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Full text of "O Panorama; semanario de litteratura e instrucção. v. 1-5, maio 6, 1937-dez. 1841; v. [6-8] (2. ser., v. 1-3), jan. 1842-dez. 1844; v. 9-13 (3. ser. v. 1-5), set. 5, 1846-dez. 1856; v. 14-15 (4. ser., v. 1-2), jan 1857-dez. 1858; v. 16-18 (5. ser., v. 1-3), [jan.?] 1866- [dez.?] 1868"

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o  PANORAMA. 


JORNAL  LITTERARIO  E  INSTRUCTIVO 


^ocíeiíaíie  iiJropagaííora  íiog  CTonDccímcntosí  Síteííí. 


Vol.  2.''  —  Serie  2/ 


PUBLICADO  DE  JANEIRO  A  DEZEMBRO  DE  1843- 


LISBOA. 

NA   TYPOGRAPHIA   DA   SOCIEDADE. 


Largo  do  Pelourinho  N."  24. 


PROTECTORA  STTA  MAGSSTADB  FIDELÍSSIMA 


^K^^ 


C;  .A  lUiiJrf Jl 


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3 


MEZA    DA   ASSEBIBLEA    GERAI.. 
PrcsíWmí<.=  Excellenlissimo  Sr.  CONDE  DO  FARROBO. 
Vice-presidente  =  \\h\HThúmn  Sr.  J.  ÍM.  DA  COSTA  SILVEIRA  DA  MOTTA. 
•5tírí-ióí=/<)=Illuslris5Ímo  Sr.  BARTHOLO.MICU  DOS  5IARTVRES  DIAS  E  SOUSA. 
■''-•"';  r  /•Vce-.'5'f67-í/ano  =  Illu.stiissirno  Sr.   AUGUSTO  XAVIER  DA  SILVA. 

O  O  C  1     >  (l  DIRECTORES. 

O  I  «  1  *-  "  Anloiiio  Mari.i  Gonieji.  s=!M.  A-   Vi.iiui  Pedra.  =  Jorge  César  de  Figaniére. 

DIRECTORES   SUFPXENTES. 

Barlliíilumeu  Loiírenro  Napoleão  ."\Iarlelli.  =J.   .M.  ila  C.   Silveira  ila  Mot|a.  =  José  Joaquim  Lopes. 

COJ&HESPOIlfDENTES   DA   SOCIEDADE. 

Iteino,...    Aerantks Os  lllm.os   Sr."  José  Aiiolinario  da  Silva. 

'•            Amíkante. —  —              Blanuel  Jo.-é  Goni,aIves  Pereira. 

•>            Aljueida. —  —              Juão  Anlunio  da  Silva  Marques. 

„  AvEiuo  {  ^  5  Caniliilo  Xavier  de  Carvalho. 

í  1   Luiz  Maria  dos  Sanlo.s. 

»            Bríg.íni;  V —  —               .4nloiiio  iaíc  Ribeiro  Franco. 

"            Bra(í  1. —  —              Luiz  do  Amaral  Ferreira. 

"             Bai;ci;li,i).s —  —              Anlonio  Joaquim  de  .Miranda  Villas-boa». 

"           Ch.íves _  —             Francisco  Ignacio  de  Cid  Mello  e  Caslro. 

•■           Coimbra —  —             I.  M.  S.  Paula. 

n            Covilhã —  —              José  Manuel  Pereira  de  Carvalho. 

»            Caminha —  —              Anlonio  Rodrigues-  d'01iveira. 

»            Castellu-íi iiA>cu —  —              Jo;iquiiii  Bernardo  de  Sousa  Gomes. 

n            Estremoz —  —              José  Francisco  Agnélo  de  Sousa  Gajo. 

»            Elvas —  —              José  Nic(.dau  de  Sousa. 

t            EvoRA —  —               José  Joaquim  Ramos. 

FiGCEiKv I  _  _           <  Ricardo  Din.z  Homem. 

í  I  J0.I0  da  Siha  Soare.5  de  Menezes. 

!;.,„„                                                               '  —  —           I  Manuel  Monleiro  d' Azevedo  Penteado. 

■■                 r  ARO I  <     t    -       II]          I 

l  J  João  Pedro  La  mini. 

»           Guimarães )  F.ancisco  José  da  Cosia  Guimarães. 

"            Lacíos Francisco  Xavier  Baplisla. 

»            Lameoo Francisco  Corièa  da  Silva  Menezes. 

>•            MoN(,'Ão —  Theolonio  José  Bi.lilho. 

■•            M1HANUEI.1.A — ■  José  Anlonio  de  Caslro  Moraes. 

\  I  J.isé  Mailins  da  Costa  Portugal. 

»            Porto [  <  Joaquim  Torcalo  Alvares  Ribeiro. 

l  /  Francisco  Ignaciu  Pereira  Rubiào 

»            Peniche '  —  Manuel    AiiUnio   Monleiro. 

»            PoRTALECRE —  Jusé  ftlaria  de  Pina  e  Carvalho. 

