos sobre pertenções á coroa de Nápoles esta-
vam qnasi em ruptura de guerra ; e cada um pela
sua parte diiigenceava alliar-se com a Graã-Brela-
nha ; por isso ambos intentavam conciliar a ami-
sade de Henrique, e a de seu principal ministro o
cardeal de Wolsey. Por Cm conseguiu o monarcba
JiLBO 22—1843.
da França vèr no continente o seu visinlio d'3lcra
do Canal: Francisco 1.° assentou a sua corte tem-
porária , por occasião deste encontro, em Ardres, e
Henrique 8." em Guines. De parte a parte a osten-
tação de riquezas foi excessiva : os abarracamentos
e edifícios de madeira que se levantaram para os
inquilinos , que haviam de os habitar por tão pou-
cos dias, eram lodos forrados das mais ricas telas
de seda, e de galões de ouro, por tal forma que se
2.' SEaiB. — VoL. II.
226
O PANORAMA.
póz a estas sumptuosas tendas reacs o nome de
acampamento d'ouro. = Amigável foi o trato entre
os dois nesta feira d'arraial , que de certo o foi , e
não sessão convencionada para sérias e estáveis ne-
.:;ociações politicas : simulada era a reciproca con-
descendência ; e os eITeilos do tratado peremptório
ílcaram no papel , como cm outras occasiõcs idênti-
cas , anteriores e posteriores a esse encontro. Mos-
tra-o a guerra que rebentou poucos annos depois.
Todavia se na historia não avulta o encontro dos
monarchas rivaes pelos resultados cm acontecimen-
tos futuros , as narrações que das pompas c festas
d'então nos deixaram os chronistas conleniporancos
dão suiricienle idéa dos estylos do còrle, c dos tra-
jos, divertimentos, e mais circumstancias dessa epo-
cha. — lia sobretudo um rasgo do animo de caval-
leiro., de que era grandemente dotado o rei de
França. Francisco notou alguns receios em Henri-
que pelas precauções que tomava para a primeira
recepção solemne ; e para o tranquillisar appresen-
tou-sc desarmado e qnasi só, ura dia, bera cedo,
no acampamento de Henrique , que soube avaliar
esta demonstração do generosa confiança, penhor ao
mesmo tempo de sincera boa-fé. — N'outra occa-
sião , acabados os torneios dos cavalleiros, espectá-
culo muito da moda , os luctadorcs d'aml)as as na-
ções provaram forcas entre si ; e ao disculir-se ua
lenda real o mérito dos respectivos combatentes , o
jnonarcha inglez travou do braço do francez e li-
rando-o a terreiro, disse: «Também nós lidare-
mos; porque esta brincadeira é ntil exercício , c
não a havemos deixar unicamente á gente de nossa
comitiva.» Fez Ires ou quatro esforços para derri-
J)ar Francisco ; mas este , homem rolnislo c luta-
dor . n'uma volta de mão deu com o contrario em
terra ; e nunca mais se experimentaram em conten-
das gymnasticas , talvez porque seriam pouco airo-
sas para cabeças coroadas.
O Bobo.
• 11Í28.
XIV.
Amor
c vingança.
Troo esqueceria na edificação de umcastcllo do sé-
culo XI ou \II menos um bom e solido cárcere,
com troneiras bem estreitas c engradadas de gros-
sas barras de ferro. As vezes os aposentos eram mal
reparados contra as injurias das estações e os mu-
ros débeis e pouco vigiados , mas a masmorra su-
mida debaixo, de torre macissa , cscaçamente allu-
miada , com seus alçapões de grosso carvalho, suas
entradas occnitas, por onde cm muitas occasiõcs os
nobres alcaides e senhores iam , não sentidos, pra-
ticar as atrocidades ([ue se lècm nas memorias da-
quclla cpocha , e a que ordinariamente dava ori-
gem a vingança ou a cubica; esse aposento (Kan-
gustia , dizemos, nunca deixava de ser conslrniilo
com primor. O cárcere do eastello era quasi sem-
pre uma propriedade mais valiosa c productiva ,
que todas as terras, villas , herdades o direitos aii-
nexos áquellcs nitihos de pequenos tyrannos ; era
uma espécie de laboratório de alchimia verdadeira
onde a pobreza de judeu jurada e tresjurada pela
loura se convertia em chuva áurea , os argaes ou
trouxas dos bufiirinheiros inglezes ou italianos se
derretiam como se fossem decora, caquellas aboba-
das, frias e húmidas, fossem de metal candente — e ate
os alforges do devoto monge, ou do venerável clérigo
se convertiam em escarcella bem provida de gasta-
dor prestameiro. As prisões dos legares afortalcsa-
dos que coroavam differentes cabeços de Galliza c
Portugal eram uma espécie de providencia , que
em casos apertados acudia milagrosamente aos do-
nos ou tenentes desses logares, quando os concelhos
visinhos sabiam defender as suas talhas c adegas,
ou os acostados do fidalgo castellciro murmuravam
por falta das soldadas , ameaçando abandona-lo in-
dcfenso á revendita dos outros nobres cora quem
trazia guerra de homizio.
Devemos crer , ao menos piamente , que o conde
Henrique , na epocha em que alcvantou o eastello
de Guimarães, não lançou nos fundamentos do seu
edificio soberbo um cárcere seguro e vasto com os
intuitos de rapina que guiavam o commum dos se-
nhores nestas tristes edificações. Ainda que algum
documenlinho de má morte provasse o contrario
cumpria-nos po-lo no escuro, ou contestar-Ihe fran-
camente a authenticidade, porque o conde foi o fun-
dador da raonarchia , e a monarchia desfunda-se
uma vez que tal cousa se admilta. Assim é que se
hade escrever a historia , e quem não o fizer por
este gosto , evidente é que pude tratar d'outro oHi-
cio.
Fossem, porem, quacs fossem os motivos do con-
de, o certo éque não lhe esquecera o construir nas
raizes daqncllns torres e murallias uma forte mas-
morra, cujo pavimento ficava inferior ao fundo do
fosso lançado entre asbarbacans e asquadrellas do
muro. Este logar húmido c mal-são aiienas recebia
a ténue claridade de duas troneiras que davam pa-
ra a carcova. Dentro, uma escada de pedra fecha-
da no alto com um alçapão chapeado de ferro con-
duzia á escada superior da torre. Ao lado via-se
um potro . do qual estavam pendurados alguns ta-
gantcs ou açoutes de couro cru, cordas, e mais
aparelhos de tratos. Defronte uma polé pendente
de grossa argola cravada na abobada , c distante
apenas da parede dois ou Ires palmos , oscillava
quasi imperceptivelmente com os golpes de vento
que murinura\am pelas altas frestas ou troneiras.
D'um pillar grosseiramente afloiçoado, que susti-
nha ao meio da quadra o fecho díi abobada, sabiam
alguns grilhões ferrugentos, chumbados na pedra.
Estes grilliões eram — como uma sangria cm caso
de ajioplexia fulminante o é na medicina — um
luxo de sriencia de carcereiro — ou antes um pleo-
nasmo mais intolerável que todos aquelles que cos-
tumam votar á execração publica os grammaticos c
rhctoricos. Cadeias em tão seguro cárcere eram ab-
solutamente inúteis, e deleito bem se mostrava que
alli tiidiam sido postas como simples adereço, e cas-
quilharia de terror.
Um largo poial encostado ao pillar, e cuberto de
uma pouca de palha meia podre formava com os
instrumentos de martyrio todo o adorno da masmor-
ra. Deviam contcntar-sc desse escabcllo para se as-
sentarem, desse leito jiara dormirem, os habitantes
desta melancholica morada. E com rasao ; onde o
exercicio dos membros sé) podia ser leito nas dores
e angustias dos tratos, era leito de rcpiuiso a la-
gem fria do poial, e a palha já fétida que o cubria
fofo almadraque de pennas.
Um eavallciro, cuja qualidade se conhecia pelas
esporas douradas, que ainda conservava alivelladas
sobre os balegoens , c pelo cinto de prata que lhe
apertava o brial , estava ahi assentado. Parecia co-
o PANORAMA.
227
gitar profundamente. Quedo, com os colovellos fir-
mados sobre os joelhos e as faces entre os punhos ,
o vento que redemoinhava pela espaçosa quadra ,
ondcando-lhe os cabellos desordenados liie fazia ca-
hir sobre o rosto algumas madeixas que lho enco-
briam. Um soluçar comprimido era o único signal
de \'u\3 que se lhe percebia ; no mais a sua immo-
Lilidade assimilhava-se á de um cadáver.
O sol inclinava-sc para o poente : os seus raios
dourados roçando peia borda do fosso vinham alra-
vez de uma das Ironciras pintar um pequeno circu-
lo avermelhado no pavimento da masmorra aos pés
do preso, era cujo roslo batia a claridade pallida
refrangida da lagcm branca. A luz do dia aodcsap-
parccer, como que se dobrava para aflagar c bei-
jar o desgraçado, que talvez não tornaria a ver.
Dir-se-hia que os raios do sol se prendiam aos ca-
bellos louros do mancebo onde folgavam scintillan-
do trémulos , e que pediam áquellcs olhos morlaes
e mcio-cerrados o ultimo olhar de saudade com que
o homem costuma dcspedir-se do astro esplendido ,
quando elle se vai mergulhando na extremidade do
horisonle.
E parecia que esla linguagem mysteriosa achava
no coração docavalieiro uma dessas harmonias inex-
plicáveis que Ueus estabeleceu entre a natureza c
o homem nu grande concerto do universo. Afastou
os cabellos da fronte ; depois poz os olhos no sol ,
e um sorriso quasi imperceptível lhe fulgurou atra-
vez do véu de nielancholia profunda que se lhe es-
tendia sobre as faces, comoatravez do sudário del-
gado unido a um corpo morto parece ás vezes ha-
ver um rápido movimento de vida, que cessa no
mesmo instante em que a vista perlende fixar essa
illusão passageira.
O mancebo alevantou-se , crusou os braços e fi-
cou por algum tempo com os olhos fitos na tronei-
ra illuminada. Finalmente levou a mão á fronte, c
os seus passos vagarosos soaram de um para o ou-
tro lado do calabouço. Pouco apouco os lábios agi-
taram-se-lhe como a superficie do mar que se en-
crespa aos primeiros sopros da procella. A tempes-
tade accumulada naquella alma rebentou por fim
dolorosa e terrível : —
«Oh, — exclamou elle — como a vida ó rápida e
ao mesmo tempo eterna para o que sabe que vai
morrer '. Eternidade pelo infinito dos pensamentos
que passam tumultuosos no espírito do condemna-
do : rapidez pela ligeireza com que para elle se en-
caminha a hora tremenda ! E que importa ? Aqui
entre injurias, como ura vil criminoso ; no oriente,
misturando o sangue com a terra que bebeu o Sal-
vador; lá fora dessas muralhas, em nobre lide de
cavallciros; — tudo é morrer! Que importa? ..> "
E depois com um brado d'agonia como responden-
do a si mesmo : — «Muito , muito ! — porque amo ;
porque a vida é doce para mim por ella 1 — por-
que a morte ignominiosa é ignominia para a aman-
te do homem que expirou em supplicio infame. Um
cavallo e uma espada ! — que me dêem um cavai-
lo e uma espada , e depois dez , vinte, cem guer-
reiros que rae accommettam , que me despedacem
ferindo-me a um tempo I Cahirei com honra ! Dirão
delia : — eis a que amava um cavalleiro de esforço
que bem soube morrer ! . . Ao menos assassinai-me
aqui ! . . nos tratos . . . como vos approuver . . . mas
não mancheis de opprobrio a rainha hora derradei-
ra I . . Infante de Portugal , infante de Portugal '. —
vem salvar-me I — olha que querem cobrir dinfa-
mia o leu Egas '. »
E Egas — porque era elle — parecia aspirar o ruí-
do longínquo dos ginetes dcAllonso Ilcnríquez pre-
cipítando-sc para os muros de (íuimarães; mas nos
seus ouvidos apenas sussurrava aqiiellc zumbido
duvidoso que se cré escutar no meio de completo
silencio. Então atirou comsigo de novo ao poial , c
alevanlou os punhos cerrados para o céu com um
gesto índizivel de desesperação. I)e()ois os braços
descahiram-lhe , a fronte pendcu-lhe soi)re o peito ,
e as lagrymas que revia o seu coração, queima-
das pelo fogo que lhe lavrava lá dentro, seccaram
de todo. Uma lembrança suave de amor convertera
a agitação da amargura na triste e ainda mais do-
lorosa tranquíllidadc do desalento.
«Dulce, Dulce, nunca mais te verei I — murmu-
rou o mancebo. — Se ao menos podesse dizer-tc que
te amei leal e puro até o meu ultimo dia , e que
este amanheceu porque viu cumprir, como cumpri
todas , a minha derradeira promessa ! Sc eu podes-
se antes de deixar aterra antever o céu a teus pés '.
. . . Mas entre ti c mim estão estas pesadas aboba-
das , que me esmagam o coração ; c a rainha voz
não as pôde romper para te chamar , para te repe-
tir mil vezes que morro porque te amava como mu-
lher nenhuma foi amada! Dulce, Dulce, nunca
mais te verti ! »
E o desditoso cahindo de bruços sobre a palha
immunda e fétida do calabouço , arquejava violen-
tamente.
Naquella postura, cxhauslas as forças d'alraa ,
o trovador se conservou horas largas. A vista dos
homens elle saberia esconder o seu delírio, e mor-
rer com firmeza; mas na solidão a saudade d'uma
existência cheia de amor e de esperanças, a ver-
gonha de supplicio alTrontoso , e o temor da morte
l!ie não consentiam velar-se diante de si próprio
com a mascara que a vaidade e o orgulho põe na
face humana ainda nas raais terríveis situações, pa-
ra que a vida seja uma contínua farça , da qual o
coração é o actor mentiroso desde o berço até o se-
pulchro.
Tinha anoitecido , c o silencio continuava pro-
fundo: a frouxa claridade das cstrellas não pene-
trava no cárcere cujas trevas eram densas, cuja
atraosphera era grossa e húmida no meio da sec-
cura de um ardente mez de junho. Cevando-se na
amargura o senso intimo de Egas reconcentrára na
dòr toda a sua energia , e este devorar-se a si pró-
prio era ajudado pelo repouso dos sentidos exter-
nos, inúteis para o pobre preso na sua immobilida-
de e no silencio e escuridão que o rodeava.
Dahi a pouco , porem , uma toada longínqua de
harpas, doçainas, e psalteríos sussurrou a espaços
trazida nas lufadas do vento. Insensivelmente o tro-
vador pòz-se a escuta-la , e sentiu correr-lhe nas
veias , que pulsavam ardentes , um frescor que re-
frigerava. A melodia que se ouve ao longe na soli-
dão nocturna é como ijenção de Deus para o infe-
liz , porque é consoladora e santa. Quando aquelles
sons vibravam mais dislínctos Egas sentia dentro
da alma uma certa voluptuosídadc na dòr, c a ima-
ginação lhe pintava a imagem de Dulce como visão
aería que descia ao horrível calabouço, trajando
alvas roupas , cingida a fronte de cecéns virgi-
naes , e que aperlando-o ao -seio o arrebatava no
meio d'hymnos dos anjos para as delícias eternas
da pátria do verdadeiro repouso. Era um sonho fe-
bril o seu ; mas havia nelle um exlasi indizível que
lhe apagava da memoria a situação em que viera
lancar-se. Emfim a toada cessou ; c o cavalleiro
228
O PANORAIUA.
cahiu de chofre na realidade. Esse tombar repenti-
no do céu no aliysmo fez-lhe manar sangue de to-
das as feridas do coração. O vento sussurrava ain-
da ; porem o seu agreste sibilar só lhe fazia lem-
brar o ruido do verme que no cemitério devia len-
tamente devorar os membros do justiçado.
E então elle despedaçava cnlre as mãos confran-
gidas os punhados daquella palha bumiiia do seu
leito de pedra ; e os dentes rangiam-lhe em longo
espasmo , que Icrniiuava por suor frio manando-lhe
em bagas da fronte.
Quantas vezes elle na sua desesperação accusa-
ria a Providencia por o haver tornado o maior dos
infelizes! E comtudo uma agonia, que valera por
todas as outras, ainda não viera rocr-lhe o cora-
ção. As toadas que haviam alegrado por algum tem-
po a noite da sua alma partiam das salas illumiua-
das dos paços, onde em banquete esplendido o con-
de e a rainha celebravam as vodas da real pupilla
e herdeira dos Bravaes , com Garcia Bermiidez , o
nobre alferes-mór de Portugal. — E elle não o sa-
bia!
O som dos instrumentos começara a ouvir-se de
novo, quando por cima daquellas melodias vibra-
ram brados agudos mas longínquos que pareciam
o grilo d'alarma d'esculcas, que se punham suc-
cessivamente de sobre-aviso. Estes brados approxi-
mavam-se cada vez mais até que restrngirauí nas
barbacaãs — depois nos andaimes das quadrellas —
depois nos eirados das torres. Repetidos por mui-
tas vozes, conglobados n'uma grita confusa e in-
distincta formavam um ruido medonho , mas , pa-
ra o cavallciro que machinalmeute se pozera a es-
cuta-los , ininlelligivel.
Para alguém, tudavia, a significação deste bradar
fora bem clara e distincla. Uma almcnara seacccn-
deu subitamente no cimo da torre alvarraã, e pouco
tardou que as outras torres lhe correspondessem
accendciido as suas. O trovador não as via ; mas a
luz avermelhada dos fachos rezinosos, jorrando do
alio , cahiu obliquamente no fundo encharcado do
fosso e reflectiu-se pelas troneiras na abobada da
masmorra. Do meio das trevas, recalcadas por es-
sa claridade frouxa para o pavimento da quadra ,
Egas dislinguia a argola brilhante da polé, simi-
Ihante ao olho reluzente de um demónio, que mi-
rava altcnto o pobre caplivo como se lidasse por
enxerga-lo nas trevas.
De repente un)a eslrupida de cavallos , nm tinir
de espadas roçando por armaduras , a principio de
poucos — depois de mais — depois de muitos, veio
distrahir a allenção do trovador, que fasi inado por
aquelle olhar maldito da polé, não despregava del-
ia a visla. Este novo ruido soava da banda do por-
tal do castcllo, e n luz triste das alinenaras Egas
viu passar como sombras alem do fosso um fio de
«avalleiros, que despegando ao que parcela da pon-
te levadiça se dirigiam ao burgo. Era uma scena
rápida e phanlaslica o coriscar contínuo e fugitivo
dos capellos de ferro, e das lanças aprumadas, e
o desapparecer dos meios corpos dos homens d'ar-
mas , que a aresta da carcova apenas deixava des-
cortinar. Aquella linha de vultos negros e lampe-
janles preiipilava-se para as barbacans.
l'ma esperança duvidosa alluiniou então a alma
do cavallciro. O bradar das atalaias, o repentino
arrojd dns homens de guerra annunciavam um i)e-
rigo iíiiminenie ; e que outro seria este perigo, que
não fosse a ap()roximação do infante?. . Pela men-
te d'Egas passou unia idéa refrigerante de liberda-
de e de vida. Alevantou as mãos ao céu, e as la-
grymas lhe borbulharam dos olhos, até ahi enxu-
tos, ao murmurarem seus lábios: — «Meu Deus,
tu podes salvar-me! Salva-me, senão da morte, ao
menos da ignominia.»
Mas quando se lembrou de que a noite correria
sem combale , em quanto talvez não passasse sem
que o desejo de vingança atroz se realisasse ; quan-
do rellectiu que o receio dos esculcas porventura
fora vão , e que até mil outros successos podiam
dar motivo áquella revolta, a idéa de salvação des-
fez-se de novo no espirito do prisioneiro , que um
momento vacillára na certeza do supplicio.
Encostando-se outra vez na sua dura jazida, Egas
sentiu alongar-se a eslrupida dos cavalleiros e vol-
tar tudo gradualmente ao anterior silencio, no meio
do qual a claridade das altas almenaras , refrangi-
da nas guardas da carcova , penetrava no calabou-
ço , como cm igreja deserta os raios da luz das to-
chas penetram pelas juntas mal unidas do ataúde á
roda do qual ardem os brandões gigantes. As vezes
dentro do ataúde ha ainda vida , como a havia no
negro calabouço; mas o que ahi faltava , como na
tumba da igreja, era um raio de esperança.
Passara mais de uma hora : a callada da noite
U)ra apenas interrompida por algum raro correr de
ginete atravessando a ponte levadiça , e pelo sus-
surro do fallar e mover de muitos homens para o
lado do burgo: sussurro quasi imperceptível, mas
que ás vezes estrepitava como um trovejar ao lon-
ge. Então o cavallciro escutava aquelle som confu-
so como o enfermo que se revolve em seu leito , e
crê achar allivio nessa mudança de situação.
Fui n'uma destas occasiões , cm que o remoto
riiido dos homens d'armas , niistnrando-se com as
rajadas de um vento suão , era mais perceptível ,
que uma pequena porta sumida cm um canto obs-
curo do cárcere começou a abrir-se mansamente,
e deu passagem a alguém que descia para aquelle
tenebroso aposento.
Era um vulto de mulher. Alvejavam-lhe as rou-
pas fiuctuantes á luz de uma tocha que trazia na
mão, e os seus passos, postoque rápidos, pareciam
vacillar descendo áquella espécie de voragem. Cin-
gia-lhe a cabeça uma grinalda de fiores e trajava
as gallas toilas de uma noite de sarau ; mas as suas
faces eram pallidas ccmio as da virgem morta, que,
lambem engrinaldada afronte, deitam no seu ataúde.
Já tinha dado alguns passos na vasta quadra,
quando o trovador, cujo olhar fora atlrahido pelo
clarão da tocha , bradou com um grito de alegria
e pasmo impossível de descrever :
<( Dulce 1 » ^
Era ella de feito.
O prisioneiro correu para a donzella e excIamo\i
com voz aflogada : «Oh minha Dulce ! . . Deus ou-
viu-mc . . . quiz que ainda uma vez te visse na ter-
ra .. . quiz suavisar-rae este longo morrer!»
«Não morrerás! — interrompeu Dulce. — Estas
livre! — O infante avisinha-se : cavalleiros, bestei-
ros e peões cobrem os andaimes das barbacaãs ; e
a rainha quer salvar-le. A porta occulta deste hor-
rível cárcere está para ti aberta. As minhas lagry-
mas (ditiNcram delia a chave , que morrendo lhe
entregou o conde D. Henrique. Só de mim ella fia-
ra o segredo de que existia esto caminho secreto.
Fernão Perez o ignora. Elle já sabiu para o burgo,
e a rainha o seguirá em breve porque o ronde n
arrasta comsigo para testemunha do sangue que
úmanhaã deve correr. No meio do tumulto pedcrás
o PANORAMA.
229
«ahir de Guimarães: o leu pag-em também já Iíttc
ic espera com um ginete. . . . Parle .... oh parte
sem demora, n
«Partiremos ambos — replicou o cavalleiro : —
não esquecerias um palafrem para ti , uma espada
para mim. Eu e tu temos de cumprir uosso jura-
mento. »
«Egas — respondeu a don/ella tristemente e re-
dobrando-se-lhe a pallidez — o que. exiges é impos-
sive! . . . impossivel , porque o sol que breve hade
romper aliumiará ura campo de batalha. Podes tu
recordar-te de nossos juramentos quando diante de
nós está um lago de sangue?»
«E que importa? — Alem desse mar de sangue
que dizes haverá paz para ti — e por enire inimi-
gos e amigos eu te farei passar alem delle. Enião
basla-me uma hora, e soldarei todas as minhas di-
vidas. 1)
«O que exiges, repito, é impossivel! — tornou
Dulce com a energia tranquilla de profunda deses-
peração.— Nestes paços eu ficarei segura.... De-
pois. . . Se tu soubesses ... oh , nada ! . . absoluta-
mente nada. . . Sou eu que não sei o que digo. . .
Por Deus , que partas ! . . Lm instante pôde per-
der-nos. »
«Partirei — e já — acudiu o cavalleiro dando al-
guns passos e fitando os olhos era Dulce que se as-
semelhava a uma estatua de mármore: — mas tu
partirás comigo, porque eu jurei salvar-te, e tu ju-
raste seguir-me. »
«Tem piedade de mim, Egas! — murmurou a
donzella erguendo as mãos.
«Vera ! — foi a resposta que elle proferiu com o
tom de uma resolução inabalável, segurando o bra-
ço de Dulce , e pondo o pé no primeiro degrau da
escada secreta.
De repente a pallidez da donzella converteu-se
era vivo rubor. X timidez desappareceu dos seus
olhos , que brilharam febris , e soltando-se da mão
d'Egas , lhe disse em tom dolorosamente severo :
«Affasta-te! — vedado te é o tocar-me.»
O cavalleiro recuou espantado, cruzou os bra-
ços , e contemplou-a por alguns instantes em silen-
cio.
«Entendo-te ! — exclamou elle com um acccnto
em que se misturavam mil affectos oppostos. — Não
queres por á prova a lealdade de um homem que
tudo arriscou por ti , que por ti só vivia , que por
ti ia morrer em supplicio infame ! . . Que era, pois,
o teu amor, donzella? Passatempo, e engano! .li-
guem mentia ainda ha pouco, dizendo que boje me
seguiria ; alguém escarnecia o meu amor , porque
vendera sua iimocencia ao estrangeiro, e talvez me
vendeu a mim! Dulce, quem disse ao conde de
Trava que hontem estive aqui?»
«Bárbaro, que affrontas a desventura! — repli-
cou Dulce cujas faces de novo haviam descorado.
— Saberás tudo, já que assim Deus o quiz. . Pou-
cos dias me restam ; mas esses não os quero viver
calumniada e despresada por ti. . . Foi no meio de
ura banquete de noivado, quando as taças scinlil-
lavam erguidas, e as suspeitas carregavam o sem-
blante do cavalleiro que devia estar mais alegre, e
o coração da mulher que as outras envejavam es-
tallava de dor , foi então que se ouviu correr pe-
las torres e atalaias o grilo de « inimigos : » — foi
ao soar das trombetas , e ao desappareccrem os ca-
valleiros como relâmpagos, que a mulher cujo co-
ração eslallava de dor , se achou só. . . Era a noi-
va : o esposo também partira. Então a desgraçada
correu a lançar-se aos pés da rainha c obtcTe a tua
liberdade. . . Sabes quem era esta noiva? . . .-Váivi-
nhasle-o já ! . . Tive d'escolher entre a tua morte e
ser mulher de (iarcia. Não hesitei. E, todavia, eu
era burlada ; e tu devias morrer. . . .\gora aqui es-
tou. . . Veiu. se queres. . . Fugirás com uma adul-
tera ! . . com uma adultera. . . Será esse nome o
que o mundo escreverá na fronte daquclia que tan-
to amasie ! »
Egas ficou immovel olhando para ella desorienta-
do. Depois estendendo as mãos , e recuando ainda
mais, bradou eora um gesto d'horror:
«Perdição eterna para mim ! — I'erdição para li,
que me assassinaste ! »
Dulce considerou callada por um momento aquel-
le horrível delírio. Tremula e cheia de terror ca-
hiu por terra ni\irmurand(j entre lagrymas :
«Egas, pcrdoa-me o ter-te salvado! — Por tua
mãi , pelo nosso amor que foi tão puro, oh, não
me odees. Quem sabe?! . . ante nós está a mocida-
de e o futuro. . . . Foge .... salva-te que amda c
tempo ! u
O cavalleiro porem conservando os braços esten-
didos e hirtos , voltou a face , e respondeu furioso :
«Arreda-le, mulher do estrangeiro! Que perlen-
des de um condemnado? Deixa-me descer ao infer-
no sem me perseguir até lá I . . F"ugir ! — oh, eu
fugir ? ! »
E ria com rir medonho.
Duke arrastou-se para elle soluçando.
nVai-te: — proseguiu o trovador, e alTastando-se
alé o primeiro degrau da escada que dava para o
alçapão ferrado da masmorra , e levantando a voz ;
— Carcereiros, levem esta mulher sem pudor que
vem tentar um moribundo no hora solemue do pas-
samento ! 1)
«Tudo por ti, menos a infâmia: — interrompeu
Dulce , com resolução sobre-humana , pegando na
tocha que ardia no chão, e retirando-se para a por-
ta occulta. — Morrerás.... mas eu não tardarei
apoz ti. . . N'um mundo melhor tu me farás justi-
ça 1 .. u
Não pôde dizer mais nada , e desappareceu no
vão escuro da porta, que se fechou alraz delia. L'm
grilo doloroso foi o que depois se ouviu ; e depois
profundo silencio. Os joelhos d' Egas curvaram-se
debaixo delle , e encostou-se arquejando sobre os
degraus da escada. Tinha acabado tudo para o des-
graçado. Daria a alma aos demónios para ver dian-
te de si Garcia Bermudez naquelle momento , por-
que sentia devora-lo a raiva de um tigre. O sangue
do seu rival fora ura refrigério para a febre que o
consumia. X sua existência era um pesadcllo mons-
truoso , um cabos de dór e desesperação. Com os
punhos cerrados, ameaçando o céu, bradou: «Pro-
videncia . . . mentira ! — Então , como aterrado da
blasphemia , cobriu o rosto com as mãos , e mur-
murou : «Perdão, meu Deus ! » — .\s lagrymas rom-
piauí-lhe violentas. Um instante mais que ellas tar-
dassem aquelle coração teria deixado de bater pa-
ra sempre.
Poucos minutos, porem, haviam passado quan-
do um ruido de cadeias , acompanhado de ranger
de quicios, soou por cima da cabeça do cavalleiro.
Machinalmeníe elle alçou a cabeça : o pesado al-
çapão de carvalho chapeado de ferro alevantava-se
lentamente, e quando rodou de todo a luz brilhan-
te de dois fachos jorrou pela escada , e allumiou
parte da masmorra. Dois homens d'armas estavam
no alto da escada com os fachos nas mãos, e um
230
O PANORAMA.
monge negro , que apparecia no meio dcllcs , co-
meçou a descer a escada. O trovador pòz-se era
pé , 6 estremecendo involuntariamente , recuou. O
monge com o rosto sumido no capnz , e movcndo-
se compassadamente, era uma apparição sinistra.
Apenas este pòz os pés no pavimento do cárcere,
fez signal aos dois homens d'armas que se retiras-
sem , e dirigiu-sc ao preso. Cruzando as mãos so-
Jire o peito e curvando a caíjcça , disse com uma
voz grossa c contrafeita : —
liDominus salvationcm noslratibus et caclcra.n
«Quem sois vós? — ()ue me quereis? — pergun-
tou o preso, que se alfaslára sumindo-se na escu-
lidão do cárcere, onde não balia a luz dos fachos.
«O nobre conde de Trava mandou chamar ao
mosteiro de S. Salvador um sacerdote que al)so!-
■vcssc um homem que devia morrer breve. Recel)i
«u a mensagert e vira exercitar essa obra de cari-
dade. Creio que sois vós que figurareis no auto.
Ouvirei vossa confissão quando vos appruuver, meu
irmão ! n
Isto disse o monge com lom solcmne , c cm voz
alta de modo que fosse ouvido dos dois homens de
armas que se iam retirando. Approximou-se ao mes-
mo tempo ao cavaileiro e segurando-lhe o braço o
conduziu para ao pé de uma das Ironeiras, por on-
de entrava o clarão baço das almenaras. A luz dos
fachos tinha desnpparecido.
O frade recuou o capuz, c mudando repentina-
mente o metal de voz grossa em alllaulada , prose-
guiu :
«Não me conheces, ligas? Não to lembras de D.
Bibas , do jogral gollardo , com quem brincavas na
lua infância? Ingrato, que te esqueceste de mim."
«Chocarreiro , para que vens apparecer-me nes-
te trance tremendo? — interrompeu o trovador. —
Porque vens misturar a risada ào manincllo com os
derradeiros arrancos do moribundo?»
«Venho salvar-te , homem! — replicou o bobo.
— Rir-rae?I — O rir já não é para mim!»
«Nem tu o podes, nem eu o quero : — respon-
deu o cavaileiro. — Tens acaso força de quebrar
estes ferros? Tenho eu que fazer da vida? O meu
futuro acabou. »
«Cavaileiro namorado, bem sei que tua dama é
já d'outreml — insistiu o bobo. — _Mas não aciías
uma idéa grande de que lo alimentes ainda? Um
destino a satisfazer? um nobre feito a proseguir?
Também para mim , nesta vida risonha c folgada
de bufão, houve uma hora de agonia c desespera-
ção como a tua , e \ivi ! Vivi para vingar-me : pa-
ra a vingança deves tu viver, se és um homem.
Mal sabes que prazer 6 o responder com a injuria
á injuria, com o marlyrio ao martyrio ! Olha : áma-
nhaã ha um topar em cheio de escudos e lanças,
ha uma festa de sangue e matança ; c o cavaileiro
esforçado poderá [)òr um joelho sobre os peitos do
seu inimigo derriba<lo , c gritar-lhe aos ouvidos
nponlando-lhe o punhal á garganta: — sou eu que
te mando aos infernos I — Oh como será bom e con-
solador ! Quizera ser forte , c. s(ír cavaileiro ....
Mas tu o és: tu, o abandonado, podes abrir a val-
ia dos mortos entre o altar o o leilo do noivado ;
converter cm escarnco e menlira as bênçãos do sa-
cerdote ; ver a teus pés cstorcendo-sc moribundo o
que assassinou a tua alma , e cuspir-lhe nas faces
dcmudadas, e rir . . . desespera-lo com o teu rir. . .
í; tudo isto o que ha para ti na vida, se fugires. Se
iicarcs , ao romper d'alva subirás a uma das torres
«leste caslcllo para ahi assistires mudo c quedo ás
façanhas do teu rival ; mudo e quedo pendurado
de uma corda do alto das ameias, como um judeu
vil , como um feiticeiro maldilu. . .
«Oh não digas mais I — interrompeu o cavailei-
ro como embriagado e phrenctico pelo horror e
pela vingança que respiravam as palavras , o ges-
to , o olhar de I). Bibas. — Não digas mais'. —
Tens rasão , o vingar-se é o prazer supremo d'um
réprobo! — Não acceitei delia a liberdade: accei-
ta-la-hei de ti. . . Depois . . . depois , Deus se com-
padeça de mim.»
«Não ha tempo a perder: — proscguiu o bobo
começando a despir a cogula que trazia vestida. —
Toma este habito, e saiic, curvado e escondendo
o rosto : os guardas não te conhecerão : dirige-te
ao palco principal do castcllo : junto á torre da es-
querda é a pocilga do Iruão : a porta estará aber-
ta : lá dentro, por detraz da minha pobre enxer-
ga , é a entrada de um caminho subterrâneo: sc-
gue-o : irás sahir bem perto do sitio aonde dizem
que chegam os corredores do infante. O resto per-
lence-te a li. »
«Mas qual será a tua sorte quando na hora fatal
os algozes baseando a sua vicliina , só ic encontra-
rem a ti! — disse o cavaileiro hesitando.
«Pensas tu , que se a cabeça me corresse algum
risco, eu a exporia por te salvar? — Oh que não!
— Também tenho a minha vingança e quero folgar
depois de a ver satisfeita. Deixar-me-hão aqui;
[)orque o conde de Trava não voltará esta noite ; e
ámanhaã ... oh ámanhaã ! . . . Gonçalo iMendez da
Maia virá solfar-me. . . Sei certo que hadc vir.»
E apontando para a escada , repetiu: «Não ha
um momento a perder.»
O cavaileiro callou-se e carregando o capuz so-
bre os olhos subiu a escada , e atravessando por
entre os guardas, que mal olharam para ellc alten-
tos a fechar o alçapão da masmorra , sabiu da tor-
re e encaminhou-se para o sitio que o truão lhe in-
dicara. Os terrivcis pensamentos que o agitavam
produziam nellc uma desusada energia.
Quando o bobo se achou só, similhanle a tigre
raivoso , galgou de um pulo ás grades de uma das
Ironeiras : mirou o céu por alguns momentos, c de-
pois deixando-se cabir cm pé no pavimento , bateu
as palmas bradando :
«Aragonez, ahi te envio o meu vingador! Conde
de Trava , não tarda Gonçalo iMendoz ! l in castcl-
lo por vinte açoutes ! — o truão c mais generoso
que tu. Oh , oh ! . . .
E desatara a rir. (Conchrir-sc-hà.)
(A. Herculano. J
Rio cnANDE do sli.
(Conclusão.)
CiiMPBE examinar se esta província , conforme o
systema usado naqucllas eras pelos soberanos de
Portugal a respeito de quasi loiio o littoral do Bra-
sil , tocou também era partilha a algum particular.
Pelo Septcntrião, não chegaram até seu território
as oitenta léguas de costa doadas a Pedro l.opez de
Souza , as quaes lindavam mais ou menos no rio de
S. Francisco do Sul, c mnito em duvida abrange-
ria a ilha de St.' Calliarina : pelo Moiodia não a
comprehendoram as largas sesmarias que o auctor
da iYoííWa lUi imliftcacuo dotilitlo, e boa fé , com
que se obrou a nova colónia do Sacramento , no con-
o PANORAaiA.
231
tinente chamado de S. Gabriel , em as margens do
Rio da Prata, refere que o príncipe D. Pedro, ain-
da rescnle , fizera mercê ao visconde de Asseca ,
c a seu irmão João Corrêa de Sá. Não era natural
appelccercni lerras desconhecidas , que um marili-
mo ouriçado de allaqucs tinha impedido de alli sur-
girem os mais intrépidos navegantes : sobretudo ex-
perientes do êxito ruinoso de tacs eraprezas , ainda
em outras donatárias , com liouifsiinos portos , de
facil embocadura, c abrigados de vendíivaes.
Portanto os riscos da entrada do Uio Grande de
S. Pedro, invocação que é fama lhe deram os je-
suítas das Jlissõcs do Uruguay , que vagavam por
estas campanhas em cata dos índios, c a esparcc-
lada costa, sem abrigo nem surgidouro, foram sem
duvida os obstáculos, que por tanto tempo retarda-
ram fundações nestas planícies ; apenas alguns ha-
bitantes das duas povoações portuguezas, que a la-
deavam , tinhnm-se animado ,i transita-las , quan-
do em 1713 o governador do Rio de Janeiro, Fran-
cisco de Távora, ordenou a Francisco de Brito Pei-
xoto, capitão mór da villa da Laguna, c da qual
havia sido o povoador com seu pai e irmão á custa
dos seus cabedaes , que fizesse examinar as campa-
nhas do sul até á colónia do Sacramento e pesquí-
zar se algum daquelles sítios se achava occupado
por estrangeiros ; expediu elle a esta diligencia cin-
co homens brancos com alguns escravos, os quacs
depois de tudo explorarem até á aldèa dos índios
Charruas de S. Domingos Soriano , ao voltar com a
noticia de que se conservavam dcscmpcdidos , fo-
ram atacados , aprisionados, e despojados d'armas
e roupa por um troço considerável de índios , de
cujo capti\eiro, passados tempos, conseguiram es-
capar.
Segunda expedição composta de quarenta homens
brancos , e vinte c cinco escravos , atravessou a
campanha , e recolhcndo-sc com porção de gado ,
que havia arrebanhado das visinhanças de Maldo-
nado , encontrou nas margens do Uio Gran<le um
lote de quarenta índios das reducções castelhanas,
que levados á Laguna declararam serem enviados
pelos seus padres a escolher sítio adaptado para no-
vas aldêas. O capitão mór os afagou , brindou, e
despediu com uma carta para os mesmos missioná-
rios jesuítas, na qual lhes intimava que todo aquel-
le território pertencia ao domínio portuguez, e por
tanto se abstivessem não só de alli erigir povoa-
ções, mas até de o devassar pelos seus emissários.
Para estorvar simílbantes introducçõcs furtivas, des-
pachou ainda seu genro João de Magalhães com
trinta homens , e com insinuação de os ir deixando
estabelccercm-se por aquellas desertas paragens , e
lambem de concertar alliança e amizade cora os mí-
nuanos. Por esta forma se conseguiu frequência e
communicação destes índios com a villa de Lagu-
na , e datam desde então as primeiras estancias de
gado, que os nossos foram por aqui formando.
Entretanto que os portuguezes da Laguna se apos-
savam, e vigilantemente defendiam, da parte marí-
tima , novo projecto se levantava de a penetrar pe-
lo sertão : Barlholomeu Paes de Abreu , das prin-
cípaes famílias de S. Paulo, e distincío já por ser-
viços assignalndos , concebeu a ídéa de uma estra-
da de communicação, c representon ao governo em
23 de maio de i'20 : ((Que, á excepção dos bár-
baros selvagens , restando despovoado o extensíssi-
mo paiz desde a Laguna até á colónia do Sacramen-
to, de nenhuma utilidade ora para o estado o innu-
meravel gado , que o cobria , podendo aliás ser de
incalculável vantagem , como afliançava a experiên-
cia do que cm circumstancias análogas aconteceu
cora as rainas d'onro dos Cataquazes [hoje capita-
nia de Slinas Geraes] , que em pouco temjio depois
de descobertas, tinham-se augmentado cora as pro-
visões de gado de toda a espécie, extrahido dos
sertões da IJahia ; que se offerecia a abrir franca
passagem pelo interior das duas cajutanias : sem o
mínimo dispêndio da real fazenda ; em recompensa
porem desse relevante serviço exigia : 1." Ser do-
natário de quarenta léguas de terra nas margens do
Uio Grande , demarcadas pela costa , vinte jiara o
norte c vinte para o sul , c os fundos por todo o
sertão pertencente a Portugal , de juro e herdade ,
com um padrão de 200,000 réis, assentado na pas-
sagem do mesmo Uio Grande, e a patente de capi-
tão mór daquellc districto; 2.° passarem livres de
direitos pelos primeiros nove annos os anímaes, que
exportasse para si ou seus sócios; 3." ser gnarda-
mór geral de quaesquer minas , que se descobris-
sem nas vertentes do Rio Grande, c serros circum-
visinhos , com iguaes ordenados aos que se confe-
riam ao guarda-mór das Minas Geraes.
Dcinorou-se a còrlc em resolver; mas chegando
a S. Paulo , em 1721 , o governador e capitão ge-
neral Rodrigo Ceznr de Jleiíczes , e trazendo positi-
vas inslrucçõcs para convencionar com Bnrtholomeu
Paes sobre a abertura do caminho para o Uio Gran-
de , por parecer o melhor meio de segurar estas
possessões , ou fosse por achar então ausente o di-
to Paes , empenhado era descobrir estrada para o
Cuyabá , ou por esperanças de conseguir o intento
sera os exuberantes prémios exigidos , concertou a
cmpreza em 1722 com Manuel Godinho, que não
a realis.mdo por inconvenientes , passou de novo a
contrjta-la com Luiz Pedrozo de Barros pela mer-
cê de um habito de Christo , com a tença anuual
de 00,000 réis , graça que se veriíiccu cm seu so-
brinho o Mestre-de-campo de auxiliares Manuel
Dias da Silva.
Este mesmo Mestre-de-carapo , ao correr o anno
de 1735, acorapanhado de uma partida escolhida,
atravessou cm três mezes o sertão a fim de fazer
diversão ás forças , que sitiavam a colónia , supe-
rando os maiores obstáculos. Chegando aos campos
denominados da Vacaria , levantou um padrão do
madeiro mais grosso e que pareceu menos corru-
ptível , c nelle gravou a inscripção : ((Viva o muito
alto , e muito pode-roso Rey de Portugal , D. João
V, Senhor dos domínios deste sertão da Vacaria.»
.4ssím a íllesa conservação destes territórios uo
senhorio portuguez c mais um testemunho do zelo
e do cnthusidsmo patriótico, que instigavam os pau-
listas para os altos feitos , em que á custa de suas
fazendas e vidas tanto se extremaram ; propensos
por génio e por educação a emprezas árduas , não
só defenderam , mas ainda alargaram as raias des-
te estado , que sem elles é provável estivessem ho-
je reduzidas a mais estreitos limites; por isso a
historia d;)qnella província será também a historia
geral do Brasil.
Vantagens e condições do Matrimonio.
EsPANTAM-SE OS moços com o que ouvem dizer do
casamento, de ordinário aos mal casados, porque,
senhor, ha Vm. de saber que muito mais certo é
que o mantimento bom se converta no raáu humor
que em nós acha do que converter o máu humor
'232
O TANORAMA.
nessa sua hoa virtude. Parece-lhes aos moços inlo-
leiavel a carga do matrimonio. É, Sr., pesadíssi-
ma para os que a não sabem levar; para os que
sabem é ligeira. Lima arroba de ferro ao boml)ro
carrega ura homem que com o fácil arliíii io de !
duas rodas [uide levar um quintal. iNão excede o
peso do casan)ento as nossas forças , falta-lhe as
mais das vezes nossa prudência para que o susten-
te ; e dahi vem que nos pareça grande. — Quer
V'm. ver quão leve é a carga deste nioJo de vida
que toma? Meça-a com o peso de essoutra vida
que deixa. Ponha , Sr. , em balança a inquietação
passada , os perigos , os desgostos , a desordem dos
affectos , aquelle temer tudo , não fiar de nada , o
queixume que doe, a vingança que arrisca, a ruim
lei que desespera, os ciúmes que abrazam, os amo-
res que consomem , a honra cm occasião , a saúde
dimiiHiida , a vida arriscada, e o que é mais, a
consciência sempre queixosa. — Ora alviçaras, Sr.,
que já lã vai tudo isto. Era verdade quando o ca-
samento não trouxera outro algum bem , mais (jue
livrar de tantos males, justamente merecia o no-
me de santa e doce vida. — Pois vejamos o que se
lhe dá a um casado, a troco dessa liberdade, que
elles tanto allegam que deixam. Dá-se-lhe outra;
entrega-se-lhe a mulher cora a liberdade , com a
vontade, com a fazenda, com o cuidado, com a
obediência, com a vida, com a alma. Quem pesa-
rá o que deixa con? o que recebe que logo não co-
nheça os ganhos desta troca ?
Uma das cousas que mais assegurar podem a fu-
tura felicidade dos casados é a proporção do casa-
mei;lo. A desigualdade no sangue, nas idades, na
fazenda, causa cuntradicção ; a contradicção discór-
dia. Eis-aqui os tr.iiialhos por donde vem. Perde-
se a paz , e a vida é inferno. Para a satisfação dos
pais convém muito a proporção do sangue , para o
proveito dns filhos a da fazenda , para o gosto dos
casados a das idades. Não porem que seja preciso
uma conformidade de dia para dia, entre o marido
e a mulher; mas que não seja excessiva a vanta-
gem d'um a outro. De\e ser esta vantagem, quan-
do a haja, sempre da parte do marido, em tudo á
mulher superior. E quando em tudo sejam iguaes ,
essa 6 a sumraa felicidade do casamento. — Dizia
um nosso grande cortesão , havia três castas de ca-
samentos no mundo : — casamento de Deus , casa-
mento do diabo, e casamento da morte. De Deus
o do mancebo com a moça. Do diabo, o da velha
com o mancebo. Da morte , o da moça cora o ve-
lho. Elle certo tinha rasão ; porque os casados mo-
ços vivem com alegria. As velhas casadas com mo-
ços vivem em perpetua discórdia. Os velhos casa-
dos cora as moças apressam a morte, ora pelas des-
confianças , ora pelas demasias. Mas porque estas
cousas são muito gcraes , c ainda os incapazes tcra
delias o conhecimento que aos entendidos lhes so-
beja , é tempo de passar a alguns mais particula-
res avisos. Senhor, saiba Vm. que á sua alma se
accresccnta outra alma de novo ; á sua obrigação
SC ajunta outra obrigação. Assim devem crescer
seus cuidados e seus respeitos. E da mesm.i sorte
<(ue se a um homem que possuísse uma licrdade, a
qual cultivasse , lhe fosse deixada outra de novo ,
para o mesmo elTeito ; este tal homem , sem dimi-
nuir era sua alegria, era força que na diligencia se
avantajasse por abranger com seu trabalho a am-
bas aqnellas suas fazendas ; nem mais nem menos
deve o casado multiplicar o tento e a fadiga [sem
que por isso se entristeça] por não faltar so novo
cargo que tomou , e lhe entregaram cora a mu-
lher que lhe deram; não para que a arriscasse e
perdesse [e a si mesmo cora ella] , mas para que
com maior commodo e descanço pudesse passar com
ella a vida. Passemos a ver se será possível dar al-
guma regra ao amor; — ao amor que sohc ser a
principal causa de fazer os casados mal casados ;
unias vezes porque falta , e outras porque sobeja.
Armcmos-lhe , sequer, as redes , caia elle se qui-
zer , e o mais certo será que vòe e fuja delias ;
porque quiçá por isso o pintaram com azas. —
.4me-se a mulher, mas de tal sorte que se não per-
ca por ella seu marido. Aquelle amor cego fique
para as damas; e para as mulheres o amor com
vista. Ora cure os olhos que tem , ou os peça em-
prestados ao entendimento desses que lhe sobejam.
Digo, perder pela mulher: perder por ella seu ma-
rido a dignidade e compostura de horaera de lhe
não contradizer sua vontade, quando c justo que
lh'a contradiga. Saiba-se , e tema-se , que lambem
ha narcisos do amor alheio , como do seu próprio.
— Gabavam muito certos cardeaes ao papa Pio S.°
um seu creado que elle mais favorecia. Respoudeu-
Ihes : Bom é , mas nunca me contradiz. Tão longe
está de ser desamor que antes é perfeição do amor
o saber encontrar a vontade de quem se ama, quan-
do ella não deve de ser seguida. Ha alguns, Sr. ,
de tão pouco juizo , que fazem ostentação de seu
próprio cantiveiro. Igual affronta é a um casado sa-
ber-se que o manda sua mulher, que saber-se que
ella c de seu marido escrava , e não companheira.
Este foro , esta prerogativa de que cada ura é bem
que use logo ao principio , convém que se concer-
te. O marido tenha as vezes de sol em sua casa ,
a mulher as da lua, Alluniie com a luz que ellc
lhe der; e tenha lambem alguma claridade. A ellc
sustente o poder, a ella a estimação. Ella tema a
elle , c elle faça que todos a temam a ella ; serão
ambos obedecidos. Dissera eu que as mulheres são
como as pedras preciosas, cujo valor cresce, ou
mingua, segundo a estimação que delias fazemos. —
Os que casam com mulheres maiores no ser, no
saber , e no ler , estão a grandíssimo perigo. Deste
livrou Deus a \m. Os mais annos são grandes ar-
rhas no casamento, era favor da auctoridade do ma-
rido. O homem que casa com mulher de pouca ida-
de leva a demanda meia vencida. Nos tenros annos
não ha ruim costume , porque ainda o menos ad-
vertido está no animo como hospede , e não de as-
sento. Accusando um homem a sua mulher de mal
acostumada, diante do seu príncipe, foi delle per-
guntado de que annos entrara no seu poder ; e co-
mo lhe dissera o marido que de doze , respondeu
aquelle rei : — Pois vós sois o que deveis ser casti-
gado , que tão mal a criastes. L'm leão em peque-
no se amansa: aos próprios ferros da gaiola era que
vive preso toma affeição um passarinho ; sendo aquel-
le \n\r seu natural feroz , e este livre. É a creação
outro segundo nascimento , c se em alguma cousa
diflere do primeiro, é só era ser mais poderoso es-
te segundo. — D. Fra7icisco Manuel de Mello: Car-
ta de guia de casados.
Não disputeis com loucos , ébrios e néscios ; a vi-
ctoria uão dá gloria , e a derrota é vergonhosa.
Os intrigantes persnadem-sc que a intriga incul-
ca talentos c capacidade ; a experiência os desmen-
te : annuncia ignorância e improbidade.
MaTqnez d^ Maricá.
83
o PANORAMA.
23a
N. S." DO VIONTZ. — V-S-TA TOEÍADA DO CAMPO DE S." ANNA.
•A COLUNA denominada da Senhora do Monte , ao
norle da outra mais eminente era que est.i situado
n castello, e quasi na mesma direcção contigua pe-
las faldas á da Penha dcFranrn, tem de altura 300
pós proximamente sobre o nivcl do mar : a coroa é
occupada por um terreiro ensombrado darvores,
cuarnecido de um parapeito quasi semicircular,
em frente da ermida da Senhora , a qual occupa a
parte do nascente, com a porta principal e seu al-
pendre olhando para o poente. O cabeço é tudo es-
carpado desde o alicerce do parapeito até a raiz do
monte povoada de casaria , o que não obsta a ser
cultivado de searas e algumas oliveiras , e sulcado
de Íngremes trilhos de pé posto e má serventia ,
alem dos quaes é seu geral accesso a calçada áspe-
ra , extensa , e empinada que parle das Olarias , a
que é sobreposta outra na direcção de sul a norte.
Começa no angulo que- formam as duas a travessa
do Monte , que vem parar ao largo da portaria da
Graça, e é a melhor entrada para este local. — ISo
alto ha uma cisterna com a porta resguardada por
grade de ferro c aberta n'uni lado da pequena cú-
pula de alvenaria , superior ao nivel do chão : ahi
mesmo mais ao norte , defronte da igreja , está er-
guida uma pyramide apoucada , c na face do sul
lé-se mal uma breve inscripção latina , por ter le-
tras gastas c outras lascadas, ainda que modernas;
porem o sentido é que naquelle local tiveram pri-
meiro estabelecimento em Lisboa no anno 1148 os
eremitas de St.° Agostinho. No cunhal da ermida
correspondente á boca da calçada está outra inscri-
pção na rjicsnia lingua , que declara terem os au-
gustiiiianos plantado o arvoredo para recreio dos
habitantes da cidade e ornamento du siiio ; começa
— Pátrias, civibus cí urbi lífc. , e termina com a da-
Jruio 2'J— 1843.
ta de 1815. É magestosa desta altura a dilatada vis-
ta de Lisboa, do Tejo, e d'algiins arrabaldes, me-
nos para nascente por causa do edifício.
A igreja antiga foi totalmente arruinada pelo ter-
remoto ; mas logo se tratou de levantar a que ora
subsiste; por esse tempo se lavrou provavelmente
a inscripção da pequena pyramide collocada onde
dissemos, e a data de 1148 indica a pertenção quc-
suslentavam os eremitas , a qiie chamávamos gra-
cianos , de ser a sua a primeira ordem religiosa
que cm Lisboa tomou pé, estabelccendo-se nos pri-
meiros mezes da conquista e ainda primeiro que os
Cónegos Regrantes , como Fr. António da Purifica-
ção procura provar na Chronica da Ordem com ra-
sões que não vem ao nosso intento. Certo c que os
mesmos padres tiveram uma pequena casa na la-
deira baixa desta eminência c da banda do norte,
porque dahi transferiram a morada em 1243 para
outra que na cima llies fundou uma D. Suzana ,
proprietária do monte . fazendo-lhes doação deste e
d'uma herdade que linha a S. Vicente de tora :
daqui passaram depois para o amplo convento da
Graça (-; que construíram no monte visinho , con-
servando todavia a posse e administração do eremi-
tério de S. Gens , nome que tomara do primitivo
na raiz da eminência , e proviera do santo do mes-
mo nome, que alguns pertendem que seja o S. Ge-
nesio, que o marlyrologio romano traz a 11 de ou-
tubro, o mesmo queS. Gines dos castelhanos, mar-
tyrisado na perseguição de Diocleciano ; outros o
fazem portuguez e bispo de Lisboa. A respeito da
cadeira de S. Gens , onde dizem que descançava
quando fazia pregação ao povo , diz o P.° J. 15. de
Castro fno M. de Portug.] que — é mais venerada
(•; \iú. a pa^. mb (lo 4." \o
1. da iíerie 1."
2.' Serie. — Yoi.. II.
23i
O PANORAMA.
depois que a rainha D. Maria Anna de Áustria lhe
mandou pôr grades de ferro á roda , vindo senlar-
.se iiella em 1723 , para ser bem suecedida nu par-
lo , segundo a inveterada fé das matronas lisbonen-
ses. — Hoje conscrva-se n'uraa casinha com sua
porta , dentro da igreja , entre a porta principal e
a travessa , do lado da epistola.
A invocação própria da Sr." do Monte c N. Sr."
da Visitação , e dahi vem que era veneração deste
titulo, nas segundas feiras de junho anteriores a
24 , nascimento do Baptista , praticava o povo de
Lisboa, principalmente mulheres, a seguinte usan-
ça , que achámos no chronista Fr. António da Pu-
rificação , L.° 5." tit." 3.° § 21 — «depois que ca-
da devoto faz sua oração nesta ermida , se torna a
sahir delia , e tomando pela parle esquerda a vai
cercando em roda até chegar pela parte direita a
mesma estancia donde havia começado o circulo.
E feito este primeiro circulo prosegue logo a fazer
o segundo , e assim continua até fazer nove círcu-
los ; c acabados clles torna a entrar na ermida e
offercce á A'irgem Senhora nossa aqucllcs passos ,
tomando-a por advogada para suas necessidades. »
Referem auctores, entre elles D. Rodrigo da Cu-
nha , Cat. dos B. de Lisboa, p. 1.^ cap. 32, que,
conquistada a cidade pelos mouros , durante a do-
minação delles em três logares se conservou , co-
mo em Cedofeita no Porto (::) , o exercício do cul-
to catholico , a saber , no templo de Santos o Ve-
lho, no de S. Félix em Chellas , e no monte de S.
Gens , de que acabamos de tratar.
Phenomeno moral explicado.
Biffcrcnça caractcristira , entre a meia idade ,
e a idade actual.
-Nós j.v tivemos occasião d'es( rever n'oulro logar,
dizendo que a meia idade t(-M sido grandemente
calumniada : mais afastada de nossos conhecimen-
tos históricos usuaes, desconhecida quasi geralmen-
te , ou conhecida apenas pelos factos estrondosos ,
violentos, despóticos, dos costumes e idéas da epo-
cha , só deixa perceber seu caracter nobre , sua
crença firme e acalorada, sua honradez e lealdade,
e aquelle brioso e venerando sacramento cavalhei-
resco da palavra dada , aos que se tem dado com
perseverança ao ímprobo estudo de prolundar-lhc o
espirito , e de lixar o caracter desta cpccba , estra-
nhamente heróica, da historia moderna. Quereis
.saber a rasão daíjuelle conceito depressor, injusto e
i)anal , que só avalia a meia idade pela rudeza dos
'■ostumes , pelas expolíações da prolissão militar,
pelas desordens da anarchia? É que, segundo dis-
se um anctor muito espirituoso : = Ou, a historia c
uma ttíla , ou tolos tem sido aquelles que. no-la trans-
7nitttram. = 0s acontecimentos ruidosos, a queda
dos impérios , as batalhas , as invasões , e todas as
demais calamidades que excitam a atlenção ou o
espanto, os abusos do grande |)odcr , as conquistas
com que a fortuna coroou a ambição , c a valentia
d'um chefe ousado, as violências e os crimes au-
<laciosos dos povos ou dos indivíduos gravam-sc na
memoria, escrevem-se , entalliam-sc nas pedras,
nos monumentos da vaidade ; ao mesmo passo que
as virtudes pacificas , o mérito privado , os actos
lie beneficência, de pia e de generosa caridade, fi-
cam ommíssos , cscapam-sc da lembrança dos ho-
' ::) A'ia. a pag. 169 du 1." voi. da prcseute Serie.
mens ,
les.
e nem a penna nem o buril se occupa dcl-
Já se vê por este preambulo que nós não parti-
lhamos nenhuma das duas seitas muito communs
dos cscriptores , dos entendedores do nosso tempo :
nós nem somos dos sentimentalistas que professara
aversão systematica áquella epocha de rudeza, igno-
rância , e violência , nem dos cnthusiastas que só
vêem nella as proezas da brilhante cavallaria , o
amparo dos desvalidos , a nobreza de suas expedi-
ções , a dedicação heróica aos créditos de sua pes-
soa e ao pondonor nacional : estes ao menos tem
por desculpa o brilhantismo da imaginação , a bel-
leza sympathica da poesia , a remontada figura dos
Tancrcdos de Tasso , e dos doze d' Inglaterra de
Camões.
Collocados no meio termo , seguiremos a tempe-
rança pausada c fria da verdade histórica ; e sem
visarmos a profundar cm seu todo esta vasta e em-
maranhada campina , que não cabe isso em curtas
paginas, fixaremos aqui somente o seu caracter mo-
ral , o seu typo particular, o seu cunho distiocto ,
segundo o qual fica seudo facíl depois explicar c
apreciar os acontecimentos históricos, que delia de-
rivam. A fixação , a determinação daquelle typo é
muito importante , é transcendente porque appre-
senta o principio dominante nos successos daquella
epocba em toda a Europa : foi a origem de tudo o
que vemos , e que possuímos e gozámos ; naquelle
embrião universal estava toda a civilisação mo-
derna.
Deixemos esses séculos de reconslrucção social ,
cm que nada estava feito, c tudo se achava n'um
cabos provisório |>ara sahir dahi mais tarde uma so-
ciedade nova. Falíamos das invasões dos povos do
norte , que aniquillaram a sociedade , família anti-
ga romana : passemos por alto essa longa serie de
lutas , a acção e reacção dos conquistadores entre
si ; approximemo-nos da sociedade nova , constituí-
da sobre o amalgama da fusão dos costumes dos
germanos com os usos, costumes, e instituições lo-
eaes dos povos conquistados ; cstabeleçamo-nos no
roeío da feudalidade dos séculos 11 , 12 e 13, em
que já vemos um systeraa de governo , uma vida
social abraçada ; e procuremos descobrir ahi o seu
espirito , o seu caracter moral.
Aos que attciitamente rencctem nus costumes ,
nas instituições desta cpocha memorável, duas cou-
sas sobresahem principalmente : a fraqueza do prin-
cipio politico ; a força , a tenacidade do principio
moral. Exj)liquemo-nos : o vinculo da obediência
que devia ligar os governados ao poder e auetori-
dade do governante era débil e limitado. Desde as
primeiras invasões germânicas que os cabos daqucl-
las hordas guerreiras se costumaram a contemplar
o rei como um commandanlc , um chefe , compa-
nheiro d'armas , sócio c camarada , antes do que
supremo moderador. A vida bellicosa destes con-
quistadores , a necessidade de ter promptos eslcs
diversos commandantes militares , fez que os reis
re[iartissem com clles as terras novameiíle ganha-
das ; c dahi o solo dividido cm pequenas sobera-
nias , que apenas tributavam ao tví = /úí et liinn-
»;iíi7(; = para o acompanharem nas expedições mili-
tares; tendo em certos casos o direito de desobe-
decer-lhe eguerrca-lo. Destes costumes, e desta ne-
cessidade nasceu o direito feudal , que reduziu a
syslema esta anarchia govern.itiva. No fim do sécu-
lo 10 comoc.ir.am as expedições contra os sarrace-
nos , e as cruzadas , nascidas do pondonor guerrci-
o PANORAaiA.
2Tò
ro e chrislão que se apoderou facilmcnle de todas
as imaginações , dominadas pelo principio religio-
so ; c dalii o espirito do cavallaria , que durou ali'
ao século li- inclusivamente. A prerogativa real ia
ganiiando terreno pelos princípios novamente des-
cobertos nas leis romanas , mas o fundo do syste-
ma era o mesmo.
Ora já se vè que n'um similhanlc estado de cou-
sas, cm que os homens livres eram poucos c fra-
cos , cm que quasi tudo se cifrava em senhores do
território c seus colonos , ou escravos ; em que tu-
do se passava ou nas licenciosas e violentas f;uer-
ras internas , ou na ociosidade e moleza do solar ,
ou castcllo senhorial, os costumes não podiam ser
puros , nem as maneiras decentes e delicadas. Da-
lii esses repugnantes exemplos de destruições bar-
baras e brulacs , de raptos femininos , de violação
da clausura monástica , e de todos esses procedi-
mentos despóticos, nascidos da prepotência sem
freio. Nossas historias estão cheias destes attcnla-
dos , c basta percorrer o livro velho das Linhagens
para encontrar a cada pagina — mulheres roncadas,
— cavalleiros mortos nas lides e parcialidades de
familia — casamentos bigamos — e bastardos d'ori-
gem damnada, e sacrilega. Todos estes crimes, to-
da esta desordem de costumes era parcial ; grassa-
va principalmente nas classes elevadas ; alimenta-
da pela violência da vida guerreira , ou pelo ócio
e moleza da paz. O coração estava corrompido , a
justiça sem força ; e a opinião , este freio salutar
de nossos costumes actuaes , não era mais poderosa
do que as leis.
Ao lado porem deste espectáculo , deste repu-
gnante painel, estavam as crenças e convicções nio-
raes que conservavam a parte espiritual da socie-
dade n'um estado fixo, permanente , e assaz forte
e vigoroso para revocar os homens a um centro
coramum, quando as paixões se acalmavam. .1 cor-
rupção datjuella epocha estava mais nos corações do
que nos espíritos : e assim , quando as desordens e
os desvios , nascidos pela maior parte do defeito
das instituições politicas, arrefeciam de seu fervor,
as crenças communs restabeleciam , como por en-
cantamento , a ordem perturbada , e traziam os ho-
mens ao centro da unidade. A religião com effeito
era naquelles tempos o principio vi;al das socieda-
des , cila suppria a insufíiciencia das leis , a falta
de cultura e civilisação , a fraqueza da auctorida-
de , e a ausência do direito publico.
Daqui a grande preponderância do chefe da igre-
ja, que espanta hoje os ignorantes da historia. Sen-
do a religião o único vinculo que então reconhe-
ciam e respeitavam os homens, que muito é tomas-
se e exercesse uma salutar supremacia aquelle que
se interpunha sempre no meio das desordens publi-
cas, chamando ao trilho os vassallos e os reis"?
J. C. .Y. o C.
Considerações sobre o Curso d' Economia PoUlic% do
Sr. Miguel Chnalier.
IX.
ííOBRE a exportação dos cereaes com melhor fun-
damento se poderia instaurar o systema exclusiva-
mente agricola , porque elles conetiinena o princi-
pal artigo da nossa produeção , e o seu valor exce-
de ao do vinho, c muito ao de qualquer outro pro-
duct') nosso ou de Invra, ou de fabrico. Mas os ce-
reaes chegam para nós — grande conquista , sem
dúvida , e immcnso beneficio , á liberdade o deve-
mos I — chegam jiara nós: não sobejam. >"ão sobe-
jam , quero dizer , a ponto de nos tornar nação ex-
portadora de trigo ; porque esse , que desde 183S
temos exportado , pôde servir de reforço aos argu-
mentos ineontrastaveis do crescimento da agricultu-
ra , mas não é moti\o sutTiciente para que ou ago-
ra ou no futuro nos possamos considerar celleiro
das nações escacas de pão. A não ser Inglaterra ,
mui poucos são hoje ou nenhuns os paizes civilisa-
dos onde se nota esta escacez permanente causada
da incultura ou ingratidão do solo, ou do cresci-
mento da população ; não a accidental, occasionada
das inDuencias meteorológicas , a que estão expos-
tos os terrenos ainda os mais férteis ; porque quasi
todos os estados produzem ou diligencciam produ-
zir o bastante a alimentação nacional. A própria
Hollanda,, terra clássica do commercio livre , ain-
da ha pouco restringiu a importação de cereaes com
intento de proteger a sua agricultura contra a con-
corrência estrangeira. E os portos do Báltico mais
cerealeiros tem decahido da sua antiga importân-
cia. Presentindo um sobrecellenle de pão em toda
a Europa , os governos premunidos contra a inva-
são d'elle , vão circumvallando-se com aquellas
mesmas restricções que já adoptou, e hoje guerreia
Inglaterra. E não ó a manchei a de trigo que nos
pode sobrar do nosso consumo interno , a que dos
ha-de supprir das faltas a que nos arriscámos , se
abdicarmos toda a industria que não seja agricul-
tura : pois para poder Dorecer pela exportação dos
cereaes, fora mister que vencêssemos cm fertilida-
de os terrenos próximos ao Báltico , e conseguísse-
mos rivalisar em barateza com os trigos de Odessa
e do Adriático.
Com isto não pertendo , longe de mim , affirmar
que devemos de todo renunciar á exportação do tri-
go: algum temos já exportado , e mais poderemos
ainda exportar: propugno — que pelas rasões apon-
tadas o commercio e riqueza deste género o have-
mos de firmar no mercado domestico, não no es-
trangeiro.
O vinho ó o nosso mais valioso artigo de commu-
tação externa ; se bem que , como já adverti , a ri-
queza principal deste artigo estriba no consumo na-
cional. O sal é o producto das nossas minas que
mais nos rende, e se exporta em maior quantidade,
e que pela sua excellencia e a variedade das suas
applicações promette extracção, superior ainda à
que tem : mas o valor dessa extracção é mui dimi-
nuto para que nos possa exalçar a nação exporta-
dora , ou que tira o seu maior rendimento do com-
mercio esterno, O azeite é ura género precioso dos
que levámos ao mercado estrangeiro : a plantação
de oliveiras nos baldios e terrenos incultos , espe-
cialmente nos mais visinhos da costa, pois parecem
ser os mais syrapathicos a esta arvore , seria medi-
da recommendavel : mas a exportação deste como
dos outros artigos não nos ministra rendimento que
nos exima de recorrer a outras fontes de produeção
alem da agricola e commercial. E que nos não dis-
pensara de recorrer ás artes fabris e o alvo onde eu
quero chegar , e hãode chegar quantos reflectirem
que não é nos paizes estrangeiros , é no nosso que
encontrara mais considerável procura os artigos prin-
cipaes da nossa exportação — que convém muito es-
tender-lhe esse mercado tão importante — e que um
*
236
O PANORAMA.
íos expedientes mais azados a csleudc-lo é o esla-
beleciíDcnlo d.ns fahriras.
Não nos seria prejudicial termos produrtns agrí-
colas de rmiilo valor, cujo consumo fosse, na maior
parle , ou quasi lodo , externo : mas a verdade c
qne os njio lemos , c á excepção do sal , o grande
consumidor de todos os outros é Portugal. Sohrc es-
te facto devemos pois assentar o nosso syslemn eco-
nómico , as nossas attenrões devem co!icenlrar-se
mais no mercado nacional : ncllc está a maior c
raais certa freguezia dos nossos produclos : somos
obrigados a es[)ecular todos os meios de engrande-
ce-Io : o que não obsta a que ao mesmo tcnipo pro-
curemos alargar a esfera do mercado externo.
E não só a peculiaridade da nossa situarão eco-
nómica , ta.mbe.m as regras da prudência nus acon-
selham este passo. Estamos vendo cm toda a Euro-
pa , e nas mais partes do mundo civilisado a pro-
ducção a crescer n'uma progressão constante , e ao
mesmo tempo as nações repellindo por todos os mo-
dos, para que não irroguem damno á industria do-
mestica , aquelles productos alheios que podem es-
cusar. Cada paiz trata de supprir-se de objectos de
alimento c vestuário no seu mercado interno , c de
lorneccr esse mercado de artigos indígenas. Ocom-
mercio externo continua , e até augmenta n'uutros
íamos : mas neste , que loca aos artigos que for-
mam a base essencial da existência e subsistência
dos povos, propende a diminuir. Eu não assevero
que esta marcha seja a mais para desejar, que esta
vasta cadeia de restricções ^eja favorável ao pro-
gresso da riqueza uni\ersal; mas digo que o nosso
l)raço não c omnipotente que a estorve , e que ha-
vemos de curvar-nos ás condições que cila nos im-
põe , c segui-la , produzindo nós mesmos os obje-
ctos mais necessários, pelo menos, ao nosso sus-
tento e commodo.
-\cni i)odemos, nem nos conviria seguramente ,
abarcar o circulo inteiro da industria , vedando as
portas a Ioda a permutação com outras nações ; ne-
nhuma ha que produza quanto consomme na rota-
ção do anno : ha , pelo contrario certos objectos
com que o clima ou outras circumstancias singula-
res privilegiam certos paizes , e por causa delles ,
por mais restrictivo que seja o systcraa de cada um
em particular, nunca cessará o trafico mutuo entre
os povos. Mas uma divisão do trabalho tão perfei-
ta e symelrica que distribua a cada povo uma úni-
ca e exclusiva tarefa industrial ; uma lei que diga
a este «tu serás agricultor somente»; — a outro
o tu serás fabricante, mas ficas tolhido de exercer
qualquer outra industria»; — a aquellenlu serás
commercianle , mas nem de agricultura nem de ar-
tes labris te hasde occupam — uma tal divisão do
trabalho digo que é quimérica , uma lei similhanle
digo que é absurda e incxequivel , no estado pre-
sente ; puis do futuro ou das mudanças sociaes c
económicas , que estão ainda no arcano das contin-
gências , não pretendo cogitar.
.Se a divisão du trabalho levada a este auge, não
passa , por ora , do uma idealidade , presumiremos
nós realisa-la? Com que esperança ou com que van-
tagem nos tornaremos excêntricos ao movimento in-
dustrial de todos os povos? E digo — í/c todos; por-
que nesse numero conto a própria Inglaterra. In-
glaterra professa-se a nação fabril por primazia ;
mas ainda não disse que para se conformar ao prin-
cipio da divisão do Iraballm . deixaria de ser nação
agntola , largando inteiramente a culluru das suas
terras. Deseja , s jm , franquear os seus portos aos
cereacs estrangeiros; mas porque o deseja? porque
não tem pão jvira o consumo dos seus habitantes ,
e , mais que tudo , porque á sombra dessa franquia
pretende introduzir c vender no continente os seus
artefactos estagnados por falta de compradores. De-
seja isto , c acaba de declarar pelo modo roais so-
lemne que pôde cxprimir-se uma tal nação, pelo
inquérito industrial de 1840, acaba de declarar
que aspira a ser o único paiz manufactureiro na
Europa , adjudicando ao continente nesta partilha
leonina o lote da agricultura. Onde está a recipro-
cidade neste Contrato, c a igualdade nesta divisão?
Inglaterra , povo de 28 milhões de habilanles pro-
põe ao continente, mercado de 202 milhões de con-
sumidores , bastecc-lo de artefactos , c em com-
pensação oflerece á sua agricultura o mercado bri-
taimico , o (|ual , no que pertence a cereaes , ape-
nas se compõe de 28 milhões de consumidores ,
não em lodo o anno, mas em duas semanas somen-
te , no decurso de 365 dias, que para essas, e in-
completas, lhes falta o [)ão (•). OITerece [ou inten-
ta olfcreccr] o mercado britannico aos cereaes do
continente, mas não faz igual olferta aos vinhos,
porque estes grava-os cora 200 e 300 por cento de
direitos de entrada sobre o seu valor , em vez de
lh'a conceder franca , ou impedida unicamente por
direitos pruporcionacs aos que pede para as suas
manufacturas serem admittidas nos outros estados.
Com taes condições não c de esperar que o conti-
nente consinta em trancar as portas dos seus esta-
belecimentos fabris , porque nem para tamanho sa-
crificio haveria indemnisação , segundo notámos;
nem que a houvesse , se concebe como , ainda cora
grave transtorno , seria praticável a mudança , ou
pass ;gem para outro emprego , de capitães , de ho-
mens, de hábitos, e de interesses ligados á indus-
tria, por esta forma immolada.
(Continuar-se-lia. )
Â. d' O. Marreca.
A SATTEA é a linguagem da inveja e tanto mais abo-
minável que todos se inclinam a crer o satyrico
sempre malévolo ; e como se persuadem que não
poupa vivos, nem perdoa a mortos , todos o abor-
recem e contra elle conspiram ; c quando assim não
fosse , sempre deveria ser dotado de sãos e puros
costumes , porque na realidade nada c mais odio-
so que um satyrico dissoluto, que censura vicios
alheios, ou suppõe defeitos a seus emulos : se aca-
so julga pcrmittido tudo, porque sabe com sal ma-
ligno adubar os seus epigrararaas , pela mesma ra-
são pôde um espadachim accommetter e insultar os
homens mais circumspectos e honrados .... Com-
paro o satyrico ao macaco , porque só se empenha
em divertir os outros ; c no meu conceito como es-
te d<'veria ser tratado; um instante faz rir, mas lo-
go enfastia, c quasi sempre é espancado c expulso.
— l'cde(jachc na Vid. do Quita.
Troca poi- troca. — Os poros que antigamente se
tinham em conta de únicos civilisados eram os gre-
gos c romanos, depois dos cgypcios e phenicios ; c
deixaram a designação de Ijarbarns para todos os
outros que conheciam. — Os selvagens do norte da
America lambem cU:\m:)m burbaros aos eurupeus :
os groelandezes ao norte da Europa vfjin da mes-
ma linguagem.
■Iradnc-
(.) I\b,tr .•Stiilistií/uc .v«- tom. S.° pag. 21 ■
i;5q fritiiceia. — l'arit JÍÍ3Í). ■■ ' '■ '• ■
o PANORAMA.
•237
o ZOSIAC3.
pE CT.RTo qiic não haverá homcTi) que , no encami-
nhar a vista para a aliobada celeste, ao contemplar
n muUiílãn de corpos luminosos que povoam o es-
psro , deixe de sentir desejos de conhecer a natii-
rera desses glol)os, pequenos na apparencia, e que
sob a fornia de pontos mais ou menos resplandecen-
tes deleitam os olhos ao mesmo tcuipo que confun-
dem o entendimento.
Toiios (IS esforços dos astrónomos paia medir a
dislanfia que do gloho que habitámos separa as es-
Irellas tem sido pela maior parte tnfructuosos : rae-
deam entrenós e cilas tantos milhões de léguas ,
([uc mal pôde comprchender-se o numero. A''eja-se
3 este respeito a « idca faeil do sy<;tema do mundo »
que deí\á:nos escripta a pag. 131 do rol. 2.° da
1.* Serie.
Dividiram as eítrellas cm duas classes, chaman-
do de priínririi fp-iinãcza astjuelem brilho superior ;
de .f/juiifhi ;irar>.(lrf:ii as que brilham immediatamen-
tp menos e assim sii<->;pssi\amente. As deserta gran-
deza ainda são perccptiveis .4 «Uin simples , mas
dalii para diante só podem distinguir-se com o au-
xilio do telcfcopííj. Os iiílroDamos, para se não >e-
rcm confusos com tamanha multidão de astros e po-
derem facilmente delinea-los nas cartas celestes ,
onde se desse com a respectiva situação ao primei-
ro lanço d"o!hos , as coordenaram era grupos ou
consiellações.
Como os antigos conheciam menos cstrellas , em
rasão do pouco que estavam exploradas diversas
palies do inundo, dividiram o céu em menos cons-
lellações do que tem a moderna divisão. A par dos
progressos da navegação e do aperfeiçoamento do
telescópio caminhou a astronomia ; e hoje não ha-
verá estrella , por pouco importante que seja , que
não esteja comprehendida cm alguma das constel-
lacões. Estas são zodiacaes , boreacs , c austracs,
segundo a posição que occupam no firmamento , e
o liemispherio a que correspondem. Os antigos pa-
ra representação do giro que nos parece que o sol
descreve anunalmeiíte no céu por entre .is estrellas.
trararauí doze figuras em cujo amhito e contornos
metteram as cstrellas das doze consti-llações por
meio d.-.s qiiaes i> sot tem de passar apparentemen-
te : e dcram-lhc os nomes de Aries, rauro , e os
( utr.'6 o«e sã« beta sabidos , cujos symbolos ti
238
O PANORAMA.
acham clíigiados em qualquer folhinha de porta ;
são os doze signos do zodiaco , que é um dos cír-
culos máximos da esphera , no qual se movera os
planeias. As outras constellações são horeaes ou
auslraes conforme demorara ao norte ou ao sul do
zodiaco; das primeiras conheciam os antigos [já
em tempo do celebre Ptolomeu] vinte, cm que en-
trara a ursa maior, a ursa menor &c. — : das se-
gundas contavam quatorze , sendo destas o cão
maior, o cão menor, a balea , orion &c. : tanto
ii'uma como n'outra situação os modernos desco-
Iriram e figuraram grande numero delias, que não
mencionaremos, porque tratar larga c profundamen-
te de similhante assumpto so cabe em obra espe-
cial , e methodica. Taes e tantas são as estupendas
maravilhas dos céus que ninguém deixará de reco-
nhecer o Supremo Auctor , dizendo com o psalmis-
ta : — os céus narram a gloria do Senhor , c o fir-
mamento annuncia as suas obras.
O BRAZEIRO.
lí.
«DiGNE-SE V, M. attender-mc — disse o monge. —
O mais velho dos dois moços chamava-se Sancho :
era um cavalheiro perfeito, viva imagem de seu
pai ; cabellos pretos , faces coradas , olhos vivos e
soberbos , alto e esbelto. . . Oh ! se Deus lhe tives-
se prolongado a vida , havia ter feito fallar de si.
Na idade de vinte e dois annos já tinha todas as
qualidades que adornam um guerreiro. Serviu sob
o comniando de António Spínola na Flandres , no
exercito que tomou a praça de Ostende , que havia
reístido a um assedio de três annos e um mez. Era
cm 1604. Que alegria para o conde de Pefiacerra-
da e para a condeça, que ainda então vivia, quan-
do seu filho , depois de tão dilatada ausência , vol-
tou aos seus lares. Mas infelizmente a alegria du-
rou pouco : chegam um dia magistrados e esbirros
e entram no castello , onde Affonso o sábio muitas
vezes descaneára , c prendem D. Sancho. Era ac-
cusado — um Peiíaccrrada accusado ! — de ter tido
relações criminosas com os defensores de Ostende
durante o cerco. Tinha-se interceptado uma carta .
ainda que sem assignatura , cuja leltra parecia ser
de D. Sancho ; e apesar de negar constantemente ,
o crime foi dado por provado e D. Sancho condem-
nado á morte.
Xo dia destinado para a execução tinha-se o con-
de encerrado no seu palácio de Madrid , quando
recebe uma carta de ura otlicial das guardas Wa-
lonas , na qual , cedendo á voz da consciência , se
accusava do crime attribuido a D. Sancho , e de-
clarava que em castigo se ia suicidar com um tiro
de pistola.
Sobresaltado , fora de si , o conde corre ao pa-
ço , e com impaciência febril [levada da dòr pun-
gente de um pai] rompe pelas guardas até ao quar-
to onde elrci estava. Vossa Magestade era este rei,
Icmbrar-se-ha disto? Estava assentado na sua ca-
deira como ainda agora no mesmo logar. O cardeal
duque de l.erma estava ao pé de V. M. , e a pou-
ca distancia o primeiro secretario D. Hodrigo Cal-
deron.
O conde dcitou-sc aos pés d'clrei , mas a sua
perturbação era tão grande que não pôde proferir
uma só palavra. Foi então quo V. .'\i. , com frieza
severa e lom de soberano, lhe perguntou quem era,
e como se podia atrever a entrar na camará real
sem ser annunciado , o que era gravíssimo crime
contra a etiqueta.
«Senhor — exclamou em lagrimas o conde dePe-
nacerrada — tenha dó de um pai que está cm pe-
rigo de perder seu filho. Querem matar meu filho.
Senhor , meu filho é innoccnte ; aqui está a prova.
E o conde com mão tremula appresentava a el-
rei a carta do official das guardas AValonas. Mas
elrei iramovel respondeu : O mordomo do palácio
recebe todas as petições para elrci ; retirai-vos , e
entregai-lhc a vossa. Ao depois será examinada.
« -Vo depois I É de presumir que o conde de Pe-
iãacerrada , leal vassallo , não estava senhor de si
quando se atreveu a dizer a clrei : Já, senhor, de-
ve-se já decidir este objecto , porque .... ouvis a
campainha? [e a campainha com effeito já se ouvia
tocar]. As badaladas daquella campainha acompa-
nham meu filho á morte. Ouvis a ladainha? São as
vozes dos penitentes que acompanham meu infeliz
filho a quem levara para o cadafalso , e que está
innoccnte , senhor.
Assim fallando o conde abraçou os joelhos d'cl-
rei, arrastou-se aos pés do cardeal, duque de Ler-
ma , implorou até a D. Rodrigo Calderon o despre-
zível aventureiro , e a ambos disse :
«Meus presados senhores, uni os vossos rogos
aos meus para que elrei assigne o perdão de roeu
filho. L'ma penna I Tinta ! Em poucos minutos já
não é tempo.
O cardeal e o secretario ficaram mudos como
vós , senhor. Apesar disso A^. M. parecia commovi-
do , e o conde se aproveitou deste momento para
lhe dar na mão a carta , prova da innocencia de
seu filho , e até se atreveu a tomar uma penna da
mesa e appresentar-lh'a. Porem então D. Rodrigo
Calderon, o mesmo D. Rodrigo que V. M. acaba
de encermr na torre de Segóvia, disse em voz qua-
si sumida : Senhor , só ao presidente do conselho
de Castella pertence appresentar a V. M. a penna
com que hade assignar o perdão de um condeni-
uado.»
«E elrei o que disse? d — Interrompeu Isabel sem
fôlego e na maior agitação.
«Meu Deus — bradou Filippe 3." quasi ao mes-
mo tempo. — !v'ão sei o que sinto de repente. Não
achais que este quarto está frio?» Ninguém respon-
deu , e clrei accrcsccntou : «O vento de março as-
sopra pela janella , e eu sinlo-mc gelado. O brazei-
ro está quasi apagado. Agora, reverendo, conti-
nuai a vossa historia.»
«Estou prompto ; mas V. M. parece soffrer mais
e talvez seria conveniente o fim delia para outra
occasião.» — «De modo nenhum, é só frio, conti-
nuai. »
«Sim — disse a princeza — continuai : o que dis-
se elrei quando D. Rodrigo assim fallou?«
Fr. Ainbrosio por um momento observou Filippe
3.° para ver se notava algum signal de perturbação
no seu rosto ; depois continuou com voz de homem
que conta uma historia ordinária : —
Elrei recordado de uma regra de que talvez so
ia esquecendo , agradeceu com uma inclinação de
cabeça a I>. Rodrigo, e dissc-Ihe : K vcrdad(í, man-
dai procurar I). Vicente Gonzaga.
É impossível pintar a impressão (pie vislumbra-
va nos rostos de todos os circunistanles. O monge
fez uma pausa , durante a qu-il se lhe podia ou-
vir bater o coração' "" licito ; e depois proseguiu :
«yuanUo appareceu o presidente do conselho de
Castella. a campainha e a ladainha já mal se ou-
o rA]\ORA]>IA.
239
Tiam, mas D. Sancho já as não podia ouvir. — El-
rei pela sua stiraina benignidade scrviu-se fazer a
declararão da sua innoccncia ; mas cila já de nada
lhe servia. — .\gora , senhor, coutarei a historia
do segundo Pehacerrada?»
«Suspendei — disse clrei — isso é muito triste.
Ivão sabeis outra cousa?»
« X\\ : — exclamou a princcza das Astúrias com
o tom que uma dama joven c bella nunca emprega
inutilmente — permitia V. M. que o padre acabe a
sua historia. Intcressa-mc no ultimo ponto, c de-
mais é preciso que eu aprenda as cousas d'IIespa-
nba e os usos da sua corte. »
EIrei rcndeu-sc , e com um aceno ordenou ao
monge que continuasse. — «Depois do assassiiiio de
seu filho Sancho, o conde resolveu passar com seu
lilho Fernando o resto de seus dias no caslello da
serra de (iuadarrama. A magoa le\ára á morte a
condera quando soube da infeliz sorte do seu pri-
mogénito. Nesta epocha D. Fernando era moro de
doze ânuos : e o conde , que se sentia envelhecer ,
desejou naturalmente conservar ao menos um fillio,
que lhe podesse algum tanto mitigar a dòr e cer-
rar-lhc os olhos. Por isso o conde havia promettido
que nunca , em quanto elle vivesse , havia de al-
gum Pcuacerrada apparecer na corte ou servir no
exercito. Fez jurar ao seu tenro filho , sobre o ca-
dáver mutilado de D. Sancho , que recusaria qual-
quer emprego , grande ou pequeno , e o joven es-
tava firmemente resolvido a ser fiel ao seu jura-
mento. Passaram-se annos , e D. Fernando estaAa
homem. >"o anuo de 1611, justamente hoje faz dez
annos , completou os dezenove , bello como seu ir-
mão. Nesta epocha, sem motivo conhecido, D. Fer-
nando cahiu cm profunda melancholia. O castello
velho , era que tinha passado a sua adolescência ,
perdeu para cUe todos os encantos; frequentes ve-
zes foi visto no alto de uma rocha olhando para o
lado do Escurial. O pai que o amava como um pai
de sessenta annos ama o seu filho único , a espe-
rança e consolação da sua velhice , o herdeiro do
seu nome , o ultimo ramo da sua nobre família ,
muito se inquietou com esta mudança , e procurou
todos os meios para descobrir a causa ; mas Fer-
nando guardou inviolável o seu segredo.
Um dia Fernando approximou-se de seu pai ,
cora rosto menos assombrado que de costume , a
pedir um favor. Ainda nunca havia visto uma cor-
rida de touros , e até á sua solidão havia chegado
que haveria uma festa destas no dia 3í de março
de 1611 , era Madrid, na praça maior, para cele-
brar o anuiversario do casamento deA.M. Xão era
desculpável que D. Fernando a desejasse ver? O
conde quando ouviu a petição de seu filho, suspi-
rou , e disse : Filho , queres deixar teu pai para
ir á residência d'elrei : peço-te que percas essa
idéa. Não sabes que não podes dar um passo era
Madrid sem pisares os mesmos logarrs por onde o
pobre Sancho foi conduzido ao patíbulo? As mulhe-
res velhas de Madrid não reconhecerão cm ti as
feições de teu irmão? e ouvirás sussurrar: uestc i
o irmão de D. Sancho, o fidalgo moço , que morreu
ás mãos do carrasco.» Filho, peço-te que não vás
a Madrid. Madrid é de máu agouro para a nossa
família, e quem sabe se jamais voltarás.
Mas a mocidade ás vezes é tão pertinaz como
inconsiderada nos seus planos : e D. Fernando res-
pondeu :
«Meu pai , se me deixardes ir ver us io«roc , ou
TOS direi o que desejais saber, e que tenho occulta-
do até agora: meu pai, é um grande segredo. —
Então disse o pai : Sc te resolves a communicar-ine
o motivo da tua melancholia , então talvez me re-
solva a deixar-te ir ver os touros a Madrid.
«De certo? meu pai, então contarei tudo.» Nes-
te logar Fr. Ambrósio hesitou como incerto se de-
via continuar ; mas obedeceu a um aceno d'elrei.
«O que 1). Fernando disse foi o seguinte: Um
dia uma tempestade o surprchendéra na caça , c o
obrigara a rcfugiar-sc debaixo de uma arvore gran-
de bem conhecida dos caçadores : apenas se tinha
abrigado quando ouviu no fim da matta gritos de
soccorro , e logo de mistura patadas de cavallo. D.
Fernando guiou-se pela bulha c viu um espectácu-
lo triste. — Uns cincoenta passos distante viu vir
um bello macho branco , ricamente ajaezado , que
com espantosa rapidez , coberto de espuma e san-
gue , se approximou logo de um precipicio sobre «
rio , arrastando comsigo uma dama desmaiada. A
infeliz sem duvida tinha procurado deitar-se do
macho abaixo , mas , o vestido cmbaraçando-se no
estribo, ficou suspensa do apparelho. Havia já mui-
to curto intervallo a percorrer para se precipita-
rem ambos no Jlançanares , que no fundo do abys-
mo corria em ondas açoutadas pela tempestade , o
onde a morte era inevitável. À vista de tão terrivel
perigo D. í"ernando foi trespassado. Sem se lem-
brar do perigo a que elle próprio se ia expor, lan-
çou-se diante do macho , e teve a fortuna de agar-
rar com mão firme a dama , c toma-la nos seus
braços.
O macho deu um salto como furioso , o vestido
rasgou-se a três passos do precipicio , D. Fernando
segurou o corpo da mais encantadora dama , moia
morta de susto , em quanto com medonho estrondo
o macho se precipitou no abysmo , misturando a
sua voz com o ruído da tempestade c das ondas.
Logo que a desconhecida d.ima tornou a si e se
viu salva ,' ajoelhou para agradecer a Deus, depois
apertou a mão ao seu salvador com signaes da mais
viva gratidão. Mas neste momento se ouviram trom-
betas já perto ; cila estremeceu , c como abalada
subitamente por uma reflexão desagradável , reti-
rou a mão e disse em voz meia apagada ;
«Ouem quer que sejais , fugi : não vos demoreis
nem mais um instante ao pé de mim. Fugi, fugi.
tão depressa como poderdes : c eu peço a Deus que
ninguém saiba o que aconteceu , c o que jior mim
fizestes. O meu Deus, estremeço ; talvez que já vos
tenham visto. Elles ahi vem; não ouvis as vozes,
e os passos dos cavallos. Fugi : adeus , adeus ; não
me esqueçais. »
«O reverendo padre — interrompeu aqui iiuioceu-
teinenle a princcza — é muito interessante esta his-
toria : creio que todos os presentes são da minha
opinião.» E logo continuou em voz baixa: «Vedes
a attenção com que elrci escuta?»
«Senhora — disse cora ar de frieza Fr. Ambró-
sio— ainda nj"io .Tcabei. No momento em que 1>.
Fernando contava a seu pai como a bella desconhe-
cida , a quem elle salvara a vida , tinha dcsappa-
recido ; como da nobreza das suas maneiras e da
riqueza do seu traje , elle devia suspeitar que era
dama de alta jcrarchia ; como desde este nioinen-
te cila ficara sendo o único objecto dos seus pensa-
meníos e sonhos, e como desejava ir ver os louros
a.^fadrid so na esperança de a tornar a ver — bate-
ram na porta da sala : <> o alcaide da corte, acompa-
nlixío d'uiiia multidão de esbirros , chegou-se a D
Fernando, tocou-lhe com a sua vara branca e disse :
2iO
O PANORAMA.
«Em nome d'elrei , cu prendo a ti , D. Fernan-
do de Pcnaccrrada, como criminoso de Icza-niages-
tade. »
«Senhor alcaide — balbuciou o conde- — que fez
clle? de que crime é accusado?» — «Tocou o cor-
po sagrado da rainha.»
O ancião não derramou uma lagrima ; mas quan-
do D. Fernando o quiz abraçar pela ultima vez,
então lhe disse: Agora, meu pobre filho, agora po-
des ver Madrid , a cidade real.» — ISeste mumenlo
exclamou clrei tiritando de frio : «O ar deste quar-
to ó gelado; Medina Cteli , não Ic disse que man-
dasses renovar o brazeiro?" — Este rcs[ioudeu :
«Assim se fez. »
"Xão vedes, — disse Isabel de Franra á cama-
reira-mór — não vedes que elrei está cada vez mais
pallido?»
«È verdade; — respondeu a camareira-niúr — S.
M. ainda não está inteiramente restabelecido da sua
ultima indisposição ; não devia ter-se demorado tan-
to : mas o padre vai continuar.»
"O tribunal dos alcaides da corte é severo qnan-
<lo se trata de executar as leis, de defender as pes-
soas reaes de desacatos, até dos mais involuntá-
rios , leaes e úteis. O tribunal tem rasão. Não c
verdade ? Tocar no corpo da rainha é [)rohibido de-
baixo de pena de morte. D. Fernando tinha-o lo-
cado , D. Fernando devia morrer , assim disse a
sentença. Quando esta noticia chegou ao conde es-
te beijou o chão , e exclamou : Meu Deus , miseri-
córdia I Ainda regava o chão com lagrimas quando
recebeu um recado da rainha, deste theor : Conde,
vosso filho salvou a rainha, a ella compete salva-lo.
S. M. me ordena que vos diga que hade empregar
tudo que fòr possivel para salvar D. Fernando da
sorte que lhe está destinada, ou que o accompanha-
rá na morte. »
- (Conlinuar-sc-ha).
Palmeiu.í aréca das Antilhas , ou abequeira.
A ARÉCA é uma espécie de palmeira cujo cume se
termina em Icixc de folhas ssmiabertas , e compri-
das quasi dez pés. Estas folhas abarcam umas ás
outras na sua base por meio de uma bainha , cu-
jas bordas superiores parecem franjadas , ou teci-
das de libras laxas , que se cruzam á maneira de
talagarça grossa. Um pouco por baixo deste feixe
de folhas sabem algumas espathas de comprimento
quasi do três pés , inchadas nomeio, lisas, ver-
doengas, c que abrindo-se dão nascimento a paui-
culas , ou espádices de flores esbranquiçadas.
Não somente é para lhe aproveitarem a madeira
do tronco, de que fazem calhas c tubos, que cor-
tam a aréca ; mas lambem para lhe tirarem o re-
polho , ou olho de cima. Quando a arvore está no
chão , cortam-lhe a cabeça dois ou três pés c meio
por bai.xo do logar aonde nasce o feixe das folhas ,
c depois que a esta parlo tiram o exterior , acha-
se-lhe no centro o repolho , composto de parles fo-
lhosas , arranjadas em forma de leque fechado ,
braucis, tenras, delicadas, e de gosto que se pa-
rece ao da alcachofra ; comem-se cruas , cm salada
com molho de pimenta o vinagre, ou cozidas dcdif-
fcrcnlcs modos, c lambem fritas.
Os ualuraes do paiz usam ainda da aréca para
outro modo de sustento. Ouasi todas estas arvores
logo (jue estão cortadas .iltiahcm de muilo longe
uma multidão de grandes escaravelhos pretos, que
se introduzem por baixo da casca na parte menos
dura, alli depositam os seus ovos, que produzem
larvas grossas , de uma pollcgada , com que os que
delias gostam se regalam , depois de as fazerem as-
sar . enfiadas em pequenas espetos do páu.
I'or meio de uma incisão feila no tronco .da aré-
ca obtem-se ura vinho mais estimado ainda que o
do coqueiro, e que se não faz vinagre senão passa-
dos trcs dias.
Sagueibd , ou rALUEin.i co sagl.
É oiTRA espécie de palmeira , cuja mcdulla dá um
exccllente alimento. Quando as folhas desta palmei-
ra se vêem cobertas de um pó esbranquiçado, ef-
feito de uma plethóra [abundância] farinácea, c que
muitos espinhos tanto do cume da arvore como da^
tolhas começam a cahir , são signaes para se tirar
a medulla com abundância. Para còla operação dei-
ta-se ao chão o sagúeiro , torta-se cm muitos tro-
ços , ou pedaços de sele pés de comprimento , c ra-
cham-se em quartos. Arranca-sc-lhcs a medulla ,
despojam-se dos seus envultorios , csmaga-sc , c
mettem-se cm uma espécie de cortiço um lanto
afunilado, e ajustado sobre uma [leneira de cabei-
lo, e se lhe lança agua. Alravcz desta peneira pas-
sa a massa do sagíi bem agitada na agua ; as fi-
bras que ficam dão-se aos porcos. Deixa-se repou-
sar no vaso posto debaixo da peneira a agua que
conlém a medulla reduzida a papas muito diluí-
das, vasa-sc a agua depois brandamente, e no fun-
do do vaso acha-se a fccula branquíssima , e finís-
sima , em forma de papas , que depois se secca por
porções meltidas cm cestos cobertos de falhas. Mas
para esta massa se conservar inais tempo, é preci-
so fazc-la passar pelos buraquiuhos de umas certas
bacias de barro muito esburacadas, fazcr-lhc assim
tomar a forma do grãosiiihos , e depois seccar estes
ao fogo. Também com esta massa molle se formam
pães da grossura de um dedo , c do meio pé qua-
drado.
As folhas da p.almcira do sagú tem ainda mais a
vaniogem de se cobrirem de uma penugem, de que
se fazem pannos ; lambem servem para cobrir as
casas: as suas nervuras são projuias para fabricar
cordas. O tronco ferido por incisão dá lambem um
licor agradável ; c a sua medulla nutritiva a faz
muito mais útil ainda do que a palmeira do coco.
A gratidão deu origem (is armas d'uma cidade. —
Quem entrar em Durdrccht pela porta que deita
para o rio Mosa pódc ver na volta do arco o escu-
do d'armas, que representa uma ra|)ariga mugindo
uma vacca : nas moedas cunhadas ucsta cidade acha-
se o mesmo emblema: oque tem sua origem no se-
guinte facto. — \o decurso das guerras da indepen-
dência dos Paizes-Iiaixos , quizeram os hesiJanhoes
saltear de súbito Dordrecht , que sabiam estar des-
apercebida : quiz o acaso que a creada de um la-
vrador dos arrabaldes, indo pela tarde ordenhar as
vaccas, observasse entre moitas os soldados embos-
cados ; teve porem resolução e prudência |)ara pro-
seguir em seu caminho e tarefa, liugindo que lai
não vira ; de volta ao ca«:>l deu (larte ao amo , que
:ivi<oii o: da v-iiladc , quc abriíido os diques inun-
daram o tcireno, salvaudo-se da sorprcíu.
84
o PANORAMA.
2it
'ti -
'li .írrí
Ama!»hecec sereno o dia 20 de Janeiro de 1685 na
cidade de Madrid , e o céu limpo de nuvens osten-
tava o azul formoso que tanto deleita a vista : o ar
estava bonançoso , e nem a mais leve viração agita-
va as raras folhas que as geadas tinham deitado
nas arvores ; as avesinhas largando seus ahrigos
sabiam a gozar o benigno ambiente , e alegravam o
carapo com seus gorgeios : ao longe o nevado Gua-
darrama cerrava este painel encantador , appresen-
tando a frente cuberta de neve e as faldas revesti-
das de azul sombrio. — Acabara Carlos 2.° de ou-
vir missa, e dirigindo-se a seu aposento abriu uma
janella que deitava para o parque : melancholico e
enfermo pareceu-lhe nesta occasião que o ar fresco
da manhaã o remoçava. Multidão de mancebos pas-
seava no parque galopando e alardeando á compe-
tência as prendas da equitação; e ao mesmo tempo
grande numero de outros cavalleiros e senhores de-
Agosto 5 — 1843.
sembocava pelos postigos de Segóvia e da ^ cga ,
enean)inhando-se para a beira do rio, ou seguindo
para o Pardo. Couleniplou elrei com inveja òcjuella
concorrência alegre e belicosa , e sentiu apoderar-
se-lhe do animo aquella timidez melamhidica que
constituía a base do seu caracter: lembrava-se en-
tão que era reinante sobre vastas monarchias. e que
milhões d'homens acatavam submissos sua voz dé-
bil ■ e comtudo apesar de seu mando absoluto era
tripliceroente escravo e muito mais desditoso que a
maioria de seus vassallos. O triste monarcha via ty-
rannisadas a sua imaginação e vontade e ate as suas
menores acções pelos exorcismos , os prceeúos hy-
gienicos, e a etiqueta que pesava sobre elle com
toda a rigidez do ceremonial da casa d'Austria.
Cansado de tão violenta situação desprezou os man-
d3iro do medico e mandou pór a carruagem, e pou-
co depois sahiu pela portinha deS. Bernardino, acom-
2.* Serie. — Voi.. II.
242
O PANORA3IA.
panhado da guarda especial de sua pessoa , baixan-
do pelo camiiilio do Prado, que eslava cheio de
genlc de todas as classes , e de cavallos , coches c
liteiras: ainda a esse tempo não havia ahi calçada ,
ao contrario era o caminho de superfície tortuosa c
desigual , c nessa hora estava em partes intransitá-
vel em consequência das chuvas anteriores : tão
])ouco se tinha erigido a preciosa capella de St.°
António cm que deixou Goya uma de suas mais es-
plendidas inspirações : alguns cyprestes e outras ar-
vores dispersas e sem ordem faziam todo o orna-
mento de la Florida. — Ao chegar Carlos 2.° a es-
te sitio notou que a gente parava e a sua guarda
de joelho em terra inclinava em adoração os mos-
quetes ; e era seguida viu um sacerdote que cami-
nhava a passos lentos, precedido de um menino que
Jevava uma lanterna : chamou-o eirci c sonho que
ora o coadjutor de S. Blarcos , que ia administrar
o sagrado viático a um hortelão do souto de Uliyas
calirMcs. Lembrou-sc logo Carlos do exemplo de
Síodolpho de liapshurgo , tronco ilUislre de sua fa-
mília , c apeando-se ajoelhou , convidando ao mes-
mo tempo o cura para que tomasse o assento do co-
che e dando-!he o tratamento de mercê ; por suas
mãos fechou a portinhola, e acompanhou a pé e de
caheça descoberta. — Bera alheio se achava o po-
iire hortelão da visita quo ia chegar ; acabava de
dirigir ao céu fervorosa supplica pelo destino de
sua íilha nas circumstancias de ficar orphaã c des-
Talida; a mísera chorava á cabeceira de seu mori-
iiundo pai , que via perecer cm desamparo do todo
o humano soccorro , quando entrou o viático prece-
dido d'clrei c de muitos senhores da corte que o
haviam imitado : a perturbação do enfermo foi tal
que não acertava a responder ao sacerdote , não
menos confundido quo elle. Assim que o padre ter-
minou seu ministério , o rei fallou carinhosamente
ao doente , inquirindo de seu estado e familia : re-
conheceu que a maior aíflicção do mesquinho era
cm rasão da futura sorte de sua filha ; pelo que deu
á rapariga a bolça que levava e promctteu ao pai
ouidar no destino delia ; lambem deram mostras de
sua generosidade os cortczãus , a exemplo do mo-
narcha. Uctrocedeu o cura dentro do coche, eacom-
l)anhado como viera , accrcscendo muito povo que
<lava louvores a piedade de Carlos.
Gravoíi-se em Antuérpia naquelle mesmo anno
uma estampa que representa esta anecdota históri-
ca , c de que a nossa é Iransumpto. — Desde então
os reis d'Kospanha lem pontualmente observado o
costume de ceder o seu coche Iodas as vezes que
encontram o sagrado vi;itico.
O Bobo. , : .
1128. -■ '' - •'■■■' "■• '■
' ' '' XV. "':•
(Conrltis~io.)
\ soBTE das armas, c a vingança de D. Bibas Il-
idiam resolvido os futuros destinos, de Portugal. Não
foi esta a |)rimcira vez, nem será a ultima, em que
uma batalha ou um caturra iuiluam na existência
ou iião-exislencia , no modo de ser ou de não-ser
destes corpos moraes chamados nações , que apesar
da sua individualidade, em rigor ideal c abstracta,
não deixam de parecer corpos physicos — pela fal-
ta de vontade e de iiitelligencia.
.Brava batalha se pelejara no campo de S.Mame-
de junto de Guimarães: a hoste do infante ahi se
travara com a de sua mãi e do conde de Trava , e
depois de largo conflicto, Affonso Ilcnriquez Irium-
phára , e 1). Thereza se vira obrigada a fugir com
o soberbo estrangeiro , c a ir encerrar-se no castel-
lo de Lanhoso, distante duas léguas do logar do re-
contro.
Mas porque não procuraram os vencidos ampa-
rar-se dentro dos fortes muros e lorrcs do castello
dcGuimarães? É o que não nos diz a historia. Pou-
co importa : di-lo-hemos nós. A historia não conhe-
ceu D. Bibas, e D. Bibas — muito em segredo o
revelámos aqui aos leitores — nos oíTercce a chave
deste myslerio. O bobo tornara impossível similhan-
Ic arbítrio, e porventura ajudara a descer do céu
a benção que cobriu as armas de Aflbnso Henri-
quez.
Este não se esquecera do modo por que , e do
caminho por onde , o esforçado senhor da Maia es-
capara ás garras do nobre tigre de Galliza. A lan-
ça de Gonçalo Mendez não reluzira enristada ao sol
da peleja. Quando, porem, esta andava mais acceza
e travada , vários besteiros , que se viam ao longe
guarnecendo os adarves e eirados das muralhas e
torres do temeroso castello , começaram a vacillar
e correr de um para outro lado , c dahi a pouco
alguns delles , tombando por entre as ameias , fize-
ram espadanar as aguas encharcadas e verdenegras
do fosso. Os habitantes do burgo, correndo a inda-
gar a causa do terrível espectáculo que presencia-
vam , sentiram misturarem-se lá no alto as accla-
mações ao infante com os gritos e gemidos dos que
morriam. A ponte levadiça ergueu-se entretanto, e
os burguezes olhando de novo para os muros viram-
nos povoados de homens d'armas , em vez de bes-
teiros, c hasteada na torre de menagem a signa d'Af-
fonso Henriqucz. O silencio tinha lá cm cima subs-
tituído os gritos de contentamento e de agonia. En-
tão um som estranho lhes chamou a attenção. Olha-
ram. Em uma das troneiras do cárcere do alcaide
o truão do paço, com os braços estendidos fora das
grades , batia as palmas , e viam-se-Ihe reluzir os
olhos c alvejar os dentes no meio de gargalhadas
estrondosas. Por baixo da troneira um dos atalaias
precipitados das ameias , atravessado de golpes lu-
ctava nas anciãs da morte , e se revolvia na agua
lodacenta da cárcova , a qual tingia com o próprio
sangue. O bobo olhava para o besteiro com a volu-
ptuosidadc sangrenta de uma besta-fera. Era o ca-
valleriço do conde que o havia açoutado.
Dahi a pouco D. Bibas callou-se relirando-se da
troneira subitamente ; mas não tardou a apparecer
de novo correndo pelos adarves e debruçando-se
pelos eirados , donde fazia visagens insolentes aos
burguezes que olhavam para lá admirados. Os pou-
cos que entre estes eram parciaes do conde boa
vontade tiveram de lhe enviar alguns tiros de bes-
ta : um caso, porem, inesperado veio divertir-lhes
a attenção : as portas da igreja de S. Salvador abri-
ram-se de par cm par , c dentro ouviu-se o som do
inciodioso órgão, enlevo das damas da corte da bel-
la infanta, c o canto dos monges, que entoavam as
orações do ritual antigo para chamar a benção do
céu sobre a cabeça do priueipe que devia voltar
vencedor dos seus inimigos.
A revolta começava no Imrgo pela liturgia mo-
nástica. Não havia duvida de que Fr. Ililariãn tor-
nara ao mosteiro , porque a voz fraca c tremula do
velho abbadc entoara as palavras do psalmo — Deus
se compadece de nós. c os kyrics dos outros monges
o PA1VORA3IA.
243
haTíam apoz isso reboado no lemplo c sido inter-
rompidos novamente por Fr. llilarião que cantava :
Lcvanta-tc, oh srnhor ! ao que os seus confrades res-
pondiam na toada solemne do canto gregoriano. De-
pois de varias orações , durante as quaes muitos
burguczcs tinham succcssivamente entrado na igre-
ja , seguia-se uma em que era necessário proferir o
nome do principe para quem se invocava a protec-
ção divina. Ousadamente o bom do abbade gargan-
leou :
«Oh Deus, a cujos pés está o universo, e a quem
obedece tudo sob o império do leu servidor íiel o
principe D. AlTonso I — concede-lhe tempos paciQ-
cos , e piedoso aftasta delie esta barbara guerra ,
para que , regedor do teu povo , guiado por li , se-
nhor , obtenha paz no meio das gentes.» (■)
-■Vo acabar esta oração um leve ruido de applau-
so sussurrou pelas naves , mas logo morreu em at-
tento silencio. Fr. llilarião continuou :
« Invocaraos-le , Senhor , para que sejas propicio
ás nossas preces , tu que és o rei dos reis , e o do-
minador dos que imperam. Volve ollios benignos
para o nosso principe D. Afibnso. . . »
Ao repetir deste nome , proferido em voz mais
alta , um brado de muitos brados retumbou pelas
naves do antigo templo de D. .Munia : o povo que
o enchia escoou-se lentamente pelo escuro portal, c
as acclamações ao infante , rcstruginiio no terreiro
contíguo , vieram reboar de novo pelas sacrosanlas
abobadas.
Os homens de rua , c os villões vendo o castello
e o mosteiro declararem-se pelo filho do conde Hen-
rique — revoltar-se a torre de menagem e o ritual
— entenderam que o burgo , assentado aos pés dos
dois symbolos da força e da intelligcncia , devia
imita-los. Dentro de poucos minutos pelas viellas
da povoação corriam os peões armados de fundas, de
bestas , d'ascumas , e fugiam para a campanha os
besteiros do conde , que guardavam os vallos e os
cubcllos da cerca exterior, acompanhados de apu-
pos dos burguezes , e de muitas pedradas e virotes
disparados atraz delles. Então a ponte levadiça do
castello desceu , e alguns homens d'armas sahiram
para o burgo. Á sua frente vinha o Lidador que se
dirigiu ao mosteiro , rodeado já da villanagem ,
que o saudava, e acclamava o infante , e que o se-
nhor da Jlaia fazia affastar, para poder seguir avan-
te , com boas contoadas de lança , segundo era di-
reito e costume tratar peões em similhautes autos.
D. Bibas, montado em um ginete do conde de Tra-
va e ataviado com as suas louçainhas de bufão, se-
guia de perto o cavalleiro, rindo e fazendo -íisagens
e momos , sem se esquecer de distribuir golpes de
])alheta á direita e á esquerda com toda a munifi-
lencia de um truão real.
Entretanto na hoste de D. Thercza se espalhara
a noticia de que o inexpugnável alcácer de Guima-
rães succumbira á traição , e que os inimigos ti-
nham apparecido subitamente no seu recinto , como
surgindo de sob a terra. Esta nova fizera esmore-
cer os corações mais robustos ; mas quando os ho-
mens d'armas , besteiros e pionagera deixados no
castello e no burgo começaram a acolher-se fugiti-
vos c mal-feridos aos pendões da hoste, e narraram
os acontecimentos que os obrigaram a abandonar o
seu posto , o desalento se tornou geral , c a victo-
ria , ate ahi indecisa , principiou visivelmente a in-
(•) Em todas a? circunisíancins destn ceremonia religio-
sa seriiimos rieuresa e lextualmeiíle o ritual lie Silos de
^\)õ} publicado por Ber^aDza.
clinar-se para o lado do infante. Os balsões varie-
gados dos estrangeiros abatidos pela maior parte
ante os ricos homens portuguczes ; as alas vacillan-
do e retrahindo-se dos golpes furiosos dos seus ad-
versários ; os almogaures ou corredores , simulando
voltearem para comettimento inesperado, mas real-
mente fugindo , davam já claros annuncios de pró-
ximo desbarato. Debalde o conde de Trava com a
voz e com o exemplo tentava reanimar os brios dos
seus cavalleiros : debalde se atirava como desespe-
rado ao meio dos maiores perigos ; a hora derradei-
ra do seu dominio em Portugal tinha soado ; e D.
Thereza que , observando o combate de um outeiro
onde estava assentado o pavilhão real , tremera a
principio pela sorte do lilho , conheceu emfim que
negro para ella e para o conde devia ser este dia
fatal. Terrível momento foi para a bella infanta
aquelle cm que as lanças de Fernão Perez e de Af-
fonso Henriquez se enristaram frente a frente. Fe-
chou involuntariamente os olhos horrorisada. Ao
descerra-los de novo, descortinou o vulto agigantado
do moço principe que sobrelevava aos mais corpo-
lenlos cavalleiros {::) já muito longe dalli, abrin-
do fundos sulcos por entre as mcsnadas ou compa-
nhias dos nobres homens de Galliza. Os dois emu-
los do império tinham ferido em soslaio , e as on-
das dos cavalleiros os haviam separado.
Xesta mesma occasião outros dois guerreiros lam-
bem rivaes — mas rivacs por ura aílccto mais vio-
lento ainda que a ambição — haviam visto emfim
satisfeito o seu ódio , encoatrando-se. Ao pó delles
nesse momento só combatiam peões. Egas com a
tenacidade de um demónio , com a prudência tran-
quilla de um rancor implacável se esquivara a to-
dos os grandes riscos da batalha , espiando o ins-
tante em que Garcia Bcrmudcz arrastado pela ebrie-
dade do combate se aíTastasse dos cavalleiros ara-
gonezes que o seguiam. Este instante chegou : oal-
fercs-mór correra ao meio de uma ala de besteiros
que recuava diante dos fundibularios da behetria
de Gontingem. Alguns golpes do seu montante de-
viam bastar para atTastarem aquolla nuvem de peões
desordenados. Um cavalleiro , porem , similhantc
ao nebrí que se arroja sobre a prèa se dirigia par::
elle a todo o correr do cavallo. Parando, o esforça-
do Garcia esperou-o a pé firme. Sem saber porque,
o coração batia-lhe apressado.
Era Egas : a pouca distancia do alfcres-mór o
guerreiro sofreou o ginete, como se aspirasse o chei-
ro do sangue que ia correr ; como sorrindo á idé;;
de que naquelle logar a morte teria uma nobre vi-
ctiraa. Elle ou Garcia? Que lhe importava? Tm ou
outro. Para o que perecesse como para o que trium-
phasse , o dia seguinte tinha de ser um dia de re-
pouso e de paz.
Entre os dois proferiram-se algumas palavras.
Eram baixas e rápidas : ninguém as ouviu ; ma>
deviam ser atrozes. Quasi a um tempo o monlanii-
de Garcia faiscou batendo no elmo do seu adversá-
rio, e a acha d'armas de Egas esmigalhou o escu-
do do aragonez : depois por longo tempo não soou
alli senão o restrugir do ferro no ferro, o ranger de
dentes, e um rir sumido mas infernal. Riam por-
que o sangue lhes começava a rever das armadu^-
ras rotas e aboladas. Os eavallos arquejavam sob
(::) Em 1833 o tumulo de D. Affonso 1." em St." Cruz
de Coimbra foi aberto, e pessoa que assiáliu a e?se .ido. nu
pelo menos ainda pôde examinar a ossada do nosso prim; i-
ro rei , me asseverou que esses ossos eram de dimensão ex-
traordinária.
2U
O PANORAMA.
as suas rèdcs de malhn , c sob os pcsnclos nrnczes
de seus donos, qui; cm pé nos cslrihos c a()cilan-
do-os cnlre as duras joellieiras de feno os faziam
bater de pcilos iim no outro , e misliirareni a escu-
ma cnsaníjiientada que liies cobria os freios c salpi-
cava as crinas. Os pobres animaes mcncavam-se já
a custo , c as forcas e o animo feroz dos cavallei-
ros não quebravam , antes pareciam crescer. Quasi
ao mesmo (empo os ginetes ajoelharam e cahiram ;
inas de um salto os dois adversários licaram em pó
com a espada na mão. Os besteiros e fiuidciros que
os cercavam tinham cessado de combater , c consi-
deravam com terror aquello espectáculo, como se
«ma voz de cima lhes houvera dilo que esse com-
bate era um repto de morte. Dava-]h'o, porem, a
conhecer um tremendo signal : ambos destros no
])elcjar, nenhum curava de rcsguaidar-se dos gol-
(les do seu contrari<i , altento só a feri-lo. Naquel-
las almas repassadas de furor, dos dois pcnsamen-
los de vida c de morte, não cabia senão um — e
era ao segundo que ambos exclusivamente se aban-
donavam.
Por lim o cavalleiro de lliba-de-Douro começou
a levar visivelmente a melhoria do generoso alfc-
res-mór. Kslc não previra o recontro que o aguar-
dava : o ódio d'Egas havia, porem, calculado pla-
cidamcnte este. Assim , pela primeira vez cllc dei-
xara de combater ao lado do infante , vendo-o cer-
cado de inimigos. Como a luz do astro da noite se
desvanece ao subir no oriente o sol, do mesmo modo
o santo fogo da amisade amortece e se apnga quan-
do se accende ou fulge o facho das duas mais ar-
dentes paisues humanas — a vingança e o amor.
Depois de largo pelejar o braço de Garcia dei-
xou de responder á sua vontade enérgica. A espada
não lhe escapou, porque lh'a prendia ao braçal uma
cadeia de ferro ; mas a mão não podia aperta-la :
o bom cavalleiro sentiu as azas da morte roçarem-
]he frias pela fronte e gelarem as bagas de suor que
Jh'a banhavam: vergarani-lhe os joelhos , e no lu-
me baço dos olhos ccntelharim-lhe como duas fa-
chas tremulas e rápidas de fogo vivo ; vacillou e
eahiu : cahiu para nunca mais se erguer. «Dulce!
— foi o seu ultimo murmúrio: o ultimo som que
ouviu, ura rugido de tigre; a ultima luz que viu,
o lampejar de um punhal , que lhe descia entre o
carnal e o saio : não fez um movimento , um gesto
de supplica ; não esperou nem quiz piedade. Não a
queria vencido ; não a leria vencedor ; não poderia
espera-la.
Ao arrancar o ferro fumegante do coração do
aragonez , ligas sentiu os gritos de desalento e te-
mor dos peões inimigos, que fugiam aterrados ven-
do o termo daquelle duellu fatal, em quanto os vil-
lões de Gontingem lhes despediam uma nuvem de
setas c pedras, acompaidiadas d'injurias e amea-
ças. Com um sorriso doloroso o trovador olhou lar-
go tem|io |)ara o cadáver do seu rival. Depois cha-
mando alguns besteiros lhes disse:
«Fazei umas andas de troncos d'arvores, c trans-
portai csle cadáver ao mosteiro de (iuimarãcs. I,á
deveis encontrar quando ahi chegardes o ahbade
Fr. Ililarião. Dizci-llie que Kgas .Moniz o moço lhe
pede uma tumba e uma sepultura honrada para tão
nobre c valente cavalleiro. Dizci-lhe lambem , que
a minha pVomcssa desta noite hade cumprir-so , c
que ainda hoje nos veremos ! a
" Ver-nos-bemos ! ver-nos-hemos ! — repetiu cllc
em Voz baixa era quanto os soldados começavam a
«xecutar o que lhes ordenara. — Apoz o cadáver do
que dorme o ultirao somno , o daqnella que respi-
ra c parece viver — lambem cu_ terei o meu moi-
mento ! »
E apesar de mal-ferido c com o arnez despeda-
çado montou no cavallo que lhe oflereceu um almo-
cadem de peões , e partiu á rédea solta para onde
entre nuvens de pó se viam ao longe fulgurar as
espadas dos pelejadores.
Mas não era peleja. Era ura encalço , uma car-
nificina de vencidos. A todas as novas atterradoras
vindas de Guimarães accrescèra a da morte de Gar-
cia Bcrmudez que os besteiros fugitivos tinham es-
palhado. O conde de Trava retirava-se combatendo
ainda, soccorrido por alguns cavalleiros mais estor-
çados, mas o commum dos homens d'armas fugiam
desordenadamente. A sorte do alleres-mór quebrou
emfim os brios até dos mais destemidos.
Quando se conheceu claramente para que lado
se inclinava a victoria , D. Thereza esqueceu-se de
que era mãi , esqueceu-se da altivez e dureza de
Fernão Perez, para se lembrar só de que era aman-
te e rainha, e de que mais de uma vez o som da
sua voz tinha bastado a infundir ousadia invencível
no animo dos seus guerreiros. Montou n'um pala-
frem c acompanhada unicamente de um pagem e de
dois escudeiros desceu ao campo, deixando na ten-
da as suas damas c donzellas, que choravam, e rc-
savam cheias de medo , e horrorisadas das scenas
de extermínio que passavam na planície.
E as duas hostes , travadas , enredadas , invollas
no pó , rolavam como uma nuvem tempestuosa af-
fastando-se para longe do outeiro, onde estava ale-
vantado o pavilhão da bclla infanta. O sol inclina-
va-se para o occidente , e o poderio da filha d'AÍ-
fonso (j.° ia fenecendo como ia fenecendo o dia.
Subitamente do meio daquelle turbilhão de ho-
mens armados, sahiu rápido como a setta um vulto,
galgando pela encosta , e encaminhando a carreira
do cavallo para o lado da tenda real : o vigia que
velava á entrada chamou os demais guardas , que
eram ajienas alguns velhos cavalleiros pousados e
um troço de besteiros do burgo.
O vulto era um homem d'armas : — parou a cer-
ta distancia da tenda , e bradou aos vigias :
«Dizei á illustre preslameira de Itravaes , á no-
bre esposa do alferes-mór de Portugal, que seu ma-
rido e senhor lhe ordena se dirija ao mosteiro do
burgo de Guimarães, onde ao anoitecer o achará
esperando. Sem réplica, e sem tardança deve cum-
pri-lo , porque a lide perdeu-se e só desse modo se
l)odorã salvar, u
Ditas estas palavras o homem d'armas desceu
com a mesma rapidez o outeiro para o outro lado.
Dulce que entre as demais damas de D. Thereza,
era a única tranquilla, porque para ella já não ha-
via na terra nem temor nem esperança, ouviu o bra-
dar do mensageiro. Pareceu-lhe conhecer a voz que
bradava; mas logo rellecttinque era illusão. Essa
voz não podia chegar até aquelle logar , porque a
abobada de um cárcere a abafava , e porque simi-
Ihanle mensagem repelida por tal boca seria mons-
truosidade impossível.
Entretanto o cadáver de Garcia Bermudcz fora
collocado entre dois renques de brandões acecsos
no meio da nave principal do templo de S. Salva-
dor. Alem das grades, que segundo o antigo costu-
me separavam acapella miir do corpo da igreja, os
frades psalmeavam as orações da tarde. Subitamen-
te um cavalleiro com as armas rotas e cobertas de
pó entrou , e íeguindo por unu das naves laleraes
o PANORAMA,
2Í5
foi cncostar-sc á ultima colnmna junto do cruzeiro.
Apenas o divisou, Tr. Hilarião desrer.rfo da sua ca-
deira onde presidia ao coro, fez sigiial para que se
abrissem os ranrellos de ferro , e encamiuiiou-se
para o recem-chegado.
F.iliarain a sós largo espaço : o que disseram ne-
nhum monge pode perceber ; mas notaram que o
ahbade ao relirar-sc trazia os olhos arrazaiios de ia-
sçrymas. O cavalleiro conservava-se encostado a co-
lumna sem movimento, simillianto ao cadáver que
jazia no féretro coUocado no meio do templo.
I'assou uma hora. Ã noite tinha desciílo : — a luz
Taricgada das vidraças não se repintava já nas al-
vas lagens do pavimento. Fr. líilaruio , acabadas as
orações, cham.ira para junto de si os monges, a
quem ordenou o que quer que fosse : alguns sahi-
ram , mas não tardaram a voltar : (js outros torna-
ram aos seus stallos ou sedes, onde assentados cabis-
baixos e de braços cruzados pareciam, no volver de
quando cm quando a cabeça pura o cruzeiro, espe-
rar algum acontecimento extraordinário.
jNo ambilo da igreja silenciosa ouvia-sc apenas o
respirar constrangido e violento do rcccm-vindo , c
.is vezes o crepitar das tochas que ardiam ao redor
da tumba.
Este silencio , porem , qnebrou-o nm tropear len-
to de cavallos soando do lado dagalilé ou alper.dra-
da que rodeava exteriormente o edifício, e que se-
gundo o costume da epocha servia de cemitério ao
mosteiro. O ruido approximava-se cada vez mais ,
até que finalmente parou junto das portas abertas
ainda de par cm par.
Ihna dona com a cabeça coberta d' um véu bran-
co , seguida de um pagem que trajava as cores do
alferes-raór (íarcia Bermudez , entrou , e chegando
ao meio da nave principal correu com os olhos aquel-
las arcarias : a igreja parecia deserta , e apenas o
habitador do féretro que cila via perlo de si, espe-
rava solitário o instante em que o deitassem no seu
leito de pedra. Uma la.mpada baça pendente sobre
o altar mor dava uma claridade moribunda, que se
perdia no ambiente , e não deixava enxergar atra-
Tcz dos cancellos, os monges, vestidos de coguUas
negras, que se conservavam assentados nos teus
síallos em completa immobilidade.
Inútil é dizer ao leitor quem era a dona, qne en-
trara : — elle o adivinhou já. l)ulce obedecera á men-
sagem de seu marido e senhor sem alegria e sem
mágua , sem confiança e sem receio, — sem querer
recordar-se do passado , sem pensar no futuro : a
sua alma tinha-seabslrahido da vida : assuasacções
eram uma espécie de somnambulisnio , ou antes os
movimentos involuntários de um cadáver galvanisa-
do. A solidão da igreja , os medos da noite , a pre-
sença de um morto não acharam já naquelle cora-
ção triturado um sentimento de lenor que desper-
tassem. Voliou-se para o pagem e com voz socega-
da , disse-lhe ;
«Meu senhor ainda não veio. Ide espera-lo lá
fora, e quando chegar dizei-lhe que Dulce cuni[)riu
á risca — sem replica e sem tardança — a sua men-
sagem. Elle foi quem tão somente se demorou.»
E o pagem sahiu ; e Dulce ficou era pé , com os
braços pendentes e os olhos fitos na tumba : os seus
joelhos não se dobravam, porque o orar não lhe tra-
ria a considação. .\as desditas communs da existên-
cia o espirito busca a Deus ; mas a sumraa desven-
tura é Ímpia e incrédula — mais que a plena felici-
dade.
Também ser-lhe-hia impossirel orar. Ouviu uns
passos qne davam nas lagens nm som metálico. O
reccm-vindo encaniinliava-se para alli vagarosamen-
te. Dulce não mostrou um só indicio de susto: des-
pregou os olhos do féretro ecravou-os nodesconhc-
cido , com semblante sereno.
O cavalleiro chegou ao pé da nobre dama. Ella
sentiu a sua luva do ferro segurar-lhc o braço; mas
a mão que o segurava não sentiu esse braço tremer.
(Ainduziu-a até a borda da tumba, c parando apon-
tou para esta :
« Dorme o somno do verdadeiro repouso — disse
Dulce sorrindo. — Quem inedera dormi-lo tambcni '.
— SIas para que nic trazeis aqui? Quem sois viis
que vos atreveis a pôr mãos na mulher do alfercs-
mór de Portugal, que espera no logar por elle apra-
zado, a vinda de seu marido?»
n !".teri!0 que fosse o teu esperar seria inuíi! : —
respondeu o cavalleiro. Elle te precedeu aqui. Fui
eu que o guiei ; cu que cm nome delle chamei sua
mulher; eu que os quero ver unidos. Eis queci cu
sou : eis onde elle está.»
E puxando com força o panno negro de tumba ,
o cadáver de Garcia Ucrmiidez com a sobrcvosle
ainda ensanguentada , e cora os oliios baços feroz-
mente abertos, appareccu diante de Duke.
A desgraçada conlemplou-o por alguns instantes :
depois fitou avista no cavalleiro : duas lagrymas
cahiam-lbe em lio pelas faces. Insensivelmente ajoe-
lhou com a cabeça encostada ao féretro , e o mur-
múrio que sussurrava nos seus lábios era similhan-
tc ao ciciar de ténue aragem passando na seara ma-
dura. Orava emfim : o sentimento de piedoso dever
sobrevivia ainda naquclle coração , apparentemenlc
morto para todos os affectos. Ao gesto denuidado do
cavalleiro lampejou furor infernal ao ver Dulce na-
quella postura , ao ouvir as orações que murmura-
va. Segiirou-lhc de novo o braço tentando ergue-la,
mas Dulce alçou de novo os olhos para élle, e dis-
se-lhe com voz branda e meiga :
«Egas, porque não resais também por Garcia
Bermudez? — Era um nobre e generoso cavalioiro
aquelle que o destino quiz fosse meu senhor e ma-
rido, jlorrcti defendendo sua rainha ; Deus ha-de
amercear-se delle , se vós lhe perdoardes como eu
lhe perdoo o mal que involuntariamente nos fez : a
desventura de que teceu os dias da nossa vida.»
« Xera eu lhe perdoo , nem Deus se amerceará
delle: — atalhou o cavalleiro com um sorriso atroz.
Não I Para elle não ha céu nem esperança I Morreu
impenitente e maldito. Digo-lo eu que o rnaiei. —
Ouves, mulher de Garcia? Fui eu que o matei I
Era uma lide medonha '. — medonha ! Jogávamos al-
ma e corpo. Ooando um golpe me rompia asarmas,
eu sentia o seu odiu in)placavel viver ainda no gu-
me do ferro que me sulcava os membros ; eile de-
via sentir \iver-me ódio nos fios da minha acha
d'armas. Teu marido , n)ulhcr do estrangeiro , per-
deu o lanço : vacillou e cahiu. Não me peças que
ajoelhe agora : — ajoelhei enlão — sobre o peito del-
le que arquejava . . . Foi para o assassinar ! — Era
um ajuste entre nós . . . ajuste feito sem palavras;
porque de palavras não se precisava ahi. Viuva do
aragonez , amaldiçoa o assassino de teu marido , e
não rezes pelo condemnadu : as porias do inferno
não se abrem cora orações. Trocou o leito da noiva-
do pelo dos tormentos eternos aquelle a quem te
prostiLuisle : deixa-o lá repousar, e não mistures
um pensamento do céu na abominação da nossa exis-
tência. »
O respirar de Dulce era agitado, e o rubor febril
246
O PANORAMA.
tingiu-lhe as faces em quanto o cavalleiro fallou :
depois erapallideccu pouco a pouco, e cm lom qua-
si imperceplivcl respondeu :
«Deus te recompense, Egas , pelo bem que me
fizeste com essas palavras! Atua imagem estava
gravada na rainha alma pura , santa , formosa : era
um laço indissolúvel — o ultimo laço que a prendia
ao meu negro viver. Debaixo da lousa não podia
■vè-la e adora-la, porque lá o dormir não tem so-
nhos. Turbaste essa imagem com o lodo de ura as-
sassínio ; com a tua primeira covardia. Posso agora
morrer. Só te peço que te aíTastes , para te cu não
ouvir nem ver .... Deixa-me expirar abraçada com
a memoria do passado : com a lembrança do nosso
amor innoccnte : deixa-me até o fim amar o meu
Egas : deixa-mc esquecer de li, que não es já elle !
Egas , meu querido Egas . . . alTasta daqui esle ho-
mem vil e perverso , que ousa dar á tua Dulce o
nome de mulher perdida I . . . . Vem .... oh vem
.... meu Egas ! »
E a malaventurada, deliranlejá, estendia os bra-
ços para a imagem de Egas, que ella via dilTeren-
te do que tinha ante si. Era o seu anjo da guarda
que se librava nas azas de fogo para guiar aquclie
espirito tão bello e meigo a refrigerar-se de tantos
raarlyrios no oceano das consolações eternas.
«Oh, tu amas-me ainda ! — bradou o cavalleiro
com uma alegria plircnetica e selvagem. — Bem !
I.evantar-se-ha uma barreira de bronze entre mim
e ti , que anniquille o derradeiro clarão da espe-
rança, se me conheces tão mal, que ainda na alma
te possa restar um vesligio de esperança, ilorrer '
— Tensrasãol — A minha amante polluida não pô-
de ficar na terra. Osepulchro é o crysol que te ha-
de tornar pura. Jlorre, queeu te seguirei em breve. »
Estas ultimas palavras restrugiram como um do-
bre nos ouvidos de Dulce. O cavalleiro affastou-se
rapidamente , e chegando ao cruzeiro gritou :
«Eis-me aqui meus irmãos!»
O altar mór illuminou-se de súbito : os raonges
sahirara dos seus stallos onde pareciam adormeci-
dos. Aquellas duas fitas negras ondearam movendo-
se para os caucellos abertos de par em par. O ca-
valleiro entrou, e por meio das duas fileiras do fra-
des , approximou-se do altar, junio do qual o ve-
lho abbade resava as orações marcadas no ritual
benedictino para uma profissão monástica.
Acabadas estas, o órgão rompeu umas toadas
tristes , e os còVos de monges resaram successiva-
niente os sele psalraos penitenciaes.
Depois seguiram-sc mais orações murmuradas com
voz débil por Fr. ílilarião sobre a cabeça de Jígas
curvado ao pé do aliar.
E no fim delias um monge tomou da credencia
uma cogulla, em quanto o abbnde arrancava ao ca-
valleiro a pnlirevcsle branca franjada de ouro, en-
nodoada ainda do sangue dellc e do sangue deíiar-
cia lícrmudez. A negra cogulla a substituiu então
cabindo como um sudário sobre a cabeça do novi-
ço. O som do órgão havia cessado.
Mas um grilo agudo e rápido, c um pequeno ba-
que no pavimento da igreja soaram como duas no-
tas mais tardias daquellas tristíssimas toadas. O an-
jo da guarda de Dulce voava para o céu atravez
das solidões do espaço : uma alma o acompanhava.
No outro dia scpultavam-sc em duas sepulturas
ilivcrs;is na galilc do mosteiro de D. Muma o alfe-
res-mór da rainha D. Thereza c sua nobre esposa
a herdeira dos Lravaes , que expirara de dòr , se-
gundo se dizia , ao pé do féretro de seu illustre e
valente marido , morto no batalha do campo de S.
Mamede.
Gonçalo IMendez da Maia , tenente por Aflbnso
Ilenriquez do castello de Guimarães, e o abbade
de S. Salvador, assim o haviam ordenado, separan-
do na morte aquelles que a benção do sacerdote ti-
nha unido para sempre na vida.
Foi um pequeno escândalo era que as beatas do
burgo fallaram muito, com variados commentarios.
Um noviço do mosteiro que ninguém conhecia
appareceu morto ao romper d'alva do terceiro dia
sobre a lousa da sepultura de Dulce. IVa face da
pedra tinha escriplo duas compridas trovas , que
um monge curioso copiou n'um pergaminho que
guardou no cartulario do mosteiro, onde ainda no
decimo-scxto século se conservava. Quem as quizer
ler procurc-as na Jliscellanea de Miguel Leitão de
Andrade.
Foi caso em que todos scismaram.
Provavelmente o leitor deseja saber o que foi fei-
to de D. líibas , e das mais personagens desta im-
portanlissima e mui verdadeira historia. Dir-lh'o-
hemos cm breves palavras.
A rainha e Fernão Peres , do castello de Lanho-
so , aonde se haviam acolhido, se deram a partido
ao infante , que ahi os tinha cercado. D. Thereza
apenas sobreviveu dois annos , e o conde regressou
a Galliza ao solar de Trava , que herd<íra de seu
pai.
D.Bibas reconquistou a paz d'espirito com o gos-
to da vingança ; e ainda por muitos annos alegrou
os sare-ius de seu senhor D. Affonso. Morreu velho,
deixando o importante cargo que exercitava aos dois
celebres Iruões deD. Sancho 1.° — Bonamis cAcom-
paniado.
Gonçalo Mendez tornou-se cada vez mais famoso
por inauditas façanhas contra a mourisma , até que
expirou ás mãos dos sarracenos no recontro de Be-
ja , como já de outra voz vos havemos contado.
O reverendo Eicha Martim voltou para a sé de
Lamego, porque ninguém fez mais caso dellc na
corte , nem para bem , nem para mal. Lá comeu ,
bebeu, dormiu c rezou — umas vezes pelo alcorão,
outras pelo breviário.
O bom de Fr. Hilarião foi apagando como pôde ,
nos lautos banquetes de Aflbnso ilenriquez, as sau-
dades de Egas ; mas as diligencias que fazia para
esquecer sua magua custaram-lhe a vida. Morreu
de uma indigestão de dobrada, como alguns annos
antes morrera o gordo bispo de Santiago, o vene-
rável Ermegildo.
Deus SC lembre de suas almas.
(A. Herculano.)
Jogos de força.
Esta classe de divertimentos é de mui remota anti-
guidade , e vè-se frequentemente executada nas ci-
dades i)opulosas onde ha maior numero de curiosos
(' ociosos, que favorecidos de músculos rijos e or-
ganisação alhlctica expõem mil vezes a vida , uns
liclo aían de brilhar, outros para ganhar pão. Nas
praças publicas d' Athcnas e lloma havia como nas
modernas siinilhantes espectáculos, e os miseráveis
histriões que os desempenhavam pediam cm vez de
dinheiro uma ou meia hora do altenção : já nessa
o PANORAMA.
^47
era SC fazia a chamada torre de homens , célebre
peJa difliculdade c perigo , e cm que os chins le-
vam sobre outras nações a primazia. — Afigura mos-
(rada na gravura inclusa foi desempenhada n'umthc-
atro de l'okim, e recebida com geral acceitação as-
sim de naturaes como de eslrangeiros ; os velhos ,
costumados a taes espectáculos , confessaram que
não tinham visto cousa mais perfeita. l'or certo que
rauita destreza é precisa para se encarapitarem ho-
mens uns em cima de outros e formarem perfeita-
mente pyramidcá , castellos , pontes e outras figu-
ras ; que se punham em pratica antigamente por es-
ta maneira. — Quatro homens vigorosos se postavam
iim em frente d'outro e se agarravam fortemente pa-
ra construir a base do edificio , outros dois subiam
aos hombros destes , e sobre elles ia o terceiro , c
ainda sobre o terceiro o quarto , que de tão consi-
derável altura tomava outro que escolhiam de pou-
cas carnes c maçara, colhendo-o d'umrepellão ; fa-
zia-o girar por cima da cabeça , sustinha-o á força
de pulso durante alguns minutos em postura ridí-
cula ; e o que isto fazia, firmado só no pé direito,
meneava cinco ou seis vezes o pobrete e atirava
com elle á turba, que o aparava com risadas c al-
gazarra : não se sabe porem se oqiie servia de pélla
ficava ou não estropeado na maior parte dos casos.
vê , pelos preceitos da arte , mas cslá longe de ter
como a chim o perigoso mérito da torre de fnrfas.
Os chinas sobresahcm nestes jogos c p\\.'rcicios por
sua intrepidez e destreza.
Addisson refere que em suas viagens pela Itália
assistira a um espectáculo muito acceito emA'eneza
e peculiar desta cidade. Dma quadrilha de aldeãos
figuravam, sobre umas grandes taboas que em seus
hombros suslinham, uma pyramide perfeita, que
contava até seis corpos em altura : o peso era tão
bem repartido que nenhum se podia queixar. As ca-
madas da pyramide iam , como devia ser , cm gra-
dual diminuição, coroando a cúspide um rapaz que
quando lhe parecia deixava-se escorregar destra-
mente , e baixava rodando por aquella torre viven-
te, que estendia seus muitos braços para recebê-lo.
— .\ pyramide veneziana é construída , ao que se
O CEGO PEREGRINO.
[Conclusão.]
Corre a noite triste e fria,
E quer o fado mofino
Que a inexperta donzella '
Vá guiando o peregrino.
Seguem por ásperos trilhos ,
Já das serras estão fora ,
Entram na vasta campina
Quando assoma a luz da Aurora.
Chegados são a estrada ,
Inda a esse tempo deserta;
t. preciso que a um cego
Se annuncie a rota certa.
— Vai sempre — lhe diz a guia —
Encostado a este muro :
Se a direita não deixares
Chegas a porto seguro.
— Menina, tão cedo é
Que inda não me atrevo só ;
Não me desampare aqui ,
Do ceguinho tenha dó.
— fyão tardarão passageiros,
A carreira c frequentada :
Poderás ir perguntando
Rumo da tua jornada.
— Quem madruga a estas horas
Leva pressa ou tem niáu fim ;
Como nutrirei esp'rnnças
De que tenham dó de mim?
— Consinto ainda guiar-te
Té que o sol doure o horisontc ;
Por ser caminho de casa
A encosta daquelle monte. —
Poucos passos eram dados ,
E as vozes de cavalleiros
Desinquietavam os echos
Dos circumstantes outeiros.
O tropel avisinhou-se ,
O maioral conheceu
O cego fingido e falso ,
E para elle correu.
— Boa prêa , senhor , tendes ,
Destes mate a gente esperta ;
Juro que vai a manha
Mais que a força descoberta. —
Co encontro subitaneo
A donzella desatina ,
Entrevê , mas horrorisa-a ,
Sorte que se lhe destina.
O rubor lhe abraza as faces ,
Ostentar força parece ;
Passa o colérico impulso ,
Descorada desfallece.
Quem te dissera que a velha ,
Em que a mãi teus olhos viam.
Era uma mercenária
Que teus pais mal conheciam.
Fructo d'amor clandestino ,
Fostes em serras criada ,
Tendo de pisar palácios.
Nobre e opulenta morgada.
24«
O PANORAMA.
Qtiando leu pai procurava
Chamar-le filha querida
, Presumplivo herdeiro iritenla
Koubnr-le os bens e a vida.
Mas o céu , que sempre acode
A innocencia indefcnsa ,
Serviu-se para o castigo
Do mesmo acto (la olTensa.
Criado do conde velho ,
Que ia na escolta assassina ,
Se encarrega do transporte
Da desditosa menina.
Escuso trilho lhe indicam,
Porque sem ser visto vá
Onde o roubador a salvo
Leve a elícito a tenção má.
Designios de quem o manda
O conductor não sabia :
Mas qi'e os lius eram sinistros
Velos actos descobria :
Reparando com mais tento
Para as feições da donzelia,
Percebe que com seu amo
Muito se parece ella.
Lcmbra-lho uma historia antiga.
Que em segredo se contava ,
De circuinstancias incertas
Jlas que ao conde respeitava.
Pensa um pouco e emlim rcsolte
M':d:ir rumo e sem detença
Apprescntar a roubida
De sen amo na presença.
Entram salas de palácio ;
E o conds se marsvilha
De caso tão imprevisto
Que lhe reslitue a filha.
Relatara o fiel servo
O successo extraordinário ;
Como livrara a menina
Dos furores d'um falsario.
Breve a donzelia traja
Galas cm vez do saial ;
Obeuecida de lodos
Sob o teclo paternal :
O traidor que os bens e vida
Arrancar-lhe pertendeu ,
Temendo a ira do conde
De todo desappareceu.
lá vai expiai a culpa
Vagabundo e loragido ,
Talvez falho de recursos
Acabar como um mendigo (•).
A DonaiiDEiRA e Ópio.
A Dormideira branca é aquclla de que se exlra-
hc o ópio. Tournefort couta que a seuieam cm mui-
tas proviíicias da Ásia , como nós semeámos o tri-
go. Os seus caules são de altura de trcs ou quatro
pés , direitos , ramosos , guarnecidos de folhas ob-
longas , largas , scrreadas , e de còr vcrde-mar cla-
ro : as Dores postas na summidade , são em forma
de rosas , grandes , e ordinariamente compostas de
qualro pétalas brancas : o fructo , que lhes succe-
de, é uma capsula ovada que tem urna só válvula,
e muitas cellulas por dentro, coroada de uma ro-
della cslrellada , e que contém um grande numero
de sementes pequenas redondeadas , brancas . de
(•) Eiitá a (iiuBeira parte a pat'- 3ã.
gosto doce , oleoso , e farináceo ; por baixo da ro-
dclla ha muitos furos, e por elles sahein as semen-
tes. Toda a planta estando verde está recheada de
um sueco lácteo, amargo, e que lança um cheiro
desagradável. Semea-se uo levante, como dissemos,
em campo aberto. Mal que as cabeças apparecem ,
faz-se-lhes uma ligeira incisão , c por aqui escor-
rem algumas gotas de um licor lácteo , que se dei-
xa coalhar , e se recolhe depois. Esta substancia
prepara-sc então humedecendo-a com agua, ou mel;
remecbendo-a por muito tempo em uma gamella de
páu bem liso , com uma espátula forte até que ad-
quira a consistência do pez; fazem com ella peque-
nas pastilhas, e este é o ópio tão gabado pelos po-
vos do levante, lia outros dífTerentes modos de o
preparar, e lambem se faz delle bom licor. O ópio
do commercio é tirado por pressão das cabeças e
folhas da dormideira tudo junto ; é menos agradá-
vel do que o primeiro, e vem feito em pães do ta-
maalio de um punho. Esta mercadoria é da Nato-
lia , do Egyplo , e das índias: deve-se observar
que a nossa dormideira por nascer em climas mais
frios , não tem as propriedades narcóticas tão fortes
como as naturacs de climas quentes.
Os povos do levante tomam o ópio habitualmen-
te , e longe de solTrerem a menor consequência fu-
nesta, excita-lhes pelo contrario nas entranhas uma
certa sensação agradável : elle dissipa , como o vi-
nho . a inquietação e a tristeza ; acalma as enfer-
midades , reanima o corpo abatido , e dá vigor ás
pessoas sadias. Os turcos o tomam ao entrar nas
batal.ias , como os nossos soldados europeus bebem
aguóidcnlc para o mesmo fim. Tal é o efieito que
elle produz sobre as pessoas costumadas a toma-lo,
e que usam delle com moderação; mas este eITeito
c bem contrario quando a dose é mais furte, ou a
pessoa não está habituada; este sueco , narcótico
neste caso , no principio põe a pessoa de bom hu-
mor , d. pois faz bocejar , causa soluços , e excita
gradualmente a anciedade , o vomito, a syncope ,
a alienação de espirito, as vertigens, o riso sardó-
nico , a estupidez , a vermelhidão das faces , a in-
xação dos beiços , a difliculdade da respiração , o
furor, os suores frios, o desrallecimeulo, finalmen-
te um somno profundo , e muitas vezes a morte. —
O ópio entra no uso da medicina.
O mais admirável porem é , que a semente en-
cerrada nas capsulas, não participa de modo algum
das propriedades dos suecos da planta. Dá um óleo
muito bom , que , sendo novo , c quasi tão agradá-
vel como o da azeitona , e pode muito bem suppri-
lo quando este falta. Commumraente eiuprega-sc pa-
ra desencardir, pulir, e amaciar a pelle : os pin-
tores fazem grande uso deste óleo , a que muito
impropriamente no commercio chamam óleo de cra-
?'0í , ou cravinas. — Thcs. de Men.
Barbas rcclcsiasticas. — Alguns dos primeiros pa-
dres da Igreja tomaram a prática de rapar a barba
por indicio de vaidade. S. Clemente d'Alexandrra
escreveu que na barba crescida conlribuia para or-
namento dosiiomens como alrajiçapara a formosura
das mullicres. — O 4.° concilio carthaginez no câ-
non ii." ordena que «o clérigo não ponha olco nem
banhas nocabello, nem rape as barbas como ospro-
phanos. — Os padres do rito grego ainda usam bar^
bas compridas.
O AMOR produz mais hcroismo na> mulheres que a
aiubicão noii iiomens.
85
o PANOR.OIA.
249
MAI.AGA.
Pa assomada das collinas que circiimdarn a interes-
sante cidade de Málaga , a obra de duas Icgiias de
distancia , compraz-se o viajante na contemplarão
da magnifica variedade daquelles contornos. Paiz
rico, povoado e coberto de vinhatarias , olivaes,
amendoeiras, pomares d'espinho : o pressuroso mo-
vimenlo das aguas de vários ribeiros, que soltan-
do-se das alturas as cortam para todos os lados , a
formosa aggregarão da cidade que á maneira de
amphitheatro se eleva gradualmente em suave de-
clive sobre o rio Guadalmedina, ostentando uma
multidão de cúpulas e torres ; a magestusa Serra-
nevada, coroada de gelos, fechando o quadro; for-
mam um composto magico e diiricil de descrever.
— Circuitam a cidade Ires grandes arrabaldes com
eitensas e largas ruas e boa casaria ; de outras es-
treitas e mal calcadas se compõe o antigo recinto ,
algumas delias em torcicolos ; e as praças ou lar-
gos são acanhados; sem embargo do que o todo é
agradável pela disposiç.io da planta geral , policia ,
vista de mar e baixeis que o sulcam , pelo bello
porto onde muitos navios ancoram , pelos bonitos
jardins, hortas e plantios de arvores fructiferas ,
casas de campo. &c., e pelo seu elirna temperado,
âlmosphera limpa e sadia. Numera 7:000 edifícios,
pela terça parte de construcrão moderna. A mes-
quinha estructura das casas antigas contrasta so-
bremaneira com a formosa apparencia das posterio-
res e a boa architectura de alguns edifícios públi-
cos, como a Sé , a igreja dos Marlyres , o Uospi-
líl de S. Julião , S. Filippe Neri , e outros.
Agosto 12—1843.
A sé compõe-se de ires naves divididas por oito
pilares até o cruzeiro , e outros tantos que rodeam
a capella-mór. Estes pilares são grupos de colum-
n.is corinihias sobre seus pedeslaes. A fachada prin-
cipal é de diiis corpos com columnas de mármore ,
e seu frontispício não é muito elegante; tem duas
torres, uma de 105 varas castelhanas [mui pro-
xim. iO braças portiig.] , e a outra por concluir só
chega á altura da fachada. Nas outras duas porta-
das que correspondem aos braços do cruzeiro se
nota a demasiada profusão de folhagens e outros
que taes ornatos , bem como no interior do templo.
Os cantos do pavimento, as columnas dos pórticos,
seus adornos, os púlpitos, e balaustres, são de
mármores e jaspes, extrabidos do território daquel-
la comarca. A Diogo da Silva se attribue a traça
da obra, ainda que só consta que teve principio em
22 de junho de 1522: tardou muito a rematar-se ,
do que procederam notáveis alterações em sua pri-
mitiva planta , visto que fora dirigida por diversos
mestres ; conhece-se todavia que a intenção do pri-
meiro fora edificar pelo molde da cathedral do Gra-
nada.
Muito nos estenderíamos se quízcssemos noticiar
as bcllezas dos demais edííicíos públicos, tanto sa-
grados como prophanos ; todavia não deixaremos de
mencionar alguns , laes como , a alfandega . magni-
fico palácio, de obra moderna , que acredita o ar-
ehitecto D. Manuel Marlim Rodrigues, e em que
se tem gasto acima de um milhão de cruzados.
Também devemos citar o collegio de San-Telrao , a
2." Serje. — YoL. II.