»            Penapiel —  Simão  Rodrigues  Ferreira. 

»           Sakkuikmal —  Paulo  R<  meiro  da  I'"ouseca. 

»            Setúbal Rego  &  Irmãos. 

n            Santarém —  António  Gonçah es  d' Almeida  Uino- 

n            S-  TiiiACd  DE  cACl■;.^í P.®  José  Caetano  da  Fonseca. 

>*            Tavira João  de  Paula  <'(»rrêa. 

o            TuRREs-.\i)VAs —  Cândido  Joaquim  .Xavier  Cordeiro, 

,r  \  t  Manuel  Feri  eira  Quiques. 

»              V  IZKU \  —  )   _                  ,     „             ,    ' 

í  1  Dionizio  de  Sousa  Loureiro. 

n            ViLLA    DO  coKDE —  José  Fernandes  Thiiiié  da  Silva. 

>>            ViLLA-REAi —  Anlonio  Ludovico  Guimarães. 

"            Valeni.a —  José  Maria  d'.-\ndrade. 

Ilhas Faial —  Francisco  da  Ciuz  da  Silva  Reis. 

,,                                                                          /  1  António  Pedro  d'Azevedo. 

n  M  VOEIRA     I-  I     ,,  ,  ,  .       ,,        , 

I  —  \    Alexandre   l.lltz  da  Cunha. 

c,  j  â   Giiillieime  Aniíiisto  Htutze. 

»           S.  Mii;UEL (  —  —           \  _  ,      , 

í  \  Sebiisliao   I  udury. 

»            Terceira '  —  —           '  Pedro  Giinçalves  Franco. 

Brazil ...    B  viit  \  ■ —  '              Joaquim  .Anlonio  Nogueira. 

»»            ('e  \rá  . —  Manuel  .Antoni'»  da  Rocha  Júnior. 

II            MiRAMiÁo. —  —              João  Gual liei  lo  da  Costa. 

II            Parã —  —              Francisco  Gaudêncio  da  (^osla  &.  C.* 

»            Pbrnamhiio —  —               Francisco  Seveiiano  Ucbello. 

Uf  ,  Sousa  Si  C.^ 

10    DK    JAHEM10 >  Jr-eiii 

\  <   L.  &  II.   Laemniert. 

11           PoRTo-ALccRi. —  —          *  Anlonio  M.iria  do  Amaral  Ribeiro. 

"            Cin«i)E    iio    Rio-iaiAM>E  110  ML  ....  —  —              Jlaiuiid  Jo-é  Barreiros. 

Françii.  .  .    Pu. is —  —              L   P.  Aillaiid. 

/níl/aí(  rrn.  1,1'Miiiis —  —              Fosler  irm.ios. 

»             Livr:iíi*onL —  —              Anlonio  Julião  da  Costa. 

"           Bristul —  —              António  Barão  de  Mascaienh»». 


54 


O  PATSORAMA. 

JORNAL  LllTERAUlO  E  INSTRUCTIVO 


.« 


PLBI.ICADO- 


gpilíi  âí)j:^^^BÍIi  íp:iíi):piii},iú)^^ií  aíiíâ  ;sriJjí])>^te31íi">í)i}  i6Íl^^lJ> 


AOS  L3I--'OK3S  ^^^S- 


TTi>TiTjmTsi'5í4í?rri:jr;Tr; 


F.ir.nRAU  os  periódicos,  accomodando- 
se  aos  usos  sociaes  ,  a  entrada  do  an- 
no  ,  como  a  celebra  o  povo  com  boas 
festas  e  folgares.  Convém  que  a  litte- 
ratura  mostre  ,  cm  tudo  ,  um  reflexo 
de  nacionalidade,  e  que  esta,  mais 
que  as  outras  ,  a  que  chamam  popular  ,  não  o  sen- 
do em  norae  somente  ,  fira  uma  corda  ora  de  ale- 
gria ora  de  tristeza  ,  segundo  a  Índole  das  mais  no- 
táveis commemorarões  annuacs. 

\esla  congratularão  de  etiqueta  ao  anno  bom  vem 
disfarçada  outra  ,  cazeira  e  mais  sincera  ,  com  que 
cada  periódico  a  si  próprio  se  festeja  ,  e  o  cuidado 
com  que  atlento  a  prolongar  a  carreira  dos  seus 
dias,  esquadrinha  cuidadosamente,  para  fugi-los 
ou  expulsa-los,  os  achaques  peculiares  da  sua  es- 
pécie. Concordam  todos  quantos  tem  versado  este 
ponto  em  que  o  segredo  ou  o  remédio  inteiramente 
se  cifra  no  agradar  aos  leitores  ,  dos  quaes  quasi  o 
mesmo  dizem  que  diz  Victor  Hugo  ,  no  prologo  de 
Ruy  Blas,  dos  espectadores;  e  da  escriptura  o  que 
o  auctor  franccz  ,  do  espectáculo.  Como  elle  assen- 
tam dividir  os  leitores  em  três  classes- — o  povo  — 
as  senhoras  —  e  os  pensadores:  —  o  povo  que  pede 
sensações  ao  escriptor  :  as  senhoras  que  exigem  del- 
le  ,  e  só  lhe  agradecem  os  lances  dramáticos  ,  o  as 
grandes  emoções:  e  os  últimos,  acaso  os  menos 
contentadiços,  que  á  fina  força  querem  idéas  e  pen- 
samentos ,  c  que  com  outra  iguaria  se  não  bãode 
dar  por  satisfeitos.  E  a  tantos  paladares  ,  ás  vezes 
bera  estragados ,  tem  de  lisongear  o  amargurado 
Jornal  I  Esforço  terrível,  de  que  ao  cabo  de  52  se- 
manas, que  conta  o  anno,  nem  sempre  sahem  inteiros 
os  veteranos  da  arte ,  e  os  mais  experimentados. 

E  todavia  a  todos  estes  obstáculos  vão  superando 
os  nossos  jornacs  litterarios  :  os  velhos  não  cedem 
o  campo ,  c  novos  combatentes  vem  afiluindo  a  el- 
le. Que  significa  esta  concorrência?  Que  sincoenta 
mil  espectadores  estão  animando  esta  lucta  ,  que 
sincoenta  mil  espíritos  procuram  o  alimento  da  in- 
telligencia,  e  que  sincoenta  mil  cabeças  estão  ex- 
perimentando o  influxo  saudável  da  epocha  ,  e  ac- 
cumulando  para  o  futuro  cabedaes  que  não  bãode 
ser  desuteis  ao  paiz.  O  povo  lè.  Faltará  aos  escrí- 
ptores — e  ao  maior  numero  falta  ,  infelizmente  — 
philosophia  c  intenção  :  mas  isso  mesmo,  que  se  es- 
tampa e  publica  sem  propósito  moral,  aproveita  pe- 
la maior  parte  ora  ao  povo  que  lá  o  converte  ao  teu 
fim  ,  ora  aos  escríptores  de  verdadeiro  talento  e  vo- 
cação ,  que  se  desenganam  a  ergucr-se  do  silencio 
em  que  dormem,  para  apontar  o  caminho  aos  que 
vão  errados. 

Não  desalentemos  pois  ,  porque  o  passo  dos  me- 
lhoramentos tem  sido  sempre  assim  :  remisso  e  gra- 
dual. A  escripta  veio  primeiro  dar  luz,  cor,  for- 
ma ,  vida  ,  expansão  ao  pensamento  humano.  Esta 
descoberta  ,  tão  admirável  e  juntamente  tão  inno- 
cente  ,  teve  detractores  —  os  encomiastas  do  tempo 
Janeiro  7—1843. 


que  então  podia  chamar-se  passado.  Gabavam  esses 
o  methodo  ,  antigo  ,  de  aprender  de  cor  scni  o  au- 
xilio dos  caracteres  ou  signaes  da  voz,  e  allribuiam 
a  esta  novidade  perigosa  —  a  escripta  —  a  decadên- 
cia dos  costumes,  e  o  ruim  espirito  da  mocidade'. 
jMuito  depois  ,  no  século  7.° ,  veio  outra  invenção 
também  muito  necessária,  a  da  penna.  Seguiu-se- 
Ihe  ,  no  meado  do  século  l-í.° ,  a  descoberta  do  pa- 
pel de  trapos,  e  quasi  no  meado  do  século  l'à.° ,  a 
da  imprensa  :  e  a  imprensa  ainda  foi  mais  prague- 
jada do  que  a  escripta  ,  porque  os  frades  ,  a  quem 
vinha  demillir  do  oliicio  de  copistas,  accusaram  de 
magia  aos  inventores  desta  arte,  tão  simples  no  pro- 
cesso como  prodigiosa  nos  resultados.  Foi  esta  a 
sorte  dos  grandes  inventos  e  verdades  mais  benéfi- 
cas que  quasi  não  houve  uma  só,  que  contra  si  não 
armasse  um  conluio  de  interesses  e  prejuízos  :  fo- 
ram utopias,  quando  proclamados  á  face  de  uma 
geração  que  os  não  comprehendia  ,  muitos  princí- 
pios hoje  triviacs  ;  e  serão,  talvez  dentro  era  pou- 
cos annos  ,  axiomas  do  sizo  commum  ,  alguns  dos 
que  agora  se  reputam  utopias.  Hoje  ,  por  merco  da 
imprensa,  acabou  o  tempo  em  que  Platão  dava  100 
minas  [304  moedas]  por  uma  copia  de  três  tratados 
de  Pythagoras,  e  Aristóteles  três  talentos  [5Í8  moe- 
das] por  outra  copia  das  obras  de  Speusippo  :  os 
livros  ,  postos  pela  sua  barateza  ao  alcance  de  to- 
das as  fortunas  ,  deixaram  de  ser  monopólio  da  ri- 
queza. Introduziu-se  nas  sciencias  o  principio  da 
divisão  do  trabalho  ,  e  de  cada  ramo  dos  conheci- 
mentos humanos  se  encarregaram  diíTerentfes  culto- 
res. Subdividiram-se  os  próprios  ramos  em  ramús- 
culos sem  fim  ,  e,  a  um  tempo  quasi,  se  estendeu 
e  simplificou  a  cultura.  Abolidos  os  feudos  e  os 
morgados  na  republica  das  lettras  ,  dos  vastos  ter- 
renos da  sciencia  uma  boa  parle  se  retalharam  em 
courellas.  Dos  numerosos  emprezarios  da  producção 
litteraria  muitos  se  votaram  ao  trabalho  de  forne- 
cer mercadorias  mais  appropriadas  á  multidão.  E 
hoje  ,  na  maior  parte  da  Europa  ,  não  é  á  falta  de 
escriptos  que  as  gerações  se  definham  ,  como  ou- 
tr'  ora  ,  de  inedia  moral.  Dezoito  mil  escriptores 
estão  com  a  penna  na  mão  em  AUemanha.  Mil  e 
quinhentos  volumes  sahem ,  não  contando  pequenos 
impressos  e  folhas  periódicas  ,  todos  os  annos  dos 
prelos  de  Inglaterra.  Para  cima  de  cem  mil  famí- 
lias, desde  a  mais  humilde  até  á  mais  elevada  ca- 
thegoria  do  trabalho,  desde  o  trapeiro  até  o  auctor, 
vivem  hoje  em  França  dos  lucros  commcrcíaes  da 
imprensa:  o  que  é  o  menos,  porque  o  mais  é  — 
que  por  ministério  da  imprensa  franceza  estão  re- 
cebendo educação  muitos  milhões  de  homens  na- 
quelle  paiz  ,  e  era  todo  o  mundo. 