250
O PANORAMA.
casa do Consulado , e o paço episcopal , todo de
cantaria c de boa architectura. O iheatio foi diri-
gido pelo romano ílasoncsqui , que lhe deixou de-
corações de muito hom gosto. O passeio da Alame-
da está situado entre os mais sumptuosos c commo-
dos cdificios da cidade e próximo ao porío , afor-
moseam-no ura excellcntc chafariz e muitas esta-
tuas |)or entre o arvoredo, nem faltam os bancos
de pedra; é um dos vistosos da Hespanha.
O porto de Málaga c talvez dos mais interessan-
te;; do Mediterrâneo , quer pela concorrência de
embarcações , quer pela visinhança do Estreito e
servir de abrigo aos que fogem deste reinando tem-
poracs. ISa ponta do molhe antigo ha ura farol ro-
tatório construído pelo engenheiro Perri ; lodos os
materiaes que nesta obra cntrarara foram feitos em
Hespanha, como se Ic na inscripção sobre a porta ;
aceendeu-se a primeira vez em 30 de maio de
1817.
São justamente celebradas as producções do ter-
ritório de Málaga , particularmente fructas seccas ,
batatas, assucar , algodão, e o vinho de que faz
abunilanlcs colheitas ; modernamente o enriqueceu
mais a aclimalação da cochonilheira ; a canna doce
conimum e a de Otaiti dão-se como na America e
Índia , e do mesmo modo varias fructas do Novo-
nuindo . e o tamarindo ; algumas arvores d'Afri-
ca medram como na costa fronteira. Jiinte-sc a tu-
do isto a fartura e delicado sabor do pescado, a
brandura do clima , a actividade do commercio c
industria, o caracter alegre dos habitantes, e achar-
sc-ha que esta cidade é das privilegiadas no mun-
do para se desfruetarem os encantos da existência.
SaOlTOMIA POLITICA.
Considerações sohre n Curso d' Economia Politica do
Sr. Miguel Chcvalier.
QpALoiEn que a causa seja, é facto que se observa
hoje na Europa um crescimento de producção , e
uma tendência a crescimento ainda maior , tanto
na industria fabril , como na agricultura. Desle au-
gmento de productos era cada estado, e dos mais
essenciaes , nasce o ir diminuindo a necessidade
que cada um poderia ter de se supprir nos alheios.
K desta diminuição commum procedo que cada po-
vo vai progressivamente tornandu-sc o consumidor ,
maior e mais certo, dos seus géneros próprios, agri-
colas ou fabris. Obrigado cada paiz a contar [irin-
cipalmentc com o consumo interno , que hade lazer
senão engrandecer o horisonte desse consumo? E
eomo hade engrandece-lo senão aproveitando todas
as faculdades do homem , e todos os produclos do
solo.' As faculdades do homem de que maneira ha-
de aproveita-las se assim como as emprega na cul-
tura do solo, as não empregar nas artes fabris; eos
productos do solo se do mesmo modo que destina uma
parte delles .lo alimenlo , não destinar outra parte
10 consumo das fabricas? lima nova ollicina que se
levanta c uma nova sabida que se abre aos produ-
<-los agrícolas. Uma nova terra que se ara é um no-
vo mercado que se franqueia aos artigos de manu-
factura. Attende-se , desta sorte , ás diversas apti-
d<5es do homem , occupando-as a todas , c ás preci-
sões variadas da nossa espécie, crcando objectos
com que ellas se satisfaçam.
Deste cuidado e csludo , que cada nação applica
aos seus recursos internos , deriva o empenho com
que cada qual affasla dos seus domínios, para que
lhe não empeça, a concurrencia estranha. Tem , na
verdade, sido maléfico em muitos cpsos, a muitas em-
prczas , e a muitos ramos d'industria, este syslcma
de restricçõcs , esta politica repulsiva : e não se
aponta um único exemplo de ter sido proveitosa a
algum paiz, senão caminha escoltada de machi-
nas , de capitães, de mcthodos e instrumentos suc-
cessivamente aperfeiçoados, de muito discernimento
e perseverança : prova incontestável de que são es-
tes , não ella , os verdadeiros motores e a origem
directa de todo o progresso económico. Mas 6 fora
de duvida, que tem muitas vezes servido de auxi-
liar áquelles motores, c que sem esse auxilio, a
intervenção delles seria insuITliienle ou ineficaz. Que
sem restricções é impossível introduzir a industria
fabril em alguns paizcs , ninguém nega : afiirma-se
todavia que as fabricas fundadas cnm o favor d'uin
lai aitificii) abortam c são darnuosas á riqueza c
[)rosperiilade da nação que as protege. AllirmatÍTa
que na boca das que vivem da exportação dos seus
artefaclos, e portanto suspeitas e interessadas, é ar-
gumento de mais para nus convencermos — repito—
que sem a mediação, não digo do systcma reslri-
ctivo, mas de restricções temporárias, é impossível
erigir fabricas e sustenta-las em alguns paizes.
Oondemno as restricções como systema , como
principio, e como regra geral : o principio, o sys-
lcma, a regra geral opposta — a liberdade — é que
é verdadeira e genuina — a liberdade de exercer
qualquer industria , e de comprar e vender ou no
paiz ou fura delle. Mas para ser proficua esta li-
berdade , não hade parar no arbilrio absoluto que
corj ella se concede aos productores e consuraido-
dores , a uns de escolher o ramo indnslrial a que
queiram dedicar-se , a outros de se irem prover no
mercado qae mais lhes convenha que é sempre o
mais barato. Suppõe-se sempre que productores e
consumidores farão uso judicioso desse arbítrio , e
empregarão ao mesmo temjio meios e instrumentos
produclivos adequados; porque se os não empre-
garem, a liberdade, sem este adjutorio, c medida
vaã , faculdade inulil. O que se comprehende tão
facilmente , que demonstra-lo parece superUuo.
Posta a liberdade, assim enlendida , como regra
e systema, os limites á faculdade de produzir, c de
comprar evenderonde sequeira, constituem a exce-
pção ; de maneira que tamanho absurdo vem a ser ar-
vorar a excepção em principio , e as restricções em
systema , como decidir que o principio ou a regra
não solTrc excepções. Os que attribnem ás restricções
acreação e adiantamento da industria fabril, cahem
n'um erro grosseiro , se estimam de nenhum preço
as machinas que encurtam as despezas do fabrico .
abreviam e esmeram o trabalho , os capitães que o
nutrem, as vias de communicação outras tantas ar-
térias, por onde circulam os produclos : meios, en-
tre outros , indispensáveis e eíTieacissimos de pro-
ducção. Os que, ao contrario , reputam absoluta-
mente mallogradas ou prejudiciaes as restricções ,
rcluctam contra a experiência que os desmente :
mas por isso mesmo que cilas são a limitação re-
qiicr-se mais disccrnimcnlo no applica-las , e cor-
re-se maior risco de abusar.
Succede umas vezes que ao desleixo c desprimor
no fabrico interno se juntam direitos excessivos de
importação, e que, convidado por estes dois incen-
tivos , o contrabando atropclla lodos os obstáculos ,
c inlroduz por suas portas travessas os producto»
o PANORAMA.
2âl
estrangeiros cm tanta copia que as fabricas nacio-
nacs morrem do desamparo c inanirão. Siiccede ou-
tras vezes que a (alta de modelos e de conciirrcn-
cia estranha dcsestimula c descuida o fabricante
nacional a ponto que o consumidor , desgostoso ou
da imperfeirão da obra ou da exaggeração do pre-
ço, chama pela interferência do contrabandista ; cha-
niaracnlo ao qual nunca é surdo o contrabandista.
t mister bastante tino para não topar neste esco-
lho. SIas se o contrabando annullando a acção das
restricrucs pinle matar a industria fabril , a liber-
dade absoluta proscrcvcndo-as não será igualmenlc
assassina ?
Eu disse — note-se bem — que o contrabando an-
nulla a acção das rcstricções ncsle sentido — qitc
elle r o agente , por cuja intcrvctiíâo entram no mer-
cado nacional os artigos estrangeiros , que se deseja-
vam afugentar do mesmo mercado. Mas se eu atten-
lo na causa primaria que traz a esse mercado aqucl-
les artigos, então digo que no menos preço dos ver-
dadeiros motores da industria fabril , está , na rea-
lidade , a origem da desvalia dos productos nacio-
naes , e da voga dos que o não são. Considerações
simples e evidentes a mostrar por um lado que os
instrumentos produclivos são a condição essencial
da existência das fabricas, e que as rcstricções não
passam de expediente , necessário certamente , mas
occasional e temporário ; e por outro lado , que se
estas não são recursos como os outros , genéricos e
permanentes , nem por isso se pôde negar a sua in-
fluencia no estabelecimento e progresso das fabri-
cas ; pois a confirma-la basta o impulso uuinen-
so que deu ás de França o bloqueio continental ,
que vedando ás mercadorias inglezas a entrada
em França , na Alemanha , e na Itália , abriu lo-
do este vasto mercado aos productos da indus-
tria franceza. E se me oppozerem que esse impul-
so foi devido á abolição das mestrias e regulamen-
tos que entorpeciam o desenvolvimento da mes-
ma industria , confessatei que é verdade , mas
que o bloqueio continental concorreu juntamente
com aquella abolição, cada qual por estylo c grau
differente , para tamanho progresso. Accrcscentarei
que os obstáculos que esse bloqueio póz á importa-
ção do trigo estrangeiro na Inglaterra forçaram a
cultivar as terras , aguilhoando , como confessa um
dos mais distinctos economistas daquella nação , a
agricultura ingleza a ponto de refazer a distancia
que tinha perdido, e marchar em linha com as suas
rivacs. E se me instarem que sommados os ganhos
das nações que lucraram , e as perdas das que per-
deram com o mesmo bloqueio , o resultado mostra
uma diminuição na riqueza universal , concederei
de barato esse resultado : mas lembrarei que cada
povo , como associarão separada de outros povos ,
avalia a bondade das suas medidas económicas pe-
lo interesse que delias lira , e não pelo damno que
as mesmas medidas causam ou podem causar a ou-
tras nações. E que se quando um paiz medra em
prosperidade á custa de outro paiz e com detrimen-
to delle , a 7nassa geral da riqueza não augmenta e
até pude decrescer , ainda que fora melhor para o
género humano que o beneficio alcançado por um
fosse de natureza a communicar-sc , mais ou me-
nos , a todos os outros , como succede nos aperfei-
çoamentos industriacs, nem por isso se hade dizer
que o estado que se fortalece c lucra accidentalmen-
le com o abaixamento de outro eslado , deixe de
fortalccer-se e lucrar, como lucrou iVança ao abii-
gu do bloqueio cuntineDlal.
Ê que os aperfeiçoamentos industriaes são con-
quistas do homem sobre a natureza , e os seus se-
gredos — conquistas com que a humanidade apro-
veita ; em quanto as de um povo sobre outro po-
vo ou seja do território arrancado violentamente
pelas armas, ou de mercados havidos com a mes-
ma violência , e resguardados por linhas de alfan-
degas, são, como os roubos e os ganhos ao jogo ou
pela fraude, mera transferencia de riqueza das mãos
do espoliado para as do cspoliador. Ksle utilisa ,
mas na aciepção económica e rigorosa do vocábulo.
não produ: ; porque a [)roducção pertence somente
ao trabalho industrioso, e a oulra ordem de luctaí
diversas das luclas niarciaes ou politicas. È que na
csphera da economia politica o homem combate so-
mente com a matéria c o mundo exterior , e na cs-
phera da politica c da guerra o homem combate
com os seus similhantes. Estes combates differen-
çam-se , estas espheras estão separadas : mas não v
tal a separação que no caso de se julgar indispen-
sável uma guerra cujas armas sejam as pautas, e
baluartes as alfandegas, não releve convocar a con-
selho a scicncia económica para que ella opine ate
onde se ha de levar essa guerra , e até que ponto
se ha de prolongar , para que d'ahi colha um po\o
vantagens análogas ás que os meios económicos «■
os instrumentos produclivos, pela sua iudole huma-
nitária, liberalisam a todos os povos. O desideran-
dum da sciencia, a theoria das sabidas e mercados
é substituir a estes artificios administrativos os agen-
tes da industria , e Irocar estas manobras do egoís-
mo nacional por doutrinas largas e sociacs de fra-
ternidade entre todas as nações , e por um regime
de franqueza e liberdade commercial. Mas é forço-
so remetter ao futuro a resolução completa d'esía
questão , já que o estado presente a não compade-
ce , e deixar ás nações grandes edisciplinadas nas
artes da industria a iniciativa em reformas tão ex-
tensas , e mudanças tão prufundas.
Porque temos já interessados nas fabricas uma
porção considerável de braços e de valores. Porque
ellas podem convocar os capitães que se acham emi-
grados em bancos estrangeiros. Porque afiançam á
agricultura novo consumo tanto dos géneros alimen-
tícios, como das matérias primas. Porque a marcha
da producção na Europa , e a exjieriencia de caía
nos mostra ser o reino o melhor o o principal con-
sumidor dos nossos productos agrícolas. Porque não
deparámos na exportação, que cm laes circunisían-
cias podemos fazer, equivalente, que nosresarça da
perda das fabricas. Porque ellas manifestam ten-
dência muito positiva a propagar-sc. — Por estas
que nos parecem rasões cabaes , sem amontoar ou-
tras , concluimos que havemos mister industria fa-
bril tanto como precisámos vestuário e mubilia. A
nossa opinião n'esta matéria, é tão arreigada, a nos-
sa convicção tão profunda , e esta necessidade na-
cional nos parece de tal modo clara e patente que.
cm verdade, olhos que a não vejam, entendimentos
que a repugnem, consciências sinceras que a resis-
tam, cusla-nos a conceber como as haja. .\ão é por
antepormos as artes fabris á agricultura ^ — -preferen-
cia cerebrina e insensata, e simulação de rivalidar-
de onde o que deve haver é consorcia. Não ó porqiw;
podem subsistir GOOO habitantes quando se dedicam
á manufactura na mesma kgua quadrada em que
apenas podem alimenlar-sc ISOO quando se empre-
gam na lavoira : verdade eslatistica compleíaraenie
inútil, ao menos por longos annos para nós, — cujo
terreno sobra tajito a população. Não I £ que quando
252
O PANORAMA.
eorreumpaiz agricultado, ©observador não se con-
tenta com a pompa e o verdor dos campos : admira os
dons da natureza na vegetação; mas quer também
admirar os milagres do engenho no interior das fa-
bricas. N'cstes pequenos recintos da industria —
pequenos em proporção dos vastos laboratórios d.i
terra — é o trabalho muito maissolerte, a arte mui-
to mais esmerada , a producção muito mais activa ,
e é n'elles que tem o seu verdadeiro assento o im-
pério do homem. Quantos recebem lá oscilo social
quantos productos do solo e da creação que sem es-
se sèllo nenhum valor e quasi nenhum préstimo te-
riam , as madeiras , as laãs , o linho , o ferro , c o
algodão ! lembra-rae sempre, não sei porque , sem-
pre que ouro Inglaterra aconselhar-nos a nós e «o
resto do continente que desistamos da industria fa-
bril, aquelle impagável Roberto de Limoges , bispo
de Litchfield que pelos annos de 1071 a 1072 pu-
blicou ura decreto prohibindo aos clérigos saxões o
uso dos alimentos nutrientes, c dos livros instru-
ctivos, com receio, diz o historiador, de que o
bom alimento e a scicncia lhes dessem demasiada far-
ia c atreiimenlo contra o seu bispo!
_ (ContinuaT-se-ha.J
A. d' O. Marreta.
A ASSUMPÇÃO DE N. S.r-^ — SEGUNDO A GRAVURA DE FINIGUERRA.
O PFIMEIBO IMPBESSOn DE GRAVIRAS EM METAL.
Na epocha do renascimento das artes na llalia não
se limitavam os ourives, (dino ao pre.soute , a fa-
bricar trastes de ouro e pr.il.i para os usus ordin.i-
rios da vida , mas desciiliavam , esculpiam , cinze-
lavam e gravavam , fazendo obras de mui variada
espécie e destinos , para o que modelavam em ce-
ra as peças que intentavam. A nossa inlinção ago-
ra é considera-los no exercício do gravadores nesse
tempo. — Tendo traçado o seu deliiixo a ponção e
buril n'uma chapa metálica, usavam, para que so-
brcsahisscm as figuras, linhas cruíadas nos fundos,
e alguns cortes nos logares sombreados , cujo elfei-
to era dar mais esplendor aos ornatos de prata em
relevo. Como este artefacto principiou na Itália ,
chamaram ;i operação niellarc (esmaltar] , donde
veio a palavra nicllo. Abrindo-se qualquer diccio-
nario italiano \v basta o excellente de Joaquim Jo-
sé da Costa e .Sa] achar se-ha que nicllo significa
esiniilte feito em ouro , ou prata , ou (/uaiqucr meldl.
Mas como esta voz se applicou indifterentemente a
quatro cousas, que não obstante a reciproca e in-
tima relação não devem confiindir-se , daremos al-
gumas explicações. A principal c a composição que
furmava o esmalte preto que apontámos. Quando o
artilice queria esmaltar [empregaremos sempre es-
te verbo] a obra ccmcluida a buril , deitava n'um
cadinho cobre , chumbo , enxofre , liorax , até que
SC vitrificassem , decantava o inixto e deixava-o es-
o PAlNORAi^lA.
253
íriar : pisava depois a massa vitroa rhcgando-a a
pó íinissimo ; com cxlrcnia prciaiirão o esparzia
sobre as partes gravadas <la Inmiiia de praia que
perlendia esniiiltar : fcilo n que, e\punlia a ciiapa
ao lume , dirigindo para ella a ciiamnia por meio
de um iiequeno folie , operarão que hnjc se faria
com um mirarico. Posto no>auienle cm fusão o es-
malte adlicria ao metal seg;iraiulo-sc nas miiiiinas
escabrosidades da gravura : esfriada a lamina, pas-
sava-se primeiro com a pedra pomes, depois com
malcriaes mais brandos e por fim com a mão so-
mente, até ficar completamente burnida. — De tem-
pos remotos foi conhecido este mclhodo em Fran-
ça ; c iJucange no Glossário o descreve , ainda que
brevemente.
Mr. Dichcsne sénior , conservador do gabinete
de estampas na biblioibcfa real em l'arís , publi-
cou em t82(> o Enmin sabre as esmalles , onde ob-
serva q\ic não permittindo aquella operação reto-
que ou repar.ição , era preciso que o artífice esti-
vesse bem certo de que o trabaibo eslav;i bem con-
cluído antes de lançar a composição sobre o me-
tal , por isso estava na precisão de tirar provas re-
petidas para avaliar o progresso da gravura , va-
lendo-se ao principio d'uin barro fino e compacto
i[\\c absorvia facilmente a tinta negra e espessa
com que havia procurado encher os traços ; e as-
sim extrahinm provas do seu trabalho: mas estes
moldes tinham o inconveniente de serem mui que-
bradiços , e então occorrcu fazereni-nos de enxo-
fre assentado sobre o barro. — .\gigantado foi o
passe de perfeição quando em vez destas segundas
se conseguiu tirar provas em papel : viu-se por tal
occasião a primeira estampa , e estava descoberta
a industria de imprimir com uma chapa de metal
gravada. Sem entrarmos em disputas de preferen-
cia , é fora de duvida que similhante arte teve por
berço Florença , no meado do século 15.° — Já Va-
sari tinha referido que pondo ao acaso uma mulher
a trouxa da roupa ainda molhada sobre o mostra-
dor da loja de Thoinaz Finiguerra , afamado ouri-
ves florentino , sem reparar que a deixara em ci-
ma de uma chapa prompta para o esmalte do que
tratámos , ficou attonita quando ao termo de algum
tçnipo indo buscar o alado viu com a mnior exac-
ção reproduzido todo o lavor da gravura na roupa
húmida. Esla casualidade, de que os homens vul-
gares não fariam caso, despertou a atlenção do en-
genhoso Finiguerra , que repetindo o ensaio em te-
la branca rellecliu que o papel daria o mesmo ef-
feito , e que aperfeiçoando mais e mais o descobri-
mento chegaria a sujeitar por meio de um cilindro
uma folha de papel sobre a sua chapa gravada , e
assim alcançaria exacta copia delia : a origem da
arle' de estampador estava manifesta.
Entre os objectos destinados ao culto, nos quaes
osouri\es exercitavam seu talento, devem ter men-
ção distincta as laminós da pax tecum [a paz do
Senhor seja comligo] : existia uma destas obras de
Finiguerra , que apesar da falta de nome e marca
era authenlica , porque nos archivos da syndicatu-
ra de Florença constava o preço porque fora paga,
e que representava a Assumpção da St."" Virgem ;
linha-a o museu daquella cidade, c fora conside-
rada antigamente obra tão notável qne delia tira-
ram moldes, um dos quaes chegou a nossos dias, e
foi comprado cm Inglaterra ha vinte e sinco annos
por 230 libras esterlinas. O achado de uma prova
cm papel da mesma lamina deu maior evidencia
as conjecluras antecedentes , resolvendo ao mes-
mo tempo a qneslão de saber-$e qtiem foi o in-
ventor da impressão de gravuras feitas em metal.
A bibliotheca de Paris possuia este monumento ar-
tístico, sem lhe conhecer a valia, até que pelo Cm
de 1797 o abbade /ani o reconheceu e assignalou ;
«I)'enlão para cá [diz Duchesne] todos os amantes
das artes , que visitam aquclle gabinete dVstampas
admiram esta prova da primeira estampa impressa
por Thomaz Finiguerra em 14Sí2.» — (lorn eITeito a
obra original é digna da atlenção e exame dos mes-
tres.— Representa, como dissemos, a /lííirtíi/>fâo ;
quanto aos anachrtjnismos não fallemos , que lodos
sabem quão frequentes os commcltiant os engenhos
dessa epocha : por exemplo , Jesu-Christo tem um
barrete como o que trazia o Doge di; Veneza ; e os
mais que se notarão pela seguinte e succinla dcs-
cripção. — Jcsu-Christo colloca a coroa sobre a ca-
j beça da SS."^ Virgem , (jue se inclina com os bra-
j ços cruzados sobre o peito: estas duas imagens es-
tão n'um throno todo sustentado por anjos , e na
I parte superior ha mais quatro pegando n'uma tar-
ja em que se lo : Assumpla cst Mdría in cwlum, airj
excrcitus angcltirum. IVo primeiro plano estão ajoe-
lhados St.° Agostinho e St." Ambrósio, um de bá-
culo e outro com as mãos cruzadas ; seguem-se al-
gumas santas, dislinguindo-se pela roda St.^Catha-
rina e pelo cordeiro St." Igncz : entre outros mui-
tos santos conhece-se o precursor, S.João Baptista,
vestido de pelles e empunhando uma cruz.
Por vir a propósito da representação da prece-
dente gratura damos a seguinte passagem de um
dislincto cscriptor nosso , f.illando da solemiiidade
que celebra a igreja no dia lo do corrente. — "A
festa da .-Vssumpção e coroação triuinpbante , diz o
P." Soares , que é mui própria da Virgem , e com
excelleniMa entre todas suas festas , porque repre-
senta sua gloria, premio, e triunipho ; e ó de tan-
ta dignidade que ainda que seja de Direito positi-
vo se funda proximamente ou quasi necessariamen-
te se deduz do Divino. Enlende-se que foi instituí-
da pelos Apóstolos; pelo menos é certo ser anti-
quíssima na primitiva Igreja , como consta de Lo-
uiilias dos santos padres, principalmente gregos. O
papa S. Damazo, portuguez , da illustre villa de
Guimarães, com aquellc celestial accordo, com que
ordenou tantas cousas na Igreja ; como foi a trasla-
dação da Bíblia por S. Jeronymo , c a repartição
dos psalmos pelo mesmo santo , para se rezarem
nos dias da semana e horas do dia , e que no fim
delles se dissesse Gloria Palri , ífc. , e se cantas-
sem alternalivarnente a coros em toda a Igreja ; . . .
e com que ordenou que no princípio da Missa se
dissesse a confissão e depois do Evangelho o Credo
aos domingos e alguns dias de festa ; com o mes-
mo accordo mandou que de preceito se celebrasse
! esta festa santíssima ao decirao-quinto d'agoslo em
que a Senhora passou desta vida ; esta antiguidade
lho dá Jacob Palmcrio ; e porque na observância
havia menos cuidado a applicou depois o imperador
Ãíauricio , como escreve Aicephoro e declara Baro-
nio. — A. de Sousa de Macedo. Eva eAve, part. Vi.'
O BllAZElRO.
III.
A p.AiMtA desempenhou a sua palavra , porque pou-
co tempo depois, em 3 d'oulubro de 1611 , mor-
reu de repente na llor da idade e no maior esplen-
dor da sua belleza. D. Fernando lhe havia precedi-
254
O PANORAMA.
(.lo; também este morreu, como seu irmão mais ve-
lho, pelas mãos do algoz; este que era o ultimo
ramo dos Penacerradas. Senhor, podíeis tè-lo sal-
vado, mas nãoquizestes. Recusastes perdoar ao cul-
pado , apesar da rainha vo-lo implorar de joelhos ;
e fizestes hem em dar ura alto exemplo de profun-
da veneração ;is leis da etiqueta que são leis do
reino. V. M. sem duvida se lembrou então que ten-
do lamentado a sorte de alguns condemnados pela
santa inquisição, V. M. não tinha recusado dar
uma porção do seu próprio sangue para ser quei-
mado pelo algoz, em penitencia das sacrílegas la-
grimas que havia derramado. Pensáveis sem duvi-
da quedevieis seguir sempre avante tão nobre car-
reira , apegado aos usos de vossos maiores , agora
confiados ás vossas reaes mãos. Senhor, foi uma
sublime lição para os vossos descendentes ; e eu
sinto que o mais próximo, o príncipe das Astúrias,
não esteja aqui presente para enthesourar as minhas
palavras, e para aprender como algum dia deve
aproveitar estes exemplos que V. M. lhe deixa.
(I E que foi feito do respeitável conde velho, di-
gno de toda a compaixão?» — perguntou a prin-
ceza.
'(Lamentais o conde ■ — tornou o monge em tom
severo. — Não tendes rasão , senhora. O velho jul-
gava que bastava ensinar seus filhos de tal modo
que nunca largassem a vereda da honra , da virtu-
de , e da gloria ; e que se elles soubessem caçar o
javali e o veado , montar um cavallo bravo , e ma-
nejar a espada , teriam todos os conhecimentos ne-
cessários a um fidalgo castelhano ; mas isto não é
bastante: não c assim , senhor? Um nobre caste-
lhano deve mais que tudo saber a etiqueta , código
severo que contém a todos dentro nos limites da
sua obrigação e dos seus direitos ; que assegura <is
pessoas reaes a veneração que em todas as situa-
ções da vida lhe deve ser tributada. Por isso o con-
de foi castigado no que peccou. Como Rachel , não
se quiz consolar de que seus filhos tinham deixado
de existir ; despediu todos os criados ; e encerrnu-
se só no seu cnstello , onde morreu de magoa. Es-
ta é a rasão porque o castello velho não é habitado
e cabe em ruínas. Deus tenha misericórdia dos seus
habitantes finados. — Amni — disseram todos; — e
(tme/í — disse tamlieni Filíppe 3."
Fr. Ambrósio callou-se , e os circumstantes fica-
ram cm fúnebre silencio. Todos os olhos se volta-
ram para elrei , que se mechia na cadeira, como
quem queria dizer alguma cousa ; mas a língua
secca c os beiços trémulos não lhe pcrmíltíam fal-
tar. O dia ia já acabando, c as cortinas de damas-
co apenas deixavam passar uma luz pallida , cujos
amortecidos raios se misturavam com o vermelho
reflexo do brazeiro. Com tal claridade , todos estes
grandes d'llespaiiha , com seus trajos negros e ros-
tos íinmoveís , o velho monge com a cara enruga-
da e severa, em grupos em roda da cadeira doi-
rei, pareciam uma congregação de espectros ro-
deando um moribundo.
De repente tocou um sino na capclla. — «São
ave marias — disse Fr. Ambrósio. — Aetiqueta exi-
ae que todos agora saiam da camará d'elrei, exce-
l>to os que lem qualidade ccciesíastíca , a fim de
<Iiir elrei possa fazer as suas orações.»
O mordomo-mór deu signal levaiitando-se , e lo-
dos os presentes seguiram o seu exemplo, e silen-
ciosos despejaram a sala. A príneeza Isabel foi a
única que antes de se retirar se chegou a elrei pa-
ra lhe beijar a mão. Afigurou-se-lhe que a mão de
rei procurara a sua para a deter. Quando todos ha-
viam sabido , entrou um guarda-roupa para accen-
der as vellas de um candieíro de braços : tornou
logo a sahir , e cerrando a porta , Fr. Ambrósio , o
pobre monge de S. Jcronymo , se achou só com o
omnipotente rei das Hespanhas e de ambas as ín-
dias.
«Senhor — disse Fr. Ambrósio com profundo aca-
tamento , puchando pelo seu breviário — apraz a
V. M. pór-se de joelhos? Eu lerei as orações em
voz alta. »
«Meu reverendo padre — tornou Filíppe 3.°, le-
vantando-se com custo — njudai-me para que eu
possa fazer as minhas devoções : estou muito fra-
co. »
«Senhor, é uma grande honra que V. M. faz a
um pobre monge , mas está no seu poder. Quando
elrei D. Filíppe 2.°, vosso pai de saudosa memo-
ria , sentiu approxímar-se do seu fim , e se refu-
giou numa cella do nosso convento do Escuria! ,
que desde então é conhecida pela denominação de
camará da morte d'elrei, sempre tinha ao pé da
sua cadeira ou do seu leito um dos nossos irmãos
para o dirigir nas suas praticas religiosas.»
«Mas — exclamou elrei parando na sua penosa
ida para o genuflexório — eu ainda não estou tão
adiantado como meu pai ; tenho só quarenta e três
annos ; nesta idade ainda me posso considerar mo-
ço ; c se a mão de Deus tem pesado muito sobre
mim , e me tem castigado este inverno com doen-
ças graves, agora acho-me consideravelmente me-
lhor: os médicos tem-me dito que estou em plena
convalescença. A primavera está á porta ; e a pri-
mavera para mim é saúde e nova vida. Já os jar-
di.is de Aranjuez estão era flor, como me dizem ;
os jardins de Aranjuez me estão esperando. Podeis
crer , reverendo padre , que se eu quizesse já hoje
para lá ia. »
«Senhor, V. M. é omnipotente e só a Deus de-
ve conta das suas acções ; mas o palácio de Aran-
juez é muito longe de Madrid , c a jornada cança-
ria a V. M. O palácio do Escurial é muito mais
perlo, e também lá ha bellos jardins. » — «O Es-
coriai— disse elrei levantando a voz com um ter-
ror inslinclivo — lá não ha senão túmulos.»
«Otempo passa;— disse friamente Fr. Ambró-
sio— já ha muito leini>o que deram as ave marias.
V.M. digua-se ajoelhar? aqui está o genuflexório.»
— «Ajudai-me, reverendíssimo.» — Elrei com o
soccorro do monge, postoque com custo, havia ajoe-
lhado na almofada de vclludo, c o monge lhe per-
giinlou se devia começar as orações. — « Abri o
vosso breviário ao acaso, qualquer reza é agradá-
vel a Deus, me diz o meu confessor. — È um psal-
mo ; cu lerei o primeiro verso, V. M. pôde repe-
li-lo.—Então principiou o monge com voz solem-
iie o primeiro verso do psalmo 50 :
u Misercrc mei Deus , sucundum matjnain misericoi-
iliíim tutim. » Elrei olhou para o monge com ar es-
[)avorido, mas repeliu as palavras sagradas com voz
tremula. O monge leu o seguinte verso ainda com
maior expressão :
« lU scrnndum viulliludiíinn miscrationnm íuarum
dele inHjuitatcm mcam. »
Msa — interrompeu elrei — este psalmo é um dos
sete penitenciaes , que se rezam á cabeceira dos
moribundos. »
«Senhor — respondeu Fr. Ambrósio — executei
as ordens de V. .M. : abri o meu breviário ao aca-
so. Se nisto pequei, mereço desculpa ; porque os
o PANORAMA.
255
moniíPS da nossa ordem não estão cosUimados a es-
tar diante dos reis vivos, mas só de reis mortos ou
moribundos.»
« liem ; — disse seccamentcFIlippe 3.° — seja co-
mo for , as miiilias pernas ainda não estão bastante
fortes para poder estar muito tempo nesta posição.
Ajudai-me a levantar; quero tornar a sentar-me.»
Seguiu-se um momento de silencio. Em quanto
eirei se tornava a sentar não pôde deixar de olhar
cora pavor para o ancião , que lhe dava a ajuda do
seu braço, procurando na physionomia do monge
uma recordarão remota . um si^nal fugitivo de co-
nhecimento, que vislumbrava diante da sua imagi-
nação.
Assentado elrci, o monge inclinou-se com a mais
profunda submissão, e dispunha-se a sahir.
«Ficai — disse elrei com vivacidade; — para on-
de ides?»
«Senhor, permitti que eu me retire da vossa
presença : bem tenho notado que tive a desdita de
lhe desagradar. »
«Ficai; já ha muito tempo que estais no conven-
to de S. Lourenço? — Sim, meu senhor, já ha
muito tempo. — Conhecestes porventura o conde de
Peiiacerrada ? éreis seu amigo ou seu parente?»
«Senhor, o conde de Peiiacerrada era um inimi-
go d'elrei , um desprezador ousado das leis da eti-
queta. Deus me defenda de lodo o contrato com os
inimigos d'elrei, que menoscabam as leis sagradas
da etiqueta. »
Filippe 3.° passou a mão pela testa , como quem
accorda de um sonho Icrrivel , e acha que só foi
sonho ; e disse cora alTabilidade , quasi timorato :
<t Reverendíssimo , credes que o Juiz Supremo al-
gum dia me pedirá conta do sangue dos dois jo-
vens ? »
«Senhor, a solução desse escrúpulo pertence só
ao padre Aliago , vosso confessor. — Perguntar-lho-
liei : u — e depois o rei continuou : « Eu estranho-
rae ; o breve espaço para o oratório deve-me ter
caceado, porque ainda agora estava todo gelado ,
e agora sinto-me alirazado. Vede como o fogo arde
;io brazciro ; não achais a casa insuportavelmente
quente?»
«Senhor, eu estou velho ; nos meus annos o san-
gue já está gelado; e não sinto o que V. M. diz.»
«Isto é extraordinário»- — disse elrei em voz bai-
xa , e inclinou a cabeça como se se sentisse ador-
mecer.
Entretanto cada vez mais se incendiava o brazei-
ro , e parecia mudado em forno. Já o calor e a e-
halação do fogo tinham absorvido o ar vital da ca-
sa , e as vellas no oratório davam um clarão incer-
to.— Fora, a lua se tinha levantado de traz dos jar-
dins do Buen-Reliro , e pelas vidraças da camará
real se via claramente a estatua equestre de Carlos
).° com o seu arnez , que com olhar sombrio pare-
cia contemplar a luta mortal de seu neto. Havia
neste momento alguma cousa de simbólico no aspe-
-to destas duas figuras reaes; uma de bronze e fer-
ro , outra de carne e osso ; uma direita e altiva ,
illurainada pelo nobre astro da noite, reflexo do sol
de Pavia e de Cerisolc ; a outra dormitando sufTo-
cada pelo calor artificial do seu sol, — um bra-
zciro.
Subitamente eirei pareceu accordar de um le-
Ihargo, endireitou-se, enxugou as grossas bagas da
testa, e disse quasi imperceptivelmente : «Mandai
tirar o brazeiro. — Senhqr — respondeu o monge —
eu vou avisar os officiaes a quem compete este of-
ficio. — Fr. Ambrósio sahiu e voltou em meio mi-
nuto. Elrei mal podia já articular. — Senhor o of-
licial competente auscntou-se , m.Tndaram-no cha-
mar , e não pôde tardar. — Elrei não respondeu ,
mas [louro depois disse: Sinto-me morrer, padre,
desabotoai-me o fato. — Senhor, não mereço tanta
honra. A etiqueta não permittc a um pobre frade
Jerónimo tocar no fato d'clrei: este oliicio compete
uo nobre duque de .Aledina C.eli. . .»
«Meu Deus, isso é verdade, mas cu morro. Ar,
ar, padre, abri a janella. — Senhor, não me pos-
so atrever a isso ; não posso aspirar a tanto. K ab-
solutamente prohibido a todos excepto ao mnrdomo-
mór , ou ao nionleiro-mór , abrir qualquer janella
na camará d'elrei , estando procnte.» — Fallando
assim Fr. Ambrósio mal podia respirar, e os olhos
qunsi se lhe turvavam.
Elrei animou-se , fez uma tentativa para se le-
vantar da cadeira, mas cahiu para traz. «Ahl —
di<se quasi sem voz — isto ó um tormento horrível.
-Monge , monge , não vês que morro se me não dás
ar , se me não tiras este brazeiro , este brazeiro
que me sulToca e mala.»
Então Fr. Ambrósio inclinou-se ao ouvido d'el-
rei, c disse com voz sepulchral que penetrou o mo-
ribundo rei com arripios gelados , que juntou aos
martyrios do corpo os mais terríveis martyrios da
alma: «Estais lembrado, senhor, que D. Sancho
morreu ás mãos do carrasco , porque não estava
presente o presidente do conselho de Caslella para
vos apprescntar uma penna. . . Estais lembrado que
D. Fernando de Penacerrada morreu ás mãos do al-
goz, por ter ousado tocar na rainha, quando se tra-
tava de lhe salvar a vida. . . »
«Penacerradas ; Penhacerradas ! — exclamou el-
rei, e de terror se lhe arripiou o cabello , — sem-
pre Peiiacerradas ! . . . E olhou para o monge , que
estava immovel ao pé da cadeira , com a cabeça
mettida no capuz , em altitude de reflexão e de at-
tenção.
«Misericórdia, monge, não esperes até que ve-
nha o olíicial do paço para tirar o brazeiro. Eu te
dou a minha palavra real . que por esto crime não
hasde ser castigado. Monge , eu farei mais , o pri-
meiro bispado que vagar será teu. Reverendo pa-
dre , fallai-me; qno pretendeis mais? Oh! Miseri-
córdia, misericórdia. . . Meu Deus. meu Deus. . .»
Mas Fr. Ambrósio ficou immovel. Também não
tinha havido misericórdia para D. Sancho de Pena-
cerrada , nem para seu irmão D. Fernando.
Xeste momento se ouviu um grito d'elrei , nm
ultimo grito, grito de dor e de desesperação : —
n.\h! monge, monge, agora te reconheço; és o ve-
lho Penacerrada. .. E sem sentidos cahiu sobre o
braço da cadeira. A porta da camará real abriu-se
no mesmo momento . e entraram o ofiicial do bra-
zeiro , e o medico d'elrei.
«Vindes a tempo, senhores — disse o monge. —
Sua Magcslade desmaiou por não poder supporlar
mais o calor do brazeiro.» Tiron-sc este ; o medi-
co acudiu immedialaniente a elrei, observando-u
com signaes da maior inquietação. Em quanto du-
rava este exame , cujo resultado Fr. .\mbrosio es-
perava com inalterável placidez , abriu-se de novo
a porta e ura official annunciou :
«Sua alteza, o príncipe das Astúrias , pede li-
cença para tributar os seus respeitos a elrei.»
Fr. .'imbrosío deitou olhos escrutadores ao me-
dico , c dirigindo-se ao official disse:
«Já não ha príncipe das Astúrias, .\nnnnciai S
256
O PANORAMA.
M. D. Filippe 4.° rei das Hespanhas e de ambas
as Índias. A ctiqiiela manda que antes tio princi-
piar o seu reinado , o novo rei seja o primeiro que
visite o rei defunclo.
QdAES são os verdadeiros bens , E QUAES OS FALSOS ;
E QIE COISA É VIKTIDE (•).
MiiTo folgarei [disse o discipulo] de ouvir esta di-
visão dos Ijcns , c folgaria de Síiber quacs são os
verdadeiros para os seguir, e qiiaes os falsos para
OS deixar. Os verdadeiros bens, disse o mestre, são
fó , esperança , e caridade , c a divina graça , pru-
dência , justiça c temperança, fcjrlaleza , humilda-
de, mansidão, castidade, esmola, paciência, abs-
tinência , e todas as mais virtudes e dons do Espi-
jito Santo , e bemaventuranças evangélicas. Estes
ião os liens que nos fazem bons , c de que os ini-
jnigos nos não podem despojar, se nós não quizer-
jnos. Estas são as verdadeiras riquezas , e não as
terrenas que são muitas vezes possuídas dos maus ,
c occasião de males; as quaes se podem perder e
iios podem perder. E por isso não são ellas bens
verdadeiros, mas falsos; e mais, pois enganam seus
possuidores, e os deixam [como dize;.i] no melhor,
e quando muito chegam com elles até a morte, mas
assim os desai ,iaram. No fio dos falsos bens an-
dam de parçaria enfiados com riquezas os favores
e privanças dos príncipes e honras do mundo , c as
outras cousas a que o vulgo eliama bens da fortu-
na. E nesta lista entram os bens que chamam da
Jialureza , como são formosura da carne , força , li-
geireza , e outros desta qualidade, Esles são os
hens que nos não fazem bons , antes são muitas ve-
zes possuídos dos maus , e instrumentos dos seus
inales. E nelles não deve ninguém coidiar como em
cousa segura , porque não são fixos nem permanen-
tes , mas inconstantes e transitórios , e podem no-
los tirar, ainda que nós não queiramos. Qualquer
tribulação os desbarata, qualquer mudança os tira,
qualquer vento os arranca. O mundo é como uma
farça, aonde entram diversas figuras, umas de prín-
cipes e nobres, outras de mecânicos e lavradores;
c accrta-se que os mecânicos entram por figuras de
nobres , e os nobres por figuras de mecânicos. Du-
ra isto em quanto dura o auto ; elle acabado fica
cada um nu (]ue era. O que representava a figura
do príncipe ia com vestidos alheios ; um lhe em-
prestava o saio , outro a capa , outro a gorra : aca-
bada a festa cada um levou o seu, e elle ficou sem
nada, e donde entrara por príncipe, fica alfayate ,
como d'antes era : assim o mundo transtorna as
cousas, a uns derriba, a outros levanta. Aos que
de baixa surte vem a sublimar, um dia lhe tira a
honra , outro os oQícios , outro a fazenda : até os
deixar na cepa que d'anles eram. São mudanças do
mundo, é roda que anda ás voltas , são ondas a
que não é concedida nenhuma firmeza. Nas parti-
lhas desta vida os justos ficam com as virtudes, que
são bens de raiz que duram , e os depravados não
querem senão riquezas c deleitações , ([ue são mo-
veis que se rafam e ac;d)am , e gastam com o tem-
po : assim como o raio de fogo, segundo conta Plí-
nio no segundo da Historia Natural , fere quanto
acha na terra , senão o loureiro. V.u , disse o discí-
pulo , antes queria ler virtudes que sabcr-lhe a di-
linição; porque Aristóteles diz nas Elhíca.s , que
não basta saber da virtude , rnas qne é necessário
(•) IiUctnicti> de Hcitur Piutv : Imaf. tia y. VhrisUii.
trabalhar de a ter. Bom é praticar delia , mas me-
lhor é possui-la : as palavras passam, e as ol)ras fi-
cam. Mas nem por isso deixo de desejar de saber
a definição á virtude. Nisso , disse o mestre , ten-
des vós muita rasão , porque S. Paulo diz na pri-
meira aos corinlhios que o reino de Deus não está
cm pal.ivras , mas em virtudes. E assim os que en-
sinam mais mo\em com o que fazem que com o
que dizem. Assim como primeiro ouvinii;s ferir o
pau , e depois ouvimos o tom : assim primeiro nos
move o (|ue vemos ohiar que o que ouvimos dizer.
Mais eHicacia paia persuadir tem as obras que as
palavras. Mas pois quereis saber a definição da vír-
ludc, eu vo-la direi. A virtude é uma qualidade
boa d'alma com a qual se vive rectamente, da qual
ninguém usa mal , a qual Deus obra cm nós. As-
sim a define St.° Agostinho no livro do Livre Ar-
bítrio. E 110 livro da Quantidade da Alma diz que
é uma igualdade de vida, que de todas a? partes
quadra com a rasão. E no livro decímo-quinto da
(lidade de Deus diz que ó uma ordem de amor. E
por isso diz a Esposa nos Cantares: Ordenou en;
mim a caridade. S. Bernardo no tratado ud fru-
íres de Monte Dei diz que a virtude é uso da livre
vontade ao juízo da rasão. Aristóteles , fallando no
segundo das Ethicas das virtudes nioraes , diz que
a virtude ó um habito c electivo que consiste no
meio era respeito de nós , definido e determinado
pela rasão do prudente. E nas Politicas diz que a
propriedade da virtude é fazer virtuoso. E por vir-
tuoso não entende ura homem tão justo que não
caia em alguma culpa; porque, como diz Eliano
no livro da Varia Historia, assim como não ha pei-
xe sem espinha , assim não ha homem sem culpa.
Quem é aquelle , fallando pela via ordinária , que
pelo decurso da sua vida não caia em alguma ve-
níalíilade? Mas por virtuoso entende o que está ha-
bituado em bem obrar moralmente , e cora concer-
to , ainda que alguma vez tenha algum acto des-
concertado , porque nas virtudes adquiridas o acto
não é contrario ao habito , e pôde um homem de
temperado habito fazer um acto de destemperança ;
e fazer ura acto de destemperança sem perder o ha-
bito de temperança ; porque a virtude é habito , c
não qualquer, mas habito excellente. Ella muda a
alfandega de maus pensamentos era rica camará de
santas meditações , e a terra converte-a em céu ;
quero dizer, que pelas virtudes os que antes eram
terrenos se tornara espii ituaes , porque tem a Sa-
grada líscritura por costume aos justos chamar céu,
e aos ímpios lerra. .\ssim como o sol que passa pe-
la vidraça toma a còr da cousa em que fere , assim
o homem toma a figura da cousa a que se applica.
Se se applica ás cousas celestes toma a figura do
céu , se ás cousas terrenas , da terra ; c assim co-
mo o vicio converte o céu em terra , assim a virtu-
de a lerra em céu. Com ella se esmalta a nature-
za , c SC purifica a nobreza do sangue , e se lava a
nódoa da baixa geração, e se alimpa c orna a cons-
ciência ; c, finalmente, ó um verdadeiro bera que
nos faz bons ; o que não convém aos bens da natu-
reza , nem aos que commurarnentc chamara da for-
tuna.
O rnoGRESso da civilisação não é representado pela
co|iía das coramodídadcs superfiuas , nem pelos ca-
prichos da moda ; mas sim pela fortaleza e rectidão
do animo, c pela prática mais generalisada das tir-
tMdes, assim domesticas como cívicas. ;,„
86
o PANORAilIA.
2;;7
os HABITANTES DE BIALHO&CA.
AisDA se erguera escarpadas e dislinctas no hori-
sonle as serras da Catalunha para quem se aparta
de Barcelona iaternando-se no Mediterrâneo , c j;i
da parte opposla apparecem os mais altos e pictu-
rescos montes de Malliorca , como estalagem bem
disposta , ou casa de recreio , que á borda do ca-
minho convida a descançar na primeira jornada. —
Em igual ou mais próxima situação a respeito de
Valência se encontra Iviça ; e estas duas ilhas, que
junto com Menorca formam o grupo principal das
Baleares, não estão entre si tão distantes que não
possam avistar-se umas de algum ponto das costas
das outras. Ou por eITeito de sua proximidade á
Península , ou era consequência da unidade de cas-
tas e de antiquíssimas revoluções , ou por inexpli-
cáveis aíBnidades perdidas em a noite dos tempos ,
é certo que as Baleares jamais poderam separar a
sua sorte , c a sua historia , da sorte e historia do
continente hespanhol. — Estas ilhas, dons para as-
sim dizer da natureza , e não espolio de conquista
como as Canárias , ou fructo de colonisarão como
as Antilhas e Filippinas , antes do que possessões
ou colónias d'Hespanha se poderão appellidar por-
ções soltas do território desta monarchia ; e as suas
relações espontâneas com a metrópole , tanto mais
fortes e suaves porque nunca tem custado uma got-
Agosio ly— 1843.
la de sangue aos conquistadores nem oma lagrima
aos conquistados , fortaleceram-se ainda mais com
os accidenles de mui extensa e variada historia.
Ora soflreram o jugo dos invasores do contiuente ,
ora luziram com o mesmo brilho e fortuna que es-
te , retribuindo com os thesouros de seu ferlilissi-
mo solo , c com homens esclarecidos , a indepen-
dência e gloria que do império hespanhol rece-
biam.
Jtalhorca , ou Mayorca, segundo o nome próprio
indica é a mais importante ddS Baleares , quer em
povoação, quer em exlensjo e fecundidade de ter-
reno, e sob qualquer destes aspectos que se con-
temple ou meça a estadística da ilha , sempre ella
comprchende as duas terças parles da somma ge-
ral. N'uma superfície de 1234 milhas quadradas
contém acima de 160:000 habitantes em 36 povos
de maior consideração [havendo alguns de sete ,
nove, e dez mil almas] distribuídos por montes e
plainos, sem contar lugarejos e casaes , espalhados
por toda a parte. As costas altíssimas e escarpadas
a oeste pelo lado por onde olha para o continente,
baixas e estendidas da parte de levante, e forman-
do ao norte duas grandes bahias , a de Alcudia e a
dePoilensa, em correspondência [digamos assim]
da outra de Palma , vastíssima e ao sul , oíTerecem
2.' Serie. — VoL. II.
258
O PANORAMA.
por todos os lados aos navios portos numerosos, en-
seadas e praias, onde seguros deitem ferro; como
se a terra participasse da hospitalidade dos raora-
(lorcs. Sem embargo, nas ribeiras maritiraas , quer
sejam charnecas , i[uer montes picturescos , não ha
J)usoar povoações que estojam em certo modo ;i es-
pera dos viajantes, nem aldèas que baubem o pé
n'agua e aspirem a brisa do mar, como era d'es-
pcrar d'uma gente agrícola c navegadora ao mesmo
tempo , e das vantagens dahi resultantes para a sa-
lubridade e para o commercio : a funesta vis'nban-
ça dos berbcrescos , e a sanha e cubica dos pira-
las , de quem foi Malhorca por três séculos espe-
cial objecto , tornando erma a costa com frequen-
tes desembarques, e cingindo a ilha com uma zo-
na de assolações, fez que se occultassem no fundo
dos valles ou ao abrigo dos picos os jiovos da mon-
tanha, e se affastassem a duas c Ires léguas da bei-
ramar os da planície : c se acaso nesses contornos
nlgiim casal assoma é com sua torre quadrada c ma-
cissa, dasquaes não haverá talvez uma que não tenha
sustentado um cerco. Desapparecida a causa , não
podiam tão prestes desapparecer os elleitos ; notan-
do-se unicamente na solitária costa as redondas tor-
rinhas , habitadas pelos vigias que de noite accen-
dem seus fogos de observação como olho vigilante,
as quaes de dia mal se distinguem da còr das ro-
chas de que estão penduradas , e semelham ninhos
d'andorinhas. — Mas penetre-se pela terra dentro
curto espaço ; e logo o continuado arvoredo de oli-
veiras, muitas velhíssimas, cuja folha descorada e
alvacenta faz mui bello contraste com o estremado
verdor das alfarrobeiras , cubriudo a parte montuo-
sa até o cirno dos cabeços ; e lambem as vaslissi-
mas searas e os ímmcnsos figueíraes, que alcatifam
as veigas ; revelam toda a belleza e fecundidade
daquelle chão. — Espantoso c palpável é o incre-
mento da agricultura ha St) aunos em toda a ilha ,
e o numero de arroteamentos já subministra tri-
gos c outros cereaes para abastança dos moradores,
poupando-lhes o flagello da fome que periodicamon-
Ic soliViam seus antepassados: osmontes mais altos,
as ladeiras mais íngremes se cultivam disposio o
terreno em successivos socalcos , que apprescntam
um amphithealro vecejante e o exemplo do engenho
c laboriosidade do homem ; subdividem-se as pro-
])ricdades , multiplicam-ss as casas c cora ellas os
pomares e hortas que cercam quasi todas ; a amen-
doeira , arvore tão agradável aos olhos, como pre-
ciosa por suas qualidades e fructo , ainda em nos-
so tempo era ahi quasi estranha, mas lern-se rapi-
damente propagado de uma á outra |)onta da ilha,
e faz agora uma das prii]t:i|)aes colheitas. Apenas
liça uma terça parte do terreno total para maltas e
baldios ; as outras duas rcpartera-se cm searas, oli-
vaes , vinhas, hortas c quintas, cujo producto an-;
nual liquido , entrando o de gado grosso e miúdo ,
sobe a perlo de dois milhões de cruzados e cem
contos de réis. Com este augmento emparelha por
conseguinte o crescimeuto da população c a passo
igual a prosperidade do commercio c navegação.
lím quanto assim accresccm os fruclos da terra ,
mais de 40 navios de maior porte, c quasi dupli-
cado numero de outros menores , cslão esperando
esses géneros nos portos de Soller, Andraix , Fcla-
iiilx , c especialmente no de Palma , obra lambem
rccenlc da mão do homem, porque este não pouco
tem feito a pró da sua pátria , sem entregar-se de
braços cruzados ao benelico influxo e dons da na-
tureza.— JJilalada deslc modo anavcgação das em-
barcações malhorquinas ao longo das costas d'Hes-
panha , pelns aguas d'Africa, e por todos os portos
das Antilhas e da America meridional ; c augmen-
tado com a ultima guerra o preço dos géneros a
par da vantagem da exportação ; Malhorca com o
movimento mercantil se pôde consolar da perda da
iualteravellranquillidade de que antes gosava.
Não menos notável que a abundância é o nume-
ro e variedade de productos, devidos talvez á va-
riedade de terreno , que não podemos deixar de
admirar altendendo á extensão da ilha ; porquanto a
vista da alternativa de cordilheiras, de planícies, de
campinas enxutas, e das brejosas reçumando agua,
de rochas cortadas a pique, c de collíuas ondulosas
e fcrtilissíraas , julgaria o observador passar aller-
nadamcnte por climas díslinctos, ou Irausferir-se
de umas regiões para outras mui dislantes ; tanto
que n'ura livro moderno, a cujo auctor por outro
lado a ilha deve pouco [o pseudonymo Jorge Sand]
lemos que neste solo a sublime natureza dos Alpes
está unida ás frondosas campinas da Luiziana. —
Pôde Malhorca considerar-se dividida em Ires par-
tes, a do occidente, a central, e a de Jevanle, divi-
são natural, que correspondo quasi á territorial, fei-
ta de 1834 para cá, nos Ires partidos judicíacs de
Palma , Inca e Manacor. Os diversos accidentes do
paiz resumem em próximos quadros as scenas va-
riadas de regiões diversas , circumstancia que tor-
na muito agradável o aspecto geral da ilha. (•)
(Continua. J
Considerações sobre o Curso d' Economia Politica do
Sr. Miguel Chevalier.
xr.
Longe estou eu de ser movido de senlimcnlos mes-
quinhos d'invcja ou ódio contra a grande nação brí-
lanuica. Declaro que não me associo de nenhuma sor-
te ás prevenções e resentimentos dos que desejara
ver subvertida a ilha , raiidia do mundo civilisado.
Reconheço os altos serviços que lhe deve a humani-
dade. Admiro e venero o povo que se tem remon-
tado a tão elevada esphcra pelo puder do seu génio.
Inclino-me com respeito ante esses monumentos das
artes, esses prodígios de sciencia , e de trabalho,
testemunho tão brilhante da sua superioridade. For-
mo votos para que a sua carreira social seja bem
dilalada, e bem prospera, para que a sua iniiucncia
em quanto for benelica, c a sua grandeza, em quan-
to for legitima , não padeçam quebra. E confesso
que se um dia as nações pozerem em juízo qual
d 'ellas tem sido mais benemérita do género huma-
no , a esta , sem hesitação , deverá ser destinada a
palma da preeminência. Mas digo que o continente
que foi seu pupillo está em idade de emancípar-se.
(Jue o continente agradeça as lições e exemplos que
aprendeu de seus mestres, e apregoo os documen-
tos de liberdade , e os progressos de induslria que-
houve d'elles , é justo c santo ; c que a sua maio-
ridade se siga a tão fecundo ensino, inevitável. .Sc
Inglaterra sente cm suas entranhas malocoulto, e a
esse mal chama superabundância [que não pôde ser
onde ha escacez] ou estagnação que c propriamente
a sua enfermidade, não cuide remedia-la procuran-
do estancar a jiroducção alheia, ou encravar um dos
(■) Exlr:iliii]o dos ailii'os do Sr. J. M. Qu.idrado no
Somauario liespuuliol, • ■. ..■"j"'
o PANORAMA.
259
iiislrumcntos (i'essa producção — a industria fabril.
Inglaterra (■ dos paizes mais industriosos c dos de
primeira ordem o único que otTercce ao mundo o es-
pectáculo singular d'uma população que tem cresci-
do mais doque oalinicnlo e d'uma producção fabril
que tem resobrado á população. Dos outros três que
SC lhe seguem em calhogoria, França lavra pão para
si , mas posto seja exportadora de artefactos , estes
não cbcgariam talvez para as necessidades do seu
mercado interno, se a população rural lizesse d'elles
um consumo regular. Us Estados-l nidos tem sobre-
ccllente de cereaes, c pobreza de productos fabris.
Alemanha cultiva cereaes bastantes para o seu con-
sumo , e .sobreexccde-o cm artclãitos. Se a cultura
dos cereaes tem augmentado , e promelto continuar
no augmento que já dissemos, e os artigos fabris
alem de lerem crescido muito , pela sua natureza
\ão cm progressão ainda maior, parece que ao me-
nos alguns Estados , e os de primeira classe, levam
muito adiantado o empenho de resolver o importan-
te problema da producção ; problema que Inglaterra
se propõe dillicultar sob còr de conveniência d'es-
ses Estados , e da pros[)eridade geral do mundo.
Eu já estabeleci , no meu artigo sobre as machi-
nas, com quanta clareza me foi possível , que a su-
perabundância absoluta, presentemente, é chinicra.
e que até a abundância , ainda circumscrevendo-a
a uma nação determinada, é um dcsidcrandum, um
desiUcrandum se a entendermos de modo que ella
comprehenda a todos os indivíduos dessa nação .
sem excluir um único. Pode certamente haver e
creio existe alguma onde parte da população esteja
longe de viver na abundância , e, não obstante, os
productos annuacs sejam suílicientcs , uma vez dis-
tribuídos cm certa proporção pelos habitantes , a
cffeituar essa abundância. N' esse paiz , se exis-
te , asseverámos que está descortinado o arcano da
producção , e que só lhe falta penetrar o da des-
tribuição. E, fora ridículo dissimula-lo, aquelle
onde a industria nos seus differentes ramos parece
próxima a tocar o ápice do perfeito , é Inglaterra ;
c apesar d'isso a miséria de uma numerosa porção
dos seus naturaes como que está intimando que a
actividade do homem, e o apuro da arte, por gran-
des que sejam, não bastam á felicidade material das
associações humanas : ó indispensável que a jus-
tiça venha fazer olficio de medianeira no conflicto
da penúria com a riqueza e sanccionar a lei da vi-
da, que é o direito primordial da nossa espécie, as-
segurando um logar a cada individuo no banquete
em que todos devem ter quinhão. Em Inglaterra se
acha desenhada, c sevo quanto é solida adislincção
deTracy entre povos onde ha grandes riquezas e po-
vos ricos. Alli ha grandes riquezas , c o povo não é
rico, porque parte d'el!c vive na penúria. Alli ver-
te o luxo sybaritico dosCrcssos sobre asafflicções do
proletário as amarguras da comparação. Alli , que
era o theatro talhado para se fazer um novo ensaio
social , para se executar o grande acto , e se inau-
gurar o grande princípio da repartição da proprie-
de ; insiste-se, teima-se em salvar o abysmo, e apa-
gar o volcão , pondo um dique ao poder produclivo
.«—não ao próprio, que Inglaterra , a nação judicio-
sa , não cahiria em tamanho desattento — ; mas ao
alheio, á industria fabril das outras nações.
É sobrcsemear abrolhos e estrepes na estrada por
onde ellas caminham para o paraíso dos bens raate-
riaes. É distanciar-lhe o alvo da felicidade a ponto
de o não poderem atlingir. E vedar impiamente o
remédio ás dores e convulsões que cada uma expe-
rimenta nas fazes da sua declinação , como do seu
crescimento , porque este nos indivíduos e povos ó
denotado não só (lor impressões agradáveis, por pa-
decimentos lambem. E enredar a incógnita da pro-
ducção era labyrintho donde seja impossível desen-
iranha-la ; porque, de sua natureza peculiar, esta
incógnita não tem de ser achada de um jacto por
um só individuo, ou uma só nação, lera de ser
descoberta gradualmente pelos cálculos e esforços
de quantas povoam a supcrlicie da terra.
Pódc muito , mas não espere Inglaterra traçar o
circulo de 1'opilio á industria das outras nações,
suffocando o gcrmcn dos productos fabris no resto
do mundo, para dar sabida aos seus, estagnados.
E da essência delles [loderem mulliplicar-se até
ultrapassar as necessidades do consumo: mas ha
dois correctivos contra este inconveniente. Consis-
te um em regular cada povo a distribuição da
propriedade c dos gozos sociaes de maneira que
nenhum seu natural deixe de estar habilitado a fa-
zer um consumo rasoavel desses produclos nos mer-
cados nacionaes : o outro está nos desejos do ho-
mem que são variadíssimos e illimitados; que c
um in/inito na faculdade de consumir estes obje-
ctos, proporcional ao iiiftnilu da potencia de os pro-
duzir. Eis o remédio, o único. O outro, a cruza-
da contra as machinas que insinua Sismondi é dis-
paratar ; ainda que Inglaterra quer tenta-lo não nas
suas próprias, nas do conliiionte.
Vaã tentativa , como já annunciei. Não me dete-
rei mais com ella. E direi que se por força insu-
perável , e por circumstancias particulares estiver-
mos fadados, não a deixar — que é impraticável —
toda a espécie de fabricas, mas o fabrico de certos
artigos de maior procura , e cuja laboração adqui-
re o titulo de manufactureiras ás nações que a exer-
citam , nesse caso temos de nos entregar com do-
brada diligencia á industria agrícola.
Qualquer das alternativas que nos caia era sor-
te, uma pertença ha hí da industria fabril em cu-
jo melhoramento nos devemos desvellar , que é a
distillação das aguas-ardentes , a qual transforman-
do o vinho cm substancia de mais longa duração,
de menor volume , de maior valor em menor volu-
me , e por isso de mais fácil e menos dispendioso
transporte , o sobe a uma alta cathegoria no com-
mercio dos líquidos. O primeiro que em Portugal
descobrir o processo capaz de dar ás nossas o aro-
ma , o toque , e as outras qualidades superlativas
das aguardentes francezas, imprimirá um movimen-
to incalculável á riqueza do nosso paíz , cujos vi-
nhos mais débeis produzem , quando menos , cada
oito pipas uma de aguardente de 10 graus de 2>,*-
sa , ou 73 graus centígrados marcados pelo alcoo-
metro de Gay Lussac, c sendo j mais ricos de espi-
rito que os de França podem , sob esta transforma-
ção, competi-los com vantagem em qualquer merca-
do. Persuade-nos também a consideração de muito
momento — que segundo os direitos actuaes da pau-
ta inglcza pagaríamos pela entrada de uma pipa de
aguardente nos portos britaunicos menos 7T:ooO r."
do que pagamos pela introducção de oito pipas de
vinho, que são o equivalente daquella.
É tempo de chegar ao commercio . o externo , o
qual, sejamos ou não fabricantes, havemos de fa-
zer ; c debaixo do pavilhão nacional , não do es-
trangeiro como pela maior parle fazemos , se qui-
zermos conservar colónias.
O commercio ! Eu bem sei que boje é o externo
uma sombra do que foi antes de se abrirem os por-
260
O PANORAMA.
tos do Brasil. Naqiiclle período parecin Lisboa a
imagem da actividade. A cidade baixa era um ar-
mazém vaslissimo. A alfandega , aqticlle deposito
espaçoso , trasbordava os géneros , que por não ca-
berem nelle , se vinham abarracar ao Terreiro do
do l'aeo. As casas, as ruas, os largos eram estrei-
tos para Ião copioso mercado. O Tejo estava coa-
lhado de navios; a Praça apinhada de negociantes;
não havia transportes de mar e terra nem braços
que dessem vasão a tanta mercadoria. E — cousa
singular! — nessa quadra de prosperidade , as al-
fandegas rendiam , anno médio , menos do que ho-
je rendem , hoje que as scenas se mudaram com-
pletamente , e que aquella idade de ouro se voltou
em idade férrea 1 É que o movimento qne se amor-
teceu no externo passou para o commcrcio interno.
No interior ha hoje mais vida, mais animação,
mais cmprezas , mais transacções , mais compras e
vendas, maior producção. Não só o reino produz
mais , mas comsome a maior parte das suas impcir-
tações ; em quanto, naquelle período, importando
certamente muito mais do que boje , cxlrahia no
mercado domestico uma parte insignificante dospro-
ductos que ia buscar fora , e o resto , que era a
maior parte , exportava-o. Exportava , elle unica-
mente, todas as ricas mercadorias do Brasil, e mui-
tas da Ásia para as nações da Europa , e para os
seus domínios próprios; — para as nações da Eu-
ropa que hoje ou são providas por paizes commer-
cianles , on vão ellas próprias buscar os géneros
soloniaes ao logar da producção.
(Continuar-sc-ha).
A. d' O. Marreca.
■g^wjaBi'
■^a^ -^v^ IX i
ANKTIBAI.. (1)
Foi este o homem extraordinário que alcançou ser
temido dos romanos, que o tinham por seu mais po-
(1) Artiji) loiniiilo ili) lirspanliol do Sr D. Joaquim Ma-
ria Bovcr, ir.Vcailcmia (1'liihliiria : e a cslanipa copiada do
luni. :!." lio Tliesonro (Vanliijviíladis grct/uí , dç Urçnoyio.
deroso inimigo ; é o carlhaginez que os malhorqui-
nos contaram como patrício em quanto a penna do
díslincto académico hespanhol , D. Miguel Salva ,
não matiifestou qual era a pátria certa doheroc, cor-
rigindo a passagem de Plínio , que lodos sem criti-
ca allcgavam. Annibal nasceu era Cnrthago , e não
em a ilha Coelheira : Floro [lív. 2.° cap. 6.°] e o
historiador Mcgalupolitano [lív. 3." cap. 11.°] di-
zem que contava nove annos quando veio a Hespa-
nha , e aqui foi educado , chegando a ser homem
culto e de conhecida illusiração. Cornelio Nepote
o faz discípulo de Solino lacedemonío , na lingua
grega , idioma cm que aproveitou tanto que escre-
veu nelle a historia do proconsulado de Cneo Man-
lío na Ásia , [segundo Vossio de hhl. graic. liv. 4.°
cap. 13.°] ; na Itália erigiu um monumento a Juno
Lacinia com uma inscripção púnica e grega , que
como escreve Tito Lívio liv. 28, cap. 40, continha
a historia de seus feitos. Mas as façanhas bellicosas
foram as quo imniiirlalisaram seu nome. Jura a seu
pai Amílcar, governador das Daleares , ódio eterno
a Roma , reúne as fadigas de soldado aos estudos
de general , e chega a ser militar exccllenle antes
dos 15 annos : completava os 2G quando lhe é con-
fiado aos 219 antes de J. C. o mando do exercito
que os carlhaginezes haviam reunido para vingar
ultragcs feitos pelos romanos; e tomando a estes a
cidade allíada, Sagunio (2), jornada em que os ma-
Ihorquinos se distinguiram, colhe n'uma serie de
facções os mais gloriosos lauréis. — Duvidámos se
8:500 atiradores de funda raalhorquinos , que se-
gundo Florían tão temíveis se fizeram por sua des-
treza , passaram logo cora Annibal á Itália ou se
encorporaram depois no exercito , é porem certo
que atravessando com elles o Uhódano se adiantou
em dez dias até a raiz dos Alpes, causando-lhe o
perigoso transito por estas montanhas as mais peno-
sas fadigas porque parece que os gelos , nevões,
penhascos e preci|iicios tinham de roldão conlluido
para lhe embargar o passo. Os biblíographos fran-
cezes referem que depois de viajar 14 dias por mon-
tes evalles entrou em planície, onde teve o desgos-
to de ver qne o seu numeroso exercito de 60:000
homens eslava reduzido a 26:000. Não obstante per-
das tão consideráveis , Annibal tomou Turim , des-
baratou as cohorles de Cornelio Scipião, que en-
controu acampadas ;i borda do Tesíno, c pouco de-
pois as de Sempronio perto da ribeira de Trcbia.
Esta memorável batalha deu golpe fatal nos venci-
dos , mas os vencedores, apertados do frio mui ri-
goroso , não tiveram a satisfação de receber com
gosto os timbres que recolheram n'um vencimento,
quo taiUa gloria trazia a Carlhago. O mesmo gene-
ral venceu depois Klaminio, que pereceu no campo
com 15.000 romanos junio 90 lago de Trasimcno ;
dos 6:000 prisioneiros, que então fez, só deu li-
berdade aos latinos.
Alllicta com tamanhas perdas, a republica roma-
na creu que o modo de repara-las algum tanto era
eleger dictador a Quinto Fábio iMaximo, capitão
cauteloso, que tratou de observar os movimentos de
Annibal , occultar os seus , c fatiga-lo por meio de
repelidas marchas : este proceder e o não querer
arriscar-se a combate desvantajoso o fez pouco re-
commendavel a seus compatriotas , por isso é quo
a auclorídadc e mando foi repartida cnire elle e
Miuucio; e findo o tempo da dictadura foram am-
bos substituídos por Terêncio ^'arrão e Paulo Emi-
(21 Vido suliro Miiivicdro, 110 asseiilo da aaliga Sagun-
to, a pag. 161 do rol. 1.° ila prcsenie Serie.
o PAJÍORAJIA.
26 {
lio, que perderam em 216 ant. de J. C. a famosa
Lalalha de Cannas , á custa de 5:630 da cavallaria
de Annibal , que acabaram na peleja. — O general
carlhagincz , cm vez de passar a Uoma , para apro-
veitar-se das riquezas c vantagens que lhe propor-
cionavam suas victorias , quiz fazer quartéis d'in-
Tcrno em (/ipua ; c [segundo Tito Livio] as delicias
desta cidade foram tão damnosas a seus soldados
como úteis lhe haviam sido suas armas para semear
terror e lulo entre os romanos. Tal é o modo de
pensar do I.ivio e de outros historiadores, mais mo-
ralistas que polilicDS, que em nada coincidem cora
a opinião do celebre Condillac , pois segundo este
é falso que o ócio de Cápua afeminasse os soldados
de Annibal. Dste sem largar a Itália manteve-se por
14 annos , tomando cidades, ganhando victorias;
mas Roma , que de dia para dia punha em pratica
novos esforços, levanta num anno 18 legiões e che-
ga a tempo de poder causar no exercito rival de-
cadência notável , como allirma Polybio. Todavia
Annihal era valente , e a diminuição de suas tropas
não foi bastante para o deter no desígnio de por
cerco á capital do mundo , posloque teve de desis-
tir em 211, por causa das chuvas , gelos e ventos ,
sem saudar as muralhas de Roma. O cônsul Jlar-
cello veio em seguimento guerrea-lo em três dis-
linctos comL.ites que obrigaram .\nnibal á retira-
da , ao passo que Asdrúbal seu irmão se dirigia a
Roma , para soccorrè-lo , e encontrando Cláudio foi
por este desbaratado e morto. O romano , recolhcn-
do-se a seu campo , trouxe a ensanguentada cabeça
de Asdrúbal que mandou pregar á entrada do acam-
pamento de Annibal. A perda do irmão , que mui-
to por suas virtudes amava , consternou o general
carlhaginez e o moveu a voltar a Africa para tam-
bém salvar a cidade pátria, que apertada por todos
os lados sentia internamente os eITeitos de guerra
por tal forma ruinosa. Viram-sc então os dois afa-
mados guerreiros, Annibal e Scipião , para ajustar
a paz , mas não querendo o romano encetar a ne-
gociação sem que primeiro o senado de Carthago
desse reparações ao de Roma discordou das propo-
sições do carthaginez , e travando-se a batalha , em
o anno de 202 , a perdeu Annibal nas cercanias de
Zama com morte de 40.000 dos seus. Esta funesta
jornada moveu os carthaginezes a procurar a paci-
ficação por meio de tratados com Roma ; e Annibal,
envergonhado de testemunhar o opprobrio da Íncli-
ta Carthago , refugiou-se na corte de Antiocho , rei
da Syria (3) e dizendo : livremos os romanos do ter-
ror que lhes inspiro : com veneno se privou da vi-
da aos 64 de sua idade , no de 183 antes de Chris-
to : lemos em Polybio megalopolitano que fora ca-
sado com uma senhora espanhola, por nomelmilce.
Tito Livio representa Annibal de crueldade des-
humana , de perfídia mais que púnica , sem reli-
gião, e sem respeito á santidade do juramento. Dis-
simulando nós o que leria do caracter e vicios de
sua nação, cremos que os actos attribuidos a Anni-
bal pelo historiador latino são precisamente apó-
criphos como nascidos do rancor que lhe professa-
vam os de Roma. — Valor mesclado de sabedoria,
firmeza que não consentia turbações , conhecimento
perfeito da sciencia militar , escrupulosa atlenção
em o pòr em prática , fazem crer indubitavelmente
que foi Annibal um dos melhores generaes , que
tem apparecído. Cultivou as lettras em meio do bu-
(3) Diz iiiliailo uniiiero de escrijiUircs que i. procurara
a còrle de Prusias , rei de Bythinia, e se matara porque o
hospede desleal o queria entregar aos romauos.
licio das armas. São muitos os que o inculpam de
não ter progredido com o exercito depois da bata-
lha de Cannas; repetindo o dicto do capitão compa-
trício , Alabarbal : — Annibal , sabeis vencer , porem
nãit subds aproveitar-i-ns da vicloria. — Outro escri-
ptor mais judicioso diz que Alabarbal não teve mo-
tivo para julgar tão de leve a tão conspícuo gene-
ral.
As Abtes , is Lettras . e as Sciencias em tempo
d'ei.rki 1). Joio 5.°
(Fragmento de wna obra inédita do século passado.)
E QUAL era então o ramo das cousas boas , que não
espalhasse llores nos dias de nosso augusto João li. °?
De quantos bálsamos não encheu elle céu e terra,
para medicar feridas lilterarias , e para que o hora
cheiro de suavidade atrahisse as que ihc foram suc-
cedendo? Assim o viu desde Alemanha o ingénuo
Struvio, pois que escrevendo das livrarias estran-
geiras , diz : — « Quando com o governo de Juuo o.°
amo.idicccu ás Musas luz mais serena , exvilou-se de
novo o amor das lettras por graça do Hercules , pro-
motor delias, n — Mas onde não o julgaram assim
doutos, e não doutos? Os livros, cujas impressões
promoveu , e pagou o liberalissimo soberano, estão
cheios dos elogios mais pomposos e verdadeiros ,
que possam escrever-so. O príncipe humaníssimo
gloriava-se de ser na Arcádia romana sócio com o
nome de .\rete Melleo. Em numero de quarenta e
trcs foram os agradecidos pastores , que pranteando
sua morte , levantaram em torno de seu mausoleo
saudosos cyprestes cm sentimento e recoramendação
da grande vida. que perderam. Tudo isto é demons-
tração, com aljonações de virtudes mil, do que es-
creveu o custodio da Arcádia, Morei, nas Jlemo-
rías daquella florida Sociedade.
Supponha-se como certa a celebridade, que des-
fructou este soberano cm muitas nações. Porem se
este logar não é agora para tanto referir , não po-
derei conter o peso , que faz cm minha memoria ,
alem d'outras muitas expressões a Gratulação, com
que AuloAmnis exaltou o nome do nosso rei. Como
aquelle sábio não quiz por força da lei Roscia de-
por o véu , declaro fallar do excellente varão D.
Gregório Mayans. Nessa Gralulaijão manifestou em
compendio tudo quanto pôde obrar de grande e il-
lustrc um incomparável monarcha , e promotor das
.lettras. Vem o dito cortejo no tom. 3.° de uma das
edições de suas Cartas.
Se o rei prezava as sociedades externas de let-
tras, mostrou que a politica, sabiamente ordenada,
obrigava a forma-las , e adorna-las em casa ; nem
certamente faltaram nella os Lconio e Crescimbcne
para idea-las, e servi-las. Tanto era necessário, pa-
ra se repararem as falias , em que incorreram as
lettras , desde que as Musas se esquivaram contra
Palias armada pela guerra da successão de Hcspa-
nha , e pelas inquietações das Communidades Re-
gulares no princípio do governo deste soberano. Es-
tas dissensões monásticas foram appendices das cam-
panhas e guerra longa , e dos desaguisados foren-
ses , e distracções políticas do século de seiscentos
entre pessoas , que se por ventura para os estudos
socegados tinham vontade, fallava-lhes o ócio.
Viu-se o rei, e viu suas cousas. Decidiu que let-
tras seriam distracção de males , e logo seguiria o
esplendor nacional, e desempenho de uma das obri-
gações essenciaes do direito da magestade. Por me-
262
O PANORAMA.
Jior direi que o reino fez desta vontaiJe soberana in-
teresse e religião : a estes fins converteu sua acti-
vidade ; tralialhou cm todos os ramos de litteratu-
ra , produzindo novedios de outros, já enraizados;
c os demais forniaram-se de nova plantarão. O que
nós viamos naquelles dias era muito Ijcm querer ás
lettras, era diligencia, alegria, o sacrifício aprazí-
vel de todas as potencias , para todos os desempe-
nhos. Estudou-sc, c muito , e de vontade. Forniou-
se , e continuou o costume. Amou-se tal vida , por-
que nella girava a alma universal, que presidia ,
que fomentava , e que era guia , protecção , e pre-
mio. Sejam heróicos os estudos particulares, sejam
polidos, tenham direito a grandes créditos; se a
alma da nação de tanto se não possue , se nisso tu-
do ella não respira , e se ainda mesmo não ostenta
respirar, esmorecem os particulares, sentem desa-
lar-sc dellcs o centro ; e tarde ou cedo cahem , e
na tristeza c desamparo se consomem.
Naquelle reinado , já que a providencia por an-
nos e annos lhe não permittiu desasocego , foram
suas felicidades mansas, e cuidou-se nas lettras ,
ora levando-as com desejo de perfeição , ora pon-
do-as era caminho, para que ellas cm nova surccs-
são tomassem estado seguro, e agradável. Receben-
do desde então as sciencias novas graças dedicção,
c extensão maior de luzes, vingariam assim a nova
herança contra os males , que a outros propósitos
lhe podesso causar algum fado preto nos bons estu-
dos.
Vingança , por certo bem merecida , porque no
governo do senhor rei D. José 1." as sciencias e as
artes neste reino tem dado que admirar pelas sabias
leis, disposições litterarias, e intimação de melho-
res estudos ; prémios, e despachos, em que só lhes
faltou a vida do heroe soberano , victorioso de em-
baraços enormes, para concluir o começado com em-
penho digno de toda a boa e feliz sorte ; e de que
corressem no publico maior vulto de producçõcs lit-
terarias , quaes promcttia seu formoso apparato. Os
diaristas de Leipsic escreveram , dando conta da
nova legislação iitleraria da Universidade de Coim-
bra, que o rei José merecia o raro conceito de sá-
bio promotor das lettras ; masque no entretanto não
podia conseguir o que pertcndèra. Não rellectiram
sobre a capacidade da nação : foi agouro nascido de
sobreviver o raonarcha aos Estatutos da Universida-
de seis annos unicamente, atribulados com a guer-
ra do sul, e enfermidade lenta e mortal.
Em cousa , que não é agora o principal objecto ,
serão bastante ligeiros, mas necessários, toques so-
bre os cuidados litterarios no reinado do senhor D.
JoãoS."; porque amassa de si é especiosa. — Abriu
exemplo a Academia Real da Historia , instituida
generosamente , na qual as virtudes libcracs mos-
traram quanto podem. As ordens religiosas produ-
y.iram suas historias , e apoz ellas se imprimiram
muitas outras memorias a outros respeitos , úv. que
recebeu a religião c a pátria muito credito. Mere-
ce a Academia Real da Historia elogios mui deco-
rosos pelo ardor , com que se esmerou , pelas mui-
tas obras de necessária instrucção c rauito apura-
das , que produziu ; c ainda mesmo por outras de
outro género; porque ellas se devem considerar co-
mo hu e estimulo para excitar outros homens , e
outras producçõcs. Esta Academia descobriu minas
riquíssimas de noticias , cujo elogio nunca hãode
apoquentar os descobrimentos mais afortunados, que
se lhes tem seguido. Delia nasceram, c a cila fize-
ram apparato mui sensível as composições históri-
cas, que a foram acompanhando com muita compe-
tência , e cortezia , dando lume útil á nação. O rei
com seu exemplo merecia a cooperação dos vassal-
los. Elle mesmo ia á Torre do Tombo examinar do-
cumentos. Para memoria de sua judiciosa condes-
cendência sobre a conservação de nossas Memorias,
escrevo o que recebi da boca de Manuel da Maya ;
que indo eirei á Torre , c qnasi ao anoitecer , lhe
perguntara aquelle guarda-mór se dispensava na lei
do archivo , para ir buscar luz de vela : respondeu
o rei que era fácil elle voltar, com tanto que se
conservasse illesa unia tal cautella.
Mas da academia diziamos. Quando o velho An-
tónio de Carvalho gemia debaixo de cuidados e di-
ligencias, mal pagas pela lórtuna escassa, que se
atreveu a competir vicloriosamente com os prémios,
então formou no principio do século uma quasi au-
rora da academia, dando á luz a Corograpliia Por-
tugiieza. Outros , e outros curiosos lembraram por
modo pratico aos patriotas a obrigação de contarem
ao mundo a dignidade dos procedimentos nacionaes.
Eis-aqui o espirito dos três saudosos irmãos e sá-
bios, Barbosas. A conservação da litteratura portu-
gueza na liibiwtltcca Lii.nlnim merece toda a me-
moria agradecida. Pelo que nós hoje sentimos, igno-
rando os cscriptos dos nossos coetâneos, devemos
passar á estimação do que nos conservou o abbade
Diogo Barbosa. Junto a esta memoria vou collocar
as fadigas dos eruditos beneficiados Francisco Lei-
tão Ferreira , e João Baptista de Castro , decoros
do clero secular, trabalhadores incansáveis , e de
muita erudição. Alem de muitos , e muitos outros
investigadores de nossa historia , seja o meu béjen-
sc dominicano , Fr. Francisco de Oliveira , um no-
tável desengano de paixão pela historia , e do pre-
ço de fazenda e vida consumidas por elle cm des-
cobrir monumentos da antiguidade. Nós certamente
os vimos por elle descobertos, e desapparccidos por
outros. Fado triste haveria acabado algdns restos,
que eu tenho podido salvar a pedaços, e sangue. (•)
Deixada agora a bibliographia de crescido nume-
ro de curiosos , que ou se deram a ler em seus es-
criptos , ou padeceram a desgraça de que o terre-
moto fatal devorasse as suas collecçõcs, e suas com-
posições , c actividades litterarias , faço memoria
das grandes fadigas da Academia Real da Historia.
Pelos sábios indivíduos delia conhecemos o fervor
dos estudos , e determinação libcralissíma de dar
ao publico noticias e luzes variadíssimas. Só aqui
recorda as duzentas c duas obras diversas , que já
no anno de vinte c nove tinha promptas o conde da
Ericeira , Francisco Xavier de Menezes , que sen-
do impressas dariam cm cem volumes , cujo cata-
lago so acha no fim da Fabula de Eccho e de Nar-
risn, na qual respondeu elle pelos mesmos consoan-
tes a outra símílhante Falnda do marqucz de Mon-
tcllano, em as reaes vodas dos nossos príncipes,
celebradas no Caía. Logo depois se imprimiu a Bi-
Uiolhcca Simmna , que mostra a variedade de espc-
cies, que então se volviam. O desembargador Igna-
cío da Costa Ouiiitella dou á luz a JlihHofhcca dos
Jurisconsultos Ltisilaiws , e intentava não só dar os
nomes, como deu, havendo-se depois descoberto
muitos outros , mas lambem as mesmas Postillas ,
começando pela da Instituição dos Ucrdeiíos , dicla-
da por Pedro Barbosa ; c isto fazia com meditações
e projectos sobre direito lusitano, e disputas ana-
lylicas , com emulação aos Cujacios , e como o sa-
7õ ^Kstcs restos ainda liuje se conservam na Bibliollieca
l'ublica liijoreusc. - -
o PANORAMA.
263
bio Mayans enviava a Mccrmans para a sua grande
collecfão. Deixo esta parte das nossas erudições, e
prendo-me á Academia da Historia.
Foi seguindo o exemplo de seu instituto , que
desde o século de seiscentos havia já fundido pelo
reino, levantando-se outras academias de novo, par-
ticulares , e desenganando as i)ovoaçõcs principaes
do reino quanto ódio tinham os nossos ;i ociosida-
de, e de quanto poder é a inclinação dos sobera-
nos era bem dos povos, particularmente onde a cor-
tezia compele com a vassallagem. Tomou calor a
academia do conde da Ericeira , occupada em lar-
ga philologia. O senhor infante I). António foi pro-
leclor de outra academia, celebrada uo mesmo seu
gabinete do paço, para escrever as memorias das
artes e sciencias; ò que me faz lembrada a iuno-
cenle Macariopotis do nosso bcmaveuturado prínci-
pe D. Tlieodosio , instituída no seu gabinete.
A curiosidade genérica d"elrei determinou a seu
enviado junto ;i santa sé, Jlanuel Pereira de Sam-
paio , formasse a collecção de quanto pertencesse á
historia do reino , que nas bibliothecas da Guria
podesse descobrir. Pode ser que desta lembrança
seja algum desempenho a collecção debaixo do ti-
tulo Summirta Lusilanica , de que se sabe passar
de oitenta volumes (::). Este mesmo pensamento
eommctleu cm o anno de cincoenta e seis o rei ca-
tholico , Fernando VI , ao sábio arcediago Francis-
co Pcrcz Bayer , como elle insinua uo seu Dâmaso
e Lourenço vingados a Hespanha. Com igual curio-
sidade encarregou clrci a seu ministro plenipoten-
ciário junto a S. M. Britannica , Sebastião José de
Carvalho e >[ello , para que formasse uma collec-
ção de bíblias hebraicas, e de tudo quanto perten-
cesse a seus ritos , leis , costumes , c policia em
qualquer das línguas vivas ; o que elle desempe-
nhou , chegando essa preciosa collecção a Lisboa
cm o anno de setecentos e quarenta e três. Xomea-
do por este tempo Martim de Jfendonça biblíothe-
cario d'clrei, adiantou este ramo de erudições, fa-
zendo vir no mesmo espirito as referidas obras na
língua original , de que elle era muito intelligente.
Mas linces lentara-se a dar de mão era tantas fa-
digas d'elrei e da academia, por lhes faltarem de-
licadezas e verdades apuradas. Já comludo as sol-
lícitavam muitos membros da academia : já o que
de nós pretendiam os bollandistas e críticos deTre-
voux se chamava a bom exame , ou para condes-
cender, ou para rei>ugnar devidamente : já na iden-
tidade de rasão com o admirável niarquez de Agro-
poli , e seu favorecido Nicolau António, e com as
scveridadcs do deão Alarti , e delicado senso do ze-
lantissimo llayans, se trabalhava em proporção de
justiça e equidade, sendo lodus elles corresponden-
tes de nos-as academias. Estes votos e diligencias
sobre os trabalhos de ajuntar e digerir memorias
eram cançada occupação de nossos académicos his-
tóricos , que todavia não excluíam outros estudos.
(Continuur-se-liaJ.
Da variedade do gentio da I.ndia , e especialmente
NO rilE TOCA Á EELIGIÃO.
Depois que dissemos alguma cousa do fructo que o
padre Francisco naquella costa fez em os que já
eram chrístãus , aos quacs elle se deu sempre por
mais obrigado que aos infiéis ; segue-se que digâ-
(::> Esta vTaiuIe collec(;5ci, que passa não só ile 80vol.
mas de 200 , em íol. , está na Bibliolbcca Beal Ua Ajuda-
mos também quanto trabalhou , e o que acabou na
conversão destes. E postoque servira para melhor
se entender esta parle da historia tratar aqui um
pouco mais largamente da natureza , sortes , quali-
dades, e costumes do gentio da Índia, cu, deixan-
do a outros tudo o mais, farei caso somente do que
tem respeito á religião. Das cousas do céu e eter-
nas ha entre elles mui pouca ou nenhuma noticia :
nas Icmporaes , e da terra são espertos , e tão en-
tendidos , que não dão vantagem nas subtilezas dos
l ratos , c contratos aos mercadores da Europa. Es-
timam só esta vida , e os pontos em que põem a
honra , que , como anda cora a vaidade e incons-
tância da opinião dos homens , são lá mui differcn-
tes dos de cá : viciosos tanto em cabo., e tão deso-
brigados á fé e verdade humana , que parece per-
deu com elles a própria consciência, ou o ollicio de
remorder, ou de toda a auctoridade c força de
convencer e persuadir : sendo na raechanica das ar-
tes estremados, das sciencias tem somente alguma
medicina, e' da astrologia o que basta para tira-
rem os eclypses do sol e da lua , tanto d'anlemão ,
e a ponto como nõs. Escrevem com pennas de fer-
ro , e servem-lhes de papel [como de mil outras
cousasl as folhas das suas palmeiras , de qne fazem
grandes livros das historias dos tempos e d'outras
muitas matérias , assim em prosa , como em rima ,
da qual , e de toda a parte , e de toda a sorte de
poesia são por extremo curiosos , e tão enlevados
que para o demónio por seus ministros lhes fazer
crer as mais fabulosas patranhas contrarias a suas
próprias leis , e rasão natural . basta porcm-lh'as ,
e cantarem-lh'as cm verso , que postoque no nu-
mero das syllabas seja mui dilTerente do nosso e
do latino [porque em cada um hade haver setenta
e duas] não deixa de ler sua graça e magestade.
Nestes versos está escripta em uma língua particu-
lar chamada gcwdam a sua philosophia e theolo-
gía , que os brâmanes estudam e lècra era univer-
sidade por toda a índia. Consta esla doutrina de
quatro partes, cada uma das quaes se divide pri-
meíramenle em leis a que chamam corpos ; e de-
pois em dezoito com o nome de membros , e final-
mente em vinte e oilo intitulados artículos. E tra-
ta-sc na primeira das quatro partes da causa e prin-
cipio do Universo , da primeira matéria , dos an-
jos , das almas , do premio do bem , do castigo do
mal , dos elementos da geração e corrupção das
crealuras ; que cousa seja peccado , como se deva
remir, e quem pôde delle absolver. São o argu-
mento da segunda os espíritos que elles intitulam
regentes dos céus c dos elementos , e a que dão o
governo de todas as cousas criadas. A terceira par-
te toda é moral , de bons preceitos e conselhos , as-
sim para a vida politica , como para a contemplati-
va , de que fazem particular profissão. A quarta
contém as ceremonias dos pagodes , os sacrifícios .
as festas , e á volta disso muitas feiticerias , encan-
tamentos , e grande parte da arte magica. Na dis-
tincção das gerações e famílias fazem vantagem a
outra gente do mundo. É nada em sua comparação
quanto nesta parte houve entre as casas e tribus
do povo d'Israel. Porque em muitas famílias do In-
dostão nem somente não podem casar as pessoas
j d'uma com as da outra, mas nem comer á mesma
] mesa, nem entrar na mesma casa, nem estar, nem
passar juntamente pela mesma rua. Assim tem re-
partido os oficios de serviço da republica , fazcn-
i do os de menos sorte t.smechanicos, com tal ordem
I porem que cada fainilia usa o seu tem poder ia-
264
O PANORAMA.
mais entrar no da outra. Os nobres, ou são nai-
rcs , que seguem somente a guerra , ou brâmanes ,
a quem pertence o falso culío dos pagodes , e me-
neio de suas superstições. Estes fazem a todos os
outros grandes vantagens ; porque alem do falso sa-
cerdócio , tem o poder c auctoridade real , que an-
da na sua família já de muitos annos, tom cujo fa-
vor cila c a mais respeitada, e dilatada na índia e
em outros muitos reinos orientaes. Professam geral-
mente grande abslinencia, porque de mais de mui-
tos jejuns que tem, nenhum, posloquc seja rei,
pôde por nenhum caso beber vinho, nem comer al-
guma sorte de carne , ou pescado , nem cousa cm-
lim que tivesse vida. Mas ainda entre ellcs ha mui-
ta diversidade. Uns vivem com suas mulheres c fi-
lhos nas villas c cidades, tratando a mercancia
como toda a outra gente. Outros , a que chamam
jogues , e os gregos antigamente chamaram gymno-
sophistas, vendem-se por homens castos, não se
obrigando nunca ao matrimonio ; dos quaes muitos
tomara por vida peregrinar por todo o oriente, pre-
gando á gente cega os sonhos de sua superstição ,
que acreditam c persuadem com grande aspereza ,
com que se tratam assim no vestir, como no comer.
Alguns entrando pelos desertos, c meios enterrados
nas lapas e covas das feras , passam com incrível
solTrimento quanto se pôde imaginar de dureza e
trabalho, em fomes, sedes, frios, calmas, nude-
r.a , contínuas vigias, fugindo, como se lhe tive-
ram ódio , a tudo o que i)ódc ser de gosto e alento
á natureza. Mas feito o noviciado e curso deste tem-
po, c ellcs agradiiados á ordem que entre si tem
com o nome de abdutos , e pela qual dissimularam
cora tão forte vida, ficam em premio da falsa peni-
tencia, c por gloria da mais falsa religião, com pu-
blica licença para se engolfarem em toda a sorte
de vicios, por abomináveis que sejam, sem alguém
se poder nem escandalisar quando os vê , nem ag-
gravar quando lhe loca : havendo que até das leis
da rasão c da vergonha os fez não somente isentos ,
mas senhores , aquelle seu deserto e supersticiosa
aspereza. Que quando é religiosa, como o foi a dos
santos ermitões da lei da graça, tem por fim a per-
feita imitação da pureza dos anjos nas almas e nos
corpos , e não vai parar naquelles monturos de tor-
peza , com que o inimigo de longe faz negaça aos
infleis cegos, c tanto mais carnaes quanto mais sof-
frem pela carne.
Acerca da noticia das cousas divinas, e naluraes,
e moraes um livro ha entre os seus, que contém mil
e trezentos e trinta versos , escripto na cidade de
Meliapor , quasi no mesmo tempo que nelle prega-
va o apostolo S. Thomé , por um homem chamado
Valuver, cuja doutrina os mesmos brâmanes tem
cm grande reputação, e ella o merece, porque dá
boa noti<ia d'um só Creador do mundo, e trata da
reverencia que se lhe deve , do despreso dos Ído-
los, da necessidade da penitencia, do preço da hu-
mildade, contras virtudes, portão bons termos que
se presume teve o auclor conhecimento com o san-
to apostolo, e que delle tomou o que escreveu. Aos
mais livros da philosophia ctheologia dos brâmanes,
não ha verdade |se alguma ha] que não esteja ves-
tida, c acompanhada de muitas e mui prcjudiciaes
mentiras ; o assijn posto que tratando da primeira
causa , a chamam Deus , e digam , que é ura espi-
rito puro , incorpóreo , infinito no ser , no poder ,
na bondade , e de tal maneira immenso , que está
inteiramente em todas as cousas , e partes do mun-
do ; lugo porem ajuntam que, uuo eutcnde no go-
verno delle, negando-lhe totalmente a providencia,
e apoz isso o temor, adoração, e serviço dos ho-
mens ; obrigando-os por outra parte a idolatria do^
três espíritos , que fazem regentes das espheras do
fogo, do ar, e da agua. Porque ao que dizem que
governa a terra , a que chamam Bráhema , não or-
denaram pagodes nem sacrílicios , persuadindo ao
povo bárbaro e cego ser sua vontade delle que o
adorem , e situem nas pessoas dos mesmos bramc-
nes , por descenderem delle por antiga e immortal
geração, e o representem como seus verdadeiros fi-
lhos melhor que nenhuma imagem , nem estatua.
Oue foi diabólica invenção para o inimigo repartir
entre si c seus ministros a adoração toda, e a tirar
somente ao verdadeiro Deus. A todos aquelles espí-
ritos regentes do mundo fazem como filhos da pri-
meira causa , e participantes da i)rimcíra divinda-
de, e por honra, e culto supersticioso dos três, que
dissemos, traz cada brâmane nm tiracollo de Ires
fios alados , e rematados em um só nó. E tem nos
cdificios dos pagodes algumas torres , que sendo
Ires , c (lííTerentes nos alicerces c maior parte das
paredes , se vão ajuntar e acabar cm uma só pyra-
mide. E muitas vezes para significarem a confor-
midade queelles dizem ter os mesmos espíritos com
opcr.ihamá [que assim chamam á sua primeira cau-
sa] os pintam a todos três com um só corpo da cin-
ta para baixo, e da cinta para cima com três ros-
tos , que alguns dos nossos houveram como relí-
quias da fé da Santíssima Trindade, pregada [di-
zem] antigamente em todas aqncllas partes , e de-
pois apagada e trocada pela industria do demónio.
e peccados dos homens. Tudo pode ser. Mas eu re-
conhecendo no Oriente a pregação e luz do Evan-
gelho já do tempo do apostolo .S. Thomé, ainda te-
nho os Ires deuzes dos brâmanes por mais antigo
engano e mera invenção do demónio que pelo rasto
que alli lioasse de nossa fé saniissima. Porque não
só nesta matéria , e naquellas castas , mas em to-
das as d'outra qualquer gentilidade [como notaram
bem os santos] pretendeu o inimigo fazer-se bogio
do verdadeiro Deus , arremedando [não em mais ,
porem em quanto lhe servia e serve para enga-
nos] assim os mysterios da lé , como as sagradas
ceremunias do culto divino: a fim que prégando-se
depois as verdades, as não tivessem os homens por
dilferentes das mentiras em que se criaram : que
quando a visla é curta, e as cousas tem alguma si-
milhança , facilmente se toma, ou deixa de tomar,
uma por outra. E assim veremos que nas ilhas do
Jajião , onde o demónio tinha mais contrafeitas nos-
sas cousas por encobrir as suas , arremedando até
a clausura , templos , hábitos , coro , e mais oíTi-
cios monásticos, com esta similliança fazem os bon-
zos não pequena guerra ao Evangelho. Porque co-
mo o lume da rasão natural , por claro que seja,
uão chegue por si a descobrir o particular e pró-
prio dos mysterios de nossa santa fé ; e no que dei-
los de fora alcança veja que lhes são similliantcs
aipiellas sombras lambem lançadas pelo inimigo, pou-
co basla para lhe |)ersuadir que tudo é na substan-
cia o mesmo, c que não ha para que façam mu-
dança da antiga crença, adoração c vida. — Padre
Jitão de Lucena, llisloria da Vida do Padre S. Fran-
cisco Xavier , capitulo XI [*).
(•) A quem n.~io tiver limpo ou fallar vonlaile <ie ler oio-
liiniiiso Lucena, olfpteieiiK s eslc exirnclo para que se veja
ipiai a certeza e veraciílailc ilc suas nolicias comliinanilo-nii
cuui «s inoilernus esci ipUiresesIraiifreirus. Quniilu a pura lin-
guagem elástica, qunlidaUe é cssji que uiiiguom llie Dvt'oa.
87
o PANORAItf A.
2(io
A POSTA 2>OS AFOSTOI.OS NA SE DE FAI,MA.
As ILHA? Baleábeí.
2.° (•]
A CAPITAL da formosa e ferlil Malhorca é a cidade
de Palma, assentada á horda d'agua no fundo da
sua espaçosa e circular bahia, aberta ao sul, e ro-
deada no contorno de uma légua de jardins e ca-
sas , que formam continuada povoação , tanto na
planicie que se dilata ao nascente , como sobre as
aprazÍTcis e viçosas coUinas do noroeste e poente.
N'uma destas, a pouco menos de légua da cidade,
carapèa e guarda-a como scntiaella vigilante o cas-
tello de Bellver, de estructura gothica e figura cir-
cular, flanqueado de elegantes torres, entre as quaes
sobresahe a de menagem : na sua origem alcaçar e
palácio de recreio dos reis de Malhorca : depois
fortaleza e principal defensão da cidade : e por fim
(•"I O primeiro arliso em o u.° antecedenle.
Agosto 26 — 1843.
prisão d'estado , celebre pelo desterro de Jovella-
nos, e o espingardeamento deLacy. Na mesma cos-
ta , quasi na falda de Bellver , está o lazareto . o
castello de S. (iarlos , a torre de Senhas , e Porto-
pí , antigo porto de Palma , que por sua estreiteza
e acanhamento actual daria motivo a duvidar-se de
que em tempos remotos se abrigaram dentro delle
tresentas galés, segundo as chronicas referem.
Sem contar a numerosa população dos arrabal-
des, contem Palma no próprio recinto mais de trinta
e seis mil habitantes. É capital das Baleares, onde
residem as aucloridades civis e ecclesiasticas. Pes-
de 1483 teve escolas geraes , convertidas em 1(563
era universidade, que foi chamada Lulliana do no-
me de seu patrício celebre , Raymnndo Lullo : es-
tabelecimento que depois de seguir varia fortuna .
e estar por duas vezes fechado neste século , de-
sappareceu em virtude do decreto de 10 d'agosío
de 1842.
2.' Serie. — Voi. lí.
266
O PANORAMA.
Não carece 1'alma de hospitaes coiumodos , de
institutos de beneficência, de passeios públicos afur-
moseados de arvoredo: eabc-lhe e lhe pertence quan-
to ó devido a uma cidade de commercial importân-
cia.— As fortes e altas muralhas , guarnecidas de
baluartes, e cercadas de fundos c larguíssimos fos-
sos , que cingem completamente Palma , coracça-
ram-se em 1562 para substituição dos mui antigos
e arruinados, que sem du\ida haviam erigido os
árabes, e consistiam cm taipas grosseiras , de que
ainda vestígios se descobrem. A fabrica da nova
cerca levou o restante do século 16." e todo o 17.°,
e ainda cm 1801 não eslava concluido o lanço que
deita para o mar. — Virgens de sangue e de resis-
tência , sem vomitarem de suas alturas a morte ,
sem na grossura receberem destruidora bala , até o
presente outro uso não tem tido senão o servirem
de agradável passeio aos que naqucUe giro vão con-
templar como cm vista de panorama os distinctos
c diversos aspectos da cidade e das campinas que
estão visinhas.
Não pôde carecer de cdificios e monumentos di-
gnos de nota a que foi por mais de um século cor-
te de um reino llorcceute [se bem que pequeno] e
empório de commercio e trafego mercantil. Assim
((ue é avistada do alto mar, a grandiosa sé com
sua multidão de pyramides, sobrepujando lodos os
edifícios , se manifesta ; c logo a elegante Bolça ou
praça do commercio demonstra a riqueza de sua
gerência antiga ; como aquella testemunha o espi-
rito religioso coadjuvado pela opulência: as torres
maciças do paço , em cuja cima está como vigia
um anjo , denotam o primitivo poder e a dignidade
de curte : — trinla campanários de outras tantas
igrejas , c o amphitbcatro de casas cqroadas pela
maior parte de torrinhas e eirados, formara o con-
juncto da cidade.
A calhedral é de Ires naves , c sustentada era
columnas, que pelo esbelto e delgado delias, e sua
proporção relativamente á altura, causam assombro
aos que as contemplam; se muitas sés a cclypsam
cm riqueza de adornos e esculpturas , poucas a su-
perara era raagestadc e elegância do delineamento ,
p no grandioso c bem ajustado das proporções. To-
davia não se pense que é destituída de toda a cas-
ta de ornamentos : são dignos <le allcnção o bcUo
coro , a capella real , vários painéis de Mesqiiida e
outros professores , o relevo da capella de Corpus
<;hristí , os famosos candelabros de prata , obra de
dois artífices catalães, os túmulos d'alguns bispos,
o órgão que é mui gabado ; e os anjos e outras es-
culpturas de mármores na raiz dos arcos d'aboba-
da : porem o objecto arcliitectonico talvez mais no-
tável é a celebrada porta lateral , dita dos Apósto-
los . como na estampa se representa.
O teclo deste cdificio maguílico descansa sobre
duas ordens de sete columuas de ITJ-j palmos de
diâmetro c 1:>6 de elevação; o plano da igreja me-
de ÍOT palmos de comprimento e 19!) de largura
com 223 de altura na mais elevada abobada.
As .\llTES , AS LeTTRAS , E AS SCIENCIAS EM TEMPO
D'ELni:i D. João S.°
(Fragmento de uma obra inrdila do século passado.)
O MONno physico , ainda na parte da historia na-
tural , feitiço c aproveitamento nestes dias, mere-
ce lembrança digna de conservar-se. No anno de
vinte c quatro por ordem d'elrei foi Mcrveilleux
examinar as raridades de Cintra , onde achou uma
agalha , c se persuadiu haver alli mina de simi-
Ihantcs pedras. Era quarenta e oito foi á mesma
serra o inglcz Guilherme Duque , e descobriu três
grandes pedras de cevar, junto ao convento da Pe-
na. Em 1730 já recolhia era rauseu particular pro-
ducçõcs naturaes o cardeal da Cunha , e nesse an-
no lhe fez um regalo notável de muitas curiosida-
des da America Rodrigo César. Com a notícia des-
tas poderia, augmentar-se o catalogo das jilantas cul-
tivadas no jardim botânico d'elrei de Franca pelo
intendente Guy de la Brosse , onde traz mais de
três dúzias de plantas nossas , que se lhe manda-
ram. Já naquelle anno mostram as memorias do
tempo vir muito anil do Maranhão. Sebastião Esta-
co de Vilhena escreveu a Historia da Natureza , a
qual foi licenciada para a impressão cm o anno de
vinte c sete. Slatheus Saraiva compúz a Historia
iratiirai da America. João Ferreira Matado , alge-
Iiííta delicadíssimo , que felizmente curou o des-
mancho cuidadoso de uma perna ao senhor infante
D. Francisco , formou uma bastante collecção da
historia e préstimo das plantas de Africa , a qual
trabalhou em !sa!é pelos annos de \inle, e eu a vi
na minha mocidade. Ignacio José Slagro escreveu
a Pharmacopea das Plantas da Comarca de Beja.
Neste espirito veio a Lisboa Merveilleux , suisso ,
para escrever a historia natural deste reino : para
desenhar as plantas trouxe a Guilhart, como escre-
ve Guariente no Aheccdario 1'illorico. Também é
daquelle reinado a sociedade sobre os interesses de
todas as minas do reino, cuja administração foi da-
ài a Manuel da Cruz Santiago, na forma do alvará
de 20 de dezembro de 1709, e repetida em qua-
renta ; na qual havia facultativos ; exceptuando das
espécies as minas de ouro puro , praia pura , c pe-
dras preciosas. Quem não dirá ser enlão a abertu-
ra das minas da America na parle mineralógica ura
grande decoro da historia natural, logo que não se-
pulte a industria?
A curiosidade c interesse das fabricas tiveram
expediente, armando-se os teares no amio de trinta
e dois nas casas dos Prazeres do conde da Ilha . e
depois na Cotovia. Os que havia em Bragança e La-
mego esperavam o governo mais desembaraçado de
outros cuidados , ou que sendo superior aos traba-
lhos soubesse com elles unir as providencias eco-
nómicas c polilicas em beneficio dos povos. í". cons-
tante que o circulo vai mesquinho, se o coração
não dá respirações vigorosas e sadias. Para o adian-
lamenlo das arles mandou clrci moços que estudas-
sem fora , dos quacs uma parte licou estrangeira ,
e outros conheci em Lifboa e llouia. André Gon-
çalves, Ignacio de Oliveira, Domingos Nunes, mes-
tre de Joaquim Manuel da lioelia , tcnilo eorasigo
á frente o recommendavel Francisco > ieira , for-
mam uma excellenlc porção de pintores sábios cm
todas as partes de sua grande faculdade. Os Debrj
deixaram no reino desenhos de sua invenção , mui-
to dignos. As obras de Mafra, aqueducto de Lis-
boa , e Arsenaes acreditam ao mesmo tempo a ge-
nerosidade do protector das artes, c os inventores,
e polidos artislas que as desempenharam. Entre el-
les SC distingue João André (iazzo , que fez o di-
gno c engenhoso arsenal de Estremoz , e os quar-
téis nos castellos em a cidade de Évora. Da enge-
nharia lambem é certo ser acreditada por sábios
com exercício. Nas machinas de Custodio Aieira ,
o PANORA3IA.
267
facilmente praticadas para massas enormes , só fal-
ta para seu acabado c merecido louvor não ficarem
descriptas ; assim como desejamos na poreellana do
raro engenho do brigadeiro Jiartholomeu da Costa ,
no que pertence á fundição c elevação da estatua
equestre do senhor rei D. José. A historia deste ar-
tefacto admirável está conclnida com Iodas as suas
(iemonstrações. Pôde renunciar-se á gloria da pu-
blicação? Muito a mereceu o senhor rei I). José.
Por cila está excitando os profundos e agradecidos
respeitos da nação. JiUa é na verdade symbolo de
tantas verdades , de quantas fez que fosse a mesma
estatua pregoeira o insigne , o pessoa original em
suas inscripções latinas, o sábio António Pereira
de Figueiredo. Mas engenharia foi cuidado especial
do senhor rei D. João S.° Em janeiro de trinta c
três baixou decreto ao conselho de guerra para au-
gmento de fortificações , accrescentando as .-luIas e
academias deste exercício em Elvas , Almeida, e
Viana ; mandando que em cada regimento de infan-
leria houvesse companhia de engenheiros ; c que
nem pedreiros, nem carpinteiros fizessem plantas
de edificios , nem medissem obras, sem lerem ap-
prendido geometria. Em 10 de março do mesmo
anno deu soldo dobrado ao tenente coronel Chcr-
mont, e ao coronel Josó da Silva Paes. Aquellc en-
sinava toda* as partes da mathemalica necessárias
para a guerra , principalracnle a fortificação.
Já em novembro do anno de quinze fizeram um
notável acto na sala da galé , a que assistiu eirei ,
os discípulos de Domingos Vieira , lente na aula
real das fortificações. E no anno de vinte Manuel
de Azevedo Fortes havia feito uma representação ao
rei sobre a forma e direcção que deviam ter os en-
genheiros, na qual dá iustrucções para melhorarem
as novas academias da fortificação, que clrei D.
Pedro mandou formar nas províncias do reino. E
de antes em 1713 havia mandado elreiD. João tra-
duzir e imprimir a Fortificação moderna de PfefTin-
ger. André Piibeiro Coutinho, soldado exercitado no
sitio de Belgrado, e na inòia , o qual depois pas-
sou a Colónia , publicou pela estampa inslrucções
niililares. Dos Exames de Artilheiros e Bombeiros ,
por Alpoim , dizem ainda hoje os intelligentes te-
rem muito préstimo. Os reparos de artilharia, le-
vados á Catalunha , eram fabricados cora muito en-
genho , como diz o Deão Marti , na parte primeira
das suas Cartas pag. 110. Em setembro de vinte e
três teve principio o engenhoso arbítrio de brocar
ao mesmo tempo muitos cilindros de espingarda. O
engenho de serrar madeira junto a Leiria é do an-
no de vinte e quatro : e no seguinte começou a tra-
balhar a fabrica de vidro em Coina. Em vinte c
nove começou a da pólvora em B.irquarena por An-
tónio Cremer. Para o uso delia já de antes se ha-
via imprimido a RefularUo dos canos chamados de
três tempos por Bernardino Botelho d'0!iveira. Des-
tas idéas nasceu a vontade do fazer-sc uma demons-
tração publica , para a qual em junho de trinta c
Ires estava quasi acabada uma praça levantada na
Junqueira , cm que trabalharara os discípulos de
(^hcrmont.
Xa marinha repetiu Manuel Pimentel as dignas
memorias de seus maiores. A sua Arte de Xavcgar
confirma a justiça de ser elle em verdade cosmo-
grapho-mór. Domingos Vieira foi hábil mestre no
arsenal da marinha. Ainda qne o Marte Armado,
isto é, as Conclusões raathcraaticas em portuguez
com aquelle rosto , em o anno doze deste século ,
do jesuita Ignacio Vieira sejam reduzidas a sim-
ples pratica de Muniloria , Propugnaloria , Sfe.:
comtudo os princípios estudavam-se a propósito cm
Lisboa. Era Évora mesmo os ensinou o jesuita João
Francisco Musarra , como elle diz na obra latina
Astronomia brevemente exposta , impressa cm Messi-
na cm setecentos e dois, por instancia dos seus pa-
dres de Roma , quando deste reino se recolhia a
sua pátria , Sieilia. São cousa sabida as fadigas do
coronel D. Francisco Xavier Mascarenhas , como
quando no Terreiro do Paço em trinta e sete mos-
trou a bondade da formatura de columnas , de que
imprimiu uma espécie de apologia. Estas contendas
deram occasião a outros cseriptos : e são conheci-
das as contendas entre António do Couto Castello-
branco , c Manuel de Azevedo Fortes , pessoas de
muita intelligencia nas matérias da sua profissão.
Os olliciaes , que se recolheram salvos da guerra
pela successão d'I'espanha , tinham voz sabia , pa-
ra que não esqueçamos suas memorias nesta oppor-
lunidade. Pôde ler-se a este respeito o que refere
o P." D. António Caetano de Sousa no Tom. VIÍT
da Ilistor. Grncalog. da Casa Real. Sobre a cons-
trucção das naus, pelas diligencias, com que por
fora da pátria se adiantava esta profissão, quiz ei-
rei melhorar o systema de F^rancisco dos Santos , e
mandou vir constructor inglez. Assim como não
podendo promover Gaspar da Costa de Att.-ide o
seu projecto na Arte das Armadas navaes , embar-
cando capitão-mór das naus da índia , todo o mun-
do se prendeu aos arbítrios do P. Hoste.
Quanto ás sciencias physicas Luiz Badcn teve na
rua das Gáveas o seu gabinete , cm que fazia de-
monstrações. Elrei soube aproveitar o gabinete de
machinas do famoso Desauguillieres. Bento de Mou-
ra trouxe mil incentivos e documentos dos seus es-
tudos , e composições originaes , inventadas e res-
peitadas fora do reino. Os hollandezos , que elrei
mandou vir para reforma do Tejo, se não o melho-
raram , certamente fizeram que se tratasse da hy-
draulica. Destas espécies, ora aproveitadas, ora
frouxas , se formou o bello physico Manuel Angelo
Villa, constructor de quaesquer machinas, como se
não fazem mais acertadas e polidas. Elrei mesmo
gostava destes estudos , e interessava nelles o prín-
cipe. Cora elle observou curiosamente o eclypse de
agosto do anno de vinte enove; e o entregou ames-
tres destas úteis profissões. Teve elrei a curiosida-
de de ver compor os olliciaes da typographia , e os
fez ir ao paço para observar o mechanismo. \ cu-
riosa -Iríe dos vernizes de João Stooder cm hollan-
dez e portuguez é de seus dias.
.\ cirurgia e anatomia lambem melhoraram. A.
Cirurgia de Le Clero imprimiu-se traduzida em por-
tuguez cm o anno de quinze. Em abril de trinta c
ura se estabeleceu no hospital real eschola cirúr-
gica, dando as lições ísa.TC Eliot com cirurgiões de
partido, a quem elrei assignou a tostão por dia.
Manuel Gomes de Lima abriu no Porto a Academia
cirúrgica com estatutos approvados por aquelle so-
berano ; do que , e de outras cousas a isto perten-
centes , se pijdc lér a Introducção , que este incan-
sável erudito escreveu ás suns Memorias de Cirurgia.
O doutor Santucci começou as lições de anatomia ,
dando-lhe eirei trezentos mil réis de partido . alem
dos cento c vinte, que recebia do hoípiíal. Aposen-
tou-se o doutor Monravá , que havia ensinado esta
faculdade, e ainda cm o anno de trinta c dois pre-
sidiu aum actoexpcrimental, precedido de umdia-
logo , e naquelle se fizeram as dissecções sobre um
cadáver fresco de duas horas, e muito apto para as
268
O PANORAMA.
operações, por haver fallccido de merrss terçaãs.
Assistiram rauitos fidalgos, e notável concurso. Ain-
da que D. António de Monravá e Roca tinha cara-
cter avesso, era por outra parte sábio, e zeloso do
aproveitamento dos discípulos. Não se aposentou pa-
ra ócio . e alem do sobredito acto, fez três dias de
couclus(3es na igreja do hospital real de Lisboa cm
o anuo de trinta e dois , em que lhe argumentaram
os doutores Bernardo da Silva e Manuel de Moura.
Zombaram os competidores nesta crise de doutri-
nas , assim como a rudeza espantadiça de cousas ,
que ella ignora. Monravá tinha maneiras, e satisfa-
ção de si, mui desagradáveis ; porem as pedras en-
sossas mette.m-se nos alicerces para grandes edifi-
cios. Acerca da medicina , cm o anno trinta e oito
mostraram uso de Hippocrates , e erudição medica
franceza os doutores Ortigão e ("arvalho , entre os
pareceres, com que abonaram o doutor Taylor, mc-
<iico oculista de sua raagcstade britannica. Porem
como os sábios de zelo querem mais e mais, por
este motivo , e com muita rasão , estranhou entre
nós a falta de sciencias naturaes o erudito auctor ,
que cm cincoenta e um publicou o Projfcío desti-
nado á correcção e augminlo da sabedoria natural.
Como era versado na historia medica e cirúrgica
tinha presentes os combates , que de antes , e por
aquelles annos occuparam as prensas , como deixou
mostrado o Escudo Apoloqclico de Bernardino Bote-
lho de Oliveira sobre a parte onde se faz a sensa-
ção do objecto visivo , c outras. Sabia o zelo , com
que Francisco Lopes publicou o remédio ellicaz con-
tra a mordedura das viboras : como Lourenço Pe-
reira daUoclia extrahiu e curou uma hérnia óssea:
como se acudiu a preservar da peste temida , pelo
Tratado, mandado fazer por elrei , e muitas outras
cousas publicadas pela impressão : mas queria este
profundo medico a sua faculdade mais promovida,
e ampliados os meios de assim se verificar. Nós o
vimos depois satisfazer-se das profundas diligencias
para os estudos da L'nivcrsidade de Coimbra nesta
parte de sua profissão.
[ Coneluir-sc-haJ .
CASA AMBUI.AnTE NOS ESTADOS UNIDOS.
Uos MiMERosos viajantes modernos ha um , filho da
Península, dotado do talento d'ohservação e de zelo
estudioso ; falíamos do Sr. D. Ramon de la Sagra ,
auctor (lo interessante livro «Sinco mczes nos Es-
tados-Unidos da America do Norte " que tem mere-
cido as honras da traducção em vários idiomas e a
estimação dos sábios. — Km rasão da nossa estam-
pa daremos um pequeno trecho desta obra. —
Miaf/ara 1." d' Átjottn de 1833. — \ casualidade
deparou-me hoje uma sccna de notável ingenuida-
de para fazer contraste ás grandes o sublimes im-
pressões que esta paragem me leni oiícrccido : pas-
seava pelo caminho da planície que segue parallc-
lamente ao rio , e que a cousa de milha da estala-
gem atravessa um bosque frondoso. Na sua borda
percebi uma habitação de forma singular , como
nunca me capacitei que existisse cm parte alguma .
no todo linha a figura de um coche , de tecto de
tabolciro e de fundo como um bote : quatro rodas
pequenas separavam do chão esta vivenda original.
K curta distancia um homem trabalhava arrimado
a uma arvore a fazer barris ; no trage e semblan-
te manifestava infortúnio e resignação : cheguei-mc
e saudei-o , rclribuiu-me com aflabilidade , e ven-
o PANORAJIA.
2(i9
do-mc intercssario na sua sorte rcferiu-me a sua
historia. Era um francez, visinho de Slontrcal. on-
de vivia do fructo de seu trabalho uo oHicio de ta-
noeiro , porem a extrema concurrencia de emigra-
dos irlandc7.es foi diminuindo pouco a pouco o pre-
ro c extracrão de seus barris : ao mesmo tempo
uma hoa acção cansou a ruina de sua pequena pro-
priedade , hypothccada a favor de um amigo des-
graçado. Em tal situarão , privado de recursos e
de esperanças, juntou a ferramenta que lhe lic.íra,
e construiu a casinliola, que se mostra na estampa,
ideada para navegar, e também para transporte por
lerra. Acabada a sua arca , mctteu-se nelia com a
mulher e filhinha , e subindo pela corrente do rio
S.Lourenço, entraram no lago Ontário, cujas aguas
atravessaram do mesmo modo até o forte Jorge na
desembocadura do Niagara : aqui alugou quatro
bois para subir a costa, e continuando por algumas
milhas o caminho parallelo ao rio fixou a residên-
cia no bosque , porque a falta absoluta de recursos
o privou de progredir na viagem. «Por outro lado
[accrcsceutou sorrindo-se] tanto me aproveitava es-
ta como outra paragem ; porque quando parti de
Montreal não sabia por onde fosse , c a Providen-
cia me conduziu aqui. Puxei de minhas ferramen-
tas, armei o banco ao pó desta arvore, e cora umas
tábuas e arco» que havia salvado pude fabricar duas
tinas que vendi logo : assim comecei faz oito dias
e graças a Deus a obra não falta ; em cada celha
ganho dois xelins [pouco mais ou menos um cruza-
do] e posso commodamente fazer três por dia.» —
Em quanto pronunciava estas palavras o emigrado,
voltei a cabeça para a casinhola e vi sua mulher
mui robusta e risonha, que me cortejava com agra-
do. «O senhor ouviu a nossa triste Iiisloria [me dis-
se]; porem graças a Deus nunca nos faltou pão.»
— Ao mesmo tempo uma menina, que teria cinco
annos , desceu a escadinha e chegou-se ao pai : ca-
rinhosa e amável como a innocencia infantil , vè-la
era para mim a um tempo triste e interessante ,
considerando-a exposta d miséria c ao infortúnio :
porem felizmente tal idéa não allligia o coração de
seus pais ; os quaes me convidaram a entrar e a
que participasse de seu parco almoço. O convite
excitou em minha alma ura tropel d'idéas, e juro
que antes me negara á mesa d'ura monarcha do
que á daquelle homem resignado e contente no
meio das privações : tomei pela mão a estimável
menina , subi os cinco degraus da estada arrimada
exteriormente á porta acanhadíssima , e entrei na
casinha onde estava a mesa posta com o maior
aceio : só dois pratos de carne c batatas, um pão
mui volumoso, um tarro d'agua compunham toda
acoberta. Observei o caracter daquelle par; fiz-
Ihe varias perguntas , entretive-me com a creança ,
e á medida que fazia progressos nas minhas obser-
vações, entrou a lembrar-me uma idéa, a princi-
pio vaga , depois mais determinada e clara , e a fi-
nal a convicção intima , como a lenho da existên-
cia própria , de que aquella mesquinha casinhola
movei , como que arrojada pela desgraça para um
bosque deserto do Canadá ás margens do Niagara ,
era o santo alvergue da ventura conjugal. E em
que sitio , Deus omnipotente , se me appresentava
similhante exemplo ! Visinho a um prodígio da na-
tureza '•) , cuja immcnsidade me fizera conhecer a
pequenez das penas humanas, esse mesmo sitio me
(•) Refere-se á famosa criíaracta do Niagara: vid. a
breve descripçào de CliateaubrianJ traduzida a pag. 124
do Tol. 2." Serie 1.»
oíTerccia sob o aspecto da penúria , c rodeada dos
atlribulos do infortúnio, a única felicidade real a
que o homem deve aspirar na terra ! Providencia
inelTavel ! — exclamei no interior do meu coração
— concedes a paz do espirito, a resignação nas des-
graças , a impre\isão das fataes consequências da
miséria , os puros gozos do amor e da ternura fi-
lial , ao homem singelo e obscuro que arromccado
pela infelicidade estabelece entre as arvores seu
ninho como as aves ; c derramas o tédio, a inquie-
tação , a fatal ambição , no peito do opulento , de
cujo palácio fazem morada o egoismo , o ódio e a
perfidia !
Explicaram-me depois como tinham verificado a
sua navegação pelo lago Ontário. As rodas e a es-
cada guardam-se no interior da casa , o leme e a
verga para as velas arvorara-se sobre o tecto, c dis-
to cuida o marido ; e a mulher trata do arranjo
domestico, e dirige pela duas janellinhas lateracs
as cordas do leme. Esta singular machina não tem
mais de lo pés de comprido por (i de largo, divi-
dida em dois aposentos interiores por um lençol
que separa a camará da cosinha e refeitório : por
baixo do soalho ha um vão para guardar bastcci-
mentos , ferramentas , e o velame e cabos qnande
não navega.
Ma.nlel de Sousa de Sepii.ved.i.
Setembro de loíS — 3 de fevereiro de looS.
I.
O casamento , e o emlarqxic.
í/f- honraiiafama ,
J^ibfral , cattalh iru . i namorado.
E comsigo trará ajorinosa dama
Que amor por grão mcrcc lhe terá dado.
" . Lusíadas, Cant. 5.", Esl. 46.
O corpo da terra (inJia cstcndiílo sua vasta pyramidr
dfí sombras até o firmamento (»' , e n'essas sombras
envolto os muros famosos de Dio. As ondas batiam
inutilmente sobre o rochedo immovel que a defen-
de , e pareciam bem a imagem do poder da Ásia
vindo alli quebrar-se , havia pouco, contra as ar-
mas invencíveis dos nossos soldados. Xa fortaleza
ouvia-se um soido de passos de homens que iam la-
zer o quarto de prima a um baluarte. ISo caminho
que conduzia para esse baluarte estava uma casa ,
a porta meio-aberla, dentro luzes accesas, c os que
passavam viam distinctamente um homem sentado
u'uraa cadeira , com o rosto virado para a porta.'
Quem era esse homem? era Luiz Falcão, capitão
da fortaleza. Bem desprevenido estava , cntretendo-
se com um seu filho natural , ainda menino , que
tinha ao pé de si áquella hora, (|uando uma espin-
garda apontada sobre ellc da [larte da rua , acer-
tando-lhe na cabeça , o estendeu morto sobre o pa-
vimento. Ao estampido do tiro e alaridos do menino
acudiu a família, e divulgada a noticia pela fortaleza
correram á casa os amigos e apúselles entrou um
tropel de povo e soldados : mas ninguém pode ati-
nar de que mão viria desparado aquelle desastre.
Desceram á rua , e á luz de tochas foram apressa-
damente procurando por toda a parte o assassino .
(.) Bellissima imagem do P.- Bernardo, tmLtiz e Ca-
lor pog- 523.
270
O PANORAMA.
oa vestígios delle ; porem debalde, porque nada
encontraram.
Ao outro dia mostrava a cidadella um aspecto
sombrio e lúgubre. Dobravam os sinos : rolavam
compassados e raelancholicos os taraboics : via-se
uma ala de tropa marchando, semblantes abatidos ;
e outra de sacerdotes entoando psalnios fúnebres :
fechava um ataúde o cortejo. Entraram na igreja :
e pouco depois o governador de Dio , que ainda na
véspera era a alma da fortaleza , o centro dos mo-
vimentos daquella machina complicada , a voz a
quem obedeciam todos aquelles guerreiros , inani-
mado e frio como a pedra tumular que o cobria ,
tomava assento na habitação dos mortos. Preenchi-
dos os ofTicios da religião, faltava satisfazer aos da
justiça. Tiraram-se miúdas inquirições sobre o at-
tentado , mas não se achou rasto , nem ainda remo-
to, do seu auctor. Despediu-se immediatamenle ura
catur a Goa , dando conta ao governador , Garcia
de Sá , deste trágico successo. Garcia de Sá ficou
muito magoado [o motivo principal do seu senti-
mento logo o referiremos] , e sem perda de tempo
despachou Martim Corrêa da Silva para a capita-
nia de Dio , e em sua companhia mandou o doutor
Manuel de Mergulhão a tirar devassa. Este magis-
trado não poupou diligencias para averiguar a ori-
gem do crime , e até chegou a metter a tratos um
soldado por alguns indicios que contra e!le houve :
mas o soldado não confessou cousa alguma. Ficou,
assim , a victima no sepulchro sem vingador, c a
verdade no peito do delinquente sem se patentear
á justiça que a buscava : somente appareccu a sus-
peita na lingua dos homens, e a fama do delicio,
correndo a índia, despertou indignação geral con-
tra a covardia e atrocidade do assassínio.
Pouco depois houve ura casamento. Quem foram
os noivos?
Tinha duas filhas o governador Garcia de Sá , c
á mais velha , D. Leonor de Alboquerque , destina-
do por esposo Luiz de Falcão , alvo , como acaba-
mos de ver , de ódio occulto. Era Luiz Falcão ri-
co , e Garcia de Sá, para a cathcgoria a que estava
exaltado , pouco favorecido dos bens da fortuna , e
para adquiri-la então , muito adiantado em annos.
Por este lado o casamento que projectara , repre-
sentava-se vantajoso, e o accídenlc inesperado e ter-
rível que veio frustra-lo, devia, e cora rasão, doer-
Ihe profundamente. D. Leonor, sua filha, era mo-
ra , formosa , e sensível : seduziam-na outros inte-
resses, quão dilierentes dos que fallavam á persua-
são de seu velho pai. Tinha posto as aíTcições da
sua alma em Manuel de Sousa de Sepúlveda : com-
prehenderam-se os corações de ambos, c desde en-
tão que podiam , com serem tantas, as contrarie-
dades com que os alTrontava Garcia do Sá , senão
prender mais fortes e mais profundas asraizes des-
te amor? A bala de uma espingarda ^eio, impre-
vistamente , arrazar as duas barreiras únicas que
no mundo o contrastavam : cahiram por terra , am-
bas ao mesmo golpe, a resistência do velho e a vi-
da de Luiz Falcão. Contratou-se a união dos dois
amantes , c viu-sc então o que sempre se hade ver
neste mundo — a inconsistência dos juízos huma-
nos, e a pouca firmeza da opinião popular. As mes-
mas bocas que em toda a Índia , c principalmente
em (ióa tinham desfechado maldições e pragas ás
primeiras novas da desventura de f.uiz Falcão acom-
panhadas como estas vieram de conjecturas e ru-
mores sinistros , não faziam agora senão esparzir
bênçãos e louvores sobre os noivos. Chegado o dia
do recebimento, sahiu D. Leonor da casa paterna
para a igreja. Ornavam-lhe a cabeça , como o des-
creve Corte Real, umas laçadas guarnecidas de pé-
rolas de alto preço e admirável lavor ; levava Cr-
maes riquíssimos ; um vestido o franceza , de seda
verdegai , justo até á cintura, e da cintura alar-
gando-se com rnda até o chão ; as mangas largas ,
golpeadas e presas com botões de grossas pérolas;
um collar de brilhantes ; um cinto abraçando es-
treitamente o esbelto talhe da dama ; um custoso
manto da mesma seda e cor do vestido, cahindo-
Ihe airosamente do hombro esquerdo. Os olhos to-
dos se enlevavam menos na elegância e custo do
trajo do que na bellcza singular da mulher; e as
multidões aggiomeradas nas ruas e praças de Gôa ,
ao vc-la passar exclamavam : como é formosa! Ao
ver junto delia Manuel de Sousa , diziam : coino é
venturoso, c cavalleiro! Celebrada a cereraonia re-
ligiosa , converteu-se a cidade toda n'uma festa.
Primeiro houve jogos e torneios de nobres , masca-
ras e fogos de artificio, brindes e alegrias de ban-
quete , com apparatoso esplendor : e depois seguiu-
se o turno da plebe com suas danças e folgares
continuados por 13 dias.
Poucos mezes depois veio a morte em junho de
1349 apagar a carreira breve e pouco illustre de
Garcia de Sá : pouco illustre porque seria dillicil a
homem ainda mais qualificado do que elie era, ele-
var-se acima da craveira ordinária da mediocrida-
de depois do governo de D. João de Castro , como
administrador o primeiro e o mais zeloso que teve
a índia , e como delegado da metrópole um dos
que mais dignamente souberam representar naquel-
le império a magestade da pátria. Passou a Jorge
Cabral o glorioso bastão de governador da Índia.
Era melhor escolha que o seu antecessor. Aos pri-
mores de cavalleiro e esforçado juntava pericia ,
actividade e ambição nobre que é , nos que gover-
nam e commandam , aquelle frenezi infatigável em
remediar desconcertos , aperfeiçoar o que está cria-
do , e emprehender cousas novas. P.ealçava-o sobre
todas uma qualidade , muito para ser estimada em
taes legares — a de justo apreciador do mereci-
mento alheio. Com tão boa condição não podia dei-
xar no esquecimento a Manuel de Sousa de Sepúl-
veda que já se linha estremado em difierentes car-
gos e combates , e nos campos de Dio pelo seu va-
lor. Despachou-o em junho de 1330 de Gòa para
Cochira com quatro navios de remo , encarregando-
Ihe que reunido com a armada de Fernão de Sou-
sa e os mais navios que se podesscm apromptar .
fosse pôr bloqueio á ilha de Bardela , e reter , ate
que elle para lá partisse , os príncipes malabares
que alli se achavam prestando apoio aos intentos
ambiciosos do çamorim , em detrimento do com-
mercio da pimenta , o mais lucrativo que fazíamos
na .\sía. Jlanuel de Sousa desempenhou pontual-
mente esta coramissão , cercando a ilha de modo a
ser impossível ou a evasão dos sitiados ou o soc-
corro de fora. Mas pela variedade dos successos
I5ardela nunca chegou a ser oppugnada , c os prín-
cipes vieram a larga-la por convenção amigável do
Çamorim com o successor de Jorge Cabral , o vice-
rci D. Aflbnso de Noronha. Quando o více-reí ,
vindo de Portugal, passou em Cochim, nomeou por
capitão-mór dos rios, para expedir a pimenta, a
Manuel de Sousa ; e foi ainda durante este novo
cargo que o ultimo se achou n'um combale de mui-
ta importância para o estado, e muita honra para
elle pelo seu feliz successo. . ■•
o PANORAMA.
271
A historia narra-o assim. Eram 14 de fevereiro
de 1351 , e nesse dia estava para se embarcar o
ex-governador Jorge Cabral , para ao seguinte dar
íi vela , quando ;i noite chegaram uovas que entra-
vam porCochim de cima oito mil nayres, e vinham
fazendo grandes estragos, matando c assolando quan-
to encontravam. Esta noticia póz toda a cidade em
receio e ahoroço que augmentou quando se soube
que — demais de serem nayres, que quer dizer ca-
vallciros , e é rara de homens valentes — os ini-
migos vinham amoucos — juramentados a perecer
ua empreza , ou a leva-la por diante. Sahiram á
rua principal Jorge Cabral , o capitão da cidade ,
e Manuel de Sousa , e mandando tocar a rebate os
tambores , rcuniu-se toda a gente , e tumaram-se as
bocas das ruas para que os inimigos não penetras-
sem dentro de noite. Ao outro dia pela manhaã mar-
chou Manuel de Sousa a busca-los com l.òOO por-
luguezes , e alguma tropa da terra , ficando Jorge
Cabral com o resto dos soldados cm guarda da ci-
dade. Os nossos , divididos em duas columnas , en-
traram por Cochim de cima , onde andavam os
araoucos commettendo barbaridades e cruezas es-
pantosas, e cahiudo sobre elles, não os .destroca-
ram e aTugenlarara , como muitas vezes succedia ,
ao primeiro choque. Tiveram-sc os nayres firmes ,
c erapenhou-se a batalha, segundo diz a historia,
mais perigosa c disputada de quantas demos na ín-
dia. Jías a final rolos e desbaratados com morte de
dois mil delles, alcançou Manuel de Sousa viclo-
ria completa dos inimigos.
Recolhendo-se á cidade , recebido alli com mui-
tos applausos e dislincções, ficou naquella paragem
por obrigação do emprego até á jornada do Chem-
be. A essa foi com o vice-rei, e ajudou a expugnar
a cidade e a destroçar os príncipes malabares que
nella se achavam conjurados com o Çamorim em
ruina nossa , ou do trafico [que era o mesmo] da
pimenta ; como já fica notado , o mais considerável
com que então corríamos. E de lá regressou a Co-
chim para se embarcar para o reino, logo que che-
gasse deCoulão, onde eslava á carga, o galeão gran-
de S. João , que elle havia de coaimandar.
Chegado emfim com 4:oOO quiulaes de pimenta ,
tomou em Cochim mais trcs mil , c melteu outras
fazendas taes e em tamanha quantidade, que se af-
firma, não partiu da índia, depois que cila se des-
cobriu até então , embarcarão tão rica como esta.
Levava perlo de 200 portuguezes , muitos fidalgos
e cavalleiros , e mais de 300 escravos a bordo.
Nelle ia lambem Diogo Mendes de Almeida, porta-
dor de cartas e presentes que a elreí D. João 3."
mandava Xautaquim , príncipe de Tanixumaa , ilha
do Japão , pedindo auxilio de oUO portuguezes pa-
ra conquistar a ilha Lequia , e oíTereccndo em re-
conhecimento o tributo annual de sinco mil quin-
taes de cobre e mil de lalão. — Tão alta era e Ião '
dilatada afama do nosso nome '. Os que não prostrá-
vamos com as armas , vinham de seu moto próprio
humilhar-se ao poderio das nossas. Os fracos coita-
Tam-se ao nosso escudo. Os fortes iuclinavam-se a
nós , como a senhores. Os ambiciosos, como aquelle
príncipe japonez , de novas conquistas procuravam
a sombra da nossa bandeira, ou o braço dos nossos
soldados. Na Ásia não se soltava uma frecha , não
se disparava um mosquete, não se cruzava uma es-
pada que o não fosse por nossa causa. No oceano
não se proferia uma palavra que não fosse portu-
gueza ; porque língua de estrangeiros baixinho e
em segredo se fallava para qus a não escutasse o
ouvido sempre altento dos nossos canhões , para
que a não percebesse a amurada alterosa dos nos-
sos navios. Fomos grandes I . . . . fomos ! . . . Sobre
as cinzas que nos restam que se não apague , ao
menos , o fogo sagrado das recordações. Um dia
pude ainda vir em que elle seja fecundo.
Embarcados no galeão deixámos os passageiros ,
lodos, menos o capitão e sua familia. Chega este
enifim ao cacs cora a bella l). Leonor , e dois me-
ninos seus filhos , acompanhado de numeroso con-
curso de parentes e amigos, e de multidões de po-
vo. Divisava-se tristeza nos semblantes. Corriam la-
grimas neste apartamento; e as mais amargas eram,
e as mais sinceras talvez , as lagrimas do peão me-
nos costumado do que outros a fingir impressões
que não sente , ou a esconder as feridas c as do-
res do coração. O interesse que aili convocava as
turbas nascia de dois sentimentos que obram po-
derosamente sobre ellas : nascia da admiração irre-
sistível que excita o valor marcial, e de enleio des-
conhecido com que nos prende a formosura. O po-
vo que alli viera ao embarque amava a Manuel
de Sousa como vencedor dos nayres e defensor de
Cochim , e a D. Leonor como a mais suave expres-
são e o mais perfeito ideal da belleza. Misturava a
ambos em suas affeições ingénuas , e depois cons-
tellava cm grupo brilhante como esses do firma-
mento estas mesmas aíleiçõcs , confundia cm seu
affecto o prestigio do guerreiro cora os encantos da
mulher. De dois sentimentos primitivos se acendrá-
ra um só , novo c mais ardente , e esle sentimento
estava alli accumulado como no seu grande foco ;
multiplicado por todas aqucllas almas ; agitado, es-
timulado pelas circumstancías , pela occasião , pe-
lo sitio ; augmentado por um sem numero de fas-
cinações ; engrandecido pela communicação rápida,
eléctrica , mysteriosa , profundamente dramática de
tantos espectadores. Tristes todos elles , magoados
da separação preoccupavam-nos as contingências da
viagem , aíiligia-os a idéa vaga de futuros perigos ,
e do meio daquella pinha de povo ferventes orações
subiam ao céu pelo salvamento do galeão , e pela
fortuna de Manuel de Sousa de Sepúlveda e de D.
Leonor. Quem podia alli haver que a não desejasse
aos dois? Quem d'entre aquellas mullidões se lem-
brava ainda da morte de Luiz Falcão , o rival ia-
feliz e o noivo abortado? Ninguém, talvez, se lem-
brava delia. ... Só a não linha esquecido , cm su.i
memoria indelével , em sua consciência eterna , o
Juiz Supremo dos crimes dos homens '. . . .
Dado o ultimo abraço , embarca o capitão com
sua familia em um ligeiro catur que remando os
conduz ao galeão. Em cima já do cunvcz levantam-
se as ancoras, desfra!dam-se as velas, e cortando
as ondas diz o ultimo adeus aos muros . aos tem-
plos , ás torres , ás praias, c aos habitantes de Co-
chim o orgulhoso baixel. Os espectadores alongam
olhos sa;;dosos para elle, que se pavonea em lodo
seu fausto. Depois a cncur\adura da terra eucobre-
Ihe o casco , e já não offerete á ^ista senão as ver-
gas e as velas. Dahi a pouco só se descrimina o to-
pe do mastro. E logo dis!ingue-se apenas um ponto
escuro no ambiente indefinido que separa o mar di>
céu. Este mesmo ponto se dissipa em sombra. E a
mesma sombra desapparece nas regiões do ar, on-
de ainda procuravam avidamente o galeão os mora-
dores da cidade , onde cada vez mais lh"o afasta-
vam , occultando-o em suas névoas, os horisontes^
avaros I (Coniinuar-se-haJ.
A. tl'0. 5Iarrec4i.
272
O PANORAMA.
A MAMA DE DISPUTAR.
]Vão ha (empo cm que não tenha havido disputas,
nem ponto sohrc que se não tenha disputado. As
sciencias, as artes, a litteratura ministraram abun-
dantes materiaes a tantos homens que instigados por
sua vaidade pertenderam impor aos demais o jugo
de suas opiniões : árdua cmpreza 1 porque o amor
próprio é um inimigo indomável e tenaz, que com
difljculdade abandona o campo e quasi nunca se
dá por vencido. Como ha, pois, homem cordato
que lide para que triumphem as suas opiniões por
meio das disputas? — Não acharemos erro que não
tivesse sequazes , nem verdade que não tenha en-
contrado antagonistas. Jlil caminhos conduzem ao
erro , ura só á verdade ; e que homem sensato ter:i
tão cega e orgulhosa confiança era suas idéas que ,
julgando que só nellas se acha a verdade, se resol-
va a disputar para sustenta-las? \s opiniões combi-
nam com o tempo; e a diversidade dos povos mos-
tra na mesma epocha opiniões totalmente contra-
rias : saia , pois , do seu cantinho o obscuro dispu-
tador orgulhoso, e na prodigiosa variedade que no-
tar nas idéas das nações , que ora existem , achará
poderoso correctivo á sua fatal mania ; desfarte ap-
prcnderá a desconfiar das próprias idéas , a ser to-
lerante e não encetar disputas a cada passo e em
qualquer assumpto.
Não ha muitos annos que vivia um dispulador
dos mais accerrimos. Era aliás homem sisudo e de
talento , mas deslustrava as boas prendas com tão
latal defeito. Se algum militar [por exemplo] rela-
tava qualquer acção cm que se achara , interrom-
pia-o logo e coutava onde , como , c contra quem
se havia dado a batalha. Os seus melhores amigos
receavam visita-lo , pois apenas os saudava erapre-
hendia nova disputa, ou continuava com mais alen-
to alguma que tivesse ficado pendente : não basta-
vam a retrahi-lo ou corrigi-lo o silencio e sobre-
cenho com que uns manifestavam o seu enfado ,
nem a muda mas enérgica despedida de outros ,
que por não injuria-lo sabiam precipitadamente a
desafogar a cólera, sem dar-lhe outra resposta. —
Um dia veio despedir-se delle um visinho, que pa-
decia d'asma , dizendo-lhe : «meu amigo, é [ireci-
so que cesse o nosso trato e habitual conversação .
porque o medico m'o prohibe como prejudicial pa-
ra a minha moléstia. — Seus sobrinhos, esperanç.T-
dos cm herda-lo , viram a final a sua esperança fa-
lha porque lhes faltou a condescendência para tole-
rar a mania dispntadora do tio ; do que procedeu
achar-se este desamparado na velhice. Por ultimo,
n'uma tarde ao sahir d'um sermão veio-lhc febre,
de pura zanga de ter estado a ouvir sem poder
contradizer. Conservando o seu caracter até o fim ,
quando já mui doente e impossibilitado , fazia com
que disputassem o padre cura e o tabeílião , que
mandara chamar. Deus lhe tenha a alma no des-
cauço , em que deixou a todos por sua morte.
Ao chegar aqui , replicará talvez algum dispula-
dor— « então havemos de condemnar-nos ao silen-
cio , deixando correr o erro impunemente? Será
sempre loucura o disputar? . . . Não disputava Só-
crates , até nos convívios? Porventura não resulta a
verdade do embate de opiniões encontradas , assim
como sabe a chis|)a da pederneira ao golpe do fu-
sil? . . . 1) — Força é confessar, que as disputas pro-
duzem algum bem , mas esse bem escaco está mais
que compensado por mil inconvenientes e damnos.
yuanlo mais se disputa mais se embrulham e obs-
curecem as questões : o que pelo comraum succe-
de. Tão difficil é que o vesgo olhe direito , como
que rectifique seus erros quem vé as cousas de tra-
vez. O amor próprio não acerta a pronunciar esta
phrase — mio tenho rasuo, equivoquei-me ; e ha pou-
cos que a saibam apreciar. — O vento leva os nos-
sos gritos, c são baldados os esforços que fazemos
para persuadir a nossos adversários , conservando
cada qual a sua opinião como antes d'haver dispu-
tado.— Ainda que a verdade esteja pela nossa par-
le, nem sempre é opporluna a occasião de a dizer ;
e alem disso argúe pouca rasão perlender sempre
tè-Ia.
Açafrão. — Ha muitas espécies desta ulil plan-
ta ; a que Gorece no meado da primavera é annual,
oriunda da Africa , c em o nosso continente apenas
serve para ornamento dos jardins. É esta a açafroa,
rarlhamo ou açafrão bastardo (cartltamus íiHfíonus •;
é cultivada nas regiões do Levante porque das suas
bellas llores se faz tinta que dá á seda bonitas co-
res de encarnado escuro ; lambem se usa para tin-
gir plumas ; dos estames tira-se um bello verme-
lho, a que chamam vermelhão d' Ilcspanha ou laca
de carthamo. A semente é purgativa. Do Egypto sa-
be a maior quantidade do carthamo que consomem
as tinturarias francczas. Multiplica-se semeando-o
era janeiro ; da-se melhor em terra leve mas subs-
tancial , e quer as regas moderadas.
A espécie que serve á medicina e lambem ás ar-
tes mais que a outra é o açafrão propriamente dito
(crocus salivu.ij ; llorece no outono e cultivam-se
campos inteiros desta planta; e como a sua flor,
que é a parle aproveitável , não dura mais de dois
dias depois d'aberla, é necessário fazer rapidamen-
te a colheita á forca de gente. Assim mesmo a úni-
ca parte da llór , que dá a cór , c que se emprega
é o;pislilo; extrabe-se portanto este com todo o cui-
dado , e põe-se a seccar para se conservar.
Feira das mulheres. — Ha na extremidade orien-
tal da Hungria a montanha de Bihar , habitada por
gente pastoril , de raça valaquia, e mui remota da
civilisação europea. .No dia de S. Pedro concorre
este povo á planície dcKalinassa , e abi faz-se uma
feira , mercado de permutação de géneros . como
em toda aparte ; mas muito notável por ser o campo
dos casamentos. Os pais que tem filhas casadouras
trazem comsigo as donzellas , e n'um carro os do-
tes , que consistem em pobres moveis domésticos ,
alem de cabeças de criação que vem por seu pé.
Apesar que nunca se tivessem visto, os mancebos
revistando a feira escolhem as noivas a olho , e ao
tratar do ajuste regaleam a quantidade e valor do
dote : ajustado este e feita a escolha, recebe o par
a benção nupcial, semceremonia despedindo-se das
resijcctivas famílias. O governo húngaro ha tempos
que faz diligencias por supprimir esta feira , que ás
vezes é causal de rixas sanguinolentas; e por temor
de bostilisar abertamente aqucUa Iribu , vai com
providencias prudentes restringindo pouco a pouco
os privilégios do mercado.
Os ERiío.^í lambem instruem: ha muita gente rica
de seus próprios desenganos.
Os desenganos mais úteis são aquelles que nos
custaram mais caro. — Marquez de Manca.
Il
8S
o PANORAMA.
273
í'"Tl
S£ SE TA&RAGONA.
íacbago.va é a capital do districto . ou província .
lio mesmo nome , e que c limitado ao norte pela
Catalunha , ao sul pelo antigo reino de Valência ,
ao occidente pelo Aragão. Esta cidade jaz na costa
do Mediterrâneo , no declive de ura monte : é das
mais antigas d'Hespanba , e suppõem-na edificada
pelos phenicios; gozou de tamanha consideraçíio no
dominio romano que foi caberá da Uispiviia Citerior
ou Tarraconrnsis , que abrangia a Catalunha, o Ara-
gão , a Navarra , líiscaia , Astúrias , Galiza , parte
do que foi reino de Leão , e as ilhas Baleares. Por
não carregarmos de erudição histórica este breve
artigo diremos que em tempos succcssivamente pos-
teriores seguiu os destmos geraes da nossa penín-
sula.
A sua cathedral é das principaes igrejas do rei-
no visinho, e teve começo governando a diocese
st.° Olegário, em 1120. O corpo do templo c vas-
to e magestoso , de architeclura que pode chamar-
se golhica pelo rasgado e esbelto das proporções ,
romana pela solidez e nobreza , e árabe pelos ca-
prichosos capiteis. A nave do meio lem até ao pres-
l)iterio 389 palmos catalães, 78 de presbitério, e
61 de largura , sendo algum tanto menores as duas
collaleraes , que estão cheias de capellas ; d'altura
alé o interior do lanlernim ha 137 palmes. — O
frontes^ticio d'estylo gothico c composto de muitos
arcos meltidos uns dentro dos outros, com um gran-
Sete-mbro 2 — 1843.
de óculo superior, que recebendo a luz da partt-
meridional , para onde deita , a eonimunica á nave
principal , havendo outros dois óculos menores so-
bre as portas lateraes : nos lados da principal e nos
estribos dos arcos erguem-se duas pyramidcs ou
obeliscos , e entre os envasamentos destes e os ar-
cos vi!cm-se collocadas '22 estatuas de pedra : os
baíxos-relevos também são belios. O coro a meio
da igreja, como em todas as calhedraesd'Hespanha,
foi construído em 1 í8o ; nota-se mais o órgão, o
retábulo do altar-mór, e os túmulos de D. .loão de
Aragão, e de três arcebispos que são de muito gos-
to e sumptuosidade. A capella magnifica do Sacra-
mento é toda de mármores , e mui rica d'esculptu-
ras : Iodas as mais. quer ppr antiguidade quer por
construcção , merecem exame , sobresahindo a de
St.* Tiiecla, obra do meado do passado século. At-
Irahe igualmente a altenção a excellente bacia ro-
mana , convertida em baptistério , e que lui acbi-
da nas ruínas do palácio dos imperadores : é bel-
lissima obra de 14 palmos por S , e com 7 de fun-
do , sustentada sobre globos e leões. Ninguém dei-
xa de visitar o claustro , de gosto arábigo e fanta-
sioso.— Sem numerarmos outras curiosidades do
recinto deste templo, diremos que eui suas pare-
des ha varias pedras extrahidas de outro gentílico,
consagrado a Augusto, e adornadas com inscripcõck
e formosos baíxos-relevos.
2.' Serie. — Voi.. II.
274
O PANORAMA.
Manpel de Sousa de Sepúlveda.
II.
O mar.
O' ir thc glud waltrs , nf lhe Aark-hluc sra ,
<~>ur thouijkts us Iwunillfss, and our soiils as/ree.
BvitoK.
Oli mnldilo o primeiro que no mundo
A'tíí: ofiílns veias pds em scccn tenho !
Digno lia eterna pena do profundo ,
Se è Justa ajusta lei que siyo e tentio.
Nunca juiio algum alto c profundo..
Nem eilhurn sonora , ou vivo engcniw ,
Te de jinr isso fama nem memoria;
Uas eumtigo se acabe o nome , e a gloria!
Lis. , Cant. 4.° , Est. Íoa.