Com  tamanha  actí\ idade  a  abundância  de  livros 
é  tal  que  já  houve  quem  calculasse  poder-se  api- 
nhoar  um  montão  ,  que  chegasse  á  lua  ,  dos  im- 
pressos desde  Guttemberg  até  agora  ;  e  tanta  a  im- 
possibilidade de  dar-lhes  sabida  que  alguém  se  lem- 

2."  Serie  — VoL..  11. 


o  PANORAMA. 


brou  já  ou  de  por  de  parte  os  inuleis ,  lancando-os 
ao  esquecimento ,  ou  de  invocar  contra  clles  o  au- 
xilio do  algum  novo  Ornar.  Em  nossa  casa  não  ha  , 
por  ora,  que  recear  do  diluvio  que  inunda  as  alheias. 
Aqui  é  o  eslio  lillcrario  mais  aturado  do  que  con- 
viera  ;  o  rio  que  se  quizcra  caudal ,  regalo  c  po- 
bre ainda  :  nem  ha  temor  de  que  se  abram  sobre 
nós  as  cataractas  do  céu.  Scintillarões  da  sciencia 
vão  apparecendo  neste  nosso  horisontc  :  obras  sub- 
stanciaes  e  duradouras,  accumulação  de  longo  tra- 
balho e  pensar  ,  são  mais  que  escacissimas.  Elabo- 
ram-se,  comtudo  ,  c  preparam-se  os  materiaes  para 
••lias  :  ha  muita  forra  latente.  Lè-sc  e  ama-se  a  lei- 
tura. Mas  louva-so  o  bom  e  o  mau  sem  discrime  ; 
c  corre  impunemente  a  moeda  falsa  com  a  genuína, 
.sem  haver  alma  caritativa  que  tome  sobre  si  o  en- 
cargo de  contraste. 

Quem  virá  que  funde  a  critica  de  que  não  ha  a 
mais  leve  sombra  entre  nós?  Que  diga,  sem  rebu- 
ço ,  ao  péssimo  que  o  é  ;  —  ao  raáu  que  lhe  fal- 
ta alguma  cousa  para  chegar  a  medíocre;  — ao 
.sofrível  que  forceje  por  attingir  as  raias  do  bom  ; 
—  ao  que  está  verde  que  dè  o  tempo  devido  ao 
crescimento  e  á  cultura  ;  — ao  bom  que  c  digno  de 
lon\or;  mas  que  ainda  mais  o  seria,  se  alcançasse 


o  ser  perfeito ;  —  e  que  ao  perfeito  renda  então 
francas  homenagens  ,  e  não  regateie  coroas  e  ova- 
ções? È  falta,  muito  para  sentir,  a  da  critica. 
Criem-na  os  óptimos  ,  que  os  inferiores  escutarão  , 
c  os  Ínfimos  da  communidadc  liltcraría  acceitarc- 
mos  com  acatamento  conselhos  c  correcções. 