O .iiAR é um drama bem fecundo ! Que symbolo da
vida qiic passamos sobre a terra haverá alii mais
liei? O movimento dos successos vemos retratado
nas ondas : o emblema da sorte e a sua inconstan-
ria na variedade com que lliictuam : o império ir-
rosistivol das circunjstancias no violento embale das
vagas; e n'um frágil baixel mareado pela esperan-
ça voga para o porto desconhecido da eternidade o
homem, \ iajante de um dia ' Imagem do infinito ,
neste mundo que habitámos, não a conheço eu mais
bem imitada. (Juiz a Divindade manifcstar-se aos
nossos olhos , e rcvelar-se á nossa alma nesta gran-
de obra do seu poder I
De quantos tem navegado, qual é aquellc que
n'um dia de bonança, com um céu sereno e puro,
ao espraiar a vista pela vastidão das aguas , não
sentiu o coração dilatar-se-!he e sorrir-se-lhe de
sozo? íí que o homem que nas villas e cidades vè
limites c barreiras para qualquer parle que se vol-
te— a sua vontade limitada por leis muitas vezes
absurdas, por magistrados, por sem numero de
agentes tio governo, por bayonctas de soldados, e
por ferro de tyrannos ; as suas acções, a sua voz, c
a sua língua embargadas [)or erros do vulgo, e por
convenções , muitas vezes insensatas , da socieda-
de ; os seus pro|)rios passos limitados por estreite-
za de ruas ; os seus próprios olhos limitados por
edifícios que lhe roubam o horisonle — quando, no
alto mar, solto de todas estas prisões, sobre o con-
vcz de um navio contempla a immensidade por lo-
dos os lados — respirando! — levanta um grito mais
sublime do que Chrislovão (lolondio ao vislumbrar
a terra (|ue procurava , e exclama do fundo do seu
coração onde a tem impressa ^/íôpn/arfc , lilierda-
'/(•.' = Para cila aspira desde o berço até o tumu-
lo, para esse mundo Ião appelccido navega inces-
santemente , c acabrunhado dos ultrajes que lhe vè
solfrer , desgostoso dos sofismas com (jue a ca^il-
lam , da hypocrisia com que a desfiguram, se al-
guma hora chega a encontrar o seu semblante ve-
nerando , sauda-a inclinando-se de res[)eilo , abra-
ça-a transportado de cnthnsiasmo. A ella saudava
aqiielle espirito nobre , tão tristemente avaliado co-
mo mal comprehendido pelos seus contem])orancos,
Fernando de Magalhães , quando passados tantos
revezes que por seu mal não foram os últimos, ao
avistar o Oceano Pacifico , de joelhos rendia graças
;i Providencia , e tirava de um rei a vingança es-
trondosa e memorável sobre quantas nos recorda a
tiussa e alheia historia !
A liberdade nasceu sobre o mar, sobre as fro-
tas de Tyro c Carthago, sobre os galeões de Vene-
za, sobre os pântanos da Ibjllanda, sobre as praias
de Inglaterra , sobre as margens do Mississipi , so-
bre as aguas do Amazonas : e se de lá a não trans-
portámos para as nossas instituições politicas nós ,
senhores do oceano mais de ura século, de lá trou-
xemos , c foi lá que conquistámos, a independên-
cia, sem a qual é um vão nome o nome de pátria,
e a liberdade uma promessa de aleivosia.
Nasceu sobre o mar a liberdade , c a riqueza
também — não a formosura, como fabularam os an-
tigos— mas no mesmo berço, ao lado de ambas,
nasceram igualmente as tempestades. Se fora possí-
vel erguer dois medãos mortuários, um das carcas-
sas dos navios naufragados e das riquezas que com
elles se alTundiram — o outro de ossos humanos
dos que as ondas sepultaram; e no cume desses
medãos se ajuntassem, parcella a parcella, sonima-
dos os gemidos dos moribundos, a dôr das famílias
consternadas , as lagrimas da viuvez e da orphan-
dade , os suspiros da amizade ferida nos seus laços
mais estreitos, os soluços do amor assassinado em
suas sympathias mais doces e mais profundas — um
brado de indignação se alçaria unanime contra a
arte náutica e seus inventores, e ninguém talvez se
abalançara aos riscos desta loteria de bens e males
que oflcrcce o navegar ! . . . .
13 de abril de 1S^2 — 24 de junho.
liL
O naufrágio.
os rejitos que lutaram
Como touros indomilos bramando ,
Mais e mais a tormenta acrescentavam ,
Pela viiiida enxárcia assoriando:
líí Inne/iagos medonhos não cessavam ^
Feres trovões , que vem representando
Caliir o céu dos eixos sobre a terra ,
Comsigo os elementos terem iiuerra-
Lus. , Caul. 6.° , Est. í!4.
Partido de Cochim , seguia viagem prospera o
galeão S. .loão , e a treze de abril se achava nor-
deste sudoeste com o Cabo de Boa-Esperança , vin-
te c sinco léguas ao mar delle : mas o vento se lhe
mudou a oeste e oesnoroestc , e começou a toldar-
sc o céu no [iroprio dia (]ue cuidavam passariam o
cabo á outra banda. Mostrava a almosphera um so-
breccnho ameaçador; trovejava; ccrrava-se a luz;
approximava-se a noite ; crescia o vento ; cerado-
brnva-se o perigo com a escuridade. Traziam uma
só andaina de velas, e essas mesmas muito velhas :
e assim indo arribando com um bolço , tornaram a
desandar 130 léguas, línlão saltou o vento ao nor-
deste com tamanha fúria que os fez outra vez vol-
tar para o sul. Com os mares qno cresciam do
poente , c com os que o levante vinha erguendo ,
ficou o oceano tão cruzado e soberbo que o galeão,
mettido entre aqiielie conflicto de serras sobre ser-
ras de ondas , com ser o maior navio que andava
na carreira, não podia sotfrer o embate e peso enor-
me (las aguas : |)elos i)ordos ambos as ia bebendo
c alaganiio-se : e ora apparecia alçado no cume das
vagas, orà sumido na concavidade do oceano. Quasi
Il
o PANORAMA.
275
perdidos foram, deste modo, com as bombas sem-
pre na mão correndo Ires dias a Deus misericórdia
sobre aqucilcs abysmos. Ao cabo do quarto amai-
nou o vento , mas não soeegoii o mar; antes ficou
tão alterado , e sacudiu tão fortemente o galeão ,
que lhe quebraram alguns dos machos mais ne-
cessários para sustentar o leme. Er)l,To o mestre ,
Christovão Fernandes, que era um velho muito hon-
rado e prudente , vendo o perigo , disse em segre-
do ao carpinteiro, que no navio era o único que li-
nha dado noticia do estrago do leme ; « irmão, cal-
lai comvosco a desgraça que acaba de acoutecer-
nos , porque se a chega a saber a marinhagem ,
dcsacoroçòa e estamos todos perdidos.»
Cora este receio iam , quando o vento tornando
a virar a leste, lhe levou o papafigo da verga gran-
de. Temendo então os olliciacs ficar sem o da proa,
acudiram a colhe-lo: mas apenas o c(}Iheram, atrn-
vessou-se o galeão , no qual deram três mares tão
grossos, que com os balanços rebentaram da banda
de bombordo os apparelhos e costanciras do mastro
grande. Tropeava o navio tanto que não havia ncl-
le homem que podesse ter-se em pé para accorrer
ao serviço: e receosos de que com os soIa\ancos
cahindo o mastro repentinamente , lhes causasse
alguma avaria considerável, assentaram de o cor-
tar a tempo e cora cautela. Jlas apenas lhe tinham
descarregado as primeiras machadadas , viram-no
estourar por cima das polés das coroas , e — como
se fora uma folha de arvore — aquelle madeiro
enorme ir pelos ares , e lança-lo o vento com lodo
o pezo da gávea c mastaréu ao meio das ondas.
Açoitados da continuação do temporal , extenua-
dos de forças, vendo-sc em destroço sem mastro e
quasi sem velas, mesmo assim não soçobraram de
todo aquelles ânimos, porque morava ainda n'elles
a perseverança e desíemidcz dos portuguezes anti-
gos. Guarneceram uma verga; da lona velha com-
puzerara uma vela que envergaram ; e d' uma an-
tenua c o pedaço que lhe ficara do mastro como
poderam engenharam um no\o mastro, iías o ven-
to veio outra vez , furioso , arrebatar-lhe esse mes-
mo cadáver de mastro cvela que chegaram a arvo-
rar: atravessou-se o galeão, deitou o leme á ban-
da como traste inútil, e começou o porão a encber-
se de agua. Era espectáculo lastimoso e medonho
o que n'aquelle momento se presenciava dentro do
navio: o soluçar inquieto d'este , a confusão e o
tumulto, os gritos de misericórdia , o tombar dos
homens uns sobre os outros, o soar do apito, o bra-
dar do mestre , o rugir do mar , o bramir do ven-
to, o fuzilar dos relâmpagos, o rebombar dos tro-
vues. Era a lucta dos elementos cora o esqueleto nú
de um baixel. Era a sauh.i do oceano que exigia
as vidas de uns poucos de homens, e a resistência
d'esses homens que se não queriam entregar. D'el-
Ics os que eram fracos gemiam e choravam; c os
que eram fortes interrogavam os céus e os rumos,
e acolhidos a esse baluarte meio arrasado — o ga-
leão — defeudiam-se com a força dos braços c as
armas da intelligencia do assalto de seus inimigos.
Lucta desigual c terrível I E comtudo ainda alli se
observava mais terrível lucta do que esta, no es-
forço de ura homem , que amava cora idolatria a
uma mulher , contra a morte , que queria roubar-
Ihe n'aquelleconflicto o objecto querido do seu cul-
to. Este homem era o capitão. Esta mulher, ado-
rada e incomparável , era D. Leonor.
A. eslrella de Manuel de Sousa ainda lhe foi pro-
picia. Foi rolando para a Icrra por espaço de dez
dias o galeão sem mastro, sem leme, sem velas c
sem governo com as correntes e os ventos mais ba-
beis ou mais poderosos do que o jiiloto e a agulha;
e nos 8 de junho deram vista da costa os atribula-
dos navegantes. Chamou Manuel de Sousa os olK-
ciaes a conselho, e no conselho assentaram que não
havia já outro remédio senão varar cm terra , t
tratar de salvar as vidas : deixar-se ir até serem
em certo numero de braças, c assim que achassem
fundo, surgir c lançar fora o batel em que haviam
de desembarcar. Logo alli deitaram fora , a tentar
desembarcadouro , uma manrhua com alguns ho-
mens , que bom espaço depois voltaram com a no-
lit ia de haver perto uma praia coramoda , sendo o
mais rocha talhada a pique, e penedia impraticá-
vel. Então, já com 13 palmos de agua no porão,
foram endireitando para a terra , e chegado o na-
vio até sete braças e dois tiros de besta do sitio de-
signado para o desembarque , lançaram ancora ao
mar , determinando desembarcar com o resto das
munições e mantimentos ; e, em terra, das relí-
quias do navio compijr um caravelão em que fos-
sem a Sofála ou Moçambique , ou mandassem lá
aviso para os virem buscar.
Embarcaram pois na manchua , com não pouco
perigo, Manuel de Sousa, sna mulher e filhos, e
Ijcrío de vinie pessoas principaes com algumas es-
pingardas e outras armas para se defenderem sendo
necessário; c desceram aterra. E como naquella
costa era então rigor do inverno e o frio excessi-
vo , mandou logo Manuel de Sousa accender um
grande fogo ; e á proporção que a manchua , que
tinha voltado ao galeão a buscar mais gente, che-
gava cora ella , elle que a andava esperando na
praia , a guiava com muita humanidade , e a que
podia pela sua própria mão conduzia ao sitio onde
estava acccsa a fogueira. Neste trabsllio de desem-
barcar gente , armas , provisões , pólvora e roupas
se continuou Ires dias, ao cabo dos qi:acs começan-
do o mar a eraliravecer, c acontecendo qucbrar-sc .i
amarra do mar, vendo o mestre que o perigo estava
imminenie, disse para a gente do galeão: «Irmãos,
antes que a náu abra c se nos vá ao fundo , quem
quizer embarcar naqucllc batel o poderá fazer.»
Embarcou então o piloto que era homem velho c
muito acccito a todos, e alem do mestre umas qua-
renta pessoas, porque não cabiam mais. Essas mes-
mas estiveram a poeto de ir ao fundo , por ser mui
forte o jogo das ondas ; e o batel chegou á praia
tão desmantelado, que logo al!i se foz cm peda-
ços.
Ainda no galeão ficavam perto de oOO pessoas ,
sendo portuguezes 200 com o contramcítre c o guar-
dião. E como se vissem sem o b.itel , largaram a
amarra do mar , e foram alando pela da terra até
tocar o navio. Apenas tocou , começou a abrir-se
por varias partes; e dahi a pouco a força da agua
que entrava trouxe acima nadando caixotes, barris,
contras vasilhas, ás quaes e ás taboas , para se
salvar, se lançaram os desgraçados, morrendo, uus
afogados, outros de contusões, quarenta portugue-
zes c setenta escravos. A terra chegaram com mui-
tas feridas dos páos e pregos os outros que escapa-
ram : e era quatro horas se descoseu e desfez a
embarcação de maneira , que não foi parar á praia
taboa nem páu , que passasse de uma braça.
(Continuar-sc-ha. /
A. li' O Marreca.
S76
O PANORAMA.
o RAIfCIFKB., OU KSNNO , E SEUS DONOS.
KsTE animal õ um grande beneficio para os halii-
tantes da frigida J.aponia , c que a Providencia lhe
doou , assim como aos árabes do deserlo o utilissi-
»no camello. í] da mesma espécie , pnstoque maior
<juc o veado , c só se encontra nas regiões polares
da Ásia, e apesar das tentativas para introduzi-lo
na Escócia e outros climas septenlrionaes nunca se
iiaturalisou ; sendo facto singular que os indjviduos
desta espécie que foram transportados a paizes on-
de o clima e alimentos eram mais análogos aos da
Laponia enfermaram e morreram mais depressa que
<(S encerrados n'nu)a arribana e nutridos com ali-
mentos diversos. De tempos mui remotos os lapões
domesticaram o rangifor , c lhe devem quasi Iodas
as conveniências que podem dcsfriutar , pois alem
de allivia-los em suas tarefas lhes presta alimento
saudável e nutriente. Orangifer ('• amofinado no ve-
rão por uma praga que oliriga sens donos a condu-
zi-lo á costa marítima para mitigar-lhe o padeci-
mento e conservar-lhc a vida. — «A ilha da Balea
[narra De llroKe em sua Viagem] durante os mezes
dVslio c frequentada pelos lapões com seus gados :
a causa que os constrange a tacs emigrações, posto-
«jiic estranha pareça, é bastante poderosa; porquan-
to nessa estação está o interior do paiz tão iníesta-
tio por dilTercntes castas de mosquitos que nenlium
animal pode escapar á inces.sante perseguição del-
l<-5. Fazem-sc varias fogueiras para levantar fuma-
radas, c cem o furco se resguardam os habitantes
dos importunos inimigos, e alem de tudo isso tem de
untar a cara com breu para preservativo dos perti-
nazes ferrões. O rangifer ó de mais a mais perse-
guido por uns grandes tavões [talvez da raça do
moscardo (/ucapnrjmnla os bois] , os quaes não só o
atormentam com as picadas senão que depositam os
ovos na ferida que causam, o que tanto molesta aquel-
Ic gado que a não o tirarem dos bosques nos mezes
de junho, julho e agosto, pereceria a maior parte.
Estes insectos não podem sofTrer a brisa do mar
nem o vento mais fino das assomadas : eis a rasão
das emigrações no verão para esses sitios.» —
.\o começar o inverno deixam os lapões a costa
e voltam ao sertão antes que principiem os nevoei-
ros , quadra em que o jicllo do rangifer crcsee c
gatdia certa còr esbranquiçada : então é que este
animal d;i a conhecer o sen valor peculiar ; que se
elle não fosse, impossível seria ãquelles povos todo
o transporte c communicação ; basta um só para pu-
lar a carreta especial daquellas terras , chamada
trenó, com a carga de Ires quintaes , caminhando
com a maior rapidez , fazendo frequentes vezes em
dezoito horas jornada de mais de ÍO leguns. — Na
Suécia, em o palácio de Drotningholm, ha uma pin-
tura de um rangifer que em 1699 conduziu um of-
ficial com papeis e participações de grande monta a
quasi incrível distancia de 200 léguas em ÍS horas.
<l rangifer come de toda a bcrva . mas d'invcrno
só se alimenta de ini.'Sgo , e o descobre deb,TÍ\o do
o PAINORAMA.
277
polo só pelo faro ; ullimanicnte se averiguou que
devora sôfrego uma cnsla de ratos em que pnr lá
as serranias ahundam. O numero de cabeças que
constituem um rebanho orça por lOO ou 300 ; o
que basta para manter com abmidaneia uma fami-
lia cm lodo o anno. No verão fazem os lapões con-
siderável porção de queijos , e no inverno matam
as caijcças de gado , do que precisam para provi-
mento caseiro. Duzentos dos mesmos animaes che-
gam para uma familia que não seja numerosa e que
viva com reslricta economia ; com oO não pôde con-
scrvar-se casa separada : por isso o pobre costuma
juntar o sen rebanho ao do rico , cuidando de am-
bos sem receber mais retribnição que o sustento ,
f reputando por salário o angmcnlo de seu peque-
no rebanho.
A gravura que precedo representa uma familia
de lapões ordcnliando o rangifer. — Ha também ran-
giferos montezes , que os habitantes mais activos
caçam pelas serras para fazerem comnicrcio da ar-
mação esgalhada e das pelles, assim como das lin~
suas, qne bem curadas são d'estimação em alguns
reinos do norte da Kuropa.
As Artes , as Lettr.is , k as Scie.ntias ksi TKJiro
n'EinEi l). João o."
( Fragmeido de nm/i obra im-dila do século passado.)
I Conclusíio.]
ToHo grandes vontades e desejos não enchem os
corações sem muitos e generosos efteitos , viu o sá-
bio rei que almas desprovidas não podem fazer
grandes adiantamentos, e cuidou de livros. É indi-
zível a quantidade prodigiosa corii que fez enrique-
cer a nação de obras uleis , c de grão decoro , e
com que a este exemplo e occasião vieram a este
reino milhares de mortos illustres buscar também
rntre nós vida. .\inda que antes dos negociantes
Lerzo e Morganti houvesse deste género de cora-
mercio , como pelos livros de boas bibliothecas da
nação , e pelos catálogos dos mercadores se conhe-
ce ; comtudo dos annos de vinte por diante engros-
sou esta levada a recrear grandemente olhos esprei-
tadores. Eis-aqui algumas noticias de traze-r na me-
moria para credito nosso. Dou uma copia do que o
meu prudentíssimo reitor em a Universidade de
("oimbra , Francisco Carneiro de Figueiroa , varão
nascido para governo politico de academias . escre-
veu nas suas curiosas Memorias daquclla Lnivcrsi-
dadc N. XXV , fallando do reitor .Nuno da Silva
Telles, da casa de Alegrete. = « Porque os Estatu-
tos da Tniversidade [do século de quinhentos] dis-
põe que lodos os annos se comprem quarenta mil
réis de livros, para se ir accreseentando a li\raria
delia, que alem de ser quantia limitada, se tinham
descuidado muitos dos reitores , seus antecessores ,
de o executarem , alcançou de sua magestade li-
cença para se comprar uma li\raria por quatorze
mil cruzados: e a ampliação dos ditos quarenta a
cem mil róis; e porque também não tinha a uni-
versidade casa competente para uma boa livraria ,
conseguiu de sua magestade licença , por provisão
de 31 de outubro de setecentos e dezeseis, para se
lazer de novo, e lhe deu principio com toda a gran-
deza . deixando-a ja bastatiteraente adiantada. » —
t^OQtinua fallando do seu reitorado. = Acabou-se de
fazer cem toda a perfeição a casa da livraria , que
é uma das mais magnificas obras que tem este rei-
no. r=.\ ca bou-se em setecentos e viníe c sinco. Pa-
ra augmenlar a bibliothcca real , cm que estavam
juntos os livros preciosissimos e raríssimos dos reis
antigos , sustentou elrei fiira do reino muitos ama-
nuenses em muitos annos. l'ara o mesmo fim fez
comprar collecçõcs de livros, e tiveram ordem os
negociantes (iendron e Reycend de fazerem vir os
que podessem alcançar , e dclles repartia para as
reaes casas das Necessidades , e de Mafra [o que
lambem continua o senhor rei D. José] ; mandando
abrir no real e insigne convento desta villa, em ja-
neiro de trinta c um, escliolas publicas com sete
cadeiras. Em outubro do mesmo anno fez vir a Lis-
boa Martim de I'iua de Proença para formar o ca-
talogo lia livraria real, havendo-lhe então chegado
vinte mil volumes. Do fervor das communidades, e
dos particulares a este respeito , póde-se tecer um
cl(jgio de grande credito. O gosto nas encaderna-
ções pulidas ó dos seus dias; e deve-se particular-
mente ao livreiro .Mnlheus Nogueira , que por hon-
ra , e conhecimento que delle tive , e deste benefi-
cio ao publico , devo nomea-lo. Podem-so ver as
suas pulidas encadernações . cm grande parle dos
livros do abbade Diogo Barbosa . que deixou á bi-
bliothcca do sua magestade no reinado do senhor
rei D. Josó.
Na Viiriedadc de arbítrios para saber e estudar
muito , pois tanto é para isso necessário , c para
merecermos hora nome , foi exemplar aquelle tem-
po debaixo da protecção regia. Os Mercurios de
.\níonio de Sousa de Macedo , esquecidos , foram
enlão renovados por João de Bu\ trago. A pratica
das gazelas ó do anno de quinze. Foram suggestão
do M. Fr. Basilio de Santa Barbara Alfombra , do
reino de Valência , que da ordem dos capuchinhos
transitou para esta província da ordem terceira, ne-
cessitado pelos encontros que leve nas divisões pá-
trias sobre a successão de Hespanha. Viveu entre
nós com credito , c com as primeiras pessoas da
fidalguia, por seus talentos litterarios e civis ; o
deste modo o recebi dos padres , seus contemporâ-
neos. Jforreii victíma da caridade. Elle era dia e.
noite assistente firme a qualquer religioso enlcr-
nio ; e por uso de uma caridade livre e ardente se
interessou ató a morte na assistência dos perigosos
doentes na famosa epiílcmia dos vómitos pretos no
bairro de S. Paulo, deixando raros exemplos, a
saudosa memoria. — iías como escrevíamos : pr<3-
duziam excellcnles effeílos as correspondências lil-
lerarias , ([ue praticaram , alem de muitos outros ,
o conde da Ericeira, e o principal D. Francisco de
Almeida, com D. Gregório Mayans , e o Deão do
Alicante, Jlarti, a cujo fullecimento dedicou o mes-
mo principal uma academia , em que orou na lir>-
gua latina o erudito professor , .Vulonío Felíx Men-
des.
.\as diligencias de apurar as doutrinas , pelas
quaes se entende a critica , houve fervor cm muita
varieiiade de assumptos. Era recolher memorias de
lapides sepulcbraes e outros monumentos de remo-
ta antiguidade , segundo as leis académicas , traba-
lharam muitos curiosos no gosto do P. D. Jeronj-
mo ("uníador , ainda que este fíd mais activo eai
diligenciar e publicar. Morganli dístinguiu-se em
a numismática , mas este sábio deu provas publi-
cas dii seu talento a este e outros muilus respeitos ;
e quanto delle refere a li'MMhc:a Lusitana ^ão pu-
ras verdades, e fui certamente um brilhante resplen-
der do clero secular. Quanto á numismática baste
278
O PANORAMA.
por ora reconlar a collccrão preciosíssima do mar-
quez de Al)rnnlcs, que esleve empenhada cm trin-
ta e seis mil cruzados, a qual seu lilho resgatou (.;.
Não deve portanto esquecer o muito que se acha
cscriplo a este respeito no tom. í.° da Ilisturia Ge-
nealógica da Casa Real , nem a cançada fadiga que
tomou o doutor Nicolau Francisco Xavier da Silva
para provar a verdade da doação dos oitenta mil
dinheiros de ouro, que elrei D. Affonso Henriques
fez ao hospital de S. João de Jerusalém , da qual
obra se imprimiram algumas folhas (.:). Quando se
escreve a historia numismática da Nação , oITere-
cera os dias (i'clrei D. João dignos monumentos
para ella , cunhados em medalhas , que por dili-
gencia do erudito e pulido abhade Garnicr , eapcl-
lão da real casa de S. Luiz , se publicaram ha
pouco.
Deste propósito passemos a outras espécies rela-
tivas á mesma Academia Real. Quanto se desco-
briu e adiantou nossa historia? quanto concorreram
á porfia as províncias não c fácil dize-lo. A curio-
sidade era immensa em trabalhar para esta honra
nacional. Ninguém cançava de copiar obras, de
que se podessc tirar lume novo, erudição c prazer,
fossem versos, fossem noticias c memorias, e qual-
quer outra erudição. Dos seus dias é a boa traduc-
ção da Árchitcrtura de Palladio, ainda que não se
imprimiu. Em todas as profissões houve adiantamen-
to e activa competência. Escreveram na lingua la-
tina com acerto o padre Ueis , o carmelita descal-
ço Fr. Caetano de S. José , o jeronimiano Fr. José
Caetano , os António liodrigues da Costa , os Vale-
sio, os .^lendes , o marcjuez de Alegrete, c muitos
outros. Quem deseja muito não deixa de oflender-
se de que a iingua pátria não deveu aos académi-
cos maior esmero , e que no estylo dos que são ex-
ceptuados se acha ar bastante gothieo. Ouvi sempre
aos críticos prudentes desculpar pela natureza de
memorias soltas a dispensa de oração mais conccr-
lada ; e que por estas nódoas entre curiosidades de
agradecer se encontram muito pulidos escriptos em
Imgua corrente e harmoniosa ; e no que respeita a
pensamentos sensatos , todas as memorias dos nos-
sos ministros neste século são dignas de veneração
pela propriedade de vozes e pbrases, corresponden-
te a seus grandes objectos. Sc passarmos deste di-
(•) Em outro lojar ú.i lufsmr» obra tornamlo o A. ;i
fallar de meilalh.-is, accresrciila nljiimas noiirias sobre esli-
pailicnlar, clizenilii-= .i A ciillerrão preciosa e mais rara
foi a do marqiiez de Ai)ranles. A sua raridade avultou di-
íuamcnle pelas iiioilallias dn ouro e praia, cpic a seu pai ,
o inarquez de Foules, em duas caixas deu em o anuo de
dezesete ein R<jma o papa CIiMucnle XI, excrllenle coidie-
«■edor deslas elejaucias. Cheirou a sit um peÉuliu luimisuia-
lic-o de resjieilo pelas Hiedallias anliías de sua jrraude casa,
c pelas- conseiuinles acqiiisieões. Quanla perda só esta no
terremoto «le ciiieoenta e cinco! "=--
(;:) Dclle ha varins opuscuh^s aulo^raphos na Bihliot.
Pulil. Ehorcnse ; e o nosso A., em outro logar da mesma
libra, accrescPíila a seu respeilo o òesuinle. i^i; No oulro ra-
mo de lilleraliira , ipial é a liiíluria lilleraria, se distinguiu
uiuiio Nicolau Francisco, e mereceu ser frequeulado, pela
snmma jiromplidào em anniniciar noiicias [ihilnl.iiicas. A
esla er{idição ajuntava ouiros proveitos o trato com este eru-
dito , qual era o fiosto da boa latuiidade, para (pie irenio e
e-lodo o levavam com desempenho. Na dcclamac;rio foi ve-
liemenle , o que provou orando no douloramenlo em Iheolo-
lia de Xavier de Fcuiles, »lrevendo-se na f;rande sala, que
í-ra ajireja de Santa Cm?., a invocar Jupiler .Slator , bn-
leiído as campas para vincar o nome daquelle saliio llu-olo-
po, seu amiffo, cuja »loria qniz oíTuscar um antau'onisla á
face <1.T -Vcadimia. A declamação foi gosladu lambem pelo
de«CDl|>eulio oratoric.— -
reito publico ao mais frequente para a justiça, que
se deve aos homens , teve nesta parte nome parti-
cular o sábio consulto João Alvares da Costa. Elle
pòz á vista dos homens escriptos escondidos.
A severidade das scienrias não sorveu comsigo
todas as outras curiosidades. As boas artes tiveram
esthola muito frequentada , e desempenhada com
admirável credito. Mafra foi berço da esculptura
em mármore. Da praticada em madeira foi Manuel
Dias, digno da memoria, que lhe fazem plausível
os bons monumentos, que hoje se estimam. Viei-
ra, e André (íonçalvcs , mestres de António Joa-
quim Padrão; Domingos Nimes, mestre de Joaquim
.Manuel da Kocha ; Ignacio de Oliveira , e outros
insignes pridessorcs de pintura , fazem honra a na-
ção. Escriptos sobre a arte não se puldicaram. O
l*.*^ Manuel Ferreira Leonardo, debaixo do nome
deJeronymo dcAndraiIe, escreveu o elogio do pin-
tor Viclorino ]\lanucl da Serra. José Gomes da Cruz
fez plausível esta profissão dcfendendo-a , por ins-
tancia do benemérito pintor André Gonçalves, dos
que a reputaram por arte mechanica ; o que já se
havia repetido desde Séneca na Hespanha , e impu-
gnou sabiamente no fim do século XVI Gaspar Gu-
tiérrez de los Rios na obra Xolicia General para ta
estimacion de las Artes. O doutor José Gomes da
Cruz o fez entre nós sabia e polidamente. Pede
exame vagaroso , e determinado a este propósito a
narração dos meios por onde nossos professores de
piíiliira buscavam e ensinavam estylo; sobre quaes
antigos copiavam; quaes e diligentes acquisíções
fizeram . e onde se depositaram , c donde se perde-
ram. Não tenho desembaraço para tanto: ouiros
com sabedoria , c basla que com zelo igual, pode-
rão publicar muitas cousas admiráveis, que a este
respeito tivemos, e ainda possuímos de honra para
este nosso século. Necessária c importante cousa é
a historia da pintura dos nacionaes em composição
c gabinetes. O exemplo dos estranhos assim convi-
da, e a necessidade de emendar as negligencias de
Pedro (juarientc nas abhrevíadas memorias que fei
de nossos pintores , e dos originac? conservados no
reino, quo elle viu, e de que se lembrou mes(]ui-
uhamcnlc.
Estas cspccícs levam a consideração para a críti-
ca ; mas delia é notório quanto se fez de uso sábio
nos exercícios da Academia Real , e outras vezes
desmedido, lim verdade muito fermentou a critica,
sendo lida a obra do inteiro varão Nicolau António
u Censura de historias fabidosas)i , dedicada a clrei
D. João pelo advertido e sábio D. Gregório Mayaus.
— Das boas qualidades dos theologos. no logar pró-
prio direi algumas espécies agradáveis, e o
que se oliereccr de outro gcncro (§).
Aquclla foi a idade de se amar a sabedoria. Era
necessário tempo, a tim de se aperfeiçoar o traba-
lho, ora informe, ora melhorado, qual se ex[)eri-
menta cm ganhar disiancias das bnas cousas. Jisme-
rou-se a nação enlrc rudezas, esforços, e alcances.
Formou almas de seenteiidercm com as luzes e for-
mosura do novo século, que lhes succedeu. A for-
ça da attracção pede qualidades reciprocas. Deus
hade melhora-las cada vez mais, porque dará todas
as luzes a quem as deseja, e a quem soberanamen-
te preside , e pódc favorecer as artes c sciencías.
Este como episodio entendi não seria desagrada-
is) No ilecurso de Ioda a obra, deque (iránxis este fra-
Smenln, e como rpisoilio , se trota especialmente dos eslu-
<lo$ theolúgicos no primeiro meado do ieculo .WIU entre
nós.
o PANORAMA.
27 a
vel. Aponlci as referidas noticias c sugeitos. nutri-
do entre muitos dclles. Tanto disse , porque pelo
menos , quando falte ao referido a proporção de
prande cstyio , vingo-lhe a memoria cora a honra
de orarão verdadeira. Oxalá passem elles a desin-
quietar a nol)rc emularão, para augmenlar o nume-
ro de seus similhantcs , c aperfeiçoa-los em gloria
da nação. Dei este golpe ressentido por saber que
mil sugeitos estimáveis da nossa pátria tem pereci-
do até cm os nomes, o o que é mais, pela troca de
.nlhèa erudição , que ainda mesmo sendo boa , não
deve ter o desar de esquiva para obrigações essen-
ciacs e pátrias. Também assim escrevia observando
que de nossas cousas , e de nossos varões illustres
se não cuida quanto se deve , sendo elles por seus
serviços tão beneméritos da gloria de serem contem-
plados, como aquelles que os elogiassem. — O arce-
lispo Cenáculo, no Elogio, ou Estudos do /'.'' doutor
Fr. Joaquim José Pimenta , da Ordem Terceira de
S. Francisco, e Lilleratura de seus dias. — Obra iné-
dita , e original da Bibl. Pub. Eborense.
A D\MA Pé-de-Cabba. '
I - (Conto de junto ao Lar}. (*i
Parte Primeira.
I-
Vós os QCE não credes em bruxas , nem cm almas
penadas . nem nas tropelias de satanaz , assentai-
vos aqui no lar , bera juntos ao pé de mim , o con-
tar-vos-hei a historia de D. Diogo Lopes , senhor
de Biscaia.
E não mo digam no fim: — não pôde ser. Eu
não o tirei da minha cabeça. Li-o n'um livro mui
velho, velho como o nosso Portugal.
Juro-vos que se me negais esta verdadeirissiraa
historia sois dez vezes mais descridos do que era
S. Thonié antes de ser grande santo. E não sei eu
se estarei d'animo de perdoar-vos , como Christo
lhe perdoou.
Silencio profundissimo ; porque vou principiar.
II.
D. Diogo Lopes era ura inf.iligavel monteiro : ne-
res da serra no inverno , sócs dos eslevaes no ve-
rão , noites e madrugadas , disso se ria elle.
Pela manhaã cedo de um dia sereno estava D.
Diogo em sua armada , em monte selvoso o agreste
esperando um porro moutez , que batido pelos ca-
çadores devia sabir naquelia assomada.
Eis senão quando começa a ouvir cantar ao lon-
ge : era uma linda, linda toada.
Alevantou os olhos para uma penha que lhe fica-
va fronteira : sobre ella eslava assentada uma for-
mosa dama; e era a dama quem cantava.
O porco fica desta vez livre e quite : porque D.
Diogo Lopes , não corre , vòa para o penhasco.
«Quem sois vós, senhora tão gentil: quem sois
que logo me captivastes?»
«.Sou de tão alta linhagem como tu, porque ve-
nho do semel déreis — como tu, senhor de Bis-
caia. »
«Se já sabeis quem cu seja, ofTercço-vos a mi-
nha mão, e com cila as minhas terras e vassallos.»
(•) Este cijulo, 110 geuero phantastico , é tirado subs-
tancialmente do tilulo 9 «lo Livro das Linhagens , cbamado
Tuljarmenle do conde D. Psdro.
«Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes , qiic
poucas são para monteares : guarda os teus vassal-
los, que poucos são elles para te baterem a caça.»
«Que quereis pois, senhora, para eu vos dar em
arrbas?"
«Nada te peço , barão , salvo o esqncccrcs-tc do
signal da cruz , c nunca mais te persignares. »
D. Diogo Lopes não era dos mais devotos, c ar-
dia cm amor c desejos. «Está dito! e viva o dia-
bo '. — bradou elle ; e levando a bella dama nos
braços, cavalgou na mula em que viera montado.
Só quando á noite no seu castcllo pôde conside-
rar miudamente as formas da airosa dama , notou
que tinha os pés forcados como os de cabra.
m.
Dirá agora alguém: — era por ccrio o demónio
qne entrou cm casa de D. Diogo Lopes. O que lá
não iria! Puis sabei que não ia nada.
Por annos a dama e o cavallciro viveram cm san-
ta paz e união. Dois argumentos vivos ha%ia disso:
D. Inigú Guerra e Dona Sol, enlevo ambos de seu pai.
Im dia pela tarde D. Diogo voltou de montear:
trazia um javali grande — muito grande. A mesa
estava posta. Mandou trazc-lo á casa onde comia
para se regalar de ver a excellente préa que havia
preado.
Seu filho assentou-sc ao pé dcilo : no pé da niãi
Dona Sol : o co.nieçaran; alegremente sou jantar.
"Boa mciUaria, D. Diogo — dizia sua mulher. —
Foi uma boa c limpa caçada I»
«Pelas tripas de Judas'. — respondeu o barão —
Que ha bem cinco annos não colho urso ou porco
niontcz que esto valha \ <>
Depois enchendo de vinho o seu pichei de prata
mui rico o lavrado, virou-o de golpe á saúde de
todos os riccs-honiens fragueiros c raonleadorcs.
E a Comer c a beber durou até a noite o jantar.
IV.
Ora deveis de saber que o senhor de Biscaia li-
nha um alão a que muito queria : raivoso no travar
das feras , manso com seu dono , e até com os ser-
vos de casa.
A nobre mulher de D. Diogo tinha uma podenga
preta como azeviche, esperta e ligeira que mais
não havia dizer, c a que ella não menos queria.
O alão estava gra\ emente assentado no chão de-
fronte de I). Diogo Lopes , com as largas orelhas
pendentes c os ollios meio-cerrados , como quem
dormitava.
,\ podenga negra essa corria pelo aposento viva
e inquieta pulando como ura diabrete: o pello liso
e macio reluzia-lhe com um refiesu avermelhado.
O barão depois da sande urbis et orbis feita aos
monteiros , esgotava um kirie comprido desandes
particulares , c a cada nome uma taça.
Estava como cumpria a um rico-homem illustre
(\\\c nada mais tinha que lazer neste mundo senão
dormir e caçar.
E o alão cabeceava como um guardião velho cm
seu coro , e a podenga saltava.
O senhor de Biscaia pegou então de um pedaço
de osso com sua carne c mediila , e alirando-o ao
alão grilou-lhe : — «Silvano, toma lá tu , que és
fragnciro : leve o diabo a podenga , que não sabe
senão correr e retouçar.»
O canzarrão abriu os olhos, rosnou , pòz a pala
sobre o osso , e abrindo a boca mostrou os dente»
anavalhados. Era como o seu rir. .
280
O PANORAMA.
Mas logo soltou um uivo , e caliiu , perneando
mcio-morto : a podenga de um pulo llie saltara á
garganta , e o alão agonisava.
<cl'elas barbas de D. Krom , meu bisavó! — ex-
clamou D. Diogo pondo-sc em pé tremulo de cole-
ro c de vinho. -^A perra maldita raalou-me o mc-
Jlior alão da matilha; mas juro escorcha-la viva.»
li virando com o pé o tão moribundo, mirava
as largas feridas do nobre animal que se morria.
«A la fé que nunca tal vi! Virgem liemdita ! —
Aqui anda cousa de Belzebuth. « E dizendo e fa-
zendo , benzia-se e persignava-se.
«Ui!. — gritou sua mullier como se a houveram
queimado. O barão olhou para cila : viu-a com os
olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e
os cabellos eriçados :
L ía-se alcvaulando, alcvantando ao ar cora a
liobre 1). Sol sobraçada debaixo do braço esquer-
do ; o direito cstendia-o por cima da mcza para sen
filho l>. Inigo.
K aqueile braço crescia alongando-sc para o mes-
quinho , que de medo não ousava bolir.
li a mão da dama era preta c luzidia como o
pello da podenga , e as unhas tinham-se-lhe esten-
dido bom meio palmo , e recurvado cm garras.
«Jesus, santo nome de Deus! — bradou D. Dio-
go , a quem o terror dissi|iára as fumaças do vi-
nho ; c travando de seu filho com a esquerda, fez
í:o ar com a direita uma e outra vez o signal da
cruz.
K sua mulher deu um grande berro ao ver isto ,
e largou o braço d'lnigo (iuerra que já tinha se-
guro , e continuando a subir ao alto sahiu por uma
grande fresta, levando a filhinha que muito cho-
rava.
Desde esse dia não houve saber mais , nem da
inãi nem da filha. A podenga negra , essa sumiu-
se por tal arte , que ninguém no castello lhe tor-
mon a por a vista cm citisa.
1). Diogo Lopes viveu muito tempo triste ealihor-
lido porque já não se atrevia a montear. Lembrou-
se , porem , um dia de espairecer sua tristura , e
cm vez d'ir á caça de cerdos, ursos e zevras, sa-
liii á caça de mouros.
Mandou pois levantar o pendão , desenferrujar e
pulir a caldeira , c provar seus arnezes. Entregou
a Inigo Guerra , que já era mancebo e cavalleiro ,
o governo do seus castellos , e partiu cora lustrosa
inesnada d'horaens d'armas para a hoste d'clrei D.
Kamiro , que ia em arrancada contra a niourisma
d'Hcsj)auha.
l'or muito tempo não houve dclle , em iJiscaia,
Max novas nem mensageiros. — (A. IJcrcuUinu.J
A ridra. — A macieira c da mesma familia das
pereiras , e igualmente tem muitas espécies e va-
riedades , das quacs umas são arvores e outras ar-
bustos, que em toda a parte prosperam excepto nos
climas muito quentes. E sabido que nos departa-
mentos do Oeste da França é cultivada era ponto
grande , e com muita vantagem , porque do fruclo
extrahem o vinho chamado cidra , de l)na qualida-
de ainda que menm activo que o das uvas das vi-
d'Mras . que os habitantes ilaquelles districtos nun-
cí podcram aclimatar. — As maçaãs de que fazem
essi bebida, não são das castas destinadas para co-
mer c para compotas , mas sim de outras peque-
nas , acidas, e desagradáveis ao paladar.
O vinho de maçaãs é usado desde remolissimos
tempos ; os hebreus lhe chamaram shhar , que S.
Jerouymo traduziu siccra, donde veio o nome cide-
ra ou cidra. As-nações posteriores aos hebreus lam-
bem conheceram este vinho : os gregos e romanos
o fabricavam c bebiam. Entre os fraucezes é muito
vulgar , principalmente onde faltam as vinhas. —
Mr. lluet, o erudito bispo d'Avranches, assegura
que muito antes do lo." século estava a cidra em
uso na França ; diz mais, que, segundo relação de
Amniiano Marcellino , os filhos de Constantino re-
preheiídiam os habitantes das Gallias de gostarem
de vinhos e de outros licores que se pareciam com
file ; que os capitulares de Carlos Waguo numeram
na lista dos ollicios ordinários o de siceralur, fabri-
cante de cidra ; que foi dos biscaínhos que os nor-
mandos ajirenderam a lãbricar esta bebida, no tem-
po das pescarias , industria commum a ambos os
povos; que os primeiros tiidiam recebido esta arte
dos africanos, que de mui antigos tempos a prati-
cavam.— A este lespcito consulte-se a Encyclope-
dia mcthodica no Diccionario das Artes e Ollicios.
Mediante a distillação obtcm-se da cidra agua-
ardente, que não é desagradável .- lambem delia se
faz vinagre sadio co.mo a bebida originaria. Kedu-
zindo a cidra por evaporação a menor quantidade
lãz-se um xarope que dizem ser peitoral. O bagaço
que fica de|)uis de extrahido o sueco das macaãs ,
serve para queimar e delle se utilisam os pobres ;
e também serve para estrumar os pés das arvores .
e para alimentar porcos. — Asseveram que a bebe-
dice , occasionada pela cidra dura mais que a pro-
duzida pelo vinho legitimo de uvas.
Pontes nadiiacs tia America. — O valle d'Iconon-
zo ou de l'andi , em a Nova-Graiiada , é guarne-
cido d'cscalvados penhascos, de lorma extraordi-
nária , que parece foram afeiçoados por mãos hu-
manas : estão dispostos em duas linhas, ficando em
meio ura espaço vão , mui fundo , de quasi légua
de comprinienlo , e que é o valle por onde corre
a torrente de Surama-1'az , encaixada n'um canal
inaccesáivel. Seria impossível transpor esta iinper-
via quebrada , se a natureza , servindo-se daquel-
les rochedos, não houvesse preparado duas pontes
que dão passagem de um ao outro lado. — A pri-
meira é um arco natural , de 44 pés de comprido
por 3(i de largo, com a grossura de seis pés no
centro , proximamcute : é todo um pedra inteiriça ,
eleva-se perto de 300 pés sobre o nivel das agiias
da cilada torrente. — A segunda é composta de três
enormes volumes de rocha, que cahirani de manei-
ra que reciprocamente se sustentam; o do meio é
como o fecho da abobada . accidente que podéra
ler suscitado aos indígenas a idéa das obras d'al-
venaria em volta d 'arco, que os povos do Novo-
mundo desconheciam: chcga-se a esta segunda pon-
te por ura trilho estreito, que vai rastreando a bor-
da do desfiladeiro , a começar da primeira. Está a
458 toezas [medida franceza] acima do nivel do
Oceano , c talvez a 280 pés sobre o fundo do val-
le : no meio desta segunda ponte ha ura boqueirão
de 300 pés quadrados, por onde so vê a profundi-
dade do abysmo , que só é habitado por aves no-
cturnas ás quacs não é possível dar caça pelo im-
l)ralicavel do sitio , que não permitte a descida ao
valle.
A GLOBi.v humwa bem ponderada nunca vale quaa-
Ic custa.
89
o PANORAMA.
281
N:,^—
niAUSOI.£U NAS £X£QX?XAS Z>£ riIiIPPE 2."
FAEyniAS DE FiLippE 2.° EM Sevilha, e r*so notável
NAS MESMA? ACONTECIDO.
(Ánno de lo98 '.
Vas solemnidades e funcrões . quer ecclesiasticas ,
quer de regozijo, quer liinebrcs , dislinguiuse na
Hespanha Sevilha na cpocha da sua grandeza , do
que entre outras cousas d.io prova as honras fune-
Ijres celebradas em memoria de Filippe 2.° — Ueu-
uido ás auctoridades ecclesiasticas o cabido, corre-
ram com as despczas , que foram extraordinárias ;
fazendo a traça do tumulo e dirigindo a obra o ar-
chitecto da cidade , João de Oviedo. Na sé se eri-
giu esta fabrica , apesar de temporária, sumptuosa,
debaixo da abobada que fica entre o coro e a ca-
pella-mór e é a mais alta da igreja. Constava ella
de Ires corpos ; o primeiro dorico , formado de pi-
lastras e coluranas em numero de dezeseis ; entre
as pilastras havia nichos com altares c santos , es-
tando repartidos pelos inlercolumnios os emblemas
e hicrogliphicos análogos ao objecto: — o segundo
era jónico , formavam-no oito columnas estriadas ,
no centro sobre mui amplo pedestal assentava a ur-
na funérea , cuberta com rico panno de brocado ,
e grandes almofadas do mesmo a cabeceira , e em
cima delias a coroa c sceptro , a espada nua , as
manoplas e celada ; na base da urna havia um leão
recostado segurando nas garras a haste da bandeira
nacional ; nos quatro ângulos deste segundo corpo
Tiam-se outras tantas pyramides ou obeliscos con-
sagrados ;is quatro esposas que tivera o fallecido
monarcha ; 1). Maria de Portugal !•;, D. Maria de
Inglaterra, D. Isabel de la Paz, c D. Anna de Ale-
manha : — o corpo terceiro e ultimo era corinthio,
íambera com suas colnninas , e diante delias esta-
"i Filha de D. João 3."
julho de 1545-
Setembro 9 — 1843.
morreu de parto em 18
vam collocadas estatuas , occupandò o centro a de
S.Lourenço, sobre pedestal, e de altura de •2-2 pal-
mos. Rematava o soberbo tumulo com uma ciipula
em que assentava um globo que em cima sustenta-
va a ave pbenix. — Desde as duas portas do cruzei-
ro seguiam duas ruas de arcos , adornadas d' esta-
tuas e escudos d'armas, e que davam serventia pa-
ra o mausoléu. — Tudo era fabricado de madeira e
panno, mas imitando a bem acabada pintura os már-
mores das estatuas , outras castas de pedras, bron-
zes , dourados, &c. segundo os objectos, que re-
presentava. Uma infinidade de dísticos e epilaphios
alludiam ás acções do monarcha, que bem é de sup-
por quanto ahi seriam exaggeradas ou disfarçadas.
Chegou o dia úí de novembro de i.^OS , véspera
daquelle em que a pompa fúnebre teria logar ; en-
traram na sé ás duas da tarde todas as communi-
dades religiosas , o clero secular , o corpo da uni-
versidade, o cabido; depois chegaram ostribunaes,
da inquisição , civil , e municipal ; tomando todas
estas corporações assento na capclla-mór ; todos em
bancos rasos por serem exéquias reaes. So dia se-
guinte á hora marcada entraram os padres e mais
auctoridades mencionadas, porem o tribunal da in-
quisição foi o ultimo que chegou e a tempo que
concluído o evangelho da missa subia já ao púlpi-
to o orador sagrado ; de repente aquella corporação
no transito para o seu assento suspende os passos ,
e sem respeito ao acto , ao logar , e á celebração
do sacrificio da missa , envia ao regedor do tribu-
nal civil uma forte intimação para que «sob pena
d'excoraraunhão laiw scntentim tirasse um panno pre-
lo que cobria o banco em que estava sentado;) o re-
gedor oppoz-se abertamente c respondeu que o não
tirava. O tribunal inquisitório levou adiante seu
processo , e alli mesmo declarou excommungado o
regedor; e em seguida mandou-se suspender a mis-
sa, e desceu do púlpito o padre. Succedeu isto pe-
2.' Serie. — Voi. H.
282
O PANORAMA.
las dez da nianhaã, e como em perguntas e respos-
tas e notilicaçõcs decorria o tempo , dispoz o cabi-
do que passasse o celebrante á sachristia para que
coQcluisse a missa; e assim se fez. Todos perma-
neceram sentados , c o regedor das justiças firme
em seu propósito , até que se metteu por mediador
o marquez d'Algaba, é ás quatro da tarde a inqui-
sição levantou a excommunhão ao regedor , remet-
lendo-se este assumpto á deliberação do Conselho
de S.M. — Suspen deram-se por este acontecimento
as exéquias até a sentença da superior instancia ; e
todos os concorrentes despejaram o lem[ilo. —
No mez do dezembro veio a resolução do conse-
lho, ordenando que as exéquias se celebrassem im-
raediatarncnte, e que o regedor tirasse o panno nc--
gro que mandara pôr era seu banco. Aquellas so
eíTectuaram cm 30 e 31 do citado mez, com o que
rematou esta ridícula contestação.
ESTCDOS ÍVÍOKiES.
1.
[As recordações].
Còjio .1 philosophia é triste e árida : — JiS ye/.cs na
primavera o vento norte alira-se peias encostas, tom-
bando dos visos (la serra, como se uma intelligencia
vivesse nclle — intelligencia de maldade e dealrui-
ção. De noite e de dia os troncos das arvores tor-
cem-sc e gemem , as ramas açoutam-se e desjieda-
çam-se envoltas nos braços longos c flexiveis da
ventania : o demónio do septeutrião sibilla no meio
delias um zumbido entre de lamento e d'escarnco.
Debalde o bosque estende saudoso por um momen-
to os Sf.'us mais altos raminhos para o sol que se
vai alevanlando no oriente: a rajada despega de
novo da cumiada da montanha ; o bosque curva-se
para o meio-dia ; c galgando por cima daquellas
mil frontes inclinadas das plantas gigimtes, das rai-
nhas niagestosas da vegetação, aquelles turl)ilhòes
de atmosphcra agitada rolam pela planície col)erta
já de relva enlresachada das primeiras Doriuhas.
iintão , relva e Dorinhas murcham esmagadas pelas
mãos da procella , que tudo alcançam , Instigam e
desbaratam. Os carvalhos frondosos, c as boninas
rasteiras cora a fronte pendida para a terra , como
outros tantos symbolos do desalento, não ousam er-
gue-la para o céu. É que o rugir da rajada cahc
da montanha cm perennc catadupa. As vezes, como
por brinco infernal , o vento finge adormecer um
instante , e depois remoinha c apruma os topos das
arvores e as corolas das llores , mas é para logo as
vergar cora mais força , e apupar com o silvo in-
solente aquclla rápida esperança, qne se desvane-
ce» Ião breve.
E quando o vento acalma é para saltar ao poncn-
te ou ao sul. A rajada já não silva da montanha :
uma bafagem tépida vem da banda do mar ; mas o
céu está toldado e o ar húmido: o dia passa mc-
lancholico c pesado sobre a bonina que a nortaiia
açoutou: ella não pode saudar o sol no oriente :
está pendida c murcha como a ventania a deixara.
A noite vera encontra-la n'uma espécie de torpor ,
que é existir, mas que uão ó vegetar, e ainda me-
nos viver.
Como a florinha do campo a alma por onde pas-
sou a procella da philosopbia , esse turbilhão tran-
sitório do doutrinas, de systcmas, de opiniões, d'ar-
gumenlos , pende d jsaaimada e triste ; e ua clari-
dade baça do sccpticismo , que torna pesada e fria
a atmosphera da intelligencia , não pôde aquecer-
sc aos raios esplendidos do sol de uma crença
viva.
Com Kant o universo c uma duvida : com Locke
é duvida o nosso espirito: o n'ura destes abysmot
vem prccipitar-se todas as philosophias.
A arvore da sciencia , transplantada do Éden,
trouxe comsigo a dòr , a condemnação e a morte :
mas a sua peior peçonha guardou-se para o presen-
te : foi o scepticismo.
Feliz a intelligencia vulgar e rude , que segue
os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na
esperança postas j)ela religião alem da morte, sem
que um momento vacille; sem que um momento
a luz sé apague ou a esperança se desvaneça I Pa-
ra tila uão ha abraçar-se com a cruz era Ímpeto
de agonia, e clamar a Jesus : — «Creio, creio,
oh Nazareno I Creio em ti prrrque a tua moral é
sublime; porque eras huaiilde e virtnoso; porque
filho da raça soífredora e austera chamada o povo,
eras meu irmão , e não podias , Ião bom , tão sin-,
gelo , tão puro enganar teu pobre irmão. Creio ,
creio , oh Nazareno ! porque até a hora do expirar
,ia ignominia , até a hora da grande prova , nunca
desmenliste a tua doutrina. Creio, creio, oh Na-
zareno! porque tu só nos explicaste o mysterio des-
ta associação monstruosa da saúde, do ouro, do po-
derio e dos crimes a um lado , e a da enfermida-
de , da pobreza , da servidão e da innocc ncia a ou-
tro ; porque nos explicaste como os destinos huma-
nos se compensavam alem do scpulchro. Creio,
creio, oh Nazareno! porque só tu soubeste revelar
a consolação á extrema miséria sem horisonte , e
os terrores á completa felicidade sem termo na vi-
da , collocando no logar do destino a providencia ,
e do nada a inimorlalidade ! Creio, creio, oh Na-
zareno ! jiorque a intensidade do teu viver c um
impissivel humano; a victoria da lua doutrina se-
vera contra a philosophia c o paganismo um mila-
gre; a gloria do leu nomo de sufipliciado maior
que todas glorias das mais altas e virtuosas intclli-
gencias do mundo. »
Não! — o animo vulgar que nunca vacillou na
fé, que no insensato orgulho da sciencia nunca dis-
cutiu o Verbo , nunca julgou o Christo , esse igno-
ra a dolorosa oração do que pede a Deus o crer :
ignora quanto fel encerra a interrupção contínua
de cada phrase , de cada palavra daquelle tormen-
toso orar ; ignora o que é atirar-se aos pés da cruz
por um impulso quasi phrcnetico do coração, sen-
tir a voz gélida, pesada, cruel do entendimento di-
zer-lho tranquíllamcnte : — f/iwm sahc! — e cahir
desanimado no lethargo da duvida , donde muitas
vezes bom tarde se alevanta o espirito , opprimido
e quebrado, porque nelle pelejaram horas largas o
instincto religioso, e o demónio implacável a que
chamam sciencia.
A sociedade é bera injusta quando ás faces do
desgraçado, que assim Incta comsigo mesmo, sacode
o lodo da injuria, dizcndo-lhe : <i hypocrita !» por-
que escondeu aos que o rodeara , não as certezas ,
que não as tem , mas as duvidas terríveis da iutel-
ligencia , e lhes revela só as inspirações , os de-
sejos, as saudades do coração ! — Hypocrita? !
Tanto como o que havcndo-se transviado da estrada
e cabido cm fujo profundo , dorido , coberto de pi-
saduras e feridas , c ensanguentando as mãos e o
rosto nas urzes do despenhadeiro, lidasse por sahir
delle e voltar ao caminho suave c plano , c bradas-
o PANORAMA.
283
se aos que visse ao longe: «não tos afTasteis para
aqui!» Hypocritas sãoaquellcs que mentem aos que
os escutam ; que simulara a paz do descrer Iran-
quillo, quando vai )á dentro o tumultuar das in-
certezas. Como satanaz ellcs dizem que o inlerno é
o céu: dizem que a irroligiosidadc tem o segredo
do repouso e da ventura . quando o que ella dá ó
inquietarão c desesperança.
' Feliz a alma vulgar e rnde que crè , c nem se-
is* l quer sabe que a duvida existe no mundo 1 Está cer-
ta de que alem da morte lia vida ; conhece as suas
condições ; conliecc-as como lh'as ensinaram, como
conhece as condições dos corpos. Tara ella as noites
não tem os pesadcllos monstruosos . nem os dias as
meditações febris cm que o sceptico irivolunlario se
debate na orla do possível, que toca por ura lado nas
solidões do nada, por outro na immensiJade de Deus.
Mas ainda mais feliz a intelhgencia superior ás
do vulgo, aquella que a Providencia destinou á
missão do poeta, nos annos da infância e da juven-
tude , antes que o árido bafo da sciencia a quei-
masse passando por cima delia! Nesse espirito e
nessa idade a religião não está só nos preceitos e
nos dogmas; está na natureza inteira. A alegria de
Deus , o aspirar das fragrâncias celestes , a toada
suavíssima dos hymnos dos anjos , descem a ella
nos raios do scl quando nasce e quando desappare-
ce; tremulam nocspelhar-se da lua nas aguas; mis-
turam-se no cicio das arvores ; entretecem-se com
os mil gemidos da noite ; vivem nas alfeíções do-
mesticas ; e santificam o primeiro bater do coração
pelo amor. Tudo então é viçoso e puro , porque a
alma poética lhe empresta viço e pureza. As har-
monias moldadas na virilidade pelas leis das lín-
guas, e dasescholas, são apenas um echo frouxo des-
ses cânticos da meninice e da primeira mocidade,
que se evaporam sem se escreverem, que são um
oceano de delicias ineffaveis em que se emballa
raollemente a imaginação e o sentir do homem , a
quem o mundo ha-de chamar poeta. Nessa epocha
da vida elle não abstrahe do real para salvar ver-
dadeira e intacta a sua idealidade: fiz mais; der-
rama esta, que é a seiva intima do sen viver, pe-
lo universo, e converte-o n'uma cousa formosa,
santa , ideal , que o mundo está bem longe de ser.
Depois vem outra epocha da vida. em que a feli-
cidade é mentida, mas ainda é felicidade, postoque
já eivada de vaga inquietação , de ambições desre-
gradas , d'esperanças mesquinhas e heterogéneas.
São os annos que precedem c seguem immediata-
mente os vinte. Abrem-se então ante nós os cami-
nhos do mundo como uraa conquista. Gloria d'ar-
tistas, poderio, opulência, acções generosas e gran-
des , amor sem termo , amisade sem perfídias , vi-
da multiplicada indefinidamente pela infinidade de
affectos c sensações — que é, cmfim , o que não so-
nhámos nessa epocha de fervente loi^cura? A in-
Docencia morreu , a poesia intima e creme desoa-
raton-se. o sentimento religioso dcsvaneceu-se : mas
ficam os deleites dos sentidos, que nos embriagam ;
os applausos das multidões aos nossos hymnos des-
corados, que elias ainda julgara enérgicos e bri-
lhantes ; applausos que nns consolam ; fica-nos uma
philosophia orgulhosa c insensata , que se crè pro-
funda, uraa sciencia superficial, que se crè comple-
ta , pela qual dormimos tranquillos sobre a nega-
ção de todas as idéas myslicas, e de todas as lem-
branças de Deus.
Desta idade em diante é que chega o desfazer
das illusões — até das illusões do orgulho. A poe-
sia suave e pura da infância e da puberdade pas-
sou : passa lambem o iris das paixões férvidas, .ias
ambições insaciáveis, da tr^iiça na projiria ener-
gia, (jomeça então o pardo crepubculo deste scepti-
cismo, que, similhante a herpes lentos, vai lavrando
por todas as nossas opiniões c affectos , c os pros-
tra e subjuga ; desde essa epocha a vida tem lar-
gas horas de tédio cm que o existir é uma carga
pesada , porque nos f.illa um alicerce em que pos-
samos fimiar-nos; porque fluctuamos sobre as né-
voas densas do duvidar de tudo.
O materialismo incrcdulu já tirou das phascs c$-
pirituaes dos altos engenhos argumento contra a im-
iiiorlalidade. Com a sua lógica míope persuadiu-se
de que via as enfermidades e a decadência da alma
atoiíipnnliarcm as enfermidades e a decadência do
corpo ; que via o entendimento cachetico esmorecer
com a decrepidez ; quiz que elle na morte ficasse
perdido e annulado entre as cinzas da sepultura. Se
o materialismo soubesse que ávida das summas in-
telligencias é a poesia , e que ella segue a ordem
inversa do desenvolvimento physico ; se conhecesse
que a energia intima tem o seu apogeu nos annos
débeis da infância , e começa a desvanecer-se quan-
do os órgãos se fortalecem , elle não teria achado n
explic.Tção do phenomeno nas suas tristes doutri-
nas. Nos destinos eternos dos homens iria encon-
trar a rasão desse facto , que então veria á sua lui
verdadeira. Os olhos da alniE se vão pouco a pon-
co enevoando no meio das trevas do mundo: nesta
atmosphera grosseira e corruf^ta ella resfolga a cus-
to , e com o diminuir dos alentos diminuem-se-lhe
snecessivamente os brios : cada dia lhe desfolha um
affecto , lhe discute uma crença , lhe mata uma es-
perança , lhe traz um desengano cruel. Entre o es-
pirito e o mundo partiram-so uni a um todos os
laços. Vós credes que a meute se definha , e el-
la apenas dormita para despertar vigorosa ao sol
da eternidade , que rompe atraz do scpulcbro.
Toraai-nie esse octogenário tonto que foi um al-
to engenho ; cavai no deserto do seu coração gasto
e frio , e arrancai-me de lá uma daqnellas paixõe.s
que ardem até o ultimo instante da existência : vi-
brai uma corda das que lhe davam na idade viril
um som estridente : dizei-lhe : — «leu filho querido
foi arrastado ao lril)un<il como criminoso ; espera-o
o suppli 'io se não houver unia voz eloquente que
o defenda: se ella se erguer será salvo; — e tu
foste na mocidade o mais eloquente dos homens!).
— Dizei-lhe isto , e vereis esse engenho , que cre-
des moribundo , atirar-se como um tigre ao meio
dos juizes , c achar toda a energia dos vinte e cin-
co annos para defender aquella vida que a nature-
za ligou á sua pelas harmonias raystcriosas da pa-
ternidade. Se as palavras, se o órgão extenuado da
linguagem não poder exprimir o pensamento da-
quella ;ilraa remoçada subitamente, o gesto, o olhar,
os meneios substituirão a língua, e .se cansados <■
débeis não bastarem á violei.cia da idca , o espiri-
to despedaçará o quasi cadáver, e despedindo-st
da terra provará, que se dormitava não se extin-
guia , e que despertando partia o vaso frágil que
já não o podia conter.
Tal é o destino da intelligencia neste breve des-
terro : dois dias conserva as recordações verdadei-
ras e puras da sua origem immorlal : outros dois
allumia-se ao fogo fátuo das paixões e esperanças :
o resto delles revolve-se na lucta tormentosa das
idéas . dos affectos , dos desenganos : depois vem o
dormitar da velhice e a regeneração da m^orte.
2U
O PANORAMA.
Eu que já vou áqiiem do marco , onde começa
<) terceiro período da viagem humana, a sós ás ve-
zos com as minhas recordações infantis, ponho-me
a comparar a aspecto prosaico c triste, que tem
actualmente para mim o universo, com as formas
suaves c poéticas em que elle me apparecia involto
nesses tempos dourados. íí uma compararão amar-
ga : mas a saudado que encerra consola do seu
amargor.
Hoje a lua no crescente alevanta-sc ao anoitecer
de ura dia sereno do estio, e estende o manto de
Ihama de prata sohre a face levemente crespa das
aguas: os seus raios , transparecendo por entre o
verde-ncgro das copas do arvoredo . que se balou-
çam somnolentas , descem trémulos sobre o chão
pardo . e lhe mosqueam a superfície como o dorso
da panlhcra. A virarão íenuissinia da tarde passa ,
e murmura um cicio quasi imperceplivel na folha-
gem. T.m volta do circulo alvacento que o luar es-
parge no céu, scintillam algumas cstrelias no azul
do firmamento, que parece o leito recamado de sa-
phyras em que se reclina a rainha da noite.
Ha quinze ou vinte annos uma tal noite tinha
para mira um sem numero de mysteriosas harmo-
nias, que eu não sabia explicar, mas que sabia
sentir. Agora sei dizer-vos o que é a lua , a sua
luz refracta, a noite , a virarão , o vuilo das aguas
encrespadas . as estrellas , c as solidões do espaço ;
mas o que eu já não sei é verter as lagryraas d'i-
nefTavcl contentamento que se me escoavam tépidas
pelas faces, ao contemplar esse espectáculo: o que
cu já não ouço são as harmonias iramaleriacs e in-
timas, que vagavam pela atmosphcra tranquilla, co-
mo um eccho longínquo das harpas angélicas tom-
bando de astro em astro até se derramarem na
terra.
Dai-me uma nota só dos cânticos que eu então
escutava ; dar-vos-hei em troco toda a minha estú-
pida e inútil scicncia I
Alas essa eiiocha da vida não voltará mais , por-
que não pude retroceder uma única onda do rio
impetuoso do tempo I Depois da tara do mel esgo-
tada , resta a do absintio. Que se resigne e espe-
re nquelle que vai devorando os dias da duvida e
do desalento. Chegará a hora de renascer para a
poesia c para a certeza : será a da morte. A Provi-
dencia foi ainda generosa comnosco conscntindo-
nos affastar dos lábios a espaços o cálix do fel, e
deixando que nestes momentos rasguem o nosso
longo e tedioso crepúsculo alguns raios transitórios
de luz. A memoria t' o instante de repouso; e a sau-
dade o clarão suave que nos illumina.
Uecordar-se — coiisolar-se.
(A. Herculano.)
AS CAMUnÇAS.
l>rrs animaes , agilissimos , espertos, e no tama
nho c forma em tudo parecidos á cabra domestica
pertencem ao género das antílopes , intermédio en-
qucnlam os mais altos c intratáveis picos das prin-
eipaes cordilheiras da Europa e da.Xsia occidentai,
como os Pyrinéus, os Alpes, as montanhas da (íre-
Ire os veados e as cabras, eque tem iacrimaes, co- i cia , o ('aucaso ; e talvez que se encontrem em ou
mo os primeiros , c os xavelhos recurvados. Fre- j trás situaçõís. Xos hábitos e ligeireza assemelham-se
o PANORA3IA,
285
muito ao bodequim ; veja-sc no que dilTercm , a
pag. 205 do voi. 1.° deste Jornal , onde inserimos
estampa c noticia deste animal selvático , e alii
mesmo , o risco da perigosissiina caça de ambos , a
qual , alem de degenerar em paixão nos babitantes
das serranias , é vantajosa , quando feita ás camur-
ças , cm rasão do valor das pelles , que depois de
curtidas tem varias applicações, e são bem conhe-
cidas Como esta casta é veloz, precatada, mu-
nida de perfeito olfacto e vista penetrante , ó dilli-
cil de apanhar , maiormentc porípic Irepa por es-
carpadas roclias , em sitios imper\ios ao homem ;
de tal modo que parece incrível como se não des-
penlia em repetidos pulos irregulares saltando por
fraguedos e pi>nliascos, onde não tem uma saliência
em que passa lirraar-se ; por isso os caçadores, pa-
ra não frustarem suas penosas e arriscadas fadigas,
cosiumam-se juntar-sc cm bandos e fazerem córco
ao pincaro ou agulha que sabem ser frequentado
por caraurças ; o faro subtil dos aniuiaes denuncia-
]hcs os perseguidores que vera da banda do vento,
por consequência fogem na direcção opposta c as-
sim vão cahir em mãos da outra partida dos ini-
migos.
Aborrecem tanto o calor que se vão acoutar nos
mais empinados desfiladeiros , c só de inverno . du-
rante a inteusidade do frio, procuram alguns valles
mais baixos: pastam hervas , matto , e gomos d*ar-
Tores e arbustos : tcem as crias em março ou abril,
raras vezes duas de um parto , e só as ammaraen-
tam até o outubro seguinte. Dizem que a carne das
camurcas é saborosa.
Mi^CEL DE SOCSA DE SePCLVEDA.
IV.
Africa.
ffs Africa . dos bens do mundo avara
Inculta, c toda chtia de bruteza;
Co Cabo , que aléqui se tos nrgàra ,
Que assentou para o Austro a natureza :
Olha essa terra toda , que se habita
Dessa gente stm tei , quasi injinita.
Lls., Ciiiit. 10, Est. 92.
Foi uma nobre e ardida cinpreza a das descobertas
da .\frica. Foi uma sublime intelligencia , e uma
poderosa vontade a daquelle príncipe que primeiro
em Portugal creou a eschola e, pódc dizer-se, ins-
pirou o génio da navegação. Deverii-lhe muito a hu-
manidade . a sciencia , e a gloria também. Grande
homem é aquelle que sabe tirar partido das tendên-
cias de uma epocha e das propensões de um povo.
E se elle chega a converter os erros e as paixões
do seu tempo em vantagem duradoura da sua na-
ção ou da sua espécie , merece então o titulo de
Lemfeitor c a coroa de immortal. Era a religião na
epocha em que viveu o infante D. Henrique o voto
mais acendrado e o mais pungente estimulo da so-
ciedade porlugueza. Apoderando-se das consciências
e das cabeças tinha-se esse divino instincto torna-
do quasi em delírio, ilas esse delírio voltou-o aquel-
le príncipe cm proveito da civilisação e do com-
mercio : e o que na idade media fora flagello da
Europa — o demónio da intolerância — transmuta-
do em principio de bem e progresso, produziu
[quem o diria!] resultados que o mundo hoje ad-
plaude e proscguc com enlhusiasrao. Kecalcado so-
bre a extrema do occidente , este povo tão pequeno
era território, mas tão vasto cm pensamentos como
ínsotírido de repouso e de paz a que o tinham de-
safcíçoado quatro séculos de guerras mal interrom-
pidas, .Tbafaria, se a natureza lhe não estivesse co-
mo clamando = (ío ocfíino , oo ocea«o.' = Ao ocea-
no pois se lançou no amanhecer do século Vi , cu-
commendando-sc a Ucus, e hypothecando-sc á ven-
tura ; e desde essa madrugada, dormindo ainda em
somno profundo o resto da Europa , caminhou tan-
to , que parece hoje um sonho a historia raeinora-
vcl de suas cmprezas. Não eram , não , almas vul-
gares as desses homens que com tão escassos meios
l)ara resistir aos perigos tão variados do mar , es-
tando_ ainda na sua infância a arte náutica, se afou-
taram aos abysmos, c penetraram tantas terras bar-
baras , desconhecidas ao resto do mundo, fiados
unicamente na grandeza do seu coração '
Correndo com os olhos o mappa , desde o ponto
cm que Europa se divide de .\frica até o Cabo de
Boa-Esperança , quasi se não topa uma ilha , um
golpho , um promontório , uma costa , uma babia
que não seja porlugueza pelo descobrimento e pelo
nome , senão pelo senhorio ; e dobrando o Cabo
quantos vestígios, quantos se não encontram por to-
da a costa do oriente da actividade e do génio de
nossos navegadores? Aquelle vasto oceano está coa-
lhado dos seus ossos, aquellas praias ainda estão hú-
midas do seu sangue, aquellas terras ainda nos são
testemunhas do seu valor, eos cchosdaquelles mon-
tes ainda se não cansaram de repetir o pregão secu-
lar de suas victorias. Chnrama era essa que lhes ar-
dia nos peitos mais abrazadora que o fogo dos trópi-
cos. Eucrvou-se acaso a ten)pera heróica de que eram
forjados aquelles ânimos? Encrvou-se, sim; masnão
se perdeu. Xa alma do homem mais frouxo, e do
povo mais apathico reside um principio de energia
e de acção. Alinai-lhe com a corda vital, evibraí-a
q^ie vos hade dar um som : procurai nessa pedra
inanimada c insensível a vèa onde se occulla o fo-
go e feri que hade afusilar-vos centelhas : applícai
a pilha galvânica a esse cadáver que ahi jaz , er-
guerse-ha diante de vós ! Não é a mesma em todas
as cpochas , bem o sei , a vara magica que desper-
ta os povos. Foi grande estimulante no século das
descobertas o proselytismo religioso, que não pres-
taria hoje. Mas lem-o sido entre nós somenos o
amor da independência? E o enthusiasmo da liber-
dade , exaggerada ou não , não puz , ao fechar do
século 18.", em movimento todas as forças d'um
povo illuslre? E quando arrefeceu esse enthusias-
mo , não houve um homem que soube tocar ua li-
bra syrapathica xla gloria a esse mesmo povo , e
abala-lo a obrar prodígios cm nome da ambição ,
como os tinha obrado em nome da pbilosophia?
Será , também , seguido como muitas vezes é do
incentivo da grandeza nacional, fraco aguilhão o
do commercio?
Havia um toque de verdadeira ingenuidade ein-
nocencia , que boje mal pode ser compreheudido ,
na confiança com que os nossos antepassados na
primeira epocha das suas excursões náuticas redu-
ziam o titulo da posse real das terras que iam des-
cobrindo a escrever o motlo , profundamente syra-
pathico e altamente social , do infante D. Henri-
que ^>) na casca dos dragoeiros, a plantar com sin-
(•") Ninguém ignora que o inolto era este; ialnu ile
iienfaire.
286
O PANORAMA.
Seleza algumas cruzes de pau , ou a assentar pa-
iJrões do pedra demonslrando em seu letreiro a da-
ta da descoberta , e o nome do descobridor. Mas,
com todo esse desartificio, que paciência no estudar
as inclinações do pqvo , e que destreza no governar
aquellas ondas revoltas da multidão para um fim
nacional 1 liu não me atrevo a decidir se a nossa
sciencia , que na jactância não é mesquinha, vale
neste ponto a sua que era menos fumosa , mas pô-
de ser que mais ellicaz. Souberam cllcs com o po-
■vo mais pequeno da Europa , destiluidos de todos
os instrumentos da policia moderna , devassar o
mar c a terra por milhares de léguas, e cofiduzir-
nos ao vértice da pyramide no commercio c na po-
litica. E nós com todo o apparato d'arles, c a van-
tagem dos cabedaes da fortuna e também da expe-
riência amontoados em quatro séculos, com quan-
tas sejam as nossas perdas, superiores a elles sem
comparação, havemos descido ao mais humilde grau
<la escala das nações commercianles. íí que se nos
estanca o génio , cumpre confessa-lo. iVingucm ho-
je affirniará que a nossa decadência provenha wní-
camrntr da elevação de outros povos , porque o do-
gma , decrépito , das nações não poderem prospe-
rar senão com o abaixamento e pobreza de ou-
tras , c hoje regeitado pela economia , e desmenti-
do a todas as horas pela auctoridade dos factos.
IVão deixo cu de considerar que se vão desmoro-
nando os vallos que separavam as sociedades — que
os povos se vão aggrcgando á unidade social e po-
litica— que a linha que dividia um paiz era tan-
tas nações como as suas províncias, os seus distri-
ctos , os seus municípios , as suas differcules clas-
ses se vai apagando: mas isso que monta? È, ape-
nas, quebrar os obstáculos á união. Dahi a alcan-
çar a unanimidade , e a influir impulso commum e
uniforme no grande todo nacional , vai muita dis-
tancia. Quereis ouvir, cm poucas palavras, o que
.1 nós nos falta: achar aquellas idéas poderosas,
que apaixonam as multidões , e achadas atira-las ,
como facho incendiado , ao meio da sociedade por-
lugneza hebetada c paralítica. Conheciam esse se-
gredo os nossos antigos, c essas povoações tão desa-
tadas como pareciam , e como eram as do seu tem-
po, com que habilidade não sabiam vincula-las em
laço estreito , c tocor-lhe aquelle rebate a que ci-
las acudiam sempre em agitado tropel ! Vede uma
associação industrial: como um pensamento imico
dirige aos seus membros todos : como caminham
unidos para o fim do interesse que alli os jun-
tou : como são acres e diligentes no esquadrinhar
os danmos , os proveitos , as causas de ambos , os
passos que para lá guiam : como o estremecimen-
to que sente um o sentem todos: como a idca que
aili os convocou está con';tantemcnte accesa naquel-
las cabeç.-is , regendo todas aquellas vontades, mo-
vendo e indammarido sem de.srimço n'uma direc-
ção única e commum todos aquelles esforços : co-
mo marchando todos debai:-;o d'Hma só bandeira ,
a uma voz que todos entendem e coramove a to-
dos , chegam a lonseguir os resultados a que as-
piravam ! Assim hadc ser a grande associação na-
cional, SC quizer marchar em linha com nsprogres-
•ios do seu século. .Somos portuguozes, povo meri-
"iional. e herdeiro de grandes recordações, ^'ão nos
lalicce sensibilidade para receber eslimnlos se os
convenientes nos forem applicados. Tivemos tem-
po , espaço , industria , commercio, para adquirir e
«nthesourar. Temos homens, terra, clima, recursos
pbysicos u moraes ; mas . cu já o disse , falta-iios
o génio ; c falta-nos exactamente no logar onde
mais o precisávamos que era nas regiões do poder.
O poder tem , desde muito , sido quasi completa-
mente estéril para nós. E quando cu me demoro a
contemplar os elementos fecundos , que ainda res-
tam á nação portugueza ; quando comparo o estado
era que cila se acha com o de outras rauito menos
dotadas pela Providencia , mas melhor aquinhoadas
de sabedoria politica e governativa , gemo da nos-
sa inferioridade, e da nossa humilhação!
Quem evocará das ruinas o espirito enérgico dos
tempos passados? Quem despertará do Icthargo em
que jaz entorpecido este povo? Quem, quem apon-
tará a esta geração era seu desalento a eslrella da
esperança?
Os túmulos e os rios.
Existem umas catacumbas em que habitam alguns
seres humanos. iVo vestíbulo estão como postas de
guarda (iguras de raposas, symbolo da vigilância.
A um angulo lança uma fraca alampada a sua luz
moribunda sobre o subterrâneo, onde ao cahir da
noite se reúnem os moradores, e passara mostra ao
despojo que fizeram durante o dia. Alli estendidos
sobre |)ilhas de ossos de finados contam uns aos ou-
tros suas aventuras estes habitantes das cavernas,
meio nus, e quasi selvagens; mas nem por isso des-
tiluidos de astúcia e de malicia. Depois ao lume
acccso com esses mesmos ossos , c cora pedaços de
caixões funerários cosinlião o seu festim , e rctei-
çoados com o banquete infernal, entram logo a cui-
dar uo achado ou na preza do dia seguinte. Quem
são esses homens estranhos? os troglodytas. E es-
ses subterrâneos scpulchraes que elles habitam? as
catacumbas da Thcbaida. E^lamos no Egypto , ter-
ra de maravilhas c demysterios, cujos antigos mo-
numentos certificam a cuda ]iasso que alli se cui-
dava inuilo dos mortos , e muito pouco dos vivos.
Cousa singular'. A civilisação, a historia, as artes ,
as sciencias, os costumes deste povo estão deposita-
dos e cifrados nos seus túmulos. A vida reputavam-
na peregrinação de um dia , e a alma , segundo as
suas crenças religiosas, habitava na morada dos mor-
tos em quanto alli se conservava uma reliqiiia do cor-
po. Embalsamavam os cadáveres com muito cuida-
do para que durassem séculos : accumnlavara piedo-
samente nos sepulchros quanto pudia tornar aprazí-
vel aquella morada aos espíritos que alli suppunham
residir: e lá mesmo com o auxilio da pintura e es-
culptura procuravam perpetuar a memoria e os fei-
tos dos fallccidos para servirem de exemplo ás ge-
rações que lhes haviam de succeder ; elles pelo
mármore , c o pincel , nós pela arte divina da ioi-
prcnsa.
Africa , os túmulos são o testemunho da tua ci-
vilisação no passado . e os rios o penhor da tua
grandeza no futuro. Corre , patriarcha das aguas .
.\ilo mysterioso e sagrado, corre os teus vastos do-
mínios ; luimilha-te como os ribeiros , e murmura
como elles : rola impetuoso , rola as tuas ondas :
atravessa rápido os desfiladeiros c as montanhas :
brame dcspcitoso na garganta d.-.s rochas : dcspe-
nha-te enfurecido nas catadupas : passeia sereno e
magcstoso as idanicíes , c cm lua grão carreira não
como o conquistador que devasta mas como a di-
vindade que fecunda , abençoa os cami)os : levanta
essas ilhas graciosas que te obedecem como a seu
suzerano c protector: beija o esiihíngc colossal que
os homens e os deuses deixaram esquecido ás luas
o PAWORAMA.
•287
margens: consola o viajante abrasado do deserto
com a fresquidão de tuas auras, com o picluresco
de tuas scenas , com o aspecto deleitoso dos tama-
reiros de Syena : foge , foge como a belleza orgu-
lhosa c requestada; e como cila os segredos do seu
coração , recata , ó Xilo , os inystcrios do teu nas-
cimento. Pai da civilisarão , rio portentoso , de
todos o mais antigo , e o mais eiiygmatico , que
acalentaste a monarchia de Menes em seu berço ;
que assististe á fundação de Mcmíis v. Tliebas ; que
viste emigrar a colónia de Cecrops ; que choraste
as lagrimas araargns da escravidão sob o jugo de
Cambysses ; que do aviltamento do senhorio estran-
geiro te consolaste um pouco com o reinado glorio-
so dos Pioinmeus ; que gemeste as profanações de
Cleópatra , e a tyraiinia uas armas romanas ; que
te acurvaste resignado ao sceplro do arahe ; que
palrizastc ao sacudir a dominação dos califas da
Ásia; que raalsonTreste a usurpação do nazareno; e
que reconheceste em lim a lei doprophcla — tu se-
rias boje uma ruiiia venerável , ou unia |)olencia
decahida , se o grande Alboquerque vivesse assaz
para derivar o leu luirso : {*]
Se a Providencia embari^ou o guerreiro porluguez
no projecto de degradar de sua oiiulcncia e cele-
bridade este rio, reservou a outro portuguez , sa-
cerdote, a gloria, tantos séculos c a tal desvelo
buscada , de o devassar na sua fonte. Aos vinte e
um de abril de 1618, na Kthiopia , reino de Go-
Gojara, território do Sacahala, paiz dos .\gaus, niui
perto de uma pequena montanha encontrou o padre
Pedro Paes, jesuíta [)orluguez, o berço doISilo, (::)
nascendo de duas fontes, uma das quaes poderá ler
quatro palmos de diâmetro. Sae da sua origem ca-
minhando occulto por debaixo de hcrvas e arvore-
tas entretecidas , espaço de um terço ou quarto de
Icgua : e ao cabo d'esse espaço pela primeira vez
;ipparece, ainda humilde e indigente, correndo en-
tre pedras esse rio , cujc nascinienlo Alexandre e
Philadelpho perguntaram , mas debalde, ao orácu-
lo de Amnon ;■ Sesostris c Cambisses procuraram ,
e Nero mandou buscar , com exércitos poderosos ;
e César o Dictador mais queria descobrir do que
dominar em Roma !
Rio illusire , não tens rival sobre a terra'. Pode-
se affectar apenas a honra de teu segundo , e o teu
segundo é o Niger.
O Níger é uma das grande.; artérias de Africa.
Quanto sangue, quanta seiva encerra o coração d'a-
quella península inimensa. todo passa pelo .Níger. —
Mas duraiie muitos séculos castigou aos temerários
que se arrojaram a metter pé em sua commarca, e
a procurar o registo do seu nascimento este rio, co-
mo o guerreiro dos tempos que foram , catafracto
de todas as armas; dciTeudido por precipício de al-
gares , por aspereza de serras , por tempestades de
areia , por dilúvios de chuva dos trópicos, por fu-
ror de ventanias , por fogos do equador , por soli-
dões, por torrentes, por truculência de feras, e por
crueldade de homens. — \ historia das viagens ao
Níger, é um martyrologio continuado, e neste mar-
lyrologío a victima mais illustre é Jlungo ParL.
Em sua primeira viagem Mungo Park, depois, de
(•) Anir^oasi iiai '3os sábios da cxpediçitu franceza ,
que foi ao Ejypl" , é ile opinião que nào teria siilo inexe-
quirel o plano de Alboquercjue , adoptadas certas mudiQ-
cações que aponta.
('■■) Voyaie hislorique d'Abissinie duR. P. Jerome Lo-
bo, traduite du portujais, continuée de plusieurs disserla-
tions, letires , et meaii)ires par M. Le Grand-Paris 1723
— pag, sio.
muitos trabalhos , c de perigos a que parece mila-
gre haver escapado , levando pela redca o cavallo
exhausto de cançaço , foi de repente, perto de lab-
bi , tirado do abattimento cm que ia pelo grito de
jubilo dos negros que o acompanhavam : Geo aflil-
li I eis aqui a agua. Kntão o vi.njantc olhou e ven-
do com arrebatamento o grande objecto da sua ex-
pedição , o magestoso Níger, por tanto tempo c a
tanto risco intentado , faiscando ao primeiro raiar
do sol, precí|iilou-se sobre as suas margens, bebeu
soffrego de suas aguas , c rendeu acções de graças
á Providencia eterna que aos seus esforços acabava
de coroar com o successo. Voltou á pátria Mungo
Park sem ter descoberto o curso definitivo do Ní-
ger. Repousou dez annos no seio de sua família.
-Mas consumido por aquella lava occulla e nunca
extíncta do génio , resolveu segunda viagem ainda
mais perigosa que a antecedente ; emprehendendo
descer pelo rio desde a sua sahida da região de
.Mandinga jtnito a BammaKu até á sua embocadura.
Partiu. Chegou aofiambeacora a sua pequena comi-
tiva, seu cunhado Anderson, c o pintor Scolt, man-
cebo-ambos, cheios d'enlhusiasmo ecoragcm, com-
patrícios e amigos; alguns soldados, o tenente Jlar-
íyn , e dois marinheiros para equipagem do barco
que haviam de construir para a descida do Níger ,
e C carpinteiros. Subiu o Gambea até Kace e cm
íiaee ajustou-se com iini padre de Mandinga, ne-
gro intcliigcnte e íiel chamado Izaaco , para o se-
guir na qualidade de guia e interprete. X II de
maio começou a sua peregrinação aventurosa, e en-
tre as fadigas, accidentes e tribulações variadíssimas
por que passou, doissinacs, revelação da sorte que
lhe eslava dctinada , como duas badaladas lúgu-
bres do um sino de finados , o avisaram durante o
caminho. Na passagem do rio ■'i\'únda Izaaco, oguia,
foi acconimettido por nm crocodilo, e já meio en-
golido , depois de uma lucta ensanguentada e terrí-
vel , pôde o negro intrépido tirar os olhos ao mons-
tro , c d'e£te modo escapar á morte ainda que fe-
rido e mui gravemente. Ao passar outro rio o Bor-
Waulima , braço o mais oriental do Senegal , en-
fermos já a esse tempo lodos os europeus da cara-
vana , precedia-os entre os selvagens que vagueiam
por aquellcs sítios um boato singular e sinistro : é,
diziam aqiielles negros ferozes, ura Doi:mmoulafoug
— uma cousa que aqui vem para ser comida. A ca-
da passo uma nova desgraça o soçobrava ; mas lan-
çando os olhos ao hurisoiíle, se divisava sequer uma
cadeia de montaniias ba!;hadas pelas aguas do Ní-
ger , reanimado da esperança , triumfava da sua si-
tuação o magnânimo viaj.snte.
Em lins de setembro ciiegou próximo á villa de
Síuisanding , e ancorou a sua barca. E da villa a
16 de novembro escreveu ao seu amigo los. Bank a
ultima carte em que lhe dizia que era sua inten-
ção tirar o parlido possível da corrente e dos ven-
tos , navegando no meio do Níger ; e que bem ce-
do ou havia de descobrir o termo do rio mysterio-
so , ou morrer em suas aguas.
O navio de Mungo Park tinha capacida#e siillí-
ciente para conter 120 homens ; mas a bordo leva-
va O somente : quatro brancos em cujo numero en-
trava o tener-te Síartyn , o próprio Park , tre? ne-
gros escravos , c Ãmadi o novo interprete substitu-
to de Izaaco. Ia bastecido de miuiições de toda .í
casta. Partiu de Sansanding em novembro de ISOj,
chegou em dois dias a Genii e de lá ao lago de
Dibbic , onde foi atacado por Ires barcas armadas
de piques e lanças. Síungj Park conseguiu todavia-
288
O PANORAMA.
repeli-las. Junto a Bakbara , ancoradouro de Tom-
buctu , enconlrou outras três , que igualmenle re-
pclliu , e ás abas do junto á capital leve que com-
bater ainda outros inimigos. Em cada um d'cstcs
recontros perderam os iiaturaes muita gente. Perto
de tiouroumo foi assaltado o navio europeu por se-
le canoas que poz em fuga , com morte de um só
europeu , tendo cada um dos homens que lhe res-
tavam 13 espingardas carregadas. Próximo á resi-
dência do reiGotoyege tornaram os indigenas a ata-
ca-los com 60 canoas que foram todas postas cm
derrota, depois de terem perdido muita gente, lis-
tava reunido ás margens do rio um exercito consi-
derável de Pulos : mas a gente de MungoPark pas-
sou trauquillanicnte por elles, sem se ver obrigada
a travar combate. Ancoraram em Caflo : alli des-
cansaram um dia ; c depois proseguiram até á fron-
teira do reino de Iloussa , onde Amadi devia re-
troceder, segundo tinlia ajustado com 3lungo Park.
Mungo Park tomou terra cm Yaour , i)aiz habitado
por Marabulos , e mandou [lelo seu interprete pre-
sentes ao principal do logar, que em testemunho
de agradecimento o brindou com uma carga de ar-
roz, trcs escudcUas de mel , um carneiro , e uma
novilha. Depois enviou pe!o mesmo ao rei, que es-
lanccava a alguns centos de passos do ribeiro, sinco
aiHicis de prata, alguma pólvora , c pederneiras de
espingardas , pediudo-lhe acceitassc aquella olVerta
em memoria dos brancos. O principal perguntou en-
tão a Blungo Park , se elle voltaria ao seu paiz ; e
o viajante respondeu, sincero, que lhe seria impos-
sível o voltar. Esta resposta foi a verdadeira causa
da sua morte ; porque o negro astuto, seguro assim
de que não seria accusado, guardou para si os pre-
sentes. Amadi Fatouma ficou era Yaour ; Park con-
tinuou a sua derrota ; e o rei irritado de que elle
partisse sempresenlca-lo, mandou púr aferros o in-
terprete, e ao seu exercito que perseguisse a Mungo-
Park, e o matasse. Junto aBussa, onde altos roche-
dos comprimem o leito do rio, e tornam muito peri-
gosa a sua passagem, atacaram d'improviso ao navio
osnaturaes, e o cobriram d'uma saraiva de pedras,
frechas e piques. Dois escravos que estavam á |)ròa
da canoa cahiram, e Mungo-Park vendo, depois de
ura combate longo e renhido , perdida toda a espe-
rança de salvação , precipitou-se no rio com o ulti-
mo dos europeus.
Morreu o heróico viajante sem chegar a ver o
que alguns annos depois viram , mais afortunados,
Clapperton e sobretudo os irmãos Lander — o curso
inteiro do Níger — á excepção do seu berço, ainda
hoje desconhecido á Europa. Mas , como o seu an-
tecessor , pagaram também cora a vida sua devoção
á scicncin. (Conlinuar-sc-ha).
A. d' O. Marreca.
A durarão dus liomois c a de ahiumas arvores. —
Observei , no cimo do I.ibano, cedros que segundo
as tradições árabes permanecera desde o tempo de
Salomão. Não ha nisso impossibilidade : a natureza
deu a certos vegetaes mais duração que aos impé-
rios ; alguns carvalhos tem assistido á successão de
muitas dynastias, c a lande que pizàmos a pés, o
caroço d'azcitona que esfregámos nos dedos , c a
pinha do cedro varrida pelo vento , terão a facul-
dade de se reproduzir, dar llor e cobrir com som-
bra o chão , quando já os centenares de gerações ,
que tem de soguir-nos, houverem restituído á ter-
ra o punhado de pó que alternativamente lhe toma-
ram d'empreslimo. Não o lenhamos por sígnal de
desprezo da creáção para comnosco ; a importância
relativa dos entes não se mede pela duração mas
pela intensidade da existência. Ha mais vida n'u-
ma hora de pensar , de contemplação, de rezar, c
de amor , que na existência inteira do ho^iem pu-
ramente physica. Ha mais vida n'um pensamento
que percorre o mundo e ascende ao céu dentro de
espaço de tempo inapreciável , no millionessímo de
um segundo, do que em dezoito séculos de vegeta-
ção das oliveiras que palpo agora (•) ou nos dois
mil e quinhentos annos dos cedros de Salomão. —
De Lamartine.
Recordação e/fica: dos varões insignes. — Sempre
me pareceu que a mais segura e expressiva relí-
quia de qualquer homem illustre é o paiz que pre-
feriu e iiabitou durante o seu transito pelo mundo;
é uma espécie de manifestação material do seu ta-
lento , uma revelação muda de parte da sua alma ,
um commentario vivo e sensível da sua vida , de
suas acções e pensamentos. — Sendo ainda mance-
bo passei horas solitárias e contemplativas deitado
debaixo das oliveiras que assombram os jardins de
Horácio, avista das cascatas resplendentes deTivo-
li ; deitei-ine muitas vezes pela tarde, ao sussurrar do
formoso mar de Nápoles, debaixo das varaspendcn-
tes das videiras próximo ao logar onde Virgílio
quiz que as suas cinzas repousassem, por ser amais
linda o amena situação em que tinha posto a vista.
— Mais para diante, quantas manhaãs c tardes pas-
sei assentado ao pé dos bellos castanheiros, naquel-
le valle pequeno dito des Charmettes, para onde a
leirbrança de João Jacques Ilousseau me allrahia e
onde me demorava por sympathia que me suscita-
vam suas meditações e desvarios , suas desgraças e
seu alto eni,enho ! — Assim me aconteceu com ou-
tros muitos escriplores ou homens celebres , cujos
nomes ou escríptos me abalavam fortemente : quiz
estuda-los , conheec-los nos logarcs , que lhes de-
ram ou berço ou inspirações ; equasi sempre o lan-
ço de vista intclligentc descobre analogia secreta c
profunda entre a pátria c o varão illustre , entre a
scena e o actor , entre a natureza c o talento que
esta creára c inspirara. — O mesmo A.
Diz que as lebres , como gente y ■
Um dia conselho houveram . •
Por não viver tristemente .
E afogar-se de repente ' <.
Todas juntas resolveram. ' -■.'■'.
Duas raãs , como sohiam , , C:
Junto ao charco eram pastando
Adonde as lebres corriam ,
E de medo do que ouviam
Vão-se 110 charco lançando.
Uma lebre mais ladina ,
(Jue isto viu . leve-se quedo,
E grilou pela campina :
— Tende mão , gente mofina ,
Que inda ha raãs que vos tem medo.
D. Franc. M. — Çamfonha d'Eut. Cari. 2.
Bnm merecem o somtio da noite os que aproveitam
utilmente as horas do dia^
(•) F.illa lias oliveira» do horto de Getliseuiani , que .\
pia crciiçu jul^a do tempo de Christo.
90
o PANORAMA.
289
- ;Í
XAUFENBUaG.
L"ma lenda do Rue.no.
A SEGCNDA calaracta do Rheno (1), menos estupen-
da que n do canlão de SchaíThausen c situada a
perto de 30 milhas de distancia desta , interrompe
a navegarão do famoso rio pouco abaixo da povoa-
ção de Laufenburg , no canlão de Aargau (2j ,
onde já as margens alcantiladas e de bruta e desi-
gual penedia vão estreitando o leito das aguas obri-
í,'ando-as a correr muito mais arrebatadas , que-
brando alem disso aveia d'agua os penhascos amon-
toados e os bancos de escolhos, ate mais adiante a
rápida inclinação do terreno as precipitar de cer-
ta altura e formar a nova cachoeira : forçoso é na
visinhança desta paragem perigosa descarregar os
liarcos ; e próximo da povoação está lançada a pon-
te , que se vè no desenho acima. O Rheno em todo
o ssu curso é pela imaginação popular povoado de
entes sobre-naturaes, e as suas margens havidas por
scenas de successos maravilhosos , versões ou texto
d'oulros análogos que em todos os tempos e em lo-
dos os povos acceitou a credulidade. — No sitio
que apontámos voga a tradição da fadaLore, e que
é na substancia a mesma que o conto de Melusina
inserto em o nosso vol. o.° — O livro , nítido e
adornado de bellas gravuras em aço, intitulado —
(1~) A'iJ. sobre este rio a pag. 9 do volume 1." desta
.-•-rie.
(i) A que mais creral, porem corruptamente, chamam
Argovia. Aar?au significa província ou districlo do Aar ,
u qual i um rio que atravessa o cantão suisso a que dá no-
me . e desemboca no Rheno.
Sete.ubro 16—1813.
Sagas : Icgrndcs des borih du Rhin , é a compilação
dessas historias de prodígios e aventuras phanta-
siadas. Delle tomaremos a seguinte para exemplo.
No anno de 1400, Colónia era assolada pelo con-
tagio voraz e rápido , que ceifava innumcraveis vi-
das , crescendo a tão subido numero a mortandade
que não havia logar nem tempo para as honras fú-
nebres, e os cadáveres eram arremeçados aos mon-
tões para as valias amplissimas. — Vivia então em
iVeumarkt uma senhora mui respeitável , por nome
llichmodis , casada com o fidalgo proprietário de
.^.ducht ; cahiu enferma , e em breves dias foi do
leito transferida para a tumba ; seu marido a man-
dou sepultar no cimilcrio dos santos apóstolos. Mas
os coveiros repararam cm que a defuncta levava
n'um dedo ura annel d'ouro, e resolveram despo-
ja-la daquella jóia. Clandestinamente e alta noite
Ibram-se ao campo dos mortos ; e levantada a ter-
ra , aberto o eaixão , ao tomarem o dedo para ex-
trahir o annel , o supposto cadáver suspirou pro-
fundamente e sentou-se : não quizeram mais ouvir
os coveiros , e recobrados algum tanto do primeiro
assombro fugiram sem atlender á voz supplicante
da resuscitada , c deixando-a em sua agonia de-
samparada (3). — A senhora Richmodis sahiu da
cova, tomou a lanterna abandonada pelos coveiros,
e arrastou os pés como pôde até a pousada que ha-
bitara : bateu ; porem quando á pergunta — nquem
bate tão rijo? « — respondeu «a dona da casa a —
('ò) Referem-se casos pasmosos de catalep^ia ; talvez
que a algum delles . exaggerado pela tradição oral , deves-
se origem este conto.
2." Serie. — Vol. II.
•290
O PANORAMA.
os criados, conhcccndo-lhe a voz , amedroiitaram-
sc , e cscondoiam-sc em seus quartos : mas a se-
nhora não descontinuou , até que seu marido acor-
dando mandou aos criados que vissem quem a des-
lioras tal Inilha fazia; ao que elles , transidos de
medo, replicaram que era a alma de sua ama, que
requeria entrar, c que não iriam ;í porta porquan-
to havia no mundo. O amo descompo-los de par-
tos , mas , como lhe certificassem que haviam reco-
nhecido a voz da senhora, foi elle próprio á janel-
la saher quem batia: ao divisar um vulto embru-
lhado n'um lençol arripiou-se-lhe o corpo, capaci-
tando-se também ouvir a falia de sua esposa, que
soUicitava entrada : depois, cobrando mais animo,
perguntou de novo. «Quem sois vós?» — «Já não
conheces a voz de tua mulher!» — tornou o vulto
solnçanilo. — «Tão impossível c seres minha mu-
lher, como que os meus cavallos soltando-se saiam
da cavallieriça e subam ao palheiro.» — Inda não
eram bem acabadas estas palavras , já se ouvia o
estrépito dos cavallos a subirem os degraus : — o
senhor d'Aducht correu a abrir a porta á sua espo-
sa ; e recobrado do pasmo deu-se pressa a libera-
lisar-lhe quantos soccorros lhe suggeriu o seu des-
velo , para reanimar a miscra senhora , semi-morta
de frio , e restabclecò-la completamente.
Por bom numero de annos viveu Richmodis de
perfeita saúde, c até deu á luz trcs filhos mui nu-
tridos e sadios: mas desde aquelle successo nin-
guém a viu rir ; trabalhou assiduamente a bordar
uma tapeçaria cm que era figurada a sua resur-
reição , e de que fez- presente á igreja dos santos
apóstolos. Finalmente , fallecida em idade avança-
da, a depositaram á entrada da igreja, junto a seu
esposo, cm mausoléu alto, do qual sabiam harmo-
niosos sons que enlevavam quem lhe prestava at-
tento ouvido.
A historia desta rcsurreição foi pintada á entra-
da da porta principal do templo, para perpetua
memoria ; mas , confundida na ruina d'onlras mui-
tas antigualhas da cidade de Colónia , essa pintura
está meia apagada : também procurará hoje debal-
de o viajante os cavallos de páti, que para lembran-
ça do caso estavam collocados, segundo reza a tra-
dição , á janella do celleiro da casa que habitara ,
como é fama , a familia d'Aduchl.
MaM EL DE SolSA DE StPtLVCDl.
V.
o contraste.
(l'(dc (la niiliirrzii o ilrscnnctrto ! )
Lus. Cant. :!." Est. 1:í!J.
n.k raça dos leões a mais formosa , a mais trucu-
lenta c a mais clássica é a africana. Desta penínsu-
la extensissinia .são indígenas a zclira , o mais hei-
lo dos quadrúpedes que, á similhança dos anacore-
tas do oriente , mora nos desertos — o bippopotta-
mo , patriarcha dos rios — o avestruz, a n.ais gi-
gantesca , c o pavão , a mais nobre c a mais bella
das aves — a baobab, arvore-colosso, tão i)reslimo-
sa c tão serviçal ao homem que a honrou elle com
foros de cidadaã em vários paizes do novo mundo
para onde foi transplantada. Não cedem no niages-
toso a nenhumas do globo a maior parte das suas
llorestas. lUvalisam com as mais pomposas de Itália
e Ilespanha as do Atlas ; e tem parecenças cora as
do meio dia da America as do Guiné, Senegambia,
Congo , e Nigricia. Das montanhas o Atlas , e os
montes da Lua não degradúam da linhagem aristo-
crática do llimmalaya e Chimhoraço. Dos mctaes o
ouro , que pela lavagem se extrahe em grande co-
pia dos terrenos de alluvião , compete com o me-
lhor de outros paizes. Mas a natureza tão generosa
alli cora as substancias inorgânicas, as creações ve-
getaes , c as espécies instinctivas , foi mesquinha
com o homem e avara em demasia. Não c que eu
julque inferior ás outras pela intclligencia e o co-
ração a raça africana ; mas alíirmo que aquella ex-
tensão de desertos areosos — que aquella cadeia de
altíssimas montanhas — que aquella falta de gran-
des golphos e mares interiores — que aquella mui-
ta distancia que separa uns dos outros os grandes
rios navegáveis , isolando os homens e as povoa-
ções , c privando-os de dois commercios , qual del-
Ics mais importante , o das mercadorias e o das
idéas , retém n'uraa condição estacionaria de bar-
baridade os habitantes deste vasto continoule {*].
Dai a um paiz todos os ingredientes da prosperida-
de , SC ao mesmo tempo lhe negais os meios de
conimunicar-se com os seus membros dispersos , a
civilisação é-lhe impossível. Dclai-o como quizer-
des , o homem que se isola é riqueza bruta inca-
paz de aperfeiçoamento o preslírao , e mesmo no
centro das sociedades policiadas objecto sem valor :
e até o que habita em paizes livres , se não se en-
costa aos outros, acaba por seropprimido e escravi-
sado. Verdade profunda que convém repetir lodos
os dias e proclamar a todas as horas aos povos to-
dos da nossa Europa ! Depois da natureza e a arto
lhes ter achanado as barreiras que podiam obstar
á permutação c á convivência , que lhes resta aos
desherdados para o não ser , e aos sem amparo pa-
ra se tornar fortes, senão associar-se? O segredo da
força e da fortuna das multidões consiste na união.
O exemplo antigo , o desengano moderno , o farol
dos povos noviços na carreira social , quereis saber
onde eucoiilra-lo? Na Inglaterra da Europa , na In-
glaterra da America. Jlas estávamos em Africa.
Voltemos a elia.
É malfadado o homem na Africa pelos estorvos
que contrapõe ao melhoramento e progresso a con-
figuração do terreno e doencia do clima : o bem
que se lhe note sua feição predominante , nem to-
dos os traços são homogéneos na phísiouomia deste
continente: aqui c alli apparecern , do longe cm
longe , os contrastes. Vè-sc o Atlas que topela com
os céus; c as planícies de Çahara que se abatem e
nivelam cora a terra. Ha as |ilanicies do Çahara,
quadro de esterilidade e monotonia; e no meio del-
ias os oasisgraciosos, ilhas de verdura, que sãoou-
tros tantos vallcs regados por sem numero de nas-
c(ntes ou pelas aguas do céu. lia o frio glacial e
neves eternas no cume de algumas montanhas ; e
ha o calor ardente da tórrida nos plainos ccntracs.
Ha nas entranhas da grande Elhiopia o anjo exter-
minador que despede da espada o fot/o mortal das fe-
bres; o ha na paiz montanhoso de.Vquapim o ar be-
néfico c puro de Itália , o no dislricto do Cabo de
liiia-Esperança uma salubridade de clima , como se
não logra maior era nenhum logar do globo. lia a
Abissiuia fértil e a costa de Ajan nua e çafara. Ha
os fuUos , raça progressiva ; povo tolerante de re-
ligião, c modelo na moralidade; indolc doce^ c pa-
(•) ('hauio-lhe or.i conliiieiUe, ora peninsiil.i , porque
lie ambos os moilos a designam os geograiihos.
o PAINORAMA.
291
cifica ; lingtia culta , poclica , eloquente quanto pu-
de imaginar-se. K ha os chiiigallas, lypo de iiiimo-
bilidadc, bárbaros hoje como eram ha dois mil an-
nos ; hal)itand() de verão cm Oorcstas impenetráveis
aos raios do sol, no meio dosrhinoccrontcs, dos bú-
falos, dos javalis, das panlhcras, dos leopardos, c
dos leões , rodeados de sapaes onde moram o cro-
codilo, a serpente, o escorpião; de inverno, quan-
do se alagam as llorestas , procurando guarida nas
cavernas dos rochedos escarpados : de homens len-
do somente o rosto, das feras o vi\er de rapina c
de sangue , das selvas e das montanhas a grosseria
e a rudeza.
Inculta e selvagem em grande parte do interior
SC mostra Africa , c a sua civilisacão, se pôde di-
zer, verdadeiramente demora ás extremidades nor-
te e sul ; assentada sobre a ourella de terra que se
banha no Jleditcrraneo , e cnthronisada nesse pro-
montório que deu fama eterna ao nume portuguez.
O Cítbo de Boa-Espcrança.
I\'áo anhara guando iimajigiira
Se nos mostra no ar , robusta f vúlitla .
De disforme c grandíssima estatura,
O rosto carregado , a barba esquálida :
Os ol/tos encorados , e a postura
ilcdonha e má , c a cor terrena e pallida ,
Cheios de terra , e crespos os eabellos ,
A boca negra, os dentes amarei/os.
Lus. Cant. 5.° Est. .'i9-
J?« sou aquellr occulto , e grande Caho
A quem chamais vós outros Tormentório ;
Que nunca a Ptolomeu, Pomponio, Estrabo,
Plinio , e quantos passaram , fui notório :
Aqui toda a Africana costa acabo
^'esle meu nunca eisto promontório ,
Que para o polo Antárctico se istendc,
A quem vossa ousadia tanto ojfi ude.
D." — í':sT. 50.
o Cabo de 15oa-Esperança pertence ainda boje
aos portuguezes tão indispiitavchncnle como perten-
ce a Newton a thcoria da attracrão , e a do verda-
deiro systema do mundo a Copérnico e a Galileo.
Por conquista e pela roda incessante das revoluções
perdc-se a terra , e , até certo grau , o mar : mas
uma propriedade ha ahi inalienável como os espí-
ritos e immortal como elles, que se não usurpa —
a propriedade da gloria. O Cabo de Boa-Esperanra
c portuguez.
Bem sei cu que em vão se tem procurado para
altestar o nosso dominio esse padrão S.Filippe, que
alli assentou líarthõlomeu Dias, o descobridor: tal-
vez o arrancaram hollandezes, talvez o arrojaram as
torrentes ao fundo do oceano. Mas , graças a Deus,
a memoria das gerações é mais pcrcnne que o bron-
ze, e hoje os títulos e heranças não se escrevem so-
mente cm pergaminhos de pedra.
Postou a natureza este promontório na extrema
da Africa meridional, onde elle esta entre a índia,
a America do sul , e a Australasía , como um mar-
co cortando em duas ametades a estrada que vai
da Europa ao oriente ; estancia de repouso aos na-
vegantes , entreposto das mercadorias dos dois hc-
mispherios, verdadeira chave do oceano indio, ata-
laya dos mares , e ponto capital para o senhorio
dcllcs , que hoje cresce a consideração ainda maior
polo ascendente politico c commcrcial que agora
mesmo acabam de alcançar na China as armas in-
glezas. Alli, ao norte do Cabo, na base scpten-
tríonal de três montanhas , a Mcza , a Cabeça do
Leão, c o Píncaro do Diabo, se edificou uma ci-
dade , capital de uma colónia , extensa do COO
milhas : e sabeis vós como nessa colónia e nessa
cidade tudo demonstra a importância do sitio, e
declara o segredo do futuro que cst.i reservado
;is sociedades? Enlr.ii , c vereis o mundo desenha-
do em pcíjueno mappa. \ éreis as physionomias ,
os costumes , c os trajos de todos os povos , as re-
ligiões de todos os paizcs , as producções vegctacs
de todos os climas , não trazidos alli accidcntal-
menle pelo conimercio; mas indígenas, naturali-
sados , amigos, irmãos, abraçados, confundidos
naquella pátria coramum. O portuguez e o bush-
man , o hollandez c o negro , o inglcz e o caffre ,
o francez e o hottentote lá nascem e vivem. Alli
desabrocha , sem nenhum artificio humano , com o
mesmo viço e bellcza a planta da zona tórrida, c
a das zonas temperadas, e crescem as fructas todas
dos trópicos e da Europa. E presumis que a tanta
variedade de producções possa bastar uma só tem-
peratura? Não — que naquella colónia succcdcm-se
o gelo dos poios, a calma do equador, a primavera
dos climas amenos , e o inverno tempestuoso das
costas marítimas. A terra varia e veste-se de pom-
pas díffcrentes em duas dilTerentes quadras: passa-
das as chuvas do outono csmalta-se de assucenas ,
de lyrios, de amaranlos , c de narcisos ; recende
de aromas ; c encanta os olhos pela magcstade de
umas , pelo mimo de outras , e pelo matiz variado
de tantas flores. Nas outras estações outros grupos
não menos magníficos enchem os campos de formo-
sura c os homens de alegria. E tão fecundo é o
torrão , que dos vinhos o Madeira , o Stein , o Por-
to , o Pontac , e o Constança tão precioso , alli se
criara.
Mas se deixarmos a cidade , e o terreno ao su-
doeste delia , a lavoura e as vinhas , encontraremos
no centro de descampados pedregosos a stapelia ,
o saião , a herva prata , o euforbio , e o aloés ; al-
gumas delias levantando-sc á estatura de arvores,
e casadas amorosameute com os salgueiros e as
acácias, sombreando as margens de ribeiras sem-
pre cristalinas e opulentas. A leste , fronteiros á
cidade , verdejam bosques e llorestas em que se
contam talvez oitenta espécies dificrentes de paus,
alguns delles de bclleza incomparável. Povoa-se o
ar como em toda a colónia de uma infinidade de
aves, ricas muitas delias de harmonia, de cór ,
de plumagem. Amotacilla annuncia o primeiro ago-
niar das plantas; o cantor da primavera o dcsabro-
Ihar das ar\ ores; o ampelo golhelheiro aponta o mez
da congelação ; a emberiza da neve apregoa os ri-
gores do inverno ; a procellaria do Cabo certifica
os navegantes da sua chegada a elle ; e a procella-
ria do pego adverte-os do temporal que se approxi-
ma , indo empoleirar-se na popa e proa dos navios.
A este território , talvez o mais uotavel do mundo
pela abundância c diversidade das pioducções , a
este quadro tão animado e extraordinário pelo pin-
turesco do sitio, pelo solemne das recordações, o
pelo esmero dos homens, quiz a natureza, para que
lhe não faltasse o sublime em nenhum género, se-
mea-lo até no meio do horror. Sobre a montanha,
a que com rasão pozeram nome Píncaro do Diabo,
se formam com auxilio do sudoeste essas lem|iebla-
292
O PANORAMA.
«les Ião temerosas aos habitantes como aos navega-
dores. Quando ellas assomam , a cataihira dos as-
tros infunde espanto e terror : engrandecem as es-
trellas aos olhos do espectador consternado , c aífi-
guram-se andar em contínuas e violenlasoscillações:
a lua parece, convulsa e tremula, querer dcspe-
gar-se da sua orbita : c os planetas tomam uma co-
mo cauda e figura pavorosa similhanle á dos come-
las !
Correi o districlo : onde vos não appareccr a ar-
te no alinhamento das ruas , na symctria dos edifí-
cios , e no primor dos jardins , vos apparccerá a
natureza no esplendor da vegetarão ; onde a ve-
getação se callar , nos ermos e valics estéreis .
vos compensará na magnificência dos quadros. Su-
bi ;is serras alcantis : asscnlai-vos sobre o topo da
montanha da Meza : nm soberbo panorama se des-
pregará diante de vós : a cidade vos parecerá um
xadrez , os navios botes , as ondulações das monta-
nhas o encapellado dos mares. Se sahirdes do distri-
clo , temei alongar-vos muito, que se o fizerdes e
entrardes na Cymbebasia , não haveis de encontrar
alli nenhum conforto humano. Se tiverdes fome não
achareis que comer, nem uma raiz sequer; porque
essa terra amaldiçoada, coberta de collinas d'arèa,
e armada de rochedos, odeia a vegetação. Se ti-
verdes sede , não achareis agua. Se quizerdes fal-
lar , não encontrareis uma lingua ou um vulto de
homem para responder-vos ; porque alli quasi não
ha vesligio de creaturas humanas. Ouvireis, sim,
vozes ; mas essas vozes serão o mugir do búfalo , o
uivar do lobo , e o rugir do leão , quasi os únicos
senhores daquellas plagas desoladas. Para qualquer
lado que lanceis os olhos , vereis a hnmanida<ie e
a vida em anniquiiação , c o próprio mar arrojan-
do sobre a praia despojos da morlc — ossos de tu-
barões, e cadáveres de baleias! Fugi, leitor, fu-
gi e encaminhai-vos depressa para a terra do Na-
lal (::) , onde deixámos os naufragados que alli es-
tão , ha um bom espaço, a esperar |ior nós.
(Coníimta r-se-lia) .
A. d' O. Marreca.
J .
AI.PHABETO lilANVAIi DOS SUHBO-SIVDOS.
Qi;estòes de prioridade d'invenção se tem levanta-
do no mundo litterario a respeito do raetlindo d'cn-
sino dos surdos-raudos , pcrtendendo os francezes a
gloria para os seus |)atricios ; e muita gente ha per-
suadida do que ella cabe aos abbades ou padres
l/lipée e Sicard , aliàs zelosos fautores e aperfei-
çoadores do mcthodo. Por oulra parle os nossos vi-
sinhos peninsulares, «ns a querem dar ao liespanhol
João Paulo BoncI , outros a atlribuem ao P." Pedro
Poncc , benediclino , de quem diz Feijoo que pelos
annos de 1570 a loTS já linha ensinado alguns sur-
do-mudos. — Todavia vchementcs inducções , e de-
cisivos testemunhos niellcm de |)05sc dessa gloria
ao piirlufíiiez Jacob Rodrigues Pereira, que [segun-
<lo um nosso respeitável e mui sabedor lilterato]
sem duviíla foi o primeiro que cm França , em Pa-
(::) Assim clmniaila do dia em (|iin a dcscubriu a ai- ]
niada de Vascu da Oaina , no anuo de 1497. j
ris , exercitou com publica utilidade a arte deste
ensino. Vem a favor de Pereira a aucloridadc de
Andrcs na Ilisloria de Ioda a Uttcratura , c as mais
citadas na erudita nota pelo supra indicado liltera-
to conimunieada ao Museu Portuense [jornal publi-
cado em 1839]; da qual achámos conveniente to-
mar o seguinte extracto. —
« Em uma obra franceza [que temos á vista] im-
pressa em Paris cm 177G, com o titulo u lustitu-
(iim dcs soiirds et muets par la voie des signes mc-
tliodiqxies , era 12°, sem nome de auetor ; mas que
conjecturámos ser do próprio abbado TEpée, a
pag. G se diz : —
«Mr. Enmud , Mr. Pereira porlngue: , e Ma-
vdama de Santa Roza , religiosa da (Iriiz , fo-
nram os primeiros , que no nosso scculo se ap-
«plicaram á inslrucção dos surdo-mudos , sem
o PANORAMA.
2f)3
«lerem concerta Jo enlrc si o plano de suas
«operações ... &c. a
O escriptor francez, mais amigo da sua nação do
que nós , ás vezes , parecemos ser da nossa , põe
em primeiro logar a Mr. EniauU , postoque logo
diz uquc o não conhecera nem a ncnlium dos seus
discijmlos , e que súmcnic suubera de pessoas inslrui-
das , que ellc sadsjazia mui bem o cargo que liavia
tomado. »
ISão é nosso animo tirar a Mr. Ernaud o mere-
cimento da prioridade , se realmente lhe compele.
Somente notaremos aqui [porque nos parece digno
de notar-se] que nem a Academia H. da Scicnc.
de Paris, na sua Historia dos annos de 17i9 a
17ol ; nem os sábios Be Mairan, De llu/Jon, c Fcr-
rcin , que a informaram sobre os progressos de um
íioiv) ahotuin de Pereira ; nem o mesmo I)c Iluffun
na llist. nat. do Homem, dando honrosos testemu-
nhos de approvação e louvor á arte , que Pereira
exercitava desde 17í(í , dissessem uma só [lalavra
acerca de Mr. Ernaud. Ainda mais : que o rei de
França Luiz 15 , depois de ter ouvido , e interro-
gado os diícipulos de Pcreirtt , lionrasse còIc illiís-
tre portugucz em 1731 cora uma pensão de 1^8:000
rs. anuuaes ; que passados quatorze annos, em 17tío,
lhe fizesse a nova graça de. o nomear seu Interpre-
te; e que em todo este tempo não apparecesse .'//-.
Ertiaud a vindicar a sua preferencia , ou ao menos
a sollicitar ;is mesmas approvaçõcs e prémios : e
que só muito depois fosse «premiado, e tratado pe-
la Academia, corno inventor, seguiudo-se daqui
grande emulação entre os dois rivaes» como refe-
re o Sr. ^'iana de Rezende em a nota ao n." 3 do
seu Jornal Mcdico-Chirurgico , que publicou em
1833.
Como quer que seja : no cap. 2 desta mesma obra
se faz menção do Prngramma publicado por Perei-
ra em 1751 , sobre o methodo do seu ensino; e no
cap. 3 se diz que Pereira c os seus discipulos lhe
davam a denominação de Dactylologia.
O escriptor francez emenda o nome, e julga me-
lhor que se diga- Dacttjlolalia ; e em quanto ao me-
thodo [que aliás confessa não lhe ser bem conheci-
do] pretende refuta-lo em toda a obra , mostrando
a cada passo ociíirae que [a nosso parecer] lhe cau-
sava o credito de Pereira , e comludo reconhecen-
do , que entre os discipulos do illustro portuguez
«se achavam alguns em estado de compor obras» e
que «Mr. de Saboureux de Fontenai, surdo-mudo de
nascimento , e um dos alumnos de Pereira , daria
disto completa demonstração , se fizesse imprimir as
suas próprias prodv.cçõcs. » —
Chama-se alphabeto manual uma serie de postu-
ras ou figuras diversas que a mão toma para repre-
sentar uma por uma as Icttras do alphabeto , como
representa a nossa gravura , na qual em a primeira
casa se vè que com os siuco dedos se representam
as vogaes , e em as outras casas estão successiva-
mente designadas as figuras para as consoantes.
Por meio deste singelo methodo . dactylologia ou
linguagem dos dedos , podem significar-se e escre-
ver se não só as palavras e phrases , mas até dis-
cursos ; adquire-se facilmente o uso em poucos
dias. — Nem sempre 6 necessário formar phrases
inteiras , a voz principal basta para fixar a atten-
ção , e um gesto natural completa o pensamento. —
\ão deve confundir-se a dactylologia com a lingua-
gem dos gestos, a mimica, a verdadeira linguagem
dos surdo-mudos : a primeira só é uma espécie de
escrever mo ar que dispensa de recorrer a lápis ou
penna ; esta só (igura as lettras ao passo que a lin-
guagem mímica representa as idéas. Com o gesto
imitámos a forma do corpo, os seus movimentos,
todas as acções ph) sicas , e por melaphora os actos
inlollectuaes e moraes. A nossa phjsionomia refic-
cto aos olhos quanto se passa em o nosso interior;
o gesto, animado com o jogo da physionomia, cons-
titue uma linguagem natural , rica , llcxivcl , enér-
gica , que se presta a lodos os matizes do pensa-
mento : para exprimir as paixões não ha lingua que
possa iguala-la em força e calor.
Os surdo-mudos usam uns para com os outros
quasi exclusivamente da expressão mimica , e só
recorrem ao alphabeto para os nomes próprios c vo-
zes Icchnicas didiccis d'expressar, por um gesto es-
pecial ; para com as outras pessoas valem-se habil-
mente da dactylogia. Por este meio c fácil conver-
sar com qualquer surdo-mudo, com tanto que lhe
figurem as palavras no idioma em que foi instruído.
Nas cidades dos Estados-Unidos americanos é tão
commum o uso deste alphabeto que em qualquer
sociedade o surdo-mudo , sem lançar mão da escri-
pta encontra quem o allenda e entenda, e lhe sai-
ba responder , diminuiiido-se-lhe assim a desconso-
lação resultante do seu estado physico.
Desde fevereiro de 183 í que o benéfico instituto
dos surdo-mudos nesta corte est.í unido aos colle-
gios d'aluranos da Casa Pia , estabelecida no real
mosteiro de Belém-
Considerações sohre o Curso d' Economia Politica do
Sr. Miguel Chcvalier.
XII.
O C0M3IERC1O externo tem causa , /ini , e resultados :
três cousas que cumpre distinguir bem, e definir,
para evitar os erros cm que , pela confusão e ine-
xacta apreciação delias , se tropeça a cada passo.
A causa c o = ííoh oinnis feri omnia tellus ^^nem
todos os climas são para todos os productos, nem
a todos os povos , em circumstancias dadas , é pos-
sível ou convém produzir certos artigos. O fim ó
gozar cada nação dos productos que não tem. Os
resultados são muitos. Obter [o que é um ganho]
baratos e bem obrados alguns objectos que a in-
dustria indígena não poderia produzir senão mui
caros e mal afeiçoados. .\lcançar outros [o que <';
uma vantagem] que ella tinha impossibilidade aii-
soluta de crear. Abrir-se ura novo mercado á pro-
ducção domestica , porque c patente que com os
artigos desta é que se hãode comprar osíiue ocom-
mercio traz de fura. Vem depois , mas secundaria-
mente , os lucros do negociante. Estes se converte-
riam em perda se as exportações, que são os gé-
neros nacionacs que elle transporta para trocar pe-
los estrangeiros , não fossem inferiores cm valor iis
importações que são os géneros estrangeiros que
traz ao reino era commutação ou actual ou futura
dos nacionaes. Seriam nullos , pelo mesmo princi-
pio , se as exportações fossem iguaes ás importa-
ções. E serão tanto maiores quanto mais excede-
rem as importações ás exportações. E eis-aqui por-
que quanto mais as primeiras se a\anlajarem em
valor ás segundas, tanto melhor; que é a mesma
rasão, mui simples, porque convtm ao que Irans-
294
O PANORAaiA.
porta o valor de 10 trazer em troca e relorno dcl-
le o valor de 20.
Consisliiido pois os lucros líquidos do commercio
externo na diflerença entre o preço por que se ven-
dem no estrangeiro os artigos exportados c aquelle
por que se vendem no paiz exportador os artigos
importados, seria para desejar o conhecimento ave-
riguado dessa diflerença por meio da publicação
periódica de uma tabeliã de exportações e impor-
tações, que comprehendesse não só as mercadorias,
mas o numerário , as lettras , os créditos e as pro-
messas de pagamento relativos a este trafico que
lodos ellcs se saldam em ultimo resultado com mer-
cadorias. Esc essa tabeliã contivesse, alem do pre-
ço por que correm ou são vendidos em Portugal os
géneros importados , o preço por que correm ou
são vendidos os exportados — o preço, não em Por-
tugal que esse para pouco presta ; mas nos paizes
para onde \ão expedidos os mesmos géneros — bem
individuada era tudo o mais c bera exacta , seria
uma excellcnte directriz económica , e resolveria
muitas questões commerciacs e muitos problemas
de industria interna, ainda hoje cercados de névoas
pela falta desta luz ; falta que não somos nós os úni-
cos , Iodas as nações a experimentam , porque to-
dos os seus ensaios nesta matéria tem sabido im-
perfeitissimos.
Desta explanação sobre a theoria do commercio
externo quero cu deduzir não só quão differentc ó
a natureza do que fizemos, senhores do Brasil, pa-
ra o que hdjc nos é dado fazer sem aquclla posses-
são ; mas também quacs são as condições únicas
cora que , no estado presente , nosso e do mundo
coramercial, poderemos continuar este nobre e pro-
fícuo oííicio de mercadores.
Anteriormente o nosso negociar era em grande
parte assim. Commutavamos as mercadorias da Ásia,
não portugucza , com as mercadorias de outras na-
ções : commercio de transporte. Commutavamos os
géneros- do Lrasil — que era nosso, mas que dei-
xou de o ser — parte com géneros de Portugal [e
atéqui era commercio de cabotagem] : e na maior
parte com artigos estrangeiros, dos quacs uns eram
para lá transportados licitamente, outros, com mas-
cara e scllo de portuguczcs , ]ior contrabando : e
nessa parte era commercio de circuito.
Era na realidade em grande parte um commer-
cio de transporte, e quanto o era, no que toca ao
Itrasil , tinha mais de externo que de cabotagem.
Perdido o Brasil , desde então esse mesmo que ti-
nha natureza de cabotagem colonial , se transfor-
mou , e por essa circumstancia é que cu tenho de-
nominado externo a todo esse commercio.
Mas a propriedade ou impropriedade do vocábu-
lo pouco importa , quando fica exposto o ponto de
vista em que olhei o objecto : a influencia desse
commercio que fazíamos, sobre a riqueza nacional,
é que releva apreciar.
Aquelle que manejávamos, trocando as merca-
dorias de nações estranhas pelos jirodurtos de ou-
iras nações, claro está que não aproveitava á nossa
industria domestica senão em quanto se fazia em
vasos nacionacs , porque então essa [lorção do capi-
tal destinado ao (ingaiucnto do frete , e conslrucção
diis navios se dislribnia por um certo numero de
trabalhadores produclivos do reino. O contrario se-
ria , SC os vasos não fossem uacionnos ; porque nes-
se caso se repartiria por trabalhadores estrangeiros
o que havia de ser pelos do paiz ; e o capital don-
de subissem esses quiidiões se empregaria cm be-
neficio da industria alheia , subtrahido á nacional
em detrimento da mesma. Os lucros líquidos do
negociante desse trafico também não utilisariam á
nação senão em quanto fossem empregados na sua
agricultura , nas suas fabricas , ou no seu commer-
cio externo directo , entrando nas transacções co-
mo elemento de permutação os productos indíge-
nas.
O commercio que manejávamos, trocando os pro-
ductos do Brasil com os de outras nações , alimen-
tava , mais ou menos , a industria brasileira , e só
podia fomentar a da metrópole , verificadas as cir-
cumstancias e condições que dissemos a favoreciam
sob o commercio meramente de transporte.
E aquelle que fazíamos, trocando os productos
do Brasil pelos da metrópole , animava , ou mais
depressa tendia a animar a industria da metrópole:
mas de feito mui pouco ou nada contribuiu para o
adiantamento das nossas fabricas , segundo mostrou
a experiência. E porque? Porque os nossos fabri-
cantes, por caros e mal obrados que fossem os seus
artigos, certos do consumo exclusivo no Brasil, dor-
miam , como já notei , bybernavam no meio da ac-
tividade e progresso das fabricas europcas. Como
as fabricas a marinha mercante podia também dor-
mir , e ser bem ronceira , porque o monopólio as-
segurava-lhe que não encontraria no oceano, proa
ao Brasil , rival que a incomraodasse ou a compe-
tisse.
Era portanto esse , considerado na sua totalida-
de, um commercio que em parte corria, estranho
inteiramente á producção da metrópole, e aos ar-
tigos da sua industria ; cm parte se não fundava
nem dependia dos progressos dessa producção ou
do aperfeiçoamento dessa industria. Não se basea-
va pois em nenhum estatuto , em nenhum princi-
pio, em nenhum agente económico : fuudava-se nes-
sa prerogaliva proficua a outras nações que a sou-
beram utilisar, fatal a nós que a desaproveitamos,
c convertemos em damno — na prerogaliva do mo-
nopólio.
Eu desci a esta analyse, incorrendo até em re-
petições , jjara concluir que cessando o monopólio
e também as circumstancias excepcionaes era que
então se achava o mundo , o nosso commercio ex-
terno não pôde hoje continuar estacionário como
arte , independente da producção domestica como
agente de trocas, estranho ao aperfeiçoamento des-
sa producção como instrumento de progresso e in-
centivo á divisão do trabalho , alheio ao adianta-
mento da nossa marinha mercante como industria
e vehiculo de productos. Hade ser o inverso, com-
pletamente o inverso do que foi. Hade appoiar-se ,
medir-se , accommodar-se , limitar-se , cstender-se
segundo a capacidade da producção nacional , que
é verdadeiramente o seu leito de Procusto. Have-
mos de jiroduzir muito se quizermos dar-lhe gran-
de margem. Havemos de fabricar e sobretudo agri-
cultar com perfeição e pouca despeza se quizermos
acrescentar-lhe os ganhos. Havemos de nmlliplicar
e baratear os nossos transportes marítimos , se pre-
tendermos que alem de fecundo seja nacional. Com-
munícações fáceis. Machinas muitas. Capitães gi-
rando. Instituições de credito que os multipliquem.
Juros que não sejam enormes. Fabricas bastantes,
líoleações as mais ; e no torrão mais fecundo, me-
lhor. Lespezas juiblicas que não pequem por exces-
sivas ou inúteis. Tributos que não embarguem o
desenvolvimento ás faculdades vilães do paiz. Na-
vios bem construídos , bem manobrados , equipados
o PANORAMA.
29í
cora economia ; é o auxilio que reputo mais ade-
quado ao nosso commercio externo.
SacrKicio de uma industria por outra. Derrota
ao fabricante c victoria ao vinlialoiro. Morle ás ar-
tes da cidade, c vida ás artes do commercio. (luer-
ra ao creador das laãs, e paz ao produclor da uva.
Favor aos artigos de fabrico alheio , e ódio ás ma-
térias primas de casa e de fora. Comi)inações fun-
dadas sol)rc o conHicto perpetuo das classes indus-
triosas umas com as outras, da terra com as nia-
chinas, dos produclos de um terreno com os de
nutro , das licbidas espirituosas cora o pão do ope-
rário c do artista — por muito que se pai lêem com
apparencias plausíveis não podem redundar senão
cm mina geral da nação, e proveito — mas provei-
la temporário — do estrangeiro. A constituição de-
feituosa da sociedade assaz discordou já os interes-
ses de seus membros , sem ser necessário que novo
fermento veníia irritar esta hostilidade radical. A
habilidade politica c a económica cifra-sc hoje no
mitigar , o que se possa , a fricção desses iutcres-
ses.
Passo ás linhas de communicação raaritima.
Pódc um individuo sem inconveniente ecom pro-
veito até em vez de construir fretar embarcação pa-
ra a si se transportar e aos seus géneros. Lm paiz
não pôde sem perda de interesses , e sem damnos
de oulra ordem que não ó minha intencãa invosti-
i'ar , fazer em vasos alheios todo ou a maior parte
lo seu tráfico externo. O fabricante que em logar
«le as ter próprias, toma machinas de aluguel, e o
povo que freta era vez de armar á sua custa ma-
■ binas de locomoção raaritima , desherdam-se am-
' s — um de parte do beneficio das invenções me-
rhanicas, o outro d'uma boa parte d'aquelle logra-
doiro universal c estrada incomparável que a mu-
nificência divina legou ás nações — o mar ! O
c immercio nacional que se transporta em navios
estranhos priva-se da potencia do vapor , do movi-
nienlo das ondas, e do impulso dos ventos, e re-
nunciando aos dons gratuitos do céu e d.l terra ,
vi-se andar como caplivo por aquelle mesmo ocea-
no , ultimo refugio da liberdade opprimida. Avil-
la-se á face da humanidade e da civilisação o povo
que esquecido das tradições da sua gloria niariti-
raa cursa a vastidão das aguas — como um fardo
de fazenda e um cadáver sem movimento — por in-
dustria e esforço alheio.
Se o império do oceano nos fugiu para nunca
mais voltar, ao menos não seja tanta a degradação
nos que descendem dos navegadores illuslres do sé-
culo lo c 1(> que outros raareem c mercadejem por
clles. Precisámos de promover a nossa marinha mer-
cante. O plano mais efllcaz a consegui-lo sou cu in-
competente para o apontar: mas julgo que posto a
despojássemos do favor dos dilTerenciaes, ainda nos
restam outros meios de aviventa-la , e entre elles a
protecção á Companhia das pescarias , por um la-
do ; e por outro a frequência nas carreiras lon-
gínquas. Em geral pôde dizer-se que os melhora-
mentos mais capitães de que cila carece , se hão-
dc introduzir na arle do coustructor nacional e no
regimento e economia da navegação , donde re-
sultem barateza e rapidez de transporte, dimi-
nuição do risco do navio e da carga. AqucUes mes-
mos que parecem insignificantes são de grande
monta e iniluencia no commercio. É notório que a
ligeireza e melhor qualidade dos cabos permittiam
aos hollandczes manobrar os seus navios com me-
nos custo que os outros povos, eque desta circums-
tancia, á primeira vista pouco altcndivel, procedeu
a sua preponderância maritinia por espaço de dois
séculos. Aos cabos de linho que seguravam as an-
coras succederam as cadeias de ferro , que são ho-
je muito usadas, eque, sobre outras vantagens ,
portam com maior facilidade. Outros melhoramen-
tos haverá que quadrem á nossa marinha mercante,
e julgo que para se formar juizo seguro dos mais
idóneos, e ao mesmo tempo da inferioridade em que
vamos neste ramo tão <lilticil , o melhor guia seria
um inquérito geral sobre clle.
Outra falta , assaz grave , c uma das mais cra-
pecivcis ás nossas exportações, c a falsificação de
alguns géneros que exportámos. Por milagre seu
multiplicam-se as pipas de vinho do Porto, de pri-
meira qualidade ; mas na mesma proporção desce
o preço e o credito deste primoroso liquido. A adul-
teração pratica-se no reino , e fora dclle , nos pró-
prios armazéns de Inglaterra. Esta fraude que co-
meça castigando severamente aos que a não comcl-
tcra , acaba por ser nociva aos próprios delinquen-
tes, o o resultado da culpa de alguns vera a abran-
ger a todos os prodiictores c negociantes do mais
valioso artigo que levámos aos mercados estrangei-
ros. Como a contrafacção avilta o género c o seu
valor , os que o conservam genuiuo vèem-se , em
muitos casos , obrigados a falsifica-lo para ganhar
na quantidade aquillo mesmo que perdera na qua-
lidade , e de desvio em desvio , recrescendo a oc-
casiãn por uma quebra de fé mercantil succede vir
a arruinar-se o mais rico monopólio que possuc es-
te paiz : por criminoso abuso do homem acontece
assim que venham a ser estéreis os raios solares
com que a natureza opulenlou o torrão do Douro.
Não é, como outras, esta burla commcrcial da na-
tureza daquellas , que prejudicam a poucos , c se
corrigem, no mercado nacional, desafreguezando
um vendedor fraudulento , e frequentando mais ,
com lucro delles. os que o não são : aqui o vende-
dor é a nação , não um individuo; o descrédito aí-
fecta o género , não é só aos particulares que o
adulteram ; padece o paiz exportador todo elle. E
como a liberdade não tem em si providencias con-
tra esle mal , é forçoso que o nação que o soffre as
vá buscar a oulra origem , e procure um meio que
não dê de rosto o fira de encontro ao p.in ; ao fim
que é a prosperidade , a qual nestas ciscumstancias
se não pôde conseguir por meio da liberdade.
Para prover a este grave damno não nos resla
senão recorrer a leis que o acautelem no reino , e
a regulamentos consulares ou intcrnacionaes que o
previnam e emendem fora dellc ; executar os vigen-
tes; e promulgar os que faliam. Como no vinho, d
sentiríamos já no trigo , se do ullimo fizéssemos
exportações consideráveis ; porque já ha exemplo
de termos illudido a confiança do comprador es-
trangeiro , e nas remessas faltado dolosamente ás
amostras, e á nossa palavra , com injuria que o é
da honra , e o pôde ser do iuteresse nacional.
fCniichiir-se-haJ.
Â. d' O. Marreca,
Curso de Direito Natural Sfc. por V. Ferrer Kclr,
Paiva. — Coimbra 1843 — l vol. S.°
Centbo e instituição principal do ensino superior no
296
O PANORAMA.
nosso pair, a universidade de Coimbra offerece nas
phascs da sua esisteucia um dos meios mais segu-
ros para podermos avaliar os progressos ou deca-
dência das sciencias e das lettras em Portugal. Em
todos os tempos , desde a sua fundação até hoje , c
])or cila que a historia se tem regulado para ava-
liar o estado da iutellectualidade nacional. E , de
feito , c daquelle 1'uco de luz que por cinco séculos
se tem derramado a illustração para todos os angu-
les de Portugal , illustração boa e verdadeira por-
que cm harmonia sempre com o estado c precisões
da nossa sociedade.
Sejam quacs forem as mudanças que a nova or-
ganisação politica do paiz, as suas novas necessi-
dades , c as doutrinas mais esclarecidas do século
actual nos obriguem a fazer no systcraa do ensino
publico, é minha convicção profunda que a univer-
sidade , longe de se dever guerrear com o intuito
de a anniquilar ou pelo menos de lhe diminuir a
importância , se hade nugmcntar c completar , con-
vcrtcudo-se em verdadeiro santuário da scicncia no
mais alto e puro sentido destas palavras. Quanto
lual ella pôde produzir — c ó incontestável que no
estado actual tia instrucção publica aqiiella acade-
mia pôde gerar , e talvez gera já , graves damnos
sociaes — tudo isso nasce não da essência do insti-
tuto , mas da falta de philosophia politica que tem
presidido a todas as reformas até agora feitas no
ensino publico. Quando a uuiversidade representar
tanto em extensão, como em intensidade, o máximo
grau de progresso scicntifico ; quando as condições
lilterarias exigidas para ser inscripto no livro dos
alumuos forem taes que só capacidades eminentes
possam arrostar com as dilliculdades postas á fre-
quência das faculdades, e ainda depois disso á ac-
quisieão dos graus ; então o influxo daqut-llc insti-
tuto será de muitos modos benéfico , e as únicas
accusações attendiveis e sérias que se fazem contra
elle cahirão completamente por terra.
1'osto pertença áquellcs a quem incumbe organi-
sar a instrucção publica , estabelecer por via da
lei esta ordem de cousas de um modo fixo e posi-
tivo ; todavia ao alcance dos professores está o ir
aplanando o caminho para essa gravíssima reforma.
São elles , que podem trazer pela pratica a doutri-
na ; pelo facto o preceito. Posta realmente a scien-
cia na universidade a par dos conhecimentos no
resto da Europa, o mais é comparativamente fácil,
logo que haja um governo que entenda o verdadei-
ro syslenia d'cnsino nacional , em relação aos inte-
resses nioraes e niateriacs da nação.
Muitos dos novos professores da universidade tem
concebido claramente estas doutrinas e avaliado <i
sua importância. Os compêndios sobre diversas ma-
térias que se tem publicado em Coimbra nestes úl-
timos annos são disso prova cabal. Elles destroem
os preconceitos arreigados cm muitos espíritos con-
tra a universidade.
Estes preconceitos são de dois géneros, ambos ri-
dículos, tacanhos, c indignos de entendimentos al-
lumiados. Segundo uns, com as cabellcíras do mar-
qucz de Pombal , com as abbatinas , e com certos
ademanes de uma gravidade estudada c de lingua-
gem oracular , a scicncia dcsappareceu. Professo-
res mancebos , cheios de energia , de vida íntelle-
clual , de amor da gloria , c \endo diante de si a
imprensa, que hoje tem o direito de os julgar ,
são incapazes de conservar c augmentar o esplen-
dor das lettras , porque faliam como os outros ho-
mens c com cllcs , porque trajam c vivera como
toda a gente. Esta c a prcoccupação dos filhos do
século passado, prcoccupação innocentc, que a mor-
te vai diariamente desfazendo até a anniquilar de
todo. Segundo outros a universidade é iclUa por-
que é anti(ja, e por isso incapaz de progresso; ló-
gica de peralvilhos, lógica bruta que em vez de
melhorar o que é susceptível de ser melhorado, o
destroe , sem examinar se ahi havia alguma cousa
utíl e respeitável que aliás se não pódc supprir ;
como se a nação não fosse ainda mais antiga que a
universidade , e se para a elevar á grandeza e ci-
vilisação do século fosse preciso anuiquila-la e su-
bstitui-la por outra nação amassada de novo barro.
Estes taes suppõem estabelecido na ponte do Mon-
dego um embargo perpetuo para os livros , para os
instrumentos scicntificos , para as idéas , para tudo
o que representa actualidade e progresso , porque
fora de Lisboa não suppõe possível salvação lilte-
raría , e as barreiras da capital são os limites do
seu orbe cathedratico. Simílhante erença, não é ínno-
cente como a dos velhos , é absurda , mas perigo-
sa. É delia que nasce em boa parte a guerra len-
ta , mas tenaz que se vai alcvanlando , não contra
o que a universidade tem de mau , que essa é jus-
ta e legitima , porem contra a sua existência , o
que é altamente insensato.
A grande resposta que a universidade tem dado,
e me parece hade continuar a dar, são as prelec-
ções dos seus professores, os seus compêndios e li-
vros. Não creio cegar-me pela amisade se asseverar
que nesta lucta grande e nobre um dos campeões
mais distínctos é o Sr. Vicente Fcrrer, auctor dos
Elementos de Direito das Gentes , e que este anno
acaba de publicar o seu Curso de Direito I\'atural
segundo o estudo aelual da seicncia. Encarregado
do ensino daquelles diíTicultosos ramos da scicncia
que tocam por um lado na critica da rasão pratica
ou philosophia moral , e por outro na jurisprudên-
cia positivn , o Sr. Ferrer vencendo os embaraços
que lhe offcrecia a gravidade da matéria, e ao
mesmo tempo as distracções a que o tem constran-
gido a carreira politica em que por vezes o lançou
já o voto dos seus concidadãos, elaborou e redigiu
no meio desses embaraços e agitações dois compên-
dios importantíssimos, que não só faliam pela uni-
versidade , mas honram o paiz , que pôde gabar-se
de possuir professores dignos do século cm que vi-
vem , e da grave missão do magistério, que lhes
foi confiada.
Constrangido a seguir nas suas prelecções o com-
pendio de Martiui — Positiones de Leyc Naturali —
adoptado pelo Conselho da Faculdade de Direito,
o Sr. Fcrrer applicou-sc principalmente a dois fins:
a illustrar as obscuridades frequentes naquclle ce-
lebre escriptor , e a modificar as suas doutrinas
pelas dos mais affamados auctores modernos e pe-
los próprios estudos e cogitações. Assim o Curso
do Sr. Ferrer é uma espécie de commentario per-
petuo a Marlini e ao mesmo tempo o resumo subs-
tancial das opiniões dominantes, principalmente na
Alemanha , paiz que por via de regra é o foco de
toda a sincera c verdadeira scicncia. ]V'uma cpo-
cha cm que a liberdade chama todos os cidadãos
a avaliarem os próprios direitos e deveres; o Ijvro
do Sr. Fcrrer não é uma obra puramente universi-
tária. As obrigações , c os direitos políticos c civis
la vão assentar na jurisprudência natural. Importa
conhecer esta para conhecer até onde se estendem
tanto umas como outros.
(A, Herculano.)
91
o PANORAJIA.
297
BUSTO J>E CANOVA.
A BREVE noticia do celebre Canova , estampada a
pag 3o4 do Tol. S.° que publicámos em 1S41, ad-
diccionaremos agora mais algumas particularidades.
— Vimos como se desenvolveu precoce o engenho
de tão eximio artista ; accrescentaremos que na ida-
de de vinte e dois annos era já conhecido como au-
ctor das estatuas de Orpheu e Euridice : o grupo
de ícaro e Dédalo rendeu-lhe logo uma pensão pe-
cuniária estipulada pelo senado veneziano. Esme-
rou-se nos seus trabalhos , para obstar a corrupção
áo gosto artístico, diligenciando reunir o estudo da
natureza á ideal bellcza dos antigos, o que mostrou
sobejamente no Theseu cavalijando no Minotauro rein-
cido. Da apparição dessa obra data a sua fama eu-
ropea.
Tendo em 1798 sabido da pátria , agitada pelas
guerras e revoluções , com o intento de viajar pela
Alemanha ; quando voltou a Roma , nomeou-o ins-
pector geral da academia de bellas-artes o pontifice
reinante Pio 7.°, dando-Ihe ao mesmo tempo o grau
de cavallciro romano, e fazendo-lhe a singular hon-
ra de lhe por ao peito as insígnias desta condecora-
ção. Em 1802 S. Santidade facultou-lhe a permis-
são de passar a França , onde o primeiro cônsul ,
Buonapartc, o chamava; e na capital. Paris, foi li-
songciramente acolhido, e o Instituto recebeu-o em
o numero dos sócios: tomando o encargo de fazer
um busto colossal de Napoleão , não foi tão felix
Setembro 23—1843.
nesta como nas obras precedentes, todavia não dei-
xou de obter a fita da legião d'bonra.
Outra viagem fez Canova á França , mas em mui
diíferentes circumstancias, e quando o museu fran-
cez , enriquecido com as espoliações coramcttidas
em quasi toda a Europa , fui por via de restituição
despojado da maior parle das preciosidades que as
armas Iriumphantes de Napoleão lhe tinham consi-
gnado. O papa dera commissão a Canova de recon-
duzir a Roma quantos objectos artísticos haviam por
esse tempo sido tomados áquella capital do orbe
christão. Desta vez partiu com o titulo c caracter
de embaixador do pontifice , o que deu motivo a
que os francezes , por sua natural propensão mole-
jadora , lhe chamassem emballeur , empacotador ,
em logar de ambassadeur , embaixador ; porque na
realidade ellc foi entrouxar e buscar o que tinha
sido roupa de francezes.
Dahi a pouco tempo dirigiu-se a Londres , onde
Jorge 4.°, então príncipe regente , o brindou com
uma soberba caixa de tabaco guarnecida de brilhan-
tes ; desgostoso porem do clima voltou em breve
para a Itália , e o papa lhe deu a incumbência de
fazer assentar nos respectivos logares as obras pri-
mas que acabavam de chegar de Paris. Por esta
occasião prestaram-lhe as maiores honras ; a aca-
demia de S. Lucas sabiu a recebè-lo ; e o summo
poutiúce, em demonstração do quanto estava con-
2> Sewe. — VoL. 11.
298
O PANORAMA.
lente delle, na solemne audiência que lhe concedeu
era 5 de fevereiro de 1816 , teve a complacência
de lhe entregar por sua própria mão o diploma que
attestava ficar-lhe inscriplo c iicme em u livro áu-
reo do capitólio. A final foi creado jnarquez d'is-
chia, com a renda de 3:00G escudos romanos, que
despendeu toda em favorecer e aninjar os alumnos
das artes , a beneficio das quaes praticou outros
muitos actos de liberalidade, como dissemos no ar-
tigo , que no começo deste deixátios citado.
Manuel de Solsa dí; S.:pí,lveda.
VI.
O Calastrophc.
Destrcidv cora o destroço completo do galeão a pos-
sibilidade de armar embarcarão dos seus fragmen-
tos, convieram ir caminho do rio de Lourenço Mar-
ques , onde esperavam encontrar navio dos que to-
dos os annos alli costumavam vir de Moçambique
ao resgate do marfim. Mas como havia muitos fe-
ridos e doentes , e alli tinham agua e mantimentos
que salvaram do naufrágio, pareceu a Manuel de
Sousa demorar-se n'aquelle sitio até que todos sa-
rassem , e no cmlanto fortificar-se , como fez , por
cautella com tranqueira de arcas e pipas. No esta-
do em qne todos se achavam era elle o qne mais
soffria : sofiVia os cuidados e amarguras de chefe ;
as alUicções de pai e esposo, e esposo de tal mu-
lher como D. Leonor ; as magoas do porluguez ; as
jienas intimas de liumcm. Opprimido da gravidade
das circuraslancias , do extraordinário da situação,
e da incerteza do futuro não tinha um momento de
descanso; provendo a tudo, pensando em tudo, tra-
balhando com o corpo e ainda mais com o espirito,
Tigiando de dia, e levantando-sc de noite Ires, qua-
tro vezes a rondar o quarto.
Í7i)!a inlcrrvpção.
Os viiilios odorifiros.
Crispas isciimas rriiuim , í/iíc no interno
Coração morem suhila ah-iiria-
Lis. Ca.\t. X Est. 4."-
N'uma d'cssas noites, estando o piloto e o mes-
tre na sua l)arraca que tinham ordenado de uma vê-
la Tcliia, e uns paus, houve entro os dois um dia-
logo pouro mais ou menos nos termos seguintes.
— Grande peccado, irmão André Vaz [André A"az
era o piloto] nos mclteu nesta desgraça cm que nos
Tcmos : e o peior é que o paguem os justos c os
peccadores. Deus me perdoe c me livre de formar
juizos temerários ; mas receio que aquella morte. . .
Infeliz ! Ku ouvi com estes ouvidos , c só de pensa-
lo ainda estremeço, cn ouvi nas mais tardias e só-
siuhas horas de algumas noites das qne passámos
em tormenta , uns lamentos que não eram de pes-
soa viva , mas de alma de finado , e a voz , de que
bem me recordo, era a íua — a sua o não podia
ser outra.
— IlUisão, mestre! Eram pios de algum maça-
rico.
— l'cior cessa 1 Obrigais-me cntãQ a rcTelar-ros o
que não queria. Vi com estes olhos , ■^i o espectro
ensanguentado ! . . .
— Historia ! Vistes .... O que vós vistes foram
os phantasmas da vossa imaginação aterrada com o
perigo da tempestade.
— Tcnho-me achado em muitas, sem mudar de
còr ; mas em nenhuma em que houvesse as appari-
ções funestas que presenciei nesta. Sois incrédulo!
— Incrédulo! Ora essa I Esíaes zomljando. Acre-
dito firmemente que esta costa em que naufragámos
é desastrada , cheia de correntes encontradas e de
parceis ; e sobretudo que se não tivéssemos trazido
uma vela rota e velha que nos fez perder bons lan-
ços de vento em quanto nos occupavamos a cosê-la
e remenda-la , e se a embarcação não viesse tão
atravancada gemendo com a carga que era muita ,
Icriamos salvado o Cabo com tempo bonança , e a
esta hora estaríamos descansados em Portugal. Mas
ao que dizeis não posso dar credito.
— Acrcditai-o ou não , digo-vos, piloto, que o
galeão estava excommungado. Nunca me lembra
de encontrar ventos tão ponteiros , nem mares tão
anaçados do temporal como aquelles estavam : eram
fúrias e diabos do inferno; não eram ventos nem
mares. As lanças de fogo que atravessavam o céu
eram uma cousa medonha como cu nunca vi. O es-
talar dos trovões não ha memoria de outro tão con-
tinuado e pavoroso nestas paragens. As enxárcias
assobiavam de um modo estranho e singular. E o
leme . o miserável leme andava com elle bruxaria
— bruxaria , não pôde deixar de ser — c tantas vol-
tas lhe deram que a final perdeu de todo o gover-
no. Assim havia de ser para nossa desgraça , por-
que navio sem leme é o mesmo que casa sem do-
no , e cabeça sem miolos. . . . [Neste ponto o piloto
não ])<jile suster um sorriso que bem claro queria dizer
— jue a cabeça do mestre era uma daqurtlas cabe-
ças, que elle sem dar por tal estava descrevendo com
deliciosa ingenuidade]. E depois os mezes que an-
dámos e desandámos escorrendo a costa , sem ha-
ver vè-la nem menos toma-la . . . só por arte diabó-
lica, ou por castigo de Deus — qne os nossos pcc-
cados são grandes I . . . Foi mofina nossa não haver
ninguém que se lembrasse de absolver ou esconju-
rar o galeão , que se o fizessem não nos veríamos
agora mettidos nestes trabalhos. Bem fresco tenho
ainda na idéa o caso que aconteceu na armada de
AtTonso d' Alhoqucrquc , estando a hinvornar, na
illia Gamaram, em 1513 (•) , se bem me recordo.
Escutai, piloto, que é um caso verdadeiro, e ainda
estão vivos muitos chrislãos quem'o contaram, tes-
temunhas delle. E foi que sendo tão grande a fome
que os nossos padeceram na ilha que não escapou
cousa viva de gado, camellos, e asnos que se não co-
messe, té de um palmar, que AlTonso d'Alboquer-
que quiz guardar para fazer fortaleza , não ficou
raiz. De maneira que assi deste mantimento como
de uma sorte de peixe a modo de cações , ostras ,
contidas, c caranguejos mais azues e verdes que
da cor que ha naquellas partes , se causou cm to-
da a frota um género de enfermidade , que estan-
do ura homem rindo c jogando as cartas ou enxa-
drez , cabia para a outra |)arte morto , com grande
espanto e terror de todos por ser morte súbita. Suc-
ccdeu fallecer desta morte um homem d 'armas que
lançaram ao mar, sepultura dos que nelle morrem.
E estando de noite os que vigiavam seus quartos
cm vigia de uma nau, ouviram grandes pancadas
llarrus. Decail. !í
^uo da Impreusa Regia.
F. 8.» pag. 290 e 291 — ^Ecli-
o PANORAMA.
299
nclla , e parecendo-lhe que fundeava em alguma
caberá de areia , acudiram por fora com um balei
Ter o logar onde sentiram as pancadas , e acharam
o defuncto pegado com as mãos na quilha junto do
leme. Tiraram-no dalli, e entcrraram-no era terra;
mas ao dia seguinte foi achado em cima da cova.
Acudiu a este myslerio o P.' Fr. Francisco , pre-
gador, e julgando estar o morto em alguma ex-
communlião , o absolveu. Absolvição foi ella que
tornado a enterrar , ficou para sempre.
— Aconsclho-\os . mestre, que não sejais tão
promplo em engulir cações e outros acepipes , so-
bretudo se forem da ilha Camarão, como o sois em
engulir patranhas, como essa que acabais de me
contar : que se engulirdes os primeiros ficareis mor-
to c bem morto , e protesto-vos que vos não boli-
reis mais do sitio onde vos lançarem , como di-
reis se boliu esse defuncto que se agarrou á quilha
de nraa n;iu ; porque haveis de saber que os ara-
mes que pozeram em movimento ao tal finado, não
foram, nem mais nem menos, do que maranhas de
alguém que ideava pretexto para se sahir daquolla
ilha infernal.
— Blasphcmais , piloto!
— Não lenho estômago que accommode animale-
jos taes como esses que me quereis empurrar.
— Nesse caso obrigais-me a fallar sem rodeios.
Seria patranha a morte de Luiz Falcão, e o casa-
mento que se seguiu a esse desastre ? . . .
— Silencio e prudência, mestre, que esta bar-
raca tem ouvidos. . . Silencio e prudência e sobre-
tudo mais caridade com o próximo, que o espirito
maligno, que dizeis divisastes nos ventos e nas en-
xárcias , vejo cu agora , e bem claramente , que se
TOS \eio aninhar na lingua I
— Eu digo o que dizia e pensava o povo de Goa
e de Ioda a índia.
— Os conceitos do povo, mestre, são inconstan-
tes como os ventos, e variáveis como as correntes
desta costa. . . .
A esta altura tinha chegado o dialogo , cm que
os dois contendores ficaram por algum tempo si-
lenciosos , medindo-se um a outro, e como refa-
zendu-se para continuar a lucta ; lucla de que to-
davia escusam os nossos leitores de esperar conse-
quências mais serias, porque toda a artilheria que
se jogava de parte a parte não passava de palavras.
O mestre Christovão Fernandes , apesar da idade e
de ter suflVivelmente abalroados a meia dúzia de
dentes, que lhe tinham escapado ao naufrágio de
todos os outros , em despedindo a lingua parecia
fura de duvida ter resolvido o problema do moto
contínuo. O piloto , que estava na força da vida ,
e que conservava completa a batteria mandibular ,
não era tão palrador : mas a sua pólvora era mais
fina. Entre os dois não havia similhança senão em
pertencerem ambos á mesma espécie dos bipedes.
Ao mestre faltava-lhe já o aço que é uma falta mui
sensível ; em quanto o piloto , soldado sem segun-
do , militava com igual reputação nas bandeiras
de Neptuno e Vénus. Não era ahi qualquer pe-
dante : e dclle é que podia dizer-se : laurcafus ir.
utrojue jure. Koa alma no mais, incapaz de fazer
■nal a uma mosca , pontual , generoso , amigo dos
seus amigos; mas era endireitando o olho a uma
coifa , ninguém se lhe atravessasse na estrada, que
o tal piloto fazia um homem em talhadas como se
fosse um melão. Por isso é que elle achava certo
chiste áquillo mesmo que o bom velho Christovão
Fernandes tanto reprovava : e para apanhar uma
garça do lote daquella que apanhou o seu capi-
tão , Manuel de Sousa de Sepúlveda , daria não só
um tiro, mas uma dúzia de tiros, e não só mataria
um homem , mas um cento delles, se fosse preciso,
sem o mais pequeno escrúpulo. De resto, André
Vás não sabia se as suspeitas do mestre naquelle
ponto escabroso eram bem fundadas : mas appro-
vando o delicto , a que ellas se releriam , de lodo
o seu coração , a sua natural prudência , regulada
pelo adagio «nem zumbando, nem de veras, enm leu
amo jogues as peras» cmbridava-lhe a lingua sobre
quanto podia ser oíTensivo aos seus superiores. Ti-
nha feito baslantcs viagens, e nessas viagens toma-
do talvez algumas tinturas de lutheranismo. Não
era que tivesse duvidas sobre o dogma , porque
André Vaz entrava de melhor mente por uma per-
na de presunto ou um quarto de carneiro do que
por qualquer ponto ou calhamaço de theologia. O
seu lutheranismo era de outra estofa. O homem não
acreditava em bruxas , nem em feitiços , nem em
belecos , nem em espíritos que vem , nem em es-
píritos que voltam. Da santa inquisição fugia co-
mo se pôde fugir de cobra de cascavel, e aos mui-
to reverendos inquisidores tinha o asco que se cos-
tuma ter aos animacs peçonhentos, ás víboras e aos
lacraus. De mothaphisicas não entendia. O admirá-
vel bom sizo de que era dotado ia direito ao âma-
go das questões praticas que a rotação da sua »ida
appresentava á sua intelligencia liara rcsohe-las
— como abala do caçador dextro vai direita á peça
de veação em que põe a mira. Emfim o [liloto An-
dré Vaz era taful de repica ponto , e pôde dizer-
se que naquelles tempos era um homem do pro-
gresso.
Não assim o mestre Christovão Fernandes. Não
havia beata velha cuja credulidade tonta podes-
se correr parelhas com a sua. A lingua tinha to-
luvel em demasia , c muito pouco avisada. Os
brios de marinheiro c de soldado íam-lhe fugindo
rapidamente com os annos , e tinham soffrido uma
quebra lastimosa com o perigo de que havia pouco
se salvara. Para cumulo de desgraça o soberano
elixir com que os reparava das brechas amiudadas,
que a idade e o susto dos temporaes lhe faziam ,
perdeu-se-lhe no naufrágio. Dos dois seus melhores
e mais íntimos amigos resla\a-lbe um, que era o
seu rosário , e faltava-lhe outro que era o seu can-
girão ; e com esta falta os restos desbaratados do
seu antigo valor estavam quasi a exhalar o derra-
deiro suspiro.
O piloto que era compassivo e que bem conhe-
cia donde nasciam os apuros do velho , e o modo
infallivel de afinar aquella viola destemperada, de-
pois de alguns minutos de silencio em que os dei-
xámos a ambos , foi-se a um canto da barraca , e
tirando uma borracha — por uma transição hábil ,
que esqueceu á perspicácia do próprio Quintiliano —
passou a offerece-la ao desconsolado mestre por es-
tas palavras: «Mestre, eu que conheço uma das
vossas mais particulares devoções , quero esta noi-
te proporcionar-vos meio de satisfaze-la. » — O
mestre arrebatado da eloquência destas palavras ,
temendo transtornar com as suas este bcllo movi-
mento, pòz logo a borracha á boca : e o vinho pre-
cipitou-se naquellas cavernas com a impetuosidade
de um rio desembocando na sua foz.
Estava , neste momento , verdadeiramente subli-
me o nosso mestre : os olhos envidraçados erguidos
ao céu ; as mãos sobre a borracha ; a direita , co-
mo que desconfiada de que fosse pouco efficaz a lei
300
O PANORAMA.
da gravidade , ajudando por meio d'amorosas com-
pressões a queda do liquido; o pescoro estendido
como um ganso ; e os gorgomilos ora contrahindo-
se , ora dilatando-se. E o piloto coiiteniplavn , ad-
mirado , ao seu companheiro lodo absorto naquel-
les cálculos de longitude. Mas esperou , esperou
tanto tempo que elle acabasse de tirar-lhe a prova,
que cançado já de esperar, o temendo que a incó-
gnita daquella trabalhosa equação não viesse a ap-
pareccr senão no fundo da sua borracha, sem mais
ceremonia deitou mão a cila , interrompendo o si-
lencio , que dura\a havia minutos, por estas pala-
Tras :
— «Arreai, mestre, arrcai-me a escola a essa
embarcação , que com a brisa desfeita cm que is
^■ejo-vos geito de dar com ella em seeco. A modo
que vos sentia vontade de seguir a vasante a esse
esteiro. Que é isso ! Vós quereis encontrar váo na
minha vasilha , como o exercito do Senhor Deus o
encontrou no rio Jordão ! » O mestre , perturbado
no seu c.\tase , vollou-se cheio de ira [mas ainda
lambendo os beiços] contra o piloto , dizendo :
— Callai , judeu e infiel tornadiço , que, pela
gorja o juro, se estivéssemos em terra de Góa o
1'.' mestre, Diogo de Borba, vos havia de emendar
essa impiedade na santa inquisição.
— Christão velho sou [tornou-lhe o piloto] , mer-
cê de Deus ; mas á fé que banho tão luxurioso co-
mo este ainda o não tomaram as vossas goelas.
— Excellente pinga ! [Esta exclamação era signal
de que o vinho, afugentando a ira repentina do mes-
tre , começa\a a desatrophiar-lhe os humores, e a
fazer o seu cíTcito costumado].
Acrimeza do semblante ía-lhe espairecendo n'um
sorriso. A C(5r da purpura começava a assomar-lhe
nas faces. Os olhos serai-aberlos mostravam aquel-
la bemaventurada intercadencia , verdadeiro elysio
da beberronia. Passou uma sombra, e esta sombra,
que era real, não a viu já mestre André Fernandes,
que as via imaginarias quando estava em seu juizo,
que era talvez quando tinha menos. A sombra era
Manuel de Sonsa que andava rondando, e que ap-
proximando-se á barraca, disse para dentro: «fria
noite , camaradas. »
— Como gelo, capitão [respondeu o piloto], não
está noite para beber agua.
— É assim, piloto. Que falta nos fazem aquellas
boas vasilhas que se nos foram com o naufrágio.
— L'ma alentada borracha trazia eu [tornou-lhe
o piloto], capaz de dar vida a um defunclo , que
a estas horas estará vasada no buxo de algum tu-
barão. [Nisto o capitão foi continuando a sua ron-
da , e o tubarão , que era o mestre , resonava já a
bom resonar]. (Concluir-sc-ha).
. A. d' O. Marreca.
A TOiiliJu DA BIAi-RZCaTA.
OoANDO na Castclla o poder soberano , débil e va-
cillante, a grão custo se mantinha contra maquina-
ções c enredos sediciosos de ricus-homens, que não
SC pejavam de guerrear o raonarcha , ao passo que
laceravam o reino por suas [>arcialidades , conver-
tendo-o impunenicnle cm tbealro de sanguenta de-
vastação, claro está que não podiam ser respeita-
dos os bens e vidas daqucllcs a quem manifestavam
desagrado ou inimizade. Não poucos exemplos las-
timosos desta desordem e desenfreamenlo a historia
ofTerece ; e se a auctoridade regia não tinha vigor
para fazer-se forte contra a ousadia arrogante dos
seidiorcs , muito menos podia vingar injurias feitas
a vassallos mais fracos , aos qnaes não ficava arbi-
trio para se defenderem da maldade e injustiça. Se
pur acaso nesses tempos calamitosos chegavam a ser
castigados alguns delictos e desaforos da nobreza
orgulhosa, tão leves eram as pcnnas impostas que
o PANORAaiA.
301
mais serviam de estimulo para coractterem novos
crimes , do que de salular escarmento á perversi-
dade. Raras, e por isso mui celebradas eram as re-
parações estrondosas , devidas á innoccucia.
Nos princípios do século 13.", uo reinado de D.
Henrique 3.°, em que uão houve tanta abundância
do luaUlades e turbulências , por ser o príncipe ,
Como a historia nò-lo pinta , muito amante da re-
ctidão e da justiça ; vivia cm Córdova certo caval-
leiro , que possuído de uma paixão tão arrebatada ,
e alheia a conselhos, como é o ciúme, deu morte a
sua mulher sem causa justa : — o rei [diz uma me-
moria contemporânea] feita a prova ordinária man-
dou por sentença que fosse edificada a torre a que
chamam de la ntal-mucrta, quer dizer, da que mor-
reu injustamente. Nella e por debaixo do arco que
ajunta com a muralha da cidade, «"uma lapida,
que na parte superior tem as armas de Caslella e
de Leão, gravou-sc uma inscrípção . que declara
como D.Henrique a mandara levantar e por quem,
c que tivera começo em 1 ÍOtí e termo em li08. —
Não ó este do numero dos edifícios antigos , que
por signaes d'ancianidade , por occnparem sítios
tristes c remotos da habitação dos homens , ou por
outras circumstauciasque excitara vivamente a phan-
lasia , dão origem a lendas e contos, em que para
o vulgo consisle toda a historia dessas eonstrucções
de outras eras. £ uma torre elegante e forte , ere-
cta em logar de muita frequência de povo : porem
a denominação de mal-inorta , o estar jd illcgí\el a
inscripção, deu margem para que a plebe fingisse a
seu sabor as fabulas e maravilhas, com que tanto
se recreia a credulidade. Imaginam pois que algum
mouro encantador fabricou a torre deixando ahi es-
condido mui avultado thesouro ; e que o homem
afortunado aquém o sábio magico destinou tão pre-
ciosa mina será aquelle que ao passar correndo a
cavailo por baixo do arco poder lèr o lettreiro , de
que restam tenuíssimos vestígios : com tal condição
fácil é d'inferír que nunca similhante thesouro se-
rá desencantado, nem correrão risco de ficarem por
mentirosos os que asseveram a tradição.
A DAMA PÉ-DE-CiDBA.
(Conto de juiiío ao LarJ.
Parte Segunda.
I.
EoA um dia ao anoitecer: D. Inigo estava á meza
mas não podia cear , que grandes desmaios lhe vi-
nham ao coração. Um pagem mui mimoso e priva-
do , que em pé diante delle esperava seu mandar ,
disse então para D. Inigo: — «Senhor, porque não
comeis? ')
cc Que heide eu comer, Brearte , se meu senhor
D. Diogo está captivo de mouros , segundo resam
as cartas que ora delle são vindas?»
«Jlas seu resgate não é a vossa mofina : dez mil
peões e mi! cavalleiros tendes na mesnada de Bis-
caia ; vamos correr terras dos mouros: serão os ca-
ptivos resgate de vosso pai. »
« O perro d'elrei de Leão fez sua paz cora os cães
de Toledo : e são elles que tem preado meu pai.
Os alcaides e potestades do rei tredo e vil não dei-
xariam passar a boa hoste de Biscaia, u
«Quereis vós , senhor, um conselho, e não vos
custará nem mealha?»
«Dize, dize lá, Brearte.»
"Porque não ides a serra procurar vossa mãi?
segundo ouço contar aos velhos cila é grande fada.»
o Que dizes tu , Brearte? — Sabes quem é minha
mãi , e que casta é de fada?»
"Cirandes historias tenho ouvido do que se pas-
sou certa noite neste castello ; éreis vós pequenino,
e ainda eu não era nada. Os porquês destas histo-
rias . isso Deus é que o sabe. »
"Pois dír-t'o-hci eu agora. Chega-te para cá,
Brearte. »
O pagem olhou de roda quasi sem o querer , c
chegúu-se para seu amo : era a obediência , e ain-
da mais um certo arripio de medo , que o fazia
chegar.
«Vês tu , Brearte , aquclla fresta entaipada. Foi
poralli que minha mãi fugiu. Como e porque, apos-
to que já t'o hão contado I »
« Senhor, sim '. — Levou vossa irmaã comsigo. . . ^
«Responder só ao que pergunto'. Sei isso. Agora
cal-te. «
O pagem póz os olhos no chão, de vergonha ; que
era humilde e de boa rara.
li.
E o cavalleiro começou o seu narrar.
«Desde aquelle dia maldito meu pai pôz-sc a
scismar : e scismava e amesquinhava-se , pergun-
tando a todos os monlcíros velhos se porventura ti-
nham lembrança de haverem no seu tempo encon-
trado nas brenhas alguns medos ou feiticeiras. Aqui
foi um não acabar dhístorías de bruxas c dalmas
penadas.
"Havia muitos annos que meu senhor pai se não
confessava : alguns havia também que estava viuvo
sem ter enviuvado.
"Certo domingo pela manhaã nasceu o dia , ale-
gre como se fora de paschoa : e meu senhor D. Dio-
go acordou carrancudo e triste como costumava.
«Os sinos do mosteiro lá embaixo no valle tan-
giam tão lindamente que era um céu aberto. Elle
põz-se a ouvi-los , e sentiu uma saudade que o fez
chorar.
«Irei ter com o abbade : disse elle lá comsigo :
quero-me confessar. Quem sabe se esta tristura ain-
da é tentação de satanaz ?
«O abbade era um velhinho — santo — santo que
não o havia mais.
«Foi a elle que se confessou meu pai. Depois de
dizer mca culpa , contou-lhe ponto por ponto a his-
toria do seu noivado.
«Uil — lilho — bradou o frade — fizestes raarí-
dança com uma alma penada '. »
"Alma penada, não sei: — tornou D. Diogo;
mas era cousa do diabo.
«Era alma empena: digo-foeu, filho: — re-
plicou o abbade. — Sei a historia dessa mulher das
serras. Está escripta ha mais de cem annos na ul-
tima folha de um santoral godo do nosso cartula-
rio. Desmaios que te vem ao coração , pouco me
espantam. Mais que anciãs e desmaios costumam
roer lá por dentro os pobres escommungados.»
"Então estou eu excommungado?» —
"Dos pés ate a cabeça; por dentro e por fora;
que não ha que dizer mais nada.»
« E meu pai , a primeira vez na sua vida , cho-
rava pelas barbas abaixo.
«O bom do abbade animou-o como a uma creau-
ça , consolou-o como a um desventurado. Depois
pòz-se a contar-lhe a historia da dama das penhas ;
que é minha mãi — Deus me salve :
302
O PANORAMA.
«E deu-lhe por penitencia ir guerrear os perros
sarracenos por tantos annos quantos vivera em pec-
cado , matando tantos delles, quantos dias nesses
annos tinham corrido. Na conta não entravam as
sextas-feiras, dia da paixão de Christo, cm que se-
ria irreverência Irosquiar a vil relê de agarenos,
cousa neste mundo mui indecente e escusada.
«Ora a historia da formosa dama das serras, de
Terho ad verbum como estava na folha branca do
sanloral , resava assim segundo lembranças do ab-
Lade.
III.
No tempo dos reis godos — bom tempo era esse I
— havia em liiscaia um conde, senhor de um cas-
lello posto em montanha fragosa, cercado pelas en-
costas e quebradas de vastíssima floresta. Na flo-
resta havia todo o género de caça , c Argimiro o
Negro — assim se chamava o rico-homem — gosla-
Ta, como todos os nobres barões d'Ilespnnha, prin-
cipalmente de três cousas boas — da guerra, do vi-
nho, e das damas — mas ainda mais do que de tu-
do isso , gostava de montear.
Dama possuia-a formosa , que era linda a con-
dessa : vinho , não havia melhor adega que a sua :
caça , era cousa que na floresta não faltava.
Seu pai , que fura caçador e fraguciro , qnanilo
eslava para morrer, chamou o filho e disse-lhe : —
has-de jurar-me uma cousa que não te custará na-
da.
Argimiro jurou que faria o que seu pai e senhor
lhe ordenasse.
n íi que nunca mates fera em cama c com crias,
seja urso, javali, ou veado. Se assim o fizeres, Ar-
gimiro, nunca nas tuas selvas e devezas faltará com
que exercitares o mais nobre mister de um fidal-
go. Alem disso se tu souberas o que um dia me
aconteceu .... escuta-me que é um horrendo ca-
so. . . »
O velho não pôde acabar ; porque a morte lhe
cravou neste momento as garras. Murmurou algu-
mas palavras inintelligiveis : revirou os olhos, e fe-
neceu. Deus seja cura a sua alma !
Tinham passado annos : certo dia chegou ao cas-
tcllo do conde um mensageiro d'elici AVaraba. Cha-
mava-o elrei a Toledo para o acompanhar com sua
mesnada contra o rebelde Paulo. Os outros nobres-
homcns das cercanias eram como clle chamados. An-
tes, porem , de partirem juntaram-sc todos no cas-
tello de .\rgimiro para fazerem uma grande monta-
ria com mais de cem alãos, sabujos, e lebreus ,
cincocnta monleiros , c moços de besta sem conto.
Era uma vistosa caçada.
Sahiram no quarto d'alva : correram valles e
montes ; bateram bosques e mattos. Era comtudo
meio dia c ainda não haviam alcvantado porco, ur-
so, zebra ou veado. Blasphcmavam de sanha os ca-
Talleiros , praguejavam, e depennavam as barbas.
.\rgimiro , que por longa experiência conhecia
os sitios mais profundos da esfiessura , sentiu lá
por dentro uma tentação do diabo. Os meus lios-
pcdcs , pensava ellc , não [lartirão sem beberem al-
guns cangirões de vinho sobre uma ou duas peças
de caça. Juro-o por alma de meu pai.» — E se-
guido de alguns monteiros com suas trcllas de cães
afaslou-se da companhia , c deu a andar, a andar,
até que se lançou por um vallo abaixo.
O valle era escuro c triste : corria jielo meio uma
ribeira fria c malassombrada. As bordas eram pe-
nhascosas c faziam muitas quebradas. Argimiro
chegou á primeira volta do rio : parou , pòz-sc a
olhar de roda , e achou o que procurava. Uma ca-
verna se abria na encosta fragosa , que descia até
a estreita senda da margem por onde o cavalleiro
caminhava. Argimiro entrou na boca da cova , e a
um aceno entraram apoz elle monteiros , moços de
besta, allãos, sabujos e lebreus fazendo grande
matinada.
Era o covil de um onagro : a fera den um gemi-
do e deixando as suas crias estendeu-se no chão e
c abaixou a cabeça como quem supplicava.
«Aella! — gritou Argimiro ; — mas gritou vol-
tando a cara.
A matilha saltou no pobre anima! ; que soltou on-
Iro gemido, e cahiu todo ensanguentado.
Uma voz soou então nos ouvidos do conde: e di-
zia:— orphãos ficaram os cachorrinhos do onagro;
mas pelo onagro tu ficarás deshonrado.»
«Quem ousa aqui fallar agouros? — gritou o ri-
co-homem olhando iroso para os monteiros. Todos
guardaram silencio : mas lodos estavam pallidos.
Argimiro pensou um momento: depois sahindo
da cova murmurou: «Vá, com mil salanazes 1 »
E com alegres toques de buzina e latidos da ma-
tilha fez conduzir ao caslello aprèa que linha prea-
do (.).
E tomando o seu girifalte prima em punho , or-
denou aos monteiros fossem dizer aos nobres caça-
dores que dentro de duas horas voltassem, porque
achariam em seu paço comida bem aparelhada.
Depuis seguido dos falcociros começou a enca-
minliar-se para o solar lançando neliris e falcões e
ajuntando caça de volateria, que a havia por aquel-
les montes mui basta.
IV.
Dobrava a campa da torre de menagem no cas-
lello do conde Argimiro : — dobrava pela linda
condessa que seu nobre marido havia matado.
Andas cobertas de dó a levam a enterrar ao mos-
teiro visinho : os frades vão alraz dos andas can-
tando as orações dos finados: apoz os frades vai o
rico-homcm vestido de grossa estamenha , cingido
com uma curda, e rasgando pelas urzes e pedras os
pés que leva descalços.
Porque matou elle sua mulher , c porque ia elle
descalço?
Eis o que a esse respeito refere a lenda escripta
na folha branca do sautoral.
V.
Dois annos duraram guerras d'elrei AVamba : fo-
ram guerras mui de contar.
E por lá andou o rico-homcm com seus bucel-
larios que assim se diziam então acostados e ho-
mens d'armas. Fez estrondosas façanhas c cavalla-
rias, mas voltou cuberto de cicatrizes deixando por
campos de batalha gasta e consumida a sua valente
mesnada.
E atravessando de Toledo para a liiscaia seguia-o
apenas um velho escudeiro. Velho c cheio de cans
e rugas lambem ellc era, não de annos mas de pe-
nas e de trabalhos.
Caminhava triste e feroz no aspecto: porque do
seu caslello lhe eram vindas novas d'entristecer e
raivar.
E cavalgando noite c dia por montes e charne-
cas , por bosques c por earçaes imaginava no modo
(•) Um jumento silvestre não seria mui delicado m.in-
jar para meza moderna ; mas o iiso da carne asinina na
idade media era vul^'ar : ainda em nuiilos dos uussus foraej
apparecc marcado entre as porlagení o qnanlo devia pa-
gar este género de carne.
o PAl^ORAMA.
303
por que dcscul)riria se eram falsas ou verdadeiras
essas novas de mau peccado.
VI.
No solar do conde Argimiro um anno depois da
sua partida , ainda tiuio dava mostras da magua c
saudade da formosa condessa : as salas estavam for-
radas de negro : de negro eram os trajos delia : nos
pateos interiores dos paços crescera a herva de mo-
do que se podia ceifar : as reixas e as gelosias das
janellas não se haviam tornado a abrir: descantes
de servos e servas , sons de salteiros c harpas ti-
nham deixado de soar.
Jfas ao cabo do segundo anno ludoapparccia mu-
dado: as colgaduras eram de prata e matiz: bran-
cos e vermelhos os trajos da bella condessa ; pelas
janellas do paço restrugia o ruído da musica e sa-
raus ; e o solar de Argimiro estava por dentro e
por fora alindado.
Um antigo villico do nobre conde fora quem des-
tas mudanças o avisara : doíani-lhe tantos folgares
e contcnlamenlos ; doía-lhe a honra de seu seulior,
pelo que clle via , e pelo que se murmurava.
Eis-aqui como se passara o caso.
VII.
Longe do condado do illustre barão Argimiro o
Negro, para as bandas de Galliza vivia um nobre
gardingo — como quem dissesse infanção — gentil-
homem e mancebo, chamado Astrigildo o Alvo.
Contava vinte e cinco annos ; os sonhos das suas
noites eram de formosas damas ; eram d'amores e
deleites ; mas ao romper da manhaã todos elles se
desfaziam — que ao saiiir ao campo, não via senão
pastoras tostadas do sol e das neves , e as servas
grosseiras do seu solar.
Destas estava elle farto. Mais de cinco tinha en-
ganado com palavras ; mais de dez comprado com
ouro; mais de outras dez, como nobre e senhor que
era, brutalmenlc violentado.
Com vinte e cinco annos, já no livro da justiça
dirina se lhe haviam escripto mais de vinte e cin-
co grandes maldades.
Uma noite sonhou Astrigildo que corria serras e
valles com a rapidez do vento, montado em onagro
silvestre, e depois decorrer muito chegava alta
noite a um solar , aonde pedia agasalho.
E que formosa dama o recebia e que em poucos
instantes um do outro se enamorava.
Acordou sobresallado ; e durante o dia inteiro
não pensou em outra cousa senão na formosa dama
que vira nos sonhos da madrugada.
Três noites se repetiu o sonho : três dias o man-
cebo scismava. Encostado á varanda de um eirado
ua tarde do terceiro dia olhava triste para as mon-
tanhas do norte que via lá no horisonle como nu-
vens azuladas : o sol começava a descer no poente
c ainda elle estava embebido em seu melancólico
scismar.
Por acaso volveu então os olhos para o terreiro
que lhe ficava por baixo : um onagro da floresta es-
tava ahi deitado como se fosse manso jumento : era
inteiramente similhanta áquelle com que havia so-
nhado.
Sonhos de três noites a fio não mentem : Astrigil-
do desceu apressa ao terreiro: o onagro quieto dei-
xou-se enfrear e selar; e a Deus e aventura o man-
cebo cavalgou nelle e deitou pela encosta abaixo.
Cumpria-se tudo á risca : o onagro não corria ,
voava.
Mas o céu entrou a luldar-se , com o anoitecer :
a escuridão cresceu e desfechou em vento, trovões,
chuva c raios. O mancebo começava a perder o ti-
no , e o onagro dobrava a carreira , c bufava vio-
lentamente. l'arou cm lim a horas rncrtas. Sem sa-
ber como, Astrigildo achou-se juncto das barreiras
de um solar acastcllado.
Tocou a sua buzina , que deu tim som prolonga-
do e tremulo , porque elle tremia de susto e de
frio. Apenas cessou de tocar, a ponte Icvadiça des-
ceu , muitos escudeiros sahiram a recebè-lo entre
tochas, e as salas dos paços illuminaram-se.
Era que também a condessa linha por três noites
sonhado I
VIII.
A clepsidra marca a hora do sexta nocturna e
ainda dura o sarau no solar do conde de Biscaia :
porque a nobre condessa e o gentil Astrigildo assis-
tem ás danças e jogos dos libertos e servos, que
para elles espairecerem folgara lá na sala d'armas.
Mas n'um aposento baixo do solar um homem está
em pé com um punhal na mão , olliar furibundo, c
o cahello eriçado ; parece escutar toada longínqua :
outro homem está diante delle dizendo-lhe : senhor,
ainda não c tempo para punir o grande peccado.
Quando elles se recolherem, aquclla luz que vedes
acolá hade apagar-se : subi então , e achareis de-
sempedido o caminho secreto para a camará , que
é a mesma do vosso noivado.
E o que fallava sahiu, e dahi a pouco a luz apa-
gou-se , e o homem dos cabellos hirtos , e do olhar
esguazeado subiu por uma Íngreme e tenebrosa es-
cada.
IX.
Quando pela manhaã cedo o conde Argimiro do
seu balcão principal ordenava que levassem o cor-
po da condessa a um mosteiro de Donas que elle
fundara para ahi ter seu moimento, elle e os de
sua casa, e dizia aos homens d'armas que arrastas-
sem o cadáver de Astrigildo, e o despenhassem de
um grande barrocal abaixo , viu um onagro silves-
tre deitado a um canto do pateo.
«Um onagro assim manso c cousa que nunca vi :
— disse elle ao villico que estava alli ao pé. Como
veio aqui este onagro?»
O villico ia a responder, quando se ouviu uma
voz: dir-se-hia que era o ar que fallava.
«Foi nelle que veio Astrigildo: será elle que o
levará. Por ti ficaram orphãos os filhinhos do ona-
gro, mas pelo onagro estás , oh conde , deshonra-
do. Foste crú com as pobres feras: Deus acaba de
de vinga-las. »
«Misericórdia I — bradou Argimiro, porque na-
quelle momento se lembrou da maldita caçada.
Neste momento os homens do conde sabiam com
o cadáver sangrento do mancebo : o onagro apenas
o viu saltou como um leão no meio da turba que
fez fugir , e segurando com os dentes o morto ar-
rastou-o para fora do castello , e como se tivesse
em si uma legião de demónios foi precipitar-se cem
elle do barrocal abaixo.
Era por isso que o conde ia cingido de corda e
descalço apoz os frades e a tumba. Queria fazer
penitencia no mosteiro, por haver quebrado o jura-
mento que tinha feito a seu pai.
As almas da condessa e do gardingo cahirnm de
chofre no inferno por terem deixado a vida em
adultério, que é peccado mortal.
Desde esse tempo as duas miseráveis almas tem
apparecido a muita gente dos desvios da Biscaia :
30*
O PANORA3IA.
ella vestida de l)ranco c verraelho , assentada nas
penhas cantando Jindas toadas : elle relouçando ahi
perto , na figura de um onagro.
Tal foi a liisloria que o vellio abbade contou a
meu pai , c que clle me relatou a mim antes de ir
cumprir sua penitencia nessa guerra de mouros que
lhe ha sido tão fatal. —
Assim concluiu Inigo Guerra. Brearte — o pagem
Brearte sentia oscabcllos arripiarem-se-lhe. Por lar-
go tempo ficou immovcl defronte de seu senlior :
ambos elles em silencio. O moço rico-bomem não
podia engulir bocado.
Tirou por fim da oscarcella a carta de D. Diogo
para a tornar a ler. As misérias e lastimas que ahi
recontava eram laes , qne D. Inigo sentiu o pranto
gotejar-lhe abundante pelas faces abaixo.
Então ergueu-se da ineza para se ir deitar. Nem
o barão nem o pagem pregaram olho toda a noite :
este de medroso, aquelle de desconsolado.
E nos ouvidos de Inigo Guerra soavam contínuo
as pala\ras de Brearte : «Porque não ides a serra
procurar vossa mãi?» — Só por encantamento se-
ria de feito possível tirar das unhas dos mouros o
uohre senhor de Biscaia.
Piompeu finalmente a alvorada.
(Á. Herculano./
DOCDMEXTO A FAVOIt DA CONSERVAÇÃO DOS MOXCMENTOS.
Transcrevendo este documento com a sua ex-
travagante orlhographia , ainda que irregular , pró-
pria do século [mormente em papeis avulsos] , não
tivemos a intenção só d'onercccr um specimen des-
te género : qnizemos sobre tudo mostrar quanto
se zelava ha três séculos a conservação dos monu-
mentos. Propagadores das nobres ideas , que tem
vogado ultimamente a favor das antiguidades pá-
trias , não podemos resistir ao desejo de imprimir
a presente informação , que é bom testemunho a
favor de nossas opiniões, e bom exemplo para imi-
lar-se , vendo-se como cnlão se acudia a reprimir
a destruirão das memorias arcbeologicas.
*
Senhor huua Carla de Vossa Alteza me foy dada ,
per que me mandava , que viese a esta Villa de
Villa de Conde , e soubese da Abbadesa , por que
mandara deribar huua Gaza , em que estavam cer-
tas Sepulturas anliguas, e a rezão que me dese, es-
crevese a Vossa Alteza , e asy Ihi noliliquase, que
Vossa Altesa avia por bera , que ella mandase lo-
guo correger a dita Caza , como dantes eslava, c
lhe asyuase aquelle termo , qne me amy pareçese
conveniente pêra o ella mandar fazer , segundo ea-
lidade da Obra , e asy escrevcse a Vossa Alteza
os Aluimentos, que hy avia , e os letreiros, que tc-
vesem. Eu Senhor vim loguo afazer o que Vossa Al-
teza me mandava , c dise Abbadesa o que me Aos-
sa Alteza mandava, e vi a dita Caza, cm que esta-
va as ditas Sepulturas, a qual Caza, Seuhor , he
huua Gualilé, que está diante da Igreja grande de
duas naves, a qual esta saã , e inteira das paredes
somente está decima descuberta do telhado, dise-
nie Abbadesa , que quando viera pêra quella Caza
achara ja huõa das naves descuberta , que cayra ,
c que cila mandara dcscubrir a outra, porque nora
cayse, c asy me deu rezam alem diso, que lho pa-
recia , que pcra sua onestidade da Caza era millior
estar asy descuberta , somente cm huu cabo delia
está huli pedaço de telhado cuberto , e cerquado
com huCas grades de ferro dentro do qual estão es-
tas Sepulturas , que se seguem ; a saber ; duas Se-
pulturas grandes com vultos cm cima de huú ho-
me , c huua mulher sem ncnhuu letreiro , nem es-
cudo de armas , e estes diz que sam de Dom Af-
foDço Sanches filho delRey Dom Diniz , e de sua
mulher , os quaes diz , que fizerão aquelle Mostei-
ro ; estam loguo junto destes outros dous Muymen-
tos mais pequenos com muitos Escudos nclles na pe-
dra lavrados, com as quinas de Portugal em huíía
metade , e cinco frolcs de Liz de França na outra
metade ; e estes também nom tem letreiro nenhuu,
e diz que som de dous filhos do dilo Dõ AlTonço
Sanches está yso mesmo hy outro , que nom tem
armas nem letreiro , e he fama , que he de huu
Mestre de Santiago destes P.eynos de Purtugual , e
nom ha memoria do nome : estam hy outros dous ,
que lèm huu Escudo em huíí cabo que tem, Phufia
metade as quinas de Porlugual , e na outra metade
as cinquo froles de Liz , e no mco huu Escudinho
raso sè nada , e no outro cabo tem outro Escudo ,
que na metade tem as quinas , e frolcs de Liz , c
na outra metade huua Barra cora duas cabeças de
Serpes em cada ponta sua , e na parede defronte
dellc está huum letercyro, que diz que aly Jaz Dõ
Fernando de Meneses , e sua mulher bisneto de Dõ
AfTonço Sanches, oqual hé Padroeyro daquelleMos-
teiro : Estes Senhor sam os Muymentos , que estam
debayxo daquelle pequeno culjcrto , que ficou , e
fora delle está outra Sepultura no descuberto , que
tem huus Escudos ; a saber ; em huíía metade as
quinas de Portugual postas em aspa , e na outra
metade huua Cruz, e nora tem letreyro , e dizem
que he de huua filha do Conde Estabre Dom Nuno
Alvres Pereira que foy mulher do Duque DomAf-
fonço , filho delRey Dom Joam o primeiro , este
Muyracnto me dise Abbadesa , que quando viera
pêra ly o achara no Coro dentro, e qne eslava de-
trás das cadeiras, e que quãdo mandara correger o
Coro nom sabendo cujo era, o mandara aly põr fo-
ra , e aguora por que soubera cujo era o queria
mandar põr doutro no Capitólio, e asy me dise,
que mandava fazer huma Capella com o arquo pêra
dentro para a Igreja , pêra por nella os Muymentos
de Dom Aflbuço Sanches, e de sua mulher, e de
seus filhos, que edefiquaram aquelle Mosteiro , e
eu vy ja a dita Capella começada , e segundo meu
parecer ella feita , e acabada segundo amostra que
me delia mostraram , ellas estaram na dita Capella
railhor, e mais hõradamente, que na dita Gualilé,
ainda que se cubra como dantes : Esto Senhor he ,
o que achcy, e eu toda via lhe asyney termo daqui
ale Janeiro, que ella tornase mandar cobrir a dita
Gualilé de olibel , e telha como anliguamente soya
estar , porque asy o mandava Vossa Alteza , e este
termo lhe dey , porque ha mester muyla madeira ,
jicra o olivel , e ade vir de fora , que a nom há na
terra , e asy telha que se ha de fazer no veram ,
porque me informey com Olliciaes , que tanto era
necessário, asy que lodo está feito como Vossa Al-
teza me mandou , que lizesse ; por ora Senhor nom
mais, senam que a Santíssima Trindade conserve,
e acrccênte o Real Estado de Vossa Alteza a seu
Serviço. De Villa de Conde a 20 de Abril de 1S25.
r^ Do vosso Corregedor de Antrc Douro , o Minho
o Licenciado António Corrêa.
Três cousas se não recuperam depois de perdidas :
vergonha, lealdade c virgindade.
92
o PANORAMA.
30o
4'-
A TRâNSriGURAÇÃO ; ÇUABH.O DO ÍÍR. ESqUIVEi.
Na planicie d'Ksdrelon , sitio o mais vistoso e ame-
no da Palestina , ergue-se um monte por lodos os
hJos desacompanhado , qiiasi circular desde a l)a-
so até a cima , de engraçado contorno , e todo re-
vestido de viçosa verdura e variado arvoredo : é
coroado por uma superOcie chaã , que já fui assen-
to de uma povoação e de uma fortaleza ; dalii se
desfructam dilatadas e encantadoras vistas para to-
das as partes ; chama-se o monte Ttiabor , e desde
o tempo de S. Jeronymo que a tradição diz ser o
logar da Transfiguração , onde o Salvador manifes-
tou a sua gloria a três apóstolos, antes de ascender
aoErapyreo, e onde o Pai Celeste confirmou a missão
do Filho. Todos os viajantes concordara fazendo uma
piíitnra deliciosa desta pequena e solitária monla-
nlia : poremos aqui as palavras de dois, um portu-
Setejibro 30—1843.
gucz e antigo, outro estrangeiro c moderno ; am-
bos de muito credito ; sabcndo-sc que entre suas
jornadas mediou um longo periodo talvez não infe-
rior a 2tí0 annos. —
Fr. Pantalcão d'Aveiro no Itinerário da Terra
Santa , cap. 81 m fine , diz assim — « chegá-
mos ao pé do monte Thabor , o qual izento de todo
outro monte ou outeiro está posto naquelle grande
campo , estendido de norte a sul , tão gracioso que
sua vista nos alegrou. Não é demasiadamente gran-
de nera alto , mas feito a modo de um ovado mui
bem proporcionado , toda sua altura coberta de um
arvoredo miúdo e baixo No alto vimos estar
três igrejas , ou capellas , quasi de lodo cabidas , e
separadas umas das outras, as quaes foram alli edi-
ficadas a honra dos Ires apóstolos, S.Pedro, S.
2,' Serie. — Voi.. II.
30(5
O PANORAMA.
Thiago e S. João , por causa do que o apostolo S.
Pedro disse ao Senlior : «se quereis façamos aqui
Ires moradas. » No baixo ao pé do raonte, vimos as
ruinas de grandes edifícios e foram de um sum-
ptuoso mosteiro de cónegos regrantes de St." Agos-
tinho , que alli esteve sendo a terra dos christãos.
. . . Deste logar do santo Thabor vimos estar a flo-
rida Nazaretli em um alto , e o monte Carmelo e
parte do monte Libano , e outros muitos logares de
que a Sagrada Escriptura faz memoria , cuja vista
me era sunimamente deleitosa , não somente aos
olhos corporaes , mas também aos interiores da al-
ma )) —
Na viagem do Sr. A. de Lamartine lemos o se-
guinte. — «li- d'outubro de 1832. — Partida ás
quatro da ninnliaã para o monte Thabor, designado
o logar da Transliguração , o que ó improvável,
porque nessa epocha o alto do Thabor era occupa-
do pbr-uma cidadella romana. X situação insulada
e a el-evuçiio desta montanha deleitosa , que surge
á similhança de moita de verdura, da planície de
E'sdrelou„ foz que a escolhessem no tempo de S.
Jeronymn para campo daquella sccna sagrada. Eri-
giram uma capella na chapada onde vão os pere-
grinos assistir ao sacrosanto sacrificio ; nenhum pa-
dre lá reside, mas vão ahi de Nazarelh. — Chega-
dos a falda do Thabor — soberba pyramide cónica
de perfeita regularidade , forrada por Ioda a parte
de plantas e de azinheiras — o nosso guia perde-se.
— Sento-mo sósinho á sombra de um formoso car-
valho qiinsi no sitio ondeUaphael em seu quadro {•)
pòz os discijHilos deslumbrados pelo clarão que vem
do CPU ; espero que o sacerdote celebre a missa :
lá do alto nos ó nnnunciada por um tiro de pistola,
para que pudéssemos ajoelhar nos degraus deste al-
tar gigante em presença d'Aquelle que levantou o
altar e fabricou a brilhante abobada celeste que o
cobre. »
Não obstante ser o mysterio religioso de que fal-
íamos assuinplo magnifico em que os mais insignes
lueslres exercrilarani o pincel , na Exposição publi-
ca de pinturas mnlrilense, doanno de 1S37, appnre-
ceu o quailro, de que é reduzido trausumpto a gra-
vura acima ; obra que entre as mais S(d)resahiu por
jnuitas bellezas , c em que o Sr. Esquivei , pintor
nomeado do reino visinho , apurou o seu engenho
artislico, mostrando que ainda tinham as Bellas-
Arles dignos cultores na pátria deA'clasquez eMu-
rillo.
Revixdicaçào d\ gloria csrnpvDA A Peduo Ai.vaiíks
Cabral >o secllo 19.°
* •
Ninguém ainda se atreveu a querer despojar Chris-
tovam Colombo da gloria de ser o descobridor da
.America: ao menos com muita rasão o mundo o
acclama como tal. .Alas ha infelizmente quem hoje
se atreva a flucrcr. (iis|iular a Pedro Alvares Cabral
a gloria de ser q,^'dcscobrid(n- do Brasil.
Suppõe-sc -qiie a America fora conhecida dos an-
tigos com* o nome -úc ilha Atlântida (1) : opini(R'S
ha comtudo , e mui solidas, que o contestem. É
porem certoquc visia Colombo na ilha da Madeira
cm 1Í80 quando alli aportara meslrc Francisco
Sanches com três ou quatro marinheiros ii'uma ca-
ravella desiroçada. queimpellida d'um grande lem-
(•) A Traiisfi;.'iir.n;,'io ó'rini solerlio |i;iiiipl de Rapliiiei :
fla CMpi.i que cm Ruma cxtraliiu o Sr. A. Manuel «la Fon-
seca fall:'íimií a |ia?. 30.5 do 1.° vol da presente Serie.
(!) J'latúo lil). 33.
poral fora era remotíssima longitude occidental de-
parar com terra não posla cm mappa , ou carta de
marear (i). Colombo devera mui naturalmente bus-
car ouvir 6 saber os casos desta derrota ; e como
alumno e companheiro da academia de Sagres,
creada pelo inclyto infante D. Henrique , homem
não era elle de desperdiçar o que ouvira cm caso
de tamanho momento : confirmam-n'o sobejamente
a pressa com que sahíra do seu novo domicilio, e
as instancias com que buscou os meios de eITcituar
a viagem que descobriu o novo mundo (3).
Alem diito , d'ha muito se julgava ser aterra
redonda , haverem arjtipodas (4) , e que o oceano
atlântico devera em consequência banhar duas cos-
ias. Colombo pois acreditou que a terra que San-
ches descidjríra era a ilha do Japão , ou Cypango
de Marco Paulo, e que navegando sempre a oeste
iria dar no reino de Caltayo , ou no paiz de Sinas,
hoje Chinas, e que acharia a rota das Índias mais
facilmente do que os portuguezes dba muito bus-
cavam em roda d 'Africa (5).
Nem em Génova, nem em Portugal quizerara an-
nuir ao novo plano de navegação: realisou-o com-
tudo em Castella , mas somente depois de perder
alguns annos em sollicitar a corte . que o rejeitara
a princii)io ; e assim mesmo o conseguiu . não por
ser melhor o juizo e o entendimento daquelles cos-
nuigraphos, como pelas suas repetidas instancias ,
e pelo poderoso valiraenlo de alguns nobres.
Feitos os appreslos, deu á vela de Paios com três
cara\ellas cm agoslo 3, 1192. Em 11 de outubro
deu >ista da ilha (iuanahy, uma das Lucayas: des-
coiíriu depois a ilha de Cuba, e a Ilcspanhola, ho-
je S. Domingos, que os indígenas chamavam Hay-
ty : tornou a fazer rota para a Europa , e aportou
a Eisboa em março 6, 1493.
Na segunda viagem Colombo sabiu de Cadix em
setembro 2o, 1493: desembarcou na Ilcspanhola,
descobriu a Jamayca , e grande numero de ilhotes
ao sul de Cuba. A terceira foi em 1498: avistou
a ilha da Trindade , e desembarcou em algumas
parles da costa de Paria. Na quarta sabiu de Ca-
dix em maio 9, 1302: aportou á Ilcspanhola, des-
cobriu a ilha Guanaya , e Ioda a costa continental
desde o cabo Graças-a-Deus até Porto Uello.
Sabe-se geralmente que Colombo suppóz que des-
cobrira a ilha Cypango , e que o seu pensamento
original, bem como o dos outros ilhislres navega-
dores posteriores, Fernão de Magalhães, Piuzon ,
e Solís, fora achar passagem á índia pelo mar do
sul. Apesar de tudo isso, e de provarmos que do-
ze annos antes da sua primeira viagem Colombo
soubera do mestre Francisco Sanches que a oeste
havia terra não posta cm mappa, ou carta dema-
rcar, não nos atrevemos a defraudar o illustrc gc-
novez de um titulo de gloria que o mundo lhe con-
ferira.
Talvez que alem dos factos podcranios allcgar
mui \aliosas rasõcs , e taes, por exenjplo , como:
que Sanches, homem rude, sincero, e não ambi-
cioso, dissera o que sabia c passara, e que nem
dahi lhe viera gloria , nem soubera lalvcz ganha-
la : que Colombo, dcjlado de grajules talentos, pers-
picácia , e conhecimentos náuticos , se aproveitara
das declarações de Sanches, o que conlirma a cons-
(2) Gomara. Hislor. de las Indi.is. Cap. 13. T. In-
tlicc C/ironol. Lislioa , 18-11 p. 75.
(.•?) Mallr-lirim. tom. 0."
(4) Pliii. Hisl. Nalnr. lib. 8.° cap. 64 c 65.
(5) Ju.lo de Barros.
o PANORAx^lA.
307
tanle persistência cm seu plano uns poucos de ân-
uos depois de rogcilad<i cm duas cortes illuslradas,
e ale mesmo uaqiiella que ao depois o acccitou :
que nada do positivo e explicito promcltcra nunca
senão uma terra a oeste [lauto quanto dissera San-
ches] , promessa vaga c iiuUliuida , senão insensa-
ta , sem levlemuiiho de f.ictos , de historia , ou da
scicncia : que linalmente ató a sua ultima viagem
nunca julgara haver descoberto um novo conti-
nente.
Não fora assim que o grande Gania fizera a sua
rota das Itulias: pòz proa ao oriente, demandou-o
com vontade positiva , com plano maduro c delibe-
rado , scicncia, e consciência do que fazia. Cum-
tudo nunca os portuf^uezes se atreveram a querer
usurpar a gloria de Cidombo : bastante, e de sobra
lecm elles para não mendigarem o alheio. Espere-
mos justiça do tempo, e do compulsar dos archi-
vos : cila , tarde ou cedo, lrium|)ha.
Mas dado que assim o façamos acerca deste pon-
to ainda controverso, não seremos uós que, depois
de exinanidos e desangrados na substancia e na
forma, nos deixemos agora também despojar da ri-
ca herança , que nos legaram intacta os antcpassa-
sados, sem ao menos soltarmos um grilo gemebun-
do, c exclamar — não: tirera-nos tudo, menos a
honra c a gloria.
Pedro Alvares Cabral foi ale hoje havido como
descobridor do Brasil na opinião geral do mundo.
Foi comtudo disputada esta gloria ao illuslrc na-
vegador portuguez : eram escriptores castelhanos
ciosos delia osque mais seoppunhara, para adarem
a Vicente Vanes Pinzon.
Cabral sahiu de Lisboa a 9 de março de liJOO,
e avistou a terra da Vera-Cni: a 22 de abril em
17" latitudes., e a 23 desembarcaram. Pinzon,
i[ue acompanhara Colombo na primeira viagem, deu
,i vela com quatro caravellas em dezembro de 1199,
c pretendem que cm 26 de janeiro de 1'600 apor-
tara ao Cabo de St.° Agostinho, ao qual chamara
Cabo âe ta Consolacion. Se tudo isto assim lòra , a
prioridade do descobrimento do Brasil iiicontesta-
Telmcnle pertencera a Pinzon que não a Cabral.
Aão fora até qui muito de estranhar que antigos
escriptores castelhanos, zelosos da gloria de um seu
compatriota, ou buscando augmentar-lhe a que já
tinha , mas não com este titulo, assim o sustentas-
sem. Mas revolta sobremodo, e nada ha que o pos-
sa desculpar , que um escriptor moderno, estran-
geiro e alheio a todo o ciúme honesto de nacio-
nalidade , se deslise grosseiramente da Loa fé e
lealdade de historiador.
Roberto Southey na sua «Historia do Brasil»
usurpa a gloria de Cabral para a dar a Pinzon. E
saiba-se que o largo e avultado credito do auctor
na sua pátria, e no mundo litterario, como chro-
nista da Graã-Brctanha , e seu poeta laureado , é
ominoso para a gloria de Cabral : alem disso a eru-
dição e profundidade da obra demandam uma re-
futação mui seria e cathegorica.
Da narração histórica da viagem de Pinzon se
coUige claramente que não fora o Cabo de St. "Agos-
tinho , que elle avistara, o qual fica em 8'-i° S. ,
mas o Cabo do norte cm lat. 2" norte, llerrera diz
assim : — «Se fucron por la costa abaxo quarenta
léguas ai Poniente,» e que logo entraram no Ma-
ranhão , Orellana , ou Amazonas. Ora do Cabo do
norte a este grande rio são em verdade quarenta
léguas, mas do de St.° Agostinho muito raais de
quatrocentas : logo Pinzon não descobriu , nem lo-
cou costa do Brasil.
Muito maior censura ainda merece o auclor in-
glcz quando com mui pouca lealdade omittiu e cal-
lou aquillo que destruia a sua opinião. Faz pasmar
que tão tniudanienle em tudo nos contasse a\iagcm
de Pinzon , e omiltisse a circumstancia essencial
das quarenta léguas. Diz elle assim , tom. I [lag. 5
« Fidin lii-nce they coaslcd ahiiiy tuirard tlie ^orth
lilt they cainc lo lhe tnoul/i <>f a great lirer. » Deve-
ra extractar lealmente os escriptores bespanlmes ,
que compilava , e até mesmo respeitar a auct(jrida-
de de Uoberlson , seu compatriota.
llerrera lealmente nos diz que Pinzon proseguin-
do em sua viagem [do Cabo do norte sustenlàmos
nós] depois de andar as quarenta léguas entrou
n'ttm mar de agua doce.... era o Amazonas. Ao
paiz todo chamavam os indígenas Mariatambal ; á
parle, que se estendia ao oriente, Camomurà ; e á
do occidente Paricnrú.
Depois de passar riscos iguaes aos que Colombo
livera em Iloccas dei Dragnn , perdeu um navio:
atravessou a linha , e chegou ao Orenoco , d'onde
se fez. na volta da Europa , perdidos nas correntes
mais dois dos outros Ires navios. Um rio na Guia-
na em lai. 1" 30' N. tomou o nome de Pinzon : é
hoje o Oyapok , outr'ora baliza das possessões por-
luguezas e hespanholas. Carlos S.° mandou abi pôr
um pillar, o qual se perdera depois que os fran-
cezes entraram na Goiana: mas em 1723 um olíi-
cial do Pará o descobriu. — B. P. de Berredo. I.
§13,15.
Tihurcio António Craveiro.
A JiÃi DE família.
Copia de nm quadro de João Baptista Greuze , —
a Noiva d'Aldca , — dénios em o 4." vol da i.' Se-
rie, pag. 317, c ahi o bosquejo da biograpbia des-
te artista , que sobrcsahiu no género particular de
pintar sccnas da ^ida domestica, sendo sem com-
paração menos feliz nos quadros verdadeiramente
históricos. — Estampamos o esboço de outra com-
posição sua que é intitulada «aSIãi defamilia.» No
original avaliam os bons entendedores a expressão
dasITguras, que era o melhor dote, a qualidade
mais eminente do pincel de Greuze. No gesto da
figura principal , cm toda a sua postura , c no ex-
pressivo da physionomia conhcce-se claramente ser
uma mulher entregue aos cuidados nialernacs ; pa-
rece que se está ouvindo fallar, reprcbcndendo o
filho mais velho porque toca uma Ironibetinba ; co-
mo se cila dissera : — não reparas que acordas teu
irmão. — r. também mui notável e superiormente
debuxada a physionomia carrancuda , o modo des-
contente e amuado do rapaz , porque a niãi lhe ve-
dara o regalo de fazer motim. — Greuze, repeli-
mos , não era magistral no colorido , nem na cor-
recção c magestade do desenho, mas qnanto a in-
ventar c fazer interessantes as scenas familiares tal-
vez que nenhum o excedesse, nem com elle rivali-
sasso naquella graça c naquelle attractivo da ver-
dade , poderosos agentes auxiliadores da arte. —
Didcrot disse deste pintor: — «é o primeiro que
tem dado costumes á arte , e tem sabido encadear
os sucessos , de maneira que seria fácil pelos seus
í quadros escrever uma novella. »
308
O PANORAaiA.
A ItIÃI SE FAMIXiIA.
Mantíl de SolSA DE Sefilveda.
VH.
o seguimento e o fim.
Vrrno morrer com fome es filhos c/iarcs ,
E:n tanto amor gerado-^ e iiascidus j
f 'trilo os cafrfs amperes e aiaros
Tirar ú li/iila dama seus vtslidos:
Os cri/slaliiws innnbros e pnc/oros ,
A^ calma , ao frio , ao ar virilo despidos :
Vi pois de ter pisado loiujamentc
í'e'os delicadoi pi's a ar/a ardente.
Lus. Caiit. 5 Est. 47.
E rerito mais os olhes (jue escaparem
De tanto mal, de tanta deseenturo,
'Is dois amantes míseros ficarem
Aaft rvida e itnplacabil espessura.
Jlli , despois que as pedras abrandarem
Com lagrimas de dôr , de niaijoa pura ,
Alimpados as almas soltarão
Da formosa c misserrima prisiío.
V." E»l 40.
Ao c.\iio de doze dias , convalescidos os enfermos ,
c j;i tom forçíis para a jornada , fez o capilão uma
Lrcíc falia á genle, cxhorlando-os a não desalentar
nos trabalhos , consolando-os com a esperança de
sahir d'elles, e pedindo muito a lodos que o não
desamparassem , nem deixassem só , ainda que por
causa de sua mulher c lilhos não podesse caminhar
tanto como elles. Promettcram unanimemente que
assim o fariam , e ajustaram ir sempre ao longo da
praia , porque era melhor caminho.
Começaram a jornada aos solo dias de julho. Ma-
nuel de Sousa com sua mulher e filhos c oitcnl»
porluguezese cem escravos, na vanguarda. Seguiam-
-se o mestre e piloto com todos os homens do mar,
com uma bandeira e crucifixo arvorado. Na reta-
guarda 1'antalcão de Sá , com o resto dos portu-
guezes e escravos , que seriam perto de duzentas
pessoas. A pé caminhavam todos excepto D. Leonor
que ia em umas andas ás costas dos cafres : e as-
sim andaram todo aquellc lucz com grande fadi-
ga , sem comer em lodo elle mais que arroz e al-
gumas frutas silvestres , e tão fracos que por não
poderem continuar a jornada ficaram por esses mat-
tos uns dez ou doze dacomiliva. Em todoesse tem-
po não adiantaram pela costa mais de trinta léguas,
passando de cem as que rodearam por cansa das
grandes voltas dos rios , fragosidade das monta-
nhas e outros embaraços de que a cada passo e-
ram atalhados. E no dia exactamente, que se cora-
o PANORAMA.
309
pletara um mez desta triste e trabalhosa peregri-
uação, (leram noticia a Manuel de Sousa de Sepúl-
veda que um filho seu bastardo . de idade de dez
aunos , que vinha ás costas de uui cafre , lhe fica-
va alraz quasi meia logua com o seu conduclor ,
ambos jazendo no chão de cansaço c de fome.
— iez alto , c promctteu quinhentos cruzados a
quem lhe fosse buscar o menino ; mas ninguém ou-
sou a isso por ter já anoitecido , com receio das
feras que infestavam todo aqucllc caminho. Isto
sentiu elle tanlo que esteve em termos de endou-
decer : mas resignou-se e foi seguindo sua derrota.
Ahi lhe ficaram também alguns portuguezes e es-
cravos : e lodos os dias ia assim perdendo duas
ou três pessoas, que eram pasto dos tigres c das
serpentes apeuas se separavam do resto da comitiva,
listes que por lhes dcsfalleccrem as forças se apar-
tavam dos companheiros c talvez de amigos , e al-
guns de seus proi)rios irmãos , e pacs , ao darem
o abraço da despedida , certos já de uma mor-
te horrível , faziam tamanhas lastimas que não ha-
via coração que se não enternecesse , e que não
chorasse mais aquella desaventura que os trabalhos
em que todos se viam , que eram grandes.
Por aquellas solidões marchavam atormentados
continuamente do pensamento do seu infortúnio ,
opprimidos da fome , investidos dos animaes fero-
zes, e [o que mais duro parecia] assaltados algu-
mas vezes pelas próprias creaturas humanas, ainda
mais ferozes que os tigres — os cafres das hordas
selvagens. Estes assaltos eram frequentes sobre tu-
do nos passos estreitos. E um d'elles que foi de'
lodos o mais apertado e terrível, ia-lhcs sendo fa-
tal. Era decorrido mez e meio da sua jornada ,
quando unia tarde , quasi ao pòr do sol , descobri-
ram uma multidão innuraeravel de cafres , arma-
dos de frechas e azagaias , que com grandes ala-
ridos vinham descendo por uma ladeira Íngreme.
Eram inimigos. Cerra-se a gente em ordem de pe-
leja. Põem-se na frente os mais valentes; e alli es-
peram animosamente o ataque. Chegam os cafres
em tropel , soltando gritos selvagens, indicio da
confiança com que contavam fazer carniceria e des-
pojo fácil de tão pequeno numero de europeus. Des-
pedem sobre estes um chuveiro de setlas hervadas.
Respondem-lhe os nossos com algumas armas de
fogo que salvaram do naufrágio , e entre ellas um
ou dois arcal)uzes. As balas fazem bom emprego e
estrago nos inimigos. Mas eram muitos : não desis-
tem : liram-se as espadas, ctrava-se a ferro frio de
parle a parte o combale. — Cabem muitos dos cafres;
mas dos^nossos lambem morrera alguns. Obram pro-
dígios de valor Jlanuel de Sonsa , e os cavalleiros
portuguezes que alli estavam. Distingue-se por mui-
tos rasgos d'esforço e intrepidez Diogo i[endes Dou-
rado : mas succumbe atravessado de uma azagaia o
denodado guerreiro. Accompanha-o na coragem e
no infortúnio .\nlonio de Sampaio, que rende ávida
á ponla envenenada de duas seitas. Eslava muito
duvidoso e arriscado o condido. Que alguém jul-
gue , se pôde , da afllicção d'aquelles que por fal-
ta de forças ou de armas o presenceavam sem
tomarem n'elle parle activa. Ao menos aos que
eomballiam, o calor da refrega não deixava re-
flectir : os que não eomballiam pensavam , com an-
cioso cuidado, na possibilidade de um desfecho fu-
nesto a todos. Que angustias não padeceria n'esles
momentos o coração de D. Leonor I A incerteza du-
rou até o cahir da noile , em que os ferozes cafres
bem escalavrados, se retiraram depois da lucta a
mais sanguinolenta c porfiada, cm que os nossos se
virara empenhados durante aquella jornada. Com a
noite e a viotoria não cessaram os receios. Poze-
ram-se vigias: c se o vento assobiava ; se sussur-
rava uma folha; se rumorejava um silvado; se voa-
va uma ave ; se crocitava ura corvo ; se bramia, ao
longe , ura ligre ; se se ouvia o ruido de uma ser-
pente rojando, de um animal perpassando, de uma
pedra cahindo de algum monte visinho — era um
rehalc de cafres que vinham de novo ataca-los. Os
acordados punhani-se á leria. Os que dormiam so-
nhavam cousas eslraidias e espantosas. Dahi a pou-
co sonhavam cora fontes cristalinas , com iguarias
e banquetes , com palácios fantásticos , com o lei-
to macio e commodo da casa paterna ; c acordando
achavam-se desmentidos, sedentos, faminlos, dei-
tados sobre o descampado dos sertões I Despertos,
alTigurava-se-lhes então ver diante de si os espe-
ctros ensanguentados dos dois cavalleiros portugue-
zes que tinham perecido , havia poucas horas , na
peleja com os cafres; e convulsos de frio , e de
horror persignavam-se , c resavam-lhcs pela alma '.
Assim passaram inquietos aquella noite cruel, e
ao outro dia continuaram a sua derrota. Desapres-
sados dos cafres, perseguiam-nos reflesões mais pun-
gentes do que as próprias azagaias dos salteadores.
E como se fora pouco lauto sotTrimealo , quando o
acaso lliesdeparava frutas nos mallos, ou nas praias
mariscavam algum peixe d'essc que o mar de si
regeilava , fallava-lhes agua que por muito escassa
e perigosa de buscar pelo sertão chegou a vender-
se a dez cruzados o quartilho. D'ella repartia ."\Ia-
nuel de Sousa por sua mão a lodos e a si próprio
cora a mesma igualdade, e da sua mesma ração ti-
rava para beberem dois filhinhos de peito queconi-
sigo trazia.
Este, que parecia ser extremo da fome e sede,
ainda passou a mais , e a tal miséria chegou , que
obrigados delia a se metlerem pelo sertão , ahi se
sustentavam dos animaes qne achavam mortos , e
com os pós dos ossos torrados de que cosiuhavam
bolos, e algumas papas. Síuitas vezes succedeu
vender-se no arraial uma pelle de cabra sêcca
por quinze cruzados , lançá-la de molho , e co-
mé-la.
Ao cabo de Ires mezes chegaram aos domínios
de ura rei , chamado Inhaca , que vivia já perto
do rio do Espirito Santo ; homem alto , bem as-
sombrado , velho , barba veneranda e toda bran-
ca , muito bem inclinado , e amigo dos ponugue-
zes , e que por ler alguma parecença com o- gover-
nador Garcia de Sá lhe pozeram o seu nome Lou-
renço Marques e António Caldeira , que dos nossos
naluraes foram os primeiros a intentar aquellas pa-
ragens. O Inhaca, avisado da vinda dos nossos, os foi
buscar ao caminho, e os hospedou na aidóaem que
residia. E ouvindo a Manuel de Sousa a determinação
em que estava de passar adiante, procurou dissua-
di-lo : que se demorasse até vir o navio do resgate
de Moçambique onde se poderia ir : que nesse in-
tervallo lhe ministraria tudo o que na sua terra
houvesse ; e que não tratasse de oulra cousa , por-
que se de alli passasse , havia de ser roubado e
maltratado por um rei , que estanceava adiante, e
se chamava Ofumo , que era mal intencionado e
perverso homem. Manuel de Sousa que não se atre-
via a esperar alli um anno , porque eslava saudoso
da pátria , e lhe não soflria o animo ver por tanto
tempo victima das privações e incommodos do silio
a mulher mimosa e costumada a outro tratamento ,
310
O PANORAMA.
I
posto que agradeceu , não acccitou este conselho.
Comludo , a instancias do rei , deteve-so alguns
dias, e da gente que trazia lhe deu 30 homens es-
colhidos e Panlalcão de Sá por commandaiite para
juntamente com 500 cafres e capitães tanihcm gen-
tios irem castigar um potentado visinho , com o
qual o Inhaca andava em guerra. Foram, e atacan-
do a povoação do inimigo lira queimaram e toma-
ram todo o gado, com que se recolheram. Das pre-
gas partiu com os nossos o rei : e passados cinco
dias se despediram d'elle que os foi acompanhan-
do, e clles foram marchando resolvidos a tornear a
bahia de Lourenço Marques, e passar os rios pela
margem superior.
Aquelle dia chegaram a um que se chamava Be-
lygane e verte na barra de Lourenço Marques, on-
de também desembocam outros chamados Anzate ,
Ofumo , e Manhiça. Chegados, pediram a clrci
mandasse pôr á sua disposição algumas almadias
que alli havia , que são embarcações inteiriças de
um só p;iu , cavado [)or dentro, compridas algumas
de vinte c mais braças, c capazes de outras tantas
toneladas. Mas orei que sabia que o rio, largo de
■vinte léguas , não era navegável de embarcações
mais pequenas , e que tinha ardentes desejos de
conservar comsigo os portuguezes , recorreu , para
lhes impedir o trajecto, a quantos subterfúgios pô-
de inventar. Manuel de Sousa receoso de perfulia
que não existia , teimava ainda mais na sua reso-
lução de passar adiante ; prometlia paga avultada
aos cafres que o conduzissem ; presenteava o rei ,
para o contentar, com algumas das armas que le-
Tava ; rogava-lhe que se recolhesse n sua terra ; e
tanto perseverou em suas rogativas que o rei se re-
tirou e os seus , c o deixou seguir a jornada.
Então Manuel de Sousa fez , primeiro , passar á
outra banda do rio trinta homens com três espin-
gardas: depois passou elle : e logo o resto da gen-
te. Desembarcados, proseguiram caminhando cinco
dias em que venceram vinte léguas, até que foram
tèr , já noite, ao rio Anzate. Á borda d'elle as-
sentaram arraial , e se agasalharam na arca : mas
de noite tão abrasados do sede se sentiram , que
alli houveram de morrer todos á mingua de agua ,
se o não providenciara i^Ianuel de Sousa , luandan-
do-a buscar, ainda que lhe ficava alraz um bom
espaço, e pagando a canada a 2o cruzados. Ao ou-
tro dia chegaram da margem opposta três almadias,
e pelo que os negros d'ellas disseram se entendeu
que havia pouco se tinha de alli feito á vela para
Moçambique o navio do trato. IVestas atravessaram
os nossos o rio. E já então Manuel de Sousa se
mostrava tão desorientado do juizo , desvelado das
•vigílias e trabalhos, e agora também da magoa de,
por Ião pouco, vèr perdida aquella monção de em-
barque para o reino, que indo na almadia com sua
mulher e filhos, n'um accesso inesperado de lou-
cura arremctteu , espada nua , contra os cafres que
remavam, exclamatulo ; u ali perras, onde me levais?»
Os negros, assuslados, lançaram-se ao mar: e foi
preciso que D. Leonor o quietasse para não ir a
mais o seu desatino , que podia ser causa de alli
se afogarem todos.
Durou-lhe, momentos apenas, cslesocego, porque
a imaginação, que tomava energia da realidade me-
donha dos seus infortúnios, não o deixava tranquil-
lo. Ao desembarcar poz-se outra vez tão desnortea-
do de cabeça que foi mister aperíar-lha com toalhas:
o que D. Leonor fazia com buas próprias mãos e
com muitas lagrimas.
Aqui tinha de começar uma nova serie de desas-
tres maiores e mais espantosos á proporção que se
avisinhavam do seu despenho. Debaixo d'estc céu
de Africa , n'esta região çafara e inhospita , ia re-
presentar-se um drama que linha d'afdmar áqucllas
paragens com recordações de tristeza e de horror ;
e a monotonia dos combates obscuros da natureza
contra a creatura , do animal contra o homem , e
do homem contra si mesmo, renovados e esqueci-
dos todos os dias n'aquellas plagas , ia ser inter-
rompida com scenas lamentáveis de barbaridade , e
o espectáculo de nunca ouvido infortúnio : e essas
scenas , pela circumstancia casual de terem actores
ilhistres, espectadores e chronistas da nossa Euro-
pa, não haviam de apagar-se no olvido e no tumulo
das gerações, ou ficar, ignoradas ao longe, e des-
conhecidas ao resto do mundo , no estreito âmbito
de algumas pequenas e pobres aldèas e povoações
da Africa meridional.
Postos , como dissemos , em terra , avistaram um
golpe de cafres, e vendo-os se pozeram em som de
peleja, cuidando vinham a rouba-los. Mas elles ap-
proximando-se dos nossos, sem mostra alguma de
hostilidade , entraram a fallar com os outros cafres
da comitiva de Manuel de Sousa , e lhes pergunta-
ram que gente era aquella , e o que buscava? Ues-
pondeu-se-lhes : «que eram christãos ; que tinham
naufragado ; e que lhes pediam os guiassem a ura
rio grande que estava mais adiante ; e se tinham man-
timentos , e lh'os trouxessem, lh'os comprariam. »
Ao que os cafres tornaram «que se queriam manti-
mentos , fossem com elles ao logar onde estanceava
o seu rei , que lhes havia de fazer muito agasa-
lho. »
A este tempo os nossos iam já sem chefe ; por-
que o chefe tinha perdido o attribnlo mais essen-
cial do mando, e o titulo mais legitimo á obediên-
cia— a rasão. De 3S0 que eram, sem contar os
marinheiros , tinha-os rareado a morte a 120 pes-
soas. E já não caminhava em andas aos hombros
dos cafres D. Leonor, tão formosa e delicada: a
pé e descalça ia como todos, com 300 léguas de
jornada , nivelada já em tudo com os Íntimos e es-
cravos. Distinguia-a somente aquella superioridade
que reflecte da nobreza e cultura do espirito ainda
no meio dos mais duros transes , e aquelle valor
feminil que, por uma compensação providencial da
timidez que caracterisa õ sexo, brilha e se exalta
sempre, quando as tribulações são maiores, e os
lances mais arriscados. Animava a homens que ti-
nham endurecido nos trabalhos e nas guerras, cila
fraca e débil mulher. Consolava a todos cila mãi e
e esposa , a quem as angustias c os receios deviam
ter comprimido mais dolorosamente o coração. E
desta maneira foram , guiados por aquelles cafres
que, acaso ou industria, alli inopinadamente ap-
I)areceram, andando até chegar á terra do rei, que
se chamava Ofumo; aquelle mesmo de que os que-
ria desviar a prudência , que veio a ser prophccia ,
de um amigo ; e para onde , a despeito delia , os
chamava a fatalidade do seu destino.
A primeira novidade que ao chegarem os surprc-
hcndeii, logo foi signal de que a sua situação, ain-
da que já mui triste , ia cobrir-se de maiores ne-
grumes , e (jue cada vez mais se intrincava o laby-
riutho de suas desventuras. Acharam recado do rei
em que lhes mandava , bem diverso do Inhaca que
tão alfavcl c hospitaleiro lhes linha sido , «que se
alojassem fora da povoação , ao pé de umas arvores
I que lhes mostraram ; e que alli os proveriam do
o PANORAMA.
31i
necessário.» Junto a ella se albergaram cinco dias,
c os manliinentos , que durante elles lhes iam tra-
tendo , resgatavam por pregos. Jlas ou porque era
penoso aquellc viver de acampamento , ou por-
que o precipitava um fado irresistível , Slnnuel
do Sousa, resolvido a pousar uaquella terra até ;i
chegada do navio, foi-sc ter com o rei c pedir lhes
destinasse cabanas para se aposentarem na sua po-
voarão. O rei, que com o nome de falsa paz e ami-
sade já no animo trazia apparelliada a traição, res-
pondeu que «como na terra havia poucas provisões,
não podia estar alli junta toda aquella gente ; que
ficasse cllc na aldèa com as pessoas que escolhesse,
e todos os mais se distribuíssem pelos logares visi-
nhos , aonde os aquartelaria e forneceria de vive-
res. Sfas que para evitar a desconfiança dos natu-
raes , era preciso que se guardassem todas as ar-
mas dos portiiguezcs era uma casa , para lhes se-
rem resliluidas quando viesse o navio de Moçambi-
que.» Manuel de Sousa, que não maliciava, e uem
«equer discorria, assentiu. E propondo aos compa-
nheiros a entrega das armas que justilicou com
rasões pouco para ser atlendidas , uns convieram ,
c oppozeram-sc outros; sendo destes a de mais ob-
firmado animo , e , segundo mostrou o successo . a
mais previdente , D. Leonor , que com encarecida
instancia trabalhou por arredar o marido desse pas-
so falso. I)Í2Ía-lhe que o rei se não atrevia cora el-
les, postoqiic reduzidos a 120 homens, porque ain-
da lhes restavam cinco armas de fogo , que era o
que elle temia : que nessas eslava toda a sua espe-
rança ; e que enirega-las era a sua perdição.
Foram em vão os seus esforços: as armas entregues :
e o rei repartiu os portuguezes pelos seus Aneoses ;
que assim se chamavam os governadores das povoa-
ções. Os Aneoses assim que tiveram em seu poder
aos portuguezes desarmados , ainda antes de che-
garem aos seus dislrictos, os despiram e roubaram
sem lhes deixarem cousa nenhuma , e por cima os
maltrataram desapiedadamente com muita pincada,
e os expulsaram das aldèas. O rei, apenas os ou-
tros portuguezes se afastaram, fez a Manuel deSou-
so c aos do seu séquito, excepto a affronla de os
despir e espancar , o mesmo tratamento , e lhes to-
mou tudo o que levavam que era muito, pois se
julga que entre aqucUas poucas pessoas se acha-
ram para mais de cem mil cruzados cm pedraria c
jóias somente. Roubados mandou-os sahissera da po-
Toação. Este golpe acabou de alienar de todo a Ma-
nuel de Sousa , que com cllc ficou sem dar accor-
do de si. Mas como era forçoso obedecer á barba-
ra ordem do rei , D. Leonor se pòz a caminho. Le-
Tava o marido pela mão , e ao collo um dos filhi-
nhos , o outro levavam-no as escravas ; e mostrava
tanta resignação e paciência no meio destes traba-
lhos que era assombro a todos. Coiií'elTa iam Duarte
Fernandes, contramestre do gaIeão% -.o piloto An-
dré Vaz que nunca quiz desamparar o seu capitão,
e todos os mais que tinham ficado na aldèa do rei.
Os outros desvalejadús e espancados — em cujo nume-
ro se comprehendiara Paiilaleão de Sá , c os cnais
fidalgos e cavallciros — depois de expulsos das al-
deãs , tornarara-se a ajuntar em dilTerentcS silios,
e assim fizeram um corpo de noventa pessoas. Mas
.como iam sem armas, sem vestidos, sem dinheiro,
e sem cousa alguma com que podesseni comprar
alimentos , sem forças para arrostar com a fome , a
sede, e as fa-ligas da jornada, sem repouso de dia,
sem abrigo de noite , e sem consolação de nenhu-
ma espécie, aborrecidos da vida se foram embre-
nhando pelos matlos , errantes por desvairados ca-
minhos, comendo, onde as podiam apanhar , das
fructas bravas e das raizcs das hervas , e encom-
mendando-se a Deus como homens jogados ao dado
do infortúnio, que cada dia ficavam vJctimas da
morte por esses ermos.
Manuel de Sousa com os do seu rancho foi seguin-
do a direcção do rio Manhiça , com intento de alli
permanecer , se o rei ]h'o consentisse. Mas anlCB
de lá chegarem tornaram a accoramctte-los os ca-
fres, e isso que lhes restava, que era unicamente
o fato que traziam sobre o corpo, Ih'o roubaram,
deixando-os niis. D. Leonor, quando os cafres ten-
taram despi-la , ás bofetadas e ás dentadas como
leoa magoada se defendia , porque mais queria que
a matassem , que olhar-se desarmada do único bro-
quel que a resguardava , e vòr em si profanados os
myslerios da bclleza , e os segredos do pudor. Ma-
nuel de Sousa , ao vc-la nnquellc niiscro estado , c
os filhinhos chorando no chão, parece que da pró-
pria intensidade da pena e dor recobrou o entendi-
mento [como acontece á alampada moribunda lan-
çar mais brilhante clarão no momento de extinguir-
se]. Chegou-se-a ella, tomou-a nos braços, e com
palavras de religião e brandura a exhortou a que
SC deixasse despir para a não matarem. Deixou-sc
despir , e vendo-se com,pletaniente nua , scntou-se
no chão , desatou e espalhou- a trança de seus com-
pridos e mui formosos ca'|!iellus , com o rosto todo
inclinado porque a podessòra cobrip ; rodcou-se das
suas escravas ; e com as mãos fez uma cova na aréa
onde se escondeu até a cintura , sem mais se que-
rer apartar daquelle logar que agora considerava
o seu ultimo refugio". Os homens da comitiva, \cn-
do-a naquellá postura , foram-se afastando de ma-
goa e vergonha. Percebendo ella André \'az . o pi-
loto, que virava as costas para se ir, chamou por
elle, e lhe disse: «Bem vedes, piloto, como esta-
mos, c que já não podemos passar daqui, onde pa-
rece que Deus tem ordenado que eu e meus filhos
acabemos: í-vos muito embora, tratai de salvar-
vos , e encommendai-uos a Deus; e se fordes á ín-
dia ou a Porlugol cm algum teujpo contai como
deixastes a Manuel de Sousa, a mim e a meus que-
ridos filhos!» O piloto, compungido daquelle espe-
ctáculo, voltou as costas, sem responder nada, todo
banhado cm lagrimas, e continuou seu cauiinho.
Manuel de Sousa com todos estes desaslres, e
andar com uma perna gravemente fciida de uma
azagaia, não se esqueceu da necessidade da mulher
e dos innocentinhos que estavam chorando com fo-
me : foi-se aos matlos a procurar alguma cousa pa-
ra lhes <lar , e quando voltou com algumas fructas
sylvcstres, achou já morto a um, e D. Leonor co-
mo pasmada cora os olhos postos sobre elle, e com
o outro no collo. Elle fitando a vista- na mulher , c
no filhinho sem vida, ficou assim um pequeno es-
paço sem proferir palavra ; e passado esse espaço ,
icz uma cova na arèa , e por sua mão o enterrou ,
deilando-lhe a ultima benção.
Deiiois lornou-se ao matto a buscar mais íructas
para a mulher e o outro meniuo ; mas quando veio
achou ambos fallecidos , e sinco escravas gemendo
e pranteando cm altus grilos sobre os corpos. Ven-
do aquella desventura , fez retirar dalli as escra-
vas : tcnlou-se junto da esposa . com o rosfo .'obre
uma mão , e os olhos cravados nclla : e assim se
conservou espaço de meia hora. iVessa meia hora
que revessa de paixões e de pensamentos não cor-
1 reria , como pcsadcllo de um sonho borrivel, por
312
O PANORA3IA.
\
aquelle espirito atribulado ! Ao contemplar D. Leo-
nor morta e naquelic estado, o infeliz chegou, tal-
vez, a blasphemar cm seu coração do primeiro des-
cobridor portiigucz como remota origem das suas
desgraças ; e agradeceu aos bulcões do ar e ás tor-
mentas do Cabo a vingança que tomaram do auda-
cioso mortal que primeiramente o montou. Ellc que
em todos os passos da sua vida tinha sido exem-
plar, esposo fiel, pai carinhoso, guerreiro cujo san-
gue havia vertido abundantemente pela causa do
seu Deus o a gloria do seu paiz , vendo-se agora
cm tamanho abandono duvidou da Providencia !
Desejou ter morrido nos campos de Diu , no com-
bate contra os nayres , no ataque contra Chembe.
Desejou um volcão que submergisse aquellas ter-
ras infames; que o mar sahisse do seu leito , e as
sepultasse eternamente nas suas entranhas: que do
céu se destacasse um globo incendiado que as vies-
se abrazar. Revolveu na sua idéa o tempo , tão
querido , dos seus primeiros amores , a formosura
de Leonor, as horas de felicidade que tinha passado
com ella, as caricias dos seus filhos; e o desgraça-
do não pôde chorar I Era o ultimo grau do infortú-
nio a que linha chegado aquella alma espedaçada !
Passado aquelle termo , levantou-se e começou a
fazer uma cova com a ajuda das escravas [sempre
caliado e silencioso] , e tomando a mulher nos bra-
ços , chegando o seu rosto ao delia um pouco, a
deitou na cova com o filho. E depois de a cobrir,
sentiu sede, sentiu febre, sentiu gelar-se de frio,
sentiu os tormentos da tortura , sentiu as anciãs
do afogado, sentiu as agonias do moribundo ; e mais
do que isto sentiu , porque se lembrou , com me-
moria execravel , que elle .... elle próprio acaba-
ra de ser o coveiro dos entes que mais amara no
mundo I Então com o coração a estalar-lhe , perdi-
do , cheio de horror fugiu da natureza , de si mes-
mo, dos seus pensamentos, dos seus passos, da sua
sombra ; e correndo foi buscar a morte na espessu-
ra das selvas , onde mais piedade para com elle
mostraram os tigres do que os homens ; porque ,
devorando-o , pozeram termo á sua dúr !
A. d' O. Marreca,
O COQIEIKO DAS LnDIAS.
Esta. arvore, mais curiosa ainda do que a palmei-
ra, nasce no mesmo clima. O seu tronco, que se
eleva a quarenta c sessenta pés , é Ijastante delga-
do para similhanle altura , e marcado do cicatrizes
semicirculares que deixaram as f(jlhas velhas. Este
tronco é coroado d' um cume medíocre formado por
um feixe de dez a doze folhas, nmas direitas, ou-
tras estendidas para a ilharga , e até pendentes;
estas folhas são piqnuladas , e na sua circumscri-
pção compridas de dez até quinze pés, e tem três,
ou quasi três de largo. No meio deste feixe encon-
tra-se um gomo, ou grelo direito, quasi cylindri-
co, pontudo, tenro, bom para comer, e a que cha-
mam repolho (Ic cor/uciro : usa-se pouco dclle por-
que a arvore morre logo que o colhem. D'cntre os
pcciolos das folhas sabem grandes cspathas unival-
vcs , que se abrem de lado , e dão sabida a uma
panicula ou espádice , cujos ramos são carregados
de grande numero de llores rentes , brancas-ama-
rellas ; as Hores fêmeas estão situadas para a parte
da base, c as machas para as extremidades. Ás Ho-
res fêmeas siiccedem fructos conchegados , e em
forma de cachos, que siío os cocos. listes inícios
são ovados , um pouco triangulosos ; debaixo da
casca , que c espessa e muito fibrosa , e cuja pelle
exterior é muito lisa e parda , acba-se uma noz
quasi globulosa , dura , do tamanho de um ovo de
avestruz, com pouca diflerença , marcada na sua
base com três boracos desiguaes, eque encerra uma
amêndoa de carne branca e firme como a da avel-
laã , a que ella sabe um pouco.
Esta noz é a parte mais preciosa do coqueiro ;
quando não está madura ainda, tira-se-lhe uma
grande quantidade de agua clara, odorífera, pican-
te alguma cousa, de que se faz uso no paiz, ou
para refrigerar da sede , ou para temperar os mo-
lhos : tiram-se até quatro libras de peso desta agua
das nozes maiores. Amadurecendo , o interior do
cdco toma consistência , e torna-se em uma amên-
doa , da qual , pela trituração , se lira um licor
branco como leite, e pela pressão um óleo bom pa-
ra luzes e para comer. A casca externa que envol-
ve a noz , c que , como deixámos dito é fibrosa , c
cuja filaça se chama cairo, serve para fazer cabos
e outras diflercntes cordas.
Tudo é ulil no coqueiro : os naíuraes do paiz
servem-se das suas folhas seccas , e entrelaçadas
para cobrirem as casas , fazer pára-sóes , e velas
de embarcações ; até mesmo lhes servem em logar
de papel para escreverem. Com os seus filamentos
delicados fazem bellissimas esteiras, que transpor-
tam a todas as índias. A parle da arvore donde sa-
bem os peciolos folhosos , é cercada de muitas ca-
madas de febras em forma de rede , que pódc bem
servir de coador para os líquidos.
Esta arvore admirável , alem do licor provenien-
te do seu fructo ainda tenro , dá mais um vinho ,
cujo sabor é tão agradável como refrigerante. Para
o obter , os Índios sobem ao longo dos troncos dos
coqueiros, por meio de uma escada de juncos , e
cortam a extremidade das espalhas , ou envoltórios
das flores; daqui se distila um licor branco que se
recebe com cuidado em vasos presos a cada uma
das espalhas. Tal é o vinho da palmeira , de que
se faz Ião grande uso na índia. Este vinho novo c
doce , mas vinte e quatío horas depois torna-se vi-
nagre. Distilado tira-se-lhe um licor, ou aguarden-
te, a que chamam arraca. Tira-se-lhe ainda depois
segundo sueco não espirituoso , mas que pela eva-
poração dá um assucar prelo. As espalhas deste
modo tratadas não dão fructos, porque o liquido
que devia formar o coco se atenuou. O jián da ar-
vore serve de madeira. Por este modo vemos que
nada se perde, pois que mesmo a casca da noz, ou
caroço , tem sua serventia ; como é dura e lenhosa
fazem delia differentes vasos assaz bonitos.
Por uma continuação da liberalidade da nature-
za , pródiga sempre de tudo quanto é ulil , o co-
queiro , que por si só poderia bastar para as pri-
meiras precisões do homem, fruclifica duas e Ires
vezes em cada anno.
Não devemos proferir palavra nem fazer acção al-
guma de que nos envergonhemos ou possamos arre-
I)cnder-nos : o prazer cphemero de similhantcs di-
tos e actos não compensa os desgostos que depois
sentimos, c as cxprobrações amargas da consciên-
cia que os condemna.
Querendo dar-nos muita importância , perdemos
ordinariamente a pouca de que gozávamos.
Marquez de Maricá.
93
o PANORAIMA.
313
CAST£I.LO J>^AGUII.&R.
GoxrvLO Eannes Dobinnl , rico-homciu porluguez e
da illustre família dos Agiiilares, famoso por ar-
mas, prestou bons serviços aos reis de Castclla ,
cm premio dos quaes D. Alonso o Sábio, pelos aii-
nos de l'2o8 lhe fez cessão perpetua dos estados de
Poley , villa forte e poderosa , assentada sobre as
ruínas da Ipagro dos gregos , a sete léguas de Cór-
dova para o sul , no coração da Andaluzia, e que
era defendida por uma antiga fortaleza de primiti-
va construcção romana. Do novo senhor tomou no-
me uovo o ca^tello de Poley e se ficou chamando de
Aguílar; os descendentes de Gonçalo Eannes o pos-
suíram até ser dado em 1370 a D. Gonçalo Fernan-
dez de Córdova, que fundou o castello, de que ain-
da subsistem as minas, no estado que mostra a gra-
vura precedente , feita por um desenho tirado em
1839. Foi edifício espaçoso e inexpugnável , não
menos digno de attcnção pela estructura solidissi-
ma dasobras exteriores que pela l)ella architectura.
Achámos desnecessário entrar na descripção do
castello ; mas, para que se veja que a nação visi-
nha tem padecido o mesmo contagio que por c;i tem
lavrado, não podemos ommittir algumas palavras
de um contem[)oranco , o Sr. I)om !\í. de Corte ,
que ha Ires annos escreveu que «a distribuição in-
terna do cditicio ainda se deixa conhecer, posto
que quasi apagada pela mão do tempo e o vanda-
lismo da ignorância. . . . » — que «as enormes lages
tem sido derrubadas não tanto pelo decurso dos sé-
culos , como por uma ordem barbara e anti-nacio-
nal , disposição que, sob pretexto de melhorar os
passeios das ruas da villa deu era terra com um
monumento illustre das artes , testemunha de glo-
rias , Iheatro de successos importantes , e berço de
varões eminentes.» — finalmente que «no fim do sé-
culo passado achava-se o castello de Aguilar habi-
tável , quasi intactos os seus muros , úteis as suas
torres, e digno de ser visitado: boje, graças a uma
OcTCBuo 7 — 1843.
despreoccupação mais funesta que todas as preoc-
cupações da antiga aristocracia hespanhola , é so-
mente um estéril montão de ruínas , alvo da ingra-
tidão e esquecimento da geração presente.» —
SCiClTClCIA TZ-LZI-lOà.-
Consideraçues sobre o Curso ã' Econmnia Politica do
Sr. Miguel Clicvalicr.
(Conclusão.]
\a serie de artigos até aqui publicados , perde-
mos de vista desde o segundo a Miguel Chevalier e
a sua obra : o seu nome tomámos por escudo ; o
seu livro corno pretexto e estimulo ; mas no paiz
em que nascemos pozemos o pensamento, que se é
débil pelas nossas faculdades, pelo acanhamento do
nosso espirito , pela estreiteza da área em que o
semeámos , é forte pela vehemcncía dos nossos de-
sejos. Neste bosquejo rápido e incompleto de al-
guns dos muitos melhoramentos económicos que
esta pedindo a nossa situação , filámos também á
manifestação de uma ver<lade simples, mas despre-
zada , c que de o ser se tem mallogrado , ou que-
brantado no conceito publico algumas reformas uleis :
alluJo ao isolamento de algumas medidas que se
tem tomado, aliás proveitosas; mas que pornão te-
rem sido acompanhadas de outras, ou tem parado
cm se annullarem de todo , ou fallido de resultado
solido , c verdadeiramente nacional. É que se tem
desavertido a filiação e nexo de certos expedientes
com outros, sem os quaes os primeiros dccaliem
da sua importância , ou se paralisam inteiramente
na sua faculdade creadora. Não tem havido nem
ha systema no nosso regimen económico : estrata-
gemas mesquinhos , providencias de detalhe , me-
didas incompletas, organisaçõcs mutiladas e efeme-
2." SEItlE. — Voi,. 11.
314
O PANORAMA.
ras. — a isto se reduz clle. O achaque da quadra é
esle : tomar por especifico único ao mal que expe-
rimentámos qualquer alvitre bom na essência ; mas
per si só iusufficicnte, ou inellicaz. Todos, mais ou
menos, temos enfermado desta moléstia terrivel, de
que vamos convalescendo com muito vagar. E pas-
sando revista ás leis e actos, desde a restauração
até agora , que intendem directamente cora a eco-
nomia nacional , qualquer poderá encontrar os fa-
dos que altestam esta nossa observarão , e acinte-
mente rallámos. porque farão maior força no animo
do leitor achados por elle , do que indicados por
nós.
Comtudo apesar do atrazameiito em que esta-
mos , a nossa situação é mais favorável a certos
respeitos do que a de outros estados muito mais
prósperos. A Bélgica , Ião adianlada em todos os
ramos , lucla já com esse enigma profuiido que
atormenta os paizes mais civilisados da Europa ,
apresentando naquellas de suas provindas, onde
a industria tem recebido desenvolvimento mais am-
plo e mais rápido, e a taxa dos salários é mais
elevada, msior numero de indigentes; e menor nu-
mero dclles naquella de todas a mais pobre e a
menos industriosa — o Luxemburgo ;•). Na presen
ça deste embaraço tem de tentar ensaios aventuro-
sos e caminhos desconhecidos para sahir delle : cm
quanto nós temos a cursar uma derrota industrial
sabida e experiment.ida — a mesma que andaram
outros para checar ao ponto em que se acham. O
nosso noviciiido ó menos diflicil , ajudado das ex-
periências e trabalhos de alheios povos. Aproveitá-
mos dos seus successos , e até dos seus revezes.
Se esta c pois a nossa vantagem sidire outros pai-
zes, que elles se vêem obrigailiis a lançar-se n'uma
carreira desconhecida , e nós n'unia que o não é ,
entremos com afoitez nesse campo que está limpo e
aberto diante de nós ; emulemos nobremente, imi-
lando-a cm seus esforços , a Bélgica , envergonha-
dos de que sendo o seu território metade ou (louco
mais do continente porlugucz, a sua população ex-
ceda á nossa de Europa quasi lí , e a sua indus-
tria e civilisação nos levem uma superioridade in-
commcnsuravel em todos os géneros.
Nós pretendemos que á divisão da propriedade
se acrescentem trans[iortes fáceis — que a produc-
oão se fomente no sou propi io endirjão por cafii-
taes baratos — que os capilacs b.iralcem pelo modo
que o podem ser , que é a concentração e o movi-
mento conimercial ao mesmo tempo , dos grandes e
dos pequenos , dos metalllcos e dos que o não são
— que o credito se promova danilo garantias aos que
emprcsiam ; eque as gararjtias se consolidem cudili-
cando e regenerando onde convenha a nossa legislação
cahotica ; administrando jusl iça mais expedita e im-
parcial do que está sendo ; tirando assim á proprie-
dade a incerteza que a deprecia , e que conlribue
tanto para a taxa exorbitante dos juros. Pretende-
mos que as forças sociaes que ainda estão solitárias
scaggreguem — que as forças naturaes, ainda dcsprc-
sadas, se ulilisem — que a cominunidadc indus-
trial siga a gradação civilisadora e histórica do mo-
nachismo, passando do ercmilciio para o remíbio.
Por este pensamento creador , por este principio da
associação é que despjànjos se abra o santuário da
natureza aos engenhos privilegiados ; se proporcio-
ne ás iuvcnçócs mechanicas uma área experimental
nos estabelí-cimentos fabris; se franqueie mediante
(•) llciisrliliiiij , Essai siir la ■'^liitiíliquc r/cntrulc de
!a B<:l3iquc pug. 6a — Uruxeilas, 18311.
estes uma vasta esfera á actividade individual ; e
se teça um laço de fraternidade e commercio entre
o campo e as villas.
Desejámos commercio externo pela causa donde
elle deriva todo ; pelo fim social a que se dirige ;
pelos resultados salutares que offerece. E — se é
licito misturar com as económicas considerações de
differente ordem — queremo-lo como sombra saudo-
sa da nossa antiga grandeza, como rcDexo — em-
bora pallido — como imagem, como monumento —
endtora mesquinho — do nosso passado. Queremo-
lo. .Mas sem possuir próprios os meins de conduc-
ção que approximam as distancias, e até apagam as
separações que desunem os povos, fora aquella cco-
noinii paupcrtina , como Leibuitz chamava á philo-
sophia de Locke — mascara mais que irónica e pa-
rodia degradante do nome honrado de nossos avós ,
os vaverjadoí CS .'
Desejámos ter colónias sem embargo da conta
que sobre a receita que ellas nos rendem calcu-
la cm mais uns oitenta e tantos contos e não sei
que réis o excesso da despeza que nos causam.
Calculo que se delle havemos de concluir que a
metrópole deve abrir mão dos domínios do nltra-
n)ar por esle simples deficit, nesse caso — já — po-
nhamos em almoeda o reino de Portugal , porque
mostra — proprietário arruinado! — uma lacuna an-
nual de 2:000 contos no seu rendimento. Lógica
verdadeiramei le paiípcrtina e mais que a do pbilo-
sopho inglez seria essa , saldando somente a perda
do thcsouro ou do estado com aquelles domínios,
som metler em conta os ganhos do commercio par-
lioular que fazem com ellos os cidadãos da metró-
pole. Lógica do desalento, balda de esperança e
de fé que resiste a acreditar no lucro liquido que
poderia tirar a metrópole dos mesmos domínios, se
fossem melhor administrados ! [E passo a esponja
do esquecimento sobre a historia e a polilica que
lautas advertências — cálculos de oulra arithmtli-
ca — nos tem escriptas no pergaminho secular de
nossas conquistas].
Se eu deploro a perda da nossa preponderância
cíimniercial — se tenho sauilades da nossa supre-
macia niaritima , e da nossa gloria p.issnda , não
é que desejo que voltando sobre o camitiho que le-
mos andado retrogrademos até esses lempos. Eu
bem sei que as nossas casas, e até as nossas leis,
que as nossas villas c cidades, as nossas ruas e
praças, os nossos vestidos e alimentos, e até os
nossos costumes são melhores hoje que os de nos-
sos avós : blasphemia como soará a alguns ouvidos,
a historia ahi está que nos presta testemunho de
verdade. Outros chorem , que eu não , os palácios
de nossos primeiros reis cobertos de colmo e gies-
ta ; as devassidões do nosso claustro ; a crueza e bar-
baridade do nosso povo; o espirito frugal do monar-
clia que taxava os pratos e os guisados que se ha-
viam de servir á meza dos particulares; a rudeza
dos homens analphabetos de nossas classes, ele-
vadas e ínfimas ; o Irajo e armadura eslravagan-
te dos nossos soldados , a barbuda com seu cama-
Iho e estofa , a cola , o jaque , o coxeie , as cane-
leiras , o esloraque , a daga , c grave : as fomes
e [icslcs que tão amiudadas nos visitavam em ou-
tras eras não as envejo para nós : as procissões es-
pantosas das victímas adornadas com sninarra c cu-
idclia não as appeteço eu. Em civilisação somos
superiores a nossos antepassados: elles levavam
vantagem aos homens do seu tempo em náutica, em
commercio , e no génio das cmprezas : mas nós
o PANORA31A.
315
estamos muito aqucm dos nossos contemporâneos
nestes e em muitos outros pontos. E\ccdoin-nos os
nossos maiores em serem os primeiros d.i íiia epo-
cha ; em irmus , sold.idus relard.it.irios , na reta-
guarda da nossa. O nosso poder social é mais hu-
mano e menos despótico do que era ; mas menos
hábil , menos cnlcndeiior do seu seiíilo do que o
foi n'oulros. Grande desgraça, grande sobretudo
para as nações pequenas, que nessas as forças in-
dividuaes são delíeis para emendar a deficiência e
desacertos da força publica ; em quanto nas n.ições
poderosas, a intelligcncia do governo , se está in-
ferior d do povo, é supplantada por ella , como foi
na França , em 89.
Os povos [lensam , trabalham, e produzem por
íi , porque se compõem em grande parte de adul-
tos. Os governos protegem o pensamento , o traba-
lho , e a producç.io individual , moderando os cou-
fliclos do interesse c direito particular de uns com
o de outros, ou com a sociedade. E por isso go-
vernos patcinaes são hoje disparate e anachrouismo
que corresponde a povos meninos ■ e governos autó-
matos o mesmo significam que povos sem direc-
ção. A tuteila absoluta funda-se na theoria que
os homens são rebanhos : a anarcbia económica no
principio que são perfeitos. .\. primeira doaria o
exclusivo da agricnilura , das artes fabris , dos
capitães , das pro[)riedades ao governos. A nnllida-
de económica roubar-lhe-hia a acção benéfica que
elle pôde exercer como administrador de grandes
rendas, possuidor temporário de grandes fundos ,
apreciador mais exacto , pela sua posição , das
necessidades e recursos do (laiz. O pautado dos re-
gulamentos, e o licencioso do systema opposto são am-
bos elles funestissimos. L'm esterilisa tudo. O outro
não deixa organisar nada. .\ verdadeira economia po-
litica reina entre estes dois excessos , exlrema-se
destas duas idcas absolutas, que pelo serem se con-
vertem em erros, que por serem erros se transfor-
mam cm males sociaes. Os estados pereceriam, re-
gidos absolutamente por uma destas idcas. Os go-
vernos nunca adoptaram exclusivamente a nenhu-
ma delias: iiiclinaram-se mais ou menos a uma ou
a oulra : nmas vezes deixaram de ser fabricantes ,
abandonando esse mister á actividade dos particu-
lares que o desempenha melhor: outras construí-
ram estradas, tomando a iniciativa era emprczas
dispendiosas mas uleis a que não bastavam os re-
cursos individuaes , ou desconcorridas pela mania
do isolamento, pelos prejuízos, e pelos receios.
Ao passo que o espirito de associação se for pro-
pagando ; que este sestro de solipsismo se fõr des-
terrando ; que este temer e desconfiar de tudo co-
mo Pygmalião ; que este horror a despegar-se do
numerário para que gire em operações ()roductivas
fôr desvanecendo, a necessidade daquelle auxilio do
estado de que não podem prescindir algumas em-
prezas publicas , e da iniciativa que a auctoridade
toma em certos trabalhos industriaes , irá dimi-
nuindo.
Tem diminuído já , e sensivelmente. Iloje reu-
nem-se homens e capitães particulares para crear
estabelecimentos fabris; apparece á luz o numerá-
rio enthesourado ou escondido , e com clle se dá
vida a muitos valores, braços, c instrumentos até
agora inertes. >"o serulo passado fundavam-se fa-
bricas — fundaram-se quasi todas — de emprésti-
mos do thcsouro , de adiantamentos , de materiaes ,
de instrumentos facultados pelo estado aos empreza-
rios. Então licenciava-as a junta do coramercio ,
escravisava-as o syslcma dos rcgulamenlos , emba-
raçava-as cm suas malhas complicadas a rede dos
privilégios. Hoje deu-lhes carta de alforria , dcu-
Ihes furos de cidade o novo systema ; e solla , co-
mo a ave no espaço, pôde caminhar a industria.
Passo immenso : vicloria da liberdade : milagre
<ia associação. A liberdade disse ao homeiíi : — soi»
proprietário do vosso braço , escolhei ollicio : tra-
balhai.— E disse ao pensamento: — discorrei: in-
ventai : auxiliai as furças da creatura com as da
natureza: apparelhai as machinas. — A associação
temperou, corrigiu, modificou as propensões antago-
nistas do individuo, arrancou o solitário ao medi-
tar selvático do egoísmo, o homem livre ás paixões
da pessoalidade tão destruidoras, se desenfreadas;
e das faculdades débeis dos seres isolados compõz
a potencia invencível da communidade. Pela pri-
meira não ha desherdados : todos podem dispor da
inlellígcncia e da força própria, que bens são indis-
putáveis. Pela segunda não ha fracos, porque to-
dos cstão unidos : não ha oppiimidos, porque a re-
sislenciu e a defeza são mutuas : não ha indigentes,
porque o soccorro é reciproco : não ha tyraunos ,
que não possam ser esmagados: não ha obstáculos
á felicidade geral , que não possam ser vencidos.
E cora o auxilio de ambas caminha o carro triíim-
phal d.is nações, caminha e nada o pode deter. Vai
rolando nos campos da liberdade, e nos da indus-
tria também. Por aquelle movimento succcssivo .
por aquella lei providencial do progresso tem a pe-
nínsula de provar-se nesta lide de innovações polí-
ticas, e melhoramentos materiaes abençoados de
outros paízes. E se um momento as conlradicções
dos homens nos suspenderem a marcha , passará
rápido esse momento. Ilabilàmos com outros esta-
dos esta vasta região , que pelo aspecto accidenta-
do do seu território, e delineamento dos rios e ma-
res que a banham, symbolo da variedade, está
predestinando á vida activa, móbil, e aventurosa
as gerações que nella se agrupam e succcdem. E
não é possível que convivendo no collegio das na-
ções civilisadas, em contado com cilas pelo ocea-
no e pela terra , nos não seja comnuinícada uma
porção, ainda que fraca, do grande impulso que
as agita , uma centelha da chamma que as aquece.
Situados na orbita deste systema social , participa-
remos , posloque humilde satellite , de uma partí-
cula da energia que vivifica a outros estados. Pela
própria gradação do nosso desenvolvimento interno,
tendo já pago escote avultado aos exercícios raystí-
cos e contemplativos de outras eras, agora toca-nos
cuidar do viver externo e do trabalho industrial
que pertence á nossa. Cuidaremos : e da decompo-
sião profunda , do vício fundamental que achaca a
sociedade ingleza talvez venhamos a aproveitar. Fu-
gindo á eiva maléfica que os accometle na terra
natal, os seus capitães e os seus industriosos virão
— não o creio impossível — acoitar-se a esta Pe-
nínsula , fertilisar este solo que regracía com tanta
magnificência as fadigas do homem , auxiliar este
povo que tanto tem cooperado no adiantamento de
todos os outros.
* •
Quando no meu art.° 4.° expuz o modo de fazer
circular os capitães não pecuniários, não foi minha
intenção occultar que o banco de Lisboa empres-
tando , como todos sabem, sobre os géneros depo-
sitados na .\lfandcga desta capital , de feito contri-
buía— nessa parle ao menos — para a circulação
316
O PANORAMA.
(ios mesmos capitães. Mas como similhanfe pratica
nem se estendia a outros pontos conimerciaes do
reino, nem a outras mudanças, e siliiarries, aliás
mui variadas, porque passam as mercadorias, an-
tes de chegar ao consumidor, propuz que ampliasse
fe atú me sorvi desta palavra] o cxpedionle que al-
li apontei, que não é cuulrario, antes muito aná-
logo á rcferrda pratica.
A. d' O. SIarrcca.
BUSTO D£ NEW^TON.
Com suas leis a vasta natureza
Immersa cm sombras liigiibres jazia ;
Surie , ó Newton — bradava a voz do Elerno :
Nasceu Newton ao miin-lo, e nasce o dia.
i».« Macedo. Neislon. Canto 3.°
IstAC Newto.n , descendente de uma antiga e honra-
da familia do condado de Lincoln, nasceu no dia
de Matai de i(i't'2 , anno em que morreu o tão fa-
moso quanto perseguido Galileu ; como se a Provi-
dencia tivesse disposto que a f.illa de um fosse logo
substituida por outro investigador profundo das leis
e arcanos da natureza. Nasceu orphão de pai , que
havia pouco falicccra ; e passando sua niãi a segun-
das núpcias foi mr.ndado educar na escliola dcGran-
tham, onde principiou a desenvolver, na tenra ida-
de de 12 annos , a natural propensão para a feitu-
ra de machinismos , c o gosto !)cla sciencia de cal-
cular e pela arlc do desenho. I'or morte de seu pa-
drasto voltou para casa a ajudar sua mãi no trafe-
go e administrarão do casal e lavoura, mas o amor
aos livros c d meditação lhe fazia esquecer os inte-
resses da fazenda : quando ia ao mercado gastava
horas inteiras no caminho, ás vezes a examinar uma
azenha ou moinho , ou (]ualquer construceão simi-
Ihante. Não podendo vcnccr-llic a inclinarão, man-
daram-no estudar a Camliridge ; c o que parecia
por condirão destinado á vida de lavrador ohscuro
veio a ser celebre entre os maiores philosophos , e
a ufania da sua pátria: começou pela Geometria de
Euclides , mas achando a sua penetração demasia-
do fáceis as proposições deste livro passou breve-
mente á Analyse de Descartes e á Óptica de Ke-
plcr, fazendo addilamentos aos auctores, e observa-
ções , que escrevia á margem. Dentro cm pouco
tempo chegou a noticia favorável de seu engenho e
applicação ao Dr. Barrow, então dos primeiros ma-
thcmaticos inglezes , o qual se dcci.irou constante
patrono e amigo do mancebo estudante.
De it)G4 a Go , estando já baciíarel formado, oc-
cupou-se por uma parle em especulações e expe-
riências sobre a natureza da luz e das cores, e por
outra a preparar o caminho para o seu novo me-
thodo de íluxões c series infinitas. Dahi a pouco,
vindo o contagio assolar Cambridge , teve de reti-
rar-se ao campo ; e foi por esse periodo que lançou
os fundamentos ao systema universal de gravitação,
cuja primeira idéa- [segundo uma anecdota mui vul-
gar] lhe fiira suscitada vendo cahir um pomo da
arvore: dizem que um raciocínio immediato o in-
duzira a concluir que a mesma força manifestada
na queda da maçaã , poderia ser applicavcl á lua,
e que reteria esta em sua orbita. Depois estendeu
cllo á s\ia doutrina a todos os corpos e a demons-
trou por modo evidente , confirmando as leis , que
Kepler descobrira , por uma laboriosa serie d'ob-
scrvaçõcs c raciocínios. Não só todos os ramos da
natural philosophia receberam de tamanho impulso
grandes melhoramentos , mas até se fez uma nova
sciencia nas mãos de Newton : o systema de gravi-
tação confirmou , como dissemos , os descobrimen-
tos de Kepler , explicou as leis immutaveis da na-
tureza , converteu o systema de Copérnico de hypo-
these provável era plena e demonstrada verdade , e
eITectivamente desfez os vórtices ou turbilhões de
Descartes, e todos os improváveis epicyclos e gros-
seiro apparato com que os antigos e alguns moder-
nos entulharam o universo. — .Se Newton tivera no-
ticia dos escriptos dos nossos sábios António Luiz
e Pedro Nunes , que anteviram alguns daquelles
descobrimentos , por certo que , dotado como era
de modéstia e animo recto, faria delles menção di-
gna em suas obras.
Os ^ Princípios nuitlicmaticns da pliilosophia na-
tural , livro magistral de Newton , contém um sys-
tema philosophico inteiramente novo , edificado so-
bre as bases solidas da experiência e observação,
e demonstrado pela mais sublime geometria : os
tratados sobre a Óptica deram a nova theoria da
luz e das cores.
Em 1687, Newton assignalou-se como slrênuo
defensor dos privilégios da Universidade de Cambri-
dge , onde leccionava as matbematicas : em 1683
foi eleito meml)ro da camará dos communs : era já
então o seu extraordinário mérito bem e geralmen-
te reconhecido. No ministério de lord Ilalifax foi
nomeado conservador da Casa da Moeda, cargo qu«
desempenhou com serviços importantes para a na-
ção : Ires annos depois o promoveram ao logar mais
superior da mesma repartição , no qual se conser-
vou até o seu fallecimento. Feito era 1703 presi-
dente da Sociedade real , resignou inteiramente a
propriedade da cadeira em Cambridge , onde havia
tempos pozcra serventuário.
O seu tratado sobre refracçõcs , reflexões , infic-
xões c cores da luz , que tem passado por muitas
edições, c tem sido traduzido em varias linguas ,
fui publicado a vez primeira cm 170Í. No anno se-
guinte a rainha Anna o elevou á ordem de caval-
leiro. Era 1707 appareccu com a Arithmctica L'ui-
o PANORAMA.
317
versai. Muitas são as suas obras, e todas [córao se
usa dizer; de vigoroso pulso : a melhor edioão é a
do Dr. Horsley com precioso commentario , dada á
luz cm 1784 em o vol. in í."
O habitual temperamento , e a equanimidade de
que , também por conipleirão , era dotado esto ho-
mem insigne , contribuíram para a conservarão da
sua saúde, e gozo de suas faculdades até mui avan-
çada velhice : a final accoramcUeu-o uma doença
da bexiga, que lhe motivou graves padecimentos,
e de que morreu a 20 de março de 1726 , contan-
do 8Í- annos. Foi sepultado na abbadia de NVcst-
minsler , onde lhe erigiram monumento com inscri-
pção latina : a sua estatua , obra de Ronbiliac , foi
collocada no collegio da Trindade em Cambridge ,
de que fora membro. Acha-se o desenho desta es-
tatua em o nosso volume 4.°
AbCIIEOLOGIA POETCCrEZA.
VIII.
1578
Asptcto de Lisboa ao ajuntar-se e partir a armada
pata ajuntada d'Àlcaccr-Quibir.
Apesar de os historiadores do infeliz D. Sebastião
haverem aproveitado muitas memorias coetâneas pa-
ra tecerem as suas narrativas, esta de que hoje da-
mos um extracto lhes foi desconhecida. E todavia
ella appreseuta o quadro mais miúdo e talvez mais
completo da grandeza e importância daquella des-
graçada expedição , em que as riquezas , os sacri-
Ccios de todo o género, e as violências inauditas
de que todo o paiz foi theatro não poderam reme-
diar a decadência do antigo esforço portuguez, nem
restaurar a energia indou.avel dos séculos anterio-
res , corrompida pela morte da liberdade munici-
pal e da independência aristocrática, annuladas por
D. João 2." e por D. Manuel. — Do estylo, do mo-
do por que a relação dos successos se appreseuta ,
do ponto era que ella termina , e dos signaes pa-
leographicos do manuscripto se deduz que esta me-
moria, pertencente á Bibliotheca Real, foi escripta
por um contemporâneo e testemunha ocular dos
aprestos da armada. A valia , pois que tem para o
estudo de uma das epochas capitães da historia pa-
■«tria, nos fez escolher alguns extractos delia para
formarem parte da serie de noticias mais curiosas
e recônditas sobre as nossas cousas, que ha muito
começámos a publicar neste jornal sob o titulo de
Archeologia Portugueza.
*
Estava a cidade de Lisboa cm todas as cousas
mui differente do que era, porque a gente que nel-
la havia não se lhe dava numero, nem havia ho-
mem que passeasse, nem audasse de vagar, assim
naturacs como estrangeiros , porque todos se nego-
ceavam para a jornada de Africa , onde eirci que-
ria passar, e mostrava se em todos tanto alvoroço
que pareciam que iam a folgar ou a ver umas gran-
des festas.
Havia muita gente estrangeira afora os tudescos,
que clrei mandara vir e que estavam em Cascaes
alojados, afora 600 soldados, os quaes indo para
a Rochella por mandado do papa em soccorro dos
catholicos Contra os herejcs , vieram a Lisboa to-
mar refresco , e pedir embarcação a S. A. , a qual
lhes não pôde dar , por ter necessidade de todos os
navios para esta viagem, antes disse ao capitiío des-
ta gente , que era o duque Leuister de Irlanda ,
que o quizessc acompanhar nesta jornada , o que
para isso mandaria pedir licença a S. Santidade ,
para o qual o duque lhe deu do praso 40 dias pa-
ra dentro delles vir a resposta, a qual não veio até
a partida d'clrci ; mas emfim os foz embarcar e
levou comsigo. Era gente muito lustrosa, c solda-
dos velhos exercitados.
Havia em Lisboa muita gente estrangeira , assim
castelhanos como de outras nações , que vieram pa-
ra irem nesta jornada por aventureiros , gente hon-
rada e muito lustrosa, que vieram soi>ir clrei á
sua custa e sem partido. E assim acudiram muitos
olliciaes de instrumentos militares; porque mandou
eirei declarar por Itália , Castclla , c .\lemanha ,
que todo homem que cm sua terra tivesse officio de
guerra e quizesse acompanhar nesta jornada lhe fa-
ria partidos avantajados.
Eirei Filippe em Castclla mandou apregoar que
todo o homem que passasse com seu sobrinho nes-
ta jornada , lhe levaria em conta todo o tempo que
servisse , como se acompanhara sua própria pes-
soa.
Fez eirei quatro coronéis — se. Diogo Lopes de
Sequeira do terço de Lisboa e seu termo , D. Mi-
guel de Xoronba do de Santarém , Vasco da Sil-
veira do de Alemtcjo , Francisco de Távora do ter-
ço do Algarve. Xão fez coronel d'Eutre Douro e
Minho, nem da Beira, porque a gente que de lá
Vier se hade repartir por estes coronéis.
Estes despediu eirei a 20 dias de maio , para
que cada um fosse fazer sua gente e pagasse logo
a todos , e começassí a paga a correr desde o dia
que cada um partisse da sua terra. A gente de Lis-
boa e a dos terços de Santarém e do Alemlejo veio
embarcar aqui em Lisboa ; a outra se embarcou
em os portos mais chegados : e para esta gente se
embarcar mandou eirei vir aqui de Setuval 60 ur-
cas que estavam d carga do sal. Todas estas entra-
ram era Lisboa em um dia , e ficaram lá em Setu-
val outras 70 urcas , que clrei mandou bi carregar
de cousas necessárias. Vai por general de toda a
armada D. Diogo de Sousa , governador que foi do
reino do Algarve.
Era eIrci tão cioso ou curioso da negociação des-
ta jornada , que de ninguém a fiava nas cousas ne-
cessárias senão de si mesmo. E foi por vezes visto
em pessoa mandar carregar e negociar os seus ga-
leões ; e tão occupado que pela sesta se viu ura dia
no cacs sem chapéu, mandar arrumar em um gal-
leão umas poucas d'armas ; e era a sésla ardentís-
sima.
É infinito querer contar do aparelho das cousas
de guerra , que eirei mandou embarcar : de arle-
Iharia muila, e muito grossa, uma de campo e ou-
tra de bater , e outra para o mar , toda de bronze ,
infinitos corpos d'armas , piques, arcabuzes, pe-
louros, ceirões, carretas, enxadas, alviões, barras,
pólvora, marrões, e morrões; e para isto leva\a mui-
tos gastadores , que diziam que eram 4:000 : leva-
va muitas azemolas , bois , carros , e todo o mais
destas cousas : levava mais para os gastadores um
galleão cbeio de çapatos de malhóo.
Chegou a Lisboa o duque de Bragança no fim de
maio com sua gente escolhida , vestida de amarel-
lo , e guarnecida de vermelho : outra alguma de
seu serviço vinha de vermelho fino , com calças e
gibões da meíma còr. Leva muila gente, e a mais
delia mandou embarcar em Setuval , onde linha
318
O PANORA3IA.
para isto, e para sua inatalolagem e cavallos, vinte
e sele urcas apcnadas por mandado d'clrci. — O
duque veio pela posla , e ao outro dia adoeceu , e
esteve mnilo mal ; e quiiido viu que não podia ir
por sua indisposição, mandou vir de Villa-viçosa o
filho mais velho, para em seu logar ir com eirei.
?íão lh'o quiz a duqueza mandar , e mandou-lhe o
filho segundo , que lhe elle logo tornou a mandar ,
6 que em todas as maneiras lhe mandasse o filho
mais velho, o qual veio, c partiu de Lishoa apoz
elrei era uma nau veneziana, tão grande como uma
da Índia, muito bem concertada com muita artilha-
ria grossa , com muitos estandartes , e padezcs ; e
foi por Setuhal para levar comsigo a sua gente que
lá eslava emharcada.
Ao 1.° de junho mandou elrei lançar hando que
iodas as companhias fossem receber soldo , e que
todo homem assi natural como estrangeiro que re-
cebesse ou tivesse recebido soldo, c não passasse
á Africa , que morresse.
Foi elrei por vezes ao campo ver os esquadrões
e os capitães como o faziam, e cllc mesmo andava
nas resenhas e entre o pó e fumo da arcabuzaria ,
muito alegre e contente. E é de notar o fervor com
que negociou estas cousas: e depois que se isto co-
meçou a apparelhar lhe era pesada toda a practica,
que não lrala\a de guerra , ou do apparelho delia.
Neste meio tempo houve algumas brigas mui tra-
■vadas , e algumas de bandos, como foi uma dos
portuguezes c tudescos na praia da Boa-visla , sen-
do mais de 200 tudescos e outros tantos portugue-
zes , que durou por muitas horas, sem os poderem
apartar nem apasiguar ; e não morreu mais de um
tudesco, e houve muitos feridos de uma parte e
outra , e nasceu esta briga de dois portuguezes
quererem obrigar a dois tudescos que pagassem a
uma taberneira o que lhe comeram , que lho não
queriam pagar. Outra briga houve de portuguezes
contra castelhanos, porque três portuguezes incon-
sideradamente arrancaram contra um esquadrão de
castelhanos, e succcdeu-lhcs bem, que em pouco
se juntaram 40 ou 50 portuguezes que brigaram
Talorosanicnte , onde mataram quatro castelhanos e
feriram mais de vinte: dos portuguezes não mata-
ram nenhum, mas licaram alguns feridos. Esta bri-
ga se fez no Rocio, á porta do hospital d'elrei , c
arraou-se de estes Ires portuguezes chamarem la-
drões a seis ou sele castelhanos dos daquella com-
panhia , porque estando um mouro de Cide Mura
com Ires moedas d'ouro de 500 réis na mão, lhe
disseram estes sete castelhanos se as queria trocar,
que lhe dariam de ganho 40 réis por cada uma :
acceitou o mouro, e podiram-lhe os castelhanos as
moedas para vèr se eram de peso, e mostrando-lhes
as três, as passaram de mão em mão uns pelos ou-
tros de maneira que desapparcceram ; c o mouro
(\ediu ajuda a estes Ires portuguezes e emenda da
zombaria que lhe fizeram , e que lhe tornassem o
seu dinheiro. Vendo elrei que estes negócios iam
para mal , e que cada dia havia brigas , mandou
lançar bando que lodo homem assim natural como
estrangeiro, que na còrle arrancasse esjiada , mor-
resse por isso, c assim se atalharam as brigas.
Mas depois que elrei se partiu houve uma só,
que foi a gente do duque de Bragança com uma
companhia de castelhanos que ficou em Lisboa pa-
ra receber soldo; e tanto qnc a briga se começou
" o capitão dos castelhanos recolheu sua gente o me-
lhor que pòdc nas varandas dos paços da ribeira ,
e a briga começou-se á porta domar junto ás casas
de Affonso d'Alboqiierque. Ajuntaram-se da gente
do duque mais de 200 homens, e o fizeram como
muito soberbos e pouco esforçados ; porque sahindo
o capitão dos castelhanos com uma bandeira de paz,
e pondo-se de joelhos diante delles, dizendo que
por amor de Deus o matassem a elle e deixassem
os seus soldados ; que olhassem que eram irmãos
dos portuguezes, e vinham a servir elrei de Por-
tugal; elles sem deferirem a isto, iam seguindo
sua fúria, e vendo algum castelhano ás janellas ou
varandas lhe tiravam ás arcabuzadas , e ao mesmo
capitão que lhes pedia paz lhe tiravam muitos gol-
pes e pedradas, que foi milagre não o matarem ou
ferirem. Fez este capitão maravilhas c deu mostras
de muito esforçado; e porque já alguns do duque
haviam lido os dias atraz brigas com alguns da sua
companhia , e era em rixa velha , foi esle capitão
ao duque pedir-lhe amnestasse a sua gente não lhe
quizesse malar seus soldados , e como já o duque
estav.i informado das finezas que este capitão fize-
ra , lhe agradeceu muito e lhe mandou dar um ca-
vallo e duzentos cruzados , e um chapéu seu , que
tinha, para levar, porque o capitão ia sem elle, que
o perdera na briga.
E pela cidade se começou a alevantar um rumor
que seria bom prenderem ao mesmo duque; que
não era possível que elle não mandasse á sua gen-
te fizessem bandos e as taes brigas, sendo elrei au-
sente , e que sempre a casa de Bragança fora aves-
sa ás cousas do rei. Não faltou quem avisasse ao
duque disto , o qual mandou chamar toda a justi-
ça , e lhes pediu com muita instancia , que todo
seu creado prendessem e julgassem no mesmo ins-
lantc , e que se conheciam alguns dos outros da
briga passada os prendessem logo , e se julgassem
como a elrei e a suas justiças parecesse. Conhece-
ram doze dos que começaram a briga ; prenderam-
nos : todos os mais fez logo o duque embarcar, e
partiram com o duque novo. Afora estas brigas Io-
das , amanheciam muitos homens mortos das bri-
gas de noite.
Aos oito dias de junho mandou elrei lançar ban-
do que todos se aviassem, porque elle se embarca-
va a 14 do mesmo mez , que foi um sabbado ; e
tão firmemente, que pcrguntando-lhe Christovão de
Távora se havia de passar alguns dias depois dos
qualorze, lhe tornou: — que bem se podia o céu
ajuntar com a terra , sem haver falta no que tinha»'
mandado apregoar.
Neste sabbado 14 de jimho foi elrei, dos paços
da ribeira á sé, a buscar a bandeira real. Tanloque
amanheceu começaram a correr os fidalgos para o
acompanharem : e parece que á porfia trabalharam
para ir cada um mais galante ecustoso: cousa que
espantou muito as gentes, ver como todos iam rica-
mente vestidos ; porque se a matéria dos vestidos
era rica , a obra , feitios e invenções de mais rica
sobejava; porque tudo era brocado, tela de ouro e
prata , tecidos d'ouro e praia , tecidos de seda mui
custosos. Os veludos, damascos, c todas as mais
sedas perderam sua valia, e se alguma tinham era
pelos muitos passamanes , rendilhas, espiguilhas,
lorchados e alamares de ouro que lhe punham. Mas
tudo isto era de pouco gasto em comparação dos
feitios, que estes destruíram os homens.
Alem disto foi espanto ver a muita pedraria que
neste dia sahiu : os botões d'ouro , as tranças dos
chapéus cheias de rubis, diamantes, c esmeraldas
de preço infinito , cntrcsacbadas a compasso umas
com as outras; os camafeus, medalhas e estampas
o PAIXORAMA.
319
de feitio singular ; as cadeias d'oiiro grossíssimas
aos pescoros, de dez e doze vollas ; as coiiras l)or-
ladas d'oiiro cora botões d'ouro, cristal, pérolas c
demais pedraria ; os gibões e coletes sobre lelilha
d'ouro com iuvenrão de corte , pique , presponte
maravilhoso; os capotes de damasco , setim , olia-
inalote de seda , bandados com barras de veludo e
torçaes d'ouro.
Os arreios dos cavallos eram cousa de admira-
rão ; porque todos os fidalgos levavam em seus ca-
vallos cabeçadas e esporas de praia, esmaltadas de
ouro e azul ; as estribeiras com mil figuras e ma-
neiras de bichos abertos nellas, obrados por singu-
lar arte; as uominas, pcitoraes , cigolas e cordões
com muitas borlas d'ouro e torçaes ; as muchillas
com os jaezes c cuhertas quando menos eram de
veludo com mil franjas de ouro c prata, c os man-
dís de veludo.
Neui era menos ver como os fidalgos vestiram to-
dos a sua gente , uns de gran , outros de raxa de
mescla o tamete, isto assim a escudeiros o piígeiís
como a lacaios e escravos, cada um de sua lihréa
de suas cores, e algims os vestiram calças c gibões
de seda da cor de sua libréa , com meias de agu-
lha de seda.
Emíim foram os fidalgos esperar a eirei á sala ,
e dahi desceram com elle até cavalgar. Eslava a
este tempo o terreiro do paço , que é ura espaço
grande, muito cheio de gente, que não havia po-
der andar, e alem disso era para ver estar as li-
brcas de dez cm dez homens, pegados nos cavallos
de seus senhores, de cores diflerenles todos, com
muitas |)lumas de diversas cores nos chapéus, com
cendaes aos pescoços com borlas d'ouro e seda ,
que faziam um campoesmallado de diversas boninas.
Finalmente passando eIrei pela varanda , junto
da escada por onde havia de descer a cavalgar,
olhou para todo ,o espaço da gente , e conhecida-
mente se lhe enxergou no rosto o contentamento de
▼er tanta gente , tiio lustrosa e tão alvoroçada ; e
cavalgando , foi passando pelos fidalgos pondo os
olhos em cada um com uma alegria e benignidade
desacostumada. Desta maneira foi acompanhado até
a sé , onde, depois de ouvir missa, se benzeu com
muita solemnidade a bandeira, na qual estavam de
uma parte postas as armas rcacs , e da outra um
crucifixo, com eIrei D. Sebastião tirado pelo natural.
Já que tudo era acabado , elrei com os joelhos
no chão e os olhos arrazados d'agua esteve um pe-
daço diante do Santíssimo Sacramento rezando. Aca-
bando a oração entregou a bandeira a D. Luiz de
Menezes alferes-mór , que cuhcrto a levou diante;
e assim acompanhado até o cães da rainha, se em-
barcou na galé real , cuja obra é estranha , porque
só na popa , onde elrei vai , se affirma que se gas-
taram mais de oito mil cruzados, porque é da mais
estranha e singular invenção que se viu. Toda era
cozida em ouro, com muitas historias aberías no mes-
mo páu , com outros muitos vultos formosíssimos,
e outras personagens de temerosos aspeitos, tudo
obrado com maravilhoso arteficío ; e o farol real era
couforme a dita obra de maravilhosa invenção.
(A. Tlerculano.)
(Cordinuar-se-ha) .
PbILOSOPHU D4 tida social , DD ACTE DE AGBADAR
NO JIINDO.
= 0 Mc:«DO , disse espirituosamente um observa-
dor , é uma lanterna magica que , perpetuamente
era acção, apprescnta uma vastíssima scena em que
se vêem passar em confusa mistura defeitos e ridí-
culos , prctenções c exigências da vaidade, sensa-
tez e idiotismo , cordura e iniperlíncncia , todas as
qualidades emfim boas ou más d' indivíduos de to-
das as idades e condições. Physionomías c caracte-
res, gestos c maneiras, linguagem e assumpto das
conversações , tudo ahi é d'ordinario estudadamen-
te composto e affcclado: mas, assim como ao ob-
servador "altento não esca[ia a condição e o caracter
do mascara alravez do seu disfarce, também os de-
feitos c os vícios se revelam apesar do verniz que
os cobre.
1." O mais seguro meio de figurar na sociedade
é moslrar-nos verídicos e modestos era nossas re-
lações com os outros.
2." Se quereis ser acatado e respeitado , receber
louvores e civilidades, começai por merece-las pro-
curando de contínuo o aperfeiçoamento. A verdadei-
ra perfeição , que deve ser o fim de nossos esfor-
ços perseverantes, c a virtude. Com elln seremos
indulgentes para coro as fraquezas humanas, e ja-
mais descubríremos suas falias c seus erros para
brilharmos á sua custa.
3.' Sede sempre reservado e moderado na mani-
festação de vossos pezares ou alegrias. A impaciên-
cia muito trivial de confiar ao primeiro cncontra-
diço as próprias felicidades ou desventuras é uma
fraqueza d'alma que nada consegue de bem, e pô-
de ter graves incímvcnientes.
i.' Não viis desalenteis jamais com os azares da
fiirtuna : es()erai antes com magnanimidade a volta
da prosperidade , conservai soni|)re confiança em
vós mesmo, na bondade da Providencia, nos ho-
mens bons e generosos , na perpetua mudança dos
desi ínos humanos.
D.' Sede precatados e pacifiios nos accidenles
imprevistos e diflícullosos da vida social. Quando
o céu quer favorecer e privilegiar um mortal, dis-
se um phílosiipho , dá-lhe uma grande picstnça de
espirito. E ainda que não esteja na mão de cada um
este precioso beneficio , póde-se comtudo prevenir
as consequências desagradáveis de sua falia pela
vígilanría e pela prudência.
6.^ Quereis vós ciíuservar no mundo vossa inde-
pendência? Quereis collocar-vos de nivel, em igual-
dade com os indivíduos de vossas relações? Não
lhe peçais cousa alguma ; e não acceileis senão ra-
ras vezes os serviços que voluntariamente vos pres-
tarem. Como porem, dizeis vós, prescindir sempre
do appoio e da protecção dos outros? Como! O
meio é simples e fácil ; moderai vossos desejos ,
restringi vossas precisões.
7 .' Desempenhai com lealdade vossa palavra ,
cumpri fielmente vossas promessas, dizei sempre
verdade. Ainda que lenhamos muitas vezes motives
para não revelar nossos pensamentos, nada comtu-
do pôde auclorisar-nos a dizer o contrario do que
pensámos. Nunca houve mentiras necessárias: as
mais leves podem fazer-nos perder a confiança c a
estima de nossos similhantes.
8.^ Sede pontual, laborioso, minucioso mesaio
no cumprimento de vossos deveres públicos. Ado-
ptai methodos de ordem e arranjo em vossos negó-
cios, e nos dos outros que estiverem a vosso car-
go. Todo o mundo se compraz era ler relações com
um homem pontual e exacto.
9.^ A arte d'agradar na sociedade é saber ada-
ptar o assumpto e a phrase da conversação á con-
1
320
O PANORAMA.
dirão das pessoas com quem tratámos, á sua ca-
pacidade c comprehensão, ao seu génio, caracter, e
posição social. =:01)servemos , diz I.arochcfocauld
em suas máximas moraes , pczemos attentamcntc o
legar, a occasião, c a disi)osição em que se acliam
as pessoas que nos escutam : porque se lia uma ar-
te de saber fallar a propósito , ha outra que nos
aconselha saber callar. lia ura certo silencio elo-
quente que serve a approvar e a condemnar , bem
como ha outro que c de discrição e de respeito.^
10.' IVão esqueçamos nunca que aquellcs com
quem entrámos em conversação querem ser agrada-
velmcnlc dislrahidos, senão lisongeados. = J.oqui-
mini placencia = diz a Escriptura ; falleraos-lhes
quanto ser possa de cousas deleitáveis, mas hones-
tas. Uma conversação longamente instructiva acaba
sempre fatigante ; ú preciso tempera-la com bons
ditos e jovialidades. Tsão ha cousa que no mundo
pareça mais espirituoso c dcleilavel como os louvo-
res e elogios delicados. !N'ão façais jamais o papel
de gracioso e cliocarrciro ; ainda menos o de vil
adulador. Procurai com discrição ser ingénuo e na-
tural : o homem que consljntemente quer jiarccer
agudo e espirituoso, termina por se fazer insujipor-
íavel.
11.' Conservemos quanto possível fòr um sem-
blante sereno e socogado. O mais amável exterior
com que um individuo se possa appresentar na so-
ciedade 6 esta serenidade lilha da igualdade d'al-
ma , c esla d'uma consciência pura c Iranquilla ,
d'um coração que não 6 agitado pelo tropel das
paixões violentas. Sede benigno e benévolo para
com todos que se approximarem de vós. Dirigi al-
gum dito officioso, d'obsequio, ou instructivo ás pes-
soas com que vos entreliverdes ; mostrai que vos
interessais por ellas. Guardai-vos porem de arro-
gar o papel de mestre ou de protector, porque es-
sa supremacia fere a modéstia , e não alcança o
seu fim.
12." Conversação é um dos meios que temos no
nosso poder para obtermos estima e considcraçãu
no mundo : mas para isso c necessário que evite es-
tes três escolhos; que não fira, que não enfade ,
que não fatigue. Ponde um cuidado escrupuloso cm
I)annir de vossas palavras a maledicência , a ca-
lumnia , as reticencias malignas , o escarneo insul-
lador ; estas espadas de dois gumes que quasi nun-
ca deixam de tocar c ferir a própria mão que ou-
sa maneja-las. — Desgraçadamente este ar saty-
rico c malévolo agrada ao commura das socieda-
des : cnlrelaiito mais cedo ou mais tarde faz des-
prezível o individuo que busca agradar ;i cusla do
credito c da reputação dos outros. A zombaria, per-
mittida quando cila ó temperada com critica es-
pirituosa e galante, é aquella que sem oITender os
indivíduos recahe sobre os desvios, os ridículos, c
os excessos dos usos c das modas, dos vicios e dos
maus costumes. Desconfiai daquelles que affectam
querer encobrir todas as faltas, desculpar todos os
erros : ordinariamente não são senão hypocrilas que
com o manto da caridade cliristaã se procuram acre-
ditar para cobrir os seus próprios, ou para acredi-
tarem o mal que elles disserem do pro%imo.
13." Sede circumspcclo c mesurado (piando cen-
surais ou condemnais alguma cousa. Como no mun-
do ha poucas verdades absolutas, c a maior parte
das cousas podem ser olhadas por difiercntes mo-
dos , (': dillicil pronunciar com justeza nos negócios
alheios. Guardai-vos mais que tudo de querer apre-
ciar os motivos das acções boas , rebaixando-lhe o
mérito pela pequenez de causas soppostas. É preci-
so julgar sempre o bem , segundo o grau d'ulilida-
de que occasiona aos outros.
Fallai pouco : e pezai antes de fallar as pala-
vras, para que não succeda dizer o que deveis ou
quereis occultar , ou proferir cousas que tornem a
conversação enjoativa e desagradável. Apprendci a
escutar os que faliam, nem os interrompais cortau-
do-llie o discurso ; soffrei mesmo que digam cousas
inúteis. Se ti\erdes de contrariar o que dizem os
outros procurai adoçar o azedume (|ue fere o amor
próprio ; um talvez , ou um pódc ser , dizia o espi-
rituoso Weiss, são o exórdio mais philosophico pa-
ra contestar uma opinião.
Nunca fallemos de nós e de nossos negócios se-
não a nossos amigos íntimos: o mau costume con-
trario nos faz parecer egoístas ou vaidosos. A mo-
déstia é uma das qualidades mais amáveis, e tan-
to njais agrada , quanto é mais rara. Aquelles que
fazem alardo de seus triíimphos, que revelam seus
talentos, que obrigam a escutar suas composições,
que emfim andam mendigando ajilausos , alcançam
o effeito contrario ; pois que todos lhe retribuirão
com enfadamento e escarneo.
É preciso ser tolerante e impassível nas discus-
sões em que a rasão ou o emprego nos obriga a to-
mar parle. SoíTrei mesmo pacientemente a ironia o
o sarcasmo com que combaterem vossas boas ra-
sõcs : oppondo sempre a polidez e a magnanimida-
de com perseverança , sede certo que triumphareis
daquelles fracos adversários , porque vossas armas
são melhores , assim como vossas forças mais segu-
ras. Sede indulgente com os homens preoccupados
de, boa fé, e lembrai-vos que a fraqueza da intel-
ligencia humana , a limitada esphera de nossos co-
nhecimentos, a perfeição emfim de nossa natureza,
nos deve conduzir a deplorar antes do que fulminar
os defeitos do próximo.
Jamais tomareis parte nas conversações malévolas
ou equivocas , nas que atacam a crença estabeleci-
da, as auctoridades que presidem á ordem publica,
as leis que regem a sociedade. O vicio contrario é
desgraçadamente o typo quotidiano das reuniões de
nossa epocha, apenas escapada d'uma revolução que
póz em jogo e movimento todas as ambições , to-
das as vaidades. Cada qual se crè com capacidade
e direito de reconstruir a sociedade , de lhe assi-
gnar novas constituições e nova.s crenças. ISão es-
queçamos jamais que todas as opiniões são respei-
táveis quando são sinceras: procuremos antes il-
luslrar do que hostilisar.
J. da C. N. C.
Jntroduccuo da seda na Europa. — Os romanos
creram por muito tempo que a seda era producto
vegetal como o linho e o algodão : da Pérsia lhes
vinha esla fazenda , procedente da China , região
que não conheciam. Uns monges gregos, em tempo
do imperador Justiniano, trouxeram a Constantino-
pola os sirgos ou bichos da seda , e ensinaram o
cultivo das amoreiras e tudo o mais conducente ao
fabrico daquellc precioso tecido. Hogerio. rei de Si-
cília , chamou em 1030 a Palermo artífices gregos
que ensinassem esta industria, que dalii passou á
Itália c á llespanha e cm França enlrou quando go-
vernava Henrique 1.° — O reino deste nosso conti-
nente que [segundo a geral oíunião] produz mai»
seda é o reino de Nápoles.
94
o PANORA3IA.
321
FOnXA TRAVESSA T>A SE DE NÃI.ACA.
Em o n.' 85 deisámos esrriptas algumas linhas a
respeito Ja cidade de Málaga , que acaba de rece-
ber por decreto real , em virtude dos recentíssimos
acontecimentos, o titulo de — Sempre denodada, e
o privilegio de accrescentar uma coroa civica ao
escudo d'armas com a legenda — A primeira no pe-
rigo da liberdade. Da cathedral demos succinla idéa :
é de uma de suas portas lateraes , que appresen-
lâmos agora desenho.
Málaga é de grande antiguidade , os seus anti-
quários pertendera que fora fundada oito ou nove
século antes de J. C. pelus navegadores e commer-
cianlcs phenicios , que reconheceram a bondade e
vantajosa situação deste porto , e pozeram á nova
povoação o nome àe Malcha [que significa real] em
testemunho da estimação em que a tiveram. Toda-
via não ha prova clara de tão remota antiguidade :
o Sr. d'Huml)olãt diz que Malaca ó palavra do
Tasconço gennino , e quer dizer encosta de monta-
nha. Successivamente a possuíram os cartliagine-
zes , os romanos que lhe deram a jerarchia de mu-
nicípio , os godos , e os sarracenos ; nos primeiros
três séculos do dominio destes últimos esteve su-
jeita aos califas de Córdova ; pelo desmembramen-
to do califado cahiu em poder ora de ura ora de
outro soberano de poucos recursos , até que no sé-
culo 13.° ficou annexa ao reino mourisco de Gra-
nada. Os reis eatholicos, Fernando e Isabel, a ga-
nharam depois de porfioso cerco de ires mezes , no
decurso do qual os moradores padeceram os horro-
res da mais excessiva fome.
Desde antigas eras , em poder de qualquer da-
OUTCBRO li— 1843.
quellas nacões foi pelo commercio famosa : ainda
hoje é dasmais norccenles da .\ndaluzia. Importa
pannos finos, algodões, drogas, quincalherias e
obras de cutelaria ■ as suas exportações são muito
mais consideráveis , e por anuo montam proxima-
mente a oito milhões de cruzados , consistindo na
máxima parte em fructas e vinhos; estes, que ou-
lr'ora tiveram gasto em Inglaterra , tem ao presen-
te quasi todo o seu consumo nos Estados-Unidos e
na America hespanhola ; as fructas são geralmente
vendidas á Graã-Bretanha ; os outros géneros que
manda para fora são aguas-ardentes , azeite, aça-
frão, barrilha, e sabão, o qual é a manufactura de
Málaga mais digna de menção, não obstante haver
uma fundição de ferro, ha pouco estabelecida , e
uma fabrica de preparação do tabaco de fumo, qne
dá emprego diário a 70Ò pessoas. Teve 24 conven-
tos , que foram supprimidos em 1835. Era sem
comparação mais populosa cm tempo dos mouros ;
hoje calculam-se-lhe sessenta mil almas. Poucos re-
síduos conserva da architectura romana : os restos
dos edificios árabes são mais numerosos, e desco-
brera-se internieados pela cidade em muralhas, tor-
res , portas, casas, notando-se ainda alguns fra-
gmentos de mesquitas : lambem desse tempo lhe
ficou a prática de construir sotcas em muitos pré-
dios, á maneira oriental; alguns com seus miran-
tes mui adequados para tomar o fresco. O povo ,
como em quasi toda a Hespanha , é mui dado ás
festas de corridas de touros, para as quaes tem
uma grandiosa praça . que dá idéa de um circo ro-
mano , com a capacidade necessária para doze a
2.° Serie. — Vol. II.
322
O PANORAMA.
quinze mil espectadores, c tendo a altura de ura
quinto andar até o acroterio superior. A malague-
nha é uma dança, própria da terra, que não deixa
de ser garbosa.
Abcheologia portdgueza.
IX.
(Continuado de pag. 319 .
E POBQiE uão haja quem diga , que não trataram
os homens mais que de se enfeitarem nem lhes lem-
brara mais que suas louçainhas e vaidade , sei di-
zer que o gasto que fizeram nos vestidos foi pouco
em comparação das armas e aparelhos para peleja-
rem.
Não houve homem fidalgo que não comprasse mui-
tos corpos d'armas muito lustrosos, e não mandasse
pintar nellas suas armas cm campos de diversas co-
res ; mil peitos de prova de muito preço , muitas
couras e coletes de anta , couraças de laminas cu-
bertas de veludo e setiin de todas as cores com ta-
chas d'ouro e prata , muitas saias de malha , e gi-
banetcs , tudo muito galante e de muito gasto, e
muitas rodelas d'aço lauxiadas de lavor d'ouro com
suas armas pintadas nellas, muitas adargas muito
fortes, muitas lanças dourados os contos e engastes,
espadas largas e cortadoras, muitos montantes, le-
ques, terçados, e lodo outro género d'armas mui-
to fortes e galantes.
Levam muitos homens fidalgos um cavallo acu-
bertado de euhertas d'anta muito furtes e louçans ,
pintarias nellas suas armas de tintas finíssimas. Ilou-
Te ciibcrtas destas que passaram de mil cruzados.
Não houve género d'armas assim offcnsivas como
defensivos que os homens não comprassem com mui-
to gasto c custo, c com mais gasto ainda que nos
Tcstidos.
Levam lambem muitas tendas muito ricas e mui-
tas delias de seda , com suas grimpas douradas e
bandeiras de seda , e tendilhões para a gente e ca-
vallos ; e elrei leva muita summa de lendas que
mandou trazer de Alemanha ; e se alTirma que as
d'elrei c dos fidalgos c estrangeiros serão mais de
4;000 com os tendilhões.
É de notar como os homens vão alfaiados, e o
muito provimento de todas as cousas que levam ,
que p.ireoe que levam casa mudada , con)0 se lá
houvessem de estar viule annos. Foi de mara\ilhar
em todo este tempo , com tanta confluência de fo-
rasteiros e gente de todo este reino , não faltarem
nunca os maulimenlos nesta terra , nem alevanlar o
preço delles , antes que nenhum outro tem[io houve
mais, nem mais baratos. Esta foi uma das cousas
era que Lisboa mostrou hem sua grandeza.
Cumr|(i,inlo elrei mandou lançar bando cora penas
graúdos ([ijc ninguém vendesse as cousas por mo-
res preços do que (i'antes valiam , e com ao prin-
cípio prendcj-em algims por isso, não deixaram as
sedas, pannos, e armas, c todas as cousas neces-
sárias para esta jornada do custar cinco e seis ve-
zes mais do coslumndo. Isto destruiu os homens;
c na ruM-nova onde todas estas cousas se vendem ,
apreçando um fid.ilgo algumas Cíuisas de seda para
se veslir, pelas quaes llie pediram tanto mais do
que valiim , que fazia meilo , disse com assaz dor
de eoríição : — que mais arreceavam os homens a
guerra (|ue se llies fazia na rua-nova , que a que se
esperava em Africa. Destes havia muitos, e os mais
delles negociavam em pessoa, que assim era neces-
sário para se melhor negociarem, e pelo muito gas-
to que fizeram ficaram todos destruídos, e uns ven-
deram as herdades, e casas e casaes e quintans por
dois seitis , e outros empenharam as commendas c
morgados , por muitos annos por d'ante mão , para
se aviarem , por muito pouco preço valendo muito,
e haviam provisões d'elrei para o poderem fazer
sem embargo de serem morgados : e outros vendiam
a prata e ouro , e tudo o mais de que se podia fa-
zer dinheiro se punha em leilão.
Não houve nenhum ofTicio que não estivesse com
obra, e lodos elles alevantaram sem consciência.
Ao menos os olíiciaes de vestidos , pintores , doura-
dores , arraeiros , sirgueiros , e olíiciaes de tendas
ficaram ricos para sempre , e os mais não ficaram
pobres.
Deu o arcebispo licença pelo princípio de maio ,
que d'ahi até se partir elrei trabalhassem todos os
officiacs de lodos os officios dias e santos de guar-
da, nas cousas que pertenciam á guerra ou seu ap-
porelho ; e assim se fez, que todos trabalhavam ; e
comtudo isso não se poderam acabar de aviar lodos
os fidalgos , que ainda cá ficaram alguns que apox
elrei se partiram.
Foi recommendado a Jeronymo Corte-real e a D.
João de Mafra e a outro fidalgo , que não soube o
nome , que inventassem o que poria elrei no tim-
bre de suas armas novas, com que nesta jornada
havia de sahir. Acordavam que pozesse abaixo das
armas reaes dois pirâmides ao modo de columnas,
e de um destes ao outro pozessem umas letras que
dissessem : — Amor , fé , amor.
Depois d'elrei assim estar embarcado, este sába-
do que disse , ao domingo seguinte , que foram 15
dias do raez de junho, sahiu a ouvir missa na igre-
ja de Santos velho, e dahi se tornou outra vez a
jantar á sua galé , e nella andou Ioda a tarde ven-
do a frota , c dando pressa que se aviassem , e da
mesma maneira todos os dias daquella semana an-
dou visitando as naus e velas grandes, dando-Ihes
pressa que se aviassem , e na segunda feira pela
manhaã mandou elrei lançar bando com trombetas
que todos se embarcassem , porque elle bolava na
quarta feira seguinte de foz em fora , e o mesmo
fez na segunda feira á noite , e á lerça feira pela
manhaã e á noite.
Na quarta feira se mudou o tempo do mar, e es-
teve assim até a segunda feira véspera de S. João
lé o meio-dia.
(') Neste meio lempo aconteceu uma desgraça
grande ao senhor D. António, prior do Crato, com
elrei e com Christovam de Távora; c foi que tinha
o senhor D. António fallado a um criado da infan-
te D. Maria , grande reposteiro , e mautieiro mara-
vilhoso e mui destro nesta cousa de banquetes; e
estava concertado leva-lo comsigo nesta jornada , e
a esta conta esteve , comeu e pousou alguns dias
em casa do senhor D. António. Teve Christovam de
Távora noticia deste homem: mandou-o chamar, e
lhe rogou ou lhe mandou que o acompanhasse nes-
ta jornada ; que cumpria assim. Como Christovam
de Távora ó do bafo d'elrci e tanto sou privado , e
quer , pode c manda , acceitou este homem de boa
vontade ir com elle sem emliargo da palavra que
linha já dado ao senhor 1). António, o qual na vés-
pera da partida o mandou chamar a sua casa, c
lhe disse que se acabasse de aviar. Respondeu-lhe
(•) t> slircfsso ii''iira(lu liesle ^ arlia-r>e cm ttnioã oiiliu-
toriadures, ma> Tem aiiui com diversas circunièlauciai.
o PANORAMA.