Sem  embargo  desta  falta,  a  ([uadra  promctte  mui- 
to. Cuida-se  a  linguagem  e  o  estylo  mais  do  que 
até  agora.  Buscam-se  ,  consultam-se  ,  estudam-sc  , 
c  rcimprimcra-se  os  clássicos:  citam-os,  elogiam- 
os ,  c  vai  sendo  quasi  moda  [Deus  queira  que  che- 
gue a  ser  mania]  escrever  era  portuguez.  Muitos , 
na  verdade  ,  ainda  barbarisam  ;  mas  contra  esses 
são  os  escriptores  escrupulosos  uma  espécie  de  an- 
tídoto ,  porque  ha  na  memoria  e  na  consciência  do 
povo  uma  luz  que  lhe  ensina  a  distinguir  o  trajo 
portuguez  ,  próprio  da  língua  ,  dos  vestidos  alheios 
c  mal  ajustados  com  que  a  desfiguram  ;  c  no  ouvi- 
do e  sentimento  do  homem  mais  rude  um  princi- 
pio de  harmonia  que  lhe  ensina  a  difTerençar  os  es- 
tylos  como  os  tons,  e  a  dar  preferencia,  quasi  sem- 
pre ,  aos  melhores. 

Esta  luz  nos  guiará  ,  até  que  appareça  a  da  cri- 
tica. 

Á.  d' O.  Marreca. 


AnsE.NAL  DO  e\í;ri;ito. 


0  Arsenal  do  Exercito  portuguez  ,  em  Lisboa  ,  á 
Ijeira  do  Tejo  ,  na  parle  mais  oriental  da  cidade  , 
não  6  um  edificio  que  dentro  de  ura  só  recinto  com- 
prehenda  todas  as  oílicinas  do  fabrico  de  armas  ,  c 
equipamentos  ,  do  trem  de  artilheria  e  de  outros 
objectos  militares.  Damos  o  prospecto  da  entrada 
liaquella  parle  do  Arsenal ,  sita  á  margem  do  rio  ; 
ehamam-lbe  vulgarmente  a  Fundição,  para  a  distin- 
guir do  estabelecimento  de  construcçõcs  marítimas 
"om  seus  respcclivos  armazéns  c  arrecadações  ,  a 
(|ue  o  vulgo  tem  exclusivamente  consignado  o  nome 
de  Arsenal,  e  que  occupa  o  assento  do  antigo  paço 
<ie  nossos  reis.  Porem  a  verdadeira  Ftiiidicuo  ,  dita 
<le  cima',   onde  se  fundem  as  peças  d'artilheria  ,   é 

1  luitigua  ao  palácio  destinado  para  residência  do 
inspector,  em  terreno  muito  mais  elevado  ,  c  com 
serventias  Íngremes  ,  fronteiro  ao  templo  incomple- 
to do  St."  Engracia  ,  no  campo  de  St.'  Clara  ;  c  no 
extremo  deste  campo  ao  nascente  ,  quasi  ao  pé  do 
palácio  do  Ex."""  Sr.  Conde  de  Lavradio,  estão  col- 
locadas  as  ferrarias,  e  o  deposilo.dos  reparos  e  pc- 
ireehos  concernentes  á  arma  de  artilheria  ;  é  csla 
uma  parte  inlegranto  do  Arsenal  ,  como  também  o 
é  a  mais  distancia  o  laboratório  de  fogos  de  artifi- 
cio ,  a  St."  Apollonia  ,  e  ímmediatamente  soljran- 
eeiro  ao  Tejo.  Vè-sc  que  é  um  corpo  com  os  mem- 
bros dispersos  ;  o  que  sem  duvida  foi  devido  ás  díf- 
lerentes  opochas  da  ediíicação  de  cada  uma  das  par- 
tes avulsas  ,  que  o  compõem  ,  e  que  nasceram  da 
necessidade  de  occorrcr  provídentemente  ao  forne- 
cimento do  exercito ,  depois  que  cslc  começou  a 
ser  permanente  c  regular  :  não  se  quizeram  perder 
os  trabalhos  já  feitos,  e  como  o  terreno  adjacente 
não  dava  largas  ,  erearam-se  pelas  visinhanças  os 
estabelecimentos  complementares.  —  O  descidio  que 
remata  a  este  breve  artigo  mostra  a  fachada  da  Fioi- 
dirãn  tli:  hai.ro ,  e  que  olha  para  o  poente  ,  tendo 
guarnecida  a  avenida  pelo  lado  da  terra  cflm  o  a|>- 
paralo  bellico  do  numerosas  peças  de  arliiheria  :  as 
••oliiuuias  da  entrada  são  da  ordem  corlnthia  ;  tro- 
pliéus  militares  a  coroam  ,   tudo   de  bem  lavrada 