323
elle sem pejo , que ia com Chrislovam de Távora ,
que não puilia ir com S. lix.' Falluu a |paciciuia :io
senhor D. Atitonio, e por sua mão lhe deu com mu
páu umas poucas de pancadas e o tratou mal. 'I'o-
mado Chri^lovam de Távora dbto fez queixiime a
eirci que o senhor D. António lhe espancara um
homem seu , porque não quizera ir com cllc. lis-
tando isto desta maneira acertou de ir o senhor D.
António á galé delrei, e antes que chegasse a el-
le fallou a cinco ou seis fidalgos que estavam af.is-
tados da popa, entre os qiiaes estava Christovam de
Távora , e todos salvaram e tiraram o chapéu ao
senhor D. António senão elle que virou o rosto pa-
ra outra parle. Dissc-Ihe o senhor I). António: —
Sois mal ensinado, Christovam de Távora : — a que
elle respondeu : — Nunca o cu sulie ser. senão quan-
do me siibejoii rasão para isso. Anojailo o senhor
D. António , se foi fazer queixume a eIrci , pare-
cendo-lhe que emendasse a des'jortezia : elle lhe
respondeu de má graça c por cima de hombro : —
Vós lh'o tereis merecido. — Sahiu-se o senhor D.
António da galé aggravado. Informado depois eirei
do que passava, e sahendo que tratava de se ir pa-
ra Castella , o mandou chamar e apaziguou o caso.
Em todo este tempo que elrei esteve embarcado,
o estiveram os fidalgos principaes , porque tinham
por má fidalguia estar elrei embarcado , e elles em
suas casas; ainda que de noite iam a furto dormir
a ellas, e dia estavam em suas embarcações. A se-
gunda feira, véspera de S. João, mandou elrei lan-
çar bando , que toda a pessoa , que estivesse apon-
tada nos róes , estivesse embarcada dia de S. João
pela manhaã , sob pena de serem presos á mercê
de S. A. : e ao dia de S. João pela manhaã man-
dou elrei levar ancora defronte da igreja de San-
tos, onde Costumava a manda-la bolar todas as noi-
tes , e dahi se botou defronte de toda a armada de
largo, e mandou disparar uma peça , que é signal
de recolher, e se despediu de lodo; e deixando os
que ficavam muito saudosos se foi caminho de Oei-
ras , três léguas de Lisboa, onde fez embarcar os
600 romanos, e mandou qtie o mesmo fizessem os
tudescos. Ahi esteve até o outro dia ao jantar , e
toda a manhaã andou o patrão-mór era um bergan-
tim da ribeira de Lisboa , a bordo de lodos os na-
vios , dizendo da parte d'elrei que se partissem lo-
go , que esperava por elles em Oeiras.
Xeste mesmo dia á tarde, elle com a frota que
eslava junta em Oeiras, se partiu com um tempo
tão bem assombrado como elrei desejava para sua
jornada ; e com quanto todos determinaram de se
aviar depressa , ainda ficaram na ribeira de Lisboa
160 velas entre caravellas de fidalgos e outros na-
vios d'alto-bordo que muitos fidalgos tinham freta-
dos. Todos estes navios que ficaram se negocearam
com a mór brevidade que pode ser para se irem
apoz elrei ; c para isto mandou que ficasse em Cas-
caes o galeão S. Martinho, um navio formosissimo
e mui forte, o qual ficou para dar guarda e segu-
ro ás velas que ficaram era Lisboa , para as acom-
panhar até Africa.
Foi cousa mui formosa de ver a multidão de ve-
las que foram com elrei; porque as velas que es-
tavam no rio de Lisboa apontadas para ir com el-
rei , eram 940 , entre as quaes eram mais de oOO
d'alto-bordo mui bem artilhadas, e entre estas al-
gumas guerreiras e inexpugnáveis , como eram os
galeões d'elrei, c as naus venezianas, e urcas, e ou-
tras muitas portuguezas , todas com artilharia de
bronze , com muitas bombas de fogo , e outros ar-
lificios c petrechos desta qualidade, fana estas velas
toilns juntas e embandeiradas com seus estandartes
lie seda nas gáveas, que chegavam com as pontas
á agua empa\ezadas, com varandas pintadas e cor-
tinas de seda , e as caravellas com seus toldos c
bandeiras de qu;iiira ; e ver andar elrei por entre
as náiis mandando-lhcs que se aviassem depressa,
e disparar toda a artilharia , c cobrir-se tudo de
fumo.
Quando elrei partiu de Oeiras , que desamarrou
e levou ancora , desamarraram com elle pmico me-
nos de 800 velas, com as velas todas mcllid.-is. que
faziam uma visla formosíssima ; e quando chegar a
Africa deve de ir com mais de loOO velas, porque
Um mandado que se ajuntem rio Algarve as da ci-
dade do 1'urlo, de Vianna, d'Aveiro, villa do Con-
de , Uuarcos . Seluval , cm o qnal estão esperando
mais de 200 velas, e outras mnilas que eslão eni
Cezimbra , Sagres, Lagos, Tavira, e em todos os
portos do Algarve, onde se havia de embarcar a
gente do terço de Francisco de Távora.
A ordem do soldo é que dá elrei a cada soldado
quatro cruzados cada mez , e os mantimentos hão-
se de vender por elle, e para isto mandou ir mui-
tos taberneiros de todas as parles para venderem no
campo os mesmos mantimentos d'elrei pela taixa ,
e desta maneira não se pôde alevantar o preço del-
les.
(A. Ilcrculano.J
A MULBEB BTSROPICA.
Gerardo Dow, notável pintor da eschola flamenga,
foi filho de um vidraceiro, e natural de Leyden
onde falleceu em 1C80 com 67 annos de idade. Foi
discípulo do famigerado Rembrandl , ao qual imi-
tou CO colorido e na força do claro-escuro , porem
não assim em o geral do eslylo, porque o caracter
e particular organisação o inclinava a concluir seus
painéis com summa paciência, com minucioso cui-
dado nas menores particularidades , com desejo ex-
tremo de acabar tudo, qualidades mui remotas da
maneira do mestre : consumia por isso muito tem-
po no trabalho , c pintava em ponto pequeno ; de
raro os seus quadros chegavam a ter altura de dois
palmos. A fim de conservar a esmerada limpeza
que pertendia em suas obras, costumava pò-las a
bom recado assim que largava o pincel ; e quando
voltava á camará do trabalho, antes de principiar,
deixava-se estar immovel por bom espaço de tem-
po para dar legar a que assentasse a poeira subtil
que levantara com os pés; no entanto não tirava a
tela , os pincéis e a palheta , da caixa em que os
recolhera ; o que fazia depois com apurada caute-
la. Era homem desta paxorra ; segundo confissão
própria , levou Ires dias a pintar as costas de páu
de uma escova , accessorio roinimo de um painel
que fizera. Por suas mãos preparava os pincéis , e
moía as tintas , porque ninguém lh'o fazia a seu
gosto. Para conservar a exactidão do debuxo, ob-
servava-o atravez da gradesinha de reducção de
que usam muitos gravadores: soccorria-se lambem
de uma lente que diminuía o tamanho natural do
modelo.
Gerardo Dovn' fazia nos seus princípios artísticos
miniaturas e retratos de pequenas dimensões, mns
pelo demasiado vagar impacientava os donos , que
os encommendavam : até que por fim também elle
32 í.
O PANORAMA.
se cansou de atlendcr a duas cousas, á perfeição
na parecença, e á prolixidade na execução da obra,
e reconhecendo que eram incompatíveis, dedicou-
se a pintar scenas da vida vulgar, tão minuciosa-
menlo , que ha nas suas composições objectos miú-
dos , que só com o auxilio de vidro de angmcntar
se podem devidamente desfructar c ter em preço.
Regularmente não escolhia os assumptos que f.illam
á imaginação e excitam a sensibilidade; ha porem
uma grande excepção desta sua maneira no apre-
ciável quadro da mulher liyJrupica. Ahi se vè a en-
ferma sentada n'uma cadeira de braços; a seus pés
a íilha submergida em pranto; logo próximo o me-
dico observando allcntamente o liquido contendo
no frasco que tem na mão. O quarto está adornado
demoveis, alcatifas, e outros accessorios , pinta-
dos com o escrúpulo que já indicámos no auctor ;
e todavia essas circumstancias não distraheni a at-
lenção do espectador, captivada pela verdade e ex-
pressão das figuras. Tudo neste painel é de certo
caracter sublime e nobre ; comparativamente fjl-
lando , dá visos do toque e estylo de Uaphael e de
Poussin : a composição 6 bella e palhetica , como
se fora obra dos insignes mestres ; e as miudezas
que revestem a sccna são tão bem acabadas , como
de um bom artista de segunda ordem , que outra
cousa não soubesse fazer, sendo todavia primoroso
neste seu ramo privativo.
As pinturas de Gerardo são estimadas e achara-
se por todas as grandes coUecções e galenas daí
principaes cortes da Europa.
A CSUXHSZl HirSHOFICA : OVAS&O DS SO^vV.
31iiííiçiftílílíí>í?íJ^
Das Mis PRÁTICAS na CULTCBA , E DOS CORRECnVOS
(}< i: AS PODKM lí DEVE.M KKCTIFICAU {•).
r)i:-i.'-KM(i.s nas antecedentes reílexões. na ultima parte
(•; V. I'.iiiVi. iiag. líia e 33!7 do toI. i." desU berie.
das considerações geraes, que deqnalre modos prin-
cifialmente ppccavam os cultivadores cm seus ama-
idids c trabalhos agrícolas, a saber: pela perpetui-
dade das mesmas sementeiras c plantações; — pcU
má escolha dos terrenos ; — pela isolação e desam-
paro das plantas; — c pelo raáu mclhodo da irriga-
ção. Apontamos igualmente os ccrrsctivos que ]■>«-
o PAINORA3IA.
dem melhorar e reclifícar o mal em todas estas
parles.
Primeiro correclivo : o afoUiameuto ou rolanio de
cultura. Desde muito tenipu que os homens prali-
cos e experientes viram que a terra se cansa á for-
ça de amanhos e de producção: que se uos annos
próximos á sua roleação produzia bem , e corres-
pondia aos suores do la\rador, pouco e pouco de-
perccia em força ferlilisanlc , e por fim se definha-
va , dando apenas poucos, ou maus fructos. Via-se
o phenomcno , porem não souberam a que o allri-
l)uir : o mais f.icil era assenlar que a Urra, assim
como os seres animados, precisava descanso: dahi
o systema dos o/yiicítTS , de deixar cm pousio uma
terça ou quarta parte do campo aramei , em quanto
se cultivavam e trabalhavam as outras. Diz-se que
ura celebre agricultor italiano, chamado Barbo, foi
o que primeiro fez e aconselhou esta descubcrla no
Cm do século decirao-quarto. O seu plano consistia
em cultivar a terça parte do terreno tio outono em
cereaes d'inverno, outra terça parte em grãos na
primavera , c deixar em pousio a terça parte res-
tante. E o mais é que este syslcma pegou e cur-
sou por alguns séculos, e uão só na Itália, mas na
França dominou , e passou até nós.
Os economistas porem entraram de desconfiar de
nm systcma apalhico , perguiçoso , que pri\a\a os
homens dos productos da terça parte de suas ter-
ras; e rcQectirara que com este methodo nem os
productos, nem as rendas, nem a população po-
diam jamais crescer c augmentar. E com cfTeilo,
dada uma sementeira regular e perpetua dos mes-
mos grãos n'uma igual porção de terreno, era evi-
dente que o seu producto e rendimento médio se-
ria sempre o mesmo : ora é sobre este producto
médio que a população c o rendimento se estabele-
cem. A variação das estações somente ahi pôde oc-
casionar algumas diíTerenças , porem estas são an-
tes era mal do que cm bem. O systeraa portanto foi
condemnado , abandonado; e nasceu a agricultura
nova.
O cansaço da terra não procedia da continuidade
dos amanhos , sim do esgotamento dos suecos nu-
tritivos : era preciso portanto descobrir o modo de
economisa-los e renova-los, o que se consegue [alem
dos estrumes, porque estes entram sempre em to-
da a lavoura] pela afolheação da terra , ou rotação
das sementes. Chama-se-!he afolhcarãn porque o
campo, o terreno é dividido e distribuído em cer-
tas porções a que dizemos folhas [como as folhas de
partilha d'araa herança comraum] , assignando-se a
cada uma delias a sua cultura annual ; e rotaçuo
porque uma serie de sementeiras e colheitas alter-
nada fazem ahi um giro por Iodas ellas em um cer-
to numero de annos até recomeçar pela mesma or-
dem. Isto parecerá ao principio complicado; nós o
demonstraremos mais tarde ; praticamente é cousa
muito fácil.
Conveniência e necessidade da rotação.
A experiência tem mostrado que cm geral se não
pôde com utilidade cultivar o mesmo género cereal
por muitos annos contínuos no mesmo solo; a ter-
ra se empobrece e se torna infecunda. Mas a expe-
riência e o discurso mostram igualmente que não
succede assim com todas as plantas ; sabe-se que
nem todos os vegetaes as empobrecera, e que mes-
mo alguns ha que as melhoram. Deste numero são
o trevo, a luserna , e em geral todas as demais
plantas vivazes dos prados que se cortam antes da
sna maturidade, as qiiaps deixam a terra n'um me-
lhor estado de fertilidade que antes.
Os grãos cereaes são mui vorazes , e esgotam os
suecos nutrientes quando chegam á sua inteira ma-
turidade.— Das plantas tuberculosas é a batata tal-
\cz a que mais come dos suecos ferlilisantes da
terra. — Os legumes esgotam-os menos que os ce-
reaes, e quando se cortam era verde quasi nada
tiram do solo.
A regra é que as mesmas plantas não devem vol-
tar ao mesmo terreno senão depois d 'um certo nu-
mero de annos. Quasi impossível é estabelecer prin-
cípios fixos e rigorosos, e indicar d' antemão os
grãos c plantas que convirá ado(itar na rotação da
cultura. A experiência e bom discurso do cultiva-
dor o devem guiar na escolha das espécies segundo
o clima, a natureza do terreno, e conforme as suas
necessidades. As noções e preceitos geraes que po-
dem dar-se são as seguintes.
1.° Convém intercalar as sementeiras esgotantes,
e as plantas que melhorara ; istéé. que áqucllas que
costumam empobrecer o terreno quaes os cereaes,
se sigam as que o melhoram, como são as dos pra-
dos arlificiaes e as hortas.
2.° Que a cultura das sementeiras feitas ao ara-
do se alternem quanto possi\el fúr com as das plan-
tas cultivadas á encbada , e mondáveis , a fim de
que o terreno seja limpo e expurgado das más her-
vas.
3.° Que nesta alternativa se estrume com prefe-
rencia a terra v(d\ida ao sacho ou á cnchada, por-
que ahi fica melhor misturado e cinglomcrado com
a terra , e muito bem produzirá cereaes depois de
haver produzido plantas , hortaliças e legumes.
4.° Jamais convirá semear cm terreno pobre e
csterilisado sem primeiro o fecundar com estrumes ;
— não repelir, quanto for possível, dois annos a
fio a cultura de cereaes do mesmo género ; — nun-
ca os da mesma espécie.
S.° .A.S plantas próprias para forragens , aquellas
que se cortam em \erde, devem seguir-se no ter-
reno que acabou de produzir cereaes , da mesma
sorte que estes se seguiram nos terrenos sachados ,
estrumados, e culti\ados cm hortas de legumes,
hortaliças , í^c.
6." Devera esrolhcr-se e appropriar-se as semen-
teiras e plantações adaptadas á natureza do solo , e
collocadas de modo que possam receber os ama-
nhos preparatórios que cada uma exige.
7." É indispensável combinar e dispor a rotação
da cultura de maneira que se tenha sempre uma
quantidade de forragens sudicienle para entreter e
nutrir os gados ; e que estes sejam na proporção
de produzirem a quantidade necessária d'estrumes.
8.° O melhor circulo ou rotação de cultura será
aquelle que sem esgotar a fertilidade da terra , dê
o maior proveito possível , com o menor gaslo da
seu amanho.
Supposlos os princípios que ficam enunciados,
que podera variar comludo segundo as circiimstan-
cias que apontamos do clima , da natureza da ter-
ra , e das necessidades locaes , ou pessoaes do cul-
tivador , daremos aqui algum exemplo deste me-
thodo hoje abraçado nos paizes modelos de agri-
cultura , que todavia não poderá jamais servir de
norma fixa , porque a sua opplica/rio ficará sempre
dependente do discernimento do cultivador e da sua
experiência.
A rotação da cultura é de mais ou menos tempo
32G
O PANORAMA.
I
segando os usos e experimentos dos paizes e locali-
dades ; e as ha de 4 , 6 , 8 , e 10 annos. Aqiiella
que tem merecido mais geral approvacão é a do
condado de ISorfoIk ; afolheação e rotação quadrie-
nal. Consiste ella era começar por uma cullura de
horlalieas , legumes, &c. , em terra Lcm volvida ,
sachada e estrumada ; — faze-la seguir d'uma de
cereaes cm março, e de prados artificiaes, conser-
vados estes até ao terceiro anno , — e terminar por
sementeira (routono.
Já se vè que isto se refere a outra regra funda-
mental de cultivar, e é que o terreno deve ficar
descubcrto , ou nú , e desprovido de ()!anlas o me-
nos tempo possível : são estas que impedem a eva-
poração dos principies uleis.
Exemplo d' afolheação e rotação quadrienal.
Cultura feita an sacho. — Grãos de bico ; lenti-
lhas; favas; ervilhas; rábanos; cenouras; batatas;
cebolas; feijões; nabos; alhos; couves; colza, &c.
Cereaes demarco. — Milho de todas as qualida-
des ; centeio temporão ou de março; cevada dita ;
arroz ; avea , &c.
Forragens. — Ferraã , ou sanfeno d'Hespanha ;
trevo; meliloto; serradela; lentilhão; trevo encar-
nado; esparzèta ; luzerna; chicorea selvagem, &c.
Cereaes d' outono. — Centeio ordinário ; trigos, &c.
A chave deste systema de rotação [assolement]
consiste em alternar as sementes e a cullura de
modo que não voltem ao mesmo logar senão de
quatro em quatro annos. A sua utilidade consiste
em que a terra aliás melhor preparada , volvida e
purgada das más hervas pelo alternado das cultu-
ras sachadas e lavradas não é empobrecida e esgo-
tada de seus suecos, porque o que lhe tiram os ce-
reaes é indemnisado pelas oulras plantas e hervas
que conservam e algumas melhoram o terreno. È
evidente que a primeira cousa que tem a consultar
o cultivador antes de adoptar este systema é:
1.° A natureza do terreno que tem a cultivar, a
fim d'adoptar e proporcionar as sementes e plan-
tas , visto que nem todas as terras são aradas para
tudo.
2." A influencia do clima , e regularidade costu-
mada das estações em a localidade ; porque seria
absurdo que o cultivador se abalançasse a lançar
á terra sementes e plantas contrarias á temperatura
•lo local.
3.° A natureza e qualidade dos vegetacs que ahi
crescem e prosperam naturalmente, porque isso lhe
indicará aquellcs a que deve dar a preferencia.
í.° Os recursos e necessidades locaes , os hábi-
tos e costumes da povoação ; a facilidade da venda
c extracção ; as suas próprias precisões : porquan-
to , cm logar de proveito seria ruina dcdicar-se a
xiva género de cultura que, apesar de sua abundân-
cia ou melhoria , não tivesse valor nem consumo.
5." As vantagens ou inconvenientes que resultam
'l'uma povoação considerável, ou mesquinha, da
penúria ou riqueza dos habitantes; da proximidade
ou distancia das fabricas, manufacturas, &c. em
que o serviço e o Iralialho seria mais productivo.
6." A ordem dos trabalhos necessários a cada
cultura , a provisão dos instrumentos corresponden-
tes a cada serviço agrário, o emprego judicioso do
tempo , os gados , os estrumes.
No outro artigo , cm que trataremos do segun-
do modo rotineiro, isto é, do empirismo da cultu-
ra pelo que respeita á escolha das terras, e do cor-
rectivo a esle grave inconveniente, mostraremos pe-
la doscripçâo succiula de cada uma das espécies
de terra o absurdo palpável de repetir no mesmo
local uma cullura fraca , mesquinha, e improdu-
ctiva.
E com effeilo que causa lastima ver principal-
mente, nas duas províncias do Minho e Beira, que
quasi eslão fundadas sobre um terreno homogéneo,
e similhante na formação e no clima, em que as
precisões e os consumos, os habilos e costumes dos
habitantes não são muito dcsimilhantes ; causa pe-
na , dizemos, ver como ahi ainda actualmente se
obstinam a lançar á terra o milho em terreno ligei-
ro , secco e pulverulento , era local onde não po-
dem chegar as regas ; e ver consequenlcmente de-
perecer, definhar-se e por fim torcer-se a pobre
planta sem chegar a alguma maturidade proveito-
sa. E isto renovar-se e repetir-se todos os annos ,
accusando-se inútil e quasi sacrilegamente o Au-
clor da natureza porque lhe não mandou chuvas no
estio I Não advertindo os irreflectidos cultivadores
que o milho c um dos cereaes esgotantes, que re-
querem terra mui pingue e fértil , e que só produ-
zem em terras húmidas ou regadas. Mas tal é o ha-
bito da rotina que de pais a filhos tem passado o
costume de semear milho precisamente no mesmo
local, sem variar jamais de cultura. Variada que
fosse pelo methodo proposto da rotação , não se ve-
ria o repugnante espectáculo que dissemos, e os
pobres pequenos lavradores seriam menos contra-
riados em suas colheitas. J. da C. N. C.
JJojcsia;.
N. B. — Um amigo do Snr. Francisco Joaquim
Bingre nos offereceu uma copia da seguinte ode ,
manifestando desejos de que fosse impressa no Pa-
norama.— É notável esta composição lyrica, por per-
tencer a um poeta da eschola, meio-arcadica, meio-
elmanista , que entre nós íloreceu no reinado da
Senhora D. Maria 1.° e regência de D. João 6.°: e
ainda o é mais por mostrar que a veia da metrifi-
cação não se exhauriu na provecta idade do cantor
do Vouga.
Fazendo oitenta annos d'idade em 17 de jpiho 18Í3,
£íltímo canto Uo í0m.
Ode.
1,
Pátrio Vouga ancião , o cantor vossa
Hoje fixou o circulo da vida ;
Marcou o seu destroço i ■ .
Octogenária lida.
No bronze o tempo deu co'a mão pesad» .
A ultima pancada.
2.
Seu relógio fugaz o derradeiro
Nalalicio apontou da longa era;
Emperrou o ponteiro
No oitenta que numera.
Lachesis pôz na roca com fadiga
A derradeira estriga.
3.
O fuzo torto tem , já mal o trilha
o PANORAMA.
327
[Cansada de fiar] nos dedos gastos.
Clotho, que ensarilha,
Traz a meada a rastos.
Atrepos fera co'a tesoura aberta
Quasi os anneis lhe aperta.
4.
Nymphas patrícias , não touqueis cora rosas
O seu tristonho natalício dia . . .
Com as Dores saudosas
Cingi-lhe a fronte fria.
Só lhe competem uas extremas horas
Saudades (»' , passi-floras li].
5.
Não mais , nymphas , não mais , finde o festejo
Das sonoras canções ao natalício
Do Vate , que no Tejo ,
Teve ás vezes propício
O refulgente Apollo com espanto
TVo trovão de seu canto.
6.
Hoje em vez de canções , só elegias
Deveis cantar a seus longevos annos . . .
Com endeixas sombrias
Xenias de desenganos.
Louvai , ó nymphas , um natal tristonho
De tão comprido sonho I . . .
7.
Novos vates do Vouga , o rouco canto
Do vosso velho companheiro expira . . .
S'elle tem jus ao pranto,
Honraí-lhe a antiga lyra ,
Onde outra hora cantou versos sem pejo ,
Que aprendera no Tejo.
8.
Era tempo mais feliz, nas praias lusas,
Salitrosas , da ínclita Ulisea ,
Teve a estima das Musas;
Da Cythara Febca
Alguns sons aprendeu ; teve louvores
D'afamados cantores.
9.
Em seu sábio Atheneu , alli com elles
Em tarefas poéticas cantava.
Francelio (3) era um daquelles
Que as azas despregava ,
Seguindo o rasto de seus grandes sócios ,
Alvos cysnes beócios.
10.
Dalli subia ao cume do alto Pindo
Pelo trilho do-grão Cantor Elmano {í).
Quantas vezes suliindo
Belmiro (5) Tronstagano
Do alto lhe bradou : Sobe sem susto
Póz mim . . . affronta o susto.
II.
Outras vezes nas azas o tomava
O melíco cantor, cysne sadino .
E tanto o remontava
O épico Thomino (6) ,
Que nos raios de Phebo , onde voara,
A fronte lhe escaldava. ,
12.
A ver e«lr.inhns nres o levavam
(1 ) A lux.i llòr .la fiimliiOe.
(2) A lrÍ5k' flur ilii niarlyrio.
^3) Francelio Vmigueuse era o nome pastoril de Fran-
cisco Joai|iiím Biniire.
(4) Eliiumo S.ulino era o nome pastoril de M. M. B.
de Bõcaiie.
(5) Era Bt-lcliior furvo íemmeJo Torres de Sequeira.
(6) Ttiooiaz Autuniu dus Saiitus e Silva.
O assombroso Elmiro (7) , o sábio Olcno (8)
E os rumos lhe ensinavam
Que o grão cantor Isnicno (!)) ,
Iinitailor de 1'indaro e d'noracio ,
Descobrira no Lacio.
13.
Assim tomando força audaz subia
Entre os cysnes do Tejo ao piério monte ;
A lyrica Thalía
Muitas vezes a fronte
Alli lhe engrinaldou de verde louro
Ao som da Ivra d'ouro.
II.
Por taças de cristal o estilo puro
Bebeu dos grandes vates quinhentistas ;
Nunca o caminho escuro
Seguiu dos seiscentistas.
Foi por isso que ao Vouga o fez glorioso
Bocage luminoso (10.
15.
Que lições lhe não deu do canto agrário
O seu dilecto amigo , o doce Alcino ! . . . (11)
Com que fogachos, Clario (12j
D'alto fogo divino
O estro lhe accendeu , e o grão Jacíndo (13)
Nas tarefas do Pindo ! . . .
16.
Mas ah ! De tantos cysnes portentosos
Só o rouco do Vouga agora resta ! . . .
De lodos seus famosos
Sócios viu a funesta
Passagem do Acheronte em fusca barca ,
Onde elle agora embarca.
17.
Ficou só o cantor do Vouga annoso ,
Para as portas fechar da Academia ! . . . (14)
Elle chorou saudoso
A nobre companhia ,
A qual a fama ind'hoje erige altares
Nos lusitanos lares.
18.
Quem hade hoje carpir amor tal queda
De Francelio Vouguense octogenário? . . .
F^indou a lavareda
Do facho incendiário,
Que no éslro accendia altas fogueiras
,Vos Camões , aos Ferreiras '. . . .
19.
Labyrínthos românticos , charadas ,
Phrases híeroglificas do Nilo
São as francezadas
Canções do novo eslylo. . . .
Já se não cantam nenias lacrimosas ,
Elegias saudosas '. . . .
(7) P.' José Agostinho de Macedo.
(8) Nuno Alvares Pereira Pato Moniz.
(9) Ji.rio Vicente Pimentel Maldonado.
(10) ViJ. nota de iiocage do scii Soneto nos seas últi-
mos momentos, em que numera alguns sócios : e vid. i^u seu
Prologo do Poema — As plantas» os dois seguintes versos.
Ferve no audaz Francelio, e rompe os astros,
Sacro delirio , destemida insânia.
(11) Joaquim Severino Ferraz de Campos.
(12) Seliasliào Xavier Bolellio.
(I.")) Joaquim Ignacio da Costa Quiiilila.
(14) A Academia de Bellas-Lellras , erecta no caítello
de S. Jorge de Lisboa pi r \arios curiosos, debaixo doa
auspícios de S- M- a Sr.^ D. Maria 1.^, e dirigida pelo
inlendenle geral da policia, Diogo Ignacio de Pina Mani-
que; teve bastante nume em Lisboa, e fez no paço d'Aju.
da uma sessão ao nascimento da Sr.* D. Maria Thereza ,
primeira &lba du Sr. D. Juão 6.°
328
O PANORAIMA.
20.
Té vós , nymphas genlís , desaprendido
Tendes aqiiellas ternas cantilenas,
Que fizeram florido
O jardim das Camenas ;
Do doce Anacrconlc os sons divinos,
De Tiíeocrito os hymnos ! . . .
21.
Em voz do ledo canto d'artificio,
Com lagrimas d'amor, do triste >atc
Honrai o nalalicio
Decrépito , qnc bate
.\s porias da (remenda eternidade
Cora susto e com saudade I . . .
ExTRAOISDIMniO PRODCCTO DA CILTURA
DOS l'ECEGlEir,OS.
A DUAS milhas de Paris para o lado do nascente ,
não longe da floresta de Vincennes está o povo de
Monlrciiil cuja povoação se occupa quasi exclusiva-
mente ua cultura dos pecegueiros ; e é ella tão pro-
ductiva e rendosa que os dispensa de outro qual-
quer gcnero d'iriduslria.
Antes da rcvuliK-ão de 17S9 era apenas conheci-
da esta cultura ; porque ao cimo do logar estava uma
bella casa de campo, equinla de madama Eliznljelli,
a virtuoza princcza , irraaã de Luiz 16.°, a qual
com sua munificência e caridade se incumbia de
nutrir e occupar nquelles habitantes, que a respei-
tavam , e amavam como a niãi. O delírio fanático
dos niveladores lançou por terra o palácio, arrasou
a quinta , que foi depois retalhada , e dividida em
pequenos lotes, e csles convertidos cm alvergues
de pèccgos : dissemos alvergues com literal pro-
priedade como vamos expor.
Algum dos proprietários do logar observou que
os pecegueiros alli voltados ao nascente, e abriga-
dos do norte produziam bem, equc os fructos ven-
didos no mercado cm Paris obtinham preço ele-
radissirao. .Mas uma exposição ao nascente e nieio-
dia era cousa accidental , que assim mesmo não
conseguia sempre perfeita maturação dos fructos ,
porque as geadas e as neves tardias os definhavam,
e as demasiado temporaãs pesavam nas arvores
privadas de algum apoio, e ale as despedaçavam.
Mas o amor do lucro aguilhoava , e as tentativas e
experiências repetidas e aperfeiçoadas fizeram em
fim o milagre ; quer dizer que se conseguiu abas-
tecer toda Paris de pccegos lormosos e perfeitos, sa-
bidos somente de JMontreuil. Não penseis porem
que lá se come um pèccgo ordinário por pouco di-
nheiro ; por menos de 8 ou 10 soldos [três ou qua-
tro vinténs de nossa moeda] é raro gostar este po-
mo precioso. ]\Ias que trabalho o que despeza para
os obter? Eis-aqui o methodo da cultura: —
Depois de criados os pecegueiros em sitios abri-
gados á força d'estrumes , e de cubcrtos para os
livrar da neve, os enxertam, e dispõem encostados
perfeitamente a um muro rebocado , de 4 varas de
altura ordinariamente , guardando-o sempre de fa-
zer face ao norte e noroeste. Os pecegueiros vão-se
afeiçoando c prendendo com anneis de tecido forte
aos pregos que estão semeados por toda a capaci-
dade do muro , formando a arvore no seu cresci-
mento uma renque encostada ao muro. Isto porem
ainda não basta; c preciso alem deste resguardo do
muro que lhes serve de capote , pôr-lhe chapéu na
cabeça para os abrigar da neve vertical, e para es-
se efTcito collocam na extremidade superior do mu-
ro nm bordo ou cubcrto de palmo e meio de espes-
sura , feito de ladrilho, ou tijolo, encaixado logo
desde a primeira construcção , assim a modo das
goteiras de nossos telhados , suíliciente para rece-
ber a neve que queimaria d'outra sorte as arvores,
mas que não impede a luz e o sol , quando o ha,
o que raras vezes acontece antes da primavera. Uma
fila ou enfiada daquelles leques vegetaes reveste lo-
do o muro, com pequena diflcrença, e d'ellas pen-
dem os lindissimos pòcegos, quando se approximara
da maturação, fazendo uma agradabilíssima perspe-
ctiva.
Como a figura cm leque on ventarola não cobre
facilmente a siípcrficie inteira da muralha, vimos que
os lavradores costumam encher esses vasios cora
gingeiras e cercíjciras , cujos lindos fructos ajudam
a fazer a bcllcza do painel. Proximamente ouvimos
que a sociedade d'agrícullura de Paris premiara
com uma medalha d"ouro5Ir. Malot por haver des-
coberto o methodo de la taillc carrce , da disposi-
ção dos pecegueiros em quadrado a Cm d'aprovei-
tar-se todo o espaço da muralha.
Resla dizermos o producto dos pecegos de .Mon-
treuil: no anno de 18'fO sahiram dalli 13,300..000
pccegos, que produziram 731»500 francos: isto é,
[lassante de cento e dezescte contos de réis! . .
Á dntta da rasão. — Lady filha de uma
casa mui nobre e opulenta d'Inglatcrra , em idade
de 17 annos deixou Londres para ir a Paris era com-
panhia de uma sua lia já anciaâ mas ainda soltei-
ra. Passou-se isto nos princípios de 1789: — a tia
apaixonou-se logo pelas idéas então dominantes na
França ; e tanto que a sua casa era a assemblca
dos cabeças da revolução , Condorcet , Mirabeau ,
e o abbade Seyès , e posteriormente dos sanguiná-
rios Rohespierre, St. Just e outros: não é para ad-
mirar que o exemplo arrastasse e seduzisse a sobri-
nha para abraçar com fervor as exaltadas doutrinas
republicanas. Ilobes|iierre pòz os maiores esforços
para lhe apagar do coração a imagem de um lord
mancebo de quem era promellida noiva , e tantas
diligencias fez que conseguiu riscar-lh'o inteira-
mente da lembrança. A tia morreu de uma febre
cerebral ; c dahi a pouco appareceii a nobre Lady
figurando de dcuza da rasão na sacrílega festa , da-
da por Maximiiiano Robespierre nos campos Ely-
sios. Posteriormente fugiu de Paris com um italia-
no , que tomou por marido em Nápoles ; mas o es-
poso Ião cedo a abboreceu , que a deixou só e em
abandono ainda não findos dois mezes de casados.
Por vergonha de actos por tal maneira façanhosos ,
não quiz procurar os seus parentes em Inglaterra:
procipitando-se de excesso em excesso, a deuza da
rasão chegou a perder de todo a rasão que Deus
lhe dera, c de que tão máu uso fizera. Em certo
dia a acharam delirante, coberta de farrapos, ex-
pirando ao pé de um pobre alvergue a distancia de
uma Icgua de Nápoles.
Os que blasonam de não ceder nem vergar são co-
mo as estatuas de pedra ou bronze, que por malc-
riaes e inanimadas não se curvam nem se dobram.
Os louvores extorquidos são brevemente dosmentidot.
95
o PANORA3IA.
329
NATUSASa DAVIIiA.
AviLA , cabeça da provincia do seu nome , está a
dezoito léguas de líadrid. Nesta cidade por ordem
de Daciano foi martyrisado o nosso portuguez , S.
Vicente, natural d'Evora , cujo corpo se venera na
sé lisbonense (•): no logar do martyrio foi erecto
um templo, depois que Constantino deu paz á Igre-
ja , o qual é dos antiquissiraos das Hespanhas , e
tendo sido reedificado por S. Fernando é obra so-
lida e magestosa, e o ediQcio mais notável de Ávi-
la abaixo da cathedral. Ha nesta terra mais outro
logar santificado, e é o sitio onde nasceu St/ The-
reza de Jesus , que está convertido em capella no
convento da extincta ordem dos carmelitas descal-
ços.
O numero dos habitantes calcula-se em cinco
mil : usam estes ordinariamente de um trage , que
lhe é particular , e no desenho , que estampámos
aqui , se vè representado : em parte semelha o dos
(•) Vid. a paç. iil e 417 do 1." vol. deita 2.» Serie.
OtnroBRO 21 — 1843.
montanhezes de Leão, em parte o dos rústicos de
Salamanca. São os que mais tem conservado o ca-
racter de gravidade singela dos antigos castelha-
nos. Os homens trazem uma veste de couro , pare-
cida á cota, ou melhor diremos saio, que vemos
nas figuras de soldados do século lo.°; camisa ata-
cada no colarinho e este bordado, calças e polai-
nas como é d'uso no restante da Caslella , rema-
tando o vestuário o enorme e desabado chapéu á
moda dos antigos terços da Flandres. As mulheres
trajam saia ou mantéu que de ordinário tem muita
roda , e cheio de pregas , tendo sempre na cortapi-
za uma larga facha de veludo de cor mais fechada
que o mantéu , e a que chaojam ta tiraim : põem
no pescoço um lenço com seus bordados e franjas,
chamado dengue, e outro de seda na cabeça, pen-
dente com graça e somente subjugado pelo chapéu,
que, postoque também derrubado e de copa, é me-
nor emais airoso que o desmesurado sombreiro que
2." Sbrie. — Vol. II.
330
O PANORAMA.
trazem os homens. As ricaças costumara ajuntar a
tudo islo muitas verónicas c cruzes (ic prata , e o
avental de lina tela.
Tão singelos como os vestidos acliam-se os usos
e costumes desta boa gente ; delies os mais notá-
veis são os praticados nas bodas , e consistem n'al-
gumas ceremonins de origem remota. Por exemplo,
se a noiva é de povo dislinclo do que habita o noi-
vo , não pódc este entrar a vê-la sem ter' pago ;i
rapariga uma vez de vinho bom : chegado o dia da
boda, o sobredito noivo, acompanhado de seu pai,
do padrinho , e do pagem da noiva, que é uma es-
pécie de testemunha, com os mais convidados, en-
caminha-se á aldeia da futura, a qual sahe de ca-
sa com seu acompanhamento em tudo correspon-
dente áquelle , e ambas as comitivas dirigem-se á
igreja : celebrados os desposorios , monta o rancho
inteiro em cavalgaduras maiores ou menores, se-
gundo cada um as tem ou (lòde arranjar, e vão pa-
ra a povoação do n(JÍvo comer o banquete , que pe-
lo commum consta de carne cosida , carneiro gui-
zado e arroz doce, que são pratos obrigadcjs . e vi-
nho em l.irgiiissima copia : o cnra e o tabelião da
terra assistem á comida ; finda esta, o segundo sen-
ta-se a oulra meza com uma bandeja diante em que
lodos os concorrentes vem depor as prendas para os
noivos . que em geral são roupas de meza e cama
e enfeites do fato. Acabada a offerenda , começa o
baile , e todos os que estão presentes tem direito a
dançar um passo com a noiva, mediante o tributo
de cinco réis ou dez réis, que é apregoado a loque
de pandeiro.
A DAMA PÉ-DE-CaBRA.
(Conto de junto ao Lar),
Parte Tereeira.
I.
Mensageiuos apnz mensageiros; cartas sobre cartas
tem vinilo de Toledo a Inigo Guerra. Elrei de Leão
resgatava todos os dias seus cavalleiros por caval-
leiros mnunis ; mas não tinha wali ou alLaid capti-
vo qne podesse d,tr em troco por tão nobre senhor,
como o senhor de Biscaia.
E muitos dos reilemidos eram das Iiandas das
serras: e estes, trazendo as mensagens, contavam
ainda mais lastimas do velho D. Diogo Lopes, do
que. se é possível, essas de que rosavam as cartas.
«A porta do aguião em Toledo — diziam cllcs
— tem a monrisma um grande campo lodo mui
bera apalancado : aqui fazem grandes Cestas, guino-
las , e touros nos dias dos seus perros santos , se-
gundo lá lh'os pregam e determinam cacizes e ule-
más.
«Gaiolas de bestas-feras muitas haahi, cousa mui
de ver c pasmar : os tigres e leões não as rompem ;
rompe-las mãos d'homens, fora pequice somente o
acredita-lo.
«j\'uma destas prisões, quasi nú , com ferros de
pés e mãos , está o illustre rico homem , que já foi
capitão de grandes e lustrosas mesnadas.
«Cortezes costumam ser mouros com ser.s capti-
vos fidalgos. Fazem esta perraria a D. Diogo Lo-
pes , porque já são passados Ires annos , e não ha
ver seu resgate. »
E os peregrinos que vinham do captiveiro c re-
latavam laes cousas, bcin ceados c agasalhados iiu
castello , iam-se no outro dia com Deus , levando
provida a escarcella , e em boa e santa paz.
(Juem não ficava em paz era D. Inigo: «Porque
não vais tu á serra? — dizia-lhe uma voz ao ouvi-
do. «Porque não ides procurar vossa mãi : repetia-
Ihe o pagem Brearte.
Que lhe havia de fazer? — Uma noite inteira le-
vou em claro a pensar nisso. Pela manhaã , a Deus
e á sorte , ei-lo que emfim se resolve a tentar a
aventura , bem que de seu máu-grado.
Benzeu-se vinte vezes , para não ler lá de persi-
gnar-se. Rezou o Pater, a Ave, e o Credo; porque
não sabia se em breve essas orações seriam cousa
de recordar-se.
E seguido de um mastim seu predilecto, a pé e
com um venábulo na mão , foi-se alravez da flores-
ta por uma vereda que dizia para os píncaros tris-
tes e ermos, onde era tradição que a linda dama
tinha apparecido a seu pai.
ii.
Cantam os rouxinoes nos balsciros , murmurara
ao longe as aguas dos regatos ; ramallia a folha-
gem brandamente com a viração da manhaã: vai
uma linda madrugada.
E Inigo Guerra galga manso e manso os carris
empinados , trepa de barrocal em barrocal , e ape-
sar de seu muito esforço , sente bater-lbc o coração
com anciã desacostumada.
Onde o bosque fazia alguma clareira , ou as pe-
nhas alguma chapada , D. Inigo parava um pouco
tomando o fôlego , e pondo-se a escutar.
Muito havia que andava embrenhado: o sol ia
alto, e o dia calmoso: em vez do cauto do rouxi-
nol ouvia-se o piar da cigarra.
E encontrou uma fonte que rebentava de roche-
do negro , e ssltando de aresta em aresta vinha ca-
liir em almacega tosca , onde o sol parecia dançar
no bolir das ondasinhas , que fazia o despenho da
cascata.
D. Inigo asscnlou-se á sombra da rocha , c tiran-
do a sua monteira matou a sede que trazia , e pòz-
se a lavar o rosto e a cabeça do suor o pó, que não
lhe fallava.
O mastim depois de beber deitou-se ao pé delle,
e com a lingiia pemleote arquejava de cansado.
De repente o cão pòz-se em pé , e arremelleu
com um grande ladro.
D. Inigo volveu os olhos : um jumento silvestre
pascia na orla da clareira junto d'Mm frondoso car-
valho.
«iTarik I — gritou o mancebo — Tarik ! — MasTa-
rilí ia ávanle e não o escutava.
«Ai, deixa-o correr, meu filho! — Não c para
o teu mastim levar a melhor desse onagro.»
Isto dizia uma voz que , lá em cima no alio da
penha , soava.
Olhou : linda mulher eslava ahi assentada, e com
nm gesto amoroso e um sorriso d'anjo para clle se
inclinava.
«Rlinha mãi I minha mãi! — bradou Inigo Guer-
ra alevanlando-se : e lá comsigo dizia : — Vade re-
tro ! Santo llermenigildo me valha ! »
E como molhara a cabeça sentiu que os cabellos
se lhe iam alçando de arripiados.
«Filho, na lioca ""alavras doces: no coração pa-
lavras damnadas. !^las que iinporla , se és meu fi-
lho? Dize o que queres de mim, que Será tudo fei-
to a teu talaiilc e vontade.»
o PANORA3IA.
031
O moro cavalleiro nem acertara a fallar com me-
do. Já a este tempo Tarik gemia uivaDdo debaixo
dos pés do onagro.
«Caiilivo eslá de moiiros lia annos racu pii D.
Diogo Lopes: — disse por lim tiluhcaiido. — Qiiize-
ra me ensinásseis , senhora , o modo porqne hci-dc
salva-lo. »
«Seu mal, tão bera como tu, en sei. Se podcsse
ter-lhe-hia accorrido , sem que \iesses requere-lo;
mas o velho lyrauno do céu quer que cUe pene
tantos annos quantos viveu cora a com a que
sandeus chamara dama I'é-de-Cabra. »
«iVão blasphcmeis contra Deus, minha mãi, que
é enorme culpa : — interrompeu o mancebo cada
vez mais horrorisado.
«Culpa I — para mira não ha innocencia nem cul-
pa: replicou a dama dando uma gargalhada.
Era um rir de sonâmbula triste e medonho: se o
diabo ri, como aquelle deve ser o rir do diabo.
O cavalleiro nãu pode dizer mais palavra.
tilnigol — proseguíu cila — falta um anuo para
Cttmprir-se o captiveiío do nobre senhor de Bis-
caia. Um anuo passa depressa : mais depressa eu
t'o farei passar. Vés tu aqnelIe valente onagro? —
Quando uma noite acordando o achares ao pé de
li , manso como um cordeiro , cavalga nelle sem
SDSto , que te levará a Toledo onde livrarás leu
pai.» E bradando accrescentou : — Estás por isto,
pardallo?»
O onagro filou as orelhas , e em signal de appro-
Tação começou a azurrar : — começou por onde ás
Tezes academias acabara.
Depois a dama pòz-se a cantar uma cantiga de
bruxas, acompauhando-se de ura psalterio, de que
tirava mui estrideutes toadas :
Pelo cabo da vassoura ,
Pela corda da polé ,
Pela vibora que vé ,
Pela Sura e pela Toura ,
Pela vara do condão ,
Pelo panno da peneira ,
Pela velha feiticeira ,
Do finado pela mão;
Pelo bode rei da festa ,
Pelo capo inteiriçado ,
Pelo infante dessangrado
Que chupou vampiro á sesta ;
Pelo craneo alvo e lustroso
Em que sangue se libou ,
E do irmão que irmão matou
Pelo arranco doloroso ;
Pelo nome de raysterio
Que em palavras se não diz ,
Vinde já precitos vis ;
' , Vinde ouvir o meu psalterio !
E dançai-me aqui na terra
Ima dança doudejante ,
Que entonteça n'ura instante
O meu filho Inigo Guerra.
Que eile durma um anno inteiro.
Como em somno de uma hora ,
Junto á fonte que alli chora ,
Sobre » relva deste outeiro.
Em quanto a dama cantava estas cantigas , o
mancebo sentia ura quebramento nos membros
que crescia cada vez mais. e que o obrigou a as-
scii(ar-se.
E logo, logo onviu-sc um rnido abafado como
de trovões c de ventanias engolfando-se em caver-
nas subterrâneas : depois o céu começou a toldar-
se , c cada vez se entenebrecia mais até que emlim
apenas uma luz de crepúsculo o alluniiava.
E a mansa almaccga refervia , e os penedos ra-
chavam, e as arvores torciam-se ,e os ares sibilla-
vam.
E das bolhas da agua da fonte , e das fendas dos
rochedos, e d'entre as ramas dos robles, e da vas-
tidão do ar via-se descer, subir, romper, saltar . . .
o que? — Cousa muito espantavel.
Eram mil e mil braços sem corpos , negros co-
mo carvão, tendo nos cotos uma aza, e na mão c.t-
da um uma espécie de facho.
Como a palha que o tufão levanta na eira aquel-
la multidão de candeias cruzava-se , revolvia-se ,
unia-se, separava-se, remoinhava, mas sempre com
certa cadencia , como que dançando a compasso.
A D. Inigo andava a cabeça á roda : as luzes pa-
rcciam-lhe azues , verdes, e vermelhas, mas cor-
ria-lhe pelos membros uma languidez tão suave, que
não teve animo para fazer o signal da cruz e afu-
gentar aquelle bando de salanazes.
E sentia-se esvaecer , e pouco a pouco adorme-
cia, e dalli a pouco roncava.
Entretanto no castello tinham dado pela sua fal-
ta. Esperaram-no até a noite; esperaram-no uma
semana , um mez , um anno, e não o viam voltar.
O pobre Brearte correu por muito tempo a serra ;
mas o sitio cm que o cavalleiro jazia , isso c que
não havia lá chegar.
ill.
Inigo acordou alta noite: — tinha dormido algu-
mas horas — ao menos elle assim o cria. — Olhon
para o céu, viu estrellas : apalpou ao redor, achou
terra: escutou, ouviu ranialhar as arvores.
Pouco a pouco é que se foi recordando do que
passara com sua malaventurada raãi ; porque a prin-
cipio não se lembrava de nada.
Pareceu-lhe então ouvir respirar alli perto : afir-
mou a vista : era o onagro pardallo.
«Já agora meio enfeitiçado estou eu — pensou el-
le : — corramos o resto da aventura, a ver se posso
salvar meu pai. »
E pondo-se em pé encaminhou-se para o valente
animal, que já eslava enfreado e sellado ; cujos
eram os arreios , isso sabia-o o diabo.
Hesitou, todavia, um momento : tinha seus es-
crúpulos— a boas horas vinham elles — de caval-
gar naquelle corredor infernal :
Então ouviu nos ares uma voz vibrada, que can-
tava mui entoado: era a voz da lerrivel dama P'>-
de-Gabra :
Cavalga , meu cavalleiro ,
No alentado corredor ;
Vai salvar o bom senhor : •
Vai quebrar seu captiveiro>
Pardallo, não comerás
Nem cevada nem aveia ,
Não terás jantar nem ceia,
Rijo e leve voltarás.
332
O PANORAMA.
>'cm aroutc nem espora
Requer elle , oh cavalleiro I
Corre , corre bem ligeiro
Noite e dia , a Ioda a hora.
Freio ou sella não lhe tires,
Não lhe falles , não o ferres ,
Na carreira não te aterres ,
Para trás nunca Ic vires.
■ Upa I firme! — avante, avante 1
Breve , breve , a bom correr !
Um minuto não perder ,
Bera que o gallo ainda não cante.
«Vá ! — grilou Inigo Guerra com uma espécie de
phrenesi , que ncUc produzira aquclle cantar estra-
nho ; e d"um pulo cavalgou no immovel onagro.
Mas apenas se firmou na sella , pst ! — ei-lo que
parle I
IV.
Postoque em paz com os christãos, os mouros de
loledo tem pelas torres , cubellos , e adarves seus
atalaias e vigias , e nos montes que dizem para a
frontaria de Leão seus fachos e almenaras.
Mas se o rei leonez soubesse como descuidosa
jaz Toledo ; como ao anoitecer se deixam dormir
vigias , se deixam de accender fachos , quebraria
seus juramentos e faria contra aquellas partes uma
repentina arrancada.
Salvo ter de ir depois ao seu confessor dizer con-
fiteor JJco, e pcccavi ; porque o quebrar juramento,
ainda que seja a cães descridos, dizem ser feio pec-
cado.
È a hora do crepúsculo : ao sol posto os de To-
ledo mirando para a banda do norte viram lá mui-
to ao longe vir correndo uma nuvem negra , on-
deando e fazendo voltas no céu , como a estrada as
fazia na terra por entre os montes : dir-sc-hia que
vinha embriagada.
Era primeiro um pontinho ; depois crescera e
crcscfra : quando anoiteceu estava já perto e cubria
um grande espaço.
O muezzim subindo á torre da mesquita chama-
va os crentes de Mafamede para a oração da tarde.
Mas com a sua voz esganiçada se misturou o es-
tourar dos ti-ovões : era como um tiple e um baixo.
E passou um tufão de vento, que cmbrenhando-se
e remoinhando nas barbas longas e brancas do muez-
zim , lhe fustigou com ellas a cara.
Começou então a cahir uma corda de chuva, que
nem moços nem velhos se lembravam de ler visto
cousa similhanlc em nenhuma parte.
Aqui vcrieis os esculcas a aninharem-sc nas gua-
ritas das torres : os roídas e sobre-roldas a fugirem
pelos adarves ; os facheiros a sumircm-se debaixo
das almenaras; oshadjis a acolhcrcm-se ás mesqui-
tas molhados alé os ossos ; as velhas , que tinham
sabido ao vozear do muezzim, levadas pelas torren-
tes das ruas tortuosas e estreitas bradando por Ma-
foma c Allah. E a agua cahindo cada vez mais !
Dois únicos movimentos fazem então os morado-
res de Toledo: uns fogem, outros agacham-se. —
E a agua cahindo cada vez mais.
O pavor quebra todos os ânimos : os cacizcs es-
conjuram a procella : os faquires penitentes gritara
que se acaba o mundo , c que lhes deixe os seus
bens aquclle que quizcr salvar-se. E a agua cahin-
do cada vez mais.
A salvação de Toledo foi não se terem fechado
suas portas : se assim não succedesse, dentro do re-
cinto dos muros morria toda a mourisma affogada.
V.
Na prisão eslá D. Diogo encostado ás grades de
ferro. O pobre velho entretinha-se a ou^i^ aquelle
medonho chover ; porque a noite era comprida , e
elle não tinha que fazer mais nada.
Mas como o terreiro ante a sua gaiola de feras
era rodeado de muros , a chuva não podia escoar-
se toda , e vinha crescendo de modo que já ellc
sentia os pés molhados.
E também começou a ter medo de morrer, ape-
sar da sua miséria. Bem sabia D. Diogo que a mor-
te é a maior delias todas; que não era o senhor de
Biscaia atheu , philosopho , nem parvo.
IMas lá divisa um vullo alvacento, que salvou por
cima do palanque , e sente ao mesmo tempo no
meio do terreiro — plash ! —
E ouviu uma voz que dizia: «Nobre senhor D.
Diogo, onde é que vós vos achais'.» —
«Que vejo e ouço?! — exclamou o velho. — Um
trajo que não alveja , não é trajo d'ismaelita : uma
voz qnc não falia algaravia , não é d'infiel : um
salto de tal altura não é de cavalleiro do mundo.
Por vossa fé dizei-me , sois anjo , ou sois Santia-
go ? »
«Meu pai, meu pai! — acudiu o cavalleiro — já
não conheceis a falia de Inigo? Sou eu que venho
salvar-vos. »
E D. Inigo descavalgou , e travando das grossas
reixas tentava allui-las: a agua dava-lhe já pelos
artelhos, e elle não fazia nada.
Cheio de afllicção o mancebo quiz invocar o no-
me de Jesus ; mas lembrou-se de como alli viera ,
e este nome expirou-lhe nos lábios.
Toiavia pardallo pareceu adivinhar seu intimo
pensamento ; porque soltou um gemido agudo e rá-
pido como se o houvessem tocado com um ferro
era braza.
E empurrando com a cabeça D. Inigo , voltou a
anca para a grade.
Pan ! — foi o som que se ouviu. Com um só cou-
ce a reixa esta\a no chão, e as honibrciras de pe-
dra tinham voado cm mil rachas. Quer m'o creiam
quer não — di-lo a historia : eu com isto nem perco
nem ganho.
D. Diogo , esse ficou-o crendo ; porque uma las-
ca de pedra bateu-lhc nos dois últimos dentes que
tinha e metteu-lh'os pela goclla abaixo. Por isso el-
le cora a dòr não podia dizer palavra.
Seu filho fè-Io cavalgar ante si , e cavalgando
apoz elle , bradou : «Meu pai , estais salvo ! »
E pardallo de um pulo galgou de novo o palan-
que. Pois tinha bons quinze [lalnios !
Pela manhaã não havia signal de chuva ; o ar es-
tava limpo e sereno, e quando os mouros foram ver
o que succcdèra a D. Diogo Lopes não lhe acharam
sequer o rasto.
VI.
D. Inigo e seu pai, o velho senhor de Biscaia pas-
sam as portas de Toledo com a rapidez da frecha :
n'um abrir e fechar d'olhos ficam-lhc para traz mu-
ros , torres , barbacaãs e atalaias. A bátega vai di-
minuindo : rasgnm-se as nuvens, e veem-se já relu-
zir algumas estrellas que parecem outros tantos
o PANORAMA.
333
olhos com que o ccu espreita atravcz do negrume
o que se passa cá embaixo.
A estrada pelas descidas e suliid.''S dos recostos
converteu-sc cm leito de torrente , nos plainos con-
verleu-sc em lago.
Mas pelos lagos c torrentes o valente onagro rom-
pe avante , bufando como um damnado.
^'ão subiram bem um monte, j.i descem pelo ou-
tro recosto abaixo; ainda bem não chegaram a uma
clareira, já sentem em profunda lloresla gotcjareni-
Ihcs em cima os ramos agitados das arvores.
Pouco mais é de meia-noite , e os topos nevados
do Niudio se estampam no chão estreitado do céu
já limpo , similhanlcs aos dentes do uma serra gi-
gante capaz de devidir cèrceo o heraispherio aus-
tral do hemisphcrio boreal.
E pardallo investe sempre em galope espantoso
com as montanhas disformes , e desce os valles te-
merosos , e cada vez mais ligeiro , como o seu no-
me o indica, parece menos quadrúpede que pássaro.
Mas que ruido é esse que sobreleva ao do ven-
to? que é isso que, lá ao longe, ora alveja ora reluz
nas trevas, como uma alcateia de lobos involtos em
sudários brancos com os olhos só descobertos , e
despegando em fio pelo fundo do valle abaixo?
É um rio caudal e furioso com o seu manto de
escuma , e com as escamas angulosas do seu dorso
eriçado , onde batem e chispam os raios das estrel-
las em mil reflexos quebrados.
íscgreja sobre o rio uma ponte , ao meio desta
um vulto esguio. Será um marco? — uma columna
com estatua? — pensaram os cavalleiros. Pinheiro
não pôde ser: não consta que em taes sitios nasçam.
Pardallo ria-se de rios ; pontes, fazia tanto cabe-
dal delias como de um retraço de palha. Todavia,
bem que podesse de um pulo salvar vinte ribeiras
como nquella , foi-se direito aponte; porque não
era animal que fizesse africas escusadas.
Similhante a relâmpago se arrojou o onagro áquel-
le passo estreito; mas, tá I — ei-lo que de repente
pára.
E tremia como varas verdes , e arquejava com
violência : os dois cavalleiros olharam.
O vulto esguio era um cruzeiro de pedra alevan-
tado a meia ponte: por isso pardallo emperrava.
Então d'entre uns altos choupos que da margem
d'alem se meneavam um pouco mais abaixo daquel-
le sitio ouviu-se uma voz fadigosa e tremula que
cantava :
Para traz, para traz, a galgar I
.Já:
De redor , de redor vem passar
Cá :
Que não ha nada aqui que te empeça !
Buz,
Nem palavra , vós dois ! Fugi dessa
Cruz !
Santo nome de Christo I — exclamou D. Diogo
benzendo-se ao escutar aquella voz que bem co-
nhecia , mas que depois de tantos annos não espe-
rava alli ouvir , porque seu filho não lhe dissera
que meio achara para o salvar.
Apenas o grito do velho soou , assim elle como
D.Inigo foram bater contra o poial do cruzeiro on-
de ficaram de bruços , involtos em lodo. O onagro
ao sacudi-los de si soltara um rugido de besta-fe-
ra. Sentiram então um cheiro intolerável d'enxofre
e de carvão de pedra inglez , que logo se percebia
ser cousa de satanaz.
E ouviram como um trovão subterrâneo; e apon-
te balouçava como se as entranhas da terra se des-
pedaçassem.
-Vlicsar do seu grande terror , e de clamar ; ola
\'irgem Sanlissima, D. Inigo abriu um cantiidio do
olho para ver o que se passava.
.\ós os homens costumámos dizer que as mulhe-
res são curiosas. Nós é que o somos. Mentimos co-
mo uns desalmados.
(Jue veria o cavalleiro? Um fojo aberto bem pró-
ximo dcUe sobre a ponte , e que depois rompia pe-
la agua :
E depois pelo leito do rio ; e depois pela terra
dentro, dentro ; e depois pelo teco do inferno, que
onlra cousa não podia ser um fogo muilo vcrmclln)
que reverberava daquella immcnsa profundidade.
Tanto era isso , que ainda lá viu passar de re-
lance um demónio com um desconforme espeto nas
mãos cm que levava um judeu empalado.
E pardallo descia remoinhando por esse boiíuci-
rão, como uma pcnna cahindo em dia sereno do al-
to de uma torre abaixo.
Aquella vista fez perder os sectidos a D. Inigo,
que indo também a chamar por Jesus achou que
não podia proferir este nome sagrado.
De terror tanto o velho como o moço ficaram alli
em desmaio.
Quando tornaram a si com o romper do sol cla-
ro , conheceram o sitio em que se achavam. Era a
ponte próxima á aldeia de Nusturio , uo alto da
qual campeava o castello construído por D. Frora o
saxonio , avô de D. Diogo Lopes , e primeiro se-
nhor de líiscaia.
Nenhum vestígio restava do que alli se passara :
os dois moídos e cheios de lodo e pisaduras foram-
se arrastando como poderam até encontrarem alguns
villões a quem se deram a conhecer , e que os le-
varam a casa.
Festas que em Nusturio se fizeram por sua vin-
da , cousa é que não vos direi ; porque não tarda a
hora de cear — rezar — e deitar.
Vil.
D. Diogo pouco tempo viveu : todos os dias ou-
via missa ; todas as semanas se confessava. D. Ini-
go , porem , nunca mais entrou na igreja , nunca
mais rezou , e não fazia senão ir á serra caçar.
Quando tinha de partir para as guerras de Eeão
viam-no subir á montanha armado de todas as pe-
ças, e voltar de lá montado n'um agigantado onagro.
E o seu nome retumbou em toda a Hcspanha ;
porque não houve batalha em que entrasse que se
perdesse , e nunca em nenhum recontro foi ferido
ou derribado.
Diziam á boca pequena em Nusturio que o illus-
tre barão tinha pacto com Belzebuth. Olhem que
era grande milagre !
Meio precito era elle por sua mãi : não tinha
que vender senão a outra metade da alma.
Por oitenta por cento de lucro no recibo de um
egresso a dá ahi inteira ao demo qualquer crcalu-
ra , e crè ter feito uma limpa veniaga.
Fosse como fosse, Inigo Guerra morreu velho : o
que a historia não conta é o que então se passou
no castello. Como não quero improvisar mentiras
por isso não direi mais nada.
Mas a misericórdia de Deus é grande. A cautelia
rezem por elle um Pater e um ^Ire. Se não lhe
aproveitar, seja por mim. Amen. — (A.Uerculano).
334
O PANORAMA.
TALIíSTRAND.
Este homem extraordinário, três mezes antes de
morrer , recitou no Inslitulo o elogio do conde de
Renhard , e nesse discurso disse — que um ininls-
iro dos negócios estrangeiros hade possuir a facili-
dade de parecer siiicero, ao mesmo tempo que nin-
guém lhe possa penetrar os pensamentos ; e de ser
desconfiado na realidade, postoque perfeitamente
franco em suas maneiras. — Nesta máxima delineou
Talleyrand o seu pioprio retrato. A faculdade de
occuitar as suas opinicíes nos casos graves ou im-
previsto-s, e o aflinco em attlender ao principio de
que os attaques á pessoa desvanecemse com o tem-
po por carência de opposição , deram em resultado
a ignorância dos contemporâneos quanto ao verda-
deiro caracter de tão notável homem : o seu silen-
cio systematico foi occasião de vogarem imputações
que não merecia se lhe fizessem ; mas é certo que
contribuiu por outro lado para lhe grangear maior
fama de habilidade c talentos do que lhe competia.
Carlos Mauricio de Talleyrand Perigord nasceu
aos 13 de fevereiro de 1754, o primogénito de três
irmãos que foram: era de familia antiga e nobre,
mas seus pais o desprezaram e pozeram a criar
n'um subúrbio de ['arís. Por effeito d'uma queda ,
tendo apenas um anuo , ficou para toda a vida co-
xo , e incapaz portanto do serviço militar ; viu-se
depois obrigado a renunciar os direitos de morga-
do em prol de seu segundo irmão , e a seguir a
profissão ecclesiastica. A aversão que lhe tomara a
familia , e que lhe não escondiam , o fez de génio
sombrio e taciturno. Transferido da tutclla da ama
para o collegio d'Harcourt, e dahi successivaraenle
para o scraiaarin de S. Sulpicio e para a Sorbon-
na , revelou sempre a indole de mancebo relrabi-
do , orgulhoso, e ao mesmo tempo dado aos estu-
dos. Mostrou na futura vida publica tanto gosto lit-
lerario e tão extensos conhecimentos, que tão bem
cabiam n'um homem d'eslado, que forçosamente sc
deprebende terem sido adquiridos na primeira ida-
de , porquanto a turbulenta carreira em que de-
pois se viu empenhado não lhe permillia folgas pa-
ra taes applicações.
Chegan(io aos vinte annos, augmentado em repu-
tação de talento, e restabelecido de saúde, estes
predicados o reconciliaram com a vaidade de seus
pais, que então o recunhcceram ; e o introduziram
na sociedade de seus iguaes , pela primeira vez ,
na occasião em que sc celebravam as solcmnidades
da coroação de Luiz Ki." — Mancebo, nobre, de
ardente temperamento, de agudo engenho, possui-
d(ir de boa presença, e sobretudo daquelle dote do
espirito , que mais agrada , isto é , a graça e vive-
za da conversação , não admira que assim que en-
trou no mundo grangcasse applausos e estima , co-
nhecimentos e amizades ; e postoque no exterior
conservasse a seriedade a que o habituaram as im-
pressões de sua primeira idade , soube com destre-
za modifica-la por tal arte que era de lodos bem
recebido e festejado. Dedicado ao estudo ecclesias-
lico contra sua vontade, não era estranho ás dis-
tracções mundanas ; é porem constante quão poucos
escrúpulos o clero francez em geral tinha nesses
tempos licenciosos: pelo que o juizo severo de al-
guns não impediu que cm 1788 fosse elevado á di-
gnidade de bispo d'Autun. Por outra parte os seus
talentos o acreditavam tanto, que o corpo do clero,
o PANORA3IA.
33S
então mui poderoso , o nomeara oito annos antes
agente ou [irocurador geral <la urdi-m ecclesiaslÍLa
no reino, cargo melindroso e de extensa inlluencia,
e que parecia impropriamente cninniellido a um
mancebo de '2G annos; mas no desempenho do qual
clle se houve com tania aptidão e pericia , que pe-
lo desenvolvimento de sua habilidade admuislraliva
entrou a ser ainda mais conhecido do publico em
todas as classes da sociedade. Tal foi porventura a
origem principal de seu futuro engrandecimento.
Rebentando a estupenda revolução de 178!), elei-
to deputado pelo clero aosEstados-geraes, deu Tal-
leyrand principio á sua carreira politica : abraçou
calorosamente a causa nacional e continuou a de-
fende-la com talento e perseverança na assemblca
consliluinle. Alem de innumeraveis trabalhos , dis-
tinguiii-se; por ser o primeiro que votou pela reu-
nião do clero ao terceiro estado ; por ter promovido
a abolição dos dizimos e a applicação dos bens ec-
clesiaslicos ao lhes<iuro publico ; pela redacção de
mui crescido numero de relatórios sobre fazenda
nacional, in*trocção publica, e pezos e medidas;
e como membro da commi^são de consliluição, pela
famosa decl.irição dos rliíeilos do Itnniem. \ 16 de
fevereiro de 1790 elegeram-no presidente daquella
assembléa; e em 14 de julho do mesmo anno oHi-
ciou de pontifical na aliar da palria no campo de
Marte em a ceremonia da confederação franceza.
Foi lambem do* primeiros que preslou juramento
de obediência n constituição civil do clero, e o úni-
co dos bispos fraiicczes que se prestou a sagrar os
nomeados conslilucionalmente ; proceder reprovado
pelo pontifico Pio 6.° qiie fulminou excommonhão
contra Talleyraiid. o qual deu a renuncia da cadei-
ra episcopal de Autun.
Em 1791 foi eleito membro do Directório, e
pouco depois como testamenleiro de .Mirabeau veio
dar parle á assembléa nacional da morte daquelle
celebre orador. Assim como a corte o aborrecia
por haver tomado abertamente parle na revolução,
os republicanos não gostavam do seu riso d'escar-
neo , e do aferro com qiie advogava a monarchia
modificada. Todavia Luiz 16.°, no primeiro quar-
tel de 1792. incumbiii-lhe uma commissão a Ingla-
terra , postnque polilica , sem cariícler diplomáti-
co: nenhum bom resiillado teve a sua missão: mas
conservou-se em f.ondres por espaço de dois annos
mantendo relações com os homens principnes da re-
publica . não obstante simular o ser perseguido por
parle desta: sem embargodisso as suasoccullas ma-
qninações causaram a ordem rigorosa que era 1794
o constrangeu a sahir da tiraã-Iiretanha , vendo-se
então precisado a refogiar-se nos Eslados-Unidos.
Por inlluencia de M."" de Stael, voltou á pátria no
anno seguinte, e continuou a ser um dos homens
mais interessantes á republica cm consequência de
trabalhos cactos, que não podem enumerar-se n'um
breve esboço biographico : por fim em 1797 [anno
S." da republica] chegou ao estádio politico, em
que tinham de brilhar com maior esplendor os seus
talentos e extraordinária sagacidade: foi nomeado
ministro dos negócios estrangeiros , posto em que
se manteve , desta primeira vez , até 19 de julho
[Continua].
Da BENEFICE5CU PCBLICA E DOS àSYLOS 0E ME5WCIDADE.
Indigência , pauperismo e mendicidade são três '
grandes symptomas pelos quaes o esladisla observa- 1
dor pôde calcular o gra'u de roiscria a que se acha
reduzida a nação que faz objecto das suas indaga-
ções. 5!as acontece que, por falia de noções exactas,
cscriptores da iirimeira ordem tem confundido umas
com as outras estas Ires expressões ; e , por conse-
guinte , uns tem dado sobre os diversos paizes as
mais falsas informações a este respeito : outros tem
aconselhado a adopção de systemas de l)cneficcncia
publica, n)ais próprios para angmenlar do que pa-
ra diminuir o numero dos desgraçados.
Cumpre pois fazer notar que pôde a miséria pu-
blica parecer muilo mais grave era um paiz do que
em outro se se altende ao numero dos mendigos,
entretanto que parecerá muito menos infeliz se se
considera relativamente ao pauperismo. N'outros,
pelo contrario , onde o numero dos mendigos é mui
diminuto, e apenas se descobrem alguns ^estigios
de pauperismo . o numero e a qualidade dos indi-
gentes nos fazem conhecer que a miséria tem alli
chegado ao mais alto grau de gravidade.
O funesto syniptímia do jiaMpirismo não se obsef-
va senão nos paizes que tem chegado a um muito
considerável gr.áu de civilisação. .\ mendicidade é
pri.pria dos paizes medincrcmente ci\ilÍ5ados; e a
indigência desliliiida d'anibos a(|uelles dois modos
de beneficência caraclerisa os estados que ainda se
acham, como se costuma dizer, na infância das
sociedades.
Em quanto , pelo atraso do eommercio e da in-
dustria . as riquezas se acham concentradas nas
mãos de um pequeno numero de ricos-homens ,' a
classe de humens , que são inválidos ou ociosos ,
ainda quando seja numerosa , não precisa de men-
digar; nem a beneficência é obrigada a recorrer a
organisação do pauperismo : todos clles se distri-
buem ()elas casas dos homens abastados, a cuja
sombra vão viíendo. ou antes vegetando, como
plantas parasitas ou como apaniguados.
Qu.indo porem na successão dos tempos , o pro-
gresso da civilisação tende a dividir as riquezas,
desapparecendo essas famílias de grandes proprie-
tários terrítoriaes , e succedendo-lbes lavradores
mais ou menos abastados, fabricantes, negociantes
e capitalistas mais ou menos ricos, mas, tanto uns
Como outros, ephemeros, e cujas casas duram apenas
d;ias gerações, diminue o patronato dos pobres, e
são estes obrigados a lançar-se á vida de mendi-
gos; uns por inválidos, ,c outros, em maior nume-
ro , por ociosos.
O espectáculo desta miséria , que infesta as ruas
c as rasas , desperta , revolta e , até certo ponto ,
envergonha a classe opulenta : e quando a corru-
pção. que de ordinário vai progressivamente ga-
nhando terreno ao passo que a civilisação e o luxo se
desenvol\em , faz avultar desmedidamente o nume-
ro dos mendigos, cresce nestes a desmoralisação e a
audácia ; os ricos comprehendem os perigos com que
os ameaça a revoltosa inveja dos pobres, e sentem
a necessidade de capitular com elles , suavisando ,
sem a remediar, a sua indigência, a fim de os con-
servarem dependentes e submissos. E eis-aqui n
origem do pauperismo , que consiste n'um systema
organisado de subsídios fornecidos pela clnsse opu-
lenta ás classes indigentes, debaixo da inspecção
mais ou menos directa das auctoridades constituí-
das.
Três symptomas se tem seguido na organisação
destas instituições de beneficência publica : umas
vezes Icm-se creado vastos edificios aonde se reco-
lhem os indigentes, sem mais distiacção que a dos
336
O PAIVORA3IA.
sexos; e sem se Ibes impor obrigação de trabalho:
ealras Tezes, dislinguindo-se , alem dos sexos e
das idades, a capacidade de trabalhar, icm-se crea-
do hospícios para inválidos e casas de trabalho pa-
ra todos os mais indigentes ; outras vezes . emfim ,
tem-se preferido distribuir trabalhos safficientemen-
te remunerados aos indigentes válidos , e soccorros
gratuitos aos inválidos, mas tanto uns como outros
eoi suas casas.
A primeira destas três sortes d'instituições , es-
ses asvjos de mendicidade , são outros tantos focos
de imraoralidade e dissolução, como asylos que são
da preguiça e da ociosidade.
A pratica de distribuir tanto os trabalhos, como
os subsídios gratuitos por casa , seria preferivel a
qualquer outro syslema , se se não tornasse impra-
ticável pelo complicado detalhe da administração :
lauto mais impossível de sustentar quanto fôr mais
rápido o progresso da indigência : pois seja qual
íór o methodo de beneCcencia que se adopte, o seu
inevitável effeito é de augmentar o numero dos po-
bres e aggravar os males da indigência.
Não resta pois outra opção, e é forçoso dar a pre-
ferencia ao segundo syslema creando hospícios pa-
ra os indigentes absolutamente inválidos ; e casas
de trabalho para aquelles que conservarem ainda
a faculdade de grangearem pelo seu trabalho os
meios da sua subsistência ou , pelo menos , parte
delles.
Cumpre porem advertir que a reunião dos indi-
gentes nestas casas de trabalho está sujeita a mui-
tos e mui graves inconvenientes ; de que só apon-
taremos os Ires princípaes , não nos permiltindo a
estreiteza deste artigo sermos mais extensos.
O homem, postoque naturalmente sociável, é do-
tado de muitas outras paixões diversas , de que re-
sulta o que se costuma chamar sympathias , e anti-
pathias, compatibilidade ou incompatibilidade de
génios, usos, costumes, princípios moracs e reli-
giosos entre si repugnantes ; e emfim hábitos c mo-
dos de viver inteiramente disparatados e inconci-
liáveis. Já se vê pois quão grandes e inevitáveis
desordens são de recear destas forçosas reuniões.
O segando inconveniente consiste na impossibili-
dade de reunir , sem oífensa da moral publica , um
certo numero de famílias no mesmo ediíicio ou
qualquer outro restricto recinto. Por conseguinte ,
devendo estes estabelecimentos conter unicamente
pessoas solteiras ou viuvas, quer de um, quer de
outro sexo , vem a ser um grande obstáculo ao es-
pirito de família, sem o qual é impossível conce-
ber uma sociedade regular.
O terceiro inconveniente das casas de trabalho é
a funesta inOucncia que ellas exercem sobre os
preços do mercado , assim como sobre as qualida-
des dos produttOB : sabemos que os regulamentos
daqucllas casas podem diminuir , até certo ponto ,
estes dois graves inconvenientes , mas não os po-
dem extirpar, nem mesmo reduzir a uma dimensão
que o seu effeito se possa reputar indiflerente para
a industria.
Ponderados x>ois todos estes inconvenientes dos
diversos systemas de beneficência publica ; parece-
Dos que a organisacão do trabalho pela maneira
que havemos expendido no nosso projecto d'asso-
ciação das classes industriosas , ou por outro mais
bem concertado , seria o único meio de suspender
a torrente que ameaça a agricultura e a industria
de uma prompta e total ruína.
Silvetlre Pinheiro Ferreira.
TCMILO PABA Mb. de CHATEáUBBUKD.
o GEMO inspirado, que elevou ao cbristianísmo um
dos maiores monumentos intellectuaes , que desta
religião tem surgido — o cantor dos martyres — o
historiador estudioso e profundo, já tem preparado,
na terra onde nasceu , um asylo para os seus últi-
mos restos. Os ossos venerandos de Mr. de Cha-
leaubriand repousarão no cimo de uma rocha , á
beira do mar, e á sombra da cruz. O illustre poe-
ta toda a sua vida desejou que a sua sepultura fos-
se em Saint-Maló, cidade onde nasceu aos 4 de no-
vembro do anno do Senhor de 1768. Em 1828 com-
rauDÍcou este seu deseja ao curadlto municipal de
Saint-Maló, o qual, respondendo a um pedido que
tanto o lisongeava e enobrecia , se oíTcreceu para
construir o tumulo á custa da municipalidade. Es-
te offereciraenlo , ainda que muito honra os mem-
bros do comellio munidjtal , dá a conhecer que el-
les não comprehenderam a intenção do poeta reli-
gioso , a qual toda se revela na resposta que rece-
beram de Mr. de Chateaubriand , e é a seguinte :
— cEu nunca pertcndi , nem ousaria nunca espe-
rar, que os meus concidadãos se encarregassem das
despezas do meu tumulo. Eu só pedia que me ven-
dessem uma porção de terreno no lado occidenlal
da Ilhota de Grand-Iiay , que tivesse 20 pés de
comprimento e 12 de largura , para eu mandar cer-
car de ura muro rente do chão , no qual assentaria
uma grade de pouca altura , e que serviria de res-
guardar as minhas cinzas , mas que de modo ne-
nhum podesse ser considerado como ornato.. Dentro
do espaço guarnecido por esta gradaria devia ser
collocado um pedestal de granito dos rochedos que
cercam a praia , e nesle pedestal se havia de cra-
var uma cruz de ferro sem inscripção , nome , nem
data. A cruz diria que o homem que jazia aos seus
pés era um chrislão , e l.into bastaria á memoria
desse homem. « Todos estes desejos de Mr. de Cha-
teaubriand foram realisados ; e o promontório açou-
tado pelas ondas , e que tem o aspecto de um tu-
mulo , está para sempre ligado á historia maravi-
lhosa do espírito humano. — Entre as forliCcações
com que em 1G.52 o guarneceram , quando a Fran-
ça temia o poder de Cromwel , vê-se o monumento
simples e chrislão , que lerá de levar á posteridade
a memoria do novo apostolo do cbrislianismo. Não
é esta a primeira vez que a cruz coroa estes ro-
chedos , e antes de 1652 se alevantava sobre uma
ermida de S. Oven , que oulr'ora fora construída
sob a invocação de St.' Maria do Loureiro — hoje
o pensamento sublime de um grande homem a er-
gueu de novo nesse pedregoso pedestal , donde a
arrancaram as exigências da guerra. Permitia Deus
que Mr. de Chateaubriand continue por muitos an-
nos a ver o seu tumulo , e ainda muitas vezes pos-
sa ir orar ante a cruz que lembrará aos vindouros
o jazigo do seu cadáver ! — S. J. Ilibeiru de Sá.
Pensamenio de Frederiro 2." rei da Prusría. — O
homem , a quem se não mcller em cabeça que do
céu cahíu na terra , para quem não data o mundo
tão somente do dia em que nasceu, deve ler curio-
sidade de saber o que tem succedido em lodos os
tempos e povos. .Se por indifTcrença não tomar calor
a respeito de muitas nações grandes, que foram al-
vo da sorte , ínteressar-se-ha ao menos no que toca
ao Estado cm que habita , e verá com prazer as
acções de seus antepassados.
%
o PA>'OR.lAIA.
337
MAHOKET O GCEHHEIRO.
Peia espontânea abdicação de Amiirath 2.', era
1444, foi proclamado imperador dos oUomanos seu
lilho Mahomet 2.": amotinados porem os jaiiizaros ,
que mostraTam corao iiiconvenioiite para a gover-
nança a idade juvenil do príncipe, viu-se Amnralh
obrigado a tomar de novo o regimen do estado até
a sua morte, que aconteceu nos princípios de 1451;
em que Mahomet , contando úi annos . começou a
reinar sem contradicção. Quebrou este as tréguas
que estavam pactuadas com o imperador bysantino,
mandando construir uma fortaleza ua margem eu-
ropea do Bosphoro , fronteira á de Auatoli-hissar ,
que seu predecessor Bajazeth fizera levatitar ua
costa asiática daquelle estreito; deste modo ficou
dominador absoluto do Bosphoro. Queixou-se de
tal facto Constantino Paleologo . imperador de By-
sancio, porem Mahomet respondeu-lhe com despre-
zo , e tratou de sujeitar as cidades gregas da Pro-
pontide e do Euxino. assolou a Thracia, e invadiu
a Morea. A línal . lendo reunido um exercito ex-
cessivamente numeroso , que alguns asseveram pns-
OcTiBRO 2S— ISio.
s.ir de trerenlos mil homens . com formidável arti-
liiaria. e uma frota de tiO velas, pòz cerco a Cons-
lantiuopola em abril de 14o3 ; durou o sitio 54
dias, e a cidade foi levada d'assalto poios ottoma-
nos aos '29 de maio. Constantino morreu valorosa-
mente pelejando na brecha. Houve três dias de sa-
que e matança : depois Mahomet restaurou a or-
dem, soltou muitos prisioneiros, concedeu aos con-
quistados o livre exercício de sua religião doando-
Ihes para esse fim amelade das igrejas existentes ;
as mais . e entre ellas a principal . St.' Sophia . fo-
ram transformadas em mesquitas. Mahomet residiu
perlo de Ires annos em Conslantinopola , e no bm
deste tempo rccolheu-se triumphanle a .\.driauopoli.
ijue era a corte dos sultões otlomanos. — Em i-»ob,
invadida a Servia, cercou Belgrado; mas oppòi-
se-lhe e o desbaratou João Hunnyades. nobre hun-
saro . regente do reino na ausência do rei Ladis-
I:iu : foi o primeiro rever que as armas uialunneta-
nas solTreram no seu progresso pola Europa : simul-
taneamente seus seneraes furam derrotados nas serra*
2.' Skkie. — Voi. U.
338
O PAINORAMA.
da Albânia pelo famoso Scanderberg : todavia os
turcos tomaram Corinlho e a Morea , e em 1461
Trebizonda , acabando com a dynastia dos Comne-
nos ; no anno immediato Lesbos e outras ilhas do
Archipelago cahiram cm seu poder. Em 1462 con-
quistaram a Dosnia ; e Mahomet mandou matar o
princi|)c havendo-lhe alliançado falsarianiente toda
a segurança. O orgulhoso e valente sullão viu no-
vamente anniquiladas as suas tropas em batalha
campal , dada por Scanderberg á vista das mura-
lhas de Croia : comtudo o aguerrido alhanez per-
deu pouco a pouco as planicies , c recolhido ao
abrigo das montanhas, bem defendidas pela sua pe-
rícia 6 por animosos soldados , morreu antes d'en-
celnr nova campanha, deixando seu filho menor,
João Castrioto , sob a tutella do senado veneziano.
A illustre senhoria [como era costume intitular a
poderosa dominadora do Adriático] mandou pelos
seus accometter e espoliar as costas de Thracia e
da Ásia Menor, e varias ilhas do Archipelago; fi-
zera sua praça forte em Negroponto, no mar Egeu,
mas ahi a foi combater o audaz e inquieto .Maho-
jnel , correndo o anno de 1470; o governador de-
pois de briosa resistência chegou ao apuro de ca-
pitular e entregar-se á fé do vencedor, que pro-
metlcra conservar-lhe a cabeça : Mahomet , infiel e
bárbaro como tantas vezes , mandou que fosse sei--
rado ao meio do corpo. — Os venezianos por medi-
diação de seus agentes conimerciaes incitaram con-
tra o soberbo turco o monarcha da Pérsia , que in-
vadiu a Ásia Menor em 1472. Mahomet correu ao
encontro do novo inimigo, e na batalha de Trebi-
zonda o pòz em fuga , perseguindo-o tenazmente na
retirada e expulsando-o para alem do Euphratos. —
Em 147o occupou a Crimea , que fez tributaria.
Uahi a Ires annos enlrou com m<ão armada pela
Dalmácia, e progredindo peloFrioul obrigou os ve-
nezianos a pedir paz, que se ajustou em janeiro
de 1479 , e pela qual cederam elles , alem de Scu-
tari , muitas fortalezas da lllyria , Albânia e Morea.
Em 1480 desembarcaram turcos em Otranto e met-
teram susto a toda a Itália : não tiveram ulteriores
vantagens: nesse anno os mesmos atlac.iram também
a ilha delihiidcs, resisliram-lhc porem com esforço
c felicidade os cavalleiros de Malta, c foi este me-
inorando cerco assaz glorioso para aquella ordem
illustre; era grão-inestre Pedro d'Aubusson. Gran-
demente irado (içou Mahomet com as novas deste
desbarate; e tratando de ajuntar gente, navios, e
munições para cm pessoa capitanear a segunda ten-
tativa , saltcou-o a morte em Teggiar na Bythinia
DO mez de maio de 1481. Trasladaram-lhe os os-
sos para Constanlinopola , e pozcram-lhe no monu-
mento epitaphio pomposo , em que é digna de nota
a seguinte phrase. — «Intentava conquistar lUiodes
e subjugar a valente Itália.
Foi conquistador bem succedido no maior nu-
mero de suas eniprezas ; cruel como quasi todos os
guerreiros oltomauos ; mas não era illiteralo e rude.
como pensam muitos. Conhecia diversos idiomas ,
entre elles faltava corrente o persa, o árabe, e o
grego commum ; era dado á poesia oriental ; e so-
bresahia no estylo epistolar: muitas de suas cartas
foram tradiizidas em latim e publicadas por Landi-
ni , em Leão , la'20. Entre os turcos ó cognomina-
do Mahomet o Magno , o conquistador. Quem pro-
curar mais noticias a respeito de sua vida e feitos,
tão ligados com os principaes succcssos do seu tem-
po, hade acha-las na Historia dos turcos de Know-
Ics , e na Historia do impcrio oltomano de Mignol.
Apontamentos para a Historia dos bens da coroa
e dos fobaes.
I.
Ha dois annos que no 5.° volume do Panorama ap-
pareceram três artigos sobre a historia dos foraes
em Portugal : parecerá pois escusada a associação
que, segundo a epigraphe que acima escrevemos,
vamos fazer no presente trabalho , destas duas es-
pécies históricas , com o fim de darmos aos leitores
algumas idéas mais averiguadas sobre matéria que
as circumstancias actuaes toruam do maior interes-
se para uma grandissima parte dos nossos concida-
dãos. Por duas rasõcs , todavia, ligámos essas en-
tidades : primeira, porque o intento com que re-
digimos os presentes artigos não nos consente o se-
para-las : segunda, porque o que neste jornal se
escreveu ha dois annos c até certo ponto inexacto ;
inexacto não lauto na veracidade dos factos como
na sua apreciação , ou valor histórico. Ycse que o
illustrado redactor daquelle escriplo seguiu princi-
palmente as doutrinas do allemão .Schéller , auclor
^ia recenlissima Historia de Portugal. Era o gula
mais seguro que podia .escolher ; mas Schéffer ap-
plicou o seu grande engenho histórico aos mate-
riaes que lhes oITereciam os nossos melhores livros,
e sobre este objecto , força é dize-lo , o melhor que
possuímos ainda não é o bom. Assim o estrangeiro
errou porque os naturacs, a quem o achar a verda-
de era mais fácil, erraram primeiro; eclle não po-
dia recorrer á principal e quasi única fonte legiti-
ma da historia — os archivos do paiz. Ainda , por-
tanto , que não nos fosse necessário para o objecto
que levámos em mira o tocar de novo na matéria
dos foraes, o fazc-lo não fora inútil, ao menos como
rectificação ao que naquelle anterior escripto nos
parece menos bem avaliado.
Dissemos — o objecto que levámos cm mira: — de
feito ha no presente trabalho uma intenção grave.
Os acontecimentos políticos de Portugal trouxeram
a celebre lei chamada, impropriamente talvez , dos
foraes. Esta lei alevantou interesses contra interes-
ses : citámos um facto, não o avaliámos, porque
nos queremos e havemos de conservar dentro dos
limites deste jornal — a stricta abnegação de poli-
tica. A lucta de interesses produziu as disputas;
mas versando estas sobre matéria imperfcilamcnte
conhecida , as opiniões acerca delia tem sido exag-
geradas e muitas vezes falsíssimas em todos os sen-
tidos : em conversações e , o que mais é , na im-
prensa temos ouvido c lido as cousas mais absurdas
a este respeito ; e havemo-nos con\eiu'ido de que
bem poucos vcem a que.-lão á sua verdadeira luz.
É por isso que entendemos seria um bom serviço
ao paiz recordar-lhe essa parte da nossa historia
económica, deixando aos outros tirar as illações do
passado para o presente e futuro ; mas tira-las de
premissas verdadeiras, e não deduzi-las de supposi-
çòes gratuitas que nunca existiram , ou existiram
de um modo mui diverso daquelle que geralmente
se crê.
Se as paixiícs politicas , ou mal entendidos inte-
resses fizerem com que saiam baldadas as nossas
diligencias para generalisar alguma luz sobre uma
questão que importa á justiça , á moral , e ainda á
utilidade do paiz, fique o que vamos escrever ao
menos como incentivo (lara a curiosidade daquelles
a quem resla o amor das velhas cousas da pátria,
amor cuja falta é indicio certo da morte da nacio-
o PA]>ORAI>lA.
339
Dalidade , e por consequência do estado decadente
e da ultima mina de qualquer puvo.
A monarchia portngueza nasceu como toil.is as
outras do sul da Europa no meio das luctas da ida-
de-media , posloque em epocha mais recente que o
comnium delias: tronco separado da sociedade lics-
panhola. os factos qne inlluiram na organisação dos
ditTerentes estados que no correr dos séculos vie-
ram a Constituir esta , inQuirara também mais ou
menos na sua organisação. Assim os phenomenos pe-
culiares, que distinguem a iodole dos demais esta-
dos da Península na sua infância, distinguem igual-
mente o nosso Portugal. Cumpre examinar destes
os que actuaram na queslfio de que nos occupàmos
para podermos entrar nella com clareza assentando
os seus fundamentos solides. O estado da proprie-
dade é o mais importante , o» antes o que resume
todos.
Bem curto período linha decorrido desde que o
território portuguez se libertara do dominio árabe,
quando nasceu a nossa monarchia ; os reis chris-
tãos , successores de Pelaio , tinham gradualmente
reconquistado para a Europa e para o Evangelho
uma parte delle : o conde Henrique havia prose-
guido na mesma empreza com feliz successo , ao
passo que lançava os alicerces de um estado inde-
pendente: seu filho continuou a obra dos reis de
Leão e do valoroso conde , econjunctamcnte esta-
beleceu essa independência , que no governo de
Henrique fora apenas uma tentativa : passado Um
século Portugal tinha alcançado quasi sem dífleren-
ça alguma os limites aciuaes. O meio por que se
chegou a este resultado foi unicamente um — a
conquista — ou por outra, a substituição do do-
minio christão ao dominio musulmano.
J!as isto aconteceu n'uma epocha em que a con-
quista não importava a mesma idéa que signiíicára
sete ou oito séculos antes, qu.indo as raças do nor-
te , invadindo o império romano , repartiam entre
si nos campos de batalha os membros despedaça-
dos daquellc desmesurado colosso. Então a Iribu
selvagem da Germânia ou da Scandinavia vinha ap-
possar-se dos campos das províncias romanas : o
caracter da conquista feita pelos homens do norte
era a occupacão da propriedade iudi\idual dos ven-
cidos pelos vencedores, ou ao menos a divisão del-
ia. Os bárbaros não se contentavam de direitos fis-
caes na terra : queriam a posse delia. Foi deste
modo que os burguodios nas Gallias, e os visigodos
na Septimania e na Hespanha tomaram para si dois
terços de cada propriedade , os herulos na Itália
ura terço , e assim por diante. Os árabes , porem ,
vè-se claramente haverem seguido um systema di-
verso; porque eram gentes mais ou menos civilisa-
das , e comprehendiam como uma nação pôde sub-
jugar e encorporar em si outra sem expropriar o
dominio individual da (erra. Aos godo-romanos que
sujeitavam á ponta da lança impunham o tributo
de ura quinto sobre o rendimento da terra, aos
que se lhes submettiam voluntariamente impunham
um decimo; a isto se ajuntavam alguns outros tri-
butos como certas porções de fruclos , medidas de
vinagre , de azeite , &c. mas aquellas eram as con-
tribuições caracleristicas do fado da conquista. De
resto os vencedores deixando os vencidos na mes-
ma situação em que os tinham encontrado , respei-
taram a um tempo a sua crença , a sua proprieda-
de . e o que mais é , a essência e a forma das suas
instituições civis.
Os árabes traziam tamhem , como as nações sc-
ptentrionaes , no\os povoadores p.ira as provindas
('oiii|uistadas : mas as famílias africanas não \iuliam
tomar para si uma parte do campo ou da granja cul-
tivada pelo godo-romano : nisto eslava a dilTerença
da conquista árabe. Kcpartiam-se-lhes as terras cu-
jos donos tinham [lerecido n'uma lucta longa e san-
guinolenta , ou se haviam acolhido ás serranias das
Astúrias; povoavam-se logarcs ermos; fumlavain-se
novas povoações, e o agricultor árabe brevemente
converiia os maninhos dos arredores cm prados,
ferregiaes e vergéis: — assim o lavrador e proprie-
tário christão, em vez de ser espoliado, recebia en-
sino do seu visinho agareno mais instruído c in-
dustrioso qi:e elle. As rapinas , oppressões e vio-
lências praticadas pelas auctoridades ou pelos par-
ticulares eram o resultado das continuas guerras e
dissensões entre os próprios conquistadores, não da
falta das garantias legaes da propriedade.
Por grosseiros e rudes que fossem os restaurado-
res do [)redominio christão na Península; por atro-
zes que fossem as represálias exercitadas por clles
contra os mouros ; uma grande multidão de docu-
mentos dessa epocha nos prova que em geral a pro-
priedade dos colonos africanos, árabes, palestinos,
egypcios , que tinham vindo estabeleccr-se na Pe-
nínsula , foi no essencial respeitada, postoque op-
primida pela variedade dos impostos feudaes , que
não eram também muito suaves para os proprietá-
rios christãos. Como succedcra no tempo da entra-
da dos árabes , na restauração os combates , as re-
voltas , e todos os actos de resistência á nova or-
dem de cousas, — ou os crimes políticos [os cri-
mes políticos são mui velhos], restituíram por meio
do fisco uma grande porção do solo aos netos da-
qucllcs que o haviam perdido. È este o facto que
importa muito para a historia do património publi-
co , ou bens de coroa , e até certo ponto para a
historia da origem de grande parte dos municípios,
e das suas cartas de comuna ou , foraes.
Portugal constituiu-se em um território onde es-
ses factos de successivas conquistas se haviam con-
sumado: apenas uma parle do sul do reino foi su-
btrahida ao império dos rausulmanos depois do nos-
so primeiro rei: nos fins do século 13." a restau-
ração chrístaã estava completa , sem que j.ímais
houvesse perdido inteiramente o seu espirito de
respeito á propriedade individual. Os que disseram
que todo o dominio da terra nascera entre nós da
conquista , parece terem ignorado ou esquecido os
successos que precederam e acompanharam esse fa-
cto , e o modo por que , atravcz de todas as inva-
sões desde as dos bárbaros, uma notável porção do
território pertenceu sempre ao domínio pleno de
particulares, ou, para nos servirmos d'uma expres-
são tomada dos paizes de feudalismo, foi sempre
allodíal.
De feito nesses primeiros tempos da monarchia
havia em Portugal três espécies de proprietários de
terras anteriores a ella : os musarabes , ou descen-
dentes dos antigos godos , que se haviam sujeitado
aos árabes, os netos dos colonos africanos e asiáticos,
e os filhos e sucessores dos vassallos dos reis d'0-
viedo e Leão que por compras, escambos, doa-
ções, arroteamentos, cartas de povoação, ou outro
qualquer título , e principalmente como conquista-
dores as tinham obtido , cora domínio pleno , sem
caracter nenhum de beneficio nem de feudo. Os nos-
340
O PANORAMA.
íos primeiros reis deviam respeitar a cxisletieia des-
tas diversas propriciiadcs ; e inniiiiieravcis exem-
plos de cunlratos eelei)rado5 soljrc lai género de
iens provam evidenlemenie que assim o (iralica-
ram , sendo o que se possa eilar em ('(jntrario api'-
nas excepções e violências nascidas da barbaridade
c incerleza dos tempos.
Que restava, pois, para consliliiir a propriedade
da coroa ou, com mais rigorosa expressão, os bens
do estado? Exaclamenle as terras que se achavam
li'uma situação análoga á daquellas que os arahes
aproveitavam para estabelecer Cíjlonias dos seus
correligionários ; isto c, as dos mouros, agora ven-
cidos , que os combates coiilinuos, e a des|)nvoa-
ção , resultado de guerras d'exlcrniinio , devia dei-
xar sem donos ; alem destas as terras liscaes dos
íarracciíos onde existissem ; as que por crimes ou
por outro qnalqucr molivi> análogo podiam perder
para o fisco os particulares; c ultimamente as que
fazia cahir no domínio do estado o direito de ma-
ninhadogo , ou maneria.
O maninhadegú ou maneria era o direito pelo
qual a coroa nas terras que não pertenciam a se-
nhorio particular herdava os bens dos villões [vila-
ni] qne morriam sem fillKiS. Este direito, que bem
tarde se extinguiu inlciramcntc, fui confundido pe-
los nossos esfriplores como de menos munia com
•outros vexames que opprimiam nessa epocha o ter-
ceiro estado ou o povo. Todavia ellc teve furçosa-
mcnte consequências suciaes muito mais graves que
outros, que mereceram a especial attenção dos an-
tiquários, pouco felizes geralmente em assignalar
a verdadeira relação c influencia de cada institui-
ção , costume , ou lei no modo d'c.\istir do corpo
politico. N'uma epocha cm que o exercício da guer-
ra era a primeira occupação dos homens, as bata-
lhas, as invasões , as correrias diárias, os recon-
tros mais m(jrliferos que hoje pela maior frequên-
cia dos combales corpo a corpo , a vida dos capli-
Tos meiKJS respeitada , as escaladas das povoações
mais sanguínidentas pela ferocidade dos cuslunies ,
aligmenlada pelos ódios religiosos ; Iodas essas cou-
sas deviam trazer a morte de grande numero de
mancebos antes de terem successores , ou deixando
sem clles seus pais, e alem disso causar a anniquí-
lação completa de famílias inteiras ; a isto acces-
centem-se as epidemias e contágios , e imagine-se
quantas propriedades territoriaes deviam vir ao do-
mínio da coroa pela maneria ; por esse direito que
ia, não tomar em parte o producto do trabalho,
pelos impostos , mas absorver os bens de raiz no
momento da transmissão. A exempção do manínha-
dego não é um dos privilégios mais Iriviacs nas
cartas de povoação ou foraes , e sendo tal direito
cxtincto de todo só no reinado de D. Pedro 1.° ne-
cessariamente serviu muito para augmentar o pa-
trimónio da nação.
O cumulo formado por todos estes elementos di-
versos constituía , por assim dizer , a i)artc fixa dos
haveres do estado : os tributos dos municípios cons-
tituíam o seu rendimento incerto quasi com os mes-
mos caracteres das contribuições modernas , salvo
o serem não gcracs, mas locaes. As terras da coroa
produziam para a fazenda publica como outra qual-
quer propriedade particular para seu dono, ao pas-
io que a renda dos tributos impostos por foral ,
consistindo não só nas penas dos crimes , quasi
sempre pecuniárias ainda nos mais graves, mas
também nos direitos tirados princípalnjente do com-
mcrcio interno c da industria na mais kla signifi-
cação desta palavra, dependia da maior ou menor
extensão da criminalidade cm que deviam influir
poderiisamente mil (ausas moraes; — do movimen-
to coinmercial — e finalmente das variações das di-
versas industrias, a mais fixa das quaes era a agrí-
cola. .'Vssim nos primeiros tempos da monarcbía o
estado subsistia como um proprietário , ou como
uma família particular pelas rendas dos seus bens,
e ao mesmo tempo como uma asssciação pelas con-
tribuições dos seus membros, sendo para este fim
consiilerados só como laes os cidadãos, ou visinhos
dos muniiípíos ou concelhos.
Uma das ciriumstancias que nunca deve csque-
cer-nos, sequizcrmos desapaixonadamente avaliar a
(]uestão que nos occupa , é este caracter exclusivo
lias conlriliuiçóes. No estado actual dss conheci-
n)entos históricos é inioiitestavel que a classe no-
bre e o alto clero (•) estavam exemplos delias : os
territórios coutados c honrados, cujo principal ca-
racter era não fazer foro algum a elrei , não exis-
tiam só por diplomas de privilegio, existiam tam-
bém por outros títulos , e até por linhagem, isto é,
por pertencerem a uma família nobre , direito que
chegou a produzir o amadigo , expressão que indi-
cava o privilegio de se estender a qualidade de
honradas .is propriedades onde se creavam os filhos
do fidalgos, e ainda, segundo parece de alguns do-
cumentos , os seus cães de caça. Os bens das ca-
thedraes e mosteiros eram igualmente coutados , e
por consequência exemplos dos tributos para o rei,
que todos como dissemos rccahiam sobre os conce-
Ihiis , e qne se achavam consignados nos foraes.
íí das feições características destes que nos cum-
pre agora fallar.
(Á. Herculano.)
Casa do Cip.
Existiam na cidade de Burgos, era princípios do
século passado , as ruínas de uma casa ao pé da
eminência em que assenta o caslello antigo, e pou-
co distante da igreja cathedral ; minas visitadas e
respeitadas pelos amantes da gloria da península
hispânica , mas que , a par da sorte de tantos mo-
numentos venerandos , iam-se pouco a pouco des-
vanecendo pelos insultos da ignorância ; e o docu-
mento histórico desapparecia , levando cada ura as
pedras que podia c destinando-as a edificações ca-
seiras , por tal forma que ao desamparo e ao des-
prezo era votada uma preciosa memoria , que de-
via servir de illustração e commentario aos fastos
de tempos remotos. — Burgos, que para perpetuar
a recordação de seus filhos illustres , soubera e
quizera elevar sumptuosos monumentos em honra
de Fernão Gonçalves, de Nuno Rasura, e de Lain
Calvo, esquecia-se de perservar cuidadosa a casa ,
(•) Um escii|il(ir iKSso , res|ieiliivel por nuiilos lilulos ,
reprova iis expressões ile baixo e alto chro cumo france-
zns. E>tas expressões .são evijcnipiiicnic iiietaplioricas , e
.si-janus licito pensar (jiie as iiutapliorns não tem nação.
Snppiínilo porem qrn; li.nja melaphnras porliiirtiezas e nieta-
pluiras estrangeiras, paicee-iios (jiie a (iistincçrto social ccm-
plela (|iie liavia entre clero c clero na jilade media, pur
ncnlinnias palavras se exprime cem mais clareza (lo q;ie piir
nipic-llas, e em nossa liiimilile (ipiíuài) a clareza das idcas
iuípcrla iim ponco mai.s (|ne es primures e poulualidades da
linjíua. VIcru nobre e cirro villóo, uu cliro privilrgiurio e
}ifw priviliijittdo, seriam dcnuminuçiles pervenlura mais por-
lnínezas, mas teriam o leve defeito do serem , em muitas
rela(;ões , falsíssimas. Isto em linpuislica talvez seja indilTc-
reule; mus cm liisloria c algum tanto mais grave.
o PANORA3IA.
341
o solar , em que nascera e passara a meninice o
mais afamado de seus patricios , o invicto guerrei-
ro , Rodrigo Dias de Ititar, geralmente conhecido
pela antonomásia de Cid campeador, terror dos
inimigos da sua pátria , c nome respeitável , que
sem embargo de onlros bastaria para immortalisar
a mui nobre capital de (".astella. — Kmfim o miini-
cipio daquclla cidade reconheceu a sua incúria . e
pelo meiado do mesmo século mandou erigir a me-
moria , que na eslanipa se figura , c ainda perma-
nece ; senão pode ella competir com o arco ma-
gnidco de Fernão Tionçalves , nem com a porta de
St.* Maria , ao menos, singelamente elegante, ser-
re para denotar o berço do nobre Rodrigo de Ei-
var. É fabricada , segundo referem , com os mes-
mos niateriaes da casa do Cid : nas duas pyrarai-
des lateraes , que são de cantaria , vcem-se as ar-
mas de Burgos , o cor[)o do meio tem em cima o
brazão de Itivar , e na moldura inferior Ic-sc a se-
guinte inscriprão : — «IVcste silio leve sua casa , c
nasceu no anno de 1020 Rodrigo Dias de Vivar,
chamado o Cid campeador : morreu cm Valença no
anno de 109!) ; e foi trasladado o seu corpo ao mos-
teiro de Cardenha , pro\imo a esta cidade, a qual
para perpetuar a Icinliratiça que tem do Ião escla-
recido solar de um filho seu c heroc burgalenst ,
erigiu sobre as antigas minas este monumento , no
anno de ilSí , reinando Carlos 3.°»
MONUDIEKTO DO CID.
Esta construcção , ainda que simples em sua fá-
brica como nos materiaes de que é composta , e
até no lettreiro , que indica o motivo de sua inau-
guração, é bastante para manifestar a localidade
onde viu a luz primeira o conquistador de Valen-
ça , nome que bastou para em cem combales re-
cuarem c fugirem inumeráveis hostes rausulmanas.
— 5Ias : parece incrível que [diz um escriptor hcs-
panhol de nossos dias] quando a França , a Ale-
manha e até a Rússia , á força de grosso dispên-
dio levantara estatuas , e arcos de trinmpho , a
seus homens illuslres, Rurgss veja com iiidilTerença
os rapazes desmoronarem o único testemunho de
gratidão que erguera ao valente Bivar. Serve de
contínuo alvo ás pedradas arremeçadas por pessoas
atrevidas e estúpidas, que celebram ás gargalhadas
o gosto de terem deslocado o maior troço de pedra,
ou de term levado algum estilhaço e fragmento dos
escudos ria sua terra natal , ou do brazão do heroe
seu compatrício.
Ao desleixo das auctoridades , á decadência do
espirito nacional é devida em toda a parte a perju-
dicialissima perda de memorias archeologicas ; as-
saz deplorámos o muito que tínhamos a lamentar
neste ponto em o nosso reino ; felicitàmo-nos po-
rem de que em grande parte o mal se yai reme-
diando , e os povos illustrados por homens zelosos
demonstram mais apreço e respeito aos resíduos
monumentaes da gloria dos antepassados. Mas nova-
mente declarámos que não cessaremos de denun-
ciar os réus de quaesquer devastações e profana-
ções , que, em menosprezo das saãs idéas recente-
mente avivadas e acolhidas, se praticarem ou por
opulentos acintosos , ou por miseráveis ignorantes.
SCIOITCICIA POLITICA.
Regeneração e incremento do bem-público fok meio
das associações.
Nenhum philosopho pôde duvidar dos eminentes ser-
viços prestados ao mundo pela religião de Jesus
Christo. Como instituição religiosa tem constante-
mente promovido o bem da humanidade ; = como
essencialmente progressiva e liberal concorreu com
as suas máximas sublimes para a emancipação da
sociedade ; e sem embargo de uma lucta de dezoi^-
to séculos quasi assoma o dia cm que n moral di-
vina hade ter no orbe a mais extensa o completa
iuiluencia.
Em que consiste , pois , esta moral destiaada a
3i2
O PAWORA31A.
tão altos fins? Era fnzer o homem venturoso prepa-
rando-lhe lienigno futuro, e collocando-o conio in-
telligencia no meio tias minas de todos os erros:
á guerra que a miséria concitou , e a que a ueces-
sidade deu permanência, fará ella succedcr uma
paz duradoura.
Se a moral religiosa , que tanto prepondera no
espirito do século actual, fòr coadjuvada pelas ins-
tituições civis, grandes bens colherá a sociedade
humana; e os vindouros não poderão absolutamente
condemnar este século de transição , vendo que se
lhe preparou a ventura , que então desfructarera.
Com elTeilo que deverá esperar-se da miséria
sem esperança d'allivio — da sujeição a que se não
conhece termo, quando o pensamento livre é ator-
mentado pelo desejo das reformas indiscretas? A
que não se arrojará um povo indignado quando sen-
tir todo o pczo da abjecção? Serão as leis assaz po-
derosas para lhe abafar as queixas? Haverá precei-
tos que lhe façam supportar sem dòr os infortúnios
que o cercam?
Podereis acaso acccnder de novo em seus cora-
ções uma fé extincta , inculcando-lhe paciência na
dòr, e o esquecimento de todos os males, para fins
que lhe são indilTerentes? Sobre que cimentos er-
gueis o bem que todo o homem reunido em socie-
dade tem direito de reclamar? Para que dividis a
humanidade em duas classes dislinctas, se tudo
nos aconselha a que façamos delia ura só lodo?
Mas que meios cumpre adoptar para f.izer cessar
o quasi estado de guerra — para dar ao homem o
pão que lhe é devido — e para restabelecer a mo-
ral e com ella a felicidade publica?
A in.itrucruo deve ser o ponto de partida , e a
base em que hade assentar o edifício social. i\ão
nos referimos aqui á inslrucção coliegial, mas sim
á que destroe e anniquila os males que alliigem a
humanidade e dão um prazer completo aos seus ir-
reconciliáveis inimigos. Todos os meios , sem ex-
ceptuar os rigorosos , devera ser empregados , para
accordar o homem da sua culposa indillerença : — -
o tempo urge, e a demora de qualquer remédio é
um passo para o abysmo. Em quanto o povo não
fòr obrigado a recorrer a esta fonte de prosperida-
des , a atonia que o enfraquece hade sempre au-
gmenlar. Assim como o violentam a pagar tributos
exorbitantes, a obedecer a leis que por insensatas
enchem muitas vezes de amargura os corações ge-
nerosos , porque o não obrigarão a dcsfructar os
beneficios da instruccão , cujos resultados seriam
sempre vantajosos á sua existência social?
Sem instruccão não ha homens nem verdadeira
civilisação. Que industria tem prosperado com a
ignorância? Existem, é verdade, thesouros de pre-
ciosos conhecimentos ; — mas aproveitam acaso a
quem dcUcs poderia tirar o melhor partido? Sabe
o artista o que lhe é indispensável saber? Possue o
agricultor os elementos das sciencias necessários
para a prosperidade da sua útil profissão? Não: —
pelo contrario , dezenove vigésimas partes da popu-
lação fcom raras excepções] jazem sepultadas na
mais crassa e profunda ignorância. — Sejamos pois
.solícitos em dissipar a nuvem caliginosa , pondo
nas mãos de todos a luz que a lodos deve allu-
miar.
À instrucíão scgue-se o trabalho. A este segundo
grau da existência social ninguém põe objecção ,
porque todos os homens, seja qual fòr a sua jerar-
chia , lhe conhecera a necessidade. Mas que resul-
tados tem elle dado pelo modo por que está orga-
nisado? De um lado vemos alguns indivíduos que
possuem fortunas de milhões ; do outro observámos
uma multidão de homens victimas da miséria que
os persegue até o tumulo. Vivem lodos os homens
do seu trabalho? Podem elles satisfazer ás suas
necessidades e da família, achando na velhice, que
lhe entorpece o braço , o descanço e o pão a que
lhe tem dado jus o trabalho? — Não, sem du-
vida. A maior parte dos homens condemnada a ga-
nhar de dia o que hade comer á noite, vive mes-
quinhamente , e sem esperanças , ao lado dos que
abastados e poderosos bimpam de fartos e regala-
dos. Ah ! temei que o gigante abatido levante um
dia a cabeça, e que, desenrolando a terrível ban-
deira da necessidade, reclame com o ferro alçado
a parte que lhe compete nesta desigual distribuição
das condições humanas. Para evitar estes excessos
criminosos , bom será tomar a prudente iniciativa ,
creando associações nas qiiaes lodo o individuo pos-
sa achar seuj cuslo a parte de ventura a que tem
um direito incontroverso (•).
Á palavra associação não faltará quem julgue que
vamos quebrar lanças pelo sansimonianismo ou pha-
lanstciisiifo , aconselhando a sua adopção. Quanto
se enganara I Destas innovações nenhum interesse
pôde colher a humanidade , por isso que a ella e
a suas paixões e necessidades são muito alheias.
Nada pôde induzir o homem ao sacrificio da sua
individualidade, e menos a sojeitar-se , por vonta-
de á vida cenobilica , com perda de uma parte
das suas commodidades, e abandono da grande fa-
mília a que elle deve e quer viver ligado. Tão ou-
sadas tentativas, que jamais regenerarão a huma-
nidade , só provam que a sociedade lera novas pre-
cisões que é mister satisfazer.
A associação que imaginámos é. fundada em ba-
ses mais extensas e duradouras. Deve prover a Io-
das as necessidades sem lesar a liberdade indivi-
dual— satisfazer a todos os interesses sem expor a
sociedade ao alvião do nivelador , nem ao punhal
do revolucionário — e conter a torrente era sua ori-
gem , oppondo uma reraora a seus estragos.
rvão pôde du\idar-se que a França , cujo vaslo e
fértil terrilurio poderia dar para o necessário con-
sumo, está ainda longe de gozar este bem. E o con-
seguirá ella se a sociedade continuar a seguir a
carreira que encetou? Não o acreditámos. A des-
membração sempre em augmcnlo das propriedades,
mingoando os recursos do colono , oppõe-se ao pro-
gresso real da agricultura e industria , que acha
um obstáculo invencível na incúria do mesmo co-
lono. È certo que alguns proprietários abastados
continuam no systeraa d'especulaeões ; mas delle
pouco tem aproveitado as classes inferiores , por
consistir apenas em algumas cmprezas avulsas ;
proveitosas , talvez , a um pequeno numero , mas
sem resultado para o resto. Não duvidámos avan-
çar que cedo ou tarde se fraccionarão de tal modo
estas grandes propriedades , que a cnchada virá a
ser um instrumento oneroso , voltando nós por um
movimento retrogrado a cultivar a terra como nos
primeiros tempos da civilisação. lia um só meio de
fugir ao rigor desta prophecia sem abolir uma lei
(•) Ao aiiclor (leste arl.° , que exliahimos de um.i obra
iniíleza , poderemos ap|)reseiilar nuiilii-s institutos de re-
cente d.ita cm o noss» reino , e o aperfeiçoamento de ou-
tros, (|iie apesar de alguns defeitos , tendem claramente ao
melhoramento social, e dão futuras esperanças liem funda-
das. Bom é comiudo declamar sempre contra os vicios ra-
dicaes que destruem as aaçOes. — Os lili.
o PANORAMA.
343
necessária , fecunda em grandes resultados , nem
atacar a liberdade individual e interesses sociacs
que jamais se ferem impunemente. Consiste clle
cm organisar uma associarão agrícola em cada pro-
víncia que reúna todas as propriedades, seja qual
for a sua extensão respectiva , administrando-as os
individues nomeados pelos interessados á pluralida-
de de votos. Expliquemo-nos : — o proprietário de
qualquer torrão viria a ser membro da associação
que propomos. — O valor da terra calcular-se-hia
sobre o preço médio do produclo annual , descon-
tadas as despezas da cultura. Encarrcgar-se-liia a
administração geral agrícola a um conselho eleito
pelos interessados que durasse um ou dois annos ,
composto de director , inspectores, e guardas; os
quaes , alem do interesse que lhes competiria como
proprietários, preceberiam um ordenado adequado
ao seu trabalho. Hegular-se-hia o preoo do jornal
dos trabalhadores pelo da localidade, podendo es-
tes ser tirados indistinctamente dos associados e
não associados, conforme a urgência ; dando-se com-
tudo , cm igualdade de circumstancias , preferencia
aos primeiros. Deste modo os pequenos proprietá-
rios de terras gozariam a um tempo da renda das
mesmas, c do premio do seu suor. Qualquer mem-
bro da associação teria direito de indagar o preço
da venda dos productos , compra de instrumentos ,
c mais despezas que o conselho julgasse necessárias.
DiíTerenles porções de terreno assim remidas for-
mariam um todo fácil de agricultar , removendo os
inconvenientes sempre prejudiciaes aos colonos me-
nos abastados; — pôr-se-hiam em pratica os melho-
res systemas de irrigação ; e ensaiar-se-hiara me-
lhorias, afolhamentos , e outros methodos a[iprova-
dos , subindo a renda de uma terra que ao princi-
pio daria 2 por 100 , a 3 , 4 , 5 por 100 , e ás ve-
zes mais.
O resultado de tudo isto seria que a agricultura,
que por toda a parle se acha estacionaria , fa-
ria progressos incalculáveis; e que uma instrucção
mutua angmentaria a somma das idéas , destruindo
os preconceitos e incúria que se oppunham ao seu
desenvolvimento. — .Não veríamos negar os factos
mais notórios ; e quaesquer ensaios infructuosos não
desanimariam o emprehcndedor , por isso que sen-
do os sacrilicíos reparliiios entre lodos os associa-
dos pequena parle do mal caberia a cada um del-
les. Dir-nos-hão porem: — quanto se tem imagina-
do é a favor dos proprietários : concederemos que o
plano proposto é realísavel , e que melhoraria a
condição dos lavradores : — mas que parle teriam
neste bem as classes industriosas, e a dos que na-
da possuem.
A isso responderemos , que a propriedade não
consiste só em bens de raiz, e que no braço do ar-
tista existe outra não menos fecunda c valiosa. O
sabío que não possue uma geira de terra , e cujos
braços são ímproductivos , deixa acaso de ser pro-
prietário? A tesoura e o raartello de um, o saber
eapenna do outro , seriam excellentes bases d'uraa
fortuna permanente se a sociedade estivesse de tal
forma constituída que a ambos podesse promover
interesses. Para estabelecer uma fabrica carece-se
de consideráveis capitães , e de correr muitas ve-
zes riscos numerosos: — de que meios se deverá lan-
çar mão para fundir interesses tão diversos e des-
proporcionados como os que existem entre o artista
e o mestre? Deve acaso esperar-se que os chefes
de grandes estabeleciraenlos reunam em interesse
commum os seus capitães á industria dos seus ope-
rários? Não os vemos, pelo contrario, sempre de
mão alçada contra qualquer nova fabrica que os as-
sombre? Não se servem para a anniquílar de todos
os meios e sacrilicíos , na esperança de se resarci-
rem com usura de quaesquer perdas?
Em quanto as cousas estiverem neste pé , fraco
desejo lerá o consumidor c o artista de promover
interesses que só aproveitam aos grandes capitalis-
tas.— Ha todavia um meio de formar necessário
equilíbrio evitando que a sociedade continue a ser
considerada como uma família cujos priniogcnitus
devoram o património dos irmãos mais novos
Consiste elle em formar associações que depois de
se pagarem, por meio dos productos, do custo da
matéria (irima , e dos gastos do fabrico , iirevenin-
do ao mesmo tempo quaesquer transtornos , estabe-
leçam um systema regular sobre o modo de levan-
tar ou abaixar os jornaes. Neste caso , porem , de-
ve attender-se ao principio de que ao operário e
artista jamais se deve arbitrar um salário com o
qual lhes seja impossível manter-se e á sua famí-
lia. É assim que as pessoas affeiçoadas ao traba-
lho , vendo-se , sem o esperarem, membros de tão
útil associação , se interessariam por tudo qiianlo
dissesse respeito aos progressos da industria. — Ile-
sultaría daqui um augmento considerável na fortu-
na publica , devido assim áquellas causas, como á
actividade e intelligencia dos operários; e a so-
ciedade se não contristaria ao contemplar a discór-
dia que muitas vezes reina entre o dono da fabri-
ca e os seus subordinados. — Verdade é que os es-
peculadores onzeneiros não se cevariam tão facil-
mente na miséria dos desgraçados ; mas tem essa
consideração algum pezo quando se trata do bem
geral? Não ha entrar em duvida que a reforma é
necessária: mas não proseguiremos nesta questão,
por temermos desafiar a ira das preoccupações : —
no entanto convém que as inlelligencias perspica-
zes , e os homens d'eslado meditem bem este pon-
to, porque estando talvez próxima a epocha cm que
necessariamente hade tomar-se um partido , é mais
airoso ceder a tempo , do que esperar pelas conse-
quências desastrosas que uma longa resistência pro-
duziria.
Deste modo estabelecer-se-hia a economia , sem
a qual não ha futuro venturoso, nem segurança pa-
ra o homem ; e nas epochas em que tivesse au-
gmento o preço do salário poderia o artista e jor-
naleiro depositar, sem grande estorvo, uma parte
delle nas caixas económicas , precatando-se assim
contra a miséria da velhice. E se c certo que o
mau procedimento e desalinho se opporiam á pros-
peridade de alguns individues , não o é menos que
a maior parle delles seria exemplar, e colheria óp-
timos resultados da medida proposta. As caixas
económicas, que só tem augnientado a fortuna dos
que já possuem sufíicicntes recursos, tornar-sc-hiam
proveitosas aos desgraçados para quem ale aqui
tem sido inúteis, por lhes não perniillir o jornal
que percebem depositar nellas quantia alguma. —
Verdade é que lhes reservais o pão da caridade,
o hospital, e a tumba da misericórdia: — mas são
isso providencias com que se deva contar? Não. —
.4 sociedade que nada mais pôde dar ao homem é
viciosa , para não dizer culpada^.
Não nos sobra espaço para entrarmos em mais
largas considerações. — Parece-nos comtudo haver-
mos dito assaz para quem quizer entender-nos —
para quem não reputa calamidade horrível tudo
quanto seja fugir das veredas já trilhadas , alem
344
O PANORAaiA.
das qiiaes só \êem erros e desastres. Dirigimo-
nos aos homens sérios: — esses hãode examinar e
estndar as nossas Ihcorias ; c longe de crimina-las,
estamos certos que farão votos para que se rcali-
sem. — Os nossos desejos limilam-se a fortificar os
princípios religiosos e restabelecer a moral pnr
meio do bem do maior numero: — a estreitar cada
\ez mais os laços que unem os homens entre si,
realisando estas hellas palavras da escriptura : Àmai-
vos como irmãos.
Antiguidades.
Santa Maria d'Ul.
Quem ao ver a igreja de St." Maria d'Ul [concelho
do Pinheiro da liemposta] campear elegante e for-
mosa na ladeira suave d'um monte, como prince-
za adereçada, entre as casas que lá se avistam der-
ramadas por campos e envergonhadas entre pinhei-
ros , dirá que nas paredes desse templo , tão alvas ,
Ião virgens ainda das prostituições dos séculos, es-
ta alíixada uma pagina veneranda do grande livro
do passado? E comtudo ella lá se vè , como um
padrão aos brios e ao valor portugucz ; como uma
TOZ de ferro gemedora e lúgubre, sabida do san-
tuário a proclamar o passamento dos povos venci-
dos , cujo senhorio foi transferido por ascendente
d'heroismo áquclles corajosos guerreiros , que tra-
çando a sua politica com a ponta da lança , e com-
prando tudo a troco de golpes d 'espada , atravessa-
ram , como raios despedidos das mãos de Deus, a
arvorar a signa da cruz sobre as ameias do pro-
pheta ; d'ondc — vai [lor oito séculos — só a pode
derrubar a morte d'um rei soldado, para de novo
flucluar mais galharda e Iriíiniphadura ! — Encele-
aios porem nosso caminho , para que o coração nos
não arraste insoffrido aonde não quizeramos nunca
!er ido ....
Está pois na matriz d'Ul uma pedra em que se lê :
= HRE. AVGVSTO : TRIBVNI
= . XXVll. COS. XIII. PATER.
= RA\1NVS. AVGVSTALIS.
Esta pedra, encontrada ha quarenta annos no ali-
cerce da igreja antiga , foi mandada collocar on-
de hoje existe pelo abbade — o reverendo Manuel
Pereira de Campos. Sc altendermos ao lugar do
achado, e a que de lá também sahiu uma colum-
na que serve de esteio na ramada do pateo da
residência , em cuja columna se distinguem não
poucas jettras e alguns traços d'outras quasi apa-
gadas; se rellectirmos no que adirmam , de terem
achado no referido sitio uma oulra pedra com Ict-
treiro , a qual ahi deixaram por conveniente á no-
va fabrica cm rasão da sua excessiva grandeza ;
concluiremos talvez sem erro que os fundadores
da demolida matriz accommodaram a seu intento
as ruinas d'alguns cdilicios romanos , que seriam
de não pouca magniliccncia , a julgarmos delia em
vista das (irovas.
Indo por diante com as nossas indagações, vimos
um pedaço de colun)na lisa que terá obra de qua-
tro |)aliiuis em conijirimeiíto , e um g meio de diâ-
metro, apparecido em certa escavação, (jucm afian-
ija o mais que se encontraria, caso a escavação pro^
gredisse — principslmcnte , lendo sido começada
na laiz d' um monte, onde a lerra, trazida de cima
pelos enxurros e por outras causas, facilmente en-
cobriria algumas ruinas que alli existiam?
A sudoeste da matriz , e em distancia de tiro de
funda, vé-se o logar do Castro, que desce d'um
outeiro próximo ao rio como um burgo mal povoa-
do. Sluilas pedras c tijolos se teem ahi encontrado
soterrados , que indicam o grande numero de edi-
fícios que o occuparam , e ainda lá vimos ura pe-
queno sitio com o nome de corredoura, onde — diz
o povo — exercitavam os mouros suas corridas e
outros jogos de cavallo.
Passando-se o rio mais abaixo para o poente ,
sobe-se o monte das almas da moura, que é desi-
gnado nas antigas confrontações d'algun5 prédios
pelo monte das Mamuinhas, e fica a cavalleiro dos
de Figueiredo de Rei e do Pinheiro da Bemposta.
Por um alicerce que o atravessa desde o rio, e por
certos cabeços artificiaes que tem no plano , se col-
lige que seria celebre nas conquistas entre mouros
c romanos.
Contigua a este monte está situada para o norte
a pequena aldèa de Adões — nome que parece vir-
Ihc de aduarcs — e logo a de Avenal [avenalis] aon-
de se encontra sobre um pequeno outeiro a casa
do paço , habitada por um Kmador. Segue-se de-
pois a freguezia de AJadail , e outro monte de Cas-
tro , junto do qual — dizem — houvera rija bata-
lha, onde chamam Villa Covo, e mais rija, meia
légua dahi . era Rio d'Ossos. O povo conta que en-
tre este castro e o d'UI deixaram os mouros escon-
didas as suas preciosidades, d'onde vem o dizer-se ;
Entre castro e castril
Cá deixaram seu ouril.
IS. M. de Soma Mouto.
Sinrjular modo de obter carta d'alforria. — Um
viajante nosso do século 1C.°, que por Chypre fez
caminho para a Palestina, referindo algumas parti-
cularidades desta ilha conta a seguinte pratica ex-
travagante.—
«A gente popular de todo este reino pela maior
parte é captiva dos senhores das cidades, villas e
aldeias, salvo aquelles que por alguma via teem
privilegio para o não serem. E este capliveiro é
cousa de muitos annos Ura costume mui
novo vi nesta cidade [Nicocia] que me poz em ad-
miração : o qual é que, indo cm um dia por uma
rua , vi levar a enterrar á igreja um fidalgo mui
principal , e iam com elle todos os seus parentes e
amigos, e diante os escravos e escravas, os quaes
levavam pelas rédeas quatro ou cinco cavallos, e
dois machos, e todos cobertos dedo; chegando
ao alpendre da igreja , subitamente sahirara delia
os clérigos com grandes troços de pau nas mãos e
começaram de dar nos escravos e escravas traba-
lhando pelos prender, como prenderam um ou dois,
e os outros com os cavallos fugiram ; fiquei eu ad-
mirado de ver um tão súbito desatino, a meu pa-
recer , e depois da cousa quieta perguntei a signi-
ficação delia : disseram-me ser costume naqucUa
terra , quando fallecia alguma pessoa nobre e rica,
irem diante lodos seus escravos e escravas, caval-
los c toda outra cavalgadura, até a porta da igre-
ja, como eu vira aquelles; e que sahindo os clé-
rigos com paus, os escravos e cavalgaduras que
podiam tomar eram seus : e os outros ficavam livres
e forros.— i^r. Paniateúo d' Aveiro. IHner, cap. 14."
97
o PANORAMA.
3i5
os MARAGÂTOS.
Trajos e .noivados desta tbibit encorpobada na
grande família hespanhola.
Se não tivéssemos fallado dos inaragalos , dando a
necessária noticia a pag. 174 do vol. 1.°, Irataria-
inos agora mais de espaço desta casta singular, que,
não obstante ter pousada nos confins da Castella,
nos montes de Astorga , quasi á beira de duas es-
tradas , uma real , e outra mui frequentada ; não
obstante manter trafico activo e contínuo em diver-
sas províncias da peninsula ; tem podido subtrahir-
se ao movimento da civilisação , conservar intacta
a herança dos hábitos , crenças e ordem social de
seus avós. Distinctos na Hespanha, como os judeus
c os ciganos por toda a Europa , levara pelo com-
mum sobeja vantagem a estes, considerando-os mo-
ralmente.
Seus costumes ficara relatados no artigo supraci-
tado ; cumpre todavia rectificar algumas particula-
ridades quanto ao vestuário , que a estampa mos-
tra , e em geral é o seguinte. — As mulheres cora-
NOYEMBRO 4 1843.
põem ocabello em duas tranças pendentes aos lados
da cara , e bastante compridas ; ás vezes amarram
lenço na cabeça : cingem o pescoço de cordão ou
collar e sempre d'um grosso rosário, tudo em varias
voltas; vestem roupinhas, e camisa bordada adian-
te, saia de panno tosco e esbranquiçado, o qual é a
principal industria da terra , e um avental prezo á
cinta, e outro em tudo similhanle , cabido poste-
riormente e pelos quadris abaixo. Alem disto tem
por enfeite mangas justas ao braço pespontadas de
cores. As casadas vão de manto á missa , e as sol-
teiras com seu dengue ou mantilha de tecido ordi-
nário e franja encarnada. O trajo do maragato cora-
põe-se do chapéu de abas largas e copa chata [e
não pyramida! como de outros almocreves] com seu
trancelim de seda ao redor, camisola, colete de pel-
les , jaleco, camisa de colarinho bordado , cinto,
bragas , polainas e çapatos.
Tma cereroonia que pôde dar a idéa mais clara
do caracter original desta gente é a dos casamen-
tos e por isso a não ommittiremos. — Facilmente
2.* Sbrie. — Vol. II.
3ÍÕ
O TANOIIAMA.
supporão os leitores, qiic n'unia terra cm que se
raanifoslam costumes patriarcliaes a cada passo , a
vontarlc dos filhos ó cm lodo o modo iiulla , c que
os pais dispõem da sorlc da prole cm respeito a
seus interesses e idade. ])c raro se ouvirá dizer cm
povo de niaragalos que uma donzella ainelliou ante
o altar com o seu futuro companheiro sem levar
por escudo a benção paterna. Mas tratemos do cc-
rcmonial c etiquetas cm laes casos requeridas.
Chegada a epocha cm que os pais tom concorda-
do que se hade celehrar o matrimonio de seus fi-
lhos , o pai do noivo o este cncaminham-se a casa
da futura esposa , c ó pedida a miio da dunzella
com todas as formalidades , sem que nenhum dos
coulrahcntcs [os noivos] entrem cm conversação:
jnas como laes casos já cslão previamente decidi-
dos e ajustados entre as duas famílias , apenas c
mera fórmula este passo; cm seguida , d'anil)as as
partes tratam de comprar os presentes nupciaes ,
que consistem nos vestidos do noivado, segundo o
trajo nacional.
Chega emfim a véspera das vodas , c de tarde se
examinam de doutrina e confessam os noivos , reti-
rando-sc depois a seus respectivos domicilios, sem
que assistam á ceia, com que se regalam os padri-
nhos nessa mesma noite. Ao amanhecer do seguinle
dia corre o gaiteiro lodo o logar locando a alvora-
da , c chamando ao almoço lodos os convidados á
festa, rinda a refeição e ouvida a missa , o pai da
noiva, o padrinho c mais convidados varões diri-
gem-se a casa do mancebo, precedidos da gaila de
folie e dos moços solteiros amigos do rapaz , que
vão disparando , como salvas, as suas clavinas e
espingardas de caça. Assim que enlram na casa ,
o noivo ajoelha , recebe com mostras de compun-
ção a benção paternal , c depois calado e modesto
no moio do concurso c ao lado do padrinho deman-
da a habitação da donzella : as raparigas solteiras
amigas desla cslão á porta entoando cantigas alhi-
sivas ás nupeias c aos méritos dos conlrahentes, al-
gumas das qiiaes tem graça na sua nativa singele-
za ; no acto de sahir para a igreja , lõia lambem á
noiva , deliulJKida em lagrimas , receber a benção
de seus pois. Aai adianto o noivo c sua comitiva
em larga distancia do arompaiihamento feminino,
que conduz a noiva rebuçada na mantilha , e que
não descontinua em seus cantares até a porta da
igreja. Aqui os espera im guardavcnto o cura , ce-
lebra-se o rito eccicsiastico , Irocam-se os anéis , c
pcrmulam-se as arrhas ou presentes. Dila a missa ,
sahc a gente pela mesma ordem com que entrou ,
só com a diirerença de que o noivo com os seus
param no adro para verem correr o bolo do padri-
nho; isto é, uma corrida a pé e á competência, na
qual o melhor corre<l()r ganha a testada do bolo ,
sendo o resto repartido pelos circumstanles em niiu-
dissimos bocados. Seguem para a casa das vodas o
já encontram a desposada sentada á porta n'uma
cadeira ataviada com todo o fausto que permittc
seus lòres , com a madrinha a làtere e coberto o
rosto ; o marido toma logar n'oulra cadeira iMcpa-
rada , c presenceiam as danças com que a mocida-
de da aldeia os festeja; cessando os bailes, entra
lodo o mundo para comer , deixando á porta a an-
terior gravidade e compostura , e dando-se á ale-
gria qne tão bem quadra á occasião. Á sobremeza
toma o padrinho un)a salva de prata , deita-lhe al-
gumas moedas c vai cm giro pedindo aos convida-
dos , e ninguém se nega a contribuir do seu pe-
cúlio. A aia da noiva , amiga qnc a enfeitou c
acompaidiou , pede rocas , fusos , agulhas , c uten-
sílios similhanles ; os pagens do noivo lambem re-
querem para o seu amigo. — Levantam-se logo,
não as toalhas, porque a mcza fica posta lodoaquel-
le dia, mas os convidados ; então a noiva dança
com o marido , e no entanto os pagens vão passear
a povoação exigindo galinhas para os rcccm-casa-
dos , e se lh'as não derem de vontade Icem direi-
to de as tomar á força. — l\ecolhem-sc a dormir;
mas no dia immcdiato ainda ha festim , e corrc-se
cntíio o bolo, que dá a madrinha , quasi pela mes-
ma forma que no dia antecedente : ha banquete e
danças até que deixam repousar e proseguir em sua
vida o novo par, penhor da futura propagação dos
niaragalos.
Estudos Mobaes.
II.
O Parodio d' Aldeia.
Uma das cousas que nas recordações da juventude
ainda espira para mim poesia e saudade é um ve-
lho prior d'aldèa que conheci na minha meninice.
Hoje Ião bondosos , Ião alegres , tão veneráveis ,
ha-os por certo ahi — e muitos ; — cu é que já não
sei conhece-los. A aureola , que então rodeava as
caãs do sacerdote ancião , dcsvaneceu-se pouco a
pouco — desvancceu-a a experiência do mundo co-
mo tantas mil crenças e imaginações de oulr'ora !
— Klle morreu já , por certo ; mas vivo que fosse ,
eu não sentiria ao ve-lo , ao fallar-lhe , aquclla es-
pécie de alegria limida , de confiança receosa que
nesse tempo o bom do velho me inspirava. Pare-
cia-me que estando ao pó dellc eslava mais perto
de Deus, cujo valido, i)or assim dizer, era o 1'.'
prior. Não sabia o sacerdote essalingua que cu cria
fallar-se no céu — o latim, que então era para mim
cousa mysleriosa e santa? Não trajava ás vezes
os trajos da corte celeste — o amiclo , a casula ,
o pluvial , Cum que estavam vestidos alginis vultos
d'anjos pintados em Ires ou quatro antiquíssimos
quadros do presbitério? Quando nas suas praticas ,
depois da missa do dia , narrava os gozos da bem-
aventurança , os tormentos do purgatório, e os tra-
tos intoleráveis do inferno , não juraria qualquer
que elle já peregrinara largos annos alem do sc-
pulchro, ou que voz de cima lhe revelava lanlas
maravilhas c tão solemncs terrores? Evidentemente
o velho clérigo estava muito mais perlo dos de-
graus do tiirono divino que toda a outra gente ,
e, por me servir da linguagem politica, exercia
cm nome do céu uma dcIeg.Tção na terra: era uma
cs|)ccie i\c iiiissus doiiiinieus da Pro\ idencia. H quan-
do clle, apesar dos meus tenros annos, me escolhia
para acoljto , para estafar a porção de latim do
missal , que as rubricas incxora\eis subtrahiani ao
seu império, sorrÍMtn-nie as esperanças algum tan-
to vaidosas de obter de Deus deferinjcnlo ás mi-
nhas perlenções infantis — como costumam sorrir ao
requerente, a quem deputado de grande conta mos-
tra familiaridade na presença de omnipotente mi-
nistro.
Hoje o latim do padre prior parccer-me-hia um
tanto bárbaro , e talvez barbarissima a sua prosó-
dia : nas vestes saccrdolacs acharia os trajos roma-
nos do império atravessando, immulaveis como a
igreja , por entre as transformações da moda c do
luxo ; nos quadros do presbitério riria da igno-
o PANORAMA.
ai-i
rancía e mau gosto do pobre pintor ; c nas descri-
pç(")cs das venturas e torn)cntos da ontra \ida des-
cubriría uniiMnieiUe iinia incarnação grosseira cm
imagens tnateriacs das revelações profundas do es-
piritualismo clirislão. t qnc nes.-e tempo tudo me
chegava aos olhos da alma alumiado . risonho , va-
riegado , porque tudo transparecia atravez do pris-
ma de sete cores — a innocencia singela e crédula
da infância ; c hoje tudo me parece como a folha
que cahiu da arvore no outono , murcho e desbota-
do passando alravcz da atmosphcra nevoenta e tris-
te da sciencia e do orgulho. Então o velho parocho
affigurava-sc mais que um homem ; hoje na escala
das desigualdades humanas provavelmente só acha-
ria para elle um bem modesto logar.
A aldèa em que o bom do clérigo pastoreava o
rebanho espiritual linha seu assento na falda d'um
monte, e pouco inferior a ella dilatava-se uma vei-
ga , que ao longe — lá bastante ao longe — ia ba-
ter no mar. No alto da povoação ficava o presbité-
rio. Era a igreja, segundo hoje se me allignra —
e tenho-a bem presente — daquclle gosto duvidoso
entre a archilectura christaã que expirava , e a da
restauração romana , que ainda se não comprehen-
dia : era um desses templosinhos construidos nos
fins do reinado da D. Manuel c principios do de
D. João 3.°, de que tão grande numero resta ain-
da pelas parochias de Portugal, e que são mais um
argumento de que os nobres conquistadores da ín-
dia, donatários das terras e padroeiros das igrejas,
não voltavam do oriente com as mãos vazias. A de-
voção nesses tempos era um objecto de luxo : edi-
ficar uma igreja ou uma capclla equivalia a ter ho-
je um camarote cm S. Carlos, ou um cocheiro com
estrigas de linho na cabeça e chapéu triangular.
A portada da igreja de arco (ricentrico, firmado
era pilares polystjios de meio relevo . era o mais
claro testemunho da idade provecta do presbitério.
A residência parochial , originariamente do mesmo
estylo , eslava j.i civilisada: uma porta rectangular
substituíra a antiga. Esquadriadas estavam lambem
as duas janellas do sobrado, de dilTercntes dimen-
sões, e affasladas uma da outra ; e nos seus postigos
da esquerda se via o conforto moderno das vidraças.
Não quero dizer com este elogio á morada do pa-
dre prior que a igreja linha resistido, teimosa co-
mo um velho caturra , aos progressos da civilisa-
ção. Pelo contrario. Eslava mais alindada ainda.
Uma irmandade, ou não sei quem, que entendia na
fabrica , havia pintado d'ochre tudo o que era pe-
dra , de vermelhão tudo o que era azulejo. As ca-
marás municipaes das grandes cidades, os cónegos
das collegiadas e ses ainda não passaram do ochre;
e uma pobre irmandade da aldèa jd tinha ha vinte
annos vencido a meta a que apenas hoje chegam o
municipio e a cathedral.
O que , porem , escapou ao ochre c vermelhão
dos mezarios do burgo foram dois seculares e for-
mosos plátanos que sombreavam o portal do presbi-
tério : na febre amarella , que grassa tão furiosa
pelo senso eslhetico das nossas aucloridadcs popu-
lares e dos nossos dignatarios da igreja , admira
que tenha esquecido estender o beneficio da caia-
dura gemada aos troncos rugosos c carrancudos das
velhas arvores, que rodeam os edifícios ou as pra-
ças. Verdade é que lodos os dias alguma desaba
sob os golpes do machado. Isto é melhor ; mas por-
que não haveis de remoçar as que vão escapando
com as lindezas e alegrias canonico-municipaes?
Bellos e Tcncraveis eraiu os dois plátanos'. — O
adro cubriara-no lodo com as suas sombras fecha-
das , e só pela volta da tarde , principalmente no
outono , é que algumas rcsteas açafroadas do sol
no poente se estiravam por debaixo delias e lá iam
bater frouxas no limiar da igroja pulido do contí-
nuo perpassar, e na porta de um vermelho desbo-
tado, onde nesse tempo começavam a alvejar os re-
mendos brancos com que as revoluções converte-
ram os áditos dos templos em pelourinhos eleito-
ra es.
A entrada do adro alevantava-se uma grande cruz
de madeira pintada de preto , em cuja haste mãos
devotas tiidiam atado um ramo de flores, e este ra-
mo , no meio do qual havia um pé de perpetuas,
era a imagem das vaidades do mundo c da religião
(lo calvário iramutavel no meio delias. As outras
lloros linhara-nas mirrado os arilores do estio r so
restavam do morto ramilhcte as immarcessiveis per-
petuas.
Era n'um poial que servia de base á cruz , onde
áquella hora do pòr do sol o padre prior vinha mui-
tas vezes seiítar-se ; c alli estava tempo esquecido,
ora alongando os olhos pelas solidões do mar , que
lá embaixo no fundo do extenso valle quebrava nas
rochas , ora traçando atlentamente na terra com a
sua grande bengala de castão de marfim diversas
figuras , se geométricas não o sei dizer , porque ho-
je não creio lanto na geometria do padre prior co-
mo então cria nas suas terríveis revelações do ou-
tro mundo tiradas do Sprculum Vilac. O que, po-
rem, eu sentia tão bem como hoje, sem então o sa-
ber explicar, era a suave e profunda poesia qne
respirava esse quadro do velho sacerdote junto do
symholo religioso , áquella luz moribunda da ulti-
ma hora do dia , em que uma certa saudade me-
lancholica vem como percursora da noite pousar-
nos sobre o coração. Não o imaginava nesse tempo,
mas imagino agora por onde vaguearia a mente do
velho clérigo em quanto a bengala iad'um para ou-
tro lado cruzando linhas tortuosas e incertas. Os úl-
timos instantes de moribundo , os qnacs elle tinha
adoçado com as consolações da fé : a esmola tirada
da escaca côngrua para enxugar lagrymas de viuvas
e de orphãos ; os conselhos paternaes dados á moci-
dade , salva assim por elle de largos dias de re-
morsos e amargura ; os ódios convertidos em perdão
entre inimigos ; as dissensões domeslicas pacifica-
das pela conciliação do pastor; todo o bem, em-
fim , que por trinta ou quarenta annos elle havia
semeado na aldèa desde as ultimas casinhas de col-
mo que alvejavam caiadas na orla pallida dos cam-
pos até o altar do presbilcrio , fructificava talvez
ante os olhos da sua alma nesses momentos d'exlasi
em rica seara d'esperanças, cujos fructos cnthesou-
rava no céu. Depois a cruz hasteada junto delle
lhe viria lembrar o nada das diligencias que em-
pregara , dos sacrificios que fizera para verter al-
gum bálsamo de ventura nas chagas dolorosas da
vida ; para remir da perdição as ovelhas transvia-
das do pobre rebanho que lhe fora confiado. A cruz
negra no seu eloquente silencio contava-lhe sacrifi-
cioç infinitamente mais árduos que os dcUe , feitos
não a pró d'uma aldèa ou de um povo , mas para
remir o genero-humano. Por isso lhe via ás vezes
deixar pender a fronte calva sobre o peito e tomar-
Ihe o rosto uma expressão singular , inexplicável
nessa epocha para mim , mas que era o desalento
que lhe gerava no espirito a terrível comparação
das suas acções com as do Supplieíado do Calvá-
rio , ao qual tomava por modelo, e que jurara irai-
348
O PANORAMA.
lar. Muitas vezes espanlava-me de que se conser-
vasse assim engolfado em seus pensamentos até que
o sino das avemnrias o vinha despertar ; c na mi-
nha alegria da inTancia, vendo-o tão triste e carran-
cudo, pensava comigo, que o padre prior se ia tor-
nando com a idade tonto e aborrido. Todavia , era
que o bom velho nesses momentos de meditação
volvia alraz os olhos para os caminhos da sua vi-
da , onde esperava achar alguns vestígios brilhan-
tes d'obras virtuosas ; mas esses caminhos, sumidos
na penumbra da cruz , não os percebia senão como
uma nuvcmsinha escura e duvidosa atravez da luz
immorlal das virtudes e dos benefícios do Chiislo.
Ao tocar , porem , das avemarias todas aquellas
imaginações desconsoladas , se elle as tinha como
hoje creio , desappareciam por um movimento ha-
bitual do espirito e do corpo ; este para se erguer ,
aquelie para orar. Sobraçada a bengala , era pó,
com as mãos postas, segurando ao mesmo tempo
entre cilas o seu chapéu de três ventos , com a ca-
beça um pouco inclinada para o chão, o padre prior
murmurava cm voz baixa aquella tão poética ora-
ção do despedir do dia. Os trabalhadores que vol-
tando das fadigas do campo acontecia passarem por
abi nessa occasião , descobriam-se também , e cn-
coslando-se ao encinho ou á enxada punham as mãos
e rezavam até que o reverendo acabando os latinó-
rios , que elles iam repelindo em vulgar , lhes di-
zia : — Boas noites, rapazes: vá a cobrir. Eosganha-
pães cobriam-se , respondendo : — Guardeo-o Deus ,
padre prior: — c partiam : e elle assentava-se ou-
tra vez a olhar para o poente, onde o sol que se af-
fundíra no mar deixava entre si e a noite , prcci-
pitando-se apoz elle das alturas do céu, uma barra
de vermelhidão e ouro , que se estirava para um e
outro lado do horisonte como tentando embargar o
caminho ás trevas. E alli estava scismando até que
a lia Jeronima alçava meia adufa de uma janella
baixa , que dava claridade á cozinha , e o chamava
para a ceia , ao que promptamenle obedecia ; por-
que cumpre advertir que o padre prior não só res-
peitava á carga cerrada todas as tradições do ca-
Iholicismo romano; mas também a sabedoria tradi-
cional do povo, que neste capitulo de ceia reza que
deve ser papada sem sol, sem luz, e sem moscas —
momento fugitivo do expirar do dia , que não cons-
ta deixasse jamais passar por alto a boa da tia Je-
ronima.
Nunca me ha-de esquecer aquella hora na aldéa,
a luz crepuscular da atmosphera , as gelosias dos
aposentas inferiores da residência parochial , c a
santa velha da tia Jeronima que leria proporciona-
do mais um capitulo a Chaleaubriand sobre a poe-
sia das usanças christaãs, se esse illuslre cscri-
ptor houvesse uma vez saboreado as filhozes que
ella compunha para celebrar o Carnaval ; — e os
seus bolos da Natividade — e a sua olha e o seu
anho assado da Paschoa. Não! — Saudados de tudo
isso, durante a minha vida inteira , em qualquer
fortuna , no meio das mais graves cogitações , nun-
ca hci-dc affastar-vos im|)acientc quando vierdes ,
como crcança travessa, baralbar-me um periodo de
trabalhada prosa, ou aleijar-mc com um verso par-
vo uma cstrophe son"ri\el. Vinde, meus amores an-
tigos, que para vós esta fronte não saberá arrugar-
sc ; esta boca não terá esses monosjllabus duros e
gelados com que se rcpellem importunações d'in-
dilTorenles. Vinde, e demorai-vos comigo, e pai-
rai por uma hora , por um dia , [lor uma semana ,
que vos escutarei sempre sorrindo ; e quando fòr
ao sol posto que os ouvidos da minha aluía vos ou-
çam reproduzir vivas, harmoniosas, melaucholicas
as lentas badaladas das avemarias , não como ago-
ra as ouço ás vezes no meio do ruido confuso , ás-
pero , estridente do povoado ; mas partindo da al-
deã ainda deserta dos seus moradores , rolando pe-
la veiga , esperguiçando-se pelo prado , rumorejan-
do pelas quebradas da encosta ou pelo pinhal do
cabeço , e indo morrer lá muito ao longe nas toa-
das duvidosas de uma cantiga de lavadeiras, ou no
tinir das campainhas de um rebanho de ovelhas,
que se encaminham para o aprisco ao sibillar do
pastor. Rcpcti-m'as assim, puras, campestres, vi-
bradas u'um ar puro e sonoro, livres por um ho-
risonte immenso , e tcr-me-heis despertado ura af-
fccto consolador , o qual valerá mais que todas as
ambições, que todos os contentamentos, que todas
as esperanças do mundo.
Tem-se discutido os sinos — como se discute quan-
to ha no Universo. Desde a existência objectiva ou
material deste inundo até a legitimidade do choca-
lho pendurado ao pescoço da cabra retouçando pe-
las ruas de qualquer capital , que resta ainda ahi
para se lhe trazerem á praça os prós c os contras?
Das delinições possiveis do homem uma só é verda-
deira : o homem é o animal que disputa. Os sinos
tem tido amigos e inimigos: e porque? — Pela
mesma rasão , porque sobre tudo ha duas opiniões
contradictorias. É que tudo tem duas faces diversas.
O vento sul é meigo para a arvore que veceja no
recosto septentrional da montanha, c açoule da que
vegeta no pendor opposto : o norte é o supplicio da
primeira, e grato para a segunda. Nisto está cifra-
da a historia das contradicções humanas.
Os sinos coUocados em campanário de parochia
aldcaã, ou de mosteiro solitário, são uma cousa poé-
tica e santa : os sinos pendurados nas torres garri-
das das garridíssimas igrejas das cidades de hoje
são uma cousa estúpida e mesquinha. O sino é um
instrumento aceorde com as vastas harmonias das
serras e dos descampados. Assim como o órgão foi
feito para rcloar pelas arcarias profundas de uma
calhedral golhica , para vibrar na atmosphera mal
allumiada pelas frestas estreitas e ogivaes , do mes-
mo modo o sino fui perfilhado pelo cbrislianismo
para convocar os seus humildes sectários occupa-
dos nos trabalhos campestres. Quando se associou
o sino ao culto? Ignoramo-lo: ignoramo-lo porque
foi a religião serva e perseguida que o santificou :
e quando os poderosos da terra a acccitaram para
si então entrou elle nas cidades soberbas. Lá con-
verteu-se n'uma cousa insignificante e impertinen-
te. É mais um ruido intolerável para ajuntar aos
outros ruidos discordes que troam por essas ruas
e praças. O sino , tornado cortezão e fidalgo , é si-
milhante ao órgão trazido para o aposento do bai-
le , ou , o que vale quasi o mesmo , para essas sa-
las ao divino, bonilas, vaidosas, douradinhas, que
insensatos edificam para as admirações de parvos.
E com estas digressões esquecenio-nos do padre
prior. Não imporia. Deixa-lo cear em paz, e rezar
o breviário. Eram estas, enlre outras, duas phases
graves e serias de lodos os seus dias. Depois , em
quanto a velha Jeronima punha em ordem a casa ,
elle \icgava cm um livro de pequena estante que
lhe ficava á cahecciía , e lia ou uma lenda pia do
Mos-Sanctorum de Rosário , ou um trecho daquel-
las grandes historias de Fr. Bernardo de Brito ,
até que o somno tranquillo de uma boa e saã cons-
ciência npcrlando-lhc com os dedos rosados as pai-
o PANORAMA.