cantaria  :  o  risco  c  d' um  archilecto  Mr.  Larre,  que 
provavelmente  o  seria  de  todo  o  edificio  ,  construí- 
do em  1760  pelas  ordens  do  esclarecido  ministro 
marquez  de  Pombal :  interiormente,  ao  rcz  do  chão 
ha  a  entrada  para  os  vastos  armazéns,  que  consti- 
tuem o  primeiro  deposito,  segundo  o  regulamento 
vigente  do  1."  de  julho  de  183í  :  o  pavimento  des- 
tes é  inferior  ao  nível  da  rua  comprohendida  entre 
a  parede  externa  do  edificio  c  a  cortina  lateral  ao 
Tejo  ;  eram  escassíssimos  de  claridade  porque  re- 
matavam no  elevado  socalco  que  sustenta  os  pateos 
interiores  e  muitas  oíTicinas  ,  que  tem  serventia  pe- 
la calçada  que  costeia  o  edificio  da  parte  da  terra  , 
em  altura  muito  superior  á  entrada  geral  visinha 
ao  rio  e  por  consequência  aos  mesmos  armazéns  : 
quando  alli  foi  inspector,  o  Sr.  Coronel  X.  J.  da 
S.  Leão  fez  desapparecer  este  grande  defeito,  abrin- 
do-se  uma  espécie  de  saguão ,  resguardado  conve- 
nientemente pelo  socalco  c  por  um  forte  paredão 
que  forma  as  costas  dos  armazéns,  e  lhes  dá  toda 
a  segurança  ,  facilitando-lhes  luz  c  ventilação. 

No  lado  do  norte  da  fachada  estão  a  secretaria  , 
contadoria  ,  archivo  e  outras  secções  civis  da  ins- 
pecção geral  do  .\rsenal  ,  oecupando  o  andar  supe- 
rior c  correspondente  ao  outro  lanço  do  sul  :  este 
membro  que  completa  a  frente  ao  sul  é  uma  belli- 
sima  e  espaçosa  sala  sobre  os  armazéns  já  mencio- 
nados contendo  o  armamento  da  cavallaria  ;  o  topo 
é  da  banda  do  rio  ;  e  ahi  collocaram  o  retrato  em 
corpo  inteiro  da  Nossa  .\ugusla  Rainha  ,  A  Senhora 
D.  SL\ni.v  li.  ,  devido  ao  pincel  do  hábil  professor 
da  Academia  de  Eellas-Arles ,  o  Sr.  Joaquim  lía- 
phael ;  as  pinturas,  que  alormoseam  este  salão  ma- 
gnifico, hera  como  o  tecto  da  entrada  ,  são  ordina- 
riamente attribui<las  aos  nomeados  artistas  Pedro 
Alexandrino  de  (Carvalho  c  Cyrillo  Wolkmar  Jía- 
chado  ;  mas  este  ultimo  no  seu  livro  intitulado  « 
Collecção  de  Menuiri»s  relativas  ás  vidas  dos  pin- 
tores ,  escuiptores  ,  archilerlos  &c.  »  iliz  expressa- 
mente o  seguinte  [a  pag.  1-23]  =  Hrnno  .losé  do 
\  alie Competiu  com  Pedro  Alexan- 


o  PANORAMA. 


drino,  e  alé  aos  annos  de  1762  davam-lhc  a  prefe- 
rencia ,  porque  no  teclo  da  escada  da  Fundirão  ,  o 
Pedro  e  o  Berardo  (•)  fizeram  nos  quatro  lados  as 
quatro  partes  do  mundo  ,  c  clle  fez  o  grande  qua- 
dro do  meio.  Continuou  depois  com  a  casa  das  pis- 
tolas,  aonde  coloriu  outros  painéis  allegoricos. » 
Lemos  na  mesma  obra  a  pag.  19o  que  —  «Felicia- 
no Narciso,  que  pintava  optimamente  architecluras 
e  ornatos ,  desenhou  e  dirigiu  [depois  do  terremo- 
to] os  ornamentos  no  grande  tecto  da  casa  das  pis- 
tolas na  Fundirão,  os  quaes  foram  executados  por 
elle  mesmo  ,  por  António  Caetano  da  Silva  ,  Antó- 
nio dos  Santos  Jíjaquim  ,  e  por  outros  :  José  Carva- 
Ilio  Rosa  pintou  as  flores. — Quando  pintou  o  grande 
tecto  na  Fundição  estava  já  muito  convulso,  o  que 
não  obstante  distingue-se  o  seu  toque  de  ouro  de 
todos  os  mais  pela  limpeza  ,  elegância  ,  e  perfeição 
cora  que  c  feito.»  Taes  são  as  breves  noticias  que 
podemos  achar  dos  artistas  que  desempenharam  tra- 
balhos mais  acaliados  nas  obras  dos  edifícios  do  Ar- 
senal do  Exercito  :  temos  porem  ,  na  esculptura  , 
de  mencionar  devidamente  ainda  mais  dois. 