340
pebras , o enlro^nva aos sonhos plácidos que só a
alvoradn vinha inlcrrompcr , quando o pcrifjo emi-
nente de alguma das suas ovelhas o não obrigava
a cr!,'ucr-sc alia noile , ao som do resmungar mal-
solTrido e, alé ccrlo ponto, impio da tia Jeroiiima.
No horisonte limpo c sereno destas duas vidas in-
nocentes — destes Philemon c líaucis, celih.itarios,
que amparados um no outro iam peregrinando con-
tentes para o sepulchro , havia um ponto negro c
triste. O rendimento da parochia não consentia que
o padre prior possuísse essa espécie de ilola ín sa-
eris , de servo de gleba sacerdotal , chamado o pa-
dre cura. As ventanias, as chuvas, as noitadas
alrarcz das serras revertiam como a côngrua e os
benesses em beneficio , se não do corpo , ao menos
da alma do reverendo prior.
A sua côngrua era maravilhosamente estilica : o
grosso dos dizimos da parochia jogava-os á risca
todas as noites em tertúlias um digno commendador
não sei de que ordem. Ai , — a extincção dos dizi-
mos foi a morte da religião I
(Coníinuar-sc-ha.)
(A. Herculano) .
Mercenário pregão ile cego andante.
Bocage.
Se possuíssemos o donoso chiste , a veia cómica
de alguns cscriplores nossos, como Francisco Ma-
nuel e o V.' Macedo , se podcssemos receber ins-
pirações fecundas da lição dos jovialissimos Cer-
vantes e Quevedo ; e se com estes dotes nos fosse
permittido pela gravidade deste Jornal dar largas
á torrente dos gracejos ; que opportuna occasião se
offerecia, á vista da gravura precedente, para des-
franzir a testa carrancuda de alguns leitores hypo-
condriacos ! Em vez de muitas pJnjsiologias semsa-
bor, não escapando a do diabo, que por ahi se im-
pingem em folhetos francezes , daríamos a physio-
nmiia , a táctica , c os palavrosos pregões do cego
aiidaulc.
F.íta casta de vendedores , bufurinheiros do sorti-
mento das imprensas consumidoras de papel pardo,
antes de se habituar o nosso vulgo ás novas de ba-
talhas campacs e de protocolos diplomáticos , em-
pregavam toda a sua especularão na lilteralura des-
montada do barbante, suspenso aos cautos das encru-
zilhadas, e que clles levavam a passear pelas ruas
desta nobre e leal Lisboa , e depois transportavam
,ns aldeias , onde os mancebos e os velhos , a don-
zclla sensível e a senhora idosa, ora se enterneciam,
ora folgavam, com a v.íria fortuna da princeza Afa-
galona e os desvarios de Hoberto do Diabo, ou com
os ditos da lagarella Theodora c os chascos do mal
criado Bcrtholdo : os entremezes, os autos de Bal-
thazarDias, as relações de bicharocos estranhos e
de sonhados phcnomenos singulares , completavam
a lista bibliographica do cego andante, augmenta-
da , somente em fins de cada anno e primícias do
novo , com o livro por suas innumeravcis edições
eterno desespero dos andores ávidos do fama , a
periódica e sempre consultada fulhinha.
Depois que todo o povo lè e trata argumentos e
factos políticos , mudaram de rumo [salvo a gazeta
annual dos dias santos, jubileus, e phases lunaresj
os ambulantes extrahidores das edições do Alcobia
e dos repertórios , e arvoraram-se clamorosos pre-
goeiros, por ura ou mais vinténs, do jornal da tarde;
queremos dizer [e Deus nos livre de boquejar era
supplementos] da folha avulsa que transcreve dos
periódicos da raanhaã a noticia mais fresquinha, ou
de rara maravilha , ou de calastrophe natural , ou
de estrondoso crime , ou de relevante successo po-
litico; que na falta de taes assumptos copia algum
discurso appetitoso da polemica reinante na qua-
dra ; ou que , quando de tudo se vò desamparada ,
suppre-se de trovas de pé quebrado ao canicidio e
á limpeza das ruas, accommcltendo as posturas mu-
nicípaes.
Para esta segunda epocha do giro do cego an-
dante , já usurpado por traficantes dotados de boa-
vista , é que eu queria o sal attico do inventor de
D. Quixote ; e veriam que folheto que sahia des-
bancando toda a estirada collecção das plnjsiolorjias.
No entanto ficaremos com os desejos até que pelo
menos surja algum novo Tolentino ou Bocage , que
encha este vão nas litterarías campinas.
Igreja de Santa Maria do Olivai , matriz de todas
AS OITBAS IGREJAS DA OhDEM DE CuRlSTO.
Este venerando santuário é coevo com a fundação
do convento e caslello dos Templários cm Thoniar.
De sua construcção primitiva apenas lhe resta o
frontispício , ou fachada voltada ao poente , fazendo
como correspondência áquelles convento e castello
que olham ao nascente; assentados estes sobre um
despenhado monte sobranceiro á villa na margeai
direita do rio Nabão; aquelle n'uma pequena pla-
nície , levantada com declive doce , na margem es-
querda. Distam entro si estes edificios um quarto
de Icgua ou ainda menos , ficando-lhes a povoação
da villa de permeio; eommunicam-se pela ponte ile
Thomar, que snppômos da mesma data. Muita cou-
sa se tem dito da antiguidade do sitio; da cidade
de Nabancia , ahi assentada nos tempos gothicos ;
do conde ou governador do território , Castivaldo ,
e de seu fiUio BrUahh ; da santidade e martyrio da
350
O PANORAMA.
Virgem S(.° Iria , ou Irene; c do mosteiro de be-
nedicliiios que ali liavia , cncoslado ao mesmo anli-
go santuário ; liem como faliam de outro mosteiro ,
situado um pouco acima na embocadura do rio lif-
fon que desagua no Nabão , onde era prelado o ab-
bade Selio , lio daquella santa. Nós presàmos e ve-
nerámos estas antigas e devotas tradições, que cons-
tituem uma bella porção da vida sentimental das
nações. Ainda bem que não são estas de que tratá-
mos desappoiadas de provas respeitáveis: ahi está
a notável villa de Santarém com seus nomes clássi-
cos trocados em memoria do sepulchro de St.° Ire-
ne ; ahi , na villa de Thomar , notável também , o
mosteiro antiquíssimo de St." Iria, de religiosas cla-
ristas ; o pego onde foi arrojado o corpo marlyrisa-
do da mesma santa ; e a tradição constante , con-
servada na memoria dos homens , nas lendas . no
breviário ulisyponcnsc, enos martyrologios daslles-
panhas (•).
Da cidade de Nabancia nos fallecem monumentos
históricos: o nome indica povoação romana ; mas
nem nos auctores latinos , nem nos escriptos dos
tempos gothicos chegaram até nós provas de certe-
za. Apenas por toda aquclla área , que se estende
em volta do templo de St.' Maria do Olival, se en-
contram vestígios e relíquias de velhas construc-
eões apagadas, lagcs afeiçoadas, tijolos, moedas
mesmo, de que vimos algumas de cobre dos reis
godos. Nossos antiquários dizem que quando os ára-
bes entraram na Lusitânia gothica na primeira quar-
ta parte do século 8.° ainda o rio Nabão conserva-
va seu nome; mas que aquclles fanáticos conquis-
tadores comprazendo-sc em mudar e trocar as de-
nominações antigas por outras accomodadas ás pro-
pricdailes locaes, conforme o costume oriental, cha-
maram ao Nabão — Titamar — que quer dizer aguas
claras. Daqui vem que aquella passagem da cliro-
nica golhica : = Era 1173 [anno de Christo 1135]
infortuninm super chrislianos in Thamar^sc hade
entender , segundo a opinião dos mais críticos , não
de alguma povoação christaã que ahi houvesse en-
tão, mas do local próximo ao rio ; como dizendo =;
que junto ao rio Nabão acontecera mal ao chris-
tão. =
Em verdade que nenhum indicio temos de haver
ahi povoação alguma christaã ou mourisca por esse
tempo , nem ainda 24 annos depois , quando o mes-
tre do templo, D. r.ualdim Paes, entrou no vasto
território de sua doação para fundar a cabeça e ba-
]iado da sua ordem cm 1'ortugal. .\s avessas nem
dos letreiros que restam desse tempo, como já
deixámos apontado n'outro cscripto , nem do foral
dado á villa de Thomar pelo dilo mestre, apparece
outra cousa mais do que uma inteira c nova funda-
ção. Concluindo-sc daqui , segundo nosso modo de
ver , e depois de muito examinar , que a igreja de
St." Maria do Olival , escolhida para oratório , ca-
pella , e jazigo dos mestres e cavalleiros do tem-
plo , fora uma nova c moderna construcção do so-
Itrcdito D.Gualdim, que ahi dispoz sua sepultura,
e ahi foi enterrado , como logo mostraremos.
Que rasão haveria porem para preferir esse local
(•) Os curiosos (|ue qiiizcrem cnfroiiliar-se iieslas inte-
ressantes narrações podem consnllar Brito na P.* 2.* da
Monarch. Lusil. h." G." paj. 24; — I^r. Di»?o do Rosá-
rio, n.i villa que corapuz de St." Iiia. e o Marlyrolofio Lu-
sitano:— e dos eslraníjeiros , Iltioscas do Snnrl/s Hispan.
e Mariot. ao mesmo ass\Mnplo. O mailyrio de St." Iria,
aconleciílo cm tempos do rei Ilecesviriltio por meado do sé-
culo 7°, Icm o dobrado interesse, relieioso e arclieologico.
Jfo meio dna trevas qualcjiier fraca luz é d'a]iroveilar.
afTastado do convento e castello , separado por um
rio , e exposto ás contingências das invasões mou-
riscas , antes alli do que dentro do recinto murado
c acastcllado do convento ou próximo delle, e aco-
bertado pela fortaleza? Aqui forçoso é recorrer ás
recordações religiosas, ás tradições venerandas que
então duravam mais vivas sobre a relevância e san-
tidade do logar. O mestre do templo havia abando-
nado o antigo castello de Ceras, único em pé en-
tre muitos comprehendidos no aro de sua doação,
por estar mal situado, em ponto menos central, em
paiz çáfaro e infruclifero ; alguém lhe veio indicar
a fresca c deliciosa abrigada de Thomar , e o pico
dominante em que levantou o castello ; mas para o
culto religioso, para recolher as cinzas dos illus-
Ires guerreiros da fé não podia passar por alto so-
bre as venerandas ruínas que lhe ficavam frontei-
ras. Alli naqucllc sitio jazeriam naturalmente ain-
da as rclíi]uías do antigo mosteiro dos benedictinos
dos tempos gothicos, desmoronado pelo tempo ou
arrasado [lelos mouros , e pelo lluxo c influxo das
conquistas dos reis de Leão , e dos musulmanos ;
alli, quem sabe? duraria ainda a pequena igreja
ou capellinba de S. Perofins que, como abaixo ve-
remos, existia encostada á igreja actual de S." Ma-
ria , nos princípios do século 13.°, e que talvez
subsistisse aquella em que o inconsiderado Britaldo
viu, assistindo aos ollícios divinos, a virgem for-
mosa St.' Iria , acompanhada de suas devotas tias ,
Casta c Júlia. Alli , cmPim , estavam como vincula-
das as tradições respeitáveis para homens que se
diziam soldados do templo de Salomão, e que alli
vinham estabelecer a cabeça da sua ordem reli-
giosa.
(Conlinuar-se-ha).
EGOlTOKIii ECHSSílCIA.
Aproveilamenlo das folhas scccas para riutrição do$
animaes.
Em um dos numeres do:^/oiírí!a/ dcs Connaissan-
ces Utilcs = pertencente ao corrente anno , lemos
um breve artigo em que Mr. F. W'argnier en-
sina o modo de aproveitar as folhas das arvores pa-
ra alimentar as vaccas durante o inverno: a vulga-
risação desta maneira de remediar o damno que a
falta de forragens costuma trazer, pareceu-nos que
seria de muita utilidade para a grande parte dos
nossos compatriotas que vivem da lavoura, e foi es-
te motivo porque nos resolvemos a trasladar para
este jornal o que de mais interessante encontrámos
no citado artigo. — As folhas que se podem empre-
gar com mais vantagem são as da macieira , da pe-
reira , do álamo , do olmeiro e as das parreiras ,
as quaes é possível recolher sem esperar que che-
guem a cahir, pois se podem colher acabada a vin-
dima : o perfume que no outono costuma existir nos
pomares, e que é produzido pelas folhas que se
vão separando dos troncos , prova que estas folhas
possuem ainda bastante da sua propriedade nutrien-
te , a qual pôde ser empregada com m\iita vanta-
gem , se as colherem logo que se desprendem da
arvore. Quanto ao modo como as folhas hãode ser-
vir para alimentar as vaccas, quasi que nos servi-
remos das mesmas expressões de Mr. Wargnier. É
sabido que no verão comem as folhas verdes , e a
experiência tem mostrado que no inverno as comem
scccas. Uma destas expericncias, e que deu óptimo
li
o PANORAIklA.
3ol
resultado , foi feita no inverno de 1842 , no qual
houve muita falta de forragens, c misturarani-sc as
folhas cahidas cora sêmeas c agua quente , c com
este alimento se sustentou uma vacca todo o inver-
no — cmprega-sc a agua quente para misturar as
folhas seccas com as sêmeas, porque a agua estan-
do a uma temperatura elevada , tem a propriedade
de restituir ás folhas parte do seu viço — e dos po-
mares devem-se apanhar todos os dias as folhas
que forem cahindo , para que a chuva as não enso-
pe, pois muito convém que estejam o mais seccas
que fòr possível — quando estão muito molhadas
nem tem sahor , nem podem nutrir : depois d'apa-
nhadas scccam-sc ao sol espalhadas em pannos pa-
ra mais facilmente se poderem transportar. Vara as
folhas servirem de alimento proveitoso raisturam-sc
cora sêmeas c depois deita-se-lhc a agua quente o
mistura-se tudo muito bem [■■-'. As vaccas sustenta-
das deste modo , diz Mr. NVargnier , são robustas
c comem bem. — As folhas seccas podem também
servir para alimentar cavallos e porcos; mas neste
caso devem estar de molho pelo espaço de algumas
horas em agua quente e salgada ; quando se tiram
põem-sc a escorrer sobre uma grade feita de vides,
e póde-sc aproveitar a agua para outra vez, de mo-
do que a despeza liça sendo insignificante. Se de-
pois desta operação ainda as folhas estiverem mui-
to húmidas bota-se-lhc alguns punhados de farinha
deavêa: e depois de assim ficarem preparadas guar-
dam-se sobre palha e duram oito dias em estado de
poderem ser ministradas como boa ração tanto aos
cavallos como aos porcos. Muito estimaremos que os
nossos lavradores pensem sobre o que succiuiamen-
te temos exposto , e que por certo era matéria pa-
ra muito desenvolvimento.
S. J. liibeiro de Sá.
Tallevrand.
[Conchiiílo de pag. c3'á.]
Napoleão elevado ao poder soube aproveitar a sa-
gacidade e préstimo politico de Tallevrand : ambos
se escandalisaram e aborreceram das exaggerações.
desvarios e ferocidade da formidável revolução, em
que por differentes modos se acharam empenhados,
e que contribuiu não pouco para o engrandecimen-
lo de ambos ; superiores aos seus contemporâneos ,
reais homens d'esta(io praticamente do que fabri-
cantes de constituições, rejeitaram as quimeras dos
visionários, e, vigiando e estudando as circumslan-
cias , converteram quasi sempre cm proveito pró-
prio os resultados , que ou preveram , ou desde o
principio do movimento tinham encaminhado. No-
te-se porem que se na ambição de gloria e mando
os podemos suppòr iguaes, o ministro, conservando-
se em logares subalternos , gozou largamente os
fruclos de seus trabalhos, ao passo que o guerrei-
ro, que se abalançou a cingir o diadema, teve que
descer do fastígio da grandeza , que era , para as-
(•) Nus lerrilorios vinhateiros do nosso reino, desde
tempo imniemorial , se guanla para os gados o bagaço das
Hvas. Põe-se a seccar nas eiras , mexendu-o para (pie nao
fermente e arla, e com o encinho de denles :iperlailos se-
para-se da bnganlia ou grainha o fulhèlh). Esie , que é a
pellicula dos bagos , sendo misturado com farelos e agua I
quente é óptima ração no inverno para as cavalgad.iras: a '
baganha quer em crão, quer moída e raislurada na laiadu-
ra , engorda muito os |>orco8. — Assíia se aproveitara os re-
sidw.s dos lagares. — Os RR.
sim dizermos, um estado violento, não para o seti
génio, mas cm relação á sua primeira condição ; foi
também por isso o soldado coroado mais alvo d'in-
vejas e rancores que o manhoso diplomático.
Nade também observar-se que em quanto vive-
ram em reciproca boa intelligencia , c Talleyrand
occupou o logar de ministro , correu a epocha dos
prosperes succcssos para Napoleão. A concordata
cora o papa foi uma das bases principaes do impé-
rio ; Tallevrand levou a cabo esta negociação. O
tratado de Luneville que secularisou os principa-
dos ecclesiaslicos d'Alemanha; o de Amiens que
reconheceu parte das conquistas da França e a no-
va forma dada pela revolução aos estados contincn-
laes ; a convenção de Leão que organisou a repu-
blica cisalpina ; todos furam desígnios políticos de
Talleyrand. E o ministro tinha a consciência da sua
valia e preponderância , por quanto em ISOl , ven-
do-sc precisado a ir tomar as aguas míucraes de
Bourbon-rArchambaud , escrevia de lá a Lonapar-
te : «Pèza-me ter que me apartar da vossa pessoa
por algum tempo, porque a dedicação com que me
entrego aos vossos grandes projectos conlribue pa-
ra que se ellcs cumpram.» — Depois da batalha de
Ulm appresentou ao imperador um alvitre para cer-
cear o poder austríaco , unindo o Tyrol á republi-
ca helvética , e erigindo estado democrático e in-
dependente o território veneziano , interposto entre
o reino dTtalia c os domínios d'Auslria ; e propu-
nha conciliar o assentimento desta ultima potencia,
ccdendo-lhe inteiramente a Moldávia, Valaquia ,
Bessarabia , c a parte seplenlríonal da Bélgica. As
vaniagens que desta disposição intentava derivar
eram remover a .\uslria de intervir dentro da cs-
phera da iniluencia franceza , mas sem a hostilísar
a ponto de a fazer ciosa e declarada inimiga ; e ao
mesmo tempo fundar no levante uma potencia mais
apta que a Turquia a manter o equilíbrio europeu
com a Rússia. Napoleão desattendeu esta proposta ;
Talleyrand repclíu-a , depois da batalha d'Auster-
lilz , mas do mesmo modo sem cfrcilo: qualquer
lielles ateimava como jiodía ; e sabido é que Bona-
parte qucíxava-se da pertinaz insistência do minis-
tro nas propostas que julgava importantes ; c que
Talleyrand fallava do imperador como de homem ,
a quem se não podia seoir porque não dava ouvi-
dos a pareceres e conselhos. É cousa assentada que
desta diíTerença d'opiníão datou a tibieza do mi-
nistro ató que largou a pasta dos negócios estran-
geiros aos nove d'agosto de 1807. O estadista era
mais especulador que o guerreiro : e se principiou
a orígínar-se dcsaflfiíção entre elles , cumiudo os
cargos da corte qucTalleyrand, já feito primipe de
Benevento , exercitava, não o arredaram inteira-
mente desta ; c o desafogo consistia nos eppigram-
mas e censuras que jogavam um contra o outro ena
ausência em particulares companhias ; dictos ane-
cdotícos de que estão cheias as memorias contem-
porâneas. Diga-se o que se disser, examínnda a
historia, vc-se que Bonaparte esteve por algom tem-
po sujeito a certa tutela politica de Talleyrand :
quando se emancipou e a sacudiu , o diplomático
não lhe perdoou o arrojo e desde então começou a
mínar-lhe o poder : é indubitável que foi quem mais
contribuiu no senado para a exclusão de Bonapar-
te , quando os alliados invadiram a França. Díz-se
também que o príncipe de Benevento se oppnzera
á ínv,Tsão da Ilespanha , como depois combatera a
malfadada jornada da Rússia : mas quão fácil é ap-
plicar prophecias aos succcssos, quando ellas se dí-
352
O PANORAMA.
vulgam depois de realisados csles ! Para se lhe
agradecer , não havia apparecer a assignatura Tal-
Icyrand no tratado secreto, posterior á conferencia
de Tilsit. Talleyrand foi o custode de Fernando, e
mais priucipcs hespanhoes em Valencey. — Toda-
via é certo que em 1823 protestou contra a inter-
ferência da França na questões internas da Hespa-
nha.
Em 1814 estava nomeado membro da regência,
mas não compareceu em Blois , porque foi detido
pela guarda nacional nas barreiras de Paris , suc-
cesso de que se não agastou muito, e sccna que,
na opinião de muitos, fura com antecedência pre-
parada de accordo com o actor principal. Em sum-
ma , Alexandre, czar da Rússia , hospedou-se em
casa de Tallejrand na capital da França ; ahi se
decidiu definitivamente a abdicação de IJonaparle ,
e a entrada de Luiz 18." — As palavras que as Me-
morias de Bourrienc attribuem a Talleyrand , pro-
feridas nessas conjuncturas em certa conversação par-
ticular, talvez que sejam genuínas: dizem assim:
— Não ha alternativa; escolher Napoleão ou Luiz
18.° Abaixo de Napoleão, não ha um só que por
qualidades pessoacs mereça c possa reter no seu
partido meia dúzia d'homens sensatos. É preciso
uma opinião politica , que dè consistência ao novo
governo , seja qual for ; e Luiz 18.° representa ura
principio, uma opinião. Anão ser algum destes
dois, ó mister traçar um enredo, e eu não sei que
se possa armar e com tal força que haja de susten-
tar aquelle corpo ou pessoa, a quem pertendam con-
ferir o governo.» — Forçoso é confessar que nessa
crise o habi! diplomático poz as maiores diligen-
cias para conservar c manter na França a formula
monarchico-representativa , ou governo constitucio-
nal, como outros publicistas lhe chamam : que acon-
selhou a carta ao rei , e que junto deste , quando
o prisioneiro evadido d' Elba pòz de novo pé no so-
lo francez , diclou a celebre proclamação de Cam-
Lray , na qual Luiz confessava os erros commetti-
dos cm 1814 e promettia repara-los : vimos que
muito depois foi estrénuo defensor da liberdade da
imprensa contra a censura ; causa que talvez o ar-
redou de brilhar na còrle de Carlos 10.°, não obs-
tante o respeito e consideração com que era tratado.
Em 1814 , tendo já abandonado inteiramente Na-
poleão , foi outra vez nomeado ministro dos negó-
cios estrangeiros, e também par de França com o
titulo de príncipe de Talleyrand ; foi depois envia-
do ao congresso de \'ienna como plenipotenciário
francez : e quando Napoleão voltou d'Elba para re-
conquistar a França, no praso nomeado os cem dias,
passou-se a Gand a juntar-so a Luiz 18.°, e cora
cUe voltou a Paris, decidida a batalha de Water-
loo , com o titulo de presidente do conselho de mi-
nistros, que dahi a pouco renunciou. Desde então,
postoque sempre espreitado e temido pela opinião
publica e mais ainda pelo governo dos Bourbons ,
não deixou de conservar sob capa muita influencia
nos negócios públicos do seu paiz, nem de ser con-
sultado pelos estadistas d'outros reinos , com quem
mantinha particulares relações. Na revolução de ju-
lho de 1830 achou-sc naturalmente collocado ao
lado de Luiz Filippe , proclamado rei dos france-
zes : por fim nomeado embaixador á Inglaterra ad-
quiriu o reconhecimento do novo regimen da Fran-
ça , realisou o seu antigo pensamento da quadru-
pla alliança meridional , e veio de Londres des-
cançar para o seu palácio de Valencey. Morreu
aos 20 de maio de 1838, com oitenta e quatro
annos de idade. — A vida publica deste homem
singular , como a historia de Napoleão , apesar de
numerosos c contradictorios cscriptos , ainda está
por escrever ; e por muito tempo serão incompletas
as noticias e imperfeitos os juizes, que os prelos,
a respeito d'ambos , transmitlirem ao publico quer
para pasto da curiosidade, quer para o estudo dos
philosopbos moralistas.
O THEATHO NA ChINA.
O DRAMA , entre os chinas, não comprehcnde um
só feito ou acção única , mas abraça toda a vida
do heroe ou prologonista du nascimento até a mor-
te : ca modo de biogra[>hia posta em dialogo , re-
partida cm mais ou menos partes : a cada uma des-
tas secções precede um prologo ; e o actor assim
que sahe ao tablado explica como se chama na co-
media e qual é o caracter e papel que representa :
frequentes vezes o mesmo actor preenche diversos
papeis, circurastancia que muito concorre para des-
fazer a illusão. Nos movimentos apaixonados o ac-
tor deixa de recitar e exprime os affcctos cantando ;
musica estrepitosa acompanha aquelles trechos lyri-
cos , cscriptos cm verso , que de algum modo que-
rem arremedar a opera europea.
Só na capital e em algumas cidades consideráveis
ha theatros regulares : companhias ambulantes ga-
nham sua vida representando em festas e banque-
tes. Quando os convidados vão sentar-se á meza ,
entram na casa do jantar três ou quatro cómicos
vestidos ricamente , os quaes , feitas quatro hurai-
lissimas saudações, põem na mão da pessoa de mais
respeito entre os circumstantcs um livro em que
estão escriptos com lettras douradas os titulos de
50 ou 60 peças dramáticas, que é tudo o repertó-
rio da companhia : o livro passa de mão em mão
ató que o presidente da meza assignala o drama
que escolheu. — A representação faz-se na mesma
sala, occupando os actores o espaço que medeia en-
tre as mczas , pelo communi diípostas em duas or-
dens.
Nas grandes solemnidades e procissões publicas
erigem-se tablados nas ruas, em que tem logar os
laes autos desde a manhaã até o anoitecer.
Qualquer auclor chim , que logre alguma repu-
tação , não escreve para o Ihealro. Já um impera-
dor vedou severamente aos mandarins concorrer
áquellcs espectáculos ; prohibição em nossos tem-
pos renovada. O ofíicial tártaro que cubica ir á
opera hade despojar-se das insígnias da sua classe.
Os periódicos chinas inserem cuidadosamente to-
dos os rasgos honrosos para os costumes e caracter
da nação ; mas cx|iõr-se-hia a penas mui ásperas o
redactor que se atrevesse a descrever qualquer re-
presentação theatral , ou fizesse a mínima allusão
ao acolhimento de alguma composição nova desse
género.
As SUSPEITAS são entre as nossas cogitações como os
morcegos entre os pássaros; aquelles só voam quan-
do anoitece, cilas obscurecem o entendimento : de-
vem ser desattendidas ou pelo menos bem reprimi-
das, porque roubam o tempo e a attenção, que de-
vemos empregar nos negócios da vida , e por sua
causa se perdem amigos. Alem de outras malfeito-
rias as suspeitas inclinam os príncipes para a tyran-
nia , os maridos ao ciúme , e dispõem os homens
sensatos para a irresolução e melancholía. — Bacon.
98
o PANORAI\IA.
3õ3
O C3STEI.I.O DS CHARI.
O ciSTELLO, cujas ruiiias procurámos \ingar das in-
jurias do lempo , não foi torreão de godos, ílagello
de território , e terror de visiiihos em tempos feu-
daes, porque se o fora, por muito que respeitemos
a antiguidade , não empregaríamos a nossa penna
cm Conservar memorias , que por bem e honra da
humanidade importa deixar sepultadas em profun-
do esquecimento ; foi, pelo contrario , abrigo da
innocencia , asylo de desvalidos , soccorro de ne-
cessitados : foi sanctuario da honra e brio , e de
Iodas as virtudes publicas e domesticas: e quando
os exemplos vivos destas andam tão raros , convém
ressuscitar os mortos, e levantar do pó da terra um
biado forte que clamando = ««o moíic/ics as minhas
(■!í!3as== desperte em parentes, amigos, visinhos e
concidadãos sentimentos amortecidos , e reconduza
ao caminho da virtude corações extraviados.
A dez léguas da cidade do Porto , pelo Douro
acima , e quatro abaixo de Lamego , levantou a
natureza , sobre a margem esquerda daquelle rio ,
um monte que ainda hoje é conhecido com o nome
de V MotUe-(lc-muro» com que Rezende o designa
no Liv. 1.° das suas antiguidades: está collocado
no meio das serras do Craslo c Arouca , e tão so-
branceiro a ellas que bem púdc ser considerado co-
mo cabeça de todas ; na parte mais elevada delle ,
que tem o nome de « Pirneval « e no lado do nor-
te , tem origem um regalo conhecido desde antigos
tempos pelo nome de « Bestanca >> o qual correndo
por espaço de duas léguas de sul para norte , en-
tre os concelhos de Ferreiros no nascente , e Ten-
daes e Sinfães ao poente , vai desaguar no Douro
entre as povoações de Porto-antigo e Souto-do-rio.
Na margem direita deste regato , a uma Icgua
abaiso da sua origem , está collocado o castello ou
torre de Cham , em sitio tão agreste e escabroso
que mais parece destinado para covil de feras do
Novembro 1 1 — 1813.
que para habitação de homens. As aguas das chu-
vas , e a neve , que em grande parte do anno co-
bre o Perneval , correndo com grande Ímpeto pela
ladeira delle a juntarem-se no Uestança, tem esca-
vado a terra e formado profundos valles , ou antes
cavernas por entre as enormes massas de granito ,
que deixaram descobertas e levantadas umas em
forma de torres c castellos , outras como dependu-
radas sobre os valles e regato. As silvas , urzes e
carvalhos , e outros arbustos e arvores silvestres ,
tendo-se apossado dcUes , e estendendo-se aos val-
les , tem tornado tudo espessas brenhas inaccessi-
veis a pés humanos, e só morada de lobos, de bu-
fos e outras aves de rapina. O Bestança correndo
ora despenhado , ora entalado por entre enormes
penedos que lhe formam as margens o leito, levan-
ta um medonho ruido , que repercutido nessas ca-
vernas se faz ouvir ao longe com horrível estrondo.
O remanso que faz nos poços e furnas que tem for-
mado nos intervalos das rochas, cm logar de ama-
ciar a braveza deste aspecto , ainda augmcnla mais
o seu horror, porque a profundidade delias e a
sombra d'annosas arvores que as cobrem , loriiau-
do-as inacccssiveis á luz solar, e, quasí , á luz di-
fuza , apprescntam á imaginação extraviada pelo
horror das trevas , um insonda\cl abysmo ; e c por
isso que o vulgo , sempre disposto a abraçar o ma-
ravilhoso , tem fabulado casos de nadadores , que
arriijando-se a tentar aquelles abysmos , encontra-
ram mouras , serpes e dragões guardando palácios
e Ihesouros encantados. Oh '. que sublimes ideas
despertam estes lúgubres logares a par da doce
melancholia que infundem n'alma. Se vísseis os
pobres enles que habitam toscas e rudes cabanas
junto a esse castello '. alli encontramos um nnna-
gcnario arrastrando pelo asqueroso campo da misé-
ria o pezado fardo dos annos, e ao rogarmos-lhc
2." Serie. — Vol. II.
3o4
O PANORAMA.
algumas informações sobre a lorre de Cham , le-
vanta o rugoso cncoircado coUo , e apontando com
o tremulo dedo da mão direita , cm quanto com a
esquerda limpava uma lagrima de saudade que lhe
corria ao longo da enrugada ressequida face «alli,
nos diz clle , na juvenil idade servi a honra c a
virtude, alli vivi por csparo de dezescte annos no
regaço da cândida innocencia , porque o Sr. José
António Pinto , ultimo legitimo descendente d'esse
tronco, que habitou aquella torre, jamais arredou
um passo do trilho de seus maiores ; foi essa alma
pura e nobre quem me alimentou até essa idade ;
fui depois defender a minha pátria dos inimigos que
a dilaceravam , servi-a por espaço de trinta e seis
annos com as armas na mão , c em paga d'cstes
serviços, em troco de tantos trabalhos, perigos c
privações , recebi uma baixa , e vim para estes sí-
tios empregar os restos de minhas quasi exhaustas
forças em combater com o mais feroz inimigo da
humanidade — a fome e a miséria— e chorar nas
horas d'algum descanso , recostado á sombra d'a-
quellas paredes , a morte do meu berafeitor : ah !
quantas vezes , sentados ambos sobre aquellas la-
gos , junto áqnelle annoso cypreste , elle me dizia
com ternura de pai : — «Tu já estás era idade de
poder conhecer o mundo e pezar bem as reQexões
que íou fazer-le ; sabe pois que elle já não c o que
foi no tempo dos meus maiores, e ainda na minha
juventude ; os homens hoje já vão declinando mui-
to da brilhante estrada da honra e da virtude que
os nossos antepassados nos deixaram tão bem tri-
lhada , e eu prevejo uma cpocha em que o luxo,
o desprezo da religião , a desmoralisação e corru-
pção dos costumes levarão a nossa pátria ás bordas
do abysmo ; foge , eu to rogo , por esse Deus que
nos está vendo e ouvindo , foge essa errada vereda
que elles vão seguindo , e nunca te desvies do ca-
minho da honra que te tenho feito conhecer duran-
te o tempo da tua educação ; embora por isso sejas
desprezado pelos portuguezes corrompidos , porque
os probos bemdirão o teu procedimento. Aquelle
que tem na sua mão os destinos dos homens pre-
miará tuas acções...» — Oh 1 e como elle me fallou
verdade I permitia o céu que ao menos se verifi-
que a ultima parle do seu discurso... Aqui o po-
bre velho não pòdc continuar , rompeu cm copioso
pranto, e nós, por mais o não mortificarmos, dei-
xamo-lo , depois de lhe dizermos algumas palavras
consoladoras , e dirigimo-nos ao castcllo. !Vão des-
diz clle da aspereza do sitio : é obra de mui re-
motos séculos. EdificTdo no meio dacollina da mar-
gem direita do Uestança , tem por base uma rocha,
(' quasi quadrado , e terá ue comprimento por cada
lado vinte palmos pouco mais ou menos , e ainda
conserva sele ameias nos dois lados do poente , que
a estampa appresenta : a janella , que na mesma se
vè , é obra moiicrna , e na parte interior, ao nor-
te , tem uma porta em forma d'arco que commuiii-
ca com uma escada estreita c em caracol , a qual
dava sabida por outra porta , ao nascente, do mes-
mo formato que a primeira , c sòhre esta , e pela
parte exterior, ha uma inseripção que por gasta já
não é possível lèr-se : toda a casa que ora cxiíte
contigua ao caslello é de construcção mais moder-
na, e na extremidade delia, opposta ao castcllo, ha
uma capella em cujo retábulo existe a seguinte ins-
eripção —
Esta capella vunulou fazer Franriscn de Oli-
veira c Ilrilo c sua mul/icr habel rinia da
Costa. 1671.
Por cima da porta desta capella estavam ha pou-
cos annos as armas da casa , de que hoje só existe
a pedra com os cinco crecentes , c que está fazen-
do parte d'uma pequena parede! ! Todo este edifi-
cio é dominado no nascente pelo monto denomina-
do Matla da Seara, no poente e na margem esquer-
da do Bestança pelo monte dus Faiõcs , ao sul pe-
lo monte Soutcllo , e ao norte pelo chamado Matla
d' Amanha .
Foi este pobre e mesquinho aposento o berço e
solar da família dos Pintos, que o condo D. Pedro,
no seu Nobiliário, denomina de Riba-Bestança , as-
sim como a d'Egas Moniz era denominada de Riba-
Bouro, pelo paço e (erras que possuia nas margens
d'este rio. Jlas não é por tal aposento que devemos
julgar da grandeza e consideração daquclla famí-
lia, porque a singeleza e sobriedade de nossos maio-
res desconhecia o luxo das cidades e palácios ; e
obrigados a defenderem-sc a cada momento de re-
petidas correrias c incursões de inimigos , prefe-
riam os escabrosos alcantilados serros aos campos
abertos e planos, antepondo assim a segurança, que
é a primeira necessidade da natureza , aos regalos
e mimos, que o são da moleza e ociosidade. Assim
Egas Mouiz teve morada na quinta de Cresconhe ,
cm S. Thiago de Piães, situada nas fraldas da ser-
ra da Tranqueira , que também c um ramo da de
Monte-Muro , e D. Mendo de Gondar no paço d'es-
te nome , no concelho de Gestaco , que é na serra
do Marão. D'este D. Mendo de Gondar , que veio
das Astúrias com o conde D.Henrique, e de quem
o conde D.Pedro diz — que era muito bom e hon-
rado— que para os lermos cm que falia o conde
não é pequeno elogio; descende, segundo elle, a
família dos Pintos por seu filho D. Egas Mendes,
que casou com D. Maior Paes Pinlo fdha de Payo
Soares Pinlo , morador na quinla do Paço junto ao
caslello de St." Maria, aonde hoje é a villa da Fei-
ra , e leve delia Ruy Viegas Pinto, de quem nas-
ceu Gonçalo Uodrigues Pinto , que viveu em Uiba-
Bestança , na torre de Cham , concelho de Ferrei-
ros , em tempo de D. Afibnso 2.° e D. Sancho 2.°,
como SC vê das inquirições d'elrei D. Allbnso 3.°;
o nella continuaram seus descendentes.
Outros, como refere Brandão na Monarchia Lu-
sitana , Part. 3.' Liv. 8." cap. 31 , dizem que os
fidalgos Pintos foram um ramo dos Sonsas, o qual
começou em D. João (iarcia de Sousa , neto do
conde D. Mendo, chamado o Sousão , e que fora
denominado — Pinto — por suas muitas perfeições
naturaes , e genlileza. Como quer que seja , o con-
de D. Pedro falia de Vasco Pinto [que viveu cm
Uiba-Bestança , c foi senhor da torre de Cham e
paço de Covellas] e de seus irmãos, com termos
de grande consideração ; o na Torre-do-Tombo , no
Liv. dos privilégios do anno de 153Í-, segundo re-
fere a Historia Genealog. da C. U. noLiv.<).° cap.
20, existe uma casta de brasão d'armas, cm que
se diz que Gonçalo Pinto fora alferes mór do du-
que de Bragança , que era fidalgo muito honrado,
da geração dos Pintos. Sendo dado ao duque de Bra-
gança, D. Fernando, o julgado de Ferreiros por D.
.\ITonso 5.°, e coufirnindo em seus successores por
carta datada em ISestello aos 15 d'agoslo de 1171,
os Pintos, que eram moradores daquclle julgado ,
cuiraram no serviço da diia rasa, e tal o fizeram
que mereceram occupar não só aquelle emprego de
alferes-mór , senão lambem de veador , camareiro,
c nutres, porque nclla havia os mesmos da corte:
obtiveram a alcaidaria-mór de Chaves c Monlalc-
o PANORAMA.
35S
gre , ns commendas de S. Salvador d'Elvas, c S.
Marlinlio de Riii\ãcs, e o lucsmo senhorio de Fer-
reiros, que ora o seu solar, c que por isso fui cou-
tado e honrado.
5las ainda quando ii.tío tivéssemos testemunhos
tacs da consideração daqnolla familia, a avidez com
que a maior parte das daquelle concelho e dos vi-
sinhos procura aparentar-se com cila c apropriar-
se o sohrenome de — 1'iiUo — que raro é encontrar
ainda hoje alli quem o não tenha adoptado, seriam
indícios bastantes e claros da consideração e esti-
ma que mereceram os que lhe deram origem por
suas virtudes publicas e particulares. Não basla
porem tomar o nome , é necessário merecc-lo imi-
tando-os , e se este escripto servir d'cslimulo i>ara
isso, daremos por bem empregado o nosso trabalho.
Joaquim de St." Clara Smza Pinlu.
Apontamextos paua a historia dos bens da coròa
k dos foraes.
II.
QfEM correr os livros dos nossos escriptores que
trataram dos começos da monarchia , achará em
quasi todos uma definição ou antes dcscripção' da
cousa que segundo ellcs se bade entender pela pa-
lavra Foral. Essas definições , bem que ás vezes se
approximcm um pouco da verdade, são sempre mais
ou menos incompletas, demasiadas, ou falsas; por-
que realmente nunca se altendeu bem aoscaracleres
dislinctivos desta importanlissinia espécie de diplo-
mas , de que felizmente nos restam muitos cente-
nares , e que são a funte mais rica , ou antes quasi
a única , da historia municipal e por consequência
da historia da classe a que no simulachro de re-
presentação nacional dos tempos do absolutismo se
chamou Braço do Povo , c a que os francezes cha-
mavam terceiro estado.
O primeiro erro que tem havido , quanto a nós ,
no definir os foraes, c o pertcnder inclui-los todos
em uma única formula. Daqui nasceu confundirem-
se as diversas espécies de cartas ou diplomas a que
antes dos fins do século 13." se chamou fórum, fo-
ros, e depois foral. Escrevendo em cpochas em que
o valor das palavras estava já fixado, os que trata-
ram de similhante objecto esqueccram-sc de que no
século 12.° ou 13.°, cm que as idéas eram limita-
das e confusas, e muilo mais as linguas que então
passavam por um periodo de transformação ; es-
qucceram-sc , dizemos, de que o mais diilicultoso
mister de quem csUida as insliluições e os fados
desses séculos é o não se deixar enganar por ex-
pressões variáveis de dois modos, ou porque upr.a
denominarão se applicava a differentes objectos, ou
porque um objecto tinha diílerentes denominações.
As palavras /'orioíi , foros, bonos foros , l;arla firmi-
tudinis et stabilHatis , foral , estavam justamente no
caso da primeira hypolhese.
Outro erro em nosso entender tem havido no ap-
prcciar os foraes, eco imaginar que os redactores
e promulgadorcs desses diplomas tinham idéas pre-
cisas e completas sobre a natureza da sociedade, e
que distinguiam rigorosamente o direito publico do
civil , o systema de administração o fazenda do
exercicio do poder judicial , o ecclesiastico do mi-
litar, os diversos modos de possuir, &c. Xada dis-
so, porem, acontecia: as instituições, como as
idéas, íluctuavam indecisas , lutavam, compene-
travam-se. Quem intentasse dizer: — «tal facto so-
cial era deste modo em todos os logares , cm Iodas
as circunistanciasi) — nunca poderia estabelecer ura
só ponto da hisloria da sociedade; porque nem um
só deixaria de lhe ofrerecer um certo numero d'ex-
cepções , e se pretendesse concilia-las, forçosamen-
te apprescnlaria a questão a uma luz falsa c eon-
tradicUiria. Atrever-se a desprezar é talvez a pri-
meira qualidade de quem esluda o passado : tanto
o excesso como a falta delia podem produzir con-
sequências graves na appreciação das cousas desses
tempos. A didiculdade de fugir a erros de simi-
Ihaiile espécie tem-os tornado demasiadamente com-
nuins.
Para conhecer pois o que eram os foraes deve-se
altcnder não só ás suas circuinslaiicias pred iminan-
tes ou caracterislicas , mas lambem ás variedades
que nestas apiiarccem ; é islo o que procuraremos
fazer.
A principal espécie de foraes são as cartas de
povoação em que se estabeleceram a existência, e as
relações dessas sociedades elementares chamadas
concelhns com a sociedade complexa c geral chama-
da nação ou com os seus agentes, incluindo debai-
xo desta denominação o mesmo rei. A tal espécie
pcrlence o máximo numero daquellcs diplomas ; e
ó csla a idca que em regra devemos ligar á pala-
vra foral.
A segunda espécie c a daquellcs que eram ver-
dadeiras leis civis ou criminaes dadas a um conce-
lho que já existia ou se formava de uovo , e a que
faltavam coilumcs ou leis consuetudinárias (jue re-
gulassem os direitos e obrigações reciprocas dos in-
divíduos, ou esses costumes fossem tacs que se tor-
nasse necessário reforma-los para se eslabclecer a
ordem e a paz dentro do raunicipio. Esta espécie
de foraes é a menos vulgar.
A terceira espécie ó a daquellcs que eram sim-
ples afforamcntos feitos collectivamente , ou por ti-
tulo genérico , a um numero d'individuos , deter-
minado ou não, em que se estipulava o foro ou pen-
são que cada morador devia pagar ao senhor do
terreno, quer este fosse o estado [terras da coroa],
quer o rei [reguengos], quer particular [herdaraen-
tos]. Esla espécie, que se alTasla quasi inteiramen-
te da formula ordinária dos foraes , c mais com-
mum que a antecedente. Em geral os foraes das
povoações reguengas pertencem a esta divisão.
Uma quarta espécie de foraes lemos encontrado
que não pertencendo propriamente a nenhuma das
anleccdenles pode dizer-se que peflencera a todas ,
porque todas, e principalmente a primeira e segun-
da , predominam nelles com igual força. Esses fo-
raes parecem ler sido destinados não a constituir
ou restaurar um município, nora a supprir a falta
de costumes tradicionaes que servissem de direito
civil local , nem finalmente a fixar a propriedade
indiíidual por via de uma carta d'emphyteuse, mas
a remover a desordem nascida da má organisação
anterior disso ludo , ou da tyrannia e violência do
senhor da terra [donatário] , ou da barbaria e dc-
scnfreamcnto dos habilantes , ou de tudo isto jun-
to. Similhantes foraes não são raros.
Estas são as espécies em que uos parece dever
dividir-se a grande collecção de diplomas que exis-
tem nos archivos do reino sob a denominação de
foraes. Sujeitando-as a uma classificação moderna
pi)der-se-hiam considerar os primeiros como o pa-
cto social , a constituição politica , digamos assim ,
dos municípios, mas com a circumslancia de ligar
356
O PANORAMA.
estes ao corpo moral , em ciijo grémio se conti-
nham ; os segundos como leis civis locaes ; os ter-
ceiros como um género d'emphyteuse ou empraza-
mento , em que os empliyteutas adquiriam o domi'
nio útil por um titulo cullcctivo, ficando ao povoa-
dor, ou encarregado de tornar cíTectivo o empraza-
mento , o distribuir c demarcar a propriedade de
cada um dos moradores , cujo numero ora se indi-
ca ora não no furai ; os quartos , eniíim , como ura
Composto de tudo isso , mas monstruoso e incom-
pleto.
IVão esqueça , porem , o que dissemos : est.is ca-
racterísticas de cada uma das espécies não são ex-
clusivas : ;is vezes disposições civis ou criminaes ap-
parecem incluídas na constituição municipal sem
que ahi viessem para estabelecer alguma relação
entre o concelho e o eslado ; assim como nos foracs
de legislação civil se vêem disposições verdadeira-
mente reguladoras d'algumas daquellas relações, c
o mesmo nos foraes-emprazamentos. O hahito de
estudar similhaiiles documentos e cerlo tacto his-
tórico c que pude habilitar qualquer a descriminar
o caracter próprio de cada um dellcs.
Sendo o nosso intuito considerar os furaes prin-
cipalmente em relação á economia gerai do estado
trataremos com preferencia dos da primeira espé-
cie , e por isso todas as vezes que repetirmos a pa-
lavra foral entenda-se que alludiraos a ella.
Teni-sc dito que os furaes eram a legislação dos
concelhos; e até que houve uma epocha em que
foram as únicas leis do paiz. Similhantes opiniões
são ainda hoje triíiaes, e todavia hasta conside-
rarmos as condições necessárias para a existência
de uma nação , allcndermos ás disposições que se
achara no commum desles diplomas , e finalmente
lembrarmo-nos da situação híerarchica , do modo
de ser especial e exclusivo de cada classe da so-
ciedade , príncipalmenle nos dois primeiros sécu-
los da monarchia , para conhecermos o infundado e
até o impossível de tacs opiniões. A verdade do que
dizemos breve teremos occasião de prova-la.
Qual seria o pensamento que presidiu á promul-
gação dos furaes? A resposta a esta pergunta deve
esclarecer-nos sobre a sua verdadeira natureza.
N'um paiz assolado por guerras de religião e de
raça muitas povoações antigas estavam reduzidas ,
ao constituír-se a monarchia , a um montão de ruí-
nas ; e SC nem as maiores e melhores escapavam
[como nos consta de Braga e de outras cidades em
tempo do conde Henrique] muito mais devia ser es-
sa a sorte dos logares abertos e mal defendidos.
Tratava-se pois de fazer renascer das suas cinzas as
antigas povoações, c de crear outras novas, attra-
hindo para aquellcs centros famílias que edificas-
sem os burgos e aldeias e cuUi\ assem os eami)os.
Sías para que se fazia isto? Porque se não iam bus-
car á hoste, ou exercito, todos os homens de guer-
ra , e não se lhes distribuía o território como hon-
ras, coutos, ou prestamos, para as cultivarem com
os solarengos , com os captivos mouros , e com os
servos de creação jhomines de crealione], mais vul-
garmente conhecidos pela denominação de malados
[homines de maladia] , ou , emfim , para evitar os
inconvenientes económicos que , segundo ao diante
veremos , resultavam no distribuir as terras pelos
miiite.i [cavallciros] porque não se preferia o sys-
lema da terceira espécie de furaes, que não passa-
vam de afforamenlos colleclivos e por isso não ti-
nham o mesmo caracter? Porque se restaurava até
certo ponto a organisação das províncias romanas,
essencialmente municipal? O que se casava mais
naturalmente com o espírito da epocha era o me-
thodo contrario : as influencias do feudalismo eram
enérgicas entre nós no berço da monarchia ; os de-
legados do poder real e os [lossuidores de terras
da coroa prucuraiam dar aos seus cargos e presta-
mos, que não passavam, aquellcs de delegações,
estes de verdadeiros benefícios , o caracter de feu-
dos. E todavia o progresso do systema opposto foi
rápido e espantoso: nu fim do reinado de D. AlTon-
so 3.° Portugal estava coberto de concelhos. Ao
passo que nos paizcs essencialmente feudaes estas
pequenas republicas quasí sempre se formavam pe-
la revolta e no meio de grandes lulas, entre nós
realmente aconteceu o que Mr. Tbíerry nega, e
mostra ser uma opinião falsa rclaíivamenle á Fran-
ça ; isto é, foram principalmente instituídas por es-
pontânea vontade do rei, ainda que não faltem fun-
damentos para crer que algumas das mais antigas
cartas de communs ou foraes , e entre estes o de
Coimbra em tempo do conde Henrique, se obtive-
ram por violência , e depois de uma luta em que
a aucturidadc soberana não levou a melhoria. E
quando outras provas não houvesse de que nestas
partes da Península lambem as conjurações ou ligas
de burguezes, chamadas enlre nós irmandades [ger-
manitales] , arrancaram á força , como em França ,
privilégios e franquezas aos senhores , bastará lem-
brarmonos da historia de Compostella , no tempo
de Diogo Gelmirez, para conhecermos perfeitamen-
te a identidade desses movimentos populares em
um e outro paiz.
Mas os vestígios desses factos , que por uma
coincidência singular apparecem quasí exclusiva-
mente praticados nas cidades episcopaes , ou por
outra , dirigidos conlra o allo-clero, classe a mais
poderosa, enlre a qual e o rei também havia guer-
ra mortal; — similhanles vestígios, dizemos, fal-
tam de todo no tempo de D. Affonso .3.°, e é jus-
tamente do reinado daquclle príncipe que nós te-
mos mais foraes , talvez , do que de todos os outros
reinados juntos.
Para estas tendências , apparentemenle mais po-
pulares que feudaes da parte do poder central, hou-
ve por certo motivos. Se podermos attingir quaes
fossem teremos meios de achar o pensamento geral
dos foraes, e de por elle avaliar os caracteres des-
tes que deviam dirigir-se a preencher as indica-
ções daquellas mesmas causas por que se promul-
gavam. Nós cremos que diversos motivos se deram
eflectivamentc para este incremento rápido dos mu-
nícipíos.
Que houve uma rasão politica da parle do ele-
mento monarchico — do poder real — para formar
aquellas agglomeraçõcs de população plebea , pare-
ce-nos incontestável: o alto-clero — o mais terrível
adversário da monarchia no iirimeiro período da
nossa historia — estava por muitos modos ligado
com a nobreza — ligado sobretudo porque, em re-
lação aos privilégios e á propriedade, estas duas
classes eram idênticas : ambas possuíam castellos e
senhorios, coutados e honrados; ambas tinham pres-
tamos da coroa ; ambas se compunham de homens
de guerra ou os capitaneavam , porque em geral os
bispos eram mais expertos em provar armaduras e
menear armas (|ue em entender o evangelho : a
sciencia nas cathedracs era cousa mui secundaria ;
tinha o que quer que era de monástica e rasteira ,
c os bispos e os seus cabidos occupavam-sc mais
dos negócios terrenos que das cousas do céu.
o PAl\OR\3IA.
357
A esta identidade de situarão , que forçosamente
havia do approximar as duas classes , c por isso
fortalecer uma pela outra , accrescia que por igno-
rante que fosse o clero , comparado com a nobreza
mergulhada na mais crassa hnrliaria , ainda se po-
dia chamar illiistrado. Alem disso a fidalguia , no
seu estado natural do hostilidade com o rei , tinha
de soccorrer-se unicamente ás próprias forças , ti-
rar da própria intelligcncia e vontade as doutrinas
e meios de se conservar forte e unida : o clero, po-
rem , CDCostava-se a uma columna inabalável — as
doutrinas , a energia , e a illustração da cúria ro-
mana, immensa para aquelles séculos ; porque nun-
ca na cadeira primaz de líoma se assentou uma se-
rie de homens tão grandes como os que , não pre-
sidiram, mas governaram o orbe catholico, no pri-
meiro periodo da nossa historia. Assim o rei tinha
de sustentar um duro combale com a cleresia, sem
que podcsso contar com a nobreza , salvo com um
ou outro individuo que se inclinava para elle por
interesses especiaes , que ás vezes não eram dos
mais licilos e honrosos.
Restava o povo. Apesar da crença viva , da su-
perstição , e até do fanatismo das turbas naquellas
eras , o povo não respeitava o clero. Um phenorae-
no, ou que se não tem observado , ou a que se não
deu a devida importância, é a dislincção que o po-
vo fazia entro as crenças religiosas , e os ministros
do culto — distincção clara e precisa que resulta de
mil factos. De sei; ódio contra os dignatarios da
igreja ha provas irrecusáveis , mais evidentes do
que do ódio contra a nobreza. E porque? Porque a
má vontade que tinha aos nobres não podia resfol-
gar : contra elles achava-se cm campo só: a guer-
ra do rei á fidalguia era uma necessidade de situa-
ção ; o elemento aristocrático embaraçava oprogres-
so da unidade monarchica ; mas o combato dos dois
elementos era vagaroso c surdo ; pelejava-sc nas
trevas ; as multidões não o viam nem sentiam ; e
quando algum dos fados em que elie se revelava
era de tal natureza que cilas o comprehendessem ,
altribuiam-no a dissensões individuaes e não alcan-
çavam que pertencesse a uma Inta complexa de
classe. A guerra , porem , da cleresia era estrepi-
tosa : as batalhas succediam ás batalhas : o povo
palpava , por assim dizer , as armas dos contendo-
res , ouvia o som dos recontros , e balia as palmas
ao rei que o vingava da metade , não peior , mas
mais poderosa, dos seus oppressorcs.
Entre diversos acontecimentos daquella epocha ,
análogos ao que vamos apontar, nenhum melhor do
que elle prova que tal era o estado das cousas. Fal-
íamos das dissensões do violento D. Sancho 1.° com
o bispo do Porto, D. Martinho 2.° , dissensões de
que D. Rodrigo da Cunha falia como passadas en-
tre os burguezcs e o prelado , mas que foram ver-
dadeiramente com o rei. O papa Innocencio 3." nos
refere miudamente a historia dessa lula atroz e te-
naz, suscitada pelas elcrnas'questões de jurisdicçucs
e tributos entre a monarchia e o clero , e renovada
pela desapprovação do bispo ao casamento do infan-
te D. Alíonso [.\ffonso 2.°] Da bulia relativa a este
negocio se vc que eirei lançou o povo — perdoe-se-
nos a expressão — como ura mnslim raivoso contra
o bispo e o cabido , e que o povo cumpriu , alem
do que se poderia desejar, as intenções d'elrei (•).
(•) A liistoria desle drama popular que nào calie aqui,
reservanio-la para um Irabalho mais vasto, a que hoje i]ua-
si exclusivamenle cansaa;ràmos as nossas vigílias — os Estu-
dos sobre a idade media porhigueza-
A excommunhão vibrou-se do alto do sólio papal
Sobre a cabeça de D. Sancho c sobre as cabeças de
alguns burguczes ol)scuros — o rei nivelou-se com
a plebe, — circumstancia singular que mostra que
nos comliatos com o bispo o povo não fora apenas
um instrumento cego c dehil : Innocencio 3." não
costumava f.izcr vergar as cervizes senão dos fortes
e altivos : desprezava os instrumentos das violências
e tyrannias , e não nos consta excommungassc os
saiões ou algozes que por mandado do mesmo D.
Sancho arrancaram os olhos ao clero de Coimbra.
Entre os populares fulminados na bulia lá se des-
cobre um nome que por si só revela a existência
d'um desses homens enérgicos qtic costumara sur-
gir no meio das turbas agitadas e as dirigera, c são
durante algum tempo os seus Ídolos, até que por
via de regra ellas próprias ou os annullam ou os
esmagam. Chamava-sc o burguez criminoso Pedro
Feuíhim-Tirou , denominação estranha e insólita, se
a tomar-mos como appelliilo , mas de grande signi-
ficação , se a quizermos olhar como uma destas al-
cunhas em que o povo usa resumir pela circums-
tancia mnis proeminente da vida dos indivíduos a
biograpbia e o caracter dclles. Pedro, aquém o
vulgacho denominara Feudo-tirou [tirou o feudo, o
senhorio . a oppressão] , era porventura um 0'Con-
ncll municipal do scculo 13.°, um grande agita-
dor, sobre cuja memoria as chronicas escriptas nos
paços e nos mosteiros chumbaram a lagem do es-
quecimento , 6 que a historia moderna tem quasi
de adivinhar nas palavras e nas allusões obscuras
dos velhos diplomas.
Havia , portanto , uma rasão politica para o es-
tabelecimento dos concelhos : o rei achava nelles
seus naturaes alliados. Que esta rasão fosse um cal-
culo , uma idca clara e precisa , um systema fixo
dos primeiros reis, não o diremos — e até duvidá-
mos muito disso. 5Ias era ao menos um instincío ;
instincto que as lutas com o allo-clero e as resis-
tências da fidalguia deviam todos os dias despertar.
Assim a promulgação dos furaes , isto é, a institui-
ção dos concelhos , torna-se cada vez mais frequen-
te, ao passo que os reis se habilitam para terminar
por uma composição vantajosa a guerra ecclesias-
tica, e para começar a grande ompreza da sujeição
da aristocracia secular.
O reinado de D. Aílbnso 3.° é o que mais corro-
bora o nosso pensamento , c o põe a uma grande
I luz : D. Affonso obtivera a coroa das mãos do alto-
clero , e nesta classe devia buscar seu arrimo. To-
davia o coude de Rolonha não ignorava porque pre-
ço se lhe pertendia vender a posse do throno , o
desde a concordata de Paris mostrara que a inten-
ção de o pagar não era muito vehemente. De feito ,
logo que se viu pacifico senhor do paiz continuou
a guerra ecciesiastica sem diminuir ponto da ener-
gia de seus antecessores. Com menos relações en-
tre os membros da fidalguia , vivos ainda os ódios
dos parciaes de D. Sancho 2.°, elle devia forçosa-
mente recorrer ás mesmas allianças populares dos
seus antecessores , e recorrer com muito mais acti-
vidade do que elles. Foi o que succedcu , quanto a
nós ; c a multiplicidade espantosa de foraes conce-
didos por este príncipe, parece-nos nascer mais des-
sa causa, que da necessidade de povoar, porque,
como já dissemos , não menos possível , e mais na-
tural segundo as idéas do tempo, era o systema
dos prestamos e o das pobras, ou concessão de por-
ções do território por emprazamentos, do que o es-
tabelecimento dos concelhos.
358
O PANORAMA.
E depois não vinha o conde de Bolonha de um
paiz , a França , onde restrugiam ainda as revoltas
populares , suhreliido no norte , e a formação das
communs? Teria sido para elle inteiramente inútil
o espectáculo dessas contendas , que. como obser-
va Mr. Thierrj , eram quasi exclusivamente entre
o clero feudal e os burguezes , cuja força ellas
provavam? Preparando-se para resgatar pela força
o throno que obtivera com manha , devia acaso es-
quecer-se de arma tão forte e experimentada? E
não apparece nisto tudo uma explicação plausível
das tendências miinicipaes do seu reinado, tendên-
cias para as quaes não será fácil encontrar outra
Tasão ])olilica , assaz satisfactoria?
Temos assim achado uma causa para a institui-
ção dos concelhos : veremos depois se ella apparece
actuando nas disposições dos foraes, o que servirá
para a demonstrar a posteriori. Chegaremos por es-
se modo a uma conclusão inteiramente opposta ao
principio de que parece partir-se no artigo publi
cado no S.° volume deste Jornal relativamente aos
foraes , isto é , que foi o clero quem promoveu o
estabelecimento dos concelhos. Alem de desconhe-
cermos a existência de monumentos históricos que
nos auclorisem a assim pensar , as considerações
que fizemos indicam inteiramente o contrario.
Se não nos enganámos , o motivo destas differcn-
ças capitães c fácil de conhecer. Desde que se pu-
blicaram as Memorias de A. C. do Amaral hão si-
do Citas quasi a única fonte de quanto se tem es-
cripto , tanto no paiz como fora delle , acerca da
sociedade portugueza primitiva. Sem desprezar os
uleis trabalhos daquelle sábio académico , é incon-
testável que elle nem sempre tirou as verdadeiras
conclusões históricas dos documentos que consultou,
e que sobretudo desconheceu o modo de ser da ida-
de media , ou , para nos servir-mos d'um neologis-
mo , a sua còr local (::). No que diz quando trata
dos foraes parece considerar como primeira espécie
os dados por particulares, e entre estes figuram prin-
cipalmente os das ordens de monges cavalleiros, os
de bispos o os de abbadcs, fazendo só depois men-
ção dos promulgados pelos reis; e talvez daqui nas-
cesse o não se ver o facto á sua verdadeira luz.
Todavia aquellcs foraes particulares ou !ião pas-
sam d'cmprazamonlos collectivos , ou são concedi-
dos pelos donatários da coroa como representantes
do rei, pelos governadores dos districtos, castellos,
e logares [Icnmlcs] , o pelos povoadores delegados
ad hoc para inslituirem o município cuja carta re-
digiram. O verdadeiro foral, a carta da commura
que fazia existir o concelho como entidade politica,
partia do rei : só delle podia parlir. Fosse quem
quer que fosse o promulgador do foral , chame el-
le até no preambulo do diploma ao território do
concelho instituído propriedade sua (mear.i hcrcdi-
talem) , esse homem não era mais que um repre-
sentante do príncipe , exercitava apenas uma dele-
gação. Ainda que a natureza dos foraes em Leão c
r.astella seja diversa em muitas cousas da dos nos-
sos , esta condição era em ambos os paizes a mes-
ma, c os cscriptores portuguczes deviam ter pre-
sente a opinião fundamenta<ln de SIartinez Marina
a similhante respeito.
(::) Para prova basta lembr,irmo-nos de quão grave-
mente elle ilisciiliii .se. a monaictii.a fui na sua origem abso-
luta 011 niixla, sem examinar primeiro ."ie iiiuinelles lenipos
havia a minima pussibilidadc de.'sas dislincrõos de direito
liolilicn. Siaiillianle qiieslão equivaleria a disputar se nesse
tempo liavia censura on imprensa livre.
Mas ao que sobretudo lhes cumpria attender era
aos próprios foraes. Nestes se acham as provas de
que ainda os que mais parecem ser espontaneamen-
te concedidos por particulares em território parti-
cular dimannm do poder central ; são actos cujo
auctor se ha-de subentender que é o rei. Citaremos
um foral impresso (•) c conhecido, em que se de-
monstra evidentemente a nossa proposição como nos
outros análogos. É o foral dado por Gil Martins e
sua mulher á que elles chamam sua propriedade
fnostra hercílitate) de Tcrena. Concedem-lhe foro e
costumes d'Evora, e ahi regulam os direitos reaes,
como , o fossado , ou serviço das correrias milita-
res , e as calumnias , ou coimas dos crimes , per-
tencentes ao fisco ; igualam no foro judicial os ca-
valleiros villões de Tercna aos ricos-homens e in-
f.inçõcs de Portugal, e os peões aos cavalleiros vil-
lões d'o!íírrt.s- terras; ordenam que tendo os de Te-
rcna demanda com alguém de outra terra , a causa
se decida jior inquérito ou combate judicial (retoj,
e que se alguém vier de fora á vilía tirar vinho ou
mantimentos, e ahi assassinarem ou ferirem aos pa-
rcJites do morto não firjue o homizio , isto é , a acção
de revindicta , ou o direito de matarem o assassi-
no , direito commura nesse tempo ; retém finalmen-
te para si os reguengos [a propriedade patrimonial
do rei], as matas, &c. — Como é possível deixar
de ver um simples donatário ou préstameiro nesse
Gil Martins que dispõe dos serviços militares e das
coimas, tira direitos a estranhos, dá privilégios aos
seus súbditos nos tribunaes, c reserva para si bens
patrimoniaes do rei? Quem pôde admittir o irrisó-
rio absurdo de que os nobres de Portugal acccita-
riam por seus iguaes em juizo os villões de Terc-
na porque assim o mandava Gil Martins, ou de que
os parentes de um estranho assassinado por esses
mesmos villões poriam de parte o seu direito de
revindicta porque elle o ordenava ? Sem o sacrifi-
cio do senso commum tal supposição é impossível.
A verdade é que só uma auctoridade que se es-
tendesse por todo o paiz podia ordenar as relações
de um município com os municípios ou indivíduos
estranhos. Ouando cm alguns destes foraes se exem-
plam os habitantes de um concelho de pagar por-
tagem por todo o reino, esíe pri\ilcgio vai affectar
não só a fazenda publica mas direitos particula-
res (") ; c supponha-sc qual se quizer a extensão
do poder dos senhorios de terras , c da nobreza e
alto-clcro nas suas honras, será sempre ridículo
pensar que o rei , ou os outros nobres e prelados
deixassem sabir a acção desse poder dos limites do
respectivo território.
Voltemos, porem, ao nosso assumpto, de que
um pouco nos alongámos postoque não inutilmente.
A segunda causa que devia obrigar o poder cen-
tral a promover a creação dos municípios era a fa-
zenda publica , as necessidades pecuniárias does-
tado : para avaliar a acção desta causa é preciso
tornar a dizer alguma cousa sobre a propriedade
publica ou bens da coroa , cujos proventos eram
poucos, ao passo que as contribuições de foral os
vinham amplamente supprir. A questão da fazenda
prcndc-sc com toda a machiiia da organisação so-
cial , e por ella chegaremos talvez a descobrir as
outras características esscnciacs das instituições de
município. — (Conlinuar-se-ha). — fA. Hereulaiw\
(.) Na Monnrch. Lus. I>. 6." pag. r>58— 1.^ o<li<;.
(••) Por muitos foraos o teiço do Iribulo de barreiras
que impavam as pessoas pertencia ao siiiis licspes . áquel-
les que lhes davam ;asalhado na povoaç.lo.
o PANORAMA.
3u9
MORTE BE VIRIATO.
Prosperava a potencia dos romauos ,
Que em terra e mar extiacta e fracaçada
Tinha a Pena (•) , que teve largos annos
De He.-pauha a maior parle avassallada :
9>
Já da altiva opulência de Carthago
Só o triste cadáver ensinava
Como ás maiores com maior estrago
A inconstante fortuna castigava,
Nos vestigios do celebre areoimgo ,
Já feitos brenhas, feras alojava;
Que onde acabam senados divididos
Se vem a conservar brutos unidos-
A belligera Roma que estivera
Em vésperas de ver-se qual a via ,
Estimulada de que soccorrèra
Hespanha tantas vezes Berbéria ,
Commercios . matrimonies considera
Que entre Carthago e Lusitânia havia,
E resuscita destes parentescos
Os ódios velhos e os estragos frescos.
13.*
Dezoito lustros de annos pelejando,
Toda a potencia bellica romana
Não pode , já perdendo , já ganhando ,
Acabar de render a lusitana ,
Quando do centro (qne ditoso!) quando
Da Bíira (ó Beira eoi tudo soberana ! )
Viriato empunhou (ventura e.-tranha!)
O cajado, que fui sceptro d'Hespanha.
14. 'i
A fama , que em .=eu templo o engrandece ,
Pai e mài uesa a íàlho tào altivo ,
A i»cteneia ou republica carlliagiucza.
E com rasão porque de ambos carece
Quem de suas obras foi filho adoptivo :
Não lhe nei;a a nação , jicrque merece
Ser coUocada em seu eferno archivo :
Todo foi poriuguez no esforço e manha .
Sem ler mistura de nação estranha.
Jirittt. Trágico. Potma de Vraz Gar-
ria de Mascarenhas. Cant. 1 .''
^'iRiATo floreccii pelos annos loO antes da era ebris-
laã. Então , os carlhaginezes e os romanos cm luta
encarniçada contendiam sobre a posse da península
hispânica : aquclles , desfruclondo vasta porção de
território, que ninguém anles liavia pisado, eram
os primeiros possuidores das llespanhas ; mas veio
dispular-lhes o domínio a sua rival constante, a so-
berba Konia. Oppozeram-se capitães valorosos aos
novos invasores, principalmente Annibal (») que
pactuando allianra cora os povos da nossa Lusitâ-
nia , deites tirou intrépida soldadesca que reuniu
aos seus africanos; e depois de resistir na Penínsu-
la e defcndc-la foi tomar a ollensiva levando a guer-
ra ao coração da Itália. A ousada passagem do.-
Pyrenéus, 'da Gallia e dos Alpes, os triumphos do
Tessino , de Trcbía . de Trasimeno , e a final a ce-
leberríma batalha de Cannas , encheram d'eppanto
e terror a cidade de Uoraulo ; os lusitanos auxilia-
dores das armas carlhaginezas , capitaneados pelo
primeiro Viriato , eram principalmcnle dos vetões ,
turdulos e celtas, que habitavam a Estremadura e
o Alemtejo. — Quando porem o povo romano, mais
admirável nas grandes calamidades que nos dias
das victorias, reassumindo toda a energia e acti-
vidade , rechaçou os contrários . c para cortar-lhes
(,•) Vid. pag. 260 deste vol.
300
O PANORAMA.
CS progressos enviou á Hespanha as suas legiões :
assim que ellas dislrahiram os naturaes da alliança
cora os africanos, e obstaram aos reforços e soccor-
ros que estes recebiam da Peninsula , certa foi a
ruina de Cartbago , que viu suas tropas atenuadas
c vencidas pelos Scipiões , e teve de largar a Itá-
lia e por fim ceder a Hespanha , que fui preza dos
romanos. Até alii as regiões áquem dos 1'yrenéus
tinham sido os campos em que tão poderosos com-
petidores guerreavam pelos interesses próprios ; e
os naturaes , divididos em parcialidades , reci|)ro-
camcnte se destruiam , ora a pró de Uoma , ora de
Carlhago , sem que alguém erguesse voz pela pá-
tria opprimida por estrangeiros. Não bastavam a
desperlar-lhes o valor o sentimento da nacionalida-
de vilipendiada , as lyrannias e violências dos go-
vernadores estranhos e a avareza com que manda-
vam suas galés carregadas dos Ihesouros , que tão
prodigamente a natureza derramou no solo penin-
sular. Até que convertida toda a Hespanha em pro-
víncia consular, e intolerável cada vez mais o ju-
go dos intrusos, um só homem lhes refreou a au-
dácia e ambição ; deliberou-se um só a vingar tan-
tos ultrages e a recuperar a perdida liberdade: es-
se homem fui o segundo Viriato. — Nasceu na Lu-
sitânia, e passou os primeiros dias da juventude
obscuramente na tranquilla occupação de pastorear
gado : parece que não era chegado a idade c occa-
sião de manifestar a sua intrepidez , mas de algum
modo anteeipou-a e deu-se a conhecer ao mundo.
Não lhe soffria o animo observar pacientemente o
latrocínio dos dominadores , pelo que largando al-
gumas vezes o cajado e pondo-se á testa de outros
descontentes, que do mesmo modo ardiam em de-
sejos de vingança , sahia ao encontro dos inimigos ,
e quasi sem mais armas que a desesperação arre-
batava-lhes os espólios que levavam. Assim foi cres-
cendo em audácia e destreza , augmentando-se de
dia para dia o numero dos que se encorporavam
nas fileiras, de qué era caudilho: e apenas pode
organisar corpo regular de tropas appresentou-se
em campanha abertamente.
A primeira façanha de Viriato fui attrabir o exer-
cito inimigo a uma emboscada , onde o destroçou
completamente. Grandíssimo pasmo houve cm Ro-
ma ao saber-se que um troço de bandoleiros [que
assim appellidavam os soldados de Viriato] haviam
desfeito as hostes dos cônsules Cornelio Lentulo , e
c Lúcio Jlummio , e se iam assenhoreando da Lu-
sitânia , apoz quatro assignaladas batalhas : reuni-
ram pois as tropas mais veteranas e aguerridas, e
mandadas pelo pretor da Hespanha ulterior as en-
viaram contra Viriato. Esto hcroe sahiu a campo e
desbaratou-as , tomando prisioneiro o commandan-
te : neste canto do occidente desfechou contra a po-
derosa Roma golpes mortaes , destroçou-lhe cinco
exércitos causando-lhe a perda dos melhores solda-
dos e de afamados capitães. Mctcllo, que passou a
Hespanha com os valentes que restavam á orgulho-
sa republica , não conseguiu oppòr diques ás victo-
rias do lusitano , e deixando-o de posse do territó-
rio firmou uma capitulação vergonhosa para o se-
nado romano : este por sua altivez não approvou o
acto do general , por não dar animo ás outras pro-
víncias da Hespanha para sacudir o jugo, imitan-
do o nobre arrojo dos portuguezes : deu o feito por
nullo e nomeou novo general que proseguisse na
guerra ; mas não havia em Roma quem ousasse
marchar contra Viriato. Então se fizeram alistamen-
tos forrados , requereram-sc dos alliados os contin-
gentes auxiliadores, acerescentou-se o numero das
legiões. Quinto Pompeo , passando á Hespanha com
este ultimo e jioderoso reforço , appresentou-se na
frente de Viriato , para reparar as affrontas que ti-
nham soffrido as armas da republica.
Chegou o dia do combate , e os nossos , recolhi-
dos em seu acampamento , não mostravam signaes
de atacar : esperavam sem duvida a presença do
homem que sempre os guiava á victoria , queriam
escutar o breve discurso que lhes inspirava o amor
da pátria , e ouvir as suas ordens. — Succediam-se
minutos a minutos , e os soldados , de olhos fitos
na barraca do general , só os desviavam para ob-
servar o nascimento do sol acima do horisonte. Co-
meçou a espalhar-se por lodo o campo um presen-
tiraento vago e funesto, um desses rumores que pa-
recem sabidos das entranhas da terra, tanta é a ce-
leridade com que se communicam , e tão inexpli-
cável ó a sua origem. Nada foi capaz de conter os
soldados, e no meio do sussurro entrara a lenda do
seu capitão. Que sanguento e horrível espectáculo
se lhes ofTerece ! Viriato jaz sem vida . . . fora trai-
doramente assassinado ; testemunha do delicio era
o exangue cadáver sobre o leito e crivado de pu-
nhaladas. Que desesperação a daquelles guerreiros,
que não poderam defende-lo , nem preserva-lo 1 —
«Que será da nossa terra , viuva do seu mais he-
róico deffensor? — exclamavam chorosos e lastima-
dos.— Gloria a li, Viriato, que pela pátria mor-
restes ; que foi mister a traição tenebrosa para aca-
bar com teu valor 1 A nós cabe a amargura da
saudade, e a triste consolação de louvar teus mé-
ritos e de chorar-te. — «A nós cabe o dever e a
honra de vinga-lo» vozeou o maior numero ; e re-
bentou a explosão confusa de soluços , imprecações
e ameaças: fervia a cólera em lodos os corações;
e os militares meneando com violência as armas re-
queriam que os guiassem ao combate. Pelejaram
sim e valentes , mas sem ordem , sem a voz e o
exemplo do idolatrado capitão , c succumbiram ao
numero e á fatalidade. Os que poderiam substituir
Viriato no mundo do exercito, (•; eram os próprios
que lhe cravaram o ferro no coração , comprados
pela perlidia do astucioso romano , que não poden-
do vencer pelo esforço e pericia militar , recorreu
á traição , á cobardia.
Assim acabou Viriato , e por sua morte voltou
de novo o jugo romano á península quebrantada.
Morreu antes do complemento de suas heróicas em-
prezas ; mas a posteridade conserva a recordação
da sua gloria.
Refeiík o grego .\galhias, historiador de Justiniano,
um bárbaro uso dos Persas. — Quando algum solda-
do era accomraeltido de enfermidade perigosa , se-
paravam-no dos camaradas, e opunham era descam-
pado , dcixando-lhe diminuto iirovimculo de pão e
agua , e um pau para se defender das feras se pu-
desse, li bera de crer quantos pereceriam ^ictiraas
de tão deshumana prática , que sem duvida tinha
fundamento n'algum ponto de crença, porque os que
escapavam não entravam na coramunidade dos homens
sem que pelos magos [os sacerdotes sectários deZo-
roastro] fossem purificados.
Os erros lambem instruem: ha muita gente rica de
seus próprios desenganos.
(•) Braz Garcia no tecido do sen poema introduz iiii»
eslranjeiro.'! que perpetraram o asaassinio.
í)9
o PANORA3IA.
361
HAEITAWTES DAS CARTARIAS.
Deixando as picturescas e ferieis praias do meío-
dia da Hespanha , era direcção qiiasi recta para a
America do Sul , se o navegante dirigir a derrota
um tanto sobre a esquerda , como é costume em
taes expedições maritimas , e cruzar os mares d'A-
frica a igual distancia da ilha da Madeira c do ca-
bo Mogador , passando pelo moio, dentro em pou-
co avistará na distancia de obra de 40 léguas, mas
na linha do seu ru;no , um pincaro escuro , que
surgindo á medida da approximação do navio , os-
tentará em breve as robustas formas de um volcão
magestoso , que campèa sobre o mar , que o cerca ,
com a estatua colossal de duas mil toczas. Prose-
guindo , achará o viajante este pico rodeado d'um
pequeno archipelago, e depois de abandonar á es-
querda dois ilhéus e duas ilhas mais avultadas, e á
direita divisando oulra de medianas dimensões, dará
fundo no bellissinio porto de mar, denominado Si."
Cruz de Tenerife, sem que se lhe escondam as cos-
tas de uma ilha visinha que apparece um tanto mais
para alem e sobre a esquerda , não podendo porem
ver outras duas occulladas pelo porto era que aca-
ba de deitar ferro.
Já o leitor terá comprehendido que são as Caná-
rias as que formara este espectáculo ; c com effeito
NovE.«3HO 18 — 18^3.
são Clara, Graciosa, Faente-ventura {■) c Lançarote
as que o navegante avistou primeiro; Patina a que
mais ao longe divisou á direita; Canária a que ao
chegar a St.^Cruzvia mais internada, mas próxima
a esta ; Gomera e Frrro as outras que Tenerife lhe
não deixava descobrir. Este arcliii)elago , situado a
280 léguas de Hespanha e 40 da costa d'Africa , é
uma jóia preciosa da coroa hespanhola , assaz des-
conhecida aos habitantes da sua metrópole; paiz
outr'ora afortunado (::), ao presente decaindo c
unicamente entregue a seus recursos ; solo que a
natureza profusamente adornou com lodos os seus
atavios e formosuras.
Propozemo-nos tratar destas ilhas importantes , e
tomámos por guia seguro ura escriptor hespanhol ,
o Sr. J. M. Anlequera.
Os habitantes são em geral bem parecidos , de
génio amável e franco , hospedeiros e festivos , e
de boas qualidades moraes : a estes dotes juntam
demais as mulheres certa ingenuidade e natural
graça , que muito agrada ; e as de classe elevada
devem equiparar-se ás das sociedades escolhidas
(•) Que iiiiiiliis chamam Furlaicnlnia.
{::) Forlu/ialfc insula: : jul;.'a-se que são estas as H/ms
fortinosas da antiguidade-
2." Serie. — VoL. II.
362
O PAISORAMA.
da Europa : a mocidade c ágil , esperta , e de mui-
ta penetraçiío , de que lem dado provas os mance-
bos que tem vindo a Hcspanha seguir varias car-
reiras ; a educação das scnlioras c bastante esme-
rada , sobretudo nas cidades marítimas , e inteira-
mente á maneira ingleza ; porque assim neste ra-
mo , como no comraercio e até em costumes e tra-
to , os canaricnses tomaram muito da nação britan-
nica, havendo nos portos destas ilhas numerosos in-
glezes , que mantém estreitas relações com os ha-
bitantes, e que se aproveitam dos cxcellcnles e ba-
ralissimos géneros da terra, com a sagacidade que
todos lhes conhecem.
Os trages das pessoas mais abastadas e polidas
são em tudo sirailhantes aos europeus : nas aldèas
e gente de baixa coniição no!am-se algumas sin-
gularidades , de que se fará idéa pela estampa ad-
junta a este artigo : para um dos n." inimediatos
reservámos a noticia dos aborígenes deste archipe-
lago.
Estudos Mobaes.
II.
O Parocho da Aldeia.
(CoiUinuado de pag. 519.)
A VIDA do velho prior passava na verdade dura e
trabalhosa '. Como todas as cousas deste mundo o
egoismo da tia Jeronima não era acibado e comple-
to, ou , para fallarmos em estylo de philosophia fi-
dalga , não era absoluto. O limitado e imperfeito c
o signal que o Creador estampou na fronte do ho-
mem e na face da terra para nos recordar a todo o
instante a nossa origem ; é a barreira que ello alc-
vantou diante deste grande myslerio de energia c
de audácia chamado a intelligcncia. Sabedoria, for-
ça , paixões, affectos, tudo lem um horisonte com-
mensuravel — horisonte para as virtudes como para
os vicios , horisonte para o contentamento como pa-
ra a dòr. O espirito mede e abrange o que ha mais
vasto e profundo ; os ermos , os mares , o coração
humano; porque ao cabo disso tudo está o finito.
Imnicnsa , eterna, absoluta, so ha uma idéa, que
está fora do universo. Esta é a idéa de Deus.
Por isso ; grande é somente Deus !
Mas dizia eu que o egoismo da tia Jeronima era
incompleto : digo mais : era incomplelissimo. Quan-
do o sacristão vinha alta noite quebrar o dormir
risonho e variamente resonado do padre prior ; quan-
do á voz roufenha do osliario aldcião despertando
o pastor para ir levar as consolações extremas á ove-
lha moribunda e tira-la ja porventura dos dentes e
garras do cão tinhoso, se ajuntava o trovejar ao
longe da tempestade , o fustigar da chuva nas vi-
draças progressivas das meias janellas , e o rama-
Ihar da ventania nos dois plátanos do adro, era sem
duvida que o resmungar da tia Jeronima , appare-
cendo da banda da sua pocilga com a candeia mor-
tiça na mão c as roupinhas vermelhas do envez, li-
nha o que quer que fosse repugnante e vil. A boa
da velha pensava acaso que a morte não seria Ião
descortez que negasse ao espirito do pobre moribun-
do o tempo necessário para [loder, ao abandonar o
corpo, subir como chammasinha Icnue, e galgar pa-
ra o céu sobre ura raio do sol nascente? l'ódc ser
que sim. Não seria , porem , antes , que cila prefe-
risse o deixar frigir |)or alguns séculos nas caldei-
ras do purgatório aquelhi almasinha christaã, lar-
gando a sua veste mortal sem os últimos sacramen-
tos , á necessidade de erguer-se por noite fria e
tempestuosa para tomar nos hombros uma parte da
cruz do ministério parochial? Também isto pode ser.
O que se passava no abysmo da sua consciência
cousa era que cila não revelava a ninguém ; mas
em todo o caso era um pensamento egoista.
Todavia é preciso confessar que com elle se mis-
turava um sentimento puro e nobre : dizia-o esse
cuidado pressuroso com que a tia Jeronima trazia as
bolas de cor térrea , o bernco de saragoça, o capo-
te de barregana, o chapeirão oleado, e a aguarden-
te de ginjas, sem um copo da qual o prior não ou-
saria transpor o limiar da porta , e investir com as
fúrias da noite proccllosa ; diziam-no aattcnçãocom
que mirava se elle ia agasalhado , e as mil vezes
repelidas ponderações hygienicas que lhe fazia, com
admirável volubilidade delingua. Aaffeição da san-
ta velha mostrava-sc em tudo isso viva e sincera ;
e o seu rcsmonear , que no meio das idas e das
voltas, e do perguntar e do responder, ia rareando
e abatendo como o assobio do furacão pelo valle ,
perdia gradualmente a expressão d'cgoismo e con-
verlia-se pouco a pouco n'um pensamento moral.
E o padre prior calladol — Callado enfiava as
botas ; envergava o gabiuardo ; cubria-se com o ca-
pote; punha o amplo sombreiro; enchia um copi-
nho do exccllcnte cordial que a boa da ama lhe
havia postodiantc; virava-o d'umgolpe; fazia uma
visngcm fechando os olhos com força e estendendo
os beiços; dava um estallido com a lingua no céu
da boca ; exprimia o íntimo conforto que nelle ge-
rara o ethereo licor com um brrrahhh prolongado ;
estendia a pequena taça , cheia de novo, ao sacris-
tão , que , mestre nos eslylos de cortczia como nas
ccrcmonias ecclesíaslicas, se curvava formando com
o corpo um angulo obtuso de 1-ío graus despresa-
das as fracções , c arqueando o braço para levar o
copo á boca sequiosa, como se curva e arquea um
perahilho de guedelhas sansimonianas c miolos d'a-
gua chilra, ao conduzir em sala de baile a deusa
dos seus afifeclos de vintequatro horas ao meio do
turbilhão doudo c [pcrdoe-se-nos a blasphcmia] um
tanto parvo das valsas e contradanças.
Dciiois duas palavras magicas sabiam da boca do
reverendo pastor: — «Até logo!» O seu effeito era
instantâneo : o sacristão pegando n'uma lanterna
com as chaves da igreja na mão encamiidiava-se pa-
ra lá seguido do padre prior: a lia Jeronima fecha-
va a porta apoz elles; e como se o tentador esti-
vesse esperando por esse momento, Iravava-lhe no-
\amcnte do espirito, e oresniuinhar da impaciência
recomeçava em breve, accompanhado do ranger do
linho na roca c do espirrar da candeia a espaços ,
e do respiro asthniatico do nédio galo do presbité-
rio, que enroscado na lareira, abria de quando em
quando os olhos amortecidos, e osccrrava logo com
philosophica indilTorença, cm quanto a lia Jeronima
esperava por seu velho amo, c se lhe apertava o
coração sentindo o temporal que passava lá 1'óra , e
lenibrando-se de que o enfermo poderia ter guar-
dado para hora mais decente c comraoda a agonia
do passamento.
li pela serra fora, caminho do casal remoto, vai
o velho prior: adiante o sacristão com a lanterna c
a ambula da extrema nnrção , e elle atraz com o
cibório. As poças d'agua refiectem essa débil cla-
ridade que as alhimia, e fazem um continuo plach,
plach , debaixo dos pés dos dois caminhantes cujo
passo appressam as cordas de chuva balidas peles
o PANORAMA.
363
furacões do sudoeste. Os pinheiros baloucando-se
gemem trislemeiíle, e os enxurros estrepilando pe-
los córregos tiram com elles uma toada soturna.
No céu profundainenlc negro não appareee uma cs-
trella ; — nu terra ao longe, bem ao longe, não se
henzendo-se ao ouvir piar algum mocho. E depois
de se deitar e adormecer sonhava . ,
com que :
Com as combinações infinitas da matéria eterna de
que deve, sigundo as boas doutrinas, ter rebentado
o universo? — Não ! — Sonhava com as penas do
descortina uma luz. A natureza debale-se comsigo inferno; e ao acordar pela manhaã com dclUixo, pc-
mesma : tudo dorme entretanto nos cazaes c na ai- I dia conlissão e sacramentos.
deia , salvo o vellio |)arocho e a familia daquclle I Já lá vão vinte annos ! Bom tempo era esse — ao
que em transes mortaes espera o representante do i menos para mim que ainda nem sabia da existência
Christo que llie traga as derradeiras consolações c i do animal chamado philosopho , classiíica>el entre
esperanças, tntre a philantropia humana e as ago- j os rodeiilia — pelo medroso e damninho. — Em vin-
uias extremas dus pequenos e humildes a noite e | te annos que voltas tem dado o mundo! — Aquella
a lempest.ide ergueram uma barreira quasi insupc- j espécie vai-se acabando de todo. .\uctores decome-
ravel : esta barreira desapparece , porem , diante dias aprcssai-vos I Antes que se perca o lypo, levai
da charidade que a todos nós ensina o evangelho, i o incrédulo á scetia. Dai-nos algumas noites de rir
e que ao parocho impõe como dever imprescripti-
vel a sua missão sacerdotal e o seu caracter de pai
dos pobres e dos aflligidos.
A esta mesma hora , em que o velho prior assim
vagueava por sendas alpestres exposto ás inclemên-
cias de noite iuvernosa, talvez em aposento bem res-
guardado , no fim de ceia brilhante, entre as laças
cheias de vinhos generosos , no meio de mulheres
formosas e voluptuarias , embriagado era todos os
deleites dos sentidos , algum famoso espirito forte
cirzia remendos das dissertações soporiferas d'HoI-
bach ou de Diderot , e dissertava profunda e veri-
dicamenle sobre a mandriice, cgoismo , e cubica
do clero, ou carpia a superstição do povo, que,
segundo a bcmdita eschola da encrclopcdia , para
ser completanicnle feliz de nada mais precisa do
que de abandonar as crenças do christianismo , e
de amaldiçoar as esperanças de Deus, o conforto
único da sua vida de miséria , de trabalho c de
doudo c inextinguivel.
Os dias do padre prior corriam assim placida-
mente para o seu viver ínlimo , posto que o duro
mister de parocho lhe entenebrecesse muitas vezes
os horisontcs da vida material. E que importava ,
se todos na aldeia lhe queriam bem ; se todos o
acatavam como a summa bondade e , o qne não é
menos, como a summa inlelligencia da parochia ?
Até o barbeiro , o próprio barbeiro , homem enten-
dido e grave em maiorias de eloquência sagrada ,
não constava houvesse jamais torcido o nariz ás pra-
ticas e sermões do padre prior, que elle , com a
mão sobre a consciência , punha acima dos melho-
res de freiXimolheo — um fradalhão arrabido, cou-
sa brava em grilarias ao divino, que por via de re-
gra se incumbia das domingas de quaresma naqucl-
la freguezia e nas circumvisinhas com acceilaçâo e
applauso universal do auditório; mas cuja fama era
oITuscada pelos períodos singellos do velho saccr-
amargura. E naturalmente os neophitos d'aquella 1 dote, repassados de uncção , e daquella eloquência
philosophia extasiavam-se em redor do sábio philan- de missionário que apesar de rude lá vai fazer vi-
tropo que impando de iguarias delicadas , de vi- ! brar o coração do povo, affinado pela crença viva ,
nhos custosos e de grossa sciencia, só lamentava a como a harmonia que se tira das cordas de dois
ignorância d'aquelles a quem muitas vezes faltava instrumentos unisonos.
então, falta hoje, e faltará de futuro ura bocado
de pão negro para matar a fome ; extasiavam-se al-
li diante da sensualidade e bruteza de ura insensa-
to vanglorioso, em quanto a virtude do velho cléri-
go, exercitada nos desvios dos montes e no silencio
da noite , não tinha por testemunhas mais que ura
céu húmido e cerrado, e o vulto impetuoso e bra-
inidor da ventania ; mas que em vez das lisonjarias
de parvos tinha para oapplaudir a voz sincera, con-
soladora e santa da própria consciência.
Havia, porem, no fira de tudo uma differença en-
tre o homem do evangelho, e da falsa sciencia. Era
o systema das compensações. O padre prior, de-
pois de cumprir com o seu dever voltava ao prcs-
bytcrio tranquillamcnte : tirava o capote alagado ,
despia o gabinardo felpudo , sacudia a uma distan-
cia rasoavel as ponderosas botas , e enfiando-se en-
tre os grosseiros Icnçoes atava o fio do sonino no
ponto em que o deixara ; e emballado brandamen-
te por sonhos appraziveis só acordava sol nado e al-
to ao bradar da tia Jeronima, e ao cheiro da açor-
da fumegante, almoço que, como tudo o que era
consagrado pelos séculos c pela tradição, elle pro-
fundamente respeitava.
E o nosso philosopho? O philosopho rccolhendo-
se alta noite para a sua pocilga dincredulidade, ia
todo o caminho provando a si mesmo que não ha
diabos no mundo . nem alma , nem talvez Deus ;
mas sentindo arripiarem-se-lhe os cabellos ao ver
dançar a phosphorcscencia d'alsum mamei — rezando
o credo em cruz ao passar por algum cemitério —
Agora porisso , — o que será feito de frei Timc-
theo? '. Era naquelle tempo ura frade guapo e alen-
tado I O que será feito dclle? Se ainda vive, tira-
ram-lhe o burel e a corda d'espnrlo — o seu capi-
tal ; — vcnderam-lhe o convento — o seu tonel de
Diógenes; — prohibiram-lhe o capuz c as sandálias
— o seu direito inauferivel de andar trajado como
lhe aprouvesse : — e mandaram-no , desarmado de
tudo isso , pedir para o mendigo a esmola que se
dava ao burel , ao esparto , ao convento , ao capuz
e ás sandálias. Bom passaporte para frei Timotheo
transitar pela valia plebca do cemitério nos braços
mórbidos e suavíssimos da fome '. — Foi um pro-
gresso de civilisação que se completou pelo lado
moral com o augraento das ioterias , das casas de
cambio , e das traducções de novellas e dramas
francezes. Cemaventurada a tão esperta nação que
assim comprchende o espirito do presente século!
Duas cousas, porem, mais que as práticas e ser-
mões, serviam para engrandecer e glorificar o padre
prior não só diante dos homens mas também diante
de Deus. Era a primeira o incansável zelo com que
se applicava a apaziguar as rixas, a estabelecer a
concórdia domestica , a pregar o trabalho , a guer-
rear a embriaguez , e sobre tudo a santificar pelo
cazameuto as affeições illicitas : era a segunda o
fervor modesto e o innocenle luxo com que procu-
rava celebrar as festas religiosas, principalmente a
de S. Pantaleão, orago da freguezia e de quem tan-
to os aldeões como o velho presbytero criam airica-
daraenlc possuir oroeiacarpo da mão direita, oqu.il
364
O PANORAMA.
devia ser de outro saiilo , ou não-santo , se acere- jbaixo de chave S.Panlalcão in Iclum sem lhe faltar
ditarmos cu cá pela minha parte accrcdito] os pa- | dedo de pé nem de mão — quanto mais nm mela-
rochianos da sé do Porto, que se gabam de ter de- 1 carpo inteirinho. (Cnntimtar-se-lia.)
fA. Herculano).
O coras 90 cid.
N'cMA das salas a que dá entrada a crasla da sé de
Burgos se vé , sustentado por enormes varões de
íerro , e pendente d'uma cadeia do mesmo metal,
um fortíssimo cofre ou arca de madeira, que pare-
ce ser de álamo negro , bastante carunchoso , de
tosco feitio , c guarnecido tudo de barras e argolas
de ferro; três robustas fechaduras o resguardam;
a tampa é maciça e de uma só prancha : indica as-
sim pela íórma , como pelo estado em que se acha
e pelo grosseiro dos matcriaes , pertencer a remota
antiguidade. Tem as segiiiiílcs dimensões : seis pal-
mos de comprido por três de largo, c dois e meio
de altura.
Tradição constante allirma haver sido o dono da-
quelle cofre o Cid Campeador (•). Refere-se que
vcndo-se escaco de meios pecuniários este guerrei-
ro , quando intentava uma expedição contra Valên-
cia, pediu a uns judeus unia considerável quantia,
e deu-Ihes em penhor uns cofres, que lhes disse
estarem cheios de ouro c jóias ricas , mas que na
realidade só estavam atulhados de sei.xos, posto que
tapados por cima com riquíssimas telas. Os hebreus,
confiados na boa-fé doheroe, contenlaram-se cm vèr
os pannos , sem descubrir para examinar o resto ,
e prestaram o dinheiro pedido, o qual lhe foi reli-
giosamenle pago assim que o Cam|ieador ganhou
uma batalha contra os mouros, na qual tomou pre-
ciosos despojos. Será este um dos cofres , que ser-
viram naquelle estratagema ? Questão é que não po-
demos resolver ; todavia esta anligualha é veneran-
da pela tradição nacional.
Di/,-se que ao passar Fernando 7." por IJurgos ,
quando voltava da Catalunha , o cabido fez arrear
o cofre , e abrindo-o achou-se dentro uma espada ,
que por ser maior que o com[)rimcnlo da arca esta-
va atravessada de canto a canto : circumslancia es-
ta que também nada explica.
(•) ViJ. a pag. 340 do preseulc vul.
Igbeja de Santa Maria do Olivaí , MAini/ de todas
AS Ol'TUAS IGREJAS DA OrDEM DE ChKISTO.
J[.
DissESíos que a fachada da igreja era coeva do cas-
lello e convento, e eis-aqui as rasões cm que nos
fundámos. Nós não podemos asseverar cousa algu-
ma com certeza sobre a cnpacidade primitiva da
igreja ; sabemos pelo Tombo que clrei D. Jlanuel a
reparou e fez uhi notáveis allerações ; e que D. João
3." lho accrescentou as capellns interiores , e pro-
vavelmente também a capella-mór , ainda hoje mui
pequena , para onde se passaram alguns dos jazigos
que então furam desalojados de seu logar. Se ava-
liarmos porem pela altura pouco considerável do
seu frontispício e estreita dimensão de sua largura,
a igreja devia ser de pequena amplitude. O fron-
tispício ó gothico ; parede grossíssima de boa can-
taria lavrada ; a porta cm arcada ponleaguda guar-
necida de muitas e nuii delgadas columnasinhas ,
sem ornato nem nichos para estai nas, como foi usa-
do mais tarde na archilectura golhico-sarracena.
Por cima da porta e dando luz para o coro está um
bcllo , transparente , grande c delicado florão , per-
feitamente circular, de cujo centro, como de ura
ponto , sahem para a circumferencia vários c amiu-
dados raios feitos de fina pedra , formando os en-
caixes rendilhados das vidraças com lavores c ara-
bescos ; lindo e muito elegante composto. É a úni-
ca couslrucção delicada , e de mais apurado gosto
que ahi se vè. Pareceu-nos ao principio , pelo fino
e acabado desta fresta ou florão , que poderia ser
de data mais moderna , e até quizemos concerta-lo
com as reparações e melhoramcnlos d'clrei D. Ma-
nuel : depressa porem nos desenganámos dessa lem-
brança , vendo que não ha hi as espheras que mar-
cam as obras deste soberano, nem indicio o mais
ligeiro de ser obra encaixada de novo , e melhor
o PANORA3IA.
365
ainda por ahi estar pegado e c^ccllenleracnle ins-
culpido ua pedra o emblema a que chamámos o si-
i/num Salomniiis, que evidentemeiíle demonstra cons-
trucção lemplaria , a que ó allusívo aquclle sym-
bolo.
1'ara entrar na igreja, quer pela porta principal,
quer pela única travessa , situada ao norte , des-
cem-se actualmente sete degraus , prova manifesta
que o terreno adjacente levantara consideravelmen-
te : devendo notar-se que a igreja está eililicada em
alto , que não ha iii escorrimento de terras , nem
aiUnião d'agnas, que ahi não chegam; e por tan-
to similhanle aterro não pode proceder senão do
grupo de capellas, casas e monumentos vários, que
cercavam a igreja nos primeiros séculos da monar-
chia , e que pouco c pouco foram desabando pelo
tempo, ou demolindo-se pelos homens; sendo os
últimos varridos daiii ha poucos annos, como abai-
xo SC verá.
.\o meio das devastações antigas e modernas e
da perda do cartório , ficou ao menos intacto , por
uma casualidade feliz, o Tombo da ordem deChris-
to, supposto seja d'uma data mais recente, pois foi
feito pelo doutor 1'edralvares , de mandado d'elrei
D. João 3.° Xão nos foi possivel ver este curiosís-
simo documento ; porem devemos á benevolência e
curiosidade patriótica d'um palricio da villa de
Tbomar , que o leu e percorreu , as noticias inte-
ressantes que aqui vamos consignar (»j. O sobredi-
to Pcdralvares personagem devia ser da ordem de
Christo , ouvidor talvez , porque se lhe deu sepul-
tura dentro da igreja. Começa elle por escrever ,
que aquella igreja de Si.' Jlaria do Olival havia
sido construída para mosteiro de monjcs negros no
anno de Christo G.33 , em tempos de St.'' Iria ; que
depois o Ocou sendo de templários portuguezes, e
que dentro e fora delia estavam jazigos de grandes
personagens. Deixemos por ora os monumentos se-
pulchraes , continuemos com a igreja c suas capei-
las , e com outros edifícios exteriores áquclla.
Consta pois do raesmo Tombo que no tempo d'el-
rei D. Manuel se fizeram grandes obras na mesma
igreja : refurmou-se inteiramente o tecto; fez-se ser-
ventia para o coro, que antes era por fura, vendo-
se ainda hoje as marcas do escadorio que para el-
le conduzia , encostado á fachada para o lado do
norte. Por esse tempo e occasião se tiraram dois
elegantes túmulos chamados dos lamareis , que es-
tavam encostados á entrada da igreja. No tempo
d'elrei D. João 3." foram construídas as cinco ca-
pellas interiores do lado do sul, provavelmente pa-
ra dar-lhe maior amplidão, e talvez por devoção
aos santos a que foram dedicadas. Infelizmente po-
rem este grande incremento que se deu ao templo
foi uma calamidade para a historia e para as ar-
tes , porque se desmancharam os nioimentos que
estavam junto ás paredes desse lado , desaparece-
ram as campas com suas inscripções , desalojaram-
se as relíquias para as transportar a outros sítios ,
e apagou-se a memoria de muitas delias. Uma con-
fusa e vaga notícia ficou consignada nas historias e
na tradição popular de que naquella igreja estavam
sepultados todos os mestres dos templários em Por-
tugal , e os primeiros trcs da ordem de Christo ,
porem assígnar-ihes o local da sepultura nãu era
isso dado a alguém, porque desappareceu tudo [á
excepção de um só^ com a mais barbara e deses-
(•) O Sr- PeJro de Roure Pietra, mancebo tio zelo-
so , quauto amigo da gloria nacional.
perada crueldade. Devemos pois muito ao auclor
daquelle escrípto [o do Tombo da ordem de Chris-
to] , que parece não viu já aqucllcs monumentos,
porem lembrou-se de mencionar as informações que
encontrou , algumas das quacs coratudo precisam
rectificação , como mostraremos. A igreja devia ter
sido pouco vasta , singela na sua primitiva cons-
trucção e decoração, conforme aos costumes simples
daquelles tempos. Faltando-lhc todas as capellas
interiores que . como dissemos , são do meado do
século 1G.°, teria provavelmente, alem do altar c
pequena capella-mór , talvez mais dois altares no
cruzeiro; ficava-lhc a sacristia ao norte, que por
ser húmida c mal conítruida se passou ao sul nos
tempos também d'clreí D. João 3." Tinha seu curo
de cima com entrada exterior; ao lado, para o sul,
a casa do prior ou vigário que administrava e pre-
sidia ao culto como parocho da povoação da >illa,
com sua cerca de fraca importância, se a avaliar-
mos pelo que hoje ahi se vè.
Um alpendre cobria e guarnecia a entrada prin-
cipal, segundo o costume daquelles tempos primi-
; tivos , em que todas as coustrucções pias eram pa-
ra commodídade do serviço religioso , e pouco im-
portavam ostentações nem simetrias d"archilectura.
Este alpendre, ou galilé, como lhe chamavam, era
destinado a abrigar os pobres c peregrinos que ahi
se acoutavam ; servia para pregar ao povo em occa-
siões de grande concurso ; e para adminiilrar jus-
tiça, porque ahi estava a cadeira ou seda de pedra
do alvasíl ou juiz , posto pelos freires , senhores da
juriidicção ci\il e criminal no seu aro dominial, bem
como o eram da ecclesiastica. O raesmo Tombo con-
signa outra antigualha mui curiosa , qual é a de
haver ahi próximo um púlpito exterior donde se
pregava não só á multidão quando afluía , mas pa-
ra que os mouros e judeus conversos podesscm ou-
vir a doutrina chrístaã e cathechese antes de pode-
rem entrar na igreja pelo baptismo e admissão so-
lemne ao catholicismo.
A torre dos sinos que hoje se vè em face da fa-
chada e porta principal da igreja , diz o raesmo es-
crípto , que fora alteada para essa serventia por el-
rei D. João 3." Não duvidamos que esta destinação
se lhe desse nesse tempo ; mas outra devia ter sido
a idéa que presidiu prímílivamcnle á sua construc-
ção. É ella , como ainda hoje se vè , uma torre go-
thíca , forte de muros, com uma única pequena
porta do mesmo gosto , tudo de cantaria tosca. Is-
to, e o ser um pouco afastada da igreja, indica se-
ria destinada a recolher e refugiar os freires, que
ahi residissem no serviço da igreja , d'uma repen-
tina correria de mouros. Tal era o costume e a
prevenção usada naquelle tempo ; pois sabemos que
elrei D. Affonso Henriques mandara construir era
Santa Cruz de Coimbra uma torre para segurança
dos pa<lres, companheiros e successores do arcedia-
go D. Tcllo , a qnal depois foi convertida em torre
dos sinos como hoje é; e o castello d'Alcobaça não
teve outra origem senão a de abrigar e defender de
iguaes contingências os monges cistercienses. O lu-
xo dos grandes sinos, e de seus elevados e syme-
tricos campanários , foi posterior de muitos annos.
A devoção dos fieis ao santuário de St." Maria
do Olival . c a relevância dos cavalieiros do templo
que o administravam , a riqueza c preponderância
da ordem de Christo que lhes succedeu, foram pou-
co e pouco multiiilicando alli as coustrucções pias,
de que vamos dar noticia.
( Con(inuar-se-ha J .
3C6
O PANORAMA.
o PASSEIO DA PlIANTASMA.
Legenda do século 1G.°
Corria o século decimo-scxio. A Europa comeravn
a accorJar do prolongado somno da ignorância cm
que tanto tempo jazera ; porem esse primeiro esfor-
ço da intelligencia, esse primeiro vislumljre da cla-
ridade, em relarão ;ís massas contemporâneas tal-
vez , longe de ser um beneficio, podesse contar-se
como uma causa mais de calamidade e dissolução.
Proveitoso e útil , como era forçoso o fosse , foi el-
le primeiro raio de luz, por isso que preparou os
mais agigantados progressos dos séculos vindouros;
na actualidade porem , como em todas as epochas
de transição, licito é ao philosoplio duvidar se clas-
sifique como prospero e bcmfnzejo , se como funes-
to e malfeitor, o primeiro despertar das rudes intel-
ligencias da idade media.
Filha do claustro , do claustro monachal e faná-
tico , trouxe comsigo a primeira tentativa o cunho
da sua origem. Foram os primeiros ensaios as com-
plicadas o metnphysicas questões de religião , que
espalhando-se do claustro n'um mundo lodo d'igno-
rancia e barbaridade , accenderam em todos o fa-
natismo o mais feroz ; e as guerras de religião pe-
lo menos tão cruentas e por certo mais teimosas e
geraes que as da ambição até alli guerreadas ; por
isso que ao rancor dos partidos, á cobiça e sede do
mando e demais impulsos motores destas uniam a
intolerância e a sevícia que lhes foi própria ; amea-
çaram por um momento a Europa de tornar a pre-
cipita-la no abysmo de barbaria , do qual apenas
começava a antever o termo c a sabida.
Longe de melhorar os costumes , de moralisar os
ânimos da epocha , foram os primeiros efleilos de
taes contendas pcorar uns e a completa desmora-
lisação de outra. Um sccpticismo atroz , por isso
que nem sequer se apoiava nas theorias de uma
philosophia, que mais tardo somente veio, senão de
lodo ao menos em parle , , conter os seus sectários
nos limites da moralidade absoluta , veio abalar to-
das as crenças ; e especialmente nos grandes da-
quella era apparece cm toda a sua fealdade a ne-
nhuma fé nas cousas divinas ou humanas, o des-
conhecimento total de todo o direito ; e o quadro
histórico do século decimo-scxto , apprescnta nos
contos de sangue e assassínios sem fim, despidos de
toda aquella tinta de poesia e do um certo mages-
toso, que apprescnta o dos séculos precedentes, on-
de o espirito cavalheiresco , a exaltação religiosa ,
bem ou mal interpretadas por heroes inteiramente
destituídos do illusl ração, faz ao menos nascer uma
syinpathia , um sentimento de admiração cnthusias-
tica por esses hoits tempos que já foram.
As theorias governativas daquella epocha acham-
se desenvolvidas no infernal systema de Machiavcl.
A força Iriumpha constantemente sobre a justiça e
a rectidão , como nas eras de ferro recem-passa-
das ; porem o ponto de honra, o amor da gloria, que
douravam as cruezas de então, já não são proclama-
dos no pendão dos cavalleiros , na lide dos cam-
peões , o interesse , a avidez , a má fé são accla-
madas sem pudor pelos grandes, e o fanatismo dos
soldados , o rancor das seitas , fazem do quadro
histórico um verdadeiro tecido de horrores c con-
fusão , destituído de interesse c de belleza para o '
leitor sensível.
Comtudo não deixa o século decimo-scxto de ap-
prescnlar excepções á physíonomía geral. Um sen- i
timcnlo , senão novo , ao menos até então compri-
mido e quasi reduzi<io ao silencio , começa a ani-
mar os homens daquella idade. A par das sophisti-
cas discussões dos theclogos , ao som do tinir das
armas dos guerreiros, ao clarão das fogueiras do
fanatismo , corporações inteiras , cidades e até uma
nação, a helvética, appresenlam a atitude verda-
deiramente interessante do povo pelejando pelos seus
direitos, da humanidade reclamando os seus foros
perdidos , e é no meio das invasões das contendas
sem fim e sem motivo outro que a cobiça dos pode-
rosos, que os cantões pastoraes da Suissa por uma
parte, as cidades livres da Alem;uiha e algumas
da Itália pela outra, mostram o intuito generoso,
desenvolvido com a politica mais refinada , de re-
\ indicar a sua posição própria e independente, de
aproveitar para a confirmarão dos seus foros as dis-
sidências , as paixões, a cegueira dos grandes op-
pressoros.
Genebra sobresahe entre estes primeiros baluar-
tes da liberdade , não só pelo valor dos seus de-
fensores , como pela sabe<ioria dos que dirigem sua
defeza. Com uma firmeza e uma obstinação verda-
deiramente heróicas guarda a independência contra
as armas combinadas de três potentados , qual o
imperador de Alemanha , o rei de França e o du-
que de Saboya , seu inimigo natural. Combinam-se
nas almas dos seus cidadãos o amor da libcrdadt^de
eras mais recentes com o fanatismo religioso pró-
prio da era a que alludimos; porque não devemos
olhar os republicanos de então exemplos da paixão
da idade; fanáticos a par dos fanáticos contra quem
lutavam, os discípulos de Calvino , se não lhes fal-
tara a força e o poder do numero , houveram por
certo convertido contra seus contrários essas mes-
mas perseguições, essas mesmas fogueiras, que sof-
fríam , e que tão amargamente lançavam em rosto
aos proselytos mais poderosos da igreja romana.
I.onga e áspera fbi a contenda. Foi Genebra pa-
ra os protestantes da Alemanha o que mais tarde e
com menos fortuna foi a líochella para os france-
zes , e contra os seus muros vieram quebrar-se de-
balde o poderio das três potencias , as iras roma-
nas , a intolerância c perseguição , e as fúrias dos
soldados do despotismo.
Não é nosso fira relatar os innumeros combates
batalhados ante a cidadella da reforma , entre os
fanáticos de uma e de outra crença. Vamos segmen-
te pôr na presença dos nossos leitores uma tradi-
ção , que , pelas circumstancias romanescas que a
revestem , nos parece própria a entreter a imagi-
nação ; pela sua natureza própria a niostrar-nos o
caracter daquella idade, em que predomina a pai-
xão do século, a paixão das republicas formadas
sob a lei da reforma , fanatismo c liberdade , su-
perior a todas as outras considerações , ao próprio
sentimento do amor , tão poderoso em peito femi-
nil ; c finalmente acompanhada do maravilhoso , do
sobrenatural , do terrível , associados ás legendas
daquelle tempo supersticioso, e que ainda hoje in-
fluem nas idcas dos povos, no meio da civilisação
actual , ainda na presença do espantoso desenvolvi-
mento das luzes e da rasão no nosso século.
Entre os mais acérrimos perseguidores da refor-
ma contavam os discípulos de Calvino um prínci-
pe a quem talentos extraordinários . actividade de
espirito sem par, e uma má fé commum a todos os
potentados da epocha, dirigida com uma intelligen-
cia acima do vulgar, grangearam o appellido de
grande. Era Carlos Manuel, duque de Saboya, não
o PANORAMA.
3G7
só pelas rasõcs de crença e sua alliança com as po-
Icncins catholicns, mas lambem pela sua proximi-
dade aos limites de (ícnebra , o mais temível dos
contendores , o mais interessado na queda da cida-
de , e aquelle cuja presença contínua mais incom-
niodava os seus moradores. Tréguas mais ou menos
duradouras suspendiam por vezes a guerra aberta
entre os dois visinlios ; porem a má fé do tempo
não pcrmitlia o inteiro descanço nos tratados, e o
duque tanto na paz como na guerra cnticlinlia cons-
tantemente na fronteira um exercito de observação,
prompto a violar a suspensão proracltida de hostili-
dades , na primeira occasião que se oflerecesse de
o poder fazer com vanlngem.
Commandava [na epocha a que se refere a nossa
narração] os exércitos do duque de Saboya o conde
de Martigny, um dos generaes mais babeis do seu
tempo. Eustacbio de Beauvoisin por parte dos re-
publicanos commandava a guarnição da cidade, c
apesar de uma paz solemncmente jurada entre os
dois contendores, nenhum dos chefes, nenhum mes-
mo dos soldados deixavam d'espreitar a occasião de
mutuamente se sorprendcrem. Os saboyanos com
tudo , mais disciplinados , não passaram nos co-
meços da trégua de alguns insultos , de algumas
provocaçiães dirigidas quasi sempre contra os após-
tolos da reforma, cujo vestuário e maneiras, afie-
ctadamenle seíeros e simples, mais provocavam o
cscarnco do que o ódio dos soldados de um senhor
poderoso c opulento , qual era o duque. Porem a
provocações desta espécie respondiam os novos con-
vertidos com amargas represálias. Apesar da boa
guarda e vigilância do exercito de jMartigny, par-
tidos da gente de lícauvoisin entravam continua-
mente as fronteiras catholicas, e alli vingavam nos
cruzeiros das estradas , nos nichos dos santos ex-
postos á devoção publica nos caminhos reacs , as
injurias feitas aos seus missionários , e mais d'uma
vez correu o sangue catholico , quando sorprendi-
das nas capellas dos campos as irmandades devotas,
celebrando alguma festa em louvor do santo pa-
droeiro, os protestantes derrubando o altar , cal-
cando aos pés a imagem do santo , derramando o
óleo da alampada sagrada, completavam comoassas-
sinio do sacerdote e dos adoradores a sacrílega pro-
fanação. O conde de Martigny pela sua parte não
perdoava a algum dos fautores de lacs actos, quan-
do , como ás vezes acontecera , caliiain nas mãos
dos seus soldados , e no logar mesmo onde uma
cruz fora abatida, arrojado um altar, violado um
recinto sagrado , erigia o general uma forca , onde
á falta do réu muitas vezes o inuocentc attestava a
injuria e a vingança do chefe irritado. \ inexorá-
vel severidade com que líartigny seguia este modo
cruento de retaliação , bavia-o tornado para a com-
munidade de Genebra o objecto da maior execra-
ção , c cm suas orações publicas , nas praticas com
que concluíam o serviço de sua seita, repartia Mar-
tigny com o demónio e o papa anteclirísto as mal-
dições dos devotos protestantes.
Apesar destas scenas cruentas continuavam os ha-
Ijítantes de Genebra as suas excursões pacificas so-
bre o formoso lago, de que a cidade tira o seu no-
me. As pessoas de todas as idades , de lodos os se-
xos enlregavam-se , como ainda hoje , sem temor
ou receio ás leves embarcações que coalhavam o
Soberbo lago. Nas noites de luar prinoipalmenle ,
nm sem nunu-ro de velas brancas rellcctiara os raios
do astro luminoso , em quanto dos ligeiros barcos
subiam ao ar hyranos de harmonia , vozes as roais
j das vezes femininas , cantando ora a belleza das
I aguas que percorriam, ora as proezas dos campeões
da liberdade e da fé.
I N'uma destas noites, entre os barcos que gra-
I ciosos passam e repassam sobre a límpida supcrfi-
; cie, nas proximidades de Genebra, um batel mais
atrevido sahindo da esteira commum approximava-
se á margem inimiga da Saboya. l'odia á claridade
da lua dívisar-se em pé no batel a única figura de
uma donzella delicada; em quanto na margem a
que parecia dirigir-se , um pouco acima da aidéa
de Clàse , em pé , e como ancioso contemplando a
audaz navegadora, se divisava um soldado, cujo
uniforme era o do exercito do duque de Saboya.
A nauta locou a margem. Saltou ligeira era ter-
ra. «Cara Isabel I » diz-lhe o soldado cingindo-a
em seus braços amantes. «Graças mil te devo, al-
ma cândida e generosa , pela entrevista a que vens
com tanta conliança. Muito a desejei eu ... . e se
ora souberes que treno vendo chegada a hora de-
sejada .... talvez cuides que a alegria , o conten-
tamento perturbaram o juízo do teu amante; porem
não. . . . Tremo .... porque não é a um anjo como
tu ... . nem á luz pura do astro que nos allumia
neste instante, que deveria cu soltar as idéas in-
fernaes que sinto no peito !....» Dizendo assim ,
uma nuvem negra como que passava sobre a fronte
naturalmente morena do soldado .... assustada a
donzella aparta-se dos braços do amante que a não
relera '..... e ao vè-lo assim tão severo , tão dei-
xado da costumada meiguice, um pensamento de
dòr , um pensamento de receio assaltara-lhe o pei-
to , cuida que foi trahida , que outro amor invadiu
o logar que ella occupava na alma ardente do sol-
dado , e com nma espécie de frenesi: «Que di-
zes ! c para isto , molina de mim , atravessei o la-
go I para isto incorri eu a cólera dos meus ; violei
os meus deveres ; . . . menoscabei a minha lei ....
e o ingrato por quem tanto arrisquei .... pertende
hoje romper os votos sagrados !....»« Nunca » in-
terrompe o Soldado, c volve a apertar a donzella
nos braços amorosos; em quanto mais dcscançada
a joven discípula de Calvíno, encostando no hom-
bio do amante a loura frente , enxuga o pranto da
suspeita ha pouco vertido. «Nunca» interrompe
com força o soldado «deixarei eu de adorar-te. Em
qaanto Deus me conservar a existência , tua hade
ser sempre. Porem, minha Isabel, esta i)az enga-
nadora, em que talvez acreditas, ó um precipício
encoberto cm que tem de ?orver-se a crédula inno-
cencia dos que nella confiam. Fortes são as mura-
lhas da lua terra , fortes e leacs as armas dos seus
defensores .... mas lambem lhe chegou a sua ho-
ra , e o progresso da destruição liade ser certo c
secreto , como o curso do vosso Rhodano que se
esconde debaixo das rochas da montanha para ap-
pareccr depois mais forte, mais magestoso.» E o
soldado parou aqui. Uma inquietação visível maní-
feslava-se no seu rosto , e os seus olhos fixos ora
na sua amada, ora nas distantes torres de Gene-
bra , pareciam exprimir o seu cuidado naquella . e
a sua certeza da ruína da piíraeíra. Não menos agi-
tada está a donzella. O pai , a pátria , a fé , tudo
lhe occorre a par do amor que a prende ao inimi-
go. Vertem seus olhos amargo pranto. «Negros são
os teus vaticínios. Deus os affaste da nossa cida-
de.» «Nem Deus poderá salva-la.» — «Sobre ella
vigia Beauvoisin.» — «Nem vigilância, nem va-
lor» continua o soldado com Ioda a expressão do
amor, «Isabel, a Iraífão habita os >0í50S muros.
3G8
O PANORAMA.
Amanhaã o sangue inundará as ruas de Genebra.
A espada do soldado cortará pelos teus concida-
dãos mais duros que as próprias muralhas em que
píjem sua confiança , por esses corações mais frios
(Io que o lago que os defende.» Dm sorriso d'odio
e rancor satisfeito passou um momento sohre os la-
l)ios do soldado ; mas ao ver as lagryraas da linda
Isabel sentiu-se coramovido. «Foge tu , meu amor.
— Vem comigo — vem comigo habitar as bellas pla-
nicics da minha Itália....» — «Thcodoro, esque-
ces a quem falias. A filha do Beauvoisin não liadc
desamparar o pai na hora do perigo. A discipula
de Calvino não bade desamparar os muros da sua
pátria quando o sangue correr nas suas praças e a
traição passear suas ruas.» — «Teu pai será por
mim defendido. As suas caãs serão respeitadas.
liem sabes que nunca jurei em vão — lenho poder
para salva-lo.» « Meu pai aborrece o infiel. Ainda
que a espada da morte visse apontada sobre o pei-
to , correria ante o golpe , mais depressa do que
acceitára a protecção d'um soldado de Slailigny.»
E mais rápida que a gazella , Isabel saltou no es-
quife. ... O soldado quer demora-la. Já o batel to-
cou o meio do lago , e o saboyano viu , de cima da
penedia , tocar a margem oppobla aquellc barco ,
assim- carregado dos seus segredos, das suas espe-
ranças.
«Cão de mim ! » exclamou o mancebo, cntranban-
do-se na floresta visinha da costa. «Cão de mira,
que fui talvez revelar ao inimigo o mais bcllo es-
tratagema .... o fructo de longas meditações ! . . .
o que devia por uma vez entregar-mc aquella cida-
de descrida ! »
O resto pertence ú historia. Marligny , confiado
nas suas jiraticas no interior de Genebra , atacou
naquella mesma noite a cidade. Em vez do soccgo
e da imprevidência que esperava , encontrou Deau-
voisin apercebido. Gente armada sobre os muros :
reservas dispostas nas ruas , proniplas a repcllir o
ataque. A derrota dos saboyauos foi completa , e o
próprio conde de Martigny cahiu prisioneiro , nas
mãos de seus cruéis inimigos , com mais de du-
zentos saboyanos , fiòr do seu exercito.
llepicavam os sinos nas torres de Genebra. So-
Liam ao céu as gritos de exaltação. O povo accu-
mulava-se nas ruas que conduzem á praça princi-
pal. Senhoras primorosamente enfeitadas occupa-
vam as janellas, todos os olhos estavam attentos no
alto patíbulo que se erguia no meio da praça, aon-
de , cora centenares dos seus , devia o infeliz Mar-
tigny expiar as sevícias que n'outro tempo exerce-
ra contra os seus actuaes vencedores. A milícia da
cidade , formada em torno do patíbulo , aguardava ,
com a anciedade cruenta do ódio, a illustre ^icti-
ma do ultimo combate. Beauvoisin , a cavallo em
frente dos seus , distinguia-sc mais pela simplici-
dade severa do seu trage , do que pelas insígnias
grosseiras do cominando que o adornavam. Com
olhos severos filava a janella onde sua austera au-
ctoridade retinha a filha infeliz, a sensível Isabel,
que debalde quizera subtrahir-se ao espectáculo
que ia ter logar.
A final apparecc o fúnebre cortejo. Marligny, no
meio dos prisioneiros , com o uniforme de general
c a estrella no peito, caminha para a morte , como
outr'ora caminhara para a victoria. — I'recipita-se
o povo ante os prisioneiros. Imprecações fanáticas
saúdam a viclima. Pararemos aqui. No soberbo ini-
migo , ora prostrado , reconheceu a filha de Beau-
voisiu o soldado da margem do Clàse, o Thcodoro,
a quem deu o seu coração. ... Ha momentos cm
que a rasão cede ao pezo da dòr , em que a cons-
ciência desampara a alma prompta a partir ; por-
que o homem, em tudo mesquinho, até na facul-
dade de solfrer , não basta a tamanhas maguas.
Isabel ainda sobreviveu ao seu amante doze me-
zcs. Doze mezes viveu a infeliz iiHim estado d'alíe-
nação completa. Rccusou-se conslantcraente a toda
conimunicação com suas antigas relações. O pró-
prio Beauvoisin ensaiou debalde arranca-la ao seu
obstinado silencio. A \ista do pai já não excita na
donzella os antigos affeclos do amor e do respeito.
Aparla-o de si com horror visível. Todas as noites,
á hora costumada , Isabel emprehende a sua nave-
gação á margem do Clàse. Allí permanece de joe-
lhos parte da noite, como de|)recanuo a sombra do
sen amante. Tma noite , o frágil batel , em vez de
dírigir-se para a margem da cidade, levado da cor-
rente, entrou no Hhodano, onde se sumiu para sem-
pre , com a nauta infeliz.
Ainda hoje conservara os barqueiros do lago a
traiição do conto molancbelico. Delialde promette-
ria o viajante sominas avultadas para , á meia noi-
te , atravessar o lago cm direcção ao Clàse. O te-
merário que áquella hora se approximasse da mar-
gem fadada encontraria o batel da phantasma. To-
das as noites sabe de Genebra, e com espantosa ra-
pidez se dirige á margem saboyaua , sempre direi-
to ao Clàse , qualquer que seja a |>arte donde so-
[ira o vento. O seu amante é fatal ans navegantes.
Muitas vezes ouvirauí os aldeões vísinhos da pene-
dia os altos clamores da virgem prostrada sobre o
rochedo ; muitos a viram antes da hora da alva
voher ao seu batel , e sumir-se com ellc nas pro-
fundas agnas do rio , e o pescador do I<lgo conser-
va com um temor supersticioso a legenda do — Pas-
seio da Phantasma. —
Fmiandu Luiz Mousinho de Albuquerque .
\as pro\ineías mais frias do nosso reino e do visi-
nho é constante o uso de aquecer Aolrnsciro duran-
te a estação rigorosa ; brasa c palavra ccmmum ás
duas linguagens hispânicas , e Covarrubias pcrlen-
de que ella proveio do grego bras que diz tanto co-
mo o verbo latino cbidlio que significa fcivcr. Seja
porem qual for a etyraologia do nome , a causa e
origem do brazeiro foi a notória precisão de res-
guardar do frio : e quem o seu inventor? . . . Nova
questão, tão inútil como a primeira, mas a que
lambem se pôde responder com desembaraço : — foi
o primeiro que teve frio; e pouco importa saber-lhe
o nome. — Se o pai do género humano conheceu a
industria de aceender lume, devia ser elle o inven-
tor daquelle conimodo : assim o prova jovialmente
ura eseríptor faceto. — Adão ficou sujeito pelo pec-
cado a todas as misérias, desde a desgraçada golo-
sina a que arranchou com sua mulher : — é certo
que uma destas misérias foi o frio : — erffo nosso
pai .\dão , por ser o primeiro que teve frio , foi
sem du\ída o inventor do brazeiro, de que se apro-
veilnm aquelles da sua posteridade , que tem di-
nheiro para a lenha, c tempo coccasião de se aque-
cerem.
A verdadeira sabedoria não é presumpçosa : o sá-
bio duvida muitas vezes , e não poucas muda de
parecer antes de resolver-se a obrar; o néscio é
fátuo , teimoso e nunca duvida , tudo conhece me-
nos a sua ignorância. — LorU Chesterfietd.
100
o PANORAMA.
369
RAPHAEI. SUBBINO.
Temos feito conhecer algumas das obras pictóricas
deste insigne mestre , que foi arrebatado pela mor-
te na ílôr da idade e que assim mesmo deixou gran-
de numero de quadros de assombrosa perfeição. Da-
remos agora noticia succin!a da sua curta vida. È
geralmente denominado d'Urbino, por ser natural
desta cidade dos Estados pontificios; mas o seu ap-
pellido de família é Sanzio ; seu pai foi pintor de
merecimento , e ainda existem obras delle , nomea-
damente o painel n.° 21o, i." divisão, na galeria
de Berlim, o qual 6 de considerável belleza, posto-
que de colorido frouxo.
Nasceu Raphael na sexta feira santa de 1483 ,
que nesse anno cahiu a 28 de marro , e falleceu
n'outra sexta feira santa , 6 d'abril de 1520 , em
consequência de um attaque febril. Tomou de seu
pai os primeiros rudimentos da arte , mas cedo o
levaram a Perugia , dando-lhe por mestre o mais
distincto professor da epocha , Pedro Vanucci , por
antonomásia o Periigino.
Nos primeiros annos do século 16." era Florença
o foco de que partiu a revolução que mudou o es-
tado das Bellas-artes : Leonardo da Vinci , natural
desta cidade, achava-se no apogeu da sua reputa-
ção; distinguiam-se as suas obras por um trabalho
que era muito estudado , porem mais gracioso que
o dos artistas que o haviam precedido ; abria elle
nova senda aos discípulos da pintura. Miguel An-
gelo no vigor da mocidade , até ahi distincto só-
NOYEUBRO 2o — 1843.
mente pelo seu exímio cinzel , excedeu repentina-
mente Leonardo, appresentando o cartão da Guerra
de Piza , no qual o estudo da anatomia e o arrojo
particular do seu talento lhe permittiram ostentar
quanto de maravilhoso e mais difíicíl e profundo
encerra a sciencia do desenho. — Uaphael, que em
Perugia aprendera as noções da arte singela e reli-
giosa da idade media , comprehendeu a necessida-
de de aproveitar-se da novidade com que a pintura
adquiria realce : foi portanto á corte dos Medíeis
continuar seu estudo. Por grandes que fossem os
seus desejos de se pôr logo a par dos progressos,
que observava , os numerosos painéis que por esse
tempo acabou ainda mostram o cunho fiel das im-
pressões recebidas na eschola do Perugino : ha so-
briedade na composição demasiado singela , a gra-
duação dos toques niraiamcnle pronunciada, a exacti-
dão bastante secca no desenho, mas a brandura das
expressões causa suspensão e embeleco : 6 o que
chamam o primeiro estylo de Uaphael , c ha quem
o prefira ao que elle depois adoptou. Fortificado
com os fructos de applicação assídua , que tanto
ajudava a transcendência de seu immorlal engenho,
dispõz-se a lutar com Leonardo da Vinci e Miguel
Angelo no próprio Iheatro em que eram laureados.
Sollicitava obras dignas de supportar comparação
com as daquelles mestres, quando foi chamado a
Roma. O pontífice Júlio 2.°, soberano de vastas con-
cepções e dotado de estremadas qualidade politi-
2.* Serie. — Vol. II.
370
O PANORAMA.
cas , quiz que o esplendor , que rodeava a santa se
era virtude de seus talentos d'homem d'cstado, so-
bresahisse com obras de século , filhas do esmero
e do prestigio das artes : confiou a Bramante , seu
architecto , o encargo de levantar templos e palá-
cios , que equiparassem a altura de seus grandes
desígnios politicos. Bramante fez que viesse a Ro-
ma llaphael , que era seu parente , então de idade
de 23 annos. O pintor foi benevolamente recebido
pelo papa , que llie incumbiu as decorações do Va-
ticano, e lhe mandou começar sem dilação pela sa-
la que chamam delia Scgnnlura. Já tinha grangea-
do Raphacl por seus anteriores quadros nome vivi-
douro ; mas pintando esta sala collocou-se superior
a Ioda a comparação. O seu engenho foi daquelles
rarissimos presentes que a Providencia concede n
humanidade cora intervallos longos e só a indivi-
duos privilegiados. Pcrmitta-se-nos , sem embargo
disso, interrogar segredos e explicar effeitos. Se
Raphael adquiriu gloria que o elevou acima de seus
contemporâneos, foi por ter simultaneamente repre-
sentado as duas tendências do seu século. Miguel
Angelo é talvez mais original que llaphael ; nada
tomou do alheio ; mas llaphael fez consistir toda a
sua fama em levar ao ultimo grau de perfeição to-
das as cxccllentes qualidades de seus rivaes. Mi-
guel Angelo é um colosso de força e magestade , c
raros homens mereceram como elle o epithelo de
creador : mas Raphacl é a expressão mais completa
do seu tempo : tomou do século em que viveu aquel-
las santidades sinceras , recebeu delle o amor e o
estudo da antiguidade, tem como elle a mistura de
christão e pagão , de religioso e philosopho : dahi
vera agradar cm todas as eras , e a sua coroa de
gloria c immarcescivel auxiliada por uma suavida-
de de pincel que podemos dizer lhe nascia do co-
ração.
Concluída a primeira sala do Vaticano occupou
seu talento fértil n'uma grande porção de obras,
durante os últimos doze annos da sua vida, em nu-
mero tal que move a geral admiração : verdade é
que o ajudavam seus discípulos, em meio dosquaes
vivia como n'uma espécie de corte com toda a pom-
pa e reverencia de príncipe. Júlio Romano, Fran-
cisco Penni , João de Udino , e outros muitos tra-
balharam ás ordens e sob as inspirações de Raphael.
— Leão 10." que succedcu a JuIio 2.° na Cadeira
de S. Pedro não o tratou com menos dislincção ,
fè-Io succcssor de Bramante , deu-lhe a inspecção
das antiguidades , que se descobriam pertencentes
á Roma antiga ; não podia haver cargo mais ade-
quado ás propensões do artista ; diz um auctor con-
temporâneo que ninguém melhor conhecia a Roma
Telha , e que uma prova do quanto presára a arte
greco-romana está nos quadros da Galalca e da fá-
hula de Psichc , que pintou na palácio do rico ne-
gociante, Agostinho Chigi , situado alem do Tihre.
— O typo ideal da Santa Virgem , reproduzido em
tantas obras primorosas, é dos maiores brazões de
Raphael, em que não insistiremos por muito conhe-
cido.— O quadro da Transfiguração de que já le-
mos fallado (•) é a obra prima e a derradeira des-
te pasmoso talento, que marca o seu terceiro esty-
lo , o non plus xdlra da perfeição : esta concepção
sublime inspirou a Vasari, discipulo de Miguel An-
gelo, as palavras seguintes: — Esla ultima balisa
da pintura assignala também o ultimo termo da vi-
da do pintor.
(•) Vid. a pag, 305 do yol. 1.° desta Serie.
Apontamentos para a Historia dos bens da coroa
E dos foraes.
III.
Dissemos antes quaes eram os elementos que faziam
subsistir e engrossar o cumulo dos bens de raiz de
que se compunha o património fixo do estado. Esse
cumulo, que já existia na occasião em que se es-
tabeleceu a independência de Portugal , porque os
que possuia a coroa leoneza no território desta pro-
víncia passaram com esse território para os seus
novos senhores , cresceu forçosamente com rapidez
pelas conquistas dos nossos primeiros reis e pelos
modos de adquisição que anteriormente indicámos.
Mas se essas causas tendiam activamente para o au-
gmento da propriedade fiscal, outras havia não me-
nos poderosas para reduzir , não o seu valor como
capital, porque estes bens não podiam ser alheados
perpetuamente, mas o seu valor como fonte de ren-
dimento publico ; porque orei tinha o direito de
os converter cm prestamos ( pracslmomum , apresía-
mo, e dahi cmprcsíimoj e fazer dellcs mercê por um
praso indeterminado. Este direito facilitava o cami-
nho á cobiça dos ccclcsiasticos e dos nobres. A ne-
cessidade que os reis tinham de simular piedosa li-
beralidade para com a igreja, quando eram os rnais
fracos e não podiam conter pela força o alto-clero ,
ou quando, visinhos da morte, os terrores do inferno
e talvez antes osreceius de deixar vacillante o Ihrono
ao seu succcssor , os moviam a desbaratar com mão
larga em beneficio da igreja o património publico ,
para remirem passadas violências ; esta necessidade ,
dizemos , era o principal sorvedouro dos bens da
coroa. O estado contínuo de guerra era o segundo.
Não contentes das óptimas soiidalas , dos cxcellen-
tes soldos que venciam para servirem com homens
d'armas na hoste real, os fidalgos obtinham por lo-
dos os modos os prestamos que escapavam ao cle-
ro. Assim, diminuídas ou antes anniquiladas as
rendas publicas provenientes immedialamente da
terra, a única maneira de as snpprír — de poder
pagar essas mesmas óptimas solidatas aos nobres ,
pouco resolvidos a morrerem gratnílamcnle pela
cruz e pela pátria — era ir buscar os tributos do
município. Daqui devia provir por força maior o
rápido augmento na promulgação dos foraes , e o
serem as disposições ncllcs contidas exaradas por
tal arte , que o concelho pagasse cm serviços pes-
soacs, cm géneros , c cm dinheiro [espécies de tri-
buto diversas no accidcntal , mas na essência idên-
ticas] as maiores contribuições possíveis. Do exame
das cartas de foral, das doações e dos mais documen-
tos do primeiro período da sociedade portugueza re-
sulta evidentemente a acção capital desta causa na
instíluíção dos concelhos, mas nenhum talvez melhor
dá idéa do empobrecimento do liecábedo Rcgni —
dos haveres palrimoníacs da nação , logo no berço
da monarchia — do que uma das varias bulias rela-
tivas a Portugal no reinado de D. Sancho 1.° (1).
Neste diploma o papa rcfcre-se a uma carta que D.
Sancho lhe dirigira , enérgica c até brutal , a ponto
que o audaz c violento Innoceiuío 3.° parece que-
rer na sua resposta suavísar as expressões altivas e
ameaçadoras de que usa, segundo o estylo da chan-
ccUaria romana naquclle século. Entre outras cou-
sas dessa carta, que não vem para o nosso intento,
(]) Bulia ()i! Innoceiício 3." — Si diligentcr — Clc 23
lie fevereiro ile 1211 — cm Baliiz. E|). liiii. 3.° Lib XIV
Ep. 8 c em Asiiirrc Collccl. Concil. T. 5. p. 158.
o PANORAMA.
371
c Dolavcl um periodo transcripto pelo papa , que ,
como era natural , o laxa de cihalar herética jicrfi-
dia. Ahi lhe dizia D. Sanciío, que não havia mudo
melhor de quebrantar ou diminuir as mostras de
luxo e sobcrha dos liypocritas (ii qui religiunem si-
mulani) , priíicipaluiciite dos prelados e clérigos ,
do que tirar-lhes os motivos disso — a demasiada
fuperabtindancia de bens temporaes, que tinham del-
ia c de seu pai , com grave damno do reino c dos
suceessorcs da coroa, c distribuir esses bens por seus
filhos c pelos defensores do estado , faltos muitas
vezes do necessário. Estas expressões de D. Sancho,
ou antes do seu chanceller, pintam cora vivas co-
res o estado dos bens da coroa naquella epocha , e
mostrara como, ao passo que o clero devorava a
maior e melhor porção delles, a fidalguia que acha-
va um quinhão diminuto no que lhe restava , não
deixaria de approvar que elrei fizesse mais igual
divisão da preza.
Esta cubica dos poderosos era tal, e tal a pre-
cisão em que os reis se viam de a satisfazer, que
os próprios tributos dos municípios se converteram
logo, até certo ponto, em prestamos. iSos foraes sup-
põe-se por via de regra a existência de um senlwr
da terra : as instituições municipaes , porem , nem
creavam , nem tornavam necessária essa entidade
como elemento orgânico : o rei que constituía o
concelho, muitas vezes n'um ermo, ou n'uma an-
tiga povoação destruída até os fundamentos, que
os novos moradores deviam reedificar, e cultivar-
Ihe o alfoz, era o senhor natural dessa povoação.
E todavia , na carta que vai , por assim dizer , ti-
rar do nada um município , apparecem logo previs-
tos os deveres e direitos dos villõcs para com um
donatário ; para com um representante do prínci-
pe ; para com o sénior terrae. Esta circumstancia
que prova? Que esse facto era trivialissimo, e qua-
si constante. Mas quando ainda isso fosse duvi-
doso , os mesmos foraes no-lo provariam do modo
mais incontestável: n'alguns delles — não é gran-
de o seu numero — apparece a condição de nunca
a terra ter por senhor senão o próprio rei ou um fi-
lho seu , ou outrem que os villões approvem (2] , o
que mostra, que só por excepção, parte das contri-
buições raunicipaes deixavam de correr para o sor-
vedouro das classes aristocráticas.
Se , porem , pela natureza da organisação muni-
cipal não podemos achar a rasão desta existência
(2) A. C. do Aoiaral e J. A. de Figueiredo confundi-
ram este privilegio especial dado a alguns concelhos com o
privilegio das behetrias. Qual fosse a origem das beheirias
não será fácil dizer com certeza. Talvez a opinião de J. P.
Ribeiro de que foram povoações que por si próprias sacu-
diram o jugo dos mouros, seja a mais plausível. E' notável,
porem, que elle mesmo acceilasse a opinião de Figueiredo
c Amaral. As behetrias tinham direito de escolher senhor;
mas nestes concelhos devia sè-lo o rei, ou seu filho, e a que-
rerem pòr-lheoutro, era necessário que oconcelho o acceitas-
se. Evidentemenie o qiii eos giusieriiis , ou quem coiiciliiis
roluerit significa isto; aliás o arlijo do foral seria absurdo
por inexequível. O privilegio da eleição nas beheirias sup-
põe-se absoluto e sem restricções : pelo contrario nestes
concelhos o ser o rei ou seu filho o senhor conslilue o pri-
vilcio , e a eleição ou approvação dos villõcs para ser ou-
trem donatário é uma restricção do princípio. O que signi-
ficaria o privilegio de behetria — a absoluta liberdade elei-
toral— se os reis quízessem ser constantemente os seniores?
Os escríplores já cilados admíram-se de que as terras , que
ainda nos fins do século 15.° ou principins do 16.° goza-
vam o direito de beht-trias , não fossem nenhuns daquelles
concelhos que por foral haviam o privilegio de ter o rei por
senhor: era juslamenle isto que os devia allumiar para ve-
rem que se enganavam confundindo essas duas espécies.
de um senhor ao lado de cada concelho que nasce,
achamo-la, loda>ia, em grande parte na Índole mi-
litar do paiz. O systema predominante da guerra
entre árabes c christãos , c principalmente entre os
últimos, era d'assaltos c correrias repentinas, co-
nhecidos pelos nomes de arrancada , alijara , £fe. :
daqui nascia a necessidade de construir um castel-
lo , uma fortificação onde quer que se estabelecia
um logar ou \illa, principalmente naquelles dislri-
ctos limitrophcs com provincias d'iiiimigos. Esse
castello dava-se a governar e defender a um caval-
leiro com o titulo d'a!caidc , titulo que recebemos
do cargo análogo entre os árabes , abandonando a
denominação romana, c mais antiga (3) de muni-
ceps , que na idade media tomara a significação de
casteítanus ou capitão de fortaleza , se não é que o
municeps indicava antes uma espécie, o castellciro
da povoação acastcllada de um municipio. Naquel-
les concelhos em que por foral só o rei ou seu fi-
lho podia ser senhor, as regilias deste municeps ou
alcaide deviam ser mui limitadas, e reduzir-se tal-
vez , pouco mais ou menos , ás do moderno gover-
nador de uma fortaleza ; mas nos demais nada era
mais fácil, mais natural, do que o rei dar em prcs-
tamo uma parte dos direitos e rendas, que dahi lhe
provinham pela carta de foro ou pacto municipal,
ao nobre cavalleiro que se encarregava cora os seus
homens d'armas de vigiar pela segurança da povoa-
ção nascente. Este alcaide vinha por similhante mo-
do a ser um verdadeiro donatário, um sénior, que,
porventura , não recebia soldo , o que ainda ignorá-
mos , por um serviço militar não menos arriscado
e trabalhoso que o do donatário de terras da coroa,
que o recebia , para seguir nas batalhas a hoste
real.
Temos dito parle das contribuições , i)arte do-s
tributos e rendas, porque os serviços pessoaes im-
postos nas cartas de foro eram por via de regra
de natureza tal que não podiam aproveitar ao do-
natário , ou sénior. Assim a adua , ou obrigação de
trabalhar nas obras dos castcUos e muralhas, a
hoste, o fossado, o appeUido , as atalaias, as guar-
das que constituíam as difTerentes variedades do
serviço militar, e alem disto algumas penas pecu-
niárias , que ás vezes no próprio foral ficavam ex-
pressamente reservadas para o fisco ; estes impostos
e outros análogos esquivavam-se pela sua natureza
á insaciabilidade dos fidalgos; mas como elles po-
diam converter o resto em utilidade particular, por
esse motivo talvez não apparecem entre nós resis-
tências aristocráticas á creação dos communs , nem
essas luctas de morte de que a França nos offerece
tão repetidos exemplos.
Alludimos ao serviço militar dos concelhos. Nes-
te serviço está , quanto a nós , a terceira causa ca-
pital daellicacia sempre progressiva dos reis na or-
ganisação de um vasto systema municipal. Para se
entender a importância daquclle serviço , importân-
cia não menos politica do que militar, é necessário
ter uma idéa clara do modo de ser da sociedade
geral, e da sociedade particular chamada concelho.
Muitas vezes, fallando da idade media portugue-
za, costumámos ser\ir-nos da expressão tempos fexí-
daes : estas palavras Icem-se em escriptos graves ,
retumbam dentro do parlamento , e quantas vezes
nós mesmos as teremos escriplo e repetido ! Toda-
via em relação ao velho Portugal não ha pbrase
I (3) Esla denominação ainda é frequente ua Historia
I Compostellana para significar o governador ou alcaidea!'.r
' de um castello ou p' voação.
372
O 1*A]V0RAMA.
mais inexacta. Não é um dcsar , um nome deshon-
roso qne nós queiramos aqui apagar na fronte do
passado: — o feudalismo foi um meio de progresso,
um elemento de ordem , c por consequência um
bem, em quanto a civilisação precisou dcllc : o nos-
so intento é rectificar um grande erro histórico en-
raizado até em bons espíritos. Emhora muitos cos-
tumes dos paizes da fcudalidade se introduzissem
entre nós: a essência da organisação feudal nunca
\ingou na sociedade portiigneza : oppunha-sc-lhe a
Índole delia. X demonstração é fácil.
Os dois caracteres prineipaes dos feudos eram a
perpetuidade do domínio dcllcs no feudatario e nos
seus suceessores , e a obrigação do serviço militar
para com o suzerano : o feudalismo apprescntava as
jerarchias de suzeranos , feudatarios e subfeudata-
rios ; e Iodas as propriedades de certa importância ,
ainda as que eram d'antes livres ou allodiaes se
converteram gradualmente cm feudos. A fcudalida-
de devorou tudo nos paizes onde existiu , e foi a
própria essência da sociedade. Ahi , quasi que o
ser homem livre era ser nobre, e a nobreza, amol-
dando-se , por assim dizer, a este pensamento e ás
varias situações dos indivíduos , subdividia-se em
grande numero de graus. Mas estes não se pren-
diam uns aos outros senão pelo serviço militar: sa-
tisfeita essa condição, o feudatario era senhor abso-
luto dentro das suas possessões, e ninguém o po-
dia privar delias , nem aos seus herdeiros , ao me-
nos nos limites da stricta legalidade.
Estes caracteres , porem , do serviço militar e da
perpetuidade de successão faltavam entre nós nas
terras dos nobres , muitas das quaes eram verda-
deiramente patrimoniaes , ao passo qne outras per-
tenciam á coroa ; mas nem estas podiam ser dadas
como feudos, nem aquellas , por consequência, vi-
rem tomar um caracter que faltava nas próprias
terras dos donatários da coroa.
Á perpetuidade das doações , ao menos no pri-
meiro período da nossa historia , oppunha-se o di-
reito constitucional do paiz — a inalíeníbilídade do
património do estado; porque esse direito era o
mesmo que recebêramos de Leão. J. P. Ribeiro ,
n'um escrípto em que fora conveniente ao seu pro-
pósito a doutrina contraria, o reconheceu, nem po-
deria nega-lo (4). Desde o reinado de D. AlTonsoS."
appareceu a necessidade das confirmações de rei a
rei , as quaes não são mais do que o resultado da
jurisprudência constitucional , e assim achámos não
interrompido o direito de reversão dos bens da co-
roa , quer estes fossem de raiz , quer rendas , cen-
sos , ou qnaesqiicr direitos reaes. E postoque si-
milhantes reversões se não realisassem vulgarmen-
te , ainda nos resta o diploma pelo qual D. Diniz
revogou as mercês inotliciosas que fizera na sua
primeira mocidade.
A outra condição caracterislica , sem a qual se
não concebe a existência do feudalismo , é a das
obrigações de serviço militar do feudatario para
cora o suzerano em virtude do seu dominio da ter-
ra ; quer esta fosse originariamente allodial ou li-
vre , e o possuidor a infeudasse a algum nobre po-
deroso , ou ao rei , para que o amparasse ; ou fos-
se realmente havida destes por titulo de fendo. Es-
sa condição falta , porem , no modo de possuir das
classes nobres de Portugal.
A propriedade aristocrática no primeiro periodo
da missa historia podia ser de dois modos — ou pa-
(4) Itijlixõc^ Hist. P. 1." p. 97 Quanto a LeSo,
vide Marina — Ensaijo J 71 e seg.
trimonial ou regalenga , isto c, da coroa. Em um
e outro caso essas propriedades eram privilegiadas,
e este privilegio consistia em serem honradas ou
coutadas. E quaes vinham a ser os caracteres dos
Coutos e Honras? O estarem exemptos do serviço
militar e dos tributos reaes. Innuraeraveis docu-
mentos coevos o fazem conhecer; mas ura sobre to-
dos o leva á evidencia: o próprio rei — [D. Diniz]
define esses privilégios. «Coutar uma terra — dizia
elle — é escusar os seus moradores do hoste, e de
fossado, e de foro , e toda a peita (5).» Quatro ex-
pressões que abrangem todos os tributos; — servi-
ço militar (hoste e fossado) — contribuições em di-
nheiro ou géneros (foro) — penas pecuniárias ou
calmnpnias (peita).
Esta definição de Couto é extensiva á Honra, que
A. C. do -Vmaral provou ser a mesma cousa que o
Conto, quanto á identidade dos privilégios. Dizemos
quanto á iilenlidade dos privilégios, porque a nossa
opinião ó que as suas origens eram diversas , e que
alem disso a denominação d'IIonra era mais vaga ,
estendendo-se ás propriedades dos cavalleiros vil-
lões , do que se encontram provas a cada passo nos
foraes, vindo assim muitas vezes a ser synonimo da
palavra cavnllaria , que em um dos seus vários si-
gnificados representava em geral as propriedades
privilegiadas por qualquer espécie de nobreza mi-
litar.
Pelo que loca á dilTerença d'origcra , se não nos
enganámos , o Couto procedia de um acto especial
do rei, que privilegiava um território ou herdamen-
to, e a Honra adquiria esta qualidade mais pelo sim-
ples facto de pertencer a um nobre do que por mer-
cê do rei. Os abusos iutoleraveis , a que este sys-
tema desordenado de privilegiar a terra deu azo ,
suscitaram as severas providencias de D. Diniz que
remediaram esses abusos quanto ao futuro, mas
deixaram subsistir os resultados que haviam produ-
zido na primeira epocha histórica , isto é , até os
fins do século 1.3.° — O complexo daquollas provi-
dencias é talvez a coUccção mais importante de mo-
numentos paia o estudo do modo de ser da proprie-
dade entre as altas classes nus tempos primordiaes
da monarchia [(>)•
Vemos, pois, que quaesquer terras possuídas
pela aristocracia secular e ecclesiastica eram de
uma natureza opposta ás condições capitães dos
feudos. A exempção do serviço militar deduzida
dessa natureza tinha graves consequências. Era a
primeira que os bens da coroa distribuídos com
mão-larga pela nobreza e pelo clero não serviam
para augmentar a força publica do paiz ; era a se-
gunda que para obter o serviço milil;ir dos fidalgos
c dos seus acostados ou homens d'armas , serviço
importante pela pericia c valor desta casta illustre,
cumpria estabelecer-lhes estipêndios que haviam de
sahir , como já vimos , desse mesmo tão defecado
património publico ; era a terceira a necessidade
de crear uma milicia gratuita, que podesse supprir
a falta dos homens d'armas estipcndiarios , quando
os meios da fazenda não chegassem para lhes pagar
largamente, e que ao mesmo tempo servissem de
elemento de equilíbrio contra a força da aristocra-
cia ; porque naqucUcs tempos bárbaros , como em
lodos os governos péssimos , e nas sociedades mal
constituidas , os elementos d'equilibrio e de ordem
(5) Liv. 3." (la Chancell. de D. Diniz f. 7'2 — nas
Meni. da Acad. T. fi ." P. 2.» p. 120.