Da  sala  de  que  acabamos  de  fallar  se  passa  suc- 
cessivamente  para  outras  que,  igualmente  com  gran- 
des janellas  rasgadas  para  a  rua,  formam  o  lanço  pa- 
rallelo  ao  rio  até  o  portão  ,  cm  frente  do  cães  que 
serve  para  receber  ou  expedir  os  objectos  que  en- 
tram ou  saheni  do  estabelecimento  ,  transportados 
por  agua.  Estas  quatro  salas  tem  cm  seus  bem  dis- 
postos cabides  ,  collocadas  com  elegância  ,  ordem  e 
aceio  ,  as  armas  brancas  e  de  fogo ,  geralmente  de 
serviço  na  infantaria  :  e  assim  como  na  primeira  a 
distancias  regulares  se  acham  bacamartes  ,  nestas 
se  encontram  esmerilhões  ,  c  outras  bocas  de  fogo 
de  longo  alcance  ,  mas  sem  uso  na  guerra  :  muitas 
armas,  como  espadas,  terçados,  &c.  estão  ordena- 
das de  espaço  a  espaço  á  maneira  de  vistosos  tro- 
pheus  bellicos  :  diversas  figuras ,  postas  em  syme- 
tria ,  nomeadamente  no  principal  salão ,  symboli- 
sam  as  armaduras  da  idade  media.  As  estatuas  al- 
legoricas  de  Marte  e  Vulcano ,  e  outras ,  e  os  bus- 
tos dos  nossos  maiores  guerreiros  na  índia ,  foram 
feitas  por  Francisco  António,  bom  esculptor  em  ma- 
deira e  metaes  ,  que  fallcceu  no  fim  do  scculo  pas- 
sado ,  e  a  quem  succedcu  como  esculptor  da  Fun- 
dição João  José  de  Aguiar,  que  lambem  depois  tra- 
balhou em  mármore,  e  fez  alem  disso  a  esculptu- 
ra em  bronze  das  banquetas  que  no  Arsenal  se  fun- 
diram para  a  Basílica  de  Mafra.  Bem  desejávamos 
poder  ampliar  mais  estas  noticias;  mas  circumscre- 
vendo-nos  por  agora  ;ís  que  adquirimos,  esperaremos 
que  se  nos  appresentem  outras  mais  copiosas,  prin- 
cipalmente relativas  ás  obras  feitas  no  Arsenal  ,  e 
aos  seus  artistas  beneméritos  em  quaesquer  epochas; 
todas  as  que  se  nos  offerecerem  publicaremos  gos- 
tosos como  sempre  fazemos  a  tudo  quanto  é  de  cre- 
dito e  proveito  nacional. 

João  Baptista  de  Castro  ,  apesar  de  ser  contem- 
porâneo da  edificação  do  Arsenal  ,  apenas  consagra 
a  esta  Repartição  mui  poucas  linhas  ,  [no  M.  de 
Port.  Part.  i.'  pag.  37S  da  ed.  de  4.°]  que  nada 
adiantam  ,  salvo  o  mencionar  os  nomes  de  três  of- 
ficiaes  militares ,  que  por  então  governaram  o  es- 
labeleeimcuto  ,  sendo  um  delles  francez,  cuja  acti- 
vidade este  A.  muito  elogia  ,  bem  como  o  zelo  dos 

(•)  Berardo  Pereira  Pegado,  pintou  os  painéis  de  St.° 
Eslevrio  d'Airania  ;  com  elle  aprendeu  Pedro  Alexandrino; 
e  diz  o  pintor  Taborda  na  Memoria,  que  junlou  ás  suas  Re- 
gras de  Pintura,  que  consisle  a  maior  gloria  de  Berardo 
em  ler  deitado  aquelle  discípulo. 


que  lhe  succederam.  —  Parece-nos  opporluno  men- 
cionar aqui  um  iiensamenlo  que  se  não  rcalisou. 
Jacome  Rattoii,  nas  suas  Itrcordaçõcs  pag.  130,  diz 
que  organisára  um  projecto  para  uma  nova  fabrica 
de  armas  ,  e  ao  mesmo  teniiio  de  obras  grossas]  e 
finas  ,  de  ferro  ,  aço  ,  e  cobre  ,  e  que  o  appresentá- 
ra  ao  Jlinistro  d'Estado,  visconde  de  Balsemão. 
Consistia  o  plano  de  Ratton  na  formação  de  uma 
companhia  d'accionislas,  com  o  capital  de  300  con- 
tos de  réis,  a  qual  erigiria  os  necessários  edificios 
em  um  local  junto  á  bacia  e  porto  de  S.  Martinho, 
para  haver  facil  transporte  por  mar,  quer  das  ma- 
nufacturas para  Lisboa  ,  quer  do  car\ão  de  pedra 
de  Buarcos,  que  devia  ser  o  combustivel  emprega- 
do para  as  maquinas  movidas  a  vapor,  ainda  que 
houvesse  outros  motores  por  agua  corrente  :  o  dito 
local  proporcionava  igualmente  a  conducção  pouco 
dispendiosa  das  lenhas  e  madeiras  do  pinhal  doi- 
rei,  que  fossem  necessárias.  A  eomitanhia  ,  soba 
protecção  do  Governo,  devia  ser  administrada  uni- 
camente por  uma  Direcção  composta  de  accionistas 
e  eleita  pela  Assemblea  Geral  destes.  Porem  este 
alvitre  foi  regeitado,  «talvez  [diz  o  citado  J.  Ratton  | 
porque  nclle  entrava  o  mosteiro  d'.\Icobaça  ,  como 
um  dos  principaes  accionistas,  visto  que  era  de 
grande  proveito  aos  coutos  do  dito  mosteiro,  tanto 
em  consumo  de  géneros,  como  em  augmento  de  po- 
pulação. » 