(6) -ichani-se pulilicadas nasMemorias para aHisl. das
Inquirições.
o PANORAMA.
373
Tão-se procurar sempre na forra bruta da soldades-
ca , com preferencia aos principies da forra moral.
Eis porque dissemos ha pouco que cm nosso en-
tender a terceira causa capital da clTicacia com que
os reis trabalharam por multiplicar as existências
municipaes foi a importância de organisar o servi-
ço militar. Esta organisação, feita em proveito do
poder central, linha tamljcm, como dissemos, uma
importância politica, que não é possível desconhecer.
As causas , pois , que desenvolvemos com mais
alguma extensão, e a que attrilmimos o rápido in-
cremento dos concelhos , são três principalmente :
— o instinclo de fortalecer o povo como alliado na-
tural da coroa contra as classes aristocráticas, e em
especial contra o clero: — a necessidade de crear
uma fonte de rendimentos que permittissc o desba-
rato dos bens da coroa : — e , emfim , a conveniên-
cia de instituir uma milícia que supprisse a falta
da milícia feudal. Quanto ás causas moraes, ás con-
siderações piedosas , e de amor da prosperidade da
nação , que se lèera nos bondosos escriplores de
cousas históricas , com magoa confessámos que a
nossa consciência, involuntariamente incrédula, não
tem energia bastante para os ir buscar ás paginas
innocentes desses cscriptores, e aos preâmbulos pom-
posos dos foraes, onde, na verdade, tão santos mo-
tivos e considerações se encontram ás vezes. Feli-
zes aquelles que podem ver as cousas da idade me-
dia por esse prisma de sete cores! A imagem que
se lhes representa aos olhos, se não é verdadeira ,
c ao menos apprazivel. Os sonhos deleitosos são
bons ; bons até quando são sonhos de homem acor-
dado.
Examinemos agora os municípios no seu modo
d'existir interno, e vejamos como elles correspon-
diam ás causas que os Gzeram nascer.
(Cotítinuar-se-ha ) .
(À. Uerculano).
CCLTCBA DA TIJÍHA.
Ba póda.
Apegar da docilidade com que a vinha em nossos
climas corresponde ao afan do cultor , não melho-
rarão os fructos , nem por consequência seus resul-
tados , os vinhos , sem que os proprietários e seus
caseiros attendam muito á qualidade do terreno c
das espécies que lhe convém , á temperatura e ex-
posição , e a outros accidentes: alem disto a póda,
que muitos praticam brutalmente, é neste ramo
operação essencial e digna de séria attencão; por-
que dirigida com acerto e marcando a altura cor-
respondente a cada vide aperfeiçoará a madureza
dos fructos e a qualidade dos suecos , ponto de
maior interesse ainda que difiicil de acclarar. Con-
tinua-se todavia a prestar ridícula homenagem ao
inOuxo da lua para fazer-se essa operação sem olha-
rem para o momento mais favorável de verifica-la ,
o qual a mesma planta indica , e é quando começa
o primeiro movimento de seus líquidos , ou seiba ;
regra geral para todos os paízes. Variará o tempo
segundo os climas ; mas quando a planta principia
a formar os gomos ou olhos , então se hade prati-
car a póda. Fazendo-se antes, a natureza não pôde
acudir á cicatrisação dos golpes e expõe-se o vege-
tal a perecer; se é feita mais tarde sobrevem flu-
xos dos suecos e até a desorganisação da planta. .4
operação da póda funda-se n'alguns princípios que
o cultor deve ter presentes. O sueco nutriente sobe
das raízes ás varas o mais verticalmente que é pos-
sível , accumulando-sc nos braços rectos com de-
trimento dos outros : as varas a que aUuc abundan-
te seiba produzem muita lenha e pouco fruclo ; pe-
lo contrario aquellas a que não acode tanta. Toda
a vara velha não dá olho ou gòmmo , senão obri-
gada [lela póda. I'ara esta operação trata o agricul-
tor de que a seiba \{i distribuída com justo equilí-
brio , evitando que saiam varas parasitas , que em
grande uumero na cepa ostentariam louçaã vegeta-
ção mas com pouco producto. .\ videira abandona-
da a si daria raros c maus cachos; podada llorecc
e fructilica melhor e successívanicnte. Hade fazer-
se a póda em dia sereno e tempo enxuto , com os
cortes oblíquos, e\itando os talhos inúteis por pe-
quenos que sejam. — Para diante desenvolveremos
a pratica , cora auxilio dos nossos escriptores, que
desta cultura trataram.
È sabido que a bacellada se não póda, para dei-
xa-la arreigar-se e desenvolver-se : porem ao se-
gundo anno póda-se mui rente acima do olho ou
gómmo mais próximo á terra , segando ao mesmo
tempo todos os sarmentos. Na estampa , que in-
cluímos neste logar , a figura do lado direito desta
columna mostra os lançamentos desenvolvidos, con-
sequência desta póda primeira:
A segunda póda , isto é a do terceiro anno , de-
ve ser menos rente do que a anterior , e effectua-
se acima do primeiro , segundo, ou terceiro olho
ou borbulha , segundo a força da videira : todos os
demais olhos são rejeitados por inúteis : vid. afi-
gura 2.' immediata á esquerda da 1." na pequena
lamina, que inserimos acima : a 3.° figura demons-
tra os rebentões que dahi procedem : nesta cpocha
se deixam as esperas a que n'alguns sítios chamam
fiadores , e n'outros guardas , para o caso que pe-
reça a vara com qne se conta ; então é damnosa a
operação de desparrar ou desfolhar, no tempo cm
que isto se costuma.
A terceira póda pralica-se acima dos primeiros ,
segundos , ou terceiros olhos dos lançamentos que
resultarem do anno precedente [figura 4.' da mes-
ma estampa] tem por objecto formar a cabeça da
videira, as varas mães, ou varas mestras como é
uso chamar-lhes : podem estas variar de numero ,
conforme as circumstancias ; mas nunca passarão
de quatro ou cinco.
A quarta póda faz-se nas vides da caljeca da
videira ; supprímem-se todos os olhos menos o pri-
! meiro , e igualmente quantos renovos brotarem das
raizes : figura primeira á direita , na seguinte es-
tampa.
374
O PANORAMA.
Quinta poda : formação completa da cabeça da
Tideira [figura que se vò a esquerda]. O trabalho
de esfolhar ou desparrar sahe bem em alguns cli-
mas para apressar e melhorar a maturidade da
ura ; mas só se hade applicar ás plantas vigorosas
e mui próximas a outras.
Ao chegar a videira ao sexto atino de sua plan-
iação , que ó o quinto da poda , deve achar-se com
todas as partes que a constituem perfeita. — Dire-
Jnos dos cuidados que se lhe hãode prestar para o
diante.
(Continuar-sc-haJ.
Igreja de Santa Mahia do Olival, matriz de todas
AS outras igrejas da Ordem de Christo.
m.
Quando se lê nas historias pátrias que a igreja de
St.' Maria do Olival fora primitivamente templo de
monges benedictinos no 7.° século da era christaã ,
memorável por ser aquelle em que a virgem por-
tugueza , St." Jria , ia consagrar a Deus seus votos
ferventes, e aquella coragem heróica que a fez pre-
ferir a perseguição e o martyrio aos favores e es-
plendor d'um thalamo illustre ; quando se recorda,
dizemos, que foi basílica de uma ordem famosa, da
irilhanlc cavallaria do templo ; fundada e ampla-
mente dotada pelo fundador da monarchia ; e de-
pois cabeça e matriz da outra poderosíssima e re-
levantíssima ordem de Christo , em que seus mes-
tres eram príncipes e reis , como ainda hoje são ;
admiração e assombro deve causar que cm lognr
«rum templo vasto , magnifico e opulento encontre-
mos uma pequena e pobre igreja , desamparada no
meio d'uma solidão d'enluIhos, sem vestígios outros
de sua antiga origem mais do que uma tosca e negra
lorre golhíca coroada de sinos mui conimuns em
mesquinho e rústico campanário ! = Pois c esta ,
exclamariam alii os curiosos levados pela lição dos
historiadores, é esla , na apparencia , igreja de pa-
rochia aldeaã, aquella celebrada basílica da ordem
ilc Christo , matriz de todas as igrejas das conquis-
tas nas Ilhas, na Africa, na Ásia c no Brasil! É
aqui onde celebravam suas festas e commemorações
gloriosas os prelados do convento de Thomar , os
quasi bispos, administradores do seu vasto e po-
voadissímo exempto , os chefes ecclesiasticos da ca-
Tallaria de Christo no reino c nas colónias ! Foi
nqui onde tiveram seu illustre jazigo um D. Gual-
dira Paes c demais mestres templários, os compa-
nheiros dos reis nas batalhas ; e depois destes mui-
tos de seus sucecssores , não menos lienemeritos ,
e porventura que nuiito moís venturosos, os mes-
tres, dignatarios e cavalleiros da ordem de Chris-
to ! E onde jaziam suas honradas relíquias , onde
estão esses respeitáveis lavores e debuxos de suas
campas, a espada templaria , os brazões de suas
armas , as cruzes de Christo , os letreiros gothicos
que nos apontassem seus nomes? Sic pertransiit?
Pequena e acanhada, desigual ao seu objecto e
a suas glorias, era com effcito a igreja de St." Ala-
ria do Olival : mas o que ahi minguava em grande-
za era compensado no grupo, e quasi labyrintho de
outras muitas pequenas igrejas , oratórios, ou ca-
pellas que a cercavam : parecendo que com religio-
so acatamento cada um dos fundadores e devotos,
sem atrever-se a tocar no antigo venerando santuá-
rio, se comprazeu em accrescentar ao redor delle
uma nova construcção religiosa, como para com-
pensar a deficiência daquelle. Assignar a cada uma
destas conslrucções, hoje desapparecidas, suas epo-
chas e seus andores não é tarefa de fácil ou possí-
vel averiguação : nossos antigos eram menos escre-
vinhadores do que edificadores e constructores , e
a incúria fez o resto. As poucas noticias que colhe-
mos , segundo as dá o livro do Tombo , são as se-
guintes :
1." Igreja ou capella de S. Perofins. Suppõe-se
que esta era a da primitiva , orago do mosteiro de
monges benedictinos , a mesma que era parochia
da antiga Nabancia , onde frequenlava o culto St."
Iria. Parece que depois de varia fortuna a reedifi-
cou Filippe 2.° de Castella , e pertende o livro do
Tombo que uma lapide , posta sobre a porta prin-
cipal delia , attestava em letreiro sua origem an-
tiga.
2.° Igreja ou capella deS. Miguel, maior e mais
bem construída que todas as demais; foi demolida
sendo vigário D. Diogo Pinheiro , qne depois foi
nomeado bispo do Funchal : estava situada ao poen-
te da igreja de St." Maria. Sendo D. Prior de Tho-
mar D. Diogo da Gama em tempos d'elrci D. João
2.°, com a pedraria da tal capella se construíram
umas casarias [diz o Tombo] ahi perto que serviam
de recreio aos freires. Em compensação daquella
capella demolida mandou o mesmo D. Prior cons-
truir outra, pegada ás ditas casarias, da mesma in-
vocação de S. Miguel , pequenina mas primorosa
de arcliitectura , a qual ainda hoje existe em pé
mas arruinada e deturpada , quasi enterrada entre
silvas na Insoa ou Horta das Freiras , ahi pegada
ao rio Nabão.
3." Capella de St." Maria Magdalena , quasi en-
costada á igreja de St." Maria do Olival , do lado
do norte. Esta antiga lindíssima capella foi demo-
lida cm 18Í0. Por essa occasião pereceram os tú-
mulos antigos que ahi havia , e até as lapides com
suas inscripções foram embutidas [segundo diz o
nosso informador] no muro do novo cemitério. Pelo
mesmo tempo se demoliu aquelloutra capella de S.
Perofins , onde se encontrou uma lapide encaixada
na parede, de palmo em quadro , onde estava es-
cripto :
= C.° [ou o.°] Xonas maii ohiit Garcia Bermudes
ciii beata sit rcquies anno 1232. = Nós encontrámos
o nome deste cavalleiro acompanhando a ccJrte d'cl-
rei D. AfTonso 2.° e confirmando uma doação real
na era de 12W. Mon. Lusit. P.= í." L. 13 cap. 1.'
O lombo antigo, faltando das demolições e rc-
construcções do tempo dos dois soberanos, D. Ma-
nuel c D. João 3.°, c da salvagcria com que foram
maltratados os túmulos e conslrucções antigas , cm
o PANORAMA.
375
que cnlravam aqticllas antigualhas exteriores que
acima apontámos , diz que por esse tempo se arra-
saram umas casarias que estavam juntas á igreja ,
que se dizia serem edificadas precisamente no lo-
gar do antigo convento c de sua clnustra primitiva.
= t para lamentar, accrcsccnta o auctor do Tom-
bo , que se destruisscm tantas antiguidades , tantas
bellezas ; o que devia ser por ignorância dos mes-
tres e descuido dos vedores. Ahi existia também
uma capella inslituida por D. Estevão Peres ICspi-
nel (*), que totalmente dcsnpparoceu. Mas csla des-
truição se fez sem licença d"clrci , c com mnila
differença do que praticou no convento de Clirislo
Fr. .\ntonio de Lisboa , quando presidiu ;í reforma
da igreja do convento , fazendo mudar com cuida-
do os monumentos do mestre D. Lopo Dias de Sou-
sa, e outros da antiga capella do Scnbor da Ciraca,
que se demoliu para a de St." Maria do Castello,
onde ainda existem mutilados. =
Vè-sc de todas estas memorias que a igreja de
St." Maria do Olival, hoje desamparada e só [se ex-
ceptuarmos uma pequena e mesquinha casa ou ca-
sebre com pequenina cerca encostada á esquina do
lado do meio dia, que snppòmos seria para o guar-
da ou sacristão do templo], fora antigamente acom-
panhada e rodeada de capellas , casarias , túmulos
exteriores a esses logares sagrados , alem das casa-
rias do antigo convento. Nos Ires primeiros séculos
da monarchia , dominando a devoção e espirito de
cavallnria , muitos dos grandes senhores procura-
vam deixar depois de si estes monumentos de pie-
dade, e jazigo chrislão para suas cinzas.
( Ctíncluir-sc-ha . I
O ECLIPSE DO SOL DE 8 DE JILHO DE 184á.
L
Ha certos phenomenos que, alem da sua importân-
cia considerados em relação aos progressos das scien-
cias , são dignos da maior allenção pelo modo evi-
dente cora que vêem confirmar, ou pòr em duvida
a veracidade de muitos princípios srienlificos. Es-
tes phenomenos quasi sempre exigem novos estu-
dos , ao mesmo tempo que são uma avaliação rigo-
rosa dos resultados que o espirito humano tem ti-
rado do estudo e da observarão até a epocha do seu
apparccimento. — Esta epocha pre^ista pela scien-
cia é geralmente esperada com ancicdade ; e pelos
que a marcaram é desejada com uma desconfiança
occulta , com um receio, do qual muitas vezes, ou
sempre desconhecem a origem; mas esse receio ,
ou a desconfiança revela a pequenez dos maiores
recursos da intellectualidade , que se tornam inde-
cisos e descrentes de si mesmos , logo que depen-
dem da immensidade e omnipotência do Creador.
A sciencia tem chegado a um estado tal de progres-
so, que esta desconfiança e indecisão podem tornar-
se sensíveis por uma dilfcrença de instantes. — O
eclipse annunciado pelos astrónomos para 8 de ju-
lho de 1812, era um destes phenomenos que pou-
cas vezes se repetem com todo o desenvolvimento
possível , e que teem grande inDuencia no futuro
da sciencia. Os homens que neste século mais se
(•) Este D. Estevão Pires Espinhei foi coniraendador
da commenda de Sanlaiem , de que era cabeça a igreja de
Santiago , pertencente a templários : assisnoii com muitos
outros ilignalarios da ordem n'unia acquisii;ào do mestre D.
Marlim Martins, no anno de 1S62. Munarch. Lusit P. 5.°
L. 16 cap. 22.
teem entregado ao estudo sublime da astronomia ,
tinham com antecedência preparado todos os meios
que podiam auxiliar as observações que deviam fa-
zer : a estes meios filhos da arte j'unlaram-se os
grandes recursos que a natureza possue, que todos
concorreram para se observar com a maior perfei-
ção tão importante phcnomcno. Muitos trabalhos ri-
cos de sciencia c de factos nasceram dessas obser-
vações. Em Portugal não sabemos o que se fez:
mas custa-nos a crer que se não fizesse nada ; to-
davia assim parece que o deveríamos julgar ; por-
que se alguns trabalhos existem a tal respeito, por
certo que ainda não vieram á luz : c deste facto se
pôde deduzir que, ou esses trabalhos são tão sabia-
mente elaborados que o publico os não poderia com-
prehcnder , ou tão insignificantes c imperfeitos que
só merecem o esquecimento. Seria muito convenien-
te que os homens de saber, que por mcrcè de Deus
ainda possuímos, evitassem que fora de Portugal se
possam deduzir taes consequências do nosso silen-
cio acerca dos acontecimentos que mais põem cm
movimento todo o mundo scicnlífico.
Entre alguns escriplos que temos lido, e em que
se trata deste eclijise , parece nos que as observa-
ções de Mr.Pinaud e Boigirand são muito merece-
doras de serem vulgarisadas pela simplicidade com
que sao apresentadas , c exactidão com que incul-
cam ser feitas. Estas observações foram lidas na
academia das scíencias de Tauloiisc ; e foram feitas
no eirado de uma das torres da cathcdral de Saint-
Jusl. Os instrumentos empregados foram três óculos
astronómicos , um telescópio de Grcgory, um thcr-
momelro cenlrigrado, dois polariscopios, c os cbro-
nometros e vidros corados de differente espessura
que eram indispensáveis para se completarem as
observações. — A natureza, como já dissemos, con-
correu para que o phenomcno podesso ser visto do
melhor modo possível. O sol despontando no hori-
sonte ás 4 horas, 23 minutos e 3t» segundos encheu
a abobada celeste com a luz pura e brilhante de um
dos mais formosos dias de estio , cm que nem uma
ligeira nuvem mancha esse azul do firmamento, que
não tem na terra uma cór que o possa imitar; esse
azul luminoso que c como uma imagem do infinito,
e atravcz do qual a idóa se perde como a vista : sú
nos primeiros instantes em que o astro da luz asso-
mava no horisonte, é que algumas transparentes nu-
vens lhe quebraram o esplendor: mas esses mesmos
raios brilhantes que as interceptaram , se dissipa-
ram , e o sol raiou com todo o seu brilhantismo : c
vinte e sele minutos depois do nascimento do sol
começou o eclipse. Para darmos aos nossos leitores
uma idéa approxiraada deste phcnomcno extrahircmo»
dos escriptos em que já faltámos de Mr. Pinaud c
Boigirand o que nos parece mais próprio para este
eíTeito. «As 4 horas, 30 minutos e 15 segundos a
extremidade oriental da lua cortou o disco Occiden-
tal do disco solar na região noroeste, 41 graus á
direita do diâmetro vertical , c o astro cciipsantc
com um movimento uniforme caminhou de noroeste
a sudoeste. As 5 horas, 42 minutos c 34 segundos
a parle visível do sol formava um crescente cujas
extremidades se tornavam cada vez mais finas e del-
gadas. A regularidade dos contornos do crescente
começou a ser alterada por muitos recortes escuros
e móveis, dos quaes era impossível determinar o
numero e a altura ; sendo uma das causas que mais
se oppunha a este fim a agitação das ondulações que
sulcavam os lados do cresceule , nas extremidades
da qual appareciam estrias escuras : alguns segun-
376
O PANORAMA.
dos depois já o disco da lua tinha inteiramente en-
cuberto o sol , e ás 5 horas, í-S minutos c 13 se-
gundos o eclipse era total. Antes de appresenlarmos
os bellos phcnonienos que tiveram logar cm quanto
o sol estava inteiramenle occullo , terminemos esta
curta enumerarão das diversas phases do eclipse ,
o qual deixou de ser total ás S horas , 43 minutos
e 11 segundos. Durou em Narbonne um minuto e
S8 segundos. Assim que o lado occidcntal do sol
surgiu de sob o disco da lua , a escuridão foi dis-
sipada pela intensa luz que abrilhantava esse lado;
depois tornou a apparecer um crescente débil na
direcção du noroeste, absorveram-se os recortes mó-
veis , estrias muilo visíveis como já se haviam ob-
servado. Ao passo que o crescente augmcnlou , di-
minuiu o numero dos recortes , e uns ligamentos
escuros que pareciam unir os dois lados do crescen-
te dcsapparecerani no fim do 20 a 2o segundos. Fi-
nalmente a sombra que a lua tinha projectado so-
bre o sol, c que parecia um véu, foi desapparecen-
do com uma lentidão magestosa , e o eclipse aca-
bou ás 6 horas , 42 minutos e 40 segundos. A sua
duração total foi de 1 hora, 32 minutos e 25 se-
gundos. (Conchtir-se-ha.J
S. J. Ribeiro de Sá.
De la Cosmogonic de Moisc comparée au.v faits gco-
logiqucs par Mareei de Sevre.
Dizionario di Erudizioni Slurico-Ecchsiastico da S.
Piítro fino ai noslre giorni , da Caetano JHoroni.
Das ruinas do erro surge a cruz , como surgiu das
ruiuas do mais poderoso império do mundo. — A
sciencia vai dissipando as trevas , com que o des-
crer do século passado e a inditlcrença do século
actual haviam cercado a humanidade. Um grande
pensamento se debate entre o fanatismo e a here-
sia ; em quanto este pensamento não vencer estes
dois erros os povos não serão felizes. — Grande e
nobre é a missão do homem, que, ao passar por so-
bre este mundo de transição , não pôde ser indifle-
rente aos soffrimenlos do género humano. — Bem
vindos são a este valle de lagrimas os que tão chris-
taãmente vivem cora seus irmãos ; c ouvirão as ora-
ções solcmnes em que se repetem as santas palavras
do Evangelho : — Gloria in excelsis Deo cl in ter-
ra pax huiniiiibus lona; volunlatis — e também a
nossa voz débil e humilde repetirá estas sublimes
expressões vendo esses homens erguer a sua voz
em favor da religião que tanto lemos visto despre-
zar , e contra os abusos com que em outras eras
a pertenderam envolver falsos chrislãos. — Uma
nova edição da obra preciosíssima de Mr. Mareei
de Sevre acaba de sahir a lume — essa obra c um
dos mais enérgicos e altos brados que a sciencia
tem soltado em favor da religião chrístaã ; ainda
que a obra de Mr. Mareei não deva obrigar-nos a
ser ingratos para cora muitos outros escriptores , e
principalmente para com Wiseman , que no seu =
Discurso acerca das relações que existem entre a
Sciencia e a lleligião revelada =; tratou magistral-
mente o importantíssimo assumpto de que trata o
livro , cuja segunda edição annunciàmos com a
maior satisfação ; devemos declarar que o modo co-
uio Mr. de Sevre considerou esta questão torna o
seu livro preferível a quantos em tal matéria se
hajam escripto (•).
A segunda obra que annunciàmos , e da qual
não consta que exista um só exemplar em Portu-
gal , está por tal modo elogiada no Boletim lít-
terario de um dos melhores jornaes da França
[falíamos da Uevísta do Meío-Día] que não pode-
mos deixar de considerar esta obra como uma das
mais vastas concepções do século em que vive-
mos— «O Dizionario di Erudizioni Storico-Eccle-
siastico» — já conta 20 volumes e ainda não ter-
minou a leltra E ; e resume o estudo das relações
que tem existido entre Roma christaã e a socieda-
de antiga e moderna. — Esperámos que a nossa Bl-
bliotheca Publica fará as possíveis diligencias para
possuir um exemplar de obra de tanta transcen-
dência.
S, J. Ribeiro de Sá.
Pintor de género singular. — No presente século
viveu ura pintor suisso, por nome Godofrcdo Mind,
que era vulgarmente denominado o llaphael dos
gatos, porque ainda ninguém melhor reproduziu os
rasgos característicos da raça felina : represenla-
va-os ora cm grupos ora individualmente , expri-
mindo no mór auge de naturalidade aquella mescla
de audácia e sujeição , de placidez e de má fé ,
por que tanto se distinguem os gatos ; era incom-
parável na vivacidade das scenas das famílias de
gatinhos , variando as posturas destes espertos ani-
macs em seus brinquedos. Basta dizer que por ul-
timo já não pintava outra cousa , e que os estran-
geiros, que frequentavam Berne onde residia, presa-
vam muitíssimo obter algum desenho desta natureza.
Esta propensão e gòslo nasciam da grande esti-
mação que Mind fazia dos galos : e os seus , que
não eram poucos , tinham regalado e cauteloso tra-
tamento ; com elles se entrelinha e desenfadava : e
note-se que este homem era de génio , postoque
nada grosseiro, mui pouco social. — Quando as
auctoridades da republica bernense , receosas dos
declarados symptomas de hydrophobia , que se ma-
nifestaram nos gatos da cidade , no anno de 1809 ,
mandaram extermina-los , conseguiu Mind evitar
que se daranasera os que lhe pertenciam, e conser-
vou-os; todavia pcnalisou-se grandemenle com a
matança , que passou de 800 gatos imniolados á
segurança publica.
Quanto pintava neste género , tão exquisitamentc
peculiar , tudo extrahia ; e não podia satisfazer ás
muitas encommendas da mesma espécie, que amiu-
dada e successivamcnte lhe faziam. — Mind mor-
reu ha poucos annos.
Se tão somente a intelligencia nos governara, fô-
ramos anjos: se o coração, não tivéramos senão pai-
xões cegas e desenfreadas.
Começámos a viver pelo sentimento ; acabámos
pelo pensamento.
T. A. Craveiro.
(•) O auclor deste artigo ja deu uma prova do quanto
esta i;rave matéria tem sido objecto dos seus estudos : poij
no livro = A Desmorali-sação e o Século = era o Fra-
cmeulo 4.°, quando nota algumas das tendências anti-mo-
raes desta epoclia , desenvolveu quanto caliia nos limites do
seu opúsculo a opinião em que está (conforme á ile homens
sapientissimos] de que a sciencia confirma a verdade da Bí-
blia.—Os RR.
101
o PANORA3IA.
377
^A '- '\
FAZiACIO DA GRANJA.
A VIME léguas '^'] de dislaucia de Madrid, em si-
tio por exlrcmo moiUiioso, a duas léguas de Segó-
via, havia anliganicnle um palácio, ou casa real
de campo , chamada Valsain , recnmmendavel pe-
las maltas que occupavam esse districto, pela mór
parte soulos e pinhacs , e outra espessura própria
á creação da caça grossa , como veados , gamos ,
javardos , &c. que era lodos os lempos , e então
mais que presentemente, foi recrearão de príncipes
e senhores. Carlos -2.' frequentava muito esle reti-
ro ; e n'um dia, ao voltar a Jladrid, viu que ardia
o palácio , e com effeito apesar dos soccorros com
que lhe acudiram coiisumiu-se todo o lado do poen-
te. A pouca distancia de Valsain linhara os frades
jeronymos uma granja , que pelos reis catliolicos
lhes fura dada depois da conquista de Granada, e
cuja situarão era mais adaptada a um palácio que
a de Valsain.
Filippe o." gostou daquella fazenda e comprou o
terreno aos religiosos , para construir a regia man-
são campestre, denominada real sitio de S. Ildefon-
so , postoque de sua origem permaneça no vulgar o
nome de Granja. — X muita distancia se avistam
as serras; ao sahir de Segóvia di\isa-se o palácio,
que é na apparencia de pouca importância : porem
logo que o caminhante se avisinha admira-se da
visla picturesca da siluação. Quizeram na arcbi-
tcctura arremedar Versnilles ; mas o desígnio dessa
primeira fabrica não lhe dava primor nem valia.
Fernando G.° edificou depois as galerias, os quar-
tos principaes alto e baixo , e fez de novo a entra-
da principal. Carlos 3.° e seu successor ajuntaram
outras obras, que melhoraram o edifício, ainda que
no todo não ha a grandeza , que pode alguém espe-
rar da famosa Granja, campo de tão notáveis acon-
tecimentos políticos. Fora de duvida que tem mui-
tas acommodações para reaes personagens ; mas o
seu principal titulo á admiração dos curiosos en-
tendedores consiste nas estatuas e pinturas; e nin-
guém pensará ao ver o medíocre aspecto da casa
que dentro delia existem obras de tanto preço. Os
jardins são sumptuosos, todavia os economistas hes-
panhoes laslimam-se de que se consumissem nestas
obras de puro recreio noventa milhões de cruzados,
(•) A legua conimum corresponde a 3:040 l)raças porl.
Lezeubro 2—184-3.
carecendo o reino de estradas , da canalisação de
rios, e de muitos trabalhos e eslabelecimenlos de
summa importância.
A cuslosa fabrica das fontes e jardins rcmalou-se
no meado do século passado, sendo a cascata a
parte mais dislincta , o objecto principal em frente
da real habitação. Havia um arroio de aguas cris-
tallinas , que descendo da montanha serpeava no
valle : converleram-no em ura famoso canal desde
a fonte de Andromeda alé nm tanque , a que pela
nimia extensão chamam o mar , fortificado de mui
grosso paredão , e com uma rua em todo o compri-
mento : delle se derivam as aguas por conductos de
ferro fundido , de vários diâmetros , para as outras
fontes. A riqueza da Granja eslá nestas obras by-
daulicas ; a profusão de escuipturas, a arle do en-
genheiro conlribuiram para as fazer celebres.
Ao CABO DE OITO AX.NOS SÓ A .NOVA DE QUE MORRKBA.
[1621]
■Aqui o apertar com novas penitencias,
e bradar por misericórdia.
Fr. LiUiz fie Sousa — Hist . de .V.
Dom. L.° a." cap. 15.°
cap.
I.
Era um dia de maio , muito aprazível c todo tão
formoso que parecia annunciar algum prodígio do
céu. O ar limpo e sereno, os passarinhos cantando
docemente ao longe entre os ramos vestidos de fo-
lhas , sobretudo a relva matizada de flores, como
um tapete de traça angélica desdobrado e estendi-
do no chão, enfeitiçavam por tal arle os sentidos
que a alma se ia toda apoz elles d'alcgre c seduzi-
da. Mas — quem o crera! — no meio de tanio que
para contentaraenlo havia na terra, alguera chorava,
e chorava torrentes, porque se ouvia o tora á'um
sino a dobrar, que nunca bateu só ás portas do co-
ração , mas sempre em companhia de logrymas , e
dequanto o homem tem de mais lastimoso e triste
para exprimir a sua viva dór. — .\té o desavenlu-
2.' Serie, — Vol. II.
378
O PANORAMA.
rado , para quem só houveram rostos carregados e
ademancs de desprezo quando mostrava a sua gran-
de mingoa estampada na face amarellenta e desfei-
ta , e pedia uma migallia de pão para manlcnca ;
até esse , ao passar do leito da rua para a cova ,
amortalhado nos trapos do seu vestido , lá recebe
algumas lagrymas de quem lhe reza um responso-
rio á horda da campa , ou de quem o cohre de pu-
nhados de terra — que c para muito doer , e até
capaz de estalar uma pedra, tanto desamparo na vi-
da e na morte !
E o tocar era para as bandas do Tejo traz a gra-
de miúda d'um campanário, como voz de filha que
já não tem mãi, e ajoelhada á porta da casa do Se-
nhor escondeu a fronte na capa para melhor se car-
pir e desafogar. Passavam por alli homens , mulhe-
res e meninos , ia e vinha muita gente , e ninguém
fazia caso. — Era que o mundo os levava arrebata-
dos no Ímpeto da sua corrente sem lhes dar azo de
atracar ao salgueiro da margem , e no parecer per-
didos todos sem remédio. No entanto um bando de
innocenles pombas , sumidas ao açor maldito , ge-
mia sobre a companheira extincta que se fora a ci-
las demandar abrigo e refugio consolador. «Tem a
pelle pegada aos ossos ! . . . foi marlyr da peniten-
cia !... » — assim diziam todas, e os olhos como
fontes alagavam os tijolos.
II.
Que solemne , terna e piedosa , é a mãi de todos
no encommendar ao Allissimo o filho que lhe ex-
pirou nos braços, Ha nessas rogações do propheta ,
nesse dorido lastimar de Job, nessa toada funcbre,
tantas harmonias de consolação e dor que o coração
gotejando sangue adormece aos pés da cruz affoga-
do pur delicias do céu. — Por isso as lagrymas es-
tancam.
N'um estrado humilde pousava o esquife ; den-
tro um cadáver de mulher envolto em túnica po-
bre : um véu lhe cingia a cabeça , e descendo co-
bria-lhe com as pontas os hombros , peito , e quasi
inteiro o rosto. Tinha as mãos erguidas e tão com-
postas como se estivera viva — tal era ainda a fa-
cilidade daquellcs membros regelados para os há-
bitos extinclos! — e seus lábios, contrahidos doce-
mente ao despedir a alma, sorriam para o alto, lá
para onde ella seguira seu caminho direito. Duas
alas de virgens amortalhadas de igual modo entoa-
vam os cânticos das rogações extremas , e nas pau-
sas do alternar piedoso como que sentiam uns bra-
dos de ferro sabidos daquella boca fria: nlrmaãs,
apressiii-vos em dar-me á terra , que haveis mister
este leito despejado . . . talvez hoje. . . » E uma gri-
la repentina nos degraus do throno cm que está as-
sentado o Juiz dos vivos e dos mortos: «Senhor,
não me arguas no teu furor : nem me arrebates na
lua ira ! . . . Eu lavarei todas as noites o meu lei-
to , regarei o meu estrado com minhas lagrymas I
. . Ai de mim , Senhor, porque eu pequei muitíssi-
mo em minha vida : que farei , miserável \ . .»
Succedèra o silencio como um pezo que compri-
mindo o peito nem permitte respirar. Sobre quatro
hombros delicados , fracos , vai esse corpo que en-
leara pensamentos, e fura encanto do mundo. Uma
fouce lhe derribara quantotinha debello, mimoso e
seductor ; passaram-se annos, cahiu-lhe um raio no
tronco, c veio-se desamparado lambem ao chão.
Comtudo houve um tempo cm que tão largo se es-
tenderam seus ramos que mal cabiam no horison-
te , e subiu tão alto que pareceu roçar as nuvens
com a cima — para agora caber n'uma cúva de
poucos palmos todo quebrado e desfeito ! . . .
III.
Pouco se lhe dá ao mundo dos successos Decor-
ridos fora delle , e por isso raro gasta com elles
sequer uma palavra, como a reputa mal emprega-
da e perdida. Não se houve assim desta vez. A tris-
te nova, que tão magoadas linha no claustro aquel-
las carinhosas almas , escoára-se pelo ralo da por-
taria , e correra toda Lisboa. O povo chorava de
ouvi-la ou contando-a : aos grandes acontecia outro
tanto , e até no palácio do governo intruso se ouvi-
ram echos dessa voz mal-assombrada , que atraves-
sando os arredores fora ainda quebrar-se muito lon-
ge. O caso tudo pedia , e tanto que não é mais en-
carecer. Quasi eslava cerrada uma cadèa de gran-
des acontecimentos de que era penúltimo elo aquel-
la morte : o outro , meltido cm fragoa , não demo-
raria o remate — fallo d'outra vida cançada e gas-
ta.— Sigamos porem a nova.
A porta d' um convento fiira da capital um leigo
recem-chcgado sacudira a negra capa , c limpava
o suor que lhe resvalava gota a gota pela cara abai-
xo. Caminho, sol rijo , bastante pressa ... ■ — des-
cançava um instante á sombra respirando ar cober-
to na primeira entrada. Acabara comsigo locar a
sineta , deu alguns passos , e levando mão á cordi-
nha , como sentiu dentro pés de quem se avisinha-
va , ficou suspenso á espera.
« Jesus-Christo em vossa guarda, irmão...» —
disse outro leigo que desembocara ao portão interior.
«E livre a todo o fiel de tentações do demónio!»
— atalhou o que entrava.
«.\men. » — responderam ambos a ura tempo abai-
xando as cabeças.
«Que vai lá pela cidade?» — perguntou o pri-
meiro interlocutor.
«Por ora... tudo como d'antes sem novidade
de vulto — graças a Deus Nosso Senhor — tornou o
outro — Traz-me aqui uma carta do reverendo frei
prior para um religioso desta santa casa. — E met-
tendo a mão pela abertura lateral da túnica prose-
guiu. — Não me declarou o nome, e só que fizesse
delia entrega ao irmão porteiro, e tornasse sem
mais detenças. Assim recebei-a , e cila vos dirá o
que não sei. »
Cumprida sua missão se despediu o bom do lei-
go, escusando-se tomar alguma refeição que seu
irmão lhe ofierecèra com franqueza e boa sombra.
O porteiro levara o sobrescripto aos olhos , lançou
para dentro , e foi tirando ligeiro ao dormitório.
Escutou a uma portinha , sentiu roçar de penna
que escrevia, c logo a meia voz proferiu o seu cos-
tumado :
« Ilcncdicitc ? »
«.\bri, Fr. António, abri.» — respondeu dentro
uma voz socegada.
O leigo levantou o trinco , entrou c ficou-se es-
perando que o frade sus|)cndcsse c o filasse.
«Perdoe vossa reverendíssima vir inlcrrompe-lo ;
mas um irmão leigo do convento de Lisboa trouxe
esta carta do padre frei prior daquella casa — dis-
se o leigo passando a carta ás mãos do frade. —
Mesmo agora ahi vai elle , como não quiz respos-
ta. .. »
nliom.» — atalhou o frade com gestos de intei-
rado.
Significando seu respeito com uma profunda cor-
tezia , sahiu o leigo cerrando outra ^ez a porta, e
o PA1VORA3IA.
379
murmurando baixinho: «Eslava Ião embebido na-
quellas santas cscriplasl . . . liom padre — cde lel-
Iras como nenhum em lodo Portugal I » — O leigo
não se enganava. .
De pé e tão venerando como a imagctn d'um pa-
triarcha se fieára o frade, cujos cabcllos alvejavam
com as neves de quasi setenta janeiros. Seu rosto
era amável e bem assombrado; \ia-se-llie na fronte
a luz do engenho; c dos olhos amortecidos lhe re-
flectia uma expressão de profunda melancholia que
realçando a virtude de seu ar era como o daro-es-
cnro daquelle quadro vivo. Vestia uma túnica re-
mendada , e tudo mais ajustava com a pohreza em
quevnia. Um crucifixo arvorado sobre uma pe-
quena raeza , junto ura tinteiro e alguns papeis c
pergaminhos desordenados: via-se também um ban-
quinho, muitos livros pelo chão, e uma cama tão
humilde e estreita como uma sepultura. — A tão
pouco SC tinha reduzido quem viveu na grandeza 1
assim era desarmado e fraco quem brandiu espada
6 lança como o mais cavalleiro! Tão desamparado
e só quem contava ainda tantos parentes etão ache-
gados , tantos amigos e Ião nobres , e de todos tão
querido : — Altos juizos de Deus '.
Estava — como disse — o frade em pé , afirmou-
se no sobrescripto e leu : «Ao reverendo padre Fr.
Luiz de Sousa, da ordem dos pregadores — no con-
vento de — Bemfica.» Em seguida rompeu o fecho
e começou : «Padre , a resignação no que a Provi-
dencia nos envia de suas mãos é uma das primei-
ras virtudes do christão. Sabei-lo, por quanto com
ella vos tendes defendido dos grandes golpes que
lem desfechado sobre vós. Apercebei-vos de tão
forte escudo para novo desastre que eu nunca vos
fizera saber, se a caridade não pedisse as vossas
ardentes orações por quem se foi deste mundo. —
Enterrou-se hoje Sor Magdalena . . . rogai pelo des-
canço da sua alma ao Todo Poderoso. . .»
Um tremor violento vibrou todos os nervos de
Fr. Luiz de Sousa : cahiu-lhe o papel das mãos . . .
estendeu os braços para a cruz , c com rosto enfia-
do e olhos de muita piedade exclamou profunda-
mente sentido : « Que uns vivam cheios de mimos e
consolações do céu ; outros andem sempre descon-
solados , famintos , c desfavorecidos delle '....» (»)
Aquelle corpo trabalhado da idade , e abatido por
amarguras e penitencias, vergou convulso ao chão.
Depois de curtos instantes proseguiu com voz de
muita magoa: «Ha oito annos tão escondido para
não ver a luz , c ella a passar-rae por diante no
momento de exlinguir-se I . . . ha oito annos a cu-
rar as chagas do meu coração , e cilas cada vez
mais profundas e rasgadas 1 . . . » Daquclles olhos ,
que mal podiam chorar de cançados , romperam
rios de lagrym.is'. aquelle peito, que não podia ge-
mer de rouco e desfallecido, expclliu um ai arran-
cado com força das entranhas! — Era a lucta do
passado e do presente I era o homem que a dor le-
vava de rastos atravez do mundo I — Assomou-lhe
o futuro , aponlou-lhe para o inferno e para o céu !
. . . ergueu-se com firmeza o sacerdote, lançou mão
d'um supplicio , ajoelhou , rasgou as carnes , e apa-
gou as lagrymas cora sangue. Cingiu depois uma
cadèa de ferro em volta do peito , que não tirou
nunca, que lhe mordeu o coração por toda a vida.
-Yiino Maria de Sousa Moura.
(») Fr. Luiz de Sousa. — Hisl. de S. Dom. L.° 1."
cap.se."
Da prodidade moral, mercantil, e poutica.
[Fragmento].
CoNTixiANDo em nossos estudos moraes e políticos
procuraremos fixar a iutelligencia das pessoas que
não frequentam as aulas, nem fazem estudos regu-
lares, sobre o sentido de certos termos de uso vul-
gar aliás importantes , a que nem sempre corres-
pondem idéas claras e distinctas. Entre outras tra-
taremos hoje da palavra — probidade.
Probidade pode definir-se : a observância exacta
e constante dos deveres da justiça e moral.
Homem de i)rol)idade , ou de honesto proceder ,
é aquelle que não só não faz mal a ninguém , mas
presta positivamente todos os serviços ou beneficies
que pôde , tanto ao seu siinilhante ou á humanida-
de em geral , como ao seu próximo em particular.
A probidade diz-se moral , mercantil , ou politi-
ca . segundo o seu objecto , c os motivos que a de-
terminam.
A probidade moral , ou probidade por excellen-
cia , é o regular e sincero procedimento do homem
de bem , fundado no dictame da sua consciência e
no amor do bem geral.
A probidade mercantil c o procedimento exacto
e pontual do artífice ou fabricante , do cultivador ,
do homem que compra ou vende , do agente de
qualquer ramo de industria , e finalmente do func-
cionario publico determinado pelo amor do lucro
ou interesse material , afim de obter o credito e as
vantagens que dahi se promcttem.
A probidade politica é o proccdimenlo regular e
exacto do cidadão e do funccionario publico na ob-
servância das leis sociaes, afim de obter a estima
da opinião publica na sociedade aonde reside.
Só merece propriamente o nome e qualificação
de homem de bem , honesto , ou de probidade ,
aquelle individuo que cumpre fielmente os deveres
da justiça e da moral universal , por effeito do seu
bom caracter, por motivos de consciência, por amor
da ordem e do bem geral , e não por amor de di-
nheiro ou interesse mercantil , nem por ambição ,
amor do poder, ou qualquer consideração politica.
O premio que mesmo nesta vida compete ao ho-
mem de bem, honesto, probo ou moral [porque
tudo são synonimos] é a approvarão e testemunho
da sua consciência, a paz e a satisfação interior,
a boa reputação , e a estima das pessoas de bem
que o conhecem , e finalmente a esperança da vida
eterna , ou bemaventurança , fundada na convicção
da immortalidade d'alma, e da infinita bondade do
Creador.
O homem immoral ou sem probidade apenas com-
mette qualquer acção contraria ao seu dever é lo-
go castigado pelo remorso. Tarde ou cedo a sua
culpa faz-se conhecida , e então spgue-se-lhe tam-
bém a deshonrá , que é uma pena immediala que
se accumula á primeira.
Chama-se remorso aquclla accusação que nos faz
a nossa consciência pelas acções immoraes que ha-
vemos praticado com conhecimento de causa , ac-
cusação que nos persegue em quanto vivemos.
A dcshonra ou vergonha é a reprovação e des-
prezo das auctoridades constituídas ou das pessoas
de bem , logo que lhes consta que o nosso proce-
dimento não foi conforme ás regras da honestidade
ou da probidade moral.
O remorso e a dcshonra ou vergonha são os cas-
tigos mais temíveis e as maiores desgraças que po-
380
O PANORAMA.
dem acontecer ao homem nesta vida. Estas penas
são mais tcrriveis que as determinadas pelas leis so-
ciaes , por serem mais certas , dolorosas c perma-
nentes.
O homem honesto ou de probidade por mais po-
bre que seja , e por menos consideração politica
de que goze , sempre vive contente e traiiquillo ,
porque espera e confia na Providencia divina que
nunca desampara nenhuma de suas creaturas ; e por-
que não sofTre os remorsos , que é o maior de to-
dos os males moraes ; e goza da estima das pessoas
de liem , que depois do testemunlio da consciência
é o maior dos hens.
1'elo contrario o homem inimoral ou sem prol)i-
dade por mais ricn e poderoso que seja , vive sem-
pre inquieto e alormenlado pelo remorso, e é abor-
recido e desprezado pelos homens de verdadeira
iirohidade moral, os quaes , postoque em pequeno
numero , todavia os seus testemunhos justos e sin-
ceros são de muito maior valia do que esses ap-
plausos falsos c transitórios da massa do povo , a
que se chama popularidade.
Por tanto 6 infiel á sua consciência , insensato ,
e quasi louco, aquelle que deixa a estrada direita
c segura da probidade moral pelo tortuoso e arris-
cado caminho do dinheiro mal adquirido , ou sór-
dido interesse material ; e bem assim errou o ca-
minho e o calculo da verdadeira felicidade e glo-
ria do mundo , a despeito de extraordinários talen-
tos e admiráveis combinações, aquelle que prefere
essa probidade politica ou antes mercantil , mais
brilhante do que solida , ;í probidade moral que é
a ancora e a garantia mais segura assim da verda-
deira felicidade do individuo, como da prosperida-
de social.
Era ultima analysc a rasão e a virtude consistem
na ponderação e no calculo das vantagens e dos in-
convenientes que resultam das acções humanas. Acon-
tece porem mui frcquenteinenle que tanto a massa
dos indivíduos a que se chama povo, como os mo-
ços inexpertos, ou pouco versados no calculo mo-
ral , trocam com estimação pueril o que é melhor
pelo que mais se usa , ou c mais moda , e então
preferem ser escravos, e dependentes do dinheiro e
d-o poder, á nobre e solida independência daquel-
les que estimam e apreciam mais que tudo a ver-
dadeira probidade moral.
Fitippe Ferreira de Araújo e Castro.
CrLTLRA DA VINHA.
Da poda {•).
Ao i;noranle a poda não deixemos.
MoziNHo. (úorff. Vorliig. Cant. i.°
As PODAS das videiras, de que vamos occupar-nos ,
não são mais que modificações das anteriores , c
resultado necessário da diversidade de climas, ter-
renos , espécies de plantas c idade das mesmas ,
exposição, c variações atmosphericas ; pelo quccon-
virá dividir todas as púdas em três classes, baixas,
medianas e altas.
Atheoria do primeiro methodo consiste em man-
ter as cepas mui rasteiras para que os cachos pró-
ximos á terra achando-se n'uma almosphera mais
quente amadureçam melhor e o çumu adquira qua-
lidades mais esiiirituosas : para lograr este fim es-
colhem-^e as espécies de vides curtas, de cachos pe-
(•) Conlinuado de pag. 374-
quenos e pouco fechados ; tendo sido na plantação
dispostos os bacéllos a distancias calculadas segun-
do o crescimento annual das vides. Cada cepa terá
ao mais cinco troncos , c em cada um três ou qua-
tro sarmentos , segundo a idade e vigor e as cir-
cumstancias locaes. A cepa ao sahir da terra lança
as vides cm rastões pelo chão. Esta vinha rasteira
convém nas faldas dos montes e nos outeiros decli-
ves. Vid. eslamp. iuimcdiata.
fi preferida nos climas cálidos a púda em que só
sahem as vides dos troncos mestres á altura de um
011 três pcs , e se curvam para o chão formando
abobada hemispherica , debaixo da qual os cachos
se resguardam dos ardentes raios do sol, que tor-
nariam os bagos em passas.
Ha uma disposição de videiras podadas, que tem
por objecto reunir pelas pontas as varas de quatro
cepas visinhas em forma de pyramide quadrangu-
lar : meio este que se emprega nos climas em que
se necessita aproveitar todo o calor do sol , que é
ahi natiualmente tibio , e para que os seus raios
reflectindo na terra toquem com mais vigor toda a
superficie da videira. A estampa mostra esta dispo-
sição.
o PA1VORA3IA.
381
Igreja de Santa Makia do Olival, jiAxr.iz de todas
AS OUTRAS IGREJAS DA OrDEM PE CuRlSTO.
[Conclttsão].
Fali uiKMos primeiro do logar dos moimenlos e
sepiilUiras anlcriores ás reparações e conslrucrues
dos reis D. Manuel c D. João 3.°, e depois men-
cionaremos os demais que permaneceram alem del-
ias.
O 1.°, de que faz memoria o livro do Tomlio , é
==0 d'um nelo d'elrei 1). Diniz , fillio bastardo de
elrei D. Aflbnso i.° chamado D. Lopo, que eslava
levantado n'uma capolla mandada fazer exjiressa-
mcnle para seu jazigo , a qual se demoliu para se
construir a sacristia actual. = Tinha o busto de pe-
dra sobre a campa ; e accrescenta que abi mesmo
estava outro moimento, de que mais nada se sabia.
Estes dois monumentos desapareceram. = CaHsou-
nos grande estranheza esta novidade d'um filho na-
tural daquelle soberano , que nenhuns teve : e até
o chronista lirandão o defende da impulai;ão injus-
ta d'havcr tido uma filha também natural que al-
guém lhe altribuiu. Ora, estamos persuadidos que
isto foi uma tradição errónea ; e que o tal D. Lopo
não era senão o sétimo mestre da ordem do tem-
plo , D. Fr. Lopo Fernandes, o que morreu ao la-
do d'elrei D. Sancho n'uma entrada que este fez
no reino de Leão, que foi mandado conduzir e de-
positar honradamente pelo mesmo soberano em St." |
Maria do Olival. Serviu-nos felizmente a tradição '
errada do Tombo para verificarmos esta curiosidade.
'2." Na mesma igreja junto á capella de S. Braz
e entre esta capella e a porta travessa estava o tu-
mulo do terceiro mestre do templo, D. Martim Gon-
çalves. Ainda aqui padeceu equivocação o auclor
do Tombo, cbaraando-lhe segundo mestre, que não
foi este , mas sim D. João Lourenço.
3.° e 4-.°=Ahi desse mesmo lado estavam os tú-
mulos, diz o Tombo , do quarto mestre D. Estevão
Gonçalves, e do quinto D. Rodrigo Annes.:^N'ós
não encontrámos estes nomes escriptos como aqui
estão no catalogo muito apurado que á vista do
cartório de Thomar fez o A. do Elucidário. Este
menciona D. Estevão de Belmonte decimo-quarto
mestre da ordem do templo, que talvez fosse o mes-
mo D. Estevão Gonçalves; e no mesmo catalogo
vem a n." 17 o mestre D. Rodrigo Dias, que 6 pos-
sível seja o mesmo Rodrigo Annes.
3.° e 6. °r= Dentro da mesma igreja , encostados
á parede do lado do sul , estavam os dois últimos
mestres do templo , D. Gualdim Paes e D. Louren-
ço Martins: cujos túmulos se demoliram e passa-
ram os ossos para a segunda das novas capellas des-
se lado em tempos d'elrei D. João 3.° ; e ahi no
primeiro dos dois se lhe pòz então o epitaphio==
obiit fralcr Gualdinus magister militum tempii Poi-
tugalis , era milésima ducentcsima trigésima tertia ,
tertio Idus Octohris líic Castra Tomaris cum multis
aliis poptdavit rer/uiescat in pace.=So segundo uma
inscripção em vulgar dizia que D. Lourenço Mar-
tins se passara em maio de 13ío. = Muilas inexa-
ctidões se acham reunidas nesta noticia do Tombo :
porque nem estes foram os últimos mestres do tem-
plo em Portugal , nem o mestre D. Lourenço Mar-
tins podia avançar até a data em que se diz falle-
cèra , pois já então não havia templários. D. Gual-
dim foi o sexto na ordem dos mestres , e D. Lou-
renço foi o vigesimo-setimo que falleceu , commen-
dador de Santarém , em 1308, havendo renunciado
0 mestrado cm D. Vasco Fernandes. As relíquias
destes dois mestres se passaram á capella de S.
Barlholomeu , hoje existente ; mas fazendo nós di-
ligencias por descobrir algum vestígio delias, nada
encontrámos.
T.° e 8.° = Á entrada da igreja da parte esquer-
da estavam dois moimcntos sem imagens nas cam-
pas , que diziam terem sido dos Tauiarães , que fo-
ram ricos-homens , e deixaram grandes bens a esta
igreja. =:= Até aqui a succinta nulicia do Tombo
nesta parte. Nós tivemos a fortuna de decifrar este
enigma. No catalogo dos mestres do templo achá-
mos que o vigesimo-setimo na ordem destes D. Lou-
renço Martins figurava no anno de 1293 no mcz de
junho , em a instituição da capella dos Tamarãcs ,
dita assim porque neste logar de Tamarel , no ter-
mo d'Ourem , principalmente a dotou com muitas
fazendas D. Martim Gil , amo do infante D. .aflbn-
so , e mordomo da rainha St." Isabel. Esta capella
tem hoje o titulo de S. Bartholomcu, apesar de ser
a mente do instituidor fosse intitulada de S. Mar-
tinho. Temos por tanto achado a familia a que se
refere o Tiimarães. Este nome não designa linha-
gem , antes sim a localidade dos bens consignados
para a instituição c manutenção da capella. D. Mar-
tim Gil foi, não só rico-homem, mas conde de.Vci-
va , personagem importantíssima da corte d'elrei
D. Diniz, riquíssimo como o provam, alem de suas
grandes possessões , o haver comprado a sua sobri-
nha D. Bataça uma boa parte da herança de seu
marido , Martim Annes de Soverosa , por vinte mil
maravedis brancos, como traz Brandão na o." P."
da ilonarch. Lusit. L.° 17 cap. 29. De crer é que
o conde D. Martim Gil instituíra ahi capella para
seu jazigo, e para os sufrágios pios costumados na-
quella idade. As sepulturas, por tanto, dos Tama-
rães eram a do mesmo coude c d'algum de seus
successores ou parentes.
Prerogatiras da igreja de St." Maria do Olival: c
do livro dos seus annaes que ahi existia.
Esta igreja era considerada como uma das ca-
Ihedraes do reino : nella havia o bastão ou sccptro
1 do masseiro , e as massas de prata que são dislin-
1 clivo das sés episcopaes. Bailia e matriz de todas
: as igrejas da ordem e cavallaria de N. S. Jesus
I Christo , a ella estavam sujeitas c subordinadas to-
' das as igrejas da ordem no reino e conquistas ; e a
ella só era superior o papa. O seu prior linha po-
der quasi episcopal ; e todas as igrejas de Thomar
' eram só capellas filiaes delia ; e o seu vigário , pa-
i rocbo de todas, pondo ahi um cura amovível. O
I prior ou vigário com os seus clérigos freires ahi re-
zavam em coro, e faziam capitulo como nas demais
cathedraes do reino. Pela reforma praticada em
tempos d'elrei D. João 3.", em que os cavalleiros
clérigos e freires foram reduzidos á clausura e re-
gularidade claustral , a igreja de St.' SIaria decli-
nou muito de seu esplendor antigo, porque os frei-
res , residindo forçosamente no convento do Chris-
to, ahi celebraram os officios divinos na sua igre-
ja, construída por elreí D. Manuel ; e a de SI. '.Ma-
ria ficou reduzida a vigairaria , postoque sempre
considerada como cabeça e matriz de todas as da
ordem.
A curiosidade d' haver ahi um livro d'annaes, co-
mo o de Xoa de Santa Cruz de Coimbra , nos faz
deplorar a sua perda total. Diz o Tombo :=Tinha
esta igreja um livro chamado Be serro , em que se
escreviam, alem d'outras cousas, a canonisacão dos
382
O PANORAMA.
santos que foram do bispado [talvez qtiizesse dizer
da prelasia] ; — as viclorias alcançadas sobre os in-
fiéis , os Icrrcmolos , tempestades , submersão d'i-
Ihas : — estavam nelle escriptas as batallias dadas
na recuperarão das Hespanhas , as qiiaes se liam e
comraemoravam cm coro nos dias próprios ; — es-
tava a vida de St/ Iria , &c. Constava dclle que o
ouvidor Bartholomeu de Seabra o mandara encader-
nar. Mas este livro pcrdcu-se.=
Nossos leitores que houverem lido a memoria so-
bre o convento de Christo em Thomar , publicada
cm alguns n."" do Panorama , folgarão sem duvida
d'encontrar nestas noticias acerca da igreja de St."
Maria do Olival o complemento do resumo históri-
co daquclla grande casa.
J. da C. N. C.
EOIOITOI/LIA DOMSS^^iaiA-
Nutrição dos animaes : vantagens dos alimentos fer-
mentados ou COSIDOS sobre os alimentos crus.
As necessidades factícias e de convenção, nossos
usos actuaes de commodidade e de luxo , o amor
do lucro que lera desenvolvido as tentativas e ex-
periências das artes mechanicas , a extensão dada
á industria c ao eommercio, e o adiantamento dos
conhecimentos chymicos tem feito descobrir metho-
dos e processos novos mui superiores aos antigos. Com
effeito nesta parte ha real e verdadeiramente pro-
gresso. O homem , naturalmente habitual e rotinei-
ro, precisava d'estimulos que excitassem sua inlel-
ligencia e applicacão : as relações sociacs, a neces-
sidade de manter-se e equilibrar-se , ao menos, no
circulo de sua classe e posição, vieram obriga-lo a
reflectir, analysar e inventar para augmentar seus
recursos. Daqui os aperfeiçoamentos , os descobri-
mentos que todos os dias vamos vendo em tudo o
que pertence ao vasto dominio das artes.
Mas um outro defeito muito coramum na nossa
espécie é que ou seja por vaidade , ou irreflcxão ,
ao mesmo passo que nas cousas exteriores , nos ob-
jectos da industria c trafico commcrcial se avança
alem da rotina , nos usos domésticos , na economia
usual nos abandonámos ao costume e pratica anti-
gas sem exame e sem desconfiança. Perguntai á
maior parte da gente por que faz ou segue certos
methodos costumeiros em vez de outros que tal-
vez fossem preferíveis , responder-vos-hão = sem-
pre assim o praticámos. =:= O objecto deste artigo
é fallar d'um destes usos e praticas habituacs , e
procurar faze-lo substituir pelo seu correctivo.
Forragens.
Os animaes domésticos tem sido condcmnados
desde tempo immemorial aos alimentos crus, e en-
tretanto experiências repetidas tem demonstrado a
superioridade dos alimentos cosidos e fermentados,
tanto pelo que respeita ,i saúde dos animaes , como
á sua nutrição c gordura. Alem do raciociuio que
demonstra a menor facilidade da digestão daquel-
les , e a melhor rommutação destes , ahi está a ex-
periência que lodos |)odem fazer comparando os
dois methodos.
Na Inglaterra e na Alemanha, os dois paizes on-
de mais se calcula e rellectc sobre a economia do-
mestica , se pratica já com immensa vantagem a
alimentação , ou cosida ou fermcniada , das forra-
gens , maiormente nos animaes destinados para o
talho, e para figurarem nas feiras, mercados, c
mesmo para o consumo caseiro. Nas províncias rhe-
nanas sobretudo costumara fermentar toda a sorte
de plantas forrageosas que ministram a seus ani-
maes , e dahi provém terem no mercado francez
um valor muito superior aos de todas as proviDcias
daquella monarchia.
Com cfreilo os alimentos que tem experimentado
a fermentação são muito mais nutrientes que os
crus : os animaes entretidos e alimentados em casa
com estes exclusivamente engordam menos ou não
engordam nunca. Observa-se isto nos cevados que
em quasi todas as casas ruraes , c ainda n'outras
das villas e povoações , c costume crearem-se para
matar: alimentai-os somente de géneros críis, ainda
que sejam batatas que é ocomestivel mais nutrien-
te , vereis que se conservam sempre magros : mi-
nistrai-lhe estas mesmas batatas cosidas [principal-
mente a vapor] , vereis que promptamenle engor-
dam. Nos bois, nos carneiros destinados ao talho
voga com pouca differença o mesmo principio. =
Essas manadas de grandes e gordos bois , esses re-
banhos innunieraveis de carneiros que atravessam
nossas fronteiras , e o departamento da Mosela [di-
zia e escrevia um economista francez era 1839] pa-
ra virem inundar os mercados e nutrir Paris, são
o resultado do principio da fermentação applicado
a todas as substancias alimentarias destinadas a en-
gordar os animaes. = Este uso tem de mais outras
vantagens , como são augmentar consideravelmente
a quantidade , e aperfeiçoar a qualidade dos estru-
mes ; — adraittir uma applicacão mais geral de plan-
tas e hervas , que cosidas ou fermentadas são con-
venientes c nutritivas, ao mesmo tempo que seriam
prejudiciaes em crú ; — dobrar finalmente a avidez
e o appctite dos animaes conservando-os em bom
estado de saúde.
Mcthodo de fermentar as forragens.
Eis-aqui o processo fácil praticado pelos creado-
res do Rheno : apanhado o trevo , ou outra planta
destinada ás forragens , o que deve ser na sasão
própria, ahi pouco mais ou menos no tempo da flo-
ração , cortam-as em porções miúdas e as depõem
n'uma cuba ou balseiro collocado n'um logar de
temperatura mediana : quando estes vasos estão
cheios de forragens se lhes lança a agua que estas
possam conter de modo a encher todos os espaços e
vasios intermediários das plantas: passados dias ver-
se-ha augmentar o volume da massa , que ao tocar
se achará quente , e cheirada appresenia o fartum
de uma cuba em fermentação. É este o momento
de tirar as forragens , de as estender um momento
e ministra-las aos animaes no curral. Esta alimen-
tação não deve ser exclusiva ; antes c da mesma
forma que cm todas as substancias fermentadas con-
vém ser alternada com o regimen alimentario com-
mura , porque aquelle se tornaria demasiado quen-
te e escandecente. Convém por tanto intcrmca-lo
com a palha e feno que lhe corrige o ardor.
(Continuar-sc-haJ.
Manuel de Almeida e Sousa de Lorão.
AÍANUEi. de Almeida e Sousa nasceu navilla deVou-
zella, cabeça do antigo concelho dcVlafõcs, em 10
ilemarço de 1745. Seus pais. Toão Rodrigues deMat-
tos , e Calharina de Almeida Novaes , apressaram-
o PANORAMA.
383
se era dar ao filho adolescente aqiielles cuidados
que , cora a aljastança da sua fazenda, o elevassem
a uma estarão honrosa c decente. Fora a l;niversi-
dade de Coimbra de antigos tempos a mais segura
educação a que os filhos dos provincianos se sub-
meltiam, se porvenlnra ao fastígio das honras aspi-
ravam subir pelo árduo e pouco trilhado caminho
das Icttras; assim tendo cursado os estudos prepa-
ratórios o moço Almeida c Sousa entrou na Univer-
sidade , contando de idade 16 annos , e concluiu a
sua formatura na faculdade de Direito Canónico em
17(>(i, antes da celebre reforma domarqucz de Pom-
bal. O documento que o habilitara a entrar no cur-
so académico antes do complemento da idade lon-
ge está de lhe ser desairoso : o prematuro desinvol-
vimento das suas faculdades mentacs correspondiam
inteiramente ao espirito de quem diclára os Estatu-
tos , e o exemplo e opinião de outras pessoas em
idênticas circumstancias vem relevar qualquer im-
putação de fraude.
A consciência das próprias forças foram podero-
sos motivos para que o novo letrado não desejasse
trocar a bella e independente occupação de advo-
gado pelo laborioso e porventura arriscado empre-
go de magistrado : .Vlnieida e Sousa não serviu le-
gar algum de leltras. Passado um anno depois que
recolhera de Coimbra partiu para Lobão , aldèa si-
tuada duas léguas ao sudoeste de Vizeu , a prati-
car nas matérias forenses sob a direcção de um cer-
to Estanisláo Lopes , advogado da maior reputação
naquellcsteuipos. .Vlli casou, e se estabeleceu exer-
cendo a sua occupação com grande applauso daquel-
les que conheciam os seus escriplos de advocacia
nos tribunaes do reino, o que bera depressa lhe fez
adquirir a boa fama dos seus conhecimentos jurídi-
cos , e uma grande concurrencia de Partes attnhi-
das áquelle logar , quando algum dillicil e valioso
pleito pedia o circumspecto conselho do grande ad-
vogado. O nome da residência adoptada por Almei-
da e Sousa passou-Ihe como se fora appellido pa-
Ironymico, de tal modo que todos o diziam «o Lo-
bão» denominação que elle boamente acceilou , e
se encontra <á testa das suas obras impressas.
Quando os monges de Santa-Cruz de Coimbra dis-
putaram os direitos e jurisdições sobre olzento com
I). Francisco de Lemos, bispo da mesma cidade,
Lobão foi chamado poraquclles para advogar a sua
causa. Mas dois annos eram passados cm disputas
intermináveis, e então o advogado de Santa-Cruz
teve de recolher á sua casa por motivos de uma mo-
léstia, que o impossibilitou de trabalhar por alguns
annos. Com tudo nem os seus impedimentos phvsi-
cos , nem as iramensas procurações que havia das
corporações religiosas , e dos particulares , e nem
ainda as muitas pessoas que o consultavam , o po-
deram dissuadir de um aturado estudo da Juris-
prudência Pátria, e de dictar e escrever elle mes-
mo as numerosas obras , que deixou em documen-
to da sua erudição e prodigiosa memoria. Tantas
elucubrações juntas á debilidade da sua sande não
perraittiram que Manuel de Almeida e Sousa to-
casse na decrepitude : falleceu em Lobão a 31 de
dezembro de 1817, contando quasi 72 annos d'idade.
As suas obras impressas allcstam certamente uma
grande erudição de jurisprudência , e pelas nume-
rosas remissões e extractos podem substituir os gros-
sos volumes, que se fariam necessários a quem por
olliciú tem de consultar os auctores sem porporçõcs
para os haver, e talvez carecendo de avultados meios
pecuniários. O seu methodo de escrever é tão ári-
do como o objecto dascicncia que se propozera ex-
planar, e se algumas vezes sobre questões positi-
vas , c as opiniões dos doutores , deixa ao leitor a
escolha própria sem se atrever aemiltir a sua, de-
vemos assentar que isto fora uma excellenle manei-
ra de elucidar a jurisprudência , e porventura uma
modéstia digna de ser imitada por todo o cscriplor
sincero. As obras de Lobão são um armazém de Di-
reito , dizia um famoso advogado dos nossos dias:
e elle não era tão destituído de bom gosto que não
lhe fossem familiares os escriptos de Alontesquieu
e Filangíerí , como se observa pelas citações. .Vs
suas opiniões não serão sempre das mais correctas,
mas quem se poderá gabar de possuir as verdadei-
ras?... Contraria algumas vezes os escríptores con-
temporâneos como fez ás Primeiras ÍJnlias de Pe-
reira e Sousa ; e ousou refutar uma grande parte
das famosas Inslituicões de Mello Freire ; mas não
escapou a que outros lhe retribuíssem com usura ,
como fizera Fernandes Thomaz no opúsculo intitu-
lado Obserrações sobre os Direitos Dominicacs de Lo-
bão , cujas opiniões obtiveram a preferencia entre
os melhores juristas. Quaesqucr que sejam os de-
feitos de Lobão , havemos de assentar que nenhum,
dos seus antagonistas lhe poderá negar um logar
distincto entre os maiores jurisconsultos portuguezes.
.Vlguns dos seus escriptos foram impressos depois
da sua morte taes como appareceram. outros foram
concluídos por seu filho Joaquim de .Vlmeída No-
vaes, auctor do índice Geral cias suas obras, e exis-
tem ainda alguns manuscriptos consistindo cm re-
missões a doutores sobre objectos , que caducaram
com as novas instituições. Terminaremos estes apon-
tamentos biographicos com o catalogo das suas obras.
Tratado Pratico Compendiario de todas as Acções
Summarias. — Collecção de Dissertações Varias ao
Tratado das Acções Summarias. — Tratado Pratico
e Critico de todo o Direito Emphytcutico. — Appen-
dice Diplomático Histórico ao Tratado Pratico de
Direito Emphytcutico. — Tratado Pratico das Ava-
liações e dosDamnos. Partes I e U.— Tratado His-
tórico e Pratico de todos os Direitos relativos ás Ca-
sas.— Tratado Pratico Compendiario dos Censos. —
Collecção de Dissertações Jurídicas c Praticas. —
Discurso Jurídico , Histórico , e Critico sobre os
Direitos Domínicaes. — Dissertação sobre os Dízi-
mos Ecclesíastícos. — Dissertação sobre as Oblações
Pias. — Fascículo de Dissertações Jurídíco-Pratícas.
Partes I , II e Hl. — Tratado Encyclopedíco Prati-
co c Crítico sobre as Execuções que jirocedem por
Sentenças. — Tratado Pratico dos Iiitcrdíctos e Re-
médios Possessórios. — Tratado Pratico de Morga-
dos.— Supplemcnio ao 'Iratado dos Morgados. —
Notas de Lso Pratico e Criticas ás Instituições de
ilello Freire. — Collecção de Dissertações Jurídíco-
Pratícas em supplemento ás Xotas ao Livro 111 de
Mello Freire. — Tratado de Obrigações Reciprocas.
— Tratado Pratico Compendiario das Pensões Ec-
clesíasticas. — Discurso sobre a Reforma dos Fo-
racs. — Tratado Pratico do Processo Executivo Sum-
marío. — Dissertação a que se faz remissão no Tra-
tado do Processo Executivo Summario. — Segundas
Linhas sobre o Processo Civil de Pereira e Sousa.
Partes I e II. — Collecção de Dissertações em su[i-
plemento ás Segundas Linhas. — Tratado Pratico e
Compendiario das .Aguas. — Tratado das Denuncias
e mais Procedimentos por causa dos extravios das
fazendas subtrahídas aos tributos.—
Existem inéditos os manuscriptos de algumas No-
tas aos Livros !V e V d?s Instituições de Mello Freire.
38-í
O PANORAMA.
ANTIGAS COUTES EM PoBTUUAL.
£ DIREITO que não prescreve, a liberdade. Não tem
poder de atiniilla-lo a oppressão , nem de o ceder
e alienar os opprimidos. E os que aspirara a cxer-
cc-lo não carecera de justificar-se cora a posse an-
tiga. Dcsla pertença c propriedade moral do géne-
ro humano lemos rebaixado o valor inestimável,
procurando fundar nossas revindicações em docu-
mentos e arestos dos tempos que furara, e das plia-
ses sociaes que passarara. Dcrogánios á preeminên-
cia do nosso duminio , admittindo que era contro-
verso , e dêmos assim aos usurpadores e aos que
buscavam se-lo azo a produzir lambem seus titulos,
pcdiudo-os á historia , e a legitimar com o silencio
c a submissão das nações as doutrinas da obediên-
cia passiva.
Com esta nossa e firme opinião quanto escrever-
mos cm resumo abreviadissimo das nossas antigas
cortes, tenhara-no puramente em conta de uma nar-
ração de factos , e não como empenho de contorcer
a historia ou para auctorisar o nosso estado social
ua actualidade, ou os seus progressos e variações
de futuro; que bem escusámos sirailhaiile meio de
juslificar o que somos ou o que houvermos de ser.
Eram os nossos primeiros monarchas reis não só
dos homens , mas lambem da terra ; e desta não só
pelo principio feudal , senão pelo facto da conquis-
ta e occupação daquellas partes do território ganho
aos infiéis. N'uma epocha em que pelo iraperio das
idéas e costuraes a terra modelava a condição de
todo o homem sujeito a ella, era o senhorio do solo
a altribuição mais importante do rei, e a qualida-
de mais essencial da soberania. N'um estado corn
siinilhante organisação , lambem a importância so-
cial das classes havia de guardar-se principalmen-
te pela propriedade terrena : e as mais ricas em
bens eram as mais influentes. A ordem ecclesiasti-
ca primeiro , e depois a casta nobre achavam-se
neste caso. Comtudo nenhuma delias era creação
da monarchia : ambas estas entidades preexistiam
á ultima e Unhara ajudado a funda-la. A ordem cc-
clesiastica tirava a origem do seu poderio da su-
premacia sobre lodos os poderes terrestres , que
para si arrogava a igreja : a ordem nobre, da linha-
gem e do nascimento. E ainda que , mesmo entre
nós , o raonarcha fosse , nesses tempos , o suzcra-
no , o senhor , o rei da terra e dos homens , e que
pela qualidade de hereditário e os prejuízos preva-
lescenles a realeza fosse lida em conta de direito
pessoal , e não de funcção publica , a aucloridade
monarchica , grande e sagrada como era , eslava
necessariamente limitada e havia de acccitar estas
existências, porque se fundavam nos usos, nos in-
teresses , e nas doutrinas reinantes. A sociedade
não reconhecia então homens ou individues : com-
punha-se de jerarchias : e quantos se achavam fora
do quadro dessas jerarchias, reputava-os cousas, ou
rebanhos. O povo , as multidões não tinham signi-
ficação politica nesse regiraen : e segundo se aggre-
gavam a uma ou a outra terra dos dilfercntes se-
nhores e donatários ccclcsiasticos ou seculares , as-
sim eram obrigados aos encargos, ou gozavam os
privilégios estabelecidos pelo foral, registo dos cos-
tumes , on código particular dessa mesma terra. O
foral dava-o a cada terra o rei, e ás vezes também
o davam os nobres e os prelados : mas esses cora
sujeição ao príncipe. E n'um período de população
escaca , de pouca industria e quasi nenhum cora-
raercio , de guerras continuas c barbaridade , ins-
trumento civílísador, ri parte os defeitos e absurdos
fructo inevitável da epocha , erara os foraes talvez
o único. Mas, por outro lado, como leis particula-
res c diversificando nns dos outros , separavam de
interesses , de costumes , e de sympalhias as diffe-
rentcs povoações , e formando dentro do paiz ou-
tros tantos paizes inimigos reciprocamente , faziam
impossiíel a unidade nacional.
Dando os foraes , ou consentindo-os , os nossos
reis se a um tempo contribuíam por este modo a
que se povoasse , cultivasse e engrandecesse o rei-
no , lambem concorriam para que augmeiítasse o
numero e poder dos donatários , e por tanto das
duas classes superiores do estado , de que estes
eram membros. Estas classes tomavam incremento
e vigor até da circumstancia accidental das con-
quistas que se iam fazendo, porque era força que o
monarcha repartisse com ellas das terras conquis-
tadas. O clero foi o melhor aquinhoado , c enorme-
mente o foi ; como se vè do grande numero d'igre-
jas e mosteiros que D. AfTonso Henriques ou fun-
dou ou dotou mui ricamente. E com o costume ,
que então era geral , nascido dos preconceitos re-
ligiosos, de deixar legados á igreja em lodos os
testamentos, a opulência dos ecclesiasticos passou
todos os limites, e o seu poder chegou a ser colos-
sal. Alem das terras que possuíam accrcsciam-lhes
os privilégios que então andavam vinculados a el-
las , e armava-os o raio dos ínlcrditos e excommu-
nhões que vibravam como Júpiter sobre as maiores
eminências ou sobre os mais rasos plainos, sobre
o Ihrono e os ínfimos do povo. Com tanta riqueza
e prestígio faziam sombra aos próprios reis , e dis-
putavam-lhes a primazia ; e dahi se principiou e
moveu a opposição entre a aucloridade real , e a
aucloridade desta classe. É a primeira lucla politi-
ca que sobresahe na historia da monarchia.
Ainda que muito inferior cm prestigio e bens á
classe ecclesíastica , a nobreza era-lhe immediata :
c ambas, as únicas que então havia, tinham repre-
sentação social sua própria , e a que lhe vinha das
instituições dos godos e do foro de Leão, os quaes
se transplantaram cm grande parte para os usos e
se vieram entroncar no systcma orgânico da nova
monarchia portugueza. Segundo essas instituições
os prelados e os grandes compunham um conselho
cm que eram ventilados e resolvidos os príncipaes
negócios do estado , e até assignavam confirmando
as doações e cscripturas onde os reis estipulavam.
Estas prerogalivas lhes foram continuadas cm Por-
tugal ; e moderador directo da iramensa auclorida-
de da curõa eram ellas o único.
(Contimiar-se-ha).
A. d' O. Marreca.
Combater cora as paixões já dista mui pouco de
largar-lhcs a victoria : otriumpho mais certo é con-
servarmo-nos cm estado de negar-lhes combate.
O pczo e quilates dos crimes e vícios d'um povo
pôde achar-se fielmente na feitura de seus códigos.
Os moços recalcitrara ao conselho dos velhos ,
assim como o fogo crepita com a agua.
É bem raro accordar-sc arasão com o sentimento.
Gasta tempo bastante em deliberar ; não percas
nenhum cm persistir. — 2'. .1. Craveiro.
102
o PANORA3IA.
38o
VISTA INTERIOa DA IGKSJA DS BEI.EIVI.
Belf.m.
XIIÍ.
A DEScfiirtXo competente á estampa junta acha-se já
tão minuciosa em columnas deste jornal, que nada
Diais ora nos cumpria do que remetler o leitor aos
artigos VI , Vil e VIII da noticia liistorica e des-
cripliva do mosteiro (1), nos quaes vem miudamen-
te explicado quanto respeita aos pilares que sepa-
ram as naves, ao tecto de abobada antiga, aos púl-
pitos , ás janellas que ultimamente se guarneceram
de vidros corados , e finalmente á moderna capel-
(I) Vcj. |iag. 109, 12d e 130 do antecedente vol.
Dezembro 9 — 1843.
la-mór apainclada , — nada mais nos restava a ac-
crescentar dizemos — se depois de os escrevermos
nos não houvera a fortuna enriquecido deoutras no-
ticias que para aqui lançaremos, para não tratar com
ingratidão esse feliz acaso, que no próprio archivo
nacional se prestou a subministrar-nos todas as no-
ções históricas — que antes pelos Índices e catálo-
gos baviamos inquirido era vão. K com effcito a
forre do Tombo , onde [com a devida aiictorisação
do governo fidelissimo] trabalhámos em nossas in-
vestigações brazilicas , que nos vem a deixar em
toda a clareza a historia da edificação desse mos-
teiro, que alem de tanto figurar na primeira pagina
da historia do Brazil. ás despedidas do descobridor
2." Serie, — Voi. II.
386
O PANORAMA.
Pedr'Alvares Cabral , contém em si mesmo o sym-
bolo do seu descobrimento bem como do da índia
[art. X]; alem de que foi começado e construido
quando começava e proseguia a civilisação destes
paizes. — Belém ú a imagem marmórea do caholico
Portugal movente e colonisador , como a Batalha o
é do Portugal independente sob o bom regimen , a
ordem, a estabilidade e o soccgo.
E que melhores documentos se poderiam desejar
do que os próprios livros originaes das contas, que
incluem os ajustes dos jornaes c empreitadas e os
pagamentos das lerias dos mestres e operários, tu-
do com a maior clareza e individuação? Acham-se
taes livros no armário 26." do interior da casa da
coroa , maço único rotulado = Dcspcza das obras
de Delem e da camará e cadca de Setúbal ;= e são
principalmente respectivos a obras de 1314 em
diante. Mas alem desses livros encontrámos ainda
dispersas n'outros logares folhas de fragmentos dos
annos anteriores : o zeloso e honrado empregado ,
que aclnalmentc faz de guarda-mór, se dignou an-
iiuir a que se juntassem no mesmo maço , no que
sem perda da ordem doarchivo muito ganha a his-
toria de um monumento de recordações gloriosas.
A mais importante noticia que desses originaes
colhemos é a d'um nome, que talvez sem elles nun-
ca se saberia. — Uma Iradierão vaga linha feito
correr que o principal architecto da obra fora ita-
liano , e se chamava Putassi. Dissemos nós, com a
maior reserva n'outro logar, como nenhuma memo-
ria achávamos deste nome, e assim nos viamos sem
recurso algum pira examinar os fundamentos da
tradicção, restando apenas o direito, em quanto não
apparecesse outro , de proclamar por mestre da
obra a João de Castilho , sobre cuja existência não
Unhamos a memu' dúvida. D'ora em diante este
devo ceder a palma ao seu accessor que acaba de
apparecer italiano , como dizia a tradicção , e de
um notue tal que porventura produziu por adulte-
ração o acima mencionado. Sim, a palma de primei-
ro architecto de Ceiem deve ser transferida a Boi-
taca (2): nome conhecido pela memoria do que nas
obras da Batalha pelos annos de 1599, 1512, 1514
e 1519 fez , segundo a mais eminente auctoridade
(3); e por umas informações vindas de Setúbal, das
quaes consta ter sido o mesmo Boilaca quem diri-
giu o convento das freiras de Jesus (4) cm Setúbal;
Ijcm como o faria quanto a nós a respeito da igreja
da C<ini"cição-N'elha , da mesma cpocha e em tudo
similhantc a lieicin.
Os referidos documentos nos explicam igualmen-
te Címio era feita a administração das obras; e no-
tável ó a identid.ide desta com a que se seguia no
mosteiro da Biitalha (S). — Havia uma espécie de
junta , conselho ou mcza dos cuntos , composta de
um provedor, um almoxarife c um escrivão, os
quaes tinham cada qual uma das Ires chaves do co-
fre. Este ultimo bigar foi muito tPm[io servido por
um João Leilão ; no segundo esteve algum tempo
Diogo Uodrigues, c no primeiro um Gonçalo Alva-
res. A|i|)arcce também depois por vedor das obras
Ruy Fernandes. Semanalmente orçava a importân-
cia total da feria entre nove e qnalorze mil réis, o
que não admirará a quem souber que o maior jor.
(2) Jloi/laea Ml lloi/liir/iia , lloiiliira ou /liii/lri//ua. Ha-
taífiia oii /lolaca, puis de ludas íis fói mas appaicce t-scriplo.
(3) Meni. da Ac-adem. 'i'. X, I>. 1.", pa-. 179 elHI.
(4) A r.sppilo deslc convento de Jtsiis vcja-se o Pano-
rama n." ll.-i dl) vol. anlerÍDr.
(5) Vcj. a ciladaxMeni. doEin." Sr. Patriarcha p. 1G8.
uai pago era o de mestre Boitaca , que vencia por
dia 100 r.% e que os outros mestres e oITiciaes ape-
nas recebiam 60 , 50 e 40 r.' em quanto se seguiu
o systema dos jornaes, que não continuou por mui-
to tempo , sendo preferido o das empreitadas talvez
pelas vantagens da economia e da maior rapidez
no trabalho. A 2 de janeiro de 1517 começaram
lodos os empreiteiros a servir segundo um regimen-
to dado por clrci , e João de Castilho ajuslára-se
par ^ t< mestre e empreiteiro da crasla primeira c ca-
pitolo c sacristia epoitaUe da íiavcsiau =obrigan-
do-se a trazer cera ofliciaes cfiectivos , recebendo
por isso mensalmente 140}Í000, o que bem equi-
vale á paga de 50 r.' diários a cada ollicial. Havia
alem do mesmo Castilho outros empreiteiros , que
igualmente se obrigavam a trazer efleclivos certo
numero de operários; assim acontecia a mestre Ni-
cidáu cora o portal [>riucipal , e a Filippe Henri-
ques com a crasta. Domingos Guerra , João Gon-
çalves c Rodrigo Affonso eram empreiteiros de va-
rias capellas , sendo o primeiro de cinco do coro e
cada um dos dois de três outras , talvez no cruzei-
ro ou capella-mór. Leonardo Vaz linha por sua con-
ta o refeitório. — Fernando Fermosa era aparelha-
dur da sacristia, Francisco de Benavente da crasla
primeira c pilares, e Rodrigo dePontezylha do por-
tal do capitulo e da igreja, &c. , &c. (6). Voltan-
do á estampa que vai aunexa a estas linhas, é cila
mui fraca para dar idca da perspectiva que se go-
za no original. Lá ao fim no meio se descobre para
dentro do arco do cruzeiro a clássica capella-mór
que a raiidia D. Cathnrina mandou construir cm
vez da antiga que fez desmanchar por pequena , e
a qual [rectificando o que outra vez dissemos] ain-
da não estava concluída aos 3 de janeiro ile 1570,
pois que desta data é uma lei pela qual clrei D.
Sebastião providcncèa que cesse a sua obra para se
applicar o seu gasto para os logares d'Africa. —
Na dita capella-mór não existe hoje o candelabro
que na estampa se representa , e por cima do arco
do cruzeiro deve saber-se que são as armas portu-
guezas as desse brazão , em que a invenção do de-
senhador quiz fazer preferir á exactidão o eíTeito ar-
tistico (7).
— Varnhagcn. —
Estudos Moraes.
n.
o Parocho da Aldeia.
(Continuado de pag. 3G3).
A PROPÓSITO do que o padre prior era de casamen-
teiro ainda me lembra uma velha viuva , a senhora
Perpetua Rosa — Deus lhe falle na alma ! — que
morava ao cabo do logar n'uma barraquinha a bei-
ra do rio muito caiada, com seu rodapé de verme-
lhão , e sombreada por cinco ou seis choupos quo
nasciam da agua. Tinha ella — a velha, não a bar-
raquinha— uma lilha, formosa rapariga, chamada
(6) Para enrif]iiocinienlo do nosso glossário architeelc-
nico-porlcifrup/, aproveilánios nesses papeis os nomes de ^ar-
t/n [por gárijula] , coronel, romano, torcido, alcachofra, si-
tiai, ele.
(7) A eslampa a paj. T.T do vol. antecedente, desenha-
da pelo Sr. I'"onrcca e gravada pelo Sr. Coelho, mostra o
interior do moslciro com exacçtio superior i. presente que
de obra alheia tomámos.
o PANORAÍ>lA.
387
Bernariiiiia. Ern iinin ilas leiteiras mais dcsenxova-
lliadas de que se {ç.ili.iv.im os arredores de Libboa :
l)onita , que iiãci liavia iiKiis dizer : alva como toa-
lha de freira , airos.i eoiiio piuheirinlio de quatro
ânuos. Uns poucos de rapazes da aldeia andavam
doudos por cila. Nas noites dos dominjins cm que
liavia dança c viola na casa da lirincadc ira (•) , a
tia Jeroninia , que era capaz d'espreitar e^te rann-
do c o outro, mirando da sua rotula o que se pas-
sava á entrada da rústica sala do baile, pouco dis-
tante do presliytcrio , notava qne apenas a liernar-
diua apparecia, os rapazes entravam apoz cila com
muita mais fúria e pressa do que pela manhaii ha-
viam corrido pira a igreja ao ultimo loque da mis-
sa do dia. Antes disso já a boa da velha tinha re-
parado no modo por que elles se enco^lavara aos
cajados para lados oppustos, em frente uns dos ou-
tros , nos motejos do cantar ao dcsalio , no pôr dos
barretes á banda , nos olhares que mutuamente se
lançavam , no pegarem cm seixos e alirarein-nos a
grande distancia a modo de competência , sem di-
zerem palavra , como se cada um quizcsse mostrar
aos seus rivaes a robustez do próprio braço. Disto
tudo tirava a tia Jeronima agouro de muita panca-
daria , «por amor daquclla dclamliida — dizia a
ama do prior em suas caridosas murmurações —
que anda toda arrebicada por balharotas, em quan-
to a pobre da ni.ãi moureja todo o santo dia ao sol
e á neve naqucllc rio para ganhar um bocado de
pão sem vergonha da cara. Havia deser comigo!»
E o mais é que a tia Jeronima não se enganava
nas suas previsões. Chegou véspera de Reis: hou-
ve á noite brincadeira ou baile extraordinário : pas-
sou-se ahi tudo na melhor ordem : riu-se , locou-sc
viola, dançou-sc, cantou-se ao desafio, e cada qual
se recolheu a esperar entre os lençoes os santos
Reis magtws , designação popular dos magos do
Oriente, cuja vinda a líethlem se memora na Epi-
pbania.
Houve , porem , nessa noite um saloio mais cor-
tez que esperou vestido cao relento no caminho da
serra a vinda dos três santos personagens. Foi o
Manuel da ^"entosa, estendido com uma tremebun-
da e magnifica massada, de que esteve ido, a pon-
to de dar ao padre prior uma daquellas noitadas
que suscitavam a cólera da lia Jeronima, e de que
já acima fiz honrosa e especifica menção.
O Manuel da Ventosa era filho nnico de um mo-
leiro ricaço, chamado Bartholomeu, velho honrado,
mas avarento como seiscentos satanazes. Teve a
ventura — o rapaz, enlende-se — de cahir em gra-
ça da Bernardina. Amoricos daqui , amorícos d'a-
colá : janella na cara a um , respostas tortas a ou-
tro ; segredar e rir de visinhas ; raivas de despre-
zados : somma lotai — zás, uma sova mestra no Ma-
nuel da Ventosa , por ler lido a negregada dita de
merecer a preferencia daquclla que era o enlevo
de lodos os corações.
Mas enganaram-se. O amor redobrou com o sa-
crificio ; os desprezos cresceram com a vingança.
O que começara por passatempo converteu-se em
paixão violenta : um fogo intimo devorava a alma
de Bernardina , e lhe desbotava as faces , d'antes
tão frescas e rosadas como as d'um seraphim da
peanha da Senhora da Conceição , obra de cscul-
(•) Assim se denominava .liiula ha poucos annos uma
casa, na proximidade das aldeias visinhas de Lisboa, em-
prestada por algum ricaço ou alugada , em qne se ajuntava
lias noites dos domingos para brincar (dançar) a mocidade
aldeã.
ptor insigne. No Manuel da Ventosa , isso não fal-
lonios : qii.indo melhorou da doeiíia andava entre
parvo e abstracto : atlrihuia o o licenciado dos sí-
tios a de|ircs>âo cerebral produzida por alguma ri-
pada nas vértebras ; mas se exi>lia depressão de
cérebro outra era a sua origem. Certa mulher de
\irtude que havia na aldca jurava c Iresjiirava que
o moleiro moço tinha a esiiinliela cabida. Uislorias.
Ku apesar de ser então uma crcança sabia bem on-
de batia o ponto ; por isso nunca fui para ahi.
Por encurtar rasõcs : os dois aniavam-se como
loucos. As pessoas desinteressadas achavam-nos um
par completo — c com bom fundamento: o Manuel
da Ventosa era um galhardo mancebo, nnico her-
deiro de gnija abastado , e Bernardina uma rapari-
ga honesta. As beatas da aldeia, ás quaes, conforme
a direito, incumbia por ao soalheiro a vida priva-
da de cada uma, no capitulo da honra numa se ti-
nham atrevido a ir devassar a barraquinha de Per-
petua Uosa. Podia a senhora Perpetua Uosa gabar-
se dessa '. li de feito , muitas vezes , mcttida no rio
até os joelhos , cm discussões acaloradas com as
suas illustres amigas, as outras lavadeiras pelo cir-
culo de Lisboa , a ouvi empraza-Ias para que for-
mulassem precisamente certas interpellações infun-
dadas , regcilnndo co.m desprezo alguns remoques
bernardos relativos a Bernardina , e appcilando pa-
ra a opinião do paiz representada pelus seus órgãos
— as beatas do soallieiro.
Mas se os dois se amavam com tantos extremos
e eram feitos e talhados para puxarem o mesmo car-
ro matrimonial, porque não iam pedir ao padre
prior oconjungo vos? Ahi é que certo animal torcia
certa parte do corpo , que eu c o leitor sabemos.
Por não terem pedido esclarecimentos sobre o fa-
cto é que as lavadeiras faziam declamações vagas.
Eis o caso : o Bartholomeu da Ventosa era rico
e avaro ; — mas bestialmente avaro ; Perpetua Ro-
sa pobre, pobríssima. Por mal de peccados fora
cila antigamente lavadeira do casal do moinho —
ou antes dos moinhos, porque para a cxacção his-
tórica devc-se advertir que o moleiro possuia dois.
Lma vez, que levara grande porção de roupa , ti-
nha perdido três saccas velhas e rotas. Bartholo-
meu quando tal soube quiz morrer. <cJuro por esta
— ^ dizia ello esbravejando, e beijando os dois dedos
Índices cruzados sobre a boca — juro que Perpetua
Rosa me ha-de pagar as minhas três saccas novas
cm folha, que me perdeu a desalmada.» Mas nem
novas nem velhas ; porque a verdade era que ella
não linha com que as pagasse. Forçado foi, portan-
to, ao moleiro o fartar a vingança com ordeuar-lhe
qne não lhe tornasse a rapar os pés á porta. Desde
este faial dia nunca mais Bartholomeu da Ventosa
pôde encarar com a lavadeira : o seu ódio vivia in-
volto e aquecido na imagem das três saccas grava-
da naquelle coração de avarento. Assim para elle
seria cousa monstruosa e abominável só o imaginar
a possibilidade de seu filho JLnnuel casar com Ber-
nardina , a quem a pobreza fora de sobra para im-
pedimento dirimente, quanto mais o ser filha de
similhante mãi. Tal era a dilFiculdade insuperável
que se oppunha á união dos dois amantes.
Eos raezes iam passando, e as murmurações cres-
cendo, e saltando já das lavadeiras para as beatas.
Tinham visto mais de uma vez [dizia-se: valha a
verdade] o moco moleiro rondando a deshoras a
barraquinha da beira do rio. Havia lambem quem
dissesse que nas madrugadas d'alguns domingos,
quando a senhora Perpetua Rosa sabia para a mis-
388
O PANORA3IA.
sa das almas, se enxergava ao lusco fusco um vul-
to, que, coscnilo-sc com os choupos, se approximava
da porta da Ucrnardina, e . . . e elcwtcra. Era mui-
to ver I Mas a cousa ia correndo, e no fim de con-
tas quem ganhava com essas historias eram as lín-
guas dos maldizentes, que se relocillavam na palan-
gana da murmurarão, e o diabo que se lamhia para
por estas e por outras os calrafillar a seu tempo.
Veio a quaresma : santa quadra; mas que por
isso mesmo ó ás vezes boa de mais. Desobriga vai,
desobriga vem, snbe-se muita cousa. O padre prior
andava já com a pedra no rapato , porque elle não
era cego nem mouco. Meu dito , meu feito. Certo
dia — por signal que era uma sexta-feira — quando
o sacristão veio abrir a porta da igreja estavam já
no adro á espera l*erpelua Rosa e Bernardina para
se confessarem. Não tardou o prior. Aviou-se a
mãi : ajoelhou a filha : persignou-se , bcnzeu-se ,
disse mea culpn , e começou sua confissão.
Se isto fosse uma historia de polpa , cortesaã e
culta, viria neste ponto o casus fcedeiis do cu tomar
a postura trágica a la moda, carregando as sobran-
celhas, c dizendo cm tora soturno e lento: «O que
ahi se passou entre o venerável ancião e a donzcl-
la ninguém o soube ! — I — ! — '. — Mysterio 1 — '.
— ! — '■ Acontecimento horrível e fatal ! — ! — I — !
As lagrymas ardentes do velho cahiram sobre a
cabeça da infeliz ajoelhada a seus pós , cujo futu-
ro [não o dos pés mas o da infeliz] era de maldi-
ção I — ! — ! — !» Limitada, porem, a minha nar-
rativa a chaã e villoa recordação de um pobre
parocho d'aldcia , reílcclirei cm summa , que me
não é licito revelar o segredo do confessionário. Os
sigillistas já deram que fazer ao marquez de Pom-
bal , cuja consciência , como todos sabem , era de-
licadíssima em matérias de orthodoxia catholica —
e em tudo. Callo-me, porque não quero cahir no er-
ro que elle condemnou. Direi só que fui mui de-
morada a confissão de Bernardina , e que ao ale-
vanlar-se d'an[e os pés do prior ella trazia osolhos
como punhos: — e digo-o porque o viram os cir-
cumstantes , a saber , o sacristão e a senhora Per-
petua Rosa, que devotamente ia descabeçando a pe-
nitencia em quanto a filha se desobrigava.
Ao Sol posto desse mesmo dia o prior espairecia
a vista pela veiga coberta de verdura , assentado
no cruzeiro segiuido o seu costume, A brisa da tar-
de era fria e aguda , porque a primavera começa-
va apenas ; mas o velho parocho parecia não a sen-
tir embebido cm cogitações ; e tão fundas iam es-
tas, que cm vez de traçar na terra com a bengala
as usuaes figuras geométricas, ou anli-geomelricas,
conser\ava-a immovcl e perpendicular com as mãos
cruzadas sobre o castão , firmando a barba em ci-
ma. Conhecia-se-lhe no olhar , e no mecher tremu-
lo dos beiços, que algum grande cuidado o inquie-
tava. E tanto assim , que nem reparou nos três si-
gnaes das avemarias, deixando-se ficar sentado, e
até , oh profanação ! , com o chapéu na cabeça. Fe-
lizmente não passava ninguém naquelle momento ,
que podcsse notar a involuntária irreverência do
distrahido pastor.
Mas um vulto assomou lá ao longe , e os olhos
do velho brilharam como animados por vida nova.
<Juem quer que era descia do monte e viidia para
a banda do rio. O caminho passava perto do adro :
o prior ergucu-sc, estendendo a mão, e brandindo a
bengala na direcção do vulto.
«Oh Manuel — psio, Manuel! chega á falia! Oh
rapaz ! »
O filho do moleiro — porque era elle — hesitou
um pouco : alguma cousa lhe roía na consciência.
Mas vendo o prior em pé com ar de quem esta-
va resolvido a ir atravessar-se-lhe diante , cortou
para elle com o barrete azul e vermelho na mão.
«Boas tardes, padre prior: quer alguma cou-
sa ? »
«Quero que você chegue aqui, porque temos que
fallar. »
O tom com que estas palavras foram proferidas ,
e mais que tudo aquelle você , fizeram estremecer
o Manuel da A'enlosa. O prior tratava lodos por tu,
e o você na boca dclle era presagio infallivel de
temporal.
O rapaz parou diante do velho com osolhos cra-
vados no chão , torcendo e destorcendo a orla do
barrete que tinha entre as mãos. O padre prior me-
diu-o d'alto a baixo , e começou er abrupto :
«Então que historias são estas da Bernardina, só
velhaco da conta benta? Sabe o que fez, grandessis-
simo tratante? .\oude foi você aprender isso? [Es-
ta pergunta era asnatica]. È a doutrina que eu lhe
ensinei cm pequeno? De que tem servido os exem-
plos de modéstia e honra que lhe dá seu pai? De
ser um vadio , ura seductor , um. . . . Deixe estar :
a cadeia não se fez para as aranhas , e elrei nosso
senhor [o bom do parocho puxava em politica para
a eschola histórica] ainda não mandou queimar a
náu de viagem. ...»
«Eu, padre prior... como lhe ia dizendo: —
interrompeu atarantado o saloio , coçando na cabe-
ça , e procurando alar o fio das suas idéas inteira-
mente confundidas.
«Callc-se — não me responda: — proscguiu o ve-
lho parocho , achando talvez pouco cinco perguntas
para ouvir uma resposta. Diga-me : que tenções
eram as suas enganando uma rapariga honesta?»
« Eu . . . »
«Não me replique ; já lho disse. Lembre-se de
que é o seu pastor que lhe falia. Ahi está porque
você ainda não veio dcsobrigar-sc. Pensava que por
ella ser miserável e sua mãi uma triste viuva não
tinham ninguém neste mundo? Enganou-se. Tem-
me a mim. Saiba que a poder que eu possa ha-de
ir bater com o custado na índia, ou casar com Ber-
nardina. »
.4qui o pobre rapaz atirou-se de joelhos a chorar
aos pés do velho, e exclamou soluçando:
«Eéisso o que eu quero! . . . Juro-o por aquclla
arvore da bella cruz que alli está. . .»
«Vera cruz, salvage ! — vera cruz!» — inter-
rompeu o prior visivelmente abrandado com o pran-
to , humildade , e declaração cathegorica do moço
moleiro.
«Mas, como eu ia dizendo — proseguiu este, —
por'mor daquella diabrura das saccas meu pai não
pode tragar a senhora Perpetua Rosa. Se lhe fallas-
se em tal, fazia-me os ossos tão miúdos como a pi-
cadura da mó. Se a Bernardina tivesse dote, ainda
talvez elle consentisse. . . Mas sem isto ; bem lhe
sabe do génio. Se o padre prior podcsse adivinhar
o que me tenho ralado , havia de ler do de mim.
Não como , não durmo , ando doudo. Não basta a
massada que gramei. . . Ahn ! ahn ! ahn ! »
Chorava em berreiro : e o choro não o deixava
continuar. As lagrymas começaram tamheni a bai-
lar nos olhos do prior, que ficou por alguns momen-
tos pensativo.
« Levanta-lc, rapaz dos meus peccados : disse el-
le por fim, puxando pelo braço do moleiro. Vamos ;
o PANORAJ>IA.
389
confessa a verdade: estás arrependido do que fizeste?»
n Estou , sim senlior ! Ahn ! alm ! »
Nesta parte , apesar do cliúro e soluços , parcce-
me que o saloio mentia,
nfroraetles casar com líernardina , se teu pai
consentir?»
« Promctlo , sim senhor '. Ahn ! »
«Ora , pois , soccga , e não chores. Deixa o caso
por minha conta. Volte para casa, c não me torne
arondar pela beira do rio. Entende? — Olhe que'. . . »
O prior estendeu a bengala para o lado dos moi-
nhos que assobiavam lá no alto, e Manuel da Ven-
tosa voltou cabisbaixo , e a passos lentos pelo ca-
minho por onde viera. Sentia confusamente que se
approximava a crise mais temerosa da sua vida.
Então o padre prior assentou-se outra vez no
poial do cruzeiro, e rccahiu em profunda medita-
ção. Depois de um bom quarto d'hora, púz-se em
pé e encaminhou-se para o presbylerio. Tinha anoi-
tecido. De memoria d'homeus nunca ceara tão tarde I
E andando, o velho sacerdote repetia aqucllas pa-
lavras do livro de Job , onde , entre parenthesis ,
ha mais philosophia , que n'um aduar inteiro de
philosophos :
.Vurfi/s egrcssus sum de ulero matris meui , et nu-
dus revcrtar illuc (•).
O porque o dizia , bem o sabia elle ! Ceou sem
dar palavra: resou o breviário : deitou-se, e apagou
o candieiro. Contra o costume, Fr. Bernardo de
Brito e Fr. Diogo do Rosário ficaram aquelle serão
na estante. A ama sentiu-o assoar-se , tomar taba-
co, e escarrar até muito tarde. Cousa rara I — signa!
evidente de que tinha negocio de vulto , que lhe
embargava o dormir !
Peior foi pela manhaã. Apenas luziu o buraco o
padre prior saltou da cama; calçou os çapatos en-
graixados; vestiu a loba nova : pediu o chapéu de
três ventos, a bengala de castão de prata, e os ócu-
los fixos, que só punha em dias de missa cantada ,
e disse á ama que se aviasse com o almoço, por-
que linha de sahir cedo.
Em quanto a tia Jeroniraa para maior brevida-
de fazia umas papas de milho , o prior abriu um
contador enorme, destes que os nossos grandes ami-
gos inglezes nos vão agora levando em logar de vi-
nho do Porto , tirou para fora uma folha de papel
almasso , e bradou :
i< Jeronima ' oh Jeronima '. »
A velha chegou ao corredor da cosinha com o
abano na mão.
«Estão quasi feitas: — disse ella. Tenha paciên-
cia um instantinho.»
«Não é isso, mulher: — replicou o prior. — Ou-
Te cá : vai ao forro da escada e traz-me aquillo. »
nisso, eu lá ponho. Mas, com sua licença: —
donde veio maquia grossa? Hontem não houve ba-
plisado nem enterro. . . »
E a tia Jeronima estendia a mão esquerda cober-
ta com a ponta do avental , para não sujar a ma-
quia de que fallava ; e ao mesmo tempo volvia
olhos ávidos , ora para o bofete , ora para o prior.
«Qual carapuça! — replicou elle fazendo-se ver-
melho.— Sahe ; não entra. Faça o que lhe digo e
dê ao demo o que sabe.»
A ama empallideceu. As palavras sahe: não en-
tra eram de ruim agouro ; mas vendo já o padre
prior azedo , caliou-se e obedeceu.
Dalli a pniico o velho parocho começava a tirar
(•) Nu íahi lio ventre de mioba mãi, e nu voltarei pa-
ra alli. Job. cap. 1. ^il.
de um pé de meia — uma — duas — Ires peças de
ouro : foi tirando até setenta : restava apenas obra
de uma dúzia delias.
«Basta : — rosnou o prior. Pude occorrer uma
doença. Então , Jeronima , vem essas papas? ! »
E dizendo isto embrulhava muito bem as setenta
peças na fulha de papel que tinha sobre o bofete ,
e raeltia-as na algibeira da loba.
«Guarde isso, Jeronima: — disse elle á ama, que
entrava com as papas. E empurrou pela raeza fora
o exangue pé de meia. .\ ama, ao ver aquella hor-
rorosa sangria , esteve a ponto de largar a frigidei-
ra no chão , e de deixar o bom do padre sem al-
moço.
Quando voltou para a cosinha , ouvia-a o prior
soluçar.
« -Ywí/uí egressus sum de útero matris inca , et nu-
dus revcrtar illuc. »
Murmurando esta profunda sentença da Biblia ,
o reverendo parocho sabiu pela porta fora. A ama
vendo-o sahir andava como pasmada.
Nestas idas e voltas havia nascido o sol. O Bar-
tholomeu da Ventosa afanado com a sua lida , em
pé á porta de um dos moinhos , bracejava , ralha-
va , praguejava como um possesso. Os brutos dos
moços liuham-lhe quebrado já duas cordas ao cn-
querir as cargas de uma recua de machos pimpões
preza á argola do moinho.
De repente viu um castão de bengala sahir-lhc
por cima do hombro. Voltou-se : era o prior.
«Olé, vossenhoria por aqui a estas horas?'. Psio,
oh Zé Dorna, olha o raliixo daquelle macho! Gran-
de novidade, padre prior! — grande novidade! —
Raios te partam ! Que taTstá o filho do diabo?!»
Estas duas ultimas jaculatórias eram acompanha-
das de dois reverendissimos pontapés na barriga de
uma das cavalgaduras, que já eslava carregada, e
que parecia achar mais prudente deitar-se em quan-
to as outras se aviavam.
O moleiro dava assim a modo d'umas lembran-
ças de Napoleão dictando ao mesmo tempo a dois
secretários.
«Paliaste, Bartholomeu ! — replicou o prior —
Novidade , e grande ! Ha quarenta annos que sou
parocho desta freguezia, e é a primeira vez que tal
me succede. É negocio intrincado e quero ouvir o
leu conselho porque tens caixa para as cousas. Ra-
pazes — accrescenlou dirigindo-se aos moços do
moinho — safa daqui, que tenho que dizer ao pa-
trão em particular. »
« Rua ! — grilou o moleiro correndo com força
ambss as mãos pelo colete e pelos calções, de que
sahiu um nevoeiro de farinha. — Entre vossenho-
ria. »
O prior entrou , e foi assent.ir-se n'uma tripeça
que estava a um canto: Bartholomeu assenlou-se
sobre ura sacco de trigo defronte delle . Os dois ve-
lhos mediram-se com os olhos por momentos , co-
mo se cada um delles tentasse ler no roslo do ou-
tro os pensamentos que lhe vagavam na alma. A
primeira idéa que occorreu ao moleiro foi a d'algu-
ma festa que o parocho perleodia fazer , e para
que lhe vinha pedir dinheiro. Batia-lhe o coração
com violência , e já imaginava trinta mentiras para
evitar essa calamidade.
«Homem, — disse por Cm o prior — tenho em
minha mão uma somma avultada — mais de qui-
nhentos mil réis [o moleiro estendeu o pescoço] :
pertencem a um devoto , que os quer dar em dote
a uma rapariga pobre desta freguezia. Encarreguei-
390
O PANORAMA.
me do negocio, e deitei as minhas linhas para dar
no vinte. Mas temo não acertar, e venho l)ater
comtigo. És honrado, meu Bartholomeii , postoque
um tanto sovina — fallo-te com o coração nas mãos
— e )
«Isso c o que dizem porahi essas lingnas perver-
sas — interrompeu o moleiro fazcndo-se vermelho
de cólera ; — essas mandrionas de soalheiro , por-
que lhe não metto no handulho o meu remédio. Os
diahos me .... 1)
« Tá , lá
■acudiu o prior. — Ajustaremos con-
tas na desobriga. Vamos agora ao que serve. Sem
refolhos: a quem te parece que dêmos este dote?
Parafusa lá. »
O moleiro poz-se a scisraar, alevaulando os olhos
para o tecto, estendendo e revirando a mandibula
inferior, e batendo de quando em quando na lesta.
ISada. . . . a Genoveva daThcrczn não : «disse por
fim — lai mâi , lai filha. Aquella está arrumada.»
«Nem pensar nisso ébom: retrucou o prior. Li-
Icra nós domine. Anda , vê se atinas.»
«A Clara da fonte também não . .»
nUhm! — rosnou o clérigo, abanando a cabeça.
«A Catharina Carriça menos. Ileim?
«Tó carapuça! Ahi vai já I Fundia-me o dote
em menos d'umanno com tafularias tolas. Adiante.»
O leitor pôde prever que o Bartholomeu da Ven-
tosa e o seu parocho estavam no caso de duas li-
nhas paralellas, que prolongando-se indefinidamen-
te nunca podem cncontrar-se : o pensamento do
prior dirigia-se a Bernardina, e o moleiro já linha
aíTastado por Ires vezes do espirito essa lembrança
como uma idéa importuna.
Eu — disse este finalmente, coçando na cabeça
— linha cá uma idéa . . . mas não sei. . . Não digo
nada . . . Acabou-se. »
«Desembuxa lá, homem ! Foi para te ouvir que
■vim aqui. »
«Eiilão sempre lho direi. Minha sobrinha Joan-
na é ura anjo. Boa rapariga! — famosa rapariga I
ileu irmão Barnabé não pede esmola — é verdade;
mas anda atrapalhadote. O cazal dos caniços arra-
zou-o esteanno: — deve-me já vinte moedas, e »
O prior cortou-ihc o cnthusiasmo pelos seus pa-
rentes com uma gargalhada estrondosa. O moleiro
ficou de boca aberta no meio daquelle destampatório.
«Oh , oh , oh ! querias que o meu dote servisse
para pagar as tuas vinte moedas?! — Não é assim?»
E voltando immediatamcnte ao seu serio, prose-
guiu : «Bartholomeu! — Bartholomeu! Por causa da
iniquidade da sua avareza me irti , c o feri : diz o
prophcta. A cubica que te cega ha-de baldcar-te
no inferno, como tu baldèns alli para a ribanceira
as mós que já não prestam. Queres mentir á tua
consciência , enganar o teu pastor, qnando clle te
Yem pedir que o aconselhes? Isto não ó bonito ,
Bartholomeu ! — Não é bonito ! »
«Mas , padre prior ...-.»
«Qual mas, nem meio mas! Dcixemo-nos d'his-
torias. Bem diz o ditado: Fui a casa da visinha
envergonhei me ; vim á minha rcmcdiei-mc. O me-
lhor é seguir a primeira len)brança.»
«Então, se vossenhoria já tinha posto o dedo....»
Tinha, tinha! — retrucou o prior: — queria só
Ter se lu concordavas comigo; mas sacas-le com
uma caturrice de fazer arripiar. Não temos feito
nada , meu Bartholomeu : não temos feito nada !»
E dizendo e fazendo, o clérigo erguia-se como
para sahir.
«Pois diga vossenhoria — acudiu o moleiro ain-
da atrapalhado com orevcrtere : — e enforcado mor-
ra eu se ... »
Não praguejes homem ! — Ahi vai ! — Quem ha-
de apanhar o dote é a Bernardina d'ao pé do rio...»
A historia das saccas era espinha que ainda lhe
estava atravessada na garganta. Ouvindo tal nome,
o velho não pôde conler-sc :
«Quem? — a cara de fuinha da filha de Perpe-
tua U(]sa ? O padre prior está brincando. Olha as
lesmas ! Tmiis desmaseladas, e caloteiras ! Isso nas
unhas da mâi era fogo viste, linguiça. Terçaãs me
matem ...»
« Espera , homem , espera I — Não é isso o que
se diz na aldeia. Tu tensosga ás pobres mulheres e
cega-te a paixão. Desmaseladas?! Basta olhar pa-
ra ellas ; como andam limpas na sua miséria. Ca-
loteiras? coitadinhas! É porque não tem com que
pagar ao Agostinho da lenda? Pagar-lhe-hão agora.
Quinhentos mil réis ainda ficam livres , e Bernar-
dina ha-de com elles achar um bom casamento. »
Em quanto o prior fallava , uma idéa bemavcn-
lurada illiiminára subitamente a alma do moleiro.
As suas Ires saccas podiam não estar perdidas de
todo; podiam voltar melhoradas <no moinho. Sentiu
a cólera desvanecer-se-lhe como a nuvem negra
que varre a brisa do norte.
o È verdade que a gente ás vezes lera cá as suas
birras : — disse elle com certo ar que queria ser
fino e sabia parvo — cega-se com as pessoas! Vos-
senhoria bem sabe o que faz : dè o dote a quem
quizer, que diante de mim ninguém ha-de tugir
nem mugir contra vossenhoria.»
«Pois bem ! — proseguiu o prior. — Esta lebre
está corrida. Resta achar um noivo para Bernardi-
na. Isso é bico d'obra que requer escolha c siso.
Pensa no caso, Bartholomeu ' — vamos a ver se acer-
tas melhor desta vez. Agora outra cousa. Tu és ca-
paz : tens sabido guardar o teu dinheiro ; saberás
guardar o alheio. Eu para isso não i)resto : sou ura
mãos-rotas. Aqui te deixo setenta louras, que a
seu tempo se hão-de entregar a quem locarem. In-
cumbes-te disto?»
«Vossenhoria manda: respondeu o moleiro, cu-
jos olhos brilharam com o fulgor devorante da ava-
reza ao ver rolar as peças , que o prior tivera a
cautella de desembrulhar, sobre a grande arca das
maquias. O velho parocho usava d'uma giria de
satanaz para fazer uma obra de Deus."
E despedindo-se de Bartholomeu sahiu. O molei-
ro ficou em pé e immovel. Estava, mal compara-
do, como o asno de Buridau entre as duas medi-
das iguaes de cevada : nem se podia afastar do ou-
ro , nem ousava faltar á cortezia devida ao padre
prior. A final por um movimento sublime de ener-
gia moral correu pela porta fora atraz delle que já
ia a certa distancia. — Neste correr parecia-lhe sen-
tir estalar o que quer que era dentro do coração.
«Se vossenhoria é servido do nosso almoço —
bradava o mtileiro — não tarda ahi um credo. Po-
bre mas de boamente.»
« Obrigado ! obrigado ! — respondeu o prior sem se
voltar, brandindo para traz a bcngalla como quem
dizia adeus. E pensava lácomsigo : «Fora, miserá-
vel sovina ! »
Apenas o bom do clérigo dobrara a quina do mu-
ro de uma quinta que se dilatava desde a encosta
até a baixa do rio, Iruz ! . . . com quem havia d'el-
le dar de rosto? — Com o Manuel da Ventosa , de
espingarda ao hombro , rede ás costas , chumbeira
e polvarinho a tiracolo. O saloio Dcou embaçado.
o PANORAMA.
391
«Com qiic, sim senhor! Jávocò por aqui me np-
parccc a estas horas — disse o prior com um geslo
folgado que forcejava por ser colérico. — lloiín?"
«t verdade, padre prior] . . . Eatrcler ura boca-
do. .. . A manhaã estava boa.»
K Pois não ! — Aos pardács. . . bem sei ! Ora cor-
le-mc para casa, e vá ajudar seu pai — o pobre ve-
lho, que lá anda lidando . . . . e você feito caçador
das dnzias . . . caçador ! Pensava agora o sonso que
me eng.mava ! Vamos marchando I »
Deu alguns passos para diante em quanto o Ma-
nuel da Ventosa fazia o mesmo em sentido contra-
rio : — Depois vollou-se de repente : o saloio tam-
bém parara a olhar para traz.
«Olé. — Escuta cá, Manuel!» O Manuel appro-
ximou-sc.
«Depois d'amanhaã é necessário que você se bote
aos pés de seu pai , que lhe conte a boa obra que
fez, e que lhe peça licença para casar cora IJernar-
dina. ...»
«Pelo amor de Deus, padre prior ! — interrom-
peu o triste do rapaz cheio de susto. «Cora os liga-
dos delle põe-rae os ossos n'um feixe.»
«Não se perdia nada: acudiu o velho. 3ías não
é anno de fortuna. Era melhor que se tivesse lem-
brado a horas. Faça o que lho digo, que não lhe
ha-de succcder mal nenhum ! Uespundo por isso.
Está dito?»
« Se vossenhoria entende ?! >
«Entendo, sim senhor. A paschoa não tarda; e
passada a quaresma você ha-de receber-se. Mas
disto, nem palavra! — E corte!» —
O tora com que o parocho proferiu estas pala-
vras deu uma alma nova ao Manuel da Ventosa.
Imaginou logo que o padre prior tinha a|)lanado o
negocio. Xão sabia se risse ou chorasse. Inslincti-
vamenle agarrou a mão do clérigo e bcijou-a. A
sua gratidão era sincera. O padre prior sentia pal-
pitar esse vivo sentimento naquellas mãos callosas
que apertavam a sua mão enrugada , naquelles lá-
bios ardeiilcs que pareciam devora-la. Conheceu
que estava arriscado a dcslisar da habitual severi-
dade, e aflastando rapidamente, bradou comvozas-
pera , mas alguma cousa tremula : «Deixa-me, pa-
teta ! — Deixa-me! — e Deus te allumie para que
seja esta a ultima das tuas rapaziadas.»
Fez bera em a!ongar-se : — duas lagrymas lhe ro-
lavam pelas faces abaixo.
Naquelle dia a tia Jeronima chegou a desconfiar
de que o padre prior tinha a bola desarranjada.
Toda a manhaã não fez senão cantarolar ora um
pedaço do Tanlwn ergo, logo um trecho do Tc Dcum
Laudamus , e assim por diante. Até andou por mais
de meia hora a brincar com o gato do presbyterio.
E para resumir em poucas palavras a extravagân-
cia de que parecia possuido baste dizer queaodes-
calçar-se arrumou os çapalos para um canlo , e de-
pois de ter lido ura capitulo da chronica de Cister,
pela primeira vez da sua vida metteu na estante
essa espécie de Carlos-Magno monástico sem o pôr
de pernas ao ar. Aquelle coração sentia dilatar-se
na santa paz do Senhor.
E porque não cabia o bom do padre na pelle ?
Porque tinha feito felizes duas creaturinhas sacrifi-
cando-lhes as suas economias de quarenta annos. —
Elle achava isso uma cousa naturalissima ; mas a
Providencia dava-lhe uma parle da sua recompensa
nessa alegria suave e intima que nunca pude en-
trar nos palácios dos grandes c poderosos do mun-
do ; porque é o premio , não do beneficio insolente
da opulência , mas da abDegação caridosa da hu-
mildade.
O padre prior linha tido tempo de estudar indi-
vidualmente o caracter dos seus freguezcs , e por
isso seguira aqucUo caminho para chegar ao lim
moral que se prnpozcra. De feito o velho moleiro
andou abstracto todo o dia. Pois de noite? — Não
pregou olho! Ás escuras via diante dos olhos as
setenta peças a reluzirem como uma visão ao mes-
mo tempo celeste c infernal. Depois naquellas ho-
ras longas d'ii)somnia punha-se a calcular a acção
prodigiosa que ellas teriam encorporadas com mais
de outras tantas que elle tinha enterradas. Era o
que bastava para dar o harmonioso cpilheto de mi-
nha á azenha do Ignacio Codcço , e por lá o seu
Manuel a labutar, e a ganhar dinheiro — muito di-
nheiro— c elle a tomar-lhe contas ao sabba<lo : —
meia moeda — uma moeda.... duas moedas ; e a pi-
lha-lo cm uma gaziva de seis vinténs; e despertava
daquella espécie d'extasi ao atirar-lhe o [irimeiro
pontapé. Era um regalo! ília ás vezes ao lembrar-
se de uma que elle havia de pregar no outro dia
ao Agostinho da tenda. Essa estava segura, la-lhe
comprar o créto da Perpetua Rosa por metade ; por
um terço, talvez. — «Oh sô Agostinho, você não vê
que isso o dinheiro perdido? — Cinco mil réis I
seis mil réis! — Vamos; é minha a divida.» Etri-
pudiava na cama , e assentava-se lançando mão dos
calções, para ir, para correr, para voar antes que
algum dialio [pensava elle] fosse raettcr no bico ao
usurário do tendeiro a mudança de fortuna de Ber-
nardina. Chegava a enfiar os calções naquelle fer-
vor , mas recahia na cama ao ver , ou antes ao não
ver, que era escuro como breu. Momentos havia
em que as suas idéas tomavam outro curso : repre-
senlava-se-lhe seu irmão Darnabé a largar-lhe o ca-
sal dos Caniços pelas vinte moedas e por mais umas
trinta peças com que o engodava ; e elle a fazer es-
trumar as terras, ealqueivar, e lavrar, e semear, e
mondar, e ceifar e ter na eira uma serra de trigo
durazio , e achar uma excommungada d'uma velha
pediuchona a fiirtar-lhe á sorrelfa uma abada da-
quelle grande trigo , e elle a desanca-la com uma
tranca. E sabia desse pezadello de homem acorda-
do a ranger os dentes, e com a mão agarrada á
maçaneta do catre. Dahi a pouco vinha-lhe outra
enfiada de imaginações — e dahi outra — e outra ,
até que por fim a idéa de que as setenta peças eram
suas lhe ficava por tal modo encravada e enraizada
na alma , que o arrancar-lha de lá seria o mesmo
que metter-lhe no bucho uma apoplexia. Então pu-
nha-se a scismar no pensamento ca|iilal c gerador
de todas essas imagens bemavcnturadas que lhe lu-
ziam no olho: — o como chamaria á muxila as se-
tenta do dote. Abafa-las? Nega-las ao prior? Es-
tremeceu horrorisado ; porque Bartholomeu era ho-
mem de probidade — o seu modo, que, sem mali-
cia seja dito, vinha a ser ura modo como o de tan-
tos homens honrados que todos nós conhecemos.
Nada ! Era preciso um meio natural , decente , Ic-
gilimo de arranjar o negocio. Cahiu então no que
o prior queria que elle cahisse. — Casou in mente
o seu Manuel com a Bernardina. Feito isto, as pe-
ças eram suas — suas porque o Manuel pellava-se
de medo delle, e casado ou solteiro lhe havia de
ficar sempre debaixo dos cabeções. Assentado este
ponto , o moleiro sentia um certo refrigério interior
que o consolava. Não tardou a adormecer no som-
no do justo , e cm seus plácidos sonhos balouçou-
se todo o resto da noite entre a azenha do Ignacio
392
O PANORAMA.
Codeço e o casal de seu irmão Barnal)é. Saliia ás
vezes desta hesitação beatifica sonhando no gatazio
que ia pregar ao Agostinho, e ria com um rir de
innocencia. Era um santo velho aquelle Barlholo-
meu da Ventosa!
O leitor deve estar já sullicientemente aborreci-
do da tão comprida historia do moleiro , da lava-
veira e do prior ; por isso não o farei asislir ás ex-
plicações entre o pai e o filho, ftíais repousado o
sangue com o dormir , Bartholoraeu rellectiu pela
manhaã que o propor ao parocho o seu Manuel pa-
ra noivo de Uernardiua tinha suas parecenças com
o haver-lhe proposto para ser dotada sua sobrinha
Joanna , idéa maldita que lhe tinha custado uma
risada nas suas barbas e um rcvertere com texto
da Biblia. Por outra parle pensava que Manuel era
o seu único herdeiro, e que se Bernardina trazia
para a ceia, elle levaria para o jantar — princípio
consagrado pela philnsophia saloia , talvez desde o
tempo dos mouros, limfim o pai nestes vaivéns , e
o Olho com os receios que o leitor pôde imaginar ,
fizeram ao declararem-se uma verdadeira scena de
comedia. Ao cabo , porem , de tudo enlenderara-se.
Assim o padre prior , á custa das suas economias
de quarenta annos , leve a consolação de fazer três
sermões , um a Bartholomeu sobre a cubica e ava-
reza , outro ao Manuel sobre o trabalho , sobrieda-
de , c mais virtudes annexas á condição de pai de
familia , outro finalmente a Bernardina solire a ho-
nestidade , modéstia e sujeição das mulheres casa-
das. Depois, quando veio a paschoa regalou-se de
atar o laço matrimonial entre os dois amantes, aca-
bando por uma vez com as interpelações das lava-
deiras , com as espreitaduras dos curiosos , c com
as murmurações do beatério. Custou-lhe a brinca-
deira setenta peças, e o atirar á rua o sermão sobre
a avareza , porque o Bartholomeu continuou a ser
sovina até a hora da morte , na qual piamente se
deve crer o catrafillou o diabo, não só por ser unhas
de fome, mas por ter refinado a ponto, que perden-
do a vergonha já começava a sizar nas maquias ,
com escândalo dos freguezes, e grande mortilicação
do seu filiio Manuel.
Agora duas palavras sobre a festa do orago da
parochia , o meu rico S. Pantaleão. O leitor viu o
padre prior caminhando pela estrada dolorosa da
moral evangélica : c necessário que o veja lambem
radiante no meio das pompas do culto.
(Coyitiiiuar-se-haJ.
(A. Hercidano).
Vantagens da ração de grãos cosidos para o gado
cavallar.
O CAVALLO por sua natureza alimenta-se unicamen-
te de substancias herbáceas. Este sustento é quanto
lhe basta para as condições próprias de sua espécie,
c de seus hábitos nativos : mas o homem tirou aquelle
generoso animal do estado da natureza, e fazendo-o
servir a seus usos e necessidades, privou-o da liber-
dade e o submetteu a trabalhos penosos, c a seus
caprichos e passatempos. Com estas no\as exigên-
cias nasceram necessidades c precisões novas , e
aqnclla alimentação ligeira c fraca da substancia
herbácea não foi sullicicnle ; indispensável foi jun-
tar-lhc substancias de fécula , que cm menor por-
ção lhe dão maior vigor e mais avultado volume
de carnes : o Auctor da natureza , que tudo fez e
ordenou para o melhor commodo e serviço do ho-
mem , com admirável previsão o preparou para os
seus destinos futuros , provendo-o de dentes mola-
res, e aparelho digestivo asado a mais forte alimen-
tação.
Avèa e cevada são os grãos quasi universalmente
consignados com preferencia a outros para ração
das bestas cavallares. Este uso é bem antigo , por-
que os heroes d'Iiomero davam já a seus cavallos
avca pura, e fi'no sccco : entretanto ainda nisto ha
muito que modificar; as circumslancias diversas da
agricultura actual , os ensaios e experiências mo-
dernas podem rectificar e amoldar a precisões e
misteres d'agorauma boa parte da pratica antiga.
Em muitas partes os grãos são caros , é preciso
encurtar a ração deste género, substituindo-a com
equivalentes. Os francezes da Normandia principal-
mente , que são grandes creadores de cavallos , em
logar de uma parte da ração d'avèa e do uso or-
dinário do feno, dão áquelles animaes uma ração de
batatas cosidas. O bom resultado desta substitui-
ção faz lembrar que de outros muitos fructos e raí-
zes, que abundam em algumas localidades, se pode-
ria tirar iguacs vantagens. O uso contínuo, e nun-
ca variado na quasi totalidade do anno entre nós,
de alimentar as bestas cavallares com grão sècco e
crú e com palha de trigo, r.ão pôde ser senão acom-
panhado de graves inconvenientes: n'um paiz quen-
te , como é o nosso , este alimento contínuo e inva-
riável não pôde deixar d'escandecer os animaes ,
produzir tenesmos e infianimações , alem do fastio
que esta monotonia [para assim nos explicarmos]
deve causar.
(Conliimar-se-ha).
Industria de uma avesinha. — O papa-formigas é
um passarinho insectivoro, do tamanho e do géne-
ro do cartaxo : busca o sustento por variados mo-
dos , seguindo o inslincfo que lhe deu o Creador ,
como aos demais viventes ; mas é sobre ludo digno
de observação o meio engenhoso de que se serve ,
quando descobre algum formigueiro , para colher
as moradoras delle , que são os insectos de que
mais especialmente é goloso. Põe-se na entrada do
formigueiro de modo que a tapa inteiramente com
o corpo , e as formigas alvoraçadas para sahir aco-
dem de rondão á porta e enibaraçam-se por entre
as pennas da ave : — esta então toma o võo, e vai lar-
gar n'um terreirinho ou espaço de chão calcado,
sacudindo com força as azas, todo o provimen-
to de que se carregou : ahi está a sua meza posta ,
ahi se regala á vontade com o producto da singu-
lar caçada : causa gosto observar a ligeireza com
que voltando-se para quantos lados as formigas des-
filam para escapar consome o banquete em poucos
minutos. — Pela lei das compensações lambera o
papa-formigas é comido pelos caçadores.
Fonte medicinal. — Em Alverca , que dista pou-
co desta capital , ha uma fonte do mesmo nome da
villa e próxima desta, que por uma grande bica
mana copiosamente: das suas aguas allirma cm seu
J)icc. o P.'' tlardoso , fundando-se no testemunho
dos moradores , serem excellentes contra o mal de
pedra. Este penoso achaque é tãocommum em Lis-
boa que os enfermos, que tiverem recursos, devem
cxpeiimentar as ditas aguas.
103
o PANORA3IA.
393
iifiiiii^iiir
g&ão-mestBlE de mai,ta.
CAVAILEIRO T£niFI.ABIO.
>'o AN.xo de 1099 Gerardo de Marligues, primeiro
reitor d'ura hospital, fundado anãos antes em Jeru-
salém, vendo enriquecida a casa, que dirigia, com
as liberalidades de Godofredo de Bullion , genera-
líssimo do exercito dos cruzados , e de outros se-
nhores que de seu principe tomaram exemplo, se-
parou-se dos religiosos de St.^ Maria-Latina , de
que era dependente , para formar Ordem separada ,
sob o nome de «irmãos do hospital de S. João de
Jerusalém.» Seu successor , Rajmundo Dupuy, co-
nhecendo o quanto as rendas do hospital excediam
muito ao gasto cora os enfermos e orphãos , conce-
beu a idéa de empregar as sobras em guerrear os
inOeis. A este intento dividiu os seus hospitaleiros
em três classes : os nobres , que destinou á guerra
e a proteger os peregrinos ; os sacerdotes , que en-
carregou dos officios divinos: e os irmãos serventes,
que não eram nobres, e só se ajuntavam aos caval-
leiros como auxiliares. — Depois de perdida para o
domínio christão a cidade santa recolheram-se a S.
João d'.\cre, que valentemente defenderam até 1:230.
Dahi sahiram para se estabelecerem na ilha deP.ho-
des, onde largo tempo se mantiveram contra os com-
mettimcntos dos oltomanos , até que a tomou Soli-
mão, á frente de numerosas tropas, contra as quaes
resistiram os cavalleiros por espaço de seis mezes.
Vencidos, algum tempo andaram errantes cm quan-
to lhes não concedeu Carlos o." a ilha de Malta ,
da qual a Ordem tomou nome : e finalmente desta
mesma foram expulsos no fim do século passado.
Dezembro 16 — 1843.
A historia e prerogativas desta Ordem nobre e va-
lorosa, em que brilharam tão insignes cavalleiros e
dignatariús porluguezes , eslá derramada por toda a
collecção de n.°* donosso Jornal ; (•) o que nos dis-
pensa de a particularísar a propósito da precedente
estampa.
Nove fidalgos dos que acompanharam Godofredo
á conquista da Terra Santa , chamaram a si grande
numero de guerreiros de generosa origem , e alça-
ram a milícia, que por façanhns heróicas e estupen-
das , por inteiro sacrificio ao resgate e á conserva-
ção do St.° Sepulchro, adquiriu nome, que não ha-
de morrer, a despeito de perseguições e de algumas
verdades duras intermeadas com multidão de ca-
lumnias. Foi esta a famosa Ordem do Templo , ou
dos templários , cognominados também soldadiis de
Christo ; approvada no concilio de Troves em 1128.
Esta Ordem chegou atai auge de esplendor e pros-
peridade , derramada pelos Estados calholicos , que
excitou invejas, malevoleneias, e deu incentivos ao
temor e á cubica , que não descançaram em quanto
a não destruíram.
Pelos annos de 1147 , fins do reinado de Luiz o
gordo , os templários fundaram um estabelecimento
em Paris na casa, que em 1793 serviu de cárcere
ao desditoso Luiz 16.°: era alli que os cavalleiros
de França e d'lnglaterra faziam capítulo. — Estava
dividida a Ordem em muitos priorados, que depen-
''•'I Especialmente a paa-. 26 do toI. 3."
2.' Serie. — Vol. II.
394
O PANORAMA.
diatn das commcndas , c todos reconheciam a au-
ctoridade do Grão-ileslre.
O poder, que a esta corporação religiosa e junta-
mente militar davam a sua riqueza e o acreditado
valor de seus cavaliciros , a fazia independente do
Estado. Não reconhecendo outra aucloridade senão
a Santa Sé, não tomaia partido pelos reis de Fran-
ça nas dissensões destes com os papas : intervinha
a miúdo nas guerras religiosas; e não é para ad-
mirar que se tomasse pretexto de algumas desor-
dens particulares para involver toda aOrdemn'uma
proscripção geral.
Em 1307, cpocha do mor esplendor dos templá-
rios , a fazenda publica de França estava Ião es-
liausta queFilippe o formoso se linha soccorrido ao
desastroso recurso de alterar o valor da moeda ; e
tendo-o obrigado os Estados-gcraes a pronictler que
<T tornaria apor no mesmo valor corrente no reinado
de Luiz 9.°, teve que faltar á real palavra e fazer
novas alterações. Sublevaram-so então diflerenlcs
provincias , entre ellas a Normandia. Estreitado o
monarcha pela extrema penúria da Fazenda, e pre-
cisado a revogar seus decretos lançou primeiramen-
te mão do espolio dos judeus , e apoz lho lembra-
ram as riquezas dos cavalleiros do Templo. Já ti-
nha receios do poderio destes , que pela sua parte
tiveram o desacordo de seguir as pertcnções da ca-
sa de Aragão, e até de concorrer para o triunipho
que cila obteve sobre a casa de Anjou. Daqui pro-
cedeu a prisão do Grão-Mestre e de muitos caval-
leiros, cffectuada em Paris aos 12 de outubro de
1307: occupou-lhes o rei o palácio, sequestraram-
Ihcs os bens, e igual procedimento houve cno mes-
mo dia em todas ascommendas de França. = O po-
vo submisso inteiramente nesses tempos ao appara-
to religioso , não levaria a bem similhante provi-
dencia , se procurassem justilica-la só pela lasão
trEslado: a pmpria nobreza estava inclinada a de-
fender os cavalleiros templários, em que entravam
muitos dos seus: — o rei [cousa até alli não vista]
convocou o povo de Paris para manifestar-lhe os
motivos que o levavam áquelle proceder, e allegou
que a corporação eslava gravemente accusaila de
crimes hediondos de heresia e sacrilégio. É de sa-
ber que o povo soffria vexações e insolências, que
muitos dos templários lhe faziam era seus domí-
nios. Allegada causa tão poderosa , e junta ao ódio
dos populares, o effeilo contra a Ordem estava pre-
visto , c não ha que admirar dos resultados.
Nomeou o rei inquiridores para formar processo
por lodo o reino aos cavalleiros do Templo , mas
sem consultar a cúria romana, que se não demorou
em suspender os i)odères dos bispos e inquisidores.
]\las a firmeza de Filippe obrigou o |ia[ia , a quem
linha prezo [para assim dizer] em Poiliers, a desis-
tir de sua opposição. Desde então foi perseguida a
Ordem do Templo cm Ioda a christandade. Ainda
íizeram mais, extorquiram ao puntiíice anctorisação
para pòr a tratos os templários . alim de lhes ar-
rancar confissões , que impossibilitassem a sua jus-
tificação no processo. Muitos cavalleiros expiraram
nos tormentos , e muitos os supporlaram com ex-
traordinária constância : os que chegavam a confes-
sar na violência dos tratos o que lhe diclavam seus
verilugos, logo se retractavam com vehemencia e
propósito firmo. Tinham já perecido muitos caval-
leiros nas chammas; o grão-mestrc finava-se n'um
calabouço, por estar commeltiilo o seu julgamento
ao Saiito-[)adre , que é verdade o reclamava, mas
que a final cansado de contestações cora o rei deu
commissão ao bispo d'Alha e a dois cardeaes , os
quaes senlencearam o grão-mestre Jacob Molay e
mais Ires cavalleiros a prisão perpetua. Porem Mo-
lay havia-se retractado das confissões que fizera nos
tratos ; c por isso o rei Filippe convocou seu con-
selho , e sem reformar a sentença dos comraissarios
do ponlifice , condemnou de seu motu próprio a se-
rem queimados o grão-mestre e outro cavalleiro que
na retraclação oimitára. Ambos foram levados á fo-
gueira , a qual foi ateada a pouco e pouco , para
que abrasados a fogo lento tivessem tempo de im-
plorar perdão confessando-se culpados: todavia não
desmentiram umapice de sua constância, e já quan-
do os seus corpos semi-queimados moviam lastima
e horror protestavam assim mesmo sua innocencia
e a de toda a Ordem. — Houve quem lhes guardas-
se as cinzas como relíquias de marlyrcs.
Muitos historiadores referem que o grão-mestre
antes d'ex[iirar bradou: — «Clemente, juiz iniquo
e cruel , emprazo-te para compareceres dentro era
quarenta dias ante o tribunal de Deus.» — Eaccres-
ceulam que pela mesma maneira emprazára o rei
denlro do termo de um anno. Com efleilo o papa
Clemente 5.°, e o rei Filippe o formoso morreram ,
um findo o mez, outro findo o anno, immediatos ao
supplicio dos templários.
Jacques de Molay e o commendador de Norman-
dia foram queimados vivos u'uma ilhota do Sena,
junto ao silio onde hoje está a estatua de Henrique
í." á Ponte-nova, aos 18 de março de 1314: o pa-
pa Clemente 5.° morreu em abril do mesmo anno:
o rei Filippe 4.° morreu em Fonlainebleu do resul-
tado de uma queda que deu andando á caca , aos
29 denovembro lambem do sobredito anno de 1314.
Para completar esla rara e misteriosa historia ajun-
taremos que Enguerrand de Marigny , ministro de
Filippe, e um dos mais encarniçados inimigos dos
templários, foi accusado de feitiçaria, condemnado
e justiçado na forca dcMonlfaucon que elle próprio
havia mandado levantar, padecendo assim o suppli-
cio de Aman, implacável inimigo de Mardocheo e
dos israelitas, como nas Santas Escripturas , em o
livro d'Eslher, se refere.
ApONTAJIE.NTOS PAKA a niSTOIlIA DOS BE.NS DA COBÓA
E DOS FORIES.
IV.
OiANDO se trata da classe popular no nosso paiz ne-
idiuns documenlos por cerlo ofiereccm interesse
igual ao dessas cartas de communs , que organisan-
do-a lhe davam uma existência politica; — que na
realidade a convertiam n'um elemento social. Lá
está a origem da energia sempre crescente do ter-
ceiro estado : lá foi lançada á terra a semcnlinha
impalpável , que nascendo e vegetando no meio das
procellas humanas, das transformações da nação,
produziu no fim de seis séculos a arvore robusta da
liberdade. Os pergaminhos, tostados pelo tempo, nos
quaes foram escriplos n'uma linguagem sempre bar-
bara , c ás vezes inintelligivel , os foros do homem
de trabalho , são um dos mais santos monumentos
da palria ; são os nossos brazões — de nós filhos do
povo — são os nossos livros de linhagens. Poderosos
e nobres hoje , porque hoje o trabalho é — deve-o
ser pelo menos — a primeira nobreza, cumpre-nos
estuda-los com sincera vontade. Alais de um titulo
de direitos perdidos , mais de nnia prova da justi-
ça com que revindicámos outros, ahi os havemos de
o PANORAMA.
39'
encontrar; e sobretudo achar as dividas politicas
que nossos avós conlrahiram , c as injurias que re-
ceberam ; — as [jrinieiras para aspagarnios poiíUiai-
menU- , porque as gerações populares formam um
inríividiu) só, solidário comsigo mesmo na succcs-
são dos tempos; as segundas — para as vingarmos?
— Não ; porque o povo é forlc , c o forte deve ser
generoso; mas para justificarmos as nossas obras ,
mal interpretadas ;is vezes |)ela cegueira de hones-
ta ignorância , outras vezes pelas preoceuparões vo-
luntárias de um egoisnio interessado.
O estudo da indolc dos concelhos na sua infân-
cia e juventude, iilil c moral á luz que aponl.imos,
é afora isso innocente. As suas resistências, as suas
luetas , a arção politica exercitada por elles — tu-
do isso é cousa morta ; é historia. Como os mostei-
ros— que foram por muito tempo [permitla-se-nos
a expressão] os mnnicipios da sociedade intellectual
— o grande instrumento do progresso e da ordem
no mundo das idéas — assim o antigo concilium de
nossos avós passou ; porque , bem como os mostei-
ros , deixou de ler um valor social, lintre a natu-
reza do concelho moderno, limitado na sua curta
acção administrativa , e a dos municipios fundados
nos primeiros tempos da monarchia , as relações
que existem pouco alem passara da identidade do
nome. Crisálida da liberdade, ella os despedaçou
ao voar, cheia de vida e rica de esperanças, pela
face da terra. Os foros do homem livre , que ou-
lr'ora tinham uma existência de privilegio — a exis-
tência municipal — cujo caracter era a exclusão,
o ciúme, e a guerra , não só contra as altas classes
que podiam quebrar aquelles foros e annullar esta
existência , mas contra as outras aggregaçues poli-
ticas análogas, tudo isso se converteu de privile-
gio cm direito , de vida politica local em liijordade
geral, de conQicto de interesses municipaes em uni-
dade e harmonia de interesses communs. Depois
dessa transformação, o concelho, como a idade me-
dia o concebera e creára , seria uma monstruosida-
de impossível , e aquelles que imaginassem resti-
tuir-lhe asattribuições, ou ainda uma pequena par-
te da importância que outr'ora teve, deveriam, pa-
ra serem lógicos e dar-lhe uma significação , resta-
belecerem as formulas feudaes ou barbaras que pe-
la sua juxla-posição lhe traziam cór, vida , relevo,
e valor social.
A"iraos a sociedade portugueza , desenvolvendo-se
logo na sua origem, fora das condições communs
das outras sociedades nos séculos 12.° e 13.°: vi-
mo-la fugir nas relações mutuas das diversas clas-
ses , e principalmente nas destas com orei, das
normas feudaes. Qual foi a causa deste phenome-
no? A mesma que produziu uma situação análoga
era Leão e Casíeila. Desenvolve-la e demonstra-la
não cabe aqui : pertence a um trabalho mais vasto.
Basta que digamos, que essa causa foi a tradição
visigolhica nunca apagada na Hespauha , e que es-
ta tradição não era feudal : porque a invasão dos
árabes no principio do 8.° século não deu tempo a
que o systema beneficiário se transformasse em feu-
dalismo na Península , como se transformou no res-
to da Europa romano-germanica. Nisto exclusiva-
mente esta o motivo do excepcional que ofierece a
Índole da primitiva sociedade portugueza.
5Ias ficou a Hespanha central c occídental, o so-
bretudo aquella porção de território que nos res-
peita em particular , exempta das infiucncias da
fendalidade? Não por certo: não era possível. As
relações com as populações dos estados dalém dos
Pyrcncus tinham pouco a pouco crescido na monar-
chia Iconeza : no tempo deAffonso (i.° os laços mú-
tuos das duas sociedades hcspanhiila c franciza apcr-
laram-se muito mais. J£ste celebre príncipe vivia
rodeado de cavallciros ullramonlanos : os bispados
e cabidos d'llespanha enchoram-se d'homens de
raça gallo-franra ou educados naqucUas parles. lia
até fundamenlos para crer que algum dos dialectos
da França meridional chegou a ser a língua faltada
na corte de Tidedo. Cluni cnviou-nos os seus mon-
ges , c introduziu entre nós as idcas d'independcn-
cia absoluta do clero , e , o que mais c , teve força
para alterar as formulas do culto com a mudança
do rito godo. Os territórios dados a governar ao
conde Henrique não foram os mais mal-quinhoados
nesta espécie d'invasâo: todos sabem que o próprio
conde era daqucllas partes , e que muitos seus na-
turaes o seguiram aqui. No reinado de seu filho a
infiucncia gallo-franca c quasi a mesma , e accres-
centam-se-lhc as infiucncias de outros povos do nor-
te. Os cruzados , que . tocando nos nossos portos ao
seguirem para a Palestina, o ajudaram, e a D.San-
cho 1.° a conquistar as grandes povoações dos ára-
bes, cá nos deixavam por via de regra cavallciros
niitaveis , clérigos , e até colónias dos povos d'aleni
dos Pyrenéus. Todos estes elementos nos traziam
sementes de feudalismo, e o terreno eslava prepa-
rado , até certo ponto , para o receber ; porque das
causas que o tinham feito nascer e consolidar-se
muitas existiam entre nós. Assim a feudalidade,
sem poder penetrar no cerne da arvore social, der-
ramou-se , todavia, pelo alburno. A ídéa dos feu-
dos generalísou-sc na Galiza e em Portugal , como
hoje vemos generalisarem-se entre nós idéas pere-
grinas , em politica , em administração , em littera-
lura, de um modo nebuloso e confuso. Não faltam
provas de se dar o titulo de feudo até a simples
concessões vitalícias do uso-fructo de certas pro-
priedades : e se nos deixarmos levar pelo soido de
muitas formulas, phrases . e palavras dos antigos
monumentos, e ainda por alguns costumes locaes ,
c instituições secundarias, nesses obscuros tempos
a nação tomará muitas vezes a nossos olhos o aspe-
cto de uma sociedade feudal.
Se o feudalismo não fosse , pezados os seus bens
e os seus males , uma conveniência , ou antes nma
necessidade , ao menos para as classes mais fortes
e poderosas , os elementos de destruição que elle
continha em si próprio não o teriam deixado vin-
gar , ou té-lo-hiam dissolvido rapidamente. Assim
a nossa fidalguia, que lhe palpava as vantagens, ac-
ceitou-o por ura lado, ao passo que se atinha por
outro ás tradições nacionaes. Tudo o que no feuda-
lismo lhe podia ser utíl em relação ás classes infe-
riores buscou enxerta-lo na arvore visigothica ; tu-
do o que a podia constranger , ou entre si ou em
relação ao poder supremo , regeitou-o abraçando-se
aos foros antigos. Sem idéas fixas o definidas a si-
milhante respeito, o tacto da própria utilidade a
guiava para acolher ou repellír as instituições feu-
daes. Tal nos parece a luz a que de\emos ver o
primeiro período da nossa historia: com ella achá-
mos um fio no meio do labyrintho de direitos e de-
veres recíprocos e de condições diversas de pro-
priedade , que se podem deduzir dos documentos :
esses direitos, deveres, e condições nutam entre os
costumes domésticos e os usos peregrinos, — a in-
novação triumpha quasi sempre da tradição em tu-
do o que, por assim dizer, não muda a essência
do corpo politico. Os elementos que devem Irans-
396
O PANORAMA.
formar essa essência são a jurisprudência canóni-
ca , e a jurisprudência romaua : a primeira , puslo-
que já enérgica, limita quasi unicamente a sua ac-
çiio a fortificar o clero : a segunda, que bade vir a
ser a panóplia da monarchia , encobre-se ainda de-
baixo do manto negro desses personagens grave-
mente sinistros, que ousam assenlar-se na cúria do
rei junto dos seus ricos-homens , e que ás vezes
nos appareccm nos monumentos daquella epocha
com o titulo de mestres dns leis.
Guiados por estas doutrinas é que nós vamos con-
siderar a existência interna dos concellios , não tan-
to nas suas particularidades accideutacs , ou na va-
riedade dos seus tributos e privilégios [que muitas
vezes não passam de uma differença de nomes da-
dos á mesma cousa] , como nos seus elementos es-
scnciaes, e nos seus caracteres genéricos. A estrei-
teza do nosso quadro nos não pcrmitte entrar nes-
sas indagações de ordem inferior , as quaes , de
passagem seja dito , apesar do que sobre cilas se
tem dissertado , ainda offerecem um vasto campo a
novos e mais exactos trabalhos.
Na instituição dos concelhos portuguezes da pri-
meira epocha da nossa historia ha duis factos capi-
tães que caracterisara a individualidade municipal,
e a distinguem da communa dos paizes centraes da
Europa. O primeiro facto é que o concelho na sua
organisação interior era de certo modo o transum-
plo da sociedade , em que elle representava uma
unidade moral : o segundo facto c que essa organi-
sação era a alguns respeitos essencialmente feudal.
Nestes dois factos combinados se resume o aspe-
cto do antigo munici|)io portuguez : por elles se ex-
plica asna economia interna e assoas relações com
o rei e com os outros corpos do estado.
No commum dos foraes achámos consignada a
existência de três classes disliuclas — os cavalleiros
(milites, cabalarii), os clérigos (clcrici), e os peões
(pcdones) : ahi encontramos também os privilégios
e encargos de cada uma delias estabelecidos sepa-
radamente. Em relação d'umas ás outras estas três
classes representam os mesmos três graus em que
se divide a sociedade geral. L'ma denominação com-
mum as une , porem , e nivclla : uma palavra re-
corda a essas ties jerarchias que á face da nobreza
e do alto-clero ellas são uma só. — llllães (villanij
c nome escripto indislinctamei:tc nas frontes de to-
da essa plebe. Deljalde o poder real dá ao cavallei-
ro villão o foro judicial dos infanções , c o titulo de
Honras ás suas proiiricdades : a nobreza de sangue
olha sempre com altivo sobrecenho para aqucUes que
o rei pôde fazer iguaes delia perante os magistrados,
e cujas herdades pôde honrar por cartas de foro,
mas a quem não pôde dar um nome illuslre nem a
verdadeira fidalguia. Vejamos agora quaes eram os
privilégios e encargos que distinguiam dos outros
villões estes cavalleiros plebeus.
Os privilégios principaes de miUs villanns , alem
do que já lembrámos de gosar de formulas espe-
ciaes no processo , consistiam principalmente nos
seguintes: 1." na excmpção das jogadas , tributo
que se pôde considerar como o principal do paiz ,
e que imposto immcdialamente na terra , era regu-
lado pela extensão da lavoura de cada proprietário,
tomando-se por base jiara essa contribuição enume-
ro de jugos de bois que cada um possuía : 2." em
não serem obrigados a dar hospedagem aos caval-
leiros nobres, ulliciaes do rei, &c. , que passavam
pelo concelho, o que era um dos gravames mais
duros nesses tempos de rapina o d'insoleneia : 3.° o
receberem parte das multas criminaes nos casos em
que os culpados eram mancebos , ou raalados das
suas aldeias , granjas , ou quinlaãs ; e sobretudo o
não poder o processo contra estes progredir depois
da citação, em quanto o cavalleiro villão, estando
ausente, não voltasse ao concelho : 4.° na liberdade
de irem servir como homens d'armas os senhores e
nobres , sem que perdessem por isso os seus privi-
légios municipaes : 5." o pertencerem-lhes por via
de regra os montados ou os direitos delles , nos
concellios onde estes não eram livres: 6.° na excm-
pção de alguns direitos de portagem : 7.° em não
serem tomados para o fisco os bens daquelles que
morriam sem filhos , pagando apenas uma certa
somnia , a que se chamava nticio ou núncio, e fi-
cando exemplos do maninbadego , que só rccahia
sobre os bens dos peões. Cumpre todavia advertir
que tanto um como outro direito são abolidos em
bum numero de foraes.
As prerogativas do clero inferior, isto é dos clé-
rigos que visinhavara nos concelhos, e que por is-
so ficavam virtualmente contidos no grémio dos vil-
lões, commummente são apenas indicadas nas car-
tas de foral pelas palavras us clcriyus lenham o cos-
tume dos cavalleiros. Esta simples determinação, que
ainda assim parece ler esquecido em muitos foraes,
indica ser essa classe pouco importante nos conce-
lhos , provavelmente porque a maior parte daquel-
les que por mil modos se aggregavam ao corpo ec-
clesiaslico , bastando ás vezes para isso a tonsura
ou outro sigual exterior, buscassem viver á sombra
do alto clero, e evitassem o aggrcgar-se aos conce-
lhos onde não podiam encontrar tão perfeita segu-
rança e protecção.
Em que consistiam, porém, as vantagens dos
peões? Quem olhar só para as cartas de foral cre-
rá que estas não eram numerosas nem importantes:
mas quem se lembrar da prepotência e bruteza dos
poderosos; quem comparar a sorte dos moradores
dos coutos , das honras , e de quaesquer outros lo-
gares não constituídos em municípios com a dos
membros destes ; quem finalmente ponderar que os
fragmentos de feudalismo que penetravam no paiz
traziam os males e opprcssõcsdaqucUe systema sem
trazer os seus benelicios— conhecerá que os peões
dos concelhos eram grandemente favorecidos por
estas cartas de commum , apesar de que eilas não
contivessem metade das garantias de que hoje goza
qualquer cidadão ainda sob um governo absoluto.
i\'uma cfiocha em que a punição dos homicídios se
deixava legalmente á vindicta da família do morto,
em que contra as violências feitas ao fraco pelo for-
te a auctoridade publica não punha outra barrei-
ra senão o muitas vezes impossível direito de re-
sistência (1), — em que, na distribuição das terras
(1) Os nossos escriplores citara frequenlemenle as leis lias
eras barliaras para pruvar a exlslencia das in^lillli(;òes ou
costumes que ncJias se estabelecem. Parece-nus islo o lueío
mais seíiiro de transluriiai' a hisloria. Quando uma lei pro-
hiljiii tal o» lai cousa , creou la! ou laldireilo , o que simi-
llianle lei púdo provar é a exisleucía do faclo uu do dí-
reilo contrario, pelo menos alé a sua promuliraçào ; e se
d'ahi a pouco a vemos repetir com a sancção de novas pe-
nas e ameaças, que devemos concluir disso, senão que essa
lei foi leira niorla , e que os cosluines ou os factos prevale-
ceram conlra as doutrinas c as iiuiovações ? E' jior isso que
a lodo o inslanic encoulrâmos eilaçòes trazidas para abona-
rem cxadamenlc o conlrarl» do (pie ellas cm verdade lios
revelam. Por duas leis [5 e 6 do Liv. das Leis e Post. Anl.j
D. Allun-o 2.° proliihiu que por ódios o» vinsaiiças se ar-
roíiibiísseui as casas de fidalgos ou TÍllões ou que se dcrii-
o PANORAaiA.
397
dos poderosos, aos que as culli^avam se impunham
quantos encargos a ardente imaginarão da cubica
podia inventar i-l) ; u'uma tal epoclia , dizemos,
as instituições dos foracs relativas aos peões eram
verdadeiros privilégios em relação aos luiliitantcs
das terras não-niunicipacs. Da união dos moradores
nascia a possibilidade da resistência, e o foral con-
sagrava Cita na sua maior extensão. Se um nobre ,
por exemplo, saliindo da sua honra vinha commet-
tcr a casa do villão para lha roubar ou raptar-lhe
violentamente a mulher ou a íilha, o aggredido po-
dia mata-lo , e apenas pagava por isso ao lisco (ad
palacium) uma coima assaz módica, e ás vezes ne-
nhuma, ficando até privada do direito de homicídio
a familia do morto (3j. Por outra parle os direitos
de jugada e as portagens eram commummente os
únicos impostos importantes, os quaes substituíam
esses centeuares de alcav alias que pesavam sobre
os foreiros particulares ou da coroa nos allodios ,
reguengos , coutos ou honras ; e ao passo que pelos
contractos especiaes com os grandes proprietários
ou donatários de terras uão-municipaes os lavrado-
res se arriscavam por qualquer falta a perder a her-
dade, pela transmissão do foral se assegurava a per-
petuidade da posse aos agricultores dos concelhos ,
podendo-se considerar , para nos servirmos de uma
distincção dos juristas, os direitos senhoriaes ou
antes reaes, mais como um censo do que como um
foro. Ajunte-se a isto o privilegio de que gozavam
os peões de serem julgados em primeira instancia
pelos alvazis ou juizes electivos do concelho , ao
mesmo tempo que nas terras particulares estavam
entregues ao juiz do senhor, econhecer-se-ha quão
vantajosa era a situação do povo nos logares que
obtinham a organisação municipal.
Considerados os privilégios das três classes d'in-
dividuos de um concelho nos seus lineamentos prin-
cipacs , e despresadas as circumslancias de menos
monta vemos claramente estabelecida a analogia en-
tre a sociedade geral e estas pequenas sociedades
embebidas, por assim dizer, nella. No caracter de
perpetuidade que toma pela carta de foral a doa-
ção das terras aos villões, caracter contrario ao dos
prestamos muitas vezes vitalícios, ou beneficiários,
e sempre revogáveis , nos apparece já o elemento
feudal actuando na organisação dos municípios. As
obrigações das três classes de membros nos conce-
lhos nos revelará melhor a acção desse mesmo ele-
mento.
Dissemos que as herdades dos cavalleiros villões
eram exemptas de jugada ou ração; prí\ilegio im-
portante que os aliviava do tributo capital do paiz.
E isto era justo ; porque em logar delle se lhe pe-
dia o tributo mais pezado que uma nação pôde pe-
dir aos seus membros — o tributo de sangue. O fos-
sado ou serviço militar era iim dever : a falta do
tjassem , c que se cortassoni ou (pteiuiasÁeiíi vinhas ou arvo-
res allieias , e SC ileslruissem oiilras /mssissSts , isto i|uau-
do o ofTenilido vis.se que o seu ininiigu eslava promplo a dar-
llie satisfação juiliciainiente. Eslas leis foram renovadas por
D. AlTiinso 3.° [Ibid. Leis 25 e 60]. Que se deve daqui
concluir senào que o paiz era «m vasto Iheatro de vinsan-
ças pessoaes , nutrtes e estragos? As leis de D. AíTonso 2.°
nao tiveram efleito, nem provavelmente as de D. Aflbnso 3.°
como no-lo nioslrani as guerras civis dos primeiros aunos do
reinado de D. I>iniz.
(2) Yeja-se o A|ipendice Diplom. — Hist. doTiat. Em-
phyt. dAlmeida e Sousa. Osdocumenlos uhi apontados fo-
ram colligidos i)or J. P. Ribeiro.
(3) Esla exuberância do direito de resistência aclia-se
principalmente no foral d'Evora e nos mais que tiveram por
modelo o d'Avi]a.
seu cumprimento trazia uma pena pecuniária — n
fdssadiiia , que alguns entenderam ser uma substi-
tuição cm dinheiro do serviço pessoal, mas que era
uma verdadeira multa. Se o ravalleiro perdia o ca-
vallo c não comprava outro dentro de umcerto pra-
zo , descia da classe de milcs para a de peão ; as
suas herdades ficavam reduzidas á condição de ju-
gadeiras, e todos os seus privilégios desapparecíam.
lim alguns concelhos o cavallciro que perdia o ca-
vallo em batalha [in lide] ou ainda n'um pequeno
recontro [in algara] recebia outro do rei. tinal-
racnte ao que envelhecia c não podia servir por es-
sa causa se guardavam os privilégios de classe que
por morte se transmittiam á sua viuva em quanto
se conservava cm viuvez.
A fossado ia uma parte dos cavalleiros c a outra
ficava no concelho : n'uns ia um terço e ficavam os
dois : n'outros iam estes c licava aquelle. Tor al-
guns foracs a obrigação do fossado só existia quan-
do o sénior ou orei iam ncUe ; regularmente o cum-
prímeuto de simílhanle dever era exigido uma só
vez no anno , e ficava-lhes a liberdade de irem ou
não em outras quaesquer expedições que occorres-
sem.
Que era propriamcute o fossado? — Os antiquá-
rios c historiadores tem variado na iulelligencia
desta palavra, e os príncípaes , como o auctur do
Elucidário, suppõe fosse um conimetlimento para ta-
lar as terras dos inimigos e colher as suas searas.
Nós persuadimo-nos de que a palavra tinha uma si-
gnificação mais extensa, — a que lhe deu nos foraes
de Caslella Martiuez Marina — a obrigação de ir á
guerra. Os foraes não faliam de dever militar mais
importante do que o fossado : o appetido era o cha-
mamento geral para a defesa do concelho ou da po-
voação accommettida ; a azaria um salto ou corre-
ria voluntária que não é estabelecida nos furaes , e
qne era porventura isso que se pertende signifique
a palavra fossado; a atalaia e a guardiã eram a
obrigação de vigiar os inimigos , talvez a primeira
em postos permanentes , e a segunda correndo em
roídas ou patrulhas. Como pois deixar de incluir o
dever de ir no exercito debaixo da denominação de
fossado? A guerra naquellcs tempos começava com
a primavera e o mais que durava era até o fim do
estio. Assim imposta a obrigação annual do fossado
bastava ao rei este direito para ter sempre os mili-
tes villaiws a seu mandar. Se a hoste real marchava
elles podiam pagar, seguindo-a, o seu perigoso im-
posto : se não , i)aga-lo-hiam fazendo entradas nas
terras inimigas. /;• em hoste significava a obrigação
militar dos nobres que venciam soldo, — e para dis-
tinguir a mesma obrigação imposta aos cavalleiros
villões dava-se o nome de fossado a esta? Sospeità-
mo-lo ; mas ainda não achámos prova sulliciente pa-
ra pudermos allirmar o uso exclusivo de cada ura
dos dois termos.
Abstendo-nos de íallar dos privilégios e deveres
secundários dus cavalleiros de município , porque
não escrevemos um livro, mas colligímos apenas al-
guns apontamentos , procurámos fazer sentir o pen-
samento feudal na posse plena da propriedade con-
cedida aos municípios, e na obrigação de serviço
militar , limitado como nos feudos a um certo pe-
ríodo cada anno. Nesses concelhos, que nasciam na
cpocha da feudalidade , a ínHuencia desta era pro-
funda , em quanto a indole da sociedade geral lhe
resistia e só a deixava penetrar nas suas formulas
exteriores.
Os deveres do clero inferior ou villão — se tal
398
O PANORAIIA,
nome se lhe podessc dar — são mais dinicultosos
de definir. N'um avultado numero de foracs que
temos cuidadosamente estudado , não encontrámos
ainda senão a igualdade dos seus privilégios aos dos
cavallciros do concelho , e algumas exemprues es-
pcciaes. Eslava elle sujeito ao menos a uma parte
dos deveres impostos áquelles? É questão que ofTe-
rece algumas espécies curiosas , e que tem certa
importância para o olijecto principal que nus occu-
pa , a historia da antiga economia nacional, que
outra cousa não c na essência a dos bens da coroa
o dos foracs.
No princípio da monarchia, ao menos até o mela-
do do século 13.°, a obrigação do serviço militar
estendia-se ao clero dus concelhos, senão inteira-
mente de direito , ao menos de facto : n'alguus fo-
racs elle apparece expressamente exempto do fos-
sado , mas esla particularidade esquece em muitos
outros. Isso biístaria para nos fazer suspeitar que
ao menos nos concelhos, cujos foraes são omissos a
similhantc respeito, lhe não valia o caracter sacer-
dotal para o eximir dos perigos da guerra. Outra
prova negativa c uma lei deD..V(Tonso 2.° (4) que,
exemplando lodos os clérigos em geral das atalaias,
das colheitas [espécie de tributo em dinheiro ou
géneros] e da adua [serviço pessoal imposto para a
edificação e reparo doscaslellos e muros] nada dis-
põe a respeito do fossado , o qual sendo o serviço
mais importante dos cavallciros villões , e estando
os clérigos equiparados a estes pelos foraes , pare-
ce não devia esquecer na enumeração das exem-
pções gcraes estabelecidas para aquella lei.
Este silencio tem , em nosso entender , uma ex-
plicação na grande lucta do estado ecclesiastico e
do rei, a qual versava sobre as celebres immuni-
dades da igreja, isto c sobre a pretenção que o cle-
ro linha de ser perfeitamente livre de todos os en-
cargos sociaes e de não estar nos seus processos cri-
minaes ou eiveis sujeito a tribunal ou auctoridade
que não fossem os ecclesiasticos. Assim tanto a le-
gislação como os foraes são incompletos e obscuros
a respeito desla classe , variando segundo os aspe-
ctos que tomava esse acceso e duradouro confiicto.
A algum dos nossos leitores atleito ás ideas mo-
dernas parecerá estranho o imaginar que o clero
fosse levado aos combales , ou tal obrigação se lhe
podesse impor. Todavia nada ha mais certo que a
frequente associação do sacerdócio com a milicia
na idade media: os próprios bispos eram guerrei-
ros , capitaneavam expedições militares, e venciam
soldos como homens de guerra. A historia offerecc-
nos innumcraveis exemplos de similhantc costume.
Alem disso a palavra clérigo tinha uma significação
immensamente mais ampla que hoje. Uma tennissi-
ma relação com a igreja c com oculto fazia incluir
qualquer individuo no grémio da clerezia. Oauctor
do Elucidário apontou muitas espécies de sujeitos
em quem recahia tal titulo, e ainda não as distin-
guiu todas.
As provas negativas de que o clero não era exem-
plo do serviço militar, bem que a isso se oppozes-
sem as doutrinas canónicas, ajunta-se o testemu-
nho positivo e irrefragavel que nos dá um género
de monumentos, sem os quaes será sempre incom-
pleta a historia daqucllas eras tenebrosas. Falíamos
das bulias, e roscriptos dos papas: é destes diplo-
mas que nós vemos que similhanle pratica era cons-
tante na primeira epocha da nossa historia , quando
os foraes não exemptavam o clero expressamente de
(.4) Lei 13 no Lmo. U«s L. e P. Antiga
tal dever. Entre outros queixumes que Innocencio
3.° dirigia a D. Sancho 1.° era um o arrastar oí
cleriyos ao exercilo , fazendo-lhes injurias e oppro-
brios. Iguaes queixas se encontram n'uma bulia de
Honório 3.° aos bispos de Astorga e de Tuy con-
tra D. Affonso 2.°, o qual , não coníenle com isto
[o quebrar varias outras inimunidades] , obrigava-os
a ir contra sua vontade construir e rtccH/icnr mura-
lhas , e alem disso ás expedições , e a fazer o servido
de vigias , o que , na língua daqucllu gente , se cha-
ma aimduvas ou atalaias. Gregório tt." encarregava
o franciscano Fr. Jacob de penitenciar e absolver
D. Sancho 2.° , porque varias vezes espancara cléri-
gos com a jMí/o ou com um pau , tanto no exercito ,
como iioutras occasiõcs , não por inspirações do dia-
bo , mas constrangido pela necessidade ou de ordenar
as/ileiras , ou de sahir d'alguma revolta de gente (3),
Eite mesmo papa , dirigindo a D. Sancho uma es-
pécie de inventario de todas as culpas que elle rei
havia commeltido contra a igreja , inventario re-
cheado de insolências e ameaças conformes com o
caracter audaz e phrcnetico de Gregório t).°, lhe ci-
ta , entre outras cousas , o obrigar os ecclesiasticos
ao serviço militar, accusando-o ponco depois de os
constranger a respeitarem as leis e estatutos (banna
et staluta) delle e dus seus barões, no que nos pare-
ce descobrir uma allusão obscura aos foraes (6).
Vè-se , pois, ter-se por muito tempo entendido que
assim como o clero gosava das exempções dos j/ií7í-
les vitlani, cumpria desempenhar como elles os en-
cargos da sua situação politica.
Consideradas as obrigações capitães das classes
privilegiadas dos municípios, resta o fallar dos en-
cargos dos peões. Já dissemos que o tributo da ju-
gada lhes compensava a exempção do fossado. A
jugada era o tributo característico; mas estava lon-
ge de ser o único : as portagens como imposto in-
directo iam recahir em geral sobre os consumidores
das mercadorias; mas na sua acção directa grava-
vam os peões que especialmente se occu|iavam no
commercio interno : a obrigação militar do appelli-
do , commum a todos os membros do concelho ,
quasi não se deve considerar como um ónus : o ap-
pellido , que consistia em correrem todos a defen-
der a povoação quando a assaltavam inimigos , era
um dever estabelecido pelo sentimento da própria
conservação antes de o ser pelos foraes. As outras
contribuições variadas de que nos poderíamos lem-
brar não cabem n'um trabalho necessariamente rá-
pido , e alem disso não oflerecem nas suas multi-
plicadas e incertas espécies caracter algum parti-
cular era relação á fazenda publica senão o de au-
gmentarcm mais ou menos o c/uantum dos tributos
de cada município, e o de recahirem por via de re-
gra sobre a classe peã. N'uma historia, porem,
da nação portugueza o exame dessas contribuições
será de alta importância, julgando-as na sua in-
fluencia sobre o progresso ou decadência do com-
mercio , da agricultura e da industria.
L'ma cousa se ha-de ainda advertir comtudo :
n'um paiz devastado por contínuas correrias os ga-
dos não podiam ser numerosos , e alem disso os
concelhos , por muitas rasões que são obvias , não
deviam conter grande porção de proprietários ru-
racs , cuja lavoura demandasse um ou mais jugos
(5) Bulias = Si dillgentcr — 7 Kal- Marl. A. XIV
Iiin. 3ii = (7i-ffrí nobts 10.° Kal. Jau. A. V. Hon. 3"=
Ex parir rinrissimi — 18 Kal. Inn. A. VII. Grei;. 9' =
(fi) Bidla = .Si l/mm horrihilc IS Kal. Maii A. XII
Grog. 'Ji.
o PANORA3IA.
39!)
de bois. Ficava , portanto , nesse caso a pequena
cultura exempla da jugada? Xão : os foraes tinham
previsto essa hypothese mui frequente : iá está de
ordinário designada a contril)uiçãu que tocava ao
que para o lavor da terra apenas possuía um boi, e
do mesmo modo a que se havia de receber daqucl-
le que com os próprios braços agricultava o seu
campo , e a quem se dava o nome de cavador (ca-
vomj.
Resla-nos agora tratar áascalumpnias, ou tributos
sobre os crimes , e depois indagar se a indolc das
instituições municipacs correspondia de feito aos
pensamentos einstinclos do poder central, aosqnaes
nós altribuimos a diligencia com que elle Iraballia-
va em organisar c fortalecer o terceiro estado.
(Continuar-sc-haJ .
(A. HerculanoJ.
que evitara a pobreza , e estão pelo geral cxcmptos
de vicios e crimes.
ClLTlB.l DA VINHA.
Da pvda [>).
K.NTiiE OS vários meios deordenar depois da poda as
videiras, lia também um cm que se dispõe as varas
ao redor da ct'pa , sustidas por lanchOes em forma
de forcados, logrando-se a vantagem de que os fru-
ctos gozam assim das iniluencias do ar, da luz, e
do calor do clima : como se vè neste pequeno de-
senho.
A pobreza não é mal natural. — Ha certa espécie
de males , que afligem a sociedade e contribuem
para fazer os homens desgraçados, independente-
mente das moléstias e damnos physicos : são dessa
classe , são dessa qualidade a pobreza esquálida e
desamparada , os vicios lamentáveis e hediondos ,
os crimes horrorosos, e a guerra civil. £ uso di-
zer-se que todos estes accidentes são inevitáveis ,
que derivam da natureza do género humano a sua
origem e também das leis que o necessitaram a vi-
ver em sociedade. — Quem assim pensa reflecte
mui pouco. O mundo 6 naturalmente formoso; mas
o que Deus quiz que fosse o p.iraizo da espécie hu-
mana, nós o convertemos com frequência cm deser-
to árido, por nossos vicios e delictos. A natureza c
a revelação demonstram que o Creador quiz que
fossemos felizes , mas a ignorância , a obstinação c
os criminosos excessos tem destruído a nossa ventu-
ra e araesquínhado as condições da nossa existên-
cia racional. — Ainda até agora ninguém pôde pro-
var que deva necessariamente edistir [enlenda-se bem
o rigor desta pbrase] a pobreza , que é origem de
muitos males: appresenta-se ura exemplo notável
da falta delia n'uma classe numerosa, qual é a dos
quakers ou sociedade dos amigos na Inglaterra e
União americana. Com algumas especialidades de
pouquíssima importância na linguagem e vestidos ,
esta numerosa corporação d'individuos obra sobre
o principio uniforme de reprimir as paixões : com-
batem os impulsos ignóbeis da natureza ; e nisto
póde-sc dizer que está a base da verdadeira mo-
ral ; e assim ó que os quakers praticara habitual-
mente o que as mais classes olham simplesmente
como theorias. — A consequência deste dominio so-
bre os próprios pensamentos e acções é que , ape-
sar de haver muitos milhares de qunkers na Ingla-
terra e muitos mais nos Esados-Unidos, nem n'um
nem n'outro paiz se vè um quaker mendigando ,
nem embriagado pelas ruas , nem um delles appa-
rece citado perante os tribunaes criminaes: toda-
via , assim como as outras pessoas que se empre-
gam nas usuaes occupnções da vida , os quakers
são commerciantes , olíiciaes mcchanicos , maríti-
mos , em uma palavra exercitara toda a classe de
artes e misteres honestos : por consequência estão
sujeitos ás mesmas tentações e perversidade que to-
dos os mais ; mas evitam tudo isso mediante ura
singular grau de prudência prática. — Eis-aqui pois
uma clara demonstração de que ainda sem o auxi-
lio do poder civil, c só pela influencia da moral,
ha uma classe d'bomens, no meio da sociedade, i
A disposição das varas na figura de pyramide có-
nica [víd. a estampa que abaixo segue] procede da
reunião de muitas videiras collocadas circularmen-
te e cada uma com seu tanchão ou estaca. K con-
veniente nos outeiros fragosos e escarpados , para
aproveitar as pequenas porções de terra cultivável ,
dispersas e entaladas entre as rochas escalvadas.
É applicavel exclusivamente este methodo nos ar-
dentes paízes meridionaes, para que os cachos não
sejam queimados pelos raios directos do sol , cujo
reverbero c muito enérgico nos terrenos áridos e
despidos. Os vinhos que dão estas videiras são mui
generosos e aturara largo tempo.
nm
(•) ConcKúdo de i>ng. 380.
400
O PANORAMA.
A experiência tem mostrado que se a vinha não
é podada brutam-Uie nuinerosos e compridos sar-
mentos ; seus fruclos são poucos e pela maior parle
abortam, os que permanecem sabiem apoucados e a
custo amadurecem : cm annos successivos perdem-
se os troncos mestres ou varas mães : as vides de-
licadas perecem, e as robustas converlem-se em la-
bruscas bravias.
Quando a cepa vellia engrossa sobejamente, toma
muito chão , os cachos são pequeninos, diminue o
numero dos gomos ou olhos ; enlão se podam muito
mais curto as varas que hãodc ser conservadas: al-
guns annos dei)ois se cortam as varas mães , e até
quando se nota a influencia da muita velhice se cor-
ta a cepa quasi rente com aterra. Por este meio se
podem conservar as cepas por muito mais tempo,
c isto é tanto mais importante quanto era geral as
vinhas velhas produzem melhor vinho. — A opera-
ção de esfolhar , tirando as parras que assombram
os cachos , pralica-se no fim do estio , quando os
bagos tem adquirido o tamanho natural , e princi-
piam a tomar cor.
Também se extirpam as raizcs superfieiaes , n"u-
ma espécie de escava, tirando as parasitas e retor-
cidas , para que as outras profundem ; e isto se faz
desde o terceiro até o nono anno da plantação.
Um anno de superabundância de fructos c de or-
dinário seguido de outro de esterilidade , o que se
manifesta mais n'umas espécies que n'outras. A ra-
são sem duvida procede de que os fructos conso-
mem mais activa quantidade de seiva , e baixando
cila em menor porção para as raizcs, estas não tem
sufliciente nutrição para os germens do seguinte an-
no.— Previne-se este accidcnle auguicntando os la-
vores ou cavas, estrumando os pés, e podando mais
baixo que nos annos antecedentes.
Se a videira , precioso vegetal nos climas tempe-
rados da Europa , muito mais em Portugal , oc-
cupa a segunda ordem na escala da riqueza agríco-
la , tempo é de que os proprietários se instruam na
physica do reino vegetal , c se não descuidem de
presidir aos trabalhos ruraes , introduzindo praticas
úteis, adequadas a suas fazendas ; sem esta diligen-
cia serão vaãs as exhorlações e insinuações especu-
lativas : trabalhem pois ao mesmo tempo por emen-
dar defeitos , admittir cora experiência cautelosa os
methodos novos , e decepar com todo o vigor tudo
quanto for pratica notoriamente absurda e nociva.
Um N.ITIRAL DA VILLA DE PoVOS.
CoMEMPOBANEo do cclcbrc Castrioto Lusitano (1)
foi João Vieira d'Araujo, que nasceu em Kill na
mui antiga villa de Povos. Contava apenas 18 an-
nos quando para servir nas guerras do Brasil em-
barcou na caravella Conceição , cm que ia o valen-
te capitão Mathias d'Albuquerque. Naquellc Esta-
do diblitiguiu-se na milicia , por maneira que , sa-
hiudo airoso de apertados confliclos, e feliz no meio
de muitos perigos , em poucos annos seguiu todos
os postos até capitão , e tencnte-rei da fortaleza de
S. Bartholomeu da Bahia; dilllcil encargo em que
deu exuberantes provas d'esforço e prudência , não
só na defeza contra os acérrimos inimigos bollande-
zcs , como na arriscada emprcza que intentou de
(1) João Fernandes Vieira, que nasceu em I6I3: o
seu retrato e biographia achaiu-se a pag. 241 da nossa 1.^
Serie.
lançar fogo á frota contrária : sustentou briosamente
a sua praça contra repetidos assaltos, e n'um dos
recontros foi ferido; o que tudo consta de certidões
e documentos autographos.
Depois que os hollandezes, falhos seus desígnios,
se retiraram forçadamente, embarcou na armada de
soccorro, enviada a Pernambuco, na qual foi D.Fer-
nando de Mascarenhas ; e ahi deu mostras de si, co-
mo a seu caracter e antecedente carreira cumpria.
Com taes serviços veio á corte de Madrid onde rece-
beu em remuneração o posto de Sargento-mór e o
habito da Ordem de Christo, que professou na dita
cidade, na igreja de St. "António dos Portuguezes;
ahi mesmo o armou cavalleiro D. Jerooymo d'A-
tayde , conde de Castro.
O seu espirito marcial não lhe soffria viver no
ócio, e voluntário se alistou cm o navio S. Theodo-
sio , que fazia parte da armada do general António
Telles , destinada a correr a costa em 1G37. Prose-
giiiu em valiosos serviços nos Estados ultramarinos ;
e no da índia se achava quando lá soou a nova da
liberdade portugueza annexa á justa acclamação do
Sr. D. João 1.° ; ardeu logo em desejos de partici-
par da gloria assim como dos perigos de seus com-
patriotas, e todo cheio do amor da palria sé) busca-
va opportuna occasião de frustrar a vigilância de
estrangeiros ciosos, dos quaes todavia era estimado
por seu valor e pericia militar : assim que pode pas-
sar-se á Europa, apenas posto o pé nallespanha, tra-
tou de evadir-se para Portugal , como filho verda-
deiramente leal ao torrão natalício: que não haviam
sido consagradas suas fadigas bellicas ao engrande-
cimento de estranhos senhores; servira por amor
da gloria, e para manutenção das relíquias, que
da portugueza dominação permaneciam ; como que
se houvera previsto que a posse de seus legítimos
donos ellas seriam restituídas. — Estas e outras ra-
sões fortes appresentou á magestade de D. João i.°,
quando por espontâneo e nobre acto de fidelidade
foi nas regias mãos resignar todos os títulos lionori-
ficos , mercês, e vantagens, que o intruso governo
lhe facultara. Ailo , por certo, de raro desinteres-
sei— Disse mais que só ambicionava entrar, como
simples soldado , nas fileiras do exercito restaura-
dor.— Acceítou clrci a renuncia, mas logo lhe tor-
nou a conferir o habito da Ordem de Christo, e
depois que o mandou servir cm Beja deu-lhe o pos-
to de capitão-mor de Alegrete em líiío. Nestes vá-
rios exercícios cohibiu entradas de castelhanos por
terras nossas, vigiou os interesses da real Fazenda,
acabou de fortificar Castello-Melhor ; nunca o ini-
migo o tomou de sobresalto , c foram de summa
in)[)orlancia os avisos que transmiltíu aos olliciaes
de superior commando. — Passou a capilão-raór de
Alcobaça, encarregado de guardar o littoral da mes-
ma capitania: ainda servia este cargo em 16G2 :
não é porem certa a data de sua morte.
O que deixámos expendido comprova-se pela col-
lecção de documentos in."* , que , precedida de um
prologo íllustratívo, rcmctteu á Academia dasScicn-
cias o Sr. bacharel João José Miguel da Silva .\ma-
ral (2] ; e constam elles de avultada correspondên-
cia e de anthonticos attestados , mostrando-se pelos
mesmos serem não menos de doze os olliciaes gene-
raes, com quem Vieira d'.\raujo servira, merecen-
do os elogios e consideração de todos.
(2) Este Sr. nos ministrou as noticias que eslampàinos
aqui, assim como nos mandara outras sobre o Monte da
Hua-Morle no termo de Povos, as quaes se lêem a pai. 413
do 4.» vol.
104
o PANORAMA.
401
í.:f:SfiÍilP!Í'
IGR£JA DA CONCEIÇÃO VEX.HA — EM Z.I3SOA.
Uma ViLiA-NovA antiga.
Se passardes pelos olhos uma carta lopngraphiia de
Portugal, em cada província, em cada comarca, tal-
vez em cada pequeno districlo achareis escripto, ao
lado de algum desses signaes que marcam as povoa-
ções, a palavra Villa-nova ; Villa-nova de lUi , de
Dezesibro 23 — 1843.
S. Cruz, de Gaya, de Cerveira ; . . . que sei eu ? —
Villas-novas de todos os sobrenomes, e alé villas-
novas de ninguém e de nada ; villas-novas espu-
rias.
Villa-nova é o dom municipal, o dom villão ; por-
que , por extravagante anliphrase , villanova quasi
sempre indica um antigo burgo com suas rugas de
2." Seuie. — VoL. II.
402
O PANORAMA.
velhice, com seu castello desmoronado , com seus
vestígios de templo ou de palácio da meia-idade.
Villa-nova moderna, sem pedras amarellas , tomba-
das, ogivaes , 6 cousa descommunal , milagrosa, e
ao réz do impossivcl. É que o passado, remoto, re-
motissimo , como o imaginardes , já foi presente , c
então a villa que se alcvantava ou no des\io, até
ahi inculto e intratável , ou sobre os vcstigios de
povoação deshabitada cdcslruida, era realmente nii-
va ; mas os seus edificadores csqucciam-se, ao dar
um nome á obra das próprias mãos , que cllcs pas-
sariam bem depressa e com ellcs a mocidade da
sua filha querida ; esqucciam-se de que o correr
dos annos brevemente havia de converter em pala-
vra sem sentido essa denominação que lhes parece-
ra tão clara e precisa. Aos primeiros respiros de
paz e segurança, depois das guerras barbaras de re-
ligião e de raça que devastaram outr'ora este solo
portiignez, o espirito municipal ia semeando os con-
celhos ao passo que debaixo dos marcos das fron-
teiras christaãs se embebia o território musulinano,
e então acontecia que o burgo, recentemente plan-
tado cm terra até ahi erma e safara , ou sobre as
ruiiias carcomidas de nuinicipio romano ou godo ,
sentindo-se cheio de vida e de esperanças, folgava
de contar ao mundo no próprio nome a sua juven-
tude , e tomava para si o titulo tão querido , tão
popular, tão casquilho — de Villa-nova.
E a's vezes as Villas-novas vinham encostar-sc
aos muros carrancudos erobusios das cidades reaes
ou episcopaes. Eram como uma crcança rosada, ri-
sonha , travessa , que se atira ao collo de velha re-
barbativa , e se lhe pendura ao pescoço , c desata a
rir — a bom rir. Acontecia também que uma ou ou-
tra ia assentar-se á beira de um rio, defronte de po-
voação orgulhosa, e similhante a trasgo inquieto
zumbia-lhe insolentemente aos ouvidos, e desangra-
va-a ronbando-lhe o seu commercio : mctlia-se ate
cm bandos polilicos para lhe fazer perraria ; e ini-
miga d'ao pé da porta não havia casta de incommo-
do que lhe não causasse. Que outra cousa fez Vil-
la-nova de Gaya ao burgo episcopal do Porto , bur-
go tão grave , tão serio , tão devotamente enroscado
em volta da sua cathedral , aos pés dos seus santos
bispos? Quem, senão Villa-nova de Gaya, assoprou
provavelmente entre os honrados burguezcs da ci-
dade do Douro aquelle espirito de irmandade e re-
volta que tanto veio depois a incommodar os suc-
cessores do venerável D. Hugo?
Lisboa — guerreira e depois mercadora — lam-
bem teve , não uma , mas duas villas-novas abraça-
das á sua cinta de muralhas: — a primeira ao sul,
a segunda ao poente. Chamava-se aquella Villa-no-
va de Gibraltar: esta Villa-nova d'Andrade. A se-
gunda, nascida no século 1S.°, viveu dois dias ape-
nas , porque Lisboa , essa villa {•) limitada nos fins
do século i-2.° a 15:000 habitantes, cm quanto a
mourisca Silves contava 25:000 , cresceu cora tal
rapidez na epocha dos descobrimentos , que rom-
pendo , ou antes galgando por cima dos lanços oc-
cidentaes dos seus muros, a devorou ainda no ber-
ço , ou para melhor dizer parliu-a em fragmentos ,
c aos seus membros despedaçados chamou Bairro-
alto. Chagas, Santa C.alharina. Villa-nova d'Andra-
de foi uma cousa fugitiva , sem gloria , sem indivi-
dualidade. Delia poderia dizer-se o que o psalmista
dizia do Ímpio : — vi-a exaltada como o cedro do
Líbano : passei , e não existia ; busqueí-a , não lhe
(•) Kvora c chamada uo seu (oral ciiladc ; Lisboa iio
9eu villa-
achei rasto. Deixemo-la, pois, na paz do esqueci-
mento e do nada.
Não assim Villa-nova de Gibraltar. Fallai-me de
Villa-nova de Gibraltar '. Esta sim, que viveu. A
sua origem perde-se nas trevas dos tempos chama-
dos bárbaros , entronea-sc no berço da raonarchia.
Assentada á beira do Tejo, fora do lanço de sul e
sueste da muralha árabe, ou talvez goda [quem po-
derá hoje dize-lo?l] que cercava Lisboa antes do
século 14.°, saudavam-na os primeiros raios do sol
oriental , aqucciam-na todos os do alto dia , doura-
vam-na os derradeiros que vinham do poente roçan-
do pela superfície das aguas. A cidade lá estava
sombria entre as torres e altos muros da sua cerca ;
agachada nas faldas do seu castello soberbão e mal
encarado; prostrada em volta da sua cathedral am-
pla e triste. Mas que importava isso a Villa-nova
de Gibraltar? Ahi não havia nem muros , nem tor-
res , nem castellos, nem campanários. Ella mirava-
se no rio, e achava-se bella ; bella por si epelo lu-
xo dos seus atavios; porque Villa-nova de Gibral-
tar era a allravessadora de quasi toda a mercancia :
a pátria dos rendeiros e sacadores das rendas e di-
reitos reaes: era rica e potente ; e ao sobrccenho al-
tivo da velha Lisboa , confiada na sua epiderme de
mármore , respondia ella mostrando a sua armadu-
ra d'uuro, c depois punha-se a rir, porque bem sa-
bia já , como nós hoje sabemos , que o ouro é mais
forte que o mármore.
D. Fernando 1.°, que foi para cora Lisboa como
um amante selvagem: ora querendo anniquila-la
porque lhe preferia em amores o alfaiate Fernão
Vasques ; ora lançando-lbe no regaço riquezas, pri-
vilégios , tudo; quiz n'um acceso de ciúme escon-
de-la aos olhos d'estranhos. Já ella , a namoradei-
ra, sahindo da Porta de Ferro, pelo terreiro da ca-
thedral, correra para ovalle de Valverde e se recli-
nara por ahi abaixo indo espreitar a barra cá da
margem do rio ; já começava até a galgar pela en-
costa fronteira para o lado do gotbico mosteiro de
S. Francisco e para a ermida dos Martyres , e pe-
la Pedreira do Almirante, para o convento dos san-
tos frades da Picdempção. «Alto lá!» disse o bom
do rei D. Fernando , e chamando os villões sujei-
los á adúa por todas as villas e lugares d'arrcdor,
lançou á cintura da doudinha uma nova faixa de
muros, para que não passasse alem. Ficou-se , é
verdade, espairecendo Lisl.oa pela valle c pela en-
costa, mas ao menos, atraz das novas torres e qua-
drellas , já não podia fazer gatimanhos de presumi-
da aos que vinham visitar cm som de paz ou de
guerra os campos das suas cercanias, ou as aguas
da sua enseada.
E que era nesse tempo fcilo de A"illa-nova de Gi-
braltar? Lá estava senhoril e desdenhosa, á beira
do Tejo , indilTerenle aos arrufos de Lisboa e aos
riumcs de D. Fernando. Pacífica e fiel não se entre-
meltia em negócios alheios, não tumiilluava , não
se namorava d'estranhos. .4ssim amuralha real que
bojava para poente, passou pé ante pé por entre el-
la e a cathedral para não a alTligír: encorporou-se
ahi com os antigos muros para a deixar, como até
então, exposta á sua tão querida restea de sol. No-
vas portas, todavia, a uniram com a antiga cidade,
que tão rapidamente crescera e se fizera garrida.
Foi por ahi que lenta e traiçoeiramente Lisboa pô-
de chegar a submelte-la e devora-la.
E quereis saber por qual rasão, e como? Dir-vo-
lo-hei. Era que na fronte de Villa-nova de Gibral-
tar, abaixo do seu diadema rutilante de princeza ,
o PANORAMA.
403
estava esoripla uma lenda fatal e maldita; uma len-
da que por nniito tempo fui apenas ignominiosa,
mas que nos (ins do secul» lo.° se converteu em
sentença de morte , em signal estampado pela m.ão
do archanjo do extermínio. Esta ieiula encerrava
apenas duas palavras, mas palavras l)lasphemas ,
que só podiam ser apagadas destruindo-se a exis-
tência individual da povoação que se atrevia a ap-
prcsenla-las diaiile da luz do céu.
Villa-nova de (iilirallar era a Comuna dos Judeus!
A idade media, essa epoclia altamente poelica,
porque tinha crenças ; e profuiidamcnle symliolica ,
porque era pnelica ; havia feito de l.ishoa um sym-
bolo da historia religiosa e politica. O município
christiio , partindo do alto alcaçar ou castello, díla-
tava-se aló as raízes do monte, cm cujo topo cam-
peava a cavallciro de lodos os cabeços dos arredo-
res a torre de menagem, a guarida do alcaidc-mór,
como representante do senhorio real e da aristocra-
cia : á sombra do alcaçar, e a mais de meia encos-
ta, a cathcdral alçava os seus dois campanários al-
tivos , quadrangulares , macissos : entre essas duas
expressões materiacs da monarchia , da nobreza e
da igreja, a casa da camará — os paços plebeus do
concelho próximos do campanário seplenirional da
sé , chiios c humildes representavam o povo que cm
silencio se preparava para ir estendendo os braços
endurecidos pelo trabalho , e subjugar algum dia ,
á direita o alcaçar, á esquerda a igreja. i\a confi-
guração da cidade resumin-se a historia social do
passado, e a prophecia do futuro. Como tantas cou-
sas da idade media, Lisboa era um verdadeiro sym-
bolo.
>'ão o era só , todavia , do pensamento politico :
também o era da idéa religiosa. No âmago da po-
voação : no logar eminente estava o chrislianismo :
ao norte , em profundo valle e apinhado em volta
de mesquita apenas tolerada , ficava o bairro dos
mouros — a Dlonfaria , e ao sueste , quasi ao orien-
te , lançada ao pé da Esnnga a Judcaria : — uma
crença verdadeira, mas temporária, do lado donde o
sol surgia na sua ascensão para as alturas ; a reli-
gião do Christo , complemento divino daquella, as-
soberbando-a do monte sobranceiro; o islamismo ,
transformação impia e tenebrosa d'ambas, como es-
condido ao norte na penumbra da cruz triumphante ;
e ao longe as vastas solidões do oceano atravez das
quaes os filhos do evangelho o deviam levar algum
dia ás regiões ainda incógnitas de novos mundos.
O velho Portugal tinha feito da cidade do Tejo um
symbolo e uma prophecia sublimes I
A monarchia, vencedora da idade media, esque-
ceu a poesia delia ; porque nos seus velhos hábitos
de organisar, de legislar, de li\ellar, perdera in-
teiramente o senso esthetico. A poesia estava prin-
cipalmente nas idéas , no sentir, nas formulas das
classes aristocráticas: o povo era infeliz e selva-
gem , c a monarchia positiva , calculadora , egoís-
ta. Com a victoria final desta desapparcceu tudo o
que representava o ideal. Belém é a agonia da ar-
te ; é o estrebuxar descomposto da architectura chris-
taã que morria ; e o cancioneiro de Resende o ul-
timo concerto dos trovadores em que já se mistu-
ram os sons discordes da poesia romana.
Neste crepúsculo da vida nacional , nesta passa-
gem da originalidade para a copia , as ruínas tom-
bavam sobre outras ruinas : a nova sociedade so-
brepunha as suas obras incertas, frias ou estúpidas
aos restos ainda palpitantes do cadáver do passa-
do ; cirziaas ridiculamente com remendos c fra-
gmentos das obras c fados que destruíra ; fazia ,
cmfim , por um pensamento de ordem c de organi-
sação cxaggerado , o que nós muitas vezes fazemos
boje por um amor de liberdade iruliscreto e exces-
sivo.
ív curioso o ver como a edificação do celebre
mosteiro Jcronimílano de lielcni se liga com a des-
truição da eomuiuna judaica de \illa-nova de Gi-
braltar; como esse monumento da transição da ar-
chitectura, esse cahos de todos os syslenias que lu-
ctavam no principio do 16.° século, reuiiidos , e por
assim dizer petrificados de subllo n'um edifício só ,
traz forçosamente á leml)rança a ruína d'nm facto
da ordem moral que existira inconcusso entre nós
por quatrocentos auiujs — a tolerância da idade me-
dia. De feito a tolerância religiosa expirava ao pas-
so que a architectura chrislaã morria , e as bulias
da inquisição vinham-nos talvez pelo mesmo cor-
reio que trazia aos nossos archilectos os dcseidios
puros e materialmente formosos, mas pagãos, e pe-
regrinos de Bramante ou de Uaphael.
Um phenomeno por certo singular nos appresen-
ta a historia antiga de Portugal. IVa larga serie de
leis, de artigos de curtes, de factos públicos até
os fins do século 15.° a crença viva de nossos avós
se limita sempre dentro dos termos daquella into-
lerância legitima que a verdade não pôde deixar de
ter para com o erro. O chrislianismo proclama-se
ahi franca e energicamente a única religião verda-
deira : o ehristão jnlga-se uiu homem de condição
superior ao judeu. O povo vigia , até , cora ciúme
que o israelita conserve sempre no trajo um distin-
ctivo da sua raça réproba, das suas doutrinas erra-
das. Mas a intíjlerancia acaba nesse ponio : não se
imagina ainda que o lieslerro , os tralos do potro,
e o cheiro de carne humana queimada subindo da
fogueira expiatória sejam sacrificios agradáveis a
Deus. Na gente judaica havia mais, por assim di-
zer, um caracter de triste fatalidade pezando sobre
uma raça condemnada pelo seu peccado original do
Dcicidio , qne o de uma raça maldita por crimes
próprios. «Os judeus, como testemunhas da morte
de Jesu-Christo , devem ser defendidos só porque
são homens : » — estas palavras de D. AfTonso 2.°
resumem o pensamento da idade media acerca del-
les. É o pensamento de que Lisboa com Villa-nova
de Gibraltar foram a imagem scnsivel. No alto da
sé a cruz abrigada á sombra do castello ehristão ,
via a seus pés a synagoga — a humilhada Esnoga —
que testemunhava alli a morte do Christo, a victo-
ria do Evangelho , e a redempção dos homens : e o
que orava na cathedral sentia só desprezo e porven-
tura compaixão por aquelle que orava na synagoga.
Se o ódio se misturava ás vezes com esses senti-
mentos, motivos não-religiosos, mas iiuramenie ma-
teriaes o geravam : geravam-no as riquezas dolosa-
mente acumuladas pela gente hebrea , os vexames
que praticavam coroo exactores da fazenda publica,
as suas usuras como possuidores de capitães, e mil
outros motivos humanos em que nada tinha que ver
a opposição das crenças.
E o século 16.°, que era erudito; que traduzia
Cicero eOvidio, e imitava Horácio : o século da
civilisação , das conquistas , de todas as grandezas
cuspia nas faces da idade media , que jazia morta
a seus pés, o epitheto de barbara ! — ED. Manuel,
o culto, e venturoso monarcha do oceano, esquecia-
se do que não esquecera a seu rude e obscuro avô
i04
O PANORAMA.
D. Afibn50 2.°: esquecin-se de que os israelitas es-
tavam condcmnados [iclo Kei da Eleniidadc a va-
guearem perpetuamente na terra coma tcslLiminlias
da miivie de Jrsu-Cliiislo. Portugal devia ser exce-
ptuado desse decreto de cima , e a conversão vio-
lenta dos judeus fui um dos factos mais estrondosos
daquelle tão estrondoso reinado.
Da communa hebraica , da risonha e opulenta
Villa-nova de Gibraltar, apenas um vestígio nos
resta , a sua synngnga — melhor diríamos o sitio
delia — convertido cm templo christão. É uma col-
Icgiada da Ordem de Christo : é a Conceição Ve-
lha ; velha porque já as cousas dessa epotha ma-
noelina , tão fastosa , Ião transformadora , tão des-
tructiva de tudo o que quer que fosse , bom ou
máu , das eras poéticas, já hoje é caruncho e po-
dridão : os seus numumentos já se confundem com
os que ella desprezava como bárbaros. Fallai no
portal rendilhado da Conceição Velha a ura verea-
dor, a um politico, a um pascasio de melenas,
emfim a qualquer inimigo nato das cousas mais poé-
ticas e santas da pátria — os monumentos — e res-
ponder-vos-ha torcendo o nariz , e com um ademan
parvo de superioridade : <i Puh diabo ! isso é go-
thico ! u Gothico ' Ouves , século dezescis , sécu-
lo romanista , século brilhante , século peralvilho ?
Ouves lá debaixo da tua campa, pezada como todos
os crimes que commetteste no oriente , confundi-
rem-te hoje com os séculos rudes e pobres da no-
breza d'alma na fidalguia e da energia popular?
Mudaste a Índole da nação ; tornaste-a de guerreira
em mercadora ; de municipal em cortesaã ; de aus-
tera em voluptuaria. Acccita de mãos como aquel-
las a paga da tua boa obra.
A historia da esnoga e do Mosteiro de Restei-
lo é simples : tè-la-heis lido em dez livros copiados
uns dos outros com grande augmcnto e gloria das
lettras pátrias. Onde hoje este edifício, amplo co-
mo o poderio de D. Manuel , simula aos olhos do
vulgo , na vermelhidão dourada das suas pedras ,
uma idade mais provecta que a verdadeira, existia
ura conventinho de freires de Christo. D. Manuel
vasou-os na synagoga de Villa-nova , desentulhou o
chão da ermida de Santa Maria de Belém, que as-
sim se chamava ella , alevaulou a machiua que ahi
vedes , chanlou-lhe dentro não sei quantas dúzias
de frades Jerónimos de Penhalonga , e morreu dei-
xando a sua obra imperfeita. Tratou de continua-la
D. João 3.° nos intervallos em que lho consentiam
as suas incansáveis diligencias para obter a santa
inquisição, contra a qual reluctou muito tempo a
cúria romana , que nem sempre é tão boa como al-
guns a fazem, nem tão má como outros o allirmam.
Na regência de D. Catharina parece ter-se acabado
a igreja como actualmente existe («).
E a esnoga de Ailla-nova ? A esnoga estava re-
formada , rendilhada , baptisada , christaã e contri-
ta como .... como os judeus allumiados subita-
mente pelo Espirito-Santo no mesmo dia e á mesma
hora, por um decreto real, redigido provavelmen-
te pelo secretario António Carneiro. Aposto que não
sabeis quem era António Carneiro? Era paraD. Ma-
nuel o que fora Antão de Faria , que também pro-
vavelmente não conheceis, para 1). João 2.°: um
substituto da cadeira monarchica , um marquez de
Pombal de ha trezentos c quarenta annos , de que
pinguem se lembra hoje, comod'nqiii a outros tre-
(•) Vcjii-se a eriKlil.i e liem ili-liiie.nki MniinrM acerca
do mosteiro de lidem inserta no vul. 0." deste jurnal.
zentos annos ninguém se lembrará do marquez de
Pombal. Sic truitsil gloria iHiindi.
Pois não o merecia António Carneiro ! — Foi mi-
nistro de peso e volume. Os papeis da sua secreta-
ria, ou antes do Estado, eram em portuguez ! Quem
me dera um António Carneiro ! António Carneiro
foi até homem agudo e engraçado : prova disso é o
preambulo do regimento dado á collegiada da con-
vertida synagoga, em 29 de janeiro de 1504. Evi-
denteraeiíle o ritual rahbínico já não tinha applica-
ção. Nesse preambulo conta o bom do secretario a
historia da transformação. Eis as suas palavras:
(iComo entendemos [é eirei quem falia segundo es-
lylo e direito] na conuerção dos judeus de nosos
reynos pêra á nosa santa fée serem ajuntados, he
no conhecimento he obras delia se saluarem , com
muyta deiiação nos oferecemos he deliberamos da
casa da esnoga dos judeos queestauam na judiaria
grande desta cidade, asi como ella era a mays prin-
cipal em que o nome de noso senhor era blasfema-
do , he as coussas de nosa santa fée católica repro-
uadas e eniniingoadas , fazermos huma solene igre-
ja e casa da enuocação de nosa senhora da consei-
ção , na qual com muy grande solenidade e deua-
ção os ollicios deuinos fossem celebrados, he ali,
onde a noso senhor por tanto espaço de annos e
tempos fora feyto tanto deseruiço, he o seu nome
he as suas coussas blasfemadas, perpetuamente he
em toda a perfeyção seus louuorcs se fizessem , he
o culto deuino fosse continuamente , he com gran-
de solenidade exalçado. « — Basta. Não me digaes
nada do estylo d'Antonio Carneiro : era o do seu
tempo. Confessai antes que não esperáveis que a
transformação da synagoga em igreja fosse uma an-
tilhese religiosa , um trocadilho ao divino. Essa
perseguição similhante á dostyrnnnos dePioma con-
tra os piimeiros niartyres do cbristianismo, alevan-
tada contra os judeus portuguczes , nos fins do sé-
culo 15.°, foi apenas uma (igura de rhctorica feita
por D. Jlaiiuel. Oh elegante, oh immortal António
Caineiro 1 Tu ajudavas teu senhor a acabar a obra
de D. João 2.°, a anniquilar toda a poesia da ida-
de media ; mas tu eras mais poeta do que ella.
Creanças despedaçadas por seus pais para não se-
rem entregues aos beleguins missionados ; homens
havia pouco opulentos reduzidos á miséria e ao des-
terro , ou obrigados a acceitarem um baptismo sa-
crílego , porque era recebido por violência : tudo
quanto ha negro e infame naquelle procedimento
em que até não faltou a covardia de se respeitar o
direito das gentes para com os mouros [lambem ex-
pulsos nessa occasião] porque tiuliaiii quem podesse
linga-los : tudo isto, oh excellente .António Carnei-
ro, não passou de uma fórmula de Quintiliano, ap-
plicada á thcoria do culto! Quem jioderá duvidar
de que os admiradores do grande seeutn , do sécu-
lo 1(5.°, tem prodigiosamente desinvolvidas as proe-
minências do bom e do bello?
Da esnoga , reconstruída em templo por António
Carneiro e por D. Manuel , apenas resta a portada.
Também era a cousa única formosa e alegre em to-
da essa negra c maldita historia. Se quereis estu-
dar como artistas os seus delicados lavores ahi a
tendes na precedente gravura , e se não vos con-
tentardes com isso ide contempla-la á rua da Uibei-
ra Velha , "antes que o progresso passe por lá e a
derribe. O progresso é gordo e ancho ; não cabe
onde quer que esteja um monumento.
(A. Herculano).
o PANORAMA.
405
Um livro imporUnlc, curioso, iiitido, c bcmquislo,
acaba de sahir dos prelos dcsla Sociedade pmpuga-
dora dos Conltecimeiilos úteis: ó o 4." vol. das obras
do Sr. Almeida Garrell — o 1.° do seu bomanceiro
CANCiONEiiio GERAL. Esle lilulo só é baslaotc para
provocar o interesse do liUerato, desafiar as iincs-
tigações do philologo, altrahir a atlcnr.To do pliilo-
sopho, e eslimular a curiosidade de todos; porque
a poesia popular — a poesia primitiva que hoje nos
ressuscita , e faz reviver, o Sr. (larrelt , merece e
hade ser encarada debaixo de todos estos aspectos ;
o da littcratura para instrucção, o da pbilolugia |ia-
ra estudo, o da philosopliia para exame do caracter,
índole , moralidade , e civilisação do povo que nel-
la se retratou , ou , antes , que com cila est.í iden-
tificado ; e finalmente o da curiosidade para mimo-
so recreio do espirito.
«A poesia popular [diz-nos Ilcrder] c o archivo
do povo, o thesouro da sua scieaui.i , da sua reli-
gião , da sua theogonia , da sua cosmogonia , da
\ida de seus pais , dos fastos da sua bistoria. É a
expressão do seu sentir , a imagem do seu interior
na alegria ou na tristeza, junto ao leito das núpcias
ou da sepultura. »
«A poesia popular [escreve Marmier] é a voz do
povo nos dias de suas profundas commoções , é o
canto que celebra os seus heroes e os seus deuzes ,
que proclama os seus triumphos e lamenta os seus
desastres. É a epopca dos seus tempos heróicos, e
a bailada tradiccional de suas crenças supersticio-
sas. È o cântico de .Moisés sobre a montanha , e a
elegia do desterrado junto aos salgueiros dos rios —
Nasceu nos séculos mais remotos, e profunda as suas
raizes no mais árido solo Esta poesia tem uma
hra que vibra todas as paixões , e onde todas as
ideas tem uma corda de prata ou de bronze — É
uma linda donzella que se nas queixa de amor ou
se carpe de saudade.... È uma sybilla com o ramo
d'ouro na mão, uma magica senhora das lendas his-
tóricas e fabulosas, da mythologia de todas as espé-
cies, das mysteriosas crenças do christianismo, dos
suecessos mais patheticos do mundo real , e de to-
das as phanlazias do mundo ideal Esta poesia
llexivel e variada adapta-se a todos os acontecimen-
tos , rellecte no seu espelho o espirito de todas as
epochas é a imagem do povo.»
11 A poesia popular [na opinião do Sr. Garrett] é
uma ingénua, selvática, caprichosa, e aérea vir-
gem das montanhas, que se appraz nas solidões in-
cultas, que vai pelos campos allumiados do palli-
do reflexo da lua involta em véus de transparente
alvura , folga no vago e na incerteza das cores in-
distinctas que nem occulta nem patenteia o astro
da noite. É uma beldade misteriosa que frequenta
as ruinas do castello abandonado, da torre deser-
ta , do claustro coberto de hera e musgo , e folga
de cantar suas endeixas desgarradas á boca de ca-
vernas fadadas — por noite morta e a horas aziagas. »
«A poesia popular [havia já muito que o tinha
dito o bom velho Montaigne] e puramente natural,
é cheia de candura , e tem graças por onde pôde
ser comparada era belleza á perfeita poesia da ar-
te ; como se vè nos villancetes da Gasconha , e nas
trovas das mesmas nações selvagens que nem escre-
ver sabem. »
E, com effeito, a poesia popular encontra-se em
todos os paizes, remonta-se aos tempos primitivos
de todas as nações, é a expressão espontânea do
sentimento íntimo, puro , c sincero de todos os po-
vos. Os antigos e modernos viajantes a foram achar
nos mais frigidos recessos do norte da Europa , en-
tre os selvagens da America, nas hordas da Sibé-
ria , nas costas do Kanitschatka , e na Uceania.
Esta poesia popular , arca santa do sentir , dos
costumes e da crença do povo, que todas as nações
respeitam com veneração , que Iodas cilas tem re-
colhido , refundido, imitado e parafraseado, desde
o lim da idade media, e que por séculos esquecida
foi no começo deste restaurada com maior culto, é
a que o Sr. Garrett salvando, ainda a tempo mas
já a custo, nos começa agora a mostrar tão couceí-
luosa como elfganlen]cnle. Éramos nós até hoje a
única nação que não havia coUeccionado nem consi-
derado os seus cantos (lopularcs. Na .Vllemanha , e
outras nações , desde o scculo Xlll que se empre-
liendcm e conhecem similhantes coUccçõcs. Da mes-
ma origem, ainda que d'(iulra espécie, temos o
Niebelung , c as Sagas da Scandinavia para o pro-
var; lemos a opinião de Muller , de iJulbech e de
Grimm citados por Marmier; temos cmfim , ainda
que de mais próxima data mas similhante á de que
tratámos , a collecção do Itumancero historiado de
Rodrigues, que deu á Hespanha em 1379 a gloria
de ser a primeira nação que principiou a publicar
pela imprensa as suas trovas populares destegeuero.
Modernamente , porem , tem-se desenvolvido em
todas as nações cultas, especialmente na .Mlcnianha
e na Inglaterra, um verdadeiro zelo por estas com-
pilações, e paráfrases. Haverá trinta annos que >Val-
ler Scott deu impulso a esle gosto , que fez mudar
completamente o caracter da littcratura da nossa
idade. As reliquias de 1'ercy, os specimcus de Éllis,
os romances de Uitson , as Iruras populares de Ja-
meson , e emlini o Miuistrcsli/ do mesmo Walter
Scott , tinham feito conhecer á Inglaterra , e a to-
da a Europa , a grande importância da poesia pri-
mitiva dos diflerenles povos. «Nenhuma outra na-
ção porem [diz-nos ainda .Marmier] tem excedido a
allcmaã no estudo tanto da própria como da estra-
nha poesia popular.» Os trabalhos de Herder, de
Gunlher, de Gcetze , em colleccionar todas as tro-
vas populares do norte da Europa ; os de Grimm
em fazer conhecidas as d'Hespanha ; e ultimamen-
te os de Bellermann sobre as nossas portuguezas ;
estão comprovando a asserção do escriplor francez.
O Sr. Garrett comprehendeu todo o valor destes
trabalhos, e a influencia delles na reacção da littc-
ratura contra a tyrannia greco-latina que a tem do-
minado ; pesou-lhe a lacuna que neste assumpto se
achava na nossa historia lilteraria ; viu os homens
eminentes que nas outras nações se occupavam nas
investigações e collecção das trovas populares dos
seus e alheios paizes; e o Sr. Garrett que tem sido
o mais nacional e popular de todos os nossos poe-
tas modernos , desde a primeira inspiração da sua
musa — O Camões — até á mais recente — Fr. Luiz
de Sousa — para que se completassem os seus rele-
vantes serviços ás lettras pátrias, era indispensável
que nos desse também um Romanceiro e Cancioneiro
geral. Com a sua D. Bianca , com o seu Auto de
Gil Vicente, e com este Romanceiro, tem o Sr. Gar-
rett feito, não só entre nós mas em toda a penínsu-
la ibérica por ser o primeiro que assim levantou
nella o pendão d'este moderno movimento liíterario,
os mesmos serviços que ás lettras fizeram em Ingla-
terra Walter Scott e Byron, na .\llemanha Schiller
e Uhiand , e na França Chateaubriand e Victor Hu-
go. Assim como estes homens tão distinctos pela
406
O PANORA3IA.
sua posição social, saber, c talentos, o Sr. Garrett
apezar de suas augustas funcções de legislador e
magistrado , tem saiiido aproveitar uma parte do
tempo nestas uleis lucuhrarões, a ultima das quacs
vai ser de certo snmmamente apreciada nos mes-
mos paizcs estrangeiros.
Esta collecção das relíquias aborígenes da nossa
poesia nacional comprehcnile as antigas trovas can-
tadas pelo povo , chame-se-lhes embora rimance ,
xácara ou solau , «desde onde memorias ou conje-
cturas ha, até á epocha actual, acompanhadas d'ex-
plicações o glossas, que hão-dc servir de nexo, que
sejam como a liaça , o nastro que áte estes perga-
minhos. » E niio será só o texio original delias « res-
tituído quanto ó possível : mas também estas mes-
mas trovas rudes e por vezes extravagantes , con-
vertidas cm composições lyricas de muita graça , e
grande mérito ; porque dos spccimens , alguns inó-
ditos , que temos visto, podemos escrever que na
nossa opinião o Sr. Garrett lhes tem sabido conser-
var toda essa còr do melanclidlia , lluidez e natu-
ralidade , que constituem o seu principal caracter,
dando-lhes ao mesmo tempo o sabor da epocha a que
lhe pareceu refcrirem-se.
Estas canções populares não leni data nem nome
d'auctor , nem da maior parle delias se pode saber
se a sua origem é inquestionavelmente nacional, ou
se foram tão somente nacionaiisados. Transmiltidas
de séculos para séculos unicamente pela tradição
oral, diflicultosamente chegaram aos nossos dias,
porque Foragidas das cidades onde o requinte da
civilisação , o luxo e os maus costumes, foram pro-
gressivamente arrefecendo a exaltação poética do
povo, lá se acolheram á innocencia dos campos, on-
de ainda zelosos pesquizadores as poderam encun-
Irar , mas d'onde a corrupção de nossos dias as vai
já expulsando, c baldadas tornaria tacs buscas se
tão oppíirlunamente se não pozesscm por obra.
As lendas dos santos, e muitas trovas mysticas ,
a ode (o canso das trovadores) , a elegia (planhj , a
ccloga (pastorclla) , e outras composições desta es-
pécie, havia muito que estavam recolhidas nos Can-
cioneiros do Cullcgio dos NolM'es , no de Resende ,
e n'ou[ro que existe ms. na real Bibliotheca doEs-
curial ; (*) mas estes cancioneiros são os nossos
mcistcrsmngcr , faltava-nos a collecção dos cantos
singelos e rudes do povo, a compilação de Herder,
as imitações deSchIegcl, as recomposições deSchil-
ler e Burger. Esta falta ó a que neste volume se
começa a supprir. Depois d'um elegante trecho em
prosa , fundido naquelle typo de espontaneidade e
candura peculiar á prosa do Sr. Garrett, abre elle
pelo bello rimance da Ádozinda já com a sua eru-
dita inlroducção , tão nosso conlieciíio c gostado. È
iim verdadeiro modelo do género, com toda a sua-
vidade de metro e estylo , com Ioda a ingenuidade
de linguagem , com toda a mclancholia e verdade
d'um rimance da idade media , c com Ioda a deli-
cadeza e graça das conveniências do nosso século.
Segue-se outro mais curto mas não menos lindo, já
lambem nosso conhecido, — Jlcrnal Franccz- — -acom-
panhado porem com uma novidade , a sua Iraduc-
ção em iuglez (::). Apoz estes vem um pequenino
(•) Acabamos de salier agora d'ontro Cancioni-iro nos-
so qtie se eslú iniprimimlo em Paris — o celebre Cancionei-
ro ms. irelrei D- Diniz — achado pelo Exni.° Sr. Viscon-
de (la Carreira cm líiiina.
(::) No Furci/jiiQniirlih/ Tievicw, lom. \', 1032, encon-
trámos I.nniljCni uns fríi;;rn(Mitos tia yiíloziíiíía (radtizidos em
inglcz , rjiie provam qnaiilo om Iniílaterra Reaprecia esle
género de poesia , e se estimam os cscriplos do Sr. Garrett.
romance novo, como todos os mais que se lhe se-
guem , — .1 noilc de S. João — cheio de poesia e
do colorido da antiguidade local c da epocha ; qua-
lidades que muito mais c brilhantemente se desin-
volvem no que se lhe segue — O anjo c a princeza
— em que o mysticismo e o fanático d'uma crença
sem illustração mas cândida , são mui bem imita-
dos das trovas-lendas dos menestréis. O chapim d' ei-
vei, «é uma xácara reconstruída de fragmentos da
composição popular.» Na introducção deste roman-
ce levanta o Sr. Garrett a questão da dilferença que
porventura se dá entre xácara, soláu ou rimance.
iSão é fácil marcar a dislincção , ao menos por em-
quanto que não está ainda explorada , nem ao me-
nos sondada , a origem e historia da nossa littera-
tnra , alem do século 15." Temos para nós que o
soláu , como nos parece indicá-lo o vocábulo , é o
canto d'nm só, isto c, que narra lamentando, ou
só moralisa a desgraça amorosa acontecida a um
personagem: seria talvez o propriamente lyrico da-
quellas idades. E julgámos assim harmonisados os
dois logares de Bernardim Hiheiro e Sá de Miran-
da, citados pelo andor sobre este mesmo vocábulo.
O rimance [irimilivo não admitte tantas duvidas
nem coiijceluras , pelo menos a convenção lem-lhe
dado uma certa classificação épica , que desfrucla
sem controvérsia. Resla-nos porem a xácara, cuja
definição nos parece ainda mais dillicil do que a
de soláu. lí certo que a forma dramática predomi-
na em certas composições , que porventura por isso
se chamavam xácara, mas até que ponlo isto é ver-
dadeiro é o que nos não atrevemos a assignar. En-
tre os trovadores , e nas poesias palacianas da epo-
cha, não ha memoria de dramas d'onde o povo por
imitação fizesse as suas xácaras; por outro lado pa-
rece liira do natural que a poesia provençal que se
exerceu em todos os géneros , não se ensaiasse no
mais poético e philosopliico de todos — o dramáti-
co. Na vida dos poetas provençacs falla-se, é verda-
de, n'nma certa comedia d'Anselmo laidit [Erejia
deis preveires] a Heresia dos padres, que se diz re-
presentada nu corte do marquez dcIMontfcrrat. Mas
a isto ser verdade, seria pos.sivel que esta compo-
sição fosse singular no seu género? e se isso não é
possível, onde estão as memorias d'outras similhan-
tes? Como quer que seja, conhece-se uma certa
composição provençal, denominada tenso, que era
um dialogo em forma de disputa, e de que Uay-
nouard nos cita um specimen ; mas isto tudo está
muilo longe da espécie de rimance cm que se in-
troduzem interlocutores, a que especialmente o Sr.
Garrett chama xácara. A dislincção pode e convirá
acceilar-se , porem os fundamcnios para ella é que
nós não podemos ainda encontrar na auctoridade an-
tiga nem na nossa imaginação (§).
O volume termina com o bonito romance de —
Uozalinda — em quanto a nós o mais poelico de to-
dos ; ha nelle tal força de sentimento, uma tal bel-
leza de narração, uma imagem Ião palbetica , jun-
to tudo a uma tal concisão c singeleza , que nos
prendo o encanta. Com tal remate , ainda quando
não houvessem tantas outras rasões para isso , for-
çosamente se nos estimulam os desejos de novas pu-
blicações deste género, e nos cresce a anciã de ver
a continuação do tão bem , mas apenas , encetado
romanceiro , que o Sr. Garrett nos allirma achar-se
prompto ; c por isso a brevidade em satisfazer a cu-
{^) Não ignorAmos porem, que D. Francisco l\[anuel,
mni boa aiidoridaOe , nos <liz = e começaram logo um dia-
logo em verso , ú maneira de xúcara. =
o PANORAMA.
407
riosidade publica só está dependente dos Sr." Edi-
tores, que muito confiámos nos não hãode fazer es-
perar, e redobrarão o seu zelo tanto na brc\ idade
como na nitidez da edição, de que este volume nos
é boa prova, pelo esmero com que saliiu impresso,
asselinado e correcto.
Mas aquella affirmaliva do Sr. Garrett não se li-
mita ao seu Komaiicciro : outra producção sua, que
ainda inédita goza já de cre<litos coUossaes, está a
ponto de sabir á luz — é o seu excellente drama
Fr. Lrii: de Sousa , de que a inspiração, a sensi-
bilidade, e a arte fizeram um modelo no seu gé-
nero.
lia ainda outra Obra importantíssima de que se
nos proraelte também em breve o começo da publi-
cação— Os nltimos vinte annos da historia de Por-
tugal—cujo assumpto summaraeute embaraçoso e
delicado, não duvidamos que seja tratado pela phi-
losophia, experiência , e idcas de tolerância do Sr.
Garrett , cora esse tacto fino , penetração , e espiri-
to patriótico que tanto o distinguem como estadista.
Tornando porem ao Uomancciro , de que o termo
da revista do seu primeiro vulume nos desviou ,
parece-nos que o Sr. Garrett no concertar , recom-
por , c arremedar cslas composições c relíquias da
nossa antiga poesia popular , ba-de desmentir Gtr-
Ihe, apezar de Ião conhecedor como experiente d'cs-
le objecto. «Nós os modernos [disse elle] sabemos
mui bem sentir a grande belleza d' um assumpto
simples, c natural, sabemos como elle se deve con-
tar , e todavia não nos desempenhámos quando o
queremos fazer. O espirito nos domina demasiada-
mente , e abafa todas as graças naluraes. » Porem
o Sr. Garrett, na Rozalinda, no Clmpim d'ehei, no
Anjo c a Princcza , não só sentiu essa naturalidade
e singeleza , mas soube também exprimi-la com to-
da a propriedade e graça ingénua do pensamento
primitivo.
Ainda não concluiremos sem ao menos lembrar o
fructo que desta collecção de trovas se poderia ti-
rar se se resolvessem certos pontos que suscita a sua
leitura. Tocaremos nos que nos parecem mais prin-
cipaes.
Poderá organisar-se esta collecção tão sysleraati-
camente , desde o tempo a que se remouta até ao
cm que fiiialisa , que possa servir para por ella es-
tudarmos e conhecermos não só os diversos lypos
mas também os dilTerentes cyclos da nossa poesia
popular? É idéa assentada que toda a poesia i)rimi-
tiva ó de narração : a infância das nações é toda
acção , e consequentcmeule a poesia oriunda d'esta
infância deve ser épica : d'aqui a maior antiguida-
de do romance e da xácara ; depois vem o solau ,
porque a poesia lyrica que nos expressa pura e sim-
plesmente o «sentimento» só pode proceder da re-
flexão, e consequentemente de mais quietação d'a-
nimo , e permanência d'estado.
A antiguidade d'estas trovas poderá fixar-se pelo
seu caracter ou pela sua forma? O mecanismo do
seu melro é cora cffeilo originariamente portuguez?
A continuidade da mesma rima n'a!gíjmas será pe-
culiar a certa espécie , ou é arbitraria , ou emfim
pertence exclusivamente a algum cyclo?
Esla poesia voluptuosa, exaltada, extravagante,
mystica, tudo ao mesmo tempo, forçosamente solTreu
modificações provindas dos costumes e illustração
do povo, visto que procedia dos mais Íntimos sen-
timentos delle : logo, que grau de importância chro-
nologica c moral púJe ler esla poesia na historia
pátria ?
Datam porventura os riraances desde o aconteci-
mento a que se referem? É certo que as interru-
pções extravagantes , a falia de nexo , a scisão da
narrativa, mauifeslando o improviso, prcsnpõe lam-
bem cabal conliccimenlo do assumpto não só em
quem narra, mas lambem que facilmente se sup-
pi"iz existir nas pessoas a quem elle se contava.
O cantar à dcsyarrada , usado ainda hoje pelos
nossos camponezcs, derivará destes cantos popula-
res, ou em sua origem não foram clles mais do que
isso, com similhante melopea e ryihmo, applicados
a um assumpto conhecido?
Pensamos que a elucidação destes tópicos não
interessaria só a historia littcraria, e em especial a
deste género de poesia , mas que aproveitaria lam-
bem muito á historia da nação em geral , que não
seja uma lista chronologica de factos mais ou me-
nos notáveis, mas verdadeira historia de nossos cos-
tumes, civilisação c exislcncia.
Silva Leal.
As nOAS TESTAS.
Bem cerlos de que nos choverão apupos d'um povo
que por ahi blasona d'iiluslrado , nem por isso nos
acovardámos , nem tememos sahir a publico com
emboras de Boas festas. Por quanto menos podem
em nós rasões de tibieza para com os bons costu-
mes , que o exemplo de nuiilos séculos fundado na
santa consideração que devemos á honra do Divino
Libertador. Nasce o filho d'um rei da terra, que ás
vezes traz comsigo o gérmen da tyrannia n'uma Ín-
dole de ferro, é publico e geral o regosijo, todos
se promettem venturas , quando lalvez o chorar fo-
ra melhor acerto ! Nasceu o Primogénito do Rei dos
reis, provou-nos seu infinito amor ao ponto de per-
der ávida á força de affronlas e tormentos; e o filho
ingrato desse Pai , o vassallo indigno desse Sobera-
no que o arrancou dos eternos cárceres, fazendo-lhe
arrojar as cadèas aos pés do vencedor confundido ,
hade corrcr-se de mnuifeslar o seu contenlamento
pelo dia Natal do seu Redemplor I A causa bem sa-
bida é. Essa raachiua reformadora do século , que
parece rolar como um mundo de bronze por cima
deste nosso mundo, arrasando quanto não é seu sem
nenhum respeito a conveniências e necessidades,
não cança de entender em seu ofiicio. O costume de
nos felicitarmos por Ião boa nova era edificio golhi-
co , força era desabar , c como não linha niateriaes
que armassem para uma praça de touros, ou para
um thealro , justificou-se o feito com o desassom-
bramento da impiedade , que assim se poderá me-
lhor espraiar tendo de menos esse pilar que lhe da-
va de rosto. Senão, que oulra cousa lucrámos dabi?
e porque não foi lambem ao chão com ornais nobre
do edificio a intemperança na consoada, que de tan-
tas irreverências e desacatos acompanha a Missa do
Gallo? Fica só o que é abuso máu e pernicioso, e
acaba o que era instituição louvável e santa I nem
mais ha\ia a esperar da civilisação do Icmpo , que
com quanto pareça vai a melhor, caminha tão ar-
rastada que só á força de muito quebrar os olhos
se lhe enxerga adiantamento. Convimos cm quencm
tudo que não é d'agora seja bom , e fora o discor-
dar absurdo senão rematada loucura : porem ande
o discernimenlo e o bom juízo a par da reforma , e
saibamos, anles de destruir, a rasão porque se fará,
e o fim para que. Em nosso pouco discorrer enten-
demos que será sempre de nenhum proveito qual-
408
O PANORAMA.
quer mudança no que toca a religião, ou no que
delia nos veio, sendo aliás sabida a perda. Quere-
mos reformarão , mas nos abusos e superstições a
que o povo está ainda tão aferrado como a princí-
pios de fé. Não se faça duvida no que temos pre-
senciado com muita mngua do nosso coração. Gen-
le lia que não duvida despender cora benzedeiras e
impostores todo seu haver , como se lhe figure que
em sua casa anda alma do outro mundo. Nomeára-
mos aqui terras e nomes de indivíduos em testemu-
nho nosso , se a caridade nos não desviasse de as-
soalhar fraquezas do próximo. Também notámos to-
dos os dias o terror com que alguns encaram aquel-
la mulher que suspeitam professa nas artes de bru-
xaria , a quem fazem carregar com a morte das
creanças e dos gados, com as doenças prolongadas
que padecem , e com todos os seus desastres. Fi-
nalmente nos Idbishomens , agouros , encantamentos
e sortes, nas ofiertas de pão, vinho e gallinhas, que
vão na frente dos sahimentos , representando ao vi-
vo as comesanas da gentilidade; nisto e no mais
que se pratica com tanto dcscaro , particularmente
nas aldeias, desejámos ver descarregar a espada da
illuslração , persegnindo a justiça os embusteiros
como fomentadores da idolatria , conlra os quacs
não faltara leis ; e tomando os sacerdotes a peito
corrigir o povo pelos meios que lhes sobram, re-
correndo ora á auctoridade dos livros sagrados, ora
ao rigor das penitencias ao seu alcance. Hepetimos
que das diligencias dos clérigos se alcançaria nesta
parte grande proveito , não sendo comtudo menor a
obrigação que lhes peza de velarem pela pureza da
religião que seu Divino Mestre ensinou ; pureza a
que tão estreitamente anda ligada a felicidade espi-
ritual e temporal dos povos. Porem nisto não se cui-
da, nem talvez se repara, c só se julgou convenien-
te desprezar a antigualha das Buas Festas, Ião inno-
cente , tanto de louvar, e tão digna do povo chris-
lão. Alguém a taxa de incommoda ! bem importu-
no, traquina, e desalmado é o entrudo, e ninguém
se poupa ás suas desenvolturas ! só para a honra
de Deus ha escrúpulos e delicadezas — e vamos ca-
minho da civilisação 1 Para muita gente passaria
não sentida a festa do Natal , se a gula a não trou-
xesse de memoria , sem lembrar o exemplo d'abs-
linencia e pobreza que nos deu aquelle Divino In-
liocentinho , deitado em humildes palhas , e sem
outro travesseiro que o regaço de sua AirgemMãi.
Concluiremos pedindo que vá por diante o nosso
santo costume das Boas Festas , que será para não
poucos de severa reprehensão por não entrarem
n'um templo, nem lançarem mão d'um livro espi-
ritual no primeiro dia solcmne do christianismo.
N. M. de Sousa Moura.
E301TC1CIA D01CS3:?IC!A (•)•
A FftcuLA , ou a parte gomosa e gelatinosa dos
grãos é composta de pequeníssimos vasos ou saccos,
dentro dos quaes se encerra aquclla substancia nu-
tritiva : estes envolutorios abrem e arrebentam su-
jeitando o grão a uma certa temperatura de calor.
Ora ó visivel que quando os animaes ingerem estes
saccos inteiros de fécula , elles passam pelas vias
digestivas sem deixarem ahi a substancia gomosa
eminentemente nutriente, l-j é precisamente o que
acontece quando se ministram aos animaes grãos ou
farinhas cm crú. Como todas as cousas novas tem
(•) Coucluido de pag. 392.
seus oppositorcs disseram também desta que o grão
perderia pela coscdura os princípios estimulantes
que elle encerra , assim como o sabor aromático
que excita o appelite, e talvez outros bons e fiei tos ;
porem contra isso está a experiência ; e nma parte
desse inconveniente se remove escaldando apenas
cm agua fervendo os grãos e farinhas. As vantagens
da pratica que propomos consistem nos principios
seguintes: 1.° melhor alimento nutritivo pela fécu-
la ou substancia gomosa aproveitada ; 2.° livrar os
animaes das indigestões , encruamenlos e tenesmos
que ocasiona o methodo contrario; 3.° economia ,
porque todo o grão se converte em alimento dige-
rivel cm logar de perder-se uma parte delle que se
não digere; 4.° augmentar o volume da ração quan-
do sujeita á acção da agua a ferver ; S.° tirar ao
grão a pragana e o pó , que sempre mais ou menos
o acompanha em crú ; 6.° o admittir-se por esta
pratica uma maior extensão de grãos para ração ca-
vallar, como é, alem da avèa e da cevada, a do
milho e do centeio , que sendo escaldados podem
minislrar-se sem escrúpulo, assim como a fava que
dá grande vigor e energia aos cavallos.
Da coscdura de fruclos por meio do vapor.
No angulo interno de dois muros cm sitio abri-
gado , n'um páteo , ou rocio, ou quintal se estabe-
lece sobro dois poiaes ou paredes de dois palmos
d'clevação uma caldeira de modo que fique bem
ajustada tapando-se e barrando-se os intervallos pa-^
ra se não perder a acção do fogo : e estabelecida
assim como caldeira d'alambique , se lhe ajusta na
boca em lodo o seu diâmetro um barril de pau bem
vedado, e cujo fundo fora furado a miúdo como
crivo ralo , afim de receber commodamente o va-
por : deita-se uma porção d'agua que não encha
totalmente a caldeira ; e se enche o barril de bata-
tas , maçaãs, ou outros quacsqucr fruclos ou legu-
mes que se pertenda coser: e preparado assim mel-
tc-sc o fogo por baixo da caldeira. A agua chega á
ebulição e evpelle o vapor lodo que sobe pelo crivo
do fundo do barril, e dentro de duas horas tem co-
sido mais ou menos os fruclos sobrepostos segundo
sua natureza mais ou menos branda. Para assegu-
rar se a coscdura está completamente feita se deixa
no tampo superior do barril um botoque que se con-
serva fechado durante a coscdura , e se tira para
fazer a prova , á qual se procede apalpando os fru-
clos ou legumes com uma agulha ou colher de ca-
bo torto para não queimar as mãos pela acção for-
tíssima do vapor.
Todo o segredo desta operação cm geral consiste
em que o vapor não possa sahir nem distrahir-sc
senão para o barril superior, c cm que o barril te-
nha assaz de espessura e calafeto para concentrar
o calor dentro do seu bojo. O maior ou menor espa-
ço de tempo da coscdura depende , alem da quali-
dade particular dos fruclos ou legumes , da quanti-
dade do vapor fornecido n'nm tempo dado , e este
será tanto mais enérgico e abundante quanto o fogo
for mais vivo e mais constantemente mantido.
f§^^ Os 5)»-.'" Subscriptorcs , residentes em ter-
ras onde a Sociedade não tem correspondentes , que-
rendo continuar , podem mandar renovar quanto an-
tes as suas assignaluras , enviando as importâncias
pelo Seguro do Correio geral , porte pago , afim de
que não so/fram interrupção no recebimento do Jornal.
105
o PANORAMA.
iOÍ>
^?
PAUIS,
Os LIMITES de Paris foram assignalados pela mura-
lha erecta para a verificação e percepção dos direi-
tos de barreira sobre os géneros do consumo da ca-
pital , em tempo de I-uiz 16.° : é ura contorno que
apesar de interrompido por muitas irregularidades,
approxima-se á figura elliptica ou oval : as barrei-
ras já furam mais , porem ficaram reduzidas a 30 ,
em 1830. — Nada tem esta cerca com as fortifica-
ções ou linha de defeza , que estão construindo
agora , e que vai correr com muito mais extenso
diâmetro, alem da povoarão compacta. Por fora dos
muros ha um caminho . guarnecido de lamcdas , e
é o que chamam boulevards exteiicurs , couraças
da banda de fora. Eminências em todo o circuito
fecham a cidade , que está situada n'uma baixa ,
como amplíssima bacia ou caldeira. A população
em 1836 era de 909,126 almas (.).
Acerca actual abrange alguns bairros, que d'an-
tes estavam fora das muralhas demolidas por Luiz
14.° e eram denominadas faux-hourgs , arrabaldes,
nome que ainda conservam : algumas aldeias, anti-
gamente apartadas, mas que pelo gradual incremen-
to da cidade adquiriram o caracter de subúrbios ,
também se acham comprchendidas no recinto d'a-
gora , e dão nome a bairros particulares. São hoje
propriamente suburbanas as povoações próximas e
em redor de Paris, alem da linha fiscal traçada
reinando Luiz 16.°; comoPassy, Monlmartre, .Mont-
rouge , Grenelie e outras.
O Sena atravessa a cidade partindo-a em duas
partes desiguaes, sendo a da margem do norte mui-
to maior. — ■ Xs margens do rio e das porções cen-
traes , que chamam ilhas , são com pequena inter-
rupção occupadas por cacs de cantaria com para-
peitos, formando largas e contínuas ruas ; era diver-
sos intervallos ha logares para desembarque de fa-
zendas , aos quaes os francezes condecoram com o
nome de portos : numerosas pontes estão lançadas
sobre o Sena , ligando as duas beiras e as ilhas re-
ciprocamente.
A maior das praças é a de Luiz lo.° ou da Con-
córdia , as outras principaes são a ^'endòme, a das
Victorias , e a de Trone , ambas circulares , a do
Carroussel, e a Praça-real : não são ajardinadas co-
(•J Juntando o que dizemos agora ao *|ue se lè a paj.
177 e se;». , obler-se-lia sufficienle noticia da capita! franceza.
Deze.\ibro 30— 18Í-3.
mo as de Londres , porem algumas ornadas de co-
lumnas, estatuas, chafarizes, e outras decorações
magnificas. Ha sumptuosos jardins e passeios pú-
blicos , como os dos paços das Tulherias , Luxera-
bourg, e Palais-Roral ; os Campos-elysios ; a lame-
da de Xeuilly e as numerosas na proximidade da
Escola Militar , que são ruas alinhadas de arvore-
do , como os boulevards exteriores. O Campo de
Marte é mui espaçoso, adjuncto á Escola Militar,
e onde se passam as revistas á tropa. A Esplanada
dos Inválidos estende seus jardins desde o hospício
daquelles até a beira do rio.
Longo fora descrever os edificios públicos , c de
alguns já temos escripto noticia especial : somente
indicaremos os notáveis , dividindo a sua lista em
três epochas : a primeira dos antigos , desde a ce-
lebrada calhedral dedicada á Virgem SS.""' , e o
templo de S. Germano dito dos prados ou campos ,
obras do século undécimo ; até ás duas praças des
Tictoircs e Vendõme, construcções doarchitecto Man-
sard nos fins do século 17." — achámos nesta clas-
se as igrejas la Sainte Chapelle e S. Severino ,
bellos edificios gothicos, S. Germano dito IWuxer-
rois, S. Mery, St.° Eustachio, St. "Estevão do .Mon-
te , lambem gothicos, o palácio ou hòlel de Clu-
gny , convertido agora em museu , o chafariz ma-
gnifico, denominado dos — innocentes, — a casa ou
hotel municipal , os paços do Louvrc velho e das
Tolherias , a Ponte-.Nova , S. Gervásio , e as obras
do século 17.°, a saber, palácios o do Tribunal de
Justiça . o de Luxcmbourg onde está a camará dos
Pares , a frente oriental do Louvre , a igreja da
Sort)onna , a de Val-de-Graça com seu desmesura-
do zimbório , o Collegio Jlazarino hoje o Instituto ,
o Observatório , a bem proporcionada rotunda con-
sagrada á Assumpção de N." Sr.^ , a Porta de S.
Diniz, e a de S. Martim, o Hospital dos inválidos,
e as duas praças supra-mcncionadas. — Segunda
epocha : século 18. ° — O palácio rEIjsée, o de
Bourbon, occupaiio pela camará dos Deputados;
igrejas, S. Sulpicio , S. Roque, S. Filippe , St.''
Genoveva To Pantheon] ; o chafariz ou fonte de Gre-
nelie ; a Escola Militar, a de Ghirurgia ; Ilallo ou
mercado do trigo ; a nova frontaria do Palais de
Justice, o Palais Royal , o hotel de Saim [palácio
da Legião d'Honra] ; a Casa da Moeda ; o Lyceu
2.* Serie. — Voi.. II.
410
O PANORAMA.
Bourbon ; os theatros Odéon e o italiano que ardeu
om 1836, a opera Acadcraie de musique; e a Pon-
te de Luiz 1G.° — Terceira epoclia : o corrente sé-
culo:— Uua Uivoli , igreja da Magiialena , a Pon-
te das Aries, a arcada das Tulherias , a colunina
Vcndòme , Arco da Estrella , Ponle de Jena ou dos
inválidos, Fonte da Palmeira, pórtico da Camará
dos Deputados, Bolsa ou praça. Secretaria dos Ne-
gocios-estrangeiros [Quai d'Ursay] , llalle ou mer-
cado dos vinhos , Fonte Bondy , mercado S. Ger-
mão , Capelia expiatória começada em 1813, Es-
chola das Bellas-Artes , columna de Julho, Ponte
do Carroussel , reconstrucç<ão interior do Palais de
Justice, restaurações no Ilòtel de Ville , ohelisco
de Luxor , fontes e ornatos da praça da Concórdia ,
igreja do arrabalde S. Germão , N." Sr." do Loret-
to , S. Vicente de Paulo.
Pela variedade e quantidade de seus productos
industriaes Paris entra em o numero das principaes
cidades fabricantes. As alcatifas e tapeçarias da fa-
brica des Gohelins são conhecidas geralmente , bem
como os chalés de cachemira , de seda , e de laãs.
Manufactura estofos delgados , fazendas d'algodão ,
chapéus, barretes, luvas, galões, rendas, e infi-
nidade de objectos d'invenção de modas ; alem dis-
so, obras de ourives, quinqualherias, relógios, mo-
veis de raateriaes artificiaes , instrumentos malhe-
maticos, physicos , e de musica, armas de fogo,
obras de cutelaria , de serralheria , e de corrieiro
6 selleiro, carruagens, colla , papeis pintados e de
forrar, licores e doces exquisitos. As artes, typo-
graphica , de desenho, gravura e lithographia , tra-
balham alli com grande apuro cm mui extensa es-
cala, bem como as fabricas de productos chimicos,
as tinturarias, a refinação do assucar e outros mui-
tos ramos d'industria. — O commercio comprehen-
de os objectos, que acabámos de mencionar, e ou-
tros que exige o consumo assim desta capital tão
vasta como do districto de que é cabeça. Os opu-
lentos fabricantes de l.yão , Ruão, c outras terras
industriosas das províncias, tem suas agencias e de-
pósitos em Paris.
Apontamentos paha a Historia dos bens da coroa
e dos fohaes.
Tem-se crido e dito geralmente desde que a histo-
ria começou a ser cousa mais séria e grave do
que a narração exclusiva de dois casamentos , qua-
tro enterros, c seis batalhas; tem-se crido e di-
to que a idade media no seu systema penal vendia
quasi absolutamente por ouro a impunidade do cri-
me. A letra dos foraes parece auctorisar esta 0|)i-
nião que por muito tempo foi a nossa. Hoje estamos
persuadidos de que cila deve ser grandemente mo-
dificada. As penas pecuniárias nem eram tão geraes
como se crê, nem eram um trafico feito pela força
publica da justiça dos indivíduos. Guardámos para
outra parte o desinvolver esta idéa , que não cabe
aqui, tanto porque nos obrigaria a dilatarmo-nos mui-
to, como por ser alheia á natureza do presente tra-
balho : mas apontaremos o fio que nos guiou , fal-
laiido das cuZií))!)iíai ou coimas que em nos.^o enten-
der se devem chamar antes iinposlos criminaes , do
que j)enas dos crimes. Estes impostos formavam uma
das partes mais productivas das rendas dos conce-
lhos , tanto para o rei ou para o tenente ou donatá-
rio que o representava , como para os próprios mu-
nicípios.
A calumnia estcndia-se a todos os actos crimino-
sos , que naquella epocha eram qualificados de um
modo diverso do d'hoje. Para o homicídio , para o
rausso [rapto violento da mulher casada ou filha famí-
lia], para os arrombamentos ou destruição de habi-
tações, para o furto, para as rixas cm logares pú-
blicos, para as injurias pessoaes , &c. , o foral es-
tabelecia especialmente coimas, cuja taxa variava
segundo a gravidade da culpa. Naquelles tempos de
ferocidade e bruteza , as paixões violentas transpu-
nham cora fúria a todo o momento os limites dojus-
to e do legal: assim as coimas que ora pertenciam
inteiramente ao fisco (ad paíaciuin) , ora cm parte
a este e o resto ao concelho (septima ad pataciíim),
deviam produzir um rendimento importante. Tam-
bém n'alguns casos serviam como emolumentos dos
juizes.
Estas coimas , porem , constituiam a verdadeira
e única penalidade ?— -O exame attento dos foraes
nos revela o contrario. Duas expressões ha nesses
diplomas que se muitas vezes se confundem, muitas
mais guardam certa distincção, que não ó possível
desattcnder ; pague (pcctct) indica regularmente o
preceito da solução de calumnia ; componha (cumpo-
iiatj parece representar o principio da reparação ao
oflendido. Provavelmente na maior parte dos casos
esta reparação era pecuniária ; mas isso mesmo bas-
ta para collocar o systema penal da idade media a
mui difícrente luz. O estado impunha ao criminoso
uma [lena que era um verdadeiro tributo: — a coi-
ma. O mordomo, ou ollicial de fazenda local, a rece-
bia , e tinha por ella acção contra o culpado ; mas
ao aggravado devia o alvazil ou juiz dar seu direi-
to. A execução do pcctct escripto no foral pertencia
ao primeiro , a do coinpvnat incumbia ao segundo o
torna-la elTectiva.
Se partirmos desta idéa na apprcciação dos foraes
vè-la-hemos confirmada pela doutrina das suas dis-
posições , que sem ella ficarão muitas vezes inin-
telligiveis. Quando em certos foraes se impõe ao
homicida uns tantos soldos ad palacium , annulla-se
acaso o direito de revindicta , isto é , de os paren-
tes do morto vingarem este com a morte do mata-
dor ou de algum dos seus parentes? Quando em
outros se estabelece a coima do rausso , c depois se
accrescenla que alem disso o roussador fique homi-
cida , isto é , sujeito á vingança sanguinolenta dos
oITendidos, não é aquella pena ura tributo, e a vin-
gança a punição? Destas e d'oulras bypotheses qne
Cdnstanlemcnte se encontram nos foraes resulta que
não pôde a caliinviia representar rigorosamente as
leis penaes do município.
Nós entendemos que nos costumes [muitos dos
quacs , escriplos ou não escriptos , eram reminis-
cências do código visigoihico, dos cânones dos con-
cilies anteriores e posteriores á entrada dos árabes,
e emfim d'usanças cuja origem se ignora, e porven-
tura da jurisprudência mahometana] estavam esta-
belecidas as verdadeiras leis penaes , e qne nos fo-
ros ou cartas de concelho as coimas ou penas pecu-
niárias representavam antes leis defazcnda. Se mui-
tas vezes, corno no crime de furto e em outros, pa-
rece cstabelecer-se uma pena peciuiiaria que é ver-
dadeira reparação, esta circnmstancia tornava-sc
necessária , porque sendo a coima freqnciilemcnte
nm quanlum deduzido dessa pena , ou regulado por
ella , cumpria para evitar duvidas que no foral se
declarasse qual era; nem temos motivo algum para
o PA1VORA3IA.
41 í
suppòr que alii se alterassem as penas que os cos-
tumes , onde os havia, liiiliam estabelecido.
Por estas rápidas indicações os espiritos allcn-
tos poderão checar ao resultado a que nós clicgn-
mos de Ciinsideiar as leis ponaes das cartas de inu-
nicipio ciiino simples leis de imposto . c de as re-
duzir a uma das cansas a que attrihuimos princi-
palmente a prop.iiração dos concelhos — á nccessí-
dr.de de trazer rendimentos aos cofres do estado ,
que os privilégios das classes aristocráticas tendiam
a em[)oljrccrr.
Temus examinado a existência dos concelhos na
parle das suas relações externas que respeitam á
economia publica O estudo da vida municipal c ,
porem , muito mais vasto , e o que havemus appre-
sentado ao leitor é apenas um dos seus aspectos.
Força c contentarmo-nos com isso , para não lugir-
mos da questão que nos occupa.
Que havemos nós visto nesse attento exame? A
creação de uma espécie demilicia quasi feudal, que
possue as terras, privilegiadas por foro, com a obri-
gação do serviço pessoal militar feito ao rei como
suzerano commiim : o estabelecimento de uma cer-
ta somma de tributos recahindo principalmente so-
bre os homens do povo que não pagavam essoutro
tributo de sangue: — finalmente a união liosvillões,
que dispersos ou desunidos nada valeriam contra os
nobres, mas que ligados por direitos, privilégios e
obrigações communs , conslituiam enliilades moraes
fortes e activas , cujns interesses eram oppostos aos
das classes aristocráticas, o alto-clero e nobreza, e
a que por isso a munarchia naturalmente se alliava
nas suas luctas com ellas.
E esta aggregação de homens do povo , lançados
cm grupos por toda a superfície do paiz, rcalisa de
feito o triplicado fim da sua existência. A grande
acção dos concelhos no progresso social da nação não
foi prevista , ao menos alé a sua derradeira conse-
quência— a victoria da classe burgiieza n'uma epo-
cha remota que é a nossa : mas sentiu-sc desde lo-
go que elles eram um elemento de ordem e força
contra as violências dos poderosos. — O piincipio
monarchico armava-se com elle para se emancipar
das mãos da aristocracia , fortalecer-se e organisar
a sociedade. Afiira esta politica — se politica pôde
chamar-se ao instincto da própria existência , c ao
desejo do predominio — nenhum outro pensamento
nos parece ter havido na promulgação dos foracs.
Estes não crearam situações novas para os indiví-
duos em particular ; porque antes e a par delles ,
desde o homem d'armas alé omalado ou servo, ha-
via todas as gradações na classe popular , e exis-
tiam os tributos que encontrámos nos concelhos ; o
que o poder central fez nestes foi dilatar isso tudo,
constitui-lo permanentemente, garanti-lo, dar-lhe
um caracter publico, e crear o serviço militar não
pago. Nos coutos, nas honras, nos prestamos da co-
roa encontram-se. ora n'nns ora n"outros, vestígios
das diversas classes de villões , das diversas espé-
cies de contribuições que apparccem nos concelhos
e outras mais: ahi, porem , tudo depende do Do-
minux do Couto e da Honra , ou do préslameiro ,
porque o poder supremo nenhuma acção exercita
dentro desses senhorios; nem ahi ba pacto geral en-
tre o senhor e os súbditos: as terras são dadas por
titulo especial, segundo este as contribuições , os
direitos, e os deveres variam de casal para casal,
de conrella para courella ; e quando sobre qualquer
desses pontos se alevanlasse uma contestação, lá es-
tava o juiz, posto pelo senhor ou donatário , para
julgar a seu prazer. A condição legal dos habitan-
tes era abi pouco mais ou menos a mesma que a
dos membros dos municípios , mas a sua situação
real era inteiramente di\ersa — diversa quanto o pô-
de ser dep( niicudo l,i do arbítrio , c;i luiicamenle
das disposições de um pact<i. O donatário de uma
terra municipal (içava adstricto aos bons-foros : se
(IS quizesse quebrar encontraria anlc si um corpo
moral para lhe resistir , em quanto o préslameiro
de um couto ou honra acharia apenas ii!(li\iduos
fracos para estuíigar debaixo dos seus çapatos de
ferro.
Kesla-nos fallar d'nma espécie de propriedade
tributaria , que occupando uma importante porção
do solo nãoaugmeulava senão indirectamente a ren-
da do estado. Alludimos aos reguengos. Os reguen-
gos eram os bens patrimoniaes do rei. No principio
da nionarchia a distiucção destes bens dos da coroa
não era mui clara ; mas é certo que no fim da pri-
meira cpocha [reinado de D. AlTonso 3.°] a difie-
rença entre uns e outros eslava perfeitamente esta-
belecida. Estes reguengos eram herdades mais ou
menos vastas, encraNadas muitas vezes nos termos
dos concelhos, e os seus privilégios os maiores de-
pois dos de Coutos e Il(jnras ; mas taes privilégios
ficavam compensados pela exorbitância dos tributos.
Ordinariamente os reguengos, inteiros ou diwdidos,
davam-se a foro, mas foro que subindo as mais das
vezes ao quarto dos fructos raramente deixava de
ser sobrecarregado de outras exacções e serviços de
que se accrescentavam gravosos direitos de trans-
missão. D. Diniz distinguiu-se por cubica inexorá-
vel nos seus alToramentos de bens rcgucngueiros ;
mas essa cubica foi castigada , abandonando-lhe
muitas vezes os forciros as terras , por se tornar
impossivci para elles a solução dos foros.
Os reguengos, pois, não eram rigorosamente uma
fonte do rendimento publico; mas sendo destinados
á manutenção da casa do rei , e correspondendo ás
modernas dotações desgovernos constitucionaes, vi-
nham indirectamente aaugmentar o património pu-
blico, desobrigado assim desupprir as despezas pes-
soaes do príncipe.
J[as , porventura , esta distincção era mais real
quanto á natureza dos reguengos e á condição dos
seus habitantes do que pelo que tocava aos foros e
tributos que delles se tiravam. Não c muito prová-
vel que se guardasse uma dilTercnça exacta entre a
applicação dos rendimentos da coroa , e a dos ren-
dimentos do património real : o rei tendia natural-
mente em tudo a confundir-se com o estado , e os
livros do Ilccàhedo R((jni [o registo dos bens da co-
roa] não deviam tardar em constituir um só lodo
com os do llepiisilo ou Hepositorio [o registo dos bens
reguengos]. De feito já nos diplomas da primeira
epocha histórica vemos o rei chamar, tanto ás con-
tribuições municipaes e rendas próprias da coroa
como ás das herdades rcgucngueiras, meus foros, e
meus direitos (meos faros, iiwmn dircrlum). No se-
gundo período histórico , isto é do meado do sécu-
lo 13.° alé o fim do il." veremos effeetívamcDle
desvanccerem-so de todo em relação á economia da
fazenda publica, os traços que dividiam o patrimó-
nio do rei do património da sociedade.
Antes d'entrar nesse período resumamos as nos-
sas idéas sobre o syslcma dos tributos deduzidos
desses factos que temos appresenlado ao leitor , in-
sudicientes para a historia completa da economia na-
cional nos primeiros tempos damonarchia, mas bas-
tantes para se conhecerem os lineamentos principaes
412
O PANORAMA.
da nossa organisariío primitiva dos impostos na mais
larga signilicarão desta palavra.
Este resumo será breve, maseloquente : eloquen-
te não pelas palavras, mas pelas idéas ; pelos gran-
des factos sociaes que representa.
As tradições visigotiiicas, incarnadas na nossa so-
ciedade nascente, emliargaram que o feudalismo
penetrasse na essência desta , e apenas o lieixarauí
passar incompleto no accidental das iustituições :
assim entre nós os crimes , as tyrannias , as luctas
civis foram mais ténues , e antes filhas da barbaria
que da feudaliiiaile ; mas em compensação faltou-
nos o que nesta havia de boa orgauisação ; faltou-
nos essa vasta rede de obrigações mutuas, moraes
e materiaes , entre os senhores e os vassallos por
lodos os graus da complicada jerarchia feudal, que
era um poderoso elemento de ordem no meio das
trevas e da incerteza d'ÍHstituições e costumes. Se
entre nós a classe popular não cahiu em tão com-
pleta servidão como nos paizes de feudalismo ; se
os raalados e homens de crcação fhomincs de mala-
dia , hoiiiines de creationc) espécie de servos de gle-
ba formada provavelmente dos descendentes dos an-
tigos servos dos visigodos e dos criminosos reduzi-
dos á escravidão por pena (•); se esta raça, dize-
mos, desapparece rapidamente e se transforma em
raça de homens livres (forarii) , aggrcgando-se ao
grande vulto do povo, logo na fronte deste se escre-
ve um nomequeo distingua das classes nobres. Hon-
rado (lionnratus) é a palavra que designa o homem
do privilegio: liibularin (tribitlavius) a que indica
o liomcni que recebeu precípua a herança de Adão
— o trabalho. E estas duas designações revelam a
Índole intima da sociedade : o imposto é o marco
divisório dos dois campos: a villania resume-se no
tributo ; a nobreza na exempção.
Depois este pensamento derrama-se por Ioda a
parte, transforma-se por mil modos, varia por di-
versos aspectos ; está no âmago de todas as distinc-
ções. Contribuir ou não contribuir, eis o que se
reproduz universalmente no complexo dos deveres
e direitos políticos. Deste modo a sociedade inteira
em relação ás pessoas explíca-se pela historia da
fazenda publica , e por assim dizer contèm-se no
grémio delia.
Dois géneros de contribuições alimentavam a vi-
da social damonarchia sustentando a sua individua-
lidade e crescendo até os seus limites possíveis por
meio da guerra , organisando-sc interiormente por
meio de instituições e leis administrativas e judi-
ciarias , que para a sua execução precisavam , ao
menos em parle , de oliiciaes e magistrados pagos ,
e fortilicando-se interiormente para salvar a integri-
dade do território, erepellir as invasões. Estes dois
géneros de tributos eram, pois, — 1.°; os de san-
gue:— 2.°: os de productos, numerário, ou traba-
lho, que rigorosamente são idênticos. Todos elles re-
cahiam exclusivamente sobre a classe popular, e nes-
ta sobre uma parte só; sobre aquelles que não ha-
bitavam dentro dos limites dos coutos e honras : es-
ses na verdade pagavam mil espécies de foros, pen-
sões c foragens (ilin-clurw) , mas tudo revertia em
proveito (lo senhor da terra. Junto aos padrões que
marcavam o âmbito do território honrado expirava a
(•) Na Hislorhi Cuniposlell.ana , e iroulros nninumentos
priucipaMiiiMite rirladvus ao tiMiipo Jus reis ile Leão , adiá-
mos iiilli-iilo muda este castigo tão coinmum entre os visi-
godos.
acção dos exactores e ofliciaes do rei : passa-los era
correr o risco da mutilação ou da morte (:■.).
Mas ao menos estes poderosos senhores ajunta-
vam-se , ao brado de guerra , em volta dos pendões
reaes seguidos dos seus homens d'armas? Vinham
ao menos ahi aquelles cujas honras e coutos eram
prestamos da coroa ou verdadeiros benefícios, e re-
tribuíam em feitos militares a cessão que cm pro-
veito dellcs fazia o estado de uma importante parte
dosou património? Não'. Para o illustre rico-ho-
mcm montar, cuberto de todas as peças, no seu ca-
vallo de batalha c ir guerrear os inimigos da cruz
ou da pairia cumpria pagar-lhe, e o numero de seus
cavalleiros era regulado pela somma mais ou menos
avultada que percebia. .\s soldadas (soliilatw) dos
primeiros tempos da monarchia foram a origem das
quantias, que vamos encontrar na cpocha seguinte,
do mesmo modo que acharemos já aquellas na epo-
cha dos reis de Leão , se retrogradarmos alem do
berço da sociedade porlugueza.
Estas soldadas ou quantias sabiam necessariamen-
te das contribuições em géneros ou dinheiro pagas
pelos municípios , contribuições que , como vimos ,
recahiam só principalmente sobre os pcdones, tribu-
tários ou jugadeirus, e até certo ponto sobre os ca-
baltarios , cavalleiros villões , a quem tocava não só
o serviço militar gratuito , mas por via de regra o
principal imposto cm trabalho (amiduva) que até
certo ponto era serviço militar, sendo destinado á
edificação e restauração dos muros e castellos. Os
membros das aggrcgações populares chamadas conce-
lhos agricultavam pessoalmente a terra, seríiam na
guerra sem paga, e contribuíam para as despezas do
estado com aquella parte para que não bastavam as
rendas ordinárias dos bens da coroa , que diaria-
mente se desbaratavam em doações gratuitas ao al-
to-clero, e á nobreza , que faziam cultivar esses
bens por foros e pensões de mil espécies, cm pro-
veito seu particular : e depois o nobre servia como
o víilão na guerra, mas por um soldo tirado doque
esse mesmo villão pagava para supprir os rendi-
mentos da coroa, já devorados pelas classes aristo-
cráticas.
Era a ida á caça do leão com o veado. E foi ca-
çada que durou por alguns séculos.
(A. Herculano).
CAnTA DE D. IllERONIMO OsORIO, BISPO DE SlLVES,
A Elrei d. Sebastião sobue a expedição
DE Afkica.
Sekhou. — Se eu fora procurador da coroa, e tives-
se algum feito na mão, em que V. Alteza fosse réo ,
e fosse necessário dar-lhe delle relação, forçado se-
ria ler-lhe primeiro o processo que a contrarieda-
de ; o que nesta carta farei, com a verdade e leal-
dade que devo.
Confio no engenho, e real espirito deV.A., que
terá este por um dos maiores serviços, que lhe pos-
so fazer.
Os reis da Pérsia tinham muitas ordens de ser-
vidores , e sem os quaes entendiam , que era ira-
(::) ICslevão Pires de l\Inliies , cavalleiro do julgado de
Fatia, piilraiido-llie o niordnino d'elrei na sua ll<inra, eii-
forcoií-o ; e indo o alcaide fazer alii nnia penhora, decepou-
Ihe as mãos e depois malou-o. Jlem. da Acad. T. G. P. 2.*
pag. 130 N. (b).
o PANORAMA.
113
possível o governar bem sua nionarchia ; enlro el-
les havia uns a que elles chamaviíra seus olhos ,
a outros suas orelhas, a outros seus amigos. Os
muitos olhos lhes serviam de ver muitas cousas ,
que dois somente não podiam ver : as muitas ore-
lhas de ou\ir muilas querellas , que com só duas
se iião podiam ouvir: os muitos amigos de fallar
verdade, que os falsos amigos encobrem.
Seguiudo eu este estilo de bom e leal servidor,
quanto minhas forças alcançam, direi o que vejo,
e o que ouço , com amor tão verdadeiro , como sa-
be aquello Senhor, a que são manifestos os segre-
dos dos corações ; elle nos ensina no Evangelho o
que todos deviamos fazer com esta pergunta : —
(Jium diciiiit Iwmincs cssi- filium /io/íiíhís ? liem sa-
bia elle o que se delle diria ; com tudo, com esta
pergunta nos ensina a sermos curiosos , e inquirir
a forma de nossas obras, e vida. Ainda que a dou-
trina seja universal , aos principcs convém princi-
palmente folgar de saber o que se commuinmcnte
delles diz; porque, ;i volta de muitos desatinos jio-
pulares, ouvirão muitas cousas, que porventura nos
conselhos, ou por mal sabidas se não dizem, ou
por interesses particulares se não descobrem.
Não sei porque não folgará um príncipe da ter-
ra , pois disso tem tanta necessidade , de fazer o
que o principc dos céus , sem necessidade , para
nossa doutrina quiz fazer ; e porque não dirá, quan-
do fallar com homens amigos da verdade : — que
dizem lá de mim? — Se isto fizesse quantas verdades
saberia! Em Athenas havia pragas solenines , ins-
tituídas com publicas cercmonias em voz alta, com
palavras de grande terror, contra quem. por seu
particular intento , aconselhasse sua republica con-
tra o bem commum ; nellas se pedia á justiça divi-
na , que antes fossem destruídos , e toda a sua ge-
ração confundida.
Se isto se fazia em uma republica , onde havia
muitos príncipes, que podiam ser por qualquer ou-
tro cidadão desenganados, que se deve fazer em es-
tado soberano de um só príncipe, o qual se fôr en-
ganado , não ha mais em que pôr os olhos?
Grandes maleficios commette quem engana , ou
não desengana seu príncipe; um delles c traição,
o outro injúria atroz feita ao seu príncipe: porque,
se é traição não quererem os atalaias avisar o seu
capitão dos mouros que correm , como não será
muito maior traição encobrir a V. A. os perigos
que estão armados para perigo de Ioda a republi-
ca , se não fór soccorrida com tempo? Pois que di-
remos da injúria? Pôde ella ser maior que cuidar
alguém, que estima V. A. mais o gosto presente
das orelhas , que tão pouco dura e tanto mal faz ,
que o perpetuo remédio de seus vassallos? Não le-
rá V. A. em seu conselho quem trate mais de o
enganar ; mas , se por nossos peccados , houvesse
qnem tamanha traição , com tão grande injúria de
Vossa Pical Pessoa commeltesse, muito maiores pra-
gas que as de Athenas merecia.
Eu já , senhor , em quanto poder , fugirei destas
com dizer o que sinto, com a esperança que terei
disso o galardão, de Deus primeiramente, e depois
de V. A. ; ainda que, como no principio disse, não
direi agora tanto o que entendo, como o que ouço;
e como procurador , darei conta do libello , para
logo vir com a defeza.
Dizem primeiramente , que não será bom chris-
tão , nem bom portuguez , quem não der muitas
graças a Deus por nos dar um rei Ião virtuoso , e
de tão altos espíritos, que foge de mimos, e busca
trabalhos, e que se põe em lodo o risco pelo ac-
cresccntamcnto da santa fé catholica , e para des-
truição da infernal seita de Mafamede ; mas dizem
juntamente que como as virtudes andam juntas, não
se pôde chamar fortaleza a que não filr acom|)anha-
da de bom conselho , c que o conselho , que V. A.
tomou , não se pódc chamar bom , por ser fora do
tempo.
O ser fora de tempo , provam pela falta que ha
de dinheiro , e de munições, c de mantimentos , c
pela grande fome , que ao presente a maior parte
do reino padece. Dizem mais , que este tempo é
mais conveniente para a defensão do seu reino , a
qual é de muito maior obrigação , que para a con-
([uisla incerta de outro.
lia muita gente perdida cm França, Flandres,
c Inglaterra, da qual podem as terras marítimas de
Portugal e do Algarve receber mui grandes dam-
nos ; e segundo a fama , todos estão contentes com
esta mudança de \.\. por lhes parecer, que mui-
to mais a seu salvo usarão de seu ollicio : não po-
demos deixar de nns temer destes homens , por o
numero ser grande, e guardado pelo espirito de Sa-
tanaz ; porque não ha cousa que não commetta gen-
te sem fé , se tem algumas forças, quando chega o
estado do desesperação.
A isto se ajunta , que o grão-turco não dorme ;
pelo que todo o príncipe chrislão é obrigado a es-
tar aparelhado para a defensão da chrlstaudade, pois
o perigo é commum.
Dizem também, que grandes feitos não se podem
commetter sem grandes apercebimentos , os quaes
se não podem fazer em pouco tempo ; e alem disto,
que é necessário esperar uma conjuncção de discór-
dia , que não pode muito tardar entre mouros , e
não de qualquer discórdia , mas discórdia muito
ensanguentada ; porque até com medo commum le-
vemente se tira pór os inimigos em perigos que a
todos tocam, e facilmente se concertam; mas quan-
do a rotura delles chegar a tanto , que se não pos-
sam acordar , de tal maneira pode V. A. soccorrer
aos vencidos , e vencedores : esta é uma arte mui-
to antiga de conquistar, com que se fizeram gran-
des os mais dos capitães , e príncipes de grande
nome. Esta occasião qulzeram os homens, que V.
A. esperara.
Dizem lambem , que nunca guerra foi feita com
mais esforço que conselho, que podesse ler bom fim.
Confirmam isto com o triste successo do infante D.
Henrique , e do infante D. Fernando , o santo , seu
irmão , sobre Tangere , e com a primeira passada
de D. Affonso 5.°, e com os accommettimentos, sem
fructo , do infante D. Fernando, seu irmão, por tu-
do ser tratado com mais esforço que conselho. Dc-
me V. A. licença que diga tudo , pois comecei , e
que não encubra nada do que convém a seu serviço.
Dizem os prudentes , que o ollicio do bom rei
mais consiste em defender os seus , do que em of-
fender os inimigos; e que tanto é isto verdade,
que nenhuma gloria ganharam príncipes illustres nas
viclorias havidas contra seus inimigos, se delias não
resultasse a seguridade de seus vassallos.
Neste ponto se lamentam muitos, porque vêem
ao presente que Ioda a guerra que se havia de fazer
aos mouros , se fez , sem V. A. saber, a portugue-
zes ; e por conclusão , não falta quem diga , que
entre pressa e diligencia se não perde a occasião,
e a pressa não espera porèlla, e muito maiores in-
convenientes se seguem da muita pressa que da pou-
ca diligencia ; porque os muito accelerados choram
414
O PANORAMA.
o que perderam do seu, e os negligentes o que não
ganharam do alheio.
Estes são os principaes artigos dolibello, que se
fornia contra V. A. ; agora direi o que por parte de
V. A. se pude dizer.
1'rinR'iraiiiente digo , que os grandes espíritos,
são acconipaiihados de grandes esperanças, pelo que
mais cuidam nas grandes cmprezas que na íacilida-
de ou dillii^uidade delias ; e pela raaiur parte aos
grandes acconinieltimeiílos , quando não vão de lo-
do íóra do caminho , não faltam favores divinos ; e
que V. A. fundado nesta opinião, como se deter-
minou , ou com vida honrada , ou com morte glo-
riosa , dar signal de seu espirito, não pôde soIlVer
dilação; e que avictoria não está nas mãos dos ho-
mens , mas na vontade de Deus.
Pelo que, o ollicio do príncipe magnânimo é per-
der o medo a grandes emprezas, por perigosas que
sejam , e os successos delias deixá-los na disposi-
ção do Senhor. Digo também , como se não pódc
sempre, que são mais toleráveis os erros conimet-
tidos com sobejo esforço , que os cm que muitos
cahem por fraqueza ; porque nas cousas grandes ,
grandes perigos não carecem de louvor, e a fraque-
za é acomiianhada de perpetuo vitupério. Também
se pôde dizer, que quando V..V. se não poder pur-
gar de algum erro, a culpa se pôde diminuir com
o exemplo de grandes príncipes, que com o mesmo
cspíi íto cahiram em muitos grandes trabalhos.
KIrei D. Luiz de França , por fazer guerra com
mais ardente zelo do que conselho, foi de uma vez
caplivo , e da outra morto de peste sobre Tunes.
Imitou nisto o grande rei Jozías , que por entrar
em batalha , que podéra mui bem escusar, morreu
elle , e com elle toda a esperança de Jerusalém,
Passo por muitos exemplos antigos , por não en-
fadar a V. A. ; dos modernos direi alguns. O impe-
rador Maximiliano , sendo muito illustre príncipe,
fez entradas em Itália, e em algumas outras parles,
não somente sem fructo , mas também cora alguma
diminuição dos princíj)cs do império, e do seu cre-
dito , lendo toilo o necessário.
Que diremos do imperador vosso avô? Quem foi
mais animoso e mais excellente capitão? com tudo
iião deixou ds commetler cousas dignas de rejire-
liensão , e de receber delias mui graves damnos ,
como foi a entrada que fez cm Provença , como foi
a empreza d'Argel , fora de tempo , como foi tam-
bém o cerco de Aiilz.
Dír-mc-hão : de que servem estes exemplos? Res-
ponderei, que de vèr , que se nesta passada de V.
A. houve algum erro, o erro fica desculpado com
o exemplo e auctoridade de tão cxcellentcs prínci-
pes ; porque se elles em idade muílo mais robus-
ta , e com muito maior experiência, foram engana-
dos com os enganar o demasiado desejo de gloria ,
não é para espantar deV.A. cm muito menos ida-
de com o mesmo ardor de espirito , cabir em os
mesmos inconvenientes. Quanto mais, que esta pas-
sada não foi de todo sem fructo; porque viu com
os olhos o sitio d'Africa, c viu nesta profecia de
trabalhos quanto se deve aos homens, que padecem
fomes c sedes, frios e calmas ardentíssimas, e põem
a vida todas as horas em risco por serviço de Deus
c de V. A.
iMilendcm também , como se a guerra daqui por
diante havia de fazer. .4prendem linalmente santa
doutrina, que por ella se pode dizer, que foi ajor-
nada mais bem empregada.
lista a defcza , com que venho por parte de
Vossa Alteza ; e até aqui chegam minhas lettras.
Se daqui cm diante porem V. A. insistir em re-
sistir ao tempo , a quem a lei de Deus quer que
obedeçamos , busquc-se outro letrado melhor , por-
que não me atrevo cu a defender a causa ; porque
se faltar dinheiro , se faltarem mantimentos ; e não
se podendo remediar a gente que está junta , se se
ajuntar outra muita mais ; se vier nma invernada ;
se assim pela falta das cousas necessárias , como
pela contrariedade do tempo , começarem a morrer
os homens , e depois as bestas , veja V. A. quão
grande será a festa dos mouros , c quão grande a
tril)ul;içãu dos christãos.
ISão tenho eu aos mouros por tão pouco guerrei-
ros , que esperem batalha campal, vendo que sem
lança , e sem espada , podem ser desbaratados os
nossos nos rios, ás chuvas e ás calmas.
Balões aerostaticos.
Depois da leitura da Memoria que tem por objecto
revindícar para a nação portugueza a invenção das
machinas aerostaticas , escripla pelo Sr. Francisco
Freire de Carvalho , impressa no vol. de Memorias
da Academia das Sciencías ultimamente publicado,
não será licito a ânimos invejosos ou preoccnpados
roubar a prioridade da invenção dos aerostatos ao
engenhoso mcchanico e physico, o P.' Bartholomeu
Lourenço de (iusmão, por antonomásia o Yoadur, e
irmão do celebre ministro e conselheiro d'clrei D.
João 5.° , Alexandre; ambos naturaes de Santos ,
província de S.Paulo no império do lirasil. As refle-
xões que o erudito A. appresenta , fundando-as nos
documentos qne pôde colligir e nos testemunhos
que cila , o levaram pela deducção de uma serie
de raciocínios a concluir que — «.... não deverá
merecer o nome de temerário quem ao P." Bartho-
lomeu de Gusmão atlribuir, como nôs, sequer com
griínde probabilidade, allríbuimos , a invenção das
machinas aerostalicas : a qual , foi pela 1 .' vez
ensaiada cm Lisboa no anuo de 1709 , 3." do go-
verno de D. João o. °, e 74 annos antcsque em Fran-
ça os irmãos Monlgolfiers lizessem as suas tentati-
vas aerostaticas , havidas até hoje por originaes pe-
los physicos francezes ; muito embora o seu pri-
meiro inventor e executor . o mesmo P.*^ Gusmão ,
não chegasse a dar a este famoso invento aquella
extensão de vantajosas applicacôes, que nos raptos
do seu grande engenho e no fervor do seu patrióti-
co zelo tão ousadamente esperava, ecom tanta con-
fiança promettia. »
Parece que ficou segredo o agente de que se ser-
viu Gusmão, mas á visla da declaração d'um con-
temporâneo , o benefiriado Leitão Ferreira , incluí-
da em a nota, inserta na supracitada memoria, po-
dèmt)s suspeitar que era o gaz , pois se diz que o
globo subia em virtude decerto material que ardia
e a que o mesmo inventor applicava fogo. — O ré-
gio Alvará de 19 d'abril de 180!) [vid. mesma Me-
nior.] resolve, em nosso entender, quaesqiicr du-
vidas que se oITereçam contra este invento portu-
guez.
Se qualquer corpo fòr mais leve que um volume
igual de ar na superficie da terra elevar-se-ha, mas
hadc encontrar successívamentc camadas de ar ca-
da vez mais e mais leves, e a final hade permane-
cer suspenso naquella camada, cujo pezo, em volu-
me igual, for como o dellc corpo. — Xcste principio
está lirmada a theoria dos globos aerostaticos. Os
o PANORAMA.
415
irmãos Montgoiners, fabricantes d' Annonay, em 1783
desenvolveram, talvez como o 1'/' Gusmão, esta theo-
ria : cunstniiram um balão quasi esférico, de 3o pés
de diâmetro ou 110 pés de circumíercncia, e da ca-
pacidade de 2:2:000 pes ciibicos ; o material era pan-
110 forrado de papel : na parle inferior deixaram uma
abertura larj^a, pur b.iixo da qual queimaram palba,
que produzindo fogo activo introduziu no balão
22:000 pés cúbicos de ar quente, e por consequên-
cia muito mais leve que o ar que o cercava exter-
namente ; porque uma das propriedades do calor c
dilatar os corpos que penetra , c faze-los occupar
um espaço mais considerável do que estando frios.
Este ar assim diliJtado no interior do globo tendia
a subir, e não experimentava outra resistência se-
não a do pczo da cobertura que o continha. N"ão tar-
dou a aligeirar-se bastante até que o seu pezo fosse
menos considerável que um volume igual do ar ex-
terior , e o balão ergueu-se mngcstosamenle aos
ares. — Esta experiência foi promptamcnle repetida
cm varias partes : mas a|)esar do resultado brilhan-
te eram demasiado evidentes os perigos de tal em-
preza, e tanto que breve se tratou de buscar meios
de supprir o emprego do combuslivel que (lodia in-
cendiar a maquina na altura dos ares e precipitar
os viajantes, como succedeu em 13 de junho de
1783 a Pilàtre de Uosicrs e a Uomain.
Charles, a quem a physica é devedora de muitas
experiências, teve a idéa feliz de encerrar em leve
cobertura um gaz [o hydrogenio] que é quinze ve-
zes mais leve que o ar. O experimento produziu o
melhor êxito, e por este modo se conseguiu diminui-
rem-se os perigos das ascensões aéreas. O principio
em que se firmara Charles appresentava demais a
grande vantagem de reduzir muito as dimensões dos
aerostatos , por causa do gaz que empregava, ao
passo que os de Monlgoifier necessitavam de volu-
me enorme, ainda que o ar cálido, que lhes servia
de vehiculo, tinha um pezo equivalente pelo menos
ás duas terras partes do ar exterior. — Verdade é que
os gastos que ocrasiona o encher o globo são mais
subidos quando se emprega o hydrogenio ; mas es-
te dispêndio fica sullicicntemenle compensado pela
segurança que se oíTerece ao aeronauta. — A opera-
ção é das mais singelas : consiste em por limalha
de ferro em barricas que se fechara hermeticamen-
te depois de se lhes ler deitado dentro acido sulfú-
rico dissolvido em agua ; esta se decompõe, o seu
oxygenio une-se ao ferro, e o hydrogenio que dahi
se desenvolve é introduzido no balão por meio de
canudos ou tubos. Vid. estampa que segue.
(Continuur-^c-haJ.
416
O PANORAMA.
M^U^:iúM^íi,
Sobre as suas relações com a população , leis e
COSTUMES.
Dissemos já tratando este assumpto que quando um
povo não pude vender fora do paiz os produclos da
terra e os de sua industria , a população depende
de quatro causas: 1.' da bondade do terreno; 2.'
da modicidade dos impostos ; 3/ da facilidade do
transito e comraunicaçõcs ; 4." da certeza da venda
pela proliibição do género estrangeiro. Islo quasi
que não precisa de demonstração ; basta rellcctir
com alguma altenção sobre cada um destes princi-
pios para perceber-se a sua exactidão. Daremos to-
davia em summario algumas rasões.
Quanto á 1." a bondade do terreno ; Portugal não
foi dospaizes mais favorecidos pela natureza na for-
mação do seu solo : paiz montuoso pela maior par-
te, abundante de granito e terra siliciosa , dividi-
do era valles e outeiros, não podia deixar de per-
der uma porção de seu território , que ou não é
susccptivel de cultura, ou se o é hade ser forçosa-
mente mesquinba , de pouco productiva cultura. Á
excepção daquelle taboleiro ou faxa de terra de pou-
cas léguas de largo banhada pelo mar , quasi tudo
o mais no interior do paiz se resente daquella for-
mação primitiva e do suas consequências. Ora, nos
paizes montanhosos a cultura da terra é mais dis-
pendiosa no amanho , as terras mais sujeitas ás in-
fluencias das estações , mais expostas ás torrentes
das chuvas da primavera e do outono, c muito mais
laceis de seccar pelos calores do estio. Quantas ve-
zes as esperanças do lavrador tem sido frustradas
até nas campinas do Tejo e do Mondego pelas inun-
dações destes dois rios I Os terrenos montanhosos
são mais próprios para o pastío de gados , para a
cultura das vinhas, dos bosques e florestas, do que
para a cultura de cereaes. O regimento d'clrei D.
Manuel , que havia defendido o corte de madeiras ,
e as roteações das encostas dos montes e outeiros
que avisinham o ultimo daquclles rios , e dos que
nelles desaguam, era mui sensato. Desprezado, tem
produzido mesquinha cultura nos altos , e eslerili-
sado em parte os campos entre Coimbra e Monte-
mor pelas arèas que aquelles lhes enviam. Esta
simples observação basta para reclamar a necessi-
dade d'um código florestal, d'um regulamento jicr-
manente e lixo, que ponha um dique aesle tão pre-
judicial absurdo. A Inglaterra foi, e é, um dos pai-
zes mais favorecidos neste ponto; que parece a
natureza lhe compensou em riqueza de terreno o
que lhe tirou em bondade de clima. Ahi uma ca-
mada de hiiinvs ou terra vegetal forma a superlicie
da terra em proporcionada jirofundidade arada pa-
ra a cultura;. na camada inferior a esta existe qua-
si em toda a parte carvão de pedra , riqueza im-
mcnsa para aquclle paiz manufactureiro , c para o
provimento de suas esquadras, e barcos de vapor;
c por baixo des!a o ferro, outro artigo de vantagem
infinita. Enlretanlo console-nos o provérbio «de que
não ha terreno máu para o cultivador discreto c la-
borioso. » Os defeitos do terreno rcmovem-se ou mo-
dilicam-sc pelo trabalho e sciencia do agricullor.
Deixando a qualidade das terras limitar-nos-he-
mos a dizer que esta primeira causa só depende dai>
ucção indirecta dos governos aosquacs pertence en-
caminhar a educação agricola por meio dos estabe-
lecimentos que vão prosperando n'outros paizes, es-
pecialmente na Bélgica, na Inglaterra, na Alema-
nha, o na França mesmo ; a saber, ensino elemen-
tar da agricultura nas cscholas primarias, concilios
agrários, sociedades d'incitamento e melhoramento
agrícolas, exposição dos productos , e outros que
fomentam, animam c honram a lavoura e o cultiva-
dor. Nós teremos ainda occasiâo de fallar de cada
um destes estabelecimentos. — (Coniinuar-sc-ha) .
Conclue com o presente n.° o vol. 2." da
Serie á.' Quando esta começou , tinha a Direcção
afiançado o aperfeiçoamento da parle mechanica do
Jornal , e melhoramento a ser possível na parte lit-
teraria , sem deslisar do espirito e lettra dos Es-
tatutos da Sociedade, no cap. ultimo dos quaes es-
tá delineada a norma desta publicação. — O prece-
dente anno e o que finda darão testemunho de que
não houve esquecimento ou quebra de promessa da
parte da Direcção : e se porventura alguns inevila-
laveis obstáculos ainda não permitliram chegar ao
alto ponto de perfeição em que se pozera a mira ,
no que respeita ao maior numero de gravuras ori-
ginaes, c a outros mais leves acccssorios ; a quan-
tidade e bom desempenho daquellas, estampadas
nesses dois volumes , e as diligencias empregadas
em ludo o mais, provam que não se pertendeu il-
ludir a expectação dos Sr.''' Siibscriplores. Apesar
do tempo que requerem trabalhos de similhanle na-
tureza ; não obstante a dilliculdadc de obter dese-
nhos tirados nas próprias localidades e por pessoas
aptas; e experimentada muilas vezes a escacez de
informações exattas; assim mesmo reiteraram-se as
diligencias , e ha fundamentadas esperanças de que
nessa parte do ornamento ly|iogra|ihico deste Jornal,
o anno de 1843 que vai começar hade oílereccr me-
lhoramentos, até mesmo nas gravuras estrangeiras,
que forçosamente se admiltirem para supprimento ,
de permeio com as nacionaes.
Ao máximo numero dos Sr.°' Assignantcs do Pa-
norama nos domínios de Portugal e no império do
Brasil, por sua perseverança, amor da civilisação e
das Icttras portuguezas, deve a Direcção testemunhos
de agradecimento , e apraz-se de os consignar neste
logar. — A tão grande e benevolente acolhimento
do publico illustrado espera corresponder em todo o
decurso do anno próximo, oitavo desta litleraria
publicação , quer no objecto principal, a redacção,
que em proveito dos leitores e honra da Sociedade
actual tem por collaboradorcs os mais distinclos or-
namentos da litteralura pntria, quer nas qualidades
artísticas e typographicas que ao Jornal possam dar
maior nitidez e aformoseamenlo.
CORRECÇÕES.
Em o n.° 9S, pag. 329. — Escrevcu-se por inadver-
tência que omartyr S. Aiecnle, cujo corpo se vene-
ra na Sé de Lisboa, era onatural d'Evcra, marlyri-
sado cm a cidade d'Avila. — Queira o leitor passar
pelos olhos o que deixámos dito em o n.° 53, pag,
ÍIS c il9 do volume aulccedcnle , e achará que o
S. \icenle, cujo corpo Lisboa [)ossue, era o marty-
risado em Valença dllespanha. Na Chronica , que
cilámos ahi , da Província franciscana da Piedade
[alem d'outros livros] acharão os curiosos mais am-
plas noticias.
A pag. 373 — col. 2.°, lin 2o c SS — Boisgirand
— Ica-se — Boisgirand. = A pag. 376 — Jlarcel de
Scvre — ha-sc — Mareei de Serre. = A pag. 38tí
deste vol. col. 1." lin. 43 — 1 o99 — íía-íe 1509 —
nota 2.^ da col. 2." — cm vez ilc — mostra o interior
do mosteiro — lea-se — mostra o exterior, 6cc.
índice alphabetico dos artigos
COMIDOS NO SEGUNDO VOUJMK
DA
íg>.?ijav4í^íi ígiiííi^ im ^pm^mmn.
(Os aiUrisros (Itnotam es giavuvat.)
'ii^mtO^^^»
Aborijcnes da ColuniMa 123
Aboiíkir: balalha. Vid. Nilo.
Açafrão 272
Ai;"rea : ilha do Faial • 161
Ai^rnslalicas (marhinas) •• .... 414
Arulhameiítu dasterras: vid. Ai;ri-
ciittnra,
AgriciilUira : da nalureza dos ter-
renos 88
Kslrnme d*ossos 48
Desli iii<;ão do gorsriillio 40
Caldeaçiio das terras 101
Da lavoura e da sementeira. 174
Dos ta|iiiini;s e valados.... 183
Das más práticas na cultura
e seus correctivos 324
Af.ilhamenlo das terras ... ib.
• Kelaçòes com a população,
leis e costumes 416
Vid. arboricultura ; vinhas.
Aguas-livres em Lisboa • 49
combusliveis I 84
A?uilar : castello • 313
Alexandre de Gusmão : discurso
inédito 149
Al|iedriiiha (o cardeal de) vid.
Anecdotas.
Alplialielo dos surdo-mudos • . . 292
Alverca: fonte medicinal 392
Amarante • 33
Templo de S. Gonçalo • .. 185
Anibar : os la?us de 96
America : separação pelo istlimo
de Panamá 135
Amor 94
fia pátria 103
Anecd.das inzlezas 24, 29
de Colomlío • 36
de dois seneraes russos. ... 4'2
do imi>erador Nicolau. .... 86
Phebo Moniz, ou o amor da
pátria , , 103
D. João 2." e o cardeal de
Alpeiiriíilia 159
Henrique 8. °e Francisco 1.° 225
Armas de Dordrecht 240
A deusa da rasào 3'28
Siiiírular modo de dar carta
d'alA.rria 344
avulsas. 168
Vi.l. Viagens.
Animaes : vantagens do alimento
do grão cosido." 382 , 392 408
. sustento coiB as folhas seccas. S.^iO
Annibal • f 61
.•VnlÍL-uidades : vid. Medalhas, Ar-
clieologia.
Apologo das lebres 288
Apontamentos para a historia dos
Furaes e bens da coráa. . 338, 355
370, 394, 410.
Aqueducto das ajjuas-livres. ...» 49
A ra egypcia . 196
Arboricultura: tratamento das ar-
vores 176
arvores de tapumes e valados 184
cultura dos ))ecegueiros. . . . 328
Viil. Sylvicultura e Granja
real em MalVa.
Archeulogia portugueza :
Viagem a Purtugal de dois ita-
lianos em 1580 — pag. 82, 98
Lisboa ao partir para Afri-
ca D. Seliastiào 317, 323
Areqneira , 240
.Vrsenal do Exercito • 2
Arte de agradar no mundo 319
Arvores sjlveslres : vid. Silvicul-
tura.
de fruclo : vid. Arboricul-
tura.
Arzilla (a perda do): Poesia.. .. 74
Associações: regeneram o bem pu-
blico 341
Assumpção de N-'Sr.*: quadro • £52
Asylos de mendicidade í35
.\llienas : templo de Pandrosio. • 120
Áustria: estadística religiosa.... 112
Aveiro • 17
Aves do paraizo • 129
Ávila « 329
Baleares: ilhas. Vid. Malhorca.
Balões aeroslnlicos •• 414
Bara : o arco de • 67
Bai bas ecclesiasticns £48
Barcos de vapor : cylindros em vez
lias rodas 88
Belem : additaniento aosoutríis ar-
tigos • 385
Beneficência publica 335
Bens da coroa : apontamentos pa-
ra a sua historia .. 338, 355, 370
394, 410.
Bibliograpliia.
Curso d'Agricullura deRaspail. 120
Compendio de Geomet. : Noções
de Architectura : Elementos
de Perspectiva pelo Sr. Sei|. 136
Curso de Dirrilo Natural &c.
pelo Sr. Vicente Fcrrer. . . . 295
De la Cosmogonie de Moise . . 376
Dizionario di Erudizioni Stori-
co-EccIesiastico. ib.
Romanceiro portuiuez : 4° v.
do Sr. Garrett.. 405
Bingre (o Sr.); ultimo canto do
Cysne 326
Boas festas 407
Bobo (o) : Romance : . . 10 , 19 , 37
44, 51, 60, 77, 90, 106, 125, 141
169, 202, 225, 242.
Bosques petrificados 80
Bosques. Vid. Sylviciillura.
Botânica Medica; vid. Plantas &c.
Braseiro. Vid. Romances.
Elymologia 368
Brazil : — Província de S. Pedro • 145
199 ,215, 230.
Discurso sobre os limites da
Colónia do Sacramento 149
Revindicação da gloria do
descobridor 306
Bronzear canos d'espingardas . ,. 168
Brulote a vapor 72
Cabo- Verde ; ilhas 120
Cabral : vid. Brazil.
Cacem (Santiago de) • 121
Cadeias : ideas históricas 30
Cães: fausto dos monarchasd'.Asia 200
Caldeaçào das terras 10 1
Camello árabe • 65
Camões : ej)itome da sua vida • .5
16 , 31 , 55 , 85.
Camurças • 284
Canadá : tomada de Quebec • .. 193
Canárias: ilhas» 119, .^61
Canova • 297
Caprificação dos figos 160 166
Caraíbas 104
S. Carlos : Iheatro italiano em Lis-
boa • 57
Carlos 2-° encontra o Viatico • 241
Carla do bi.-po Osório a D. Se-
bastião 412
Cartões de Raphael :
Chrislo entregando as chaves a
S. Pedro ." 9
S. Paulo pregando cm Athenas • 89
Carvão animal 48
Casa ambulanie nos Estados-Uni-
dos S68
Cascatas do Clvde 169
ÍNDICE ALPHABETICO
Caslello de Cham • 353
Caslello cl'A?uilar • 313
Ca!>hí:i»s exlravairatíles 144
Caverna tie Uyiiuisiu • 1 89
Ceirii anilante • 349
Cl-iiiíIití.i ao iMrle cie Luuclres • 70
Cham (» (•a,lf:io .le) • 353
Chevalicr (Mr. Micliel) : viil. Eco-
numia Poliiica.
Clima: iiaviu ile íiierra • 25
Chn-lianisniii — PlMlusii|ihia .... 114
Ciil caiiípcadur •• 340 364
Ci.laclert-Mi.-cilada ; viJ- Meilallias.
Ci.lia 280
Cly.le: riu 169
C<-'liras : seus fasí-inadures 100
Cojiunbo e us |iresiiDi|iÇ()Sos * ,, 36
Culiiinbia : abtn i::tMies 123
Culiinía «lo Sacramento ; sobre os
seu? limites 149
Concti(;ão (Kesta e Ordem da) .. 96
ijreja velha da Concei(;ãu em
Li-boa 401
Conservação tie munumenti>s : du-
ciinieiilo. 304
Constaiilinnpola : torre queimada • 44
Coqueiío das índias 3i'i
Cortes anliiras em Porliu'al SB4
Coruja alvadia • 207
Correct^ões 416
Discur>o de Alexandre deííusniào
solire a Colónia do Sacramento. 149
Disputas : mama 272
Dormentes (os sete) l02
Dormideira 248
Duarte Pacheco ; scíuinla victoria. 21 1
Duelo : opinião de Franklin 208
Deusa da rasão 328
Dor de pedra: fonte medicinal em
Alverca 392
Dow (Gerarihj) • quadro 323
Duprat (o Sr. Luiz) : artigo ne-
crologico 68
Duração das arvores e homens : re-
flexão 288
Dyonisio, lyranno de Sicília.... 188
Eclipse do sol de 1842 375
Economia domestica.
Folhas seccas parasuslento dos
animaes 350
Vanla^'ens dos grãos cosidos pa-
ra os animaes .. 382, 392, 408
ECíinomia p'di|ica.
Kegeneritção do bem piíblico por
meio das associações 341
Considerações sobre o curso de
Mr. Chevalier.. 133, 138, 146
165 , 186, 194, 210, 220, 235
250, 258, 293, 313.
Educação.
Dauiilidade das imagens nas es-
cholas 23
F.íiypcius : seus aliares • 196
Enfermos: cnidadosque selhesde-
vem prestar 222
Enxofre: mananciaes 139
Es|)iníardas: meio de bronzear os
canos 168
Esqueletos dos carallias 104
Esquivei; quadro da Transfigur.i-
ção • 305
Estrtdos-Unidos : casa ambulante • 268
E^^atistica religiosa da Áustria .. 112
Estio 213
Estrume dVssos 48
Eslndos moraes.
As recordações 282
O parodio iValdeia.. 346, 362, 386
Evangcdho deS. .loào : exliacto i 117
Extiact.s d'Auiiores portugiiezes.
Alexandre de Giisinãu 149
Amador Arrais 24
Fr. António Feo 96
A. de S..usa de Macedo 253
Bispo O-orio 412
Braz Uaicia de Mascarenhas.. 359
Brulcro 144, 160 , 166
D. Francisco Manuel 231, 288
Fr. Franc.°deSl.='Maria. 211, 216
Heib.r Pinto 24, 256
D. João de Castro 110, 119
Lucena 263
Fr. Luiz de Sousa 183
D. Fr. iVIanuel do Cenáculo.. ik!61
266, 277.
Fr. Panlaleão d' Aveiro. . 305, 344
Pedegache 236
Vieira 24
Faial: ilha • 161
Fantasma (o passeio da) 366
l''asciuadtires de cobras • 100
Feira das nuillieres 272
Fermedo : vid. Medalhas.
Festas (boas) 407
Fig"s: caprilicaçào 160, 166
Filippe 2.° ; suasexeqiiías em Se-
vilha 281
Fiuiunerra (gravura de) • .... 252
Fi.raes: aponlamenlos paia a sua
historia.. 338, 355, 370, 394, 410
D. Francisco d'Alineida: iiarli.la
para a Índia 216
Francisco 1 ." : entrevista com Hen-
rique 8.° • 225
D. Francisca Possollo • 109
i*^rutí.'iro ; como se hade formar.. 112
Fuliiio : vid. Presciência.
Ca mos . 212
Gonçalo Hermiguez I;i7
Goiíiilho do trigo: meio da o ex-
tinmiir 40
Grainniatica : observações do Sr.
Silvestre Pinheiro 27, 42
Granja real em M ifra 1 89
(palácio dos reis de Hespa-
nha) • 377
Gravura em metal ^ o primeiro im-
pressor 252
Grego império : sua queda 43
Greiíze : a mãi de família • .... 307
D. Henrique (o iiifanle) : moiiu-
iiieiito em Sagres ■ 140
Henrique 8." : vid. Fraiiiisco 1.°
Heiíriípiez : vid. Romances.
Hisloria dos bens da coroa e dos
Foraes : apontamentos. .. 338, 355
370, 394, 410.
Hollentoles 53
Hyi,'iena : cuidados com os enfer-
mos 223
Imagens ; sua utilidade nas escho-
las 23
Inilia ; rebiriào gentílica 263
Industria d'uma ave 392
Jersey (de) aGranville: impr.-s-
sões de viagem 130 , 154
D. João 2.": viil. Anecdutas.
D. João 5.° : artes e leltras no
seu tempo 201 , 266 , 277
D. João de Caslio: vid. Roteiro.
Jogos de força • 345
Junco , nav io china • 25
Lactação (tempo da) gQg
Laufeiihurg • ogg
Lavoura: vid. Agricultura.
Leão e |i òa • ] 53
Lenda do Rheno 289
Lisboa.
Arco das Amoreiras e Aguas-li-
vres • 49
Arsenal do Exercito • g
Beleni : mosteiro 305
Igreja da Coiiceição-velha • .. 401
Vid. Archeologia porturiieza.
N." Sr.* do Mnnte £33
Theatro de S. Carlos • 57
Lillerutura : da propiiedade lille-
raria 13
Vid. Phili,logia. — D. João
5.° &c.
Lobão (Manuel d'Almeida). .... 3S2
l^indres : um domingo : anecdotas. 29
Cemitério ao norte • .... 76
Fr. Luiz de Sousa: romance ... 3*7
Ma fina • jp^
Mafia: granja real na Ta|iada . . 189
Maliouiel 2 " • 337
Mài de familia : quadro • 3o7
Málaga • 241)^ 321
Malhurca: ilha • 2.17
a Sé . 265
Mal morta (torre da) • 3110
Malta: o grão. mestre • 393
Mania de disputar 272
M.uiná pursalivo 144
.Manucodialas » 129
iM.iiairal.s • 345
St.* Maria do Olival .... 349, 364
374, 381.
Maltas . vid. Sylviculliira.
Máximas 8. 16, 24, 32, 40, 48
104, 136, 144, 2118, 216, 232, 236
256, 27a!, 312, 328, 336, 368, 376
384.
Medalhas achadas em Fermedo.. 135
Meditaçà.> 110 Promontório ]17
Meiídicidaiie : asylos. 335
.Miguel Angelo • 97
iMiraiíaya no Porto • 81
'M"y-é'* • • 124
Montanhas suluiiariíias 72
Moine (N.* Sr.* lio) • 233
.Moniimi-niii em Sagres ao infante
L). Henrique • 140
Moiiunieiilos : dociimeiíto a favor
da sua consi-rvação . 3(14
Moral.
'\uior 94
A cobiça de dinheiro <i6
Phcbo Moniz ou o amor da Pa-
Ina 103
Chiiílianismo e philo.^ophin . .. 114
A niedilação no Piomontorio. . 117
A presciência do futuro : j" ro-
blenia moral 148
Vanlasens econdições doMalri-
niiMiio. 231
Phenomeno moral explicado: dif-
ferença enlre a idade media e
a actual 234
Qiiaes são os faisní e os verda-
ileiros bens : ipie coii.sa é vir-
tude 256
Philosophia da vida social ... . 319
Da probidade &c 379
DO VOL. SEGUNDO, SERIE SEGUNDA DO PANORAMA.
Mural: vid. Estudos Moraes.
Moscow ; icusica e Ihealros 87
Mosleiro : nieililaçào ãa
de Belém; additameiUo aos
outros artigos 385
Muezzln iia mesquita • 173
Mulher livdro|iica ; quadro • .. 323
Nariz (o; ; aiiecdota ingleza.... 24
Natal ; boas-feslas 407
Newton • 316
Nicolau , imperador da Rússia , e
a musica e os lliealros de Mos-
cow 87
Nilo (batalha naval do) • 217
Nunes (Pedro) • 28
Olival (St.» Alana do) 34U , 3C1
374, 381.
Ópio 248
Ordem de Christo. Vid. St.* Ma-
ria do Olival.
Orpheu 224
Osório (bi.~po) : sua caria a U. Se-
bastião 412
Ouvido (o) 34
Pais bárbaros 1C8
Palácio real da Granja • 377
Palmeira da areca 240
Panamá : corte do iillimo 135
Pandrosio : lemiilo em Athenas • 220
Papa-f,jrmigas ; sua industria. . . . 393
Paris •• 177,409
Parocho d'aldeia. V. Est. Moraes.
Passeio da Phautasma ; lenda do
século 10." 3Gf)
Pecegueirii ; cultura 328
Pedra (dor de) ; fonte medicinal
em .\lverca 392
Pedro Alvares Cabral : revindica-
çào da sua gluria 306
S. Pedro (^Proviiicia de) V. Brazil.
Pedro Nuues • 28
Pe^ha^co uscillaute 128
Pensamentos; vid. Máximas.
Peregrinos de S. 'ihia^o • .... 41
Pelrilica<;rio de bosques 80
Pbais.Ho Argos • 84
Phebo Moniz 103
Philologia ; observaç. sobre Gram-
matica 27 , 42
Philõsophia da vida social 319
Pliilosophia. Vid. (.'hrisliauismo.
Pinheiros, sementeira 197
Plantas e arvores medicinaes de
Tete e Rios de Sena 192 , 193
207, 214.
Pobreza. 399
Poda : vid. Vinha.
Poesia.
O cego peregrino : rimance. 35, 847
A perda d'Arzilla 74
O estio 213
U II imo canto doCysnc pelo Sr.
Buigro 326
Portugal : vid. Lisboa.
Amarante •• 33, 185
Aveiro • 17
Belém ; mosteiro • 385
Mafra ; granja real 1 II9
Porto: Miragaya • 81
Sagres •• I40, 137
Santarém; seus nomes ..79, 86
Santiago de Cacim • 121
Tavira • 209
^'id. Historia ilos Foraes.
Polimento para moveis 224
Pólvora : sua aiilii;. na Península. 99
Pont y l'ridd • 20 1
Pontes naturaes 280
Porto-Alegre 110 Brazil • 14,5
Porto : Miragaja • 81
Possolo (U. Francisca) • 109
Potassa 167
Povos; vid. Vieira d'.ArauJo.
Presciência do futuro ; jiroblema
moral 148
Probidade moral , politica e com-
mercial 379
Problema moral ; vid. Presciência.
Prologo 1
Propriedade litteraria 18
PublicaijÒBS litierarias . vid. Bildiu-
graphia.
Raugiler • 276
Rapiíael dUrbino • 309
Vitl. Cartões.
Recordações 282
Kecordaçào de carões insignes. .. 288
Reniie ; vid- Rangifer.
Rheno (uma leuda do) 289
Rio Grande do Sul. 145, 199,215, 230
Romances.
Bem querer e mal fazer •. (.Me-
morias insulanas). . . 6, 12, 20
53 , 06.
Gonçalo Hermigiiez 127
O Bobo.. 10, 19, 37, 44, 51, 60
77, 90, 106, 125, 141, 169,
202 225 242.
Fr. Luiz de Sousa 377
Duello das Dam. is 162
O cavalleiro negro; U. Jo.ão o
torto ". 180
O brazeiro 218, 238, 253
Manuel de Sousa de Sepúlveda. 269
274, 285, 2911, 298, 308.
Dama Pé-de-Cabra. 279, 301, 330
O passeio da phantasma -. lenda
do século 16." 366
Romanceiro pehi Sr. Garrett. . . . 405
Roteiro de D. Joiio de Castro em
1538 110, 119
Rubens 103
Saber (e.\emplos da cobiça de).. 152
Sagú 240
Sangue (o) 198
Santarém : seus nomes 79 , 86
Sargaço do mar 04
D. Sebastião. Vid. Osório.
Seda : sua introducção na Furopa. 320
Sepúlveda ; vid. Romances.
Sevilha; monumento de quinta fei-
ra Santa • 113
exéquias de Filippe 2.° • .. 281
Sumaúma 40
Surdu-iuudos : seu alphabeío • . . 292
Sjlvicullura 151, 158
cuUura de pinheiros 197
Tiilí: rio . 201
Tallcyrand • 334, 351
Tâmega ; o rio 33
Tapada; vid. Mafra.
Tapumes e valados 183
Tarragona • 273
Tavira . 209
Templários « 393
Theatro de S.Carlos em Lisboa • 57
S. Thiago de Cacem • 12t
de Compostella : os peregri-
nos • 41
Tigre ; animal • 59
Tinta vc.de descrever 184
Toire da Mal-moita 300
Transfiguração ; quadro de Fsqui-
vel 305
Tubara da terra 64
Vau-D)ck • 73
Vapor; vid. Barcos, Brulotes.
. cosedura de fructos a vapor. 408
Varões insignes (da recordação dus) 288
Viagens.
De Tron e Lippomani a Portu-
gal: vid. Archcologia.
(Impressões de) De Jersey a
Grauville 130, 154
Cm domingo em Londres 29
Moscovv e o imperador Nicolau. 86
Viatico éencontr. por Carlos 2.° • 241
Vieira d' Araújo; natural de Povos. 400
V'iiiha; da poda ••• ..373, 3i;0, 399
Viiiaío • 359
Ul (SI.* Mana d') 344
Wolle, general: sua morte • .. 193
Xaca : seus adoradores 112
Zodiaco • 237
FIM.
Uim
p
:v*W^-
r-"^ if .
'%M ■*• -^ '
4 \ íí-
F
#V,