Entendamos  porem  que  o  Arsenal  do  Exercito  não 
só  é  uma  fábrica  ,  a  qual  pôde  produzir  grandes 
vantagens,  quando  fornecida  de  matérias  primas, 
mas  também  é  uma  escbola  dos  olficios  mechani- 
cos  ,  muitos  dos  quaes  se  podem  intitular  artes, 
como  por  exemplo  o  de  «abridor  em  metaes»  o  do 
fabricante  de  instrumentos  bellicos,  e  d'instrumcn- 
tos  mathemalicos ,  &c.  Convém  que  este  núcleo, 
quaesquer  que  sejam  os  apuros  da  fazenda  publica, 
subsista  no  melhor  estado  possivel ,  para  a  todo  o 
tempo  se  lho  dar  desenvohimento  e  maior  amplitu- 
de ,.  ao  que  persuadem  mui  ponderosas  rasões  de 
conveniência  económica  e  politica  ,  que  não  é  do 
nosso  instituto  referir  ,  porem  mui  claras  para  toda 
a  gente  sensata.  Assim  o  entendeu  a  benemérita 
commissão  ,  que  ,  de  ordem  regia  ,  redigiu  o  proje- 
cto de  reforma  c  regulamento  provisório  do  Arse- 
nal mandado  observar  por  Decreto  do  1.°  de  juliio 
de  183  i:  compoz-se  a  commissão  dos  Snr.'*  P.  Jo- 
sé da  Cunha,  J.  da  Cruz  Xavier,  D.  C.  Barbosa 
Torres  :  sabemos  o  grande  esmero  com  que  o  Sr. 
Xavier,  Secretario  Geral  da  Repartição,  se  empe- 
nhou por  levar  á  pratica  mais  perfeita  as  providen- 
tes  disposições  do  novo  Regulamento;  e  também  sa- 
bemos quanto  os  Srs.  Inspectores  se  tem  dedicado  a 
mante-lo  em  vigor  ,  bem  como  á  conservação ,  cré- 
ditos e  lustre  do  Arsenal ,  a  que  tem  presidido  ; 
assim  o  Sr.  Coronel  Leão  ,  que  entrou  a  administrar 
em  1833  ,  como  os  seus  dignos  successores  os  Srs. 
Barão  de  Monte  Pedral  e  Barão  d'Ovar,  aos  quaes 
o  estabelecimento  é  devedor  de  grandes  melhora- 
mentos. Sejam  provas  as  obras,  já  solidas  e  dura- 
douras ,  já  perfeitas  e  trabalhadas  com  esmero  ,  se- 
gundo sua  diversa  natureza,  que  nestes  últimos  tem- 
pos tem  sabido  do  Arsenal  ;  onde  sempre  mereceu 
louvor  por  sua  dexteridade  uma  grande  maioria  de 
mestres  e  ofíiciaes  de  varias  officinas.  Citaremos  por 
conchisão  os  recentíssimos  aperfeiçoamentos  intro- 
duzidos nos  fechos  fulminantes  das  armas  de  fogo 
portáteis,  e  o  invento  do  martello  de  percussão  pa- 
ra as  peças  de  artilheria,  de  que  deu  recentissima- 
niente  noticia  oITicial  a  folha  do  Governo,   e  falia- 


.^ 


o  PANORAMA. 


t.. 


ram  com  o  devido  elogio  muilos  oulros  periódicos, 
que  nos  dispensam  de  trnlar  aqui  matéria  mui  cs- 
tranlia  á  uussa  profissão.  —  Tarabera  nos  absteraos 
de  fallar  na  famosa   peça  d'artillicria   dita,   o  tiro 


de  Diu ,  e  no  molde  da  Estatua  Equestre  ,  porque 
já  largamente  o  fizemos  nos  volumes  da  precedente 
serie,  a  que  o  leitor  curioso  poderá  recorrer  pro- 
curando pelos  Índices  os  respectivos  artigos. 


o  PANORAMA. 


Epitomé  da  vida  de  Lciz  de  CahOes. 

Tantos  historiadores  dislinctos  .  Ião  eruditos  bio- 
ftraphos  escreveram  a  vida  ,  feitos  e  infortiinios  do 
poeta  mais  illtistrc  de  que  se  ufaua  Portugal  ,  que  | 
parecerá  temeridade  querermos  nós  tratar  esta  ma-  , 
leria.  Por  certo  que  não  nos  abalançariamos  a  fa- 
/.c-lo  ,  se  porventura  uma  iniica  consideração  nos 
não  incitasse.  lísla  considerarão  é  que  nem  todus 
os  nossos  leitores  podem  com  facilidade  consultar 
Ferreira  ,  Faria  c  Sousa  ,  Corrêa  ,  Uibeiro  ,  Seve- 
rini  de  Faria,  Santos,  Mariz,  o  morgado  de  Malhcus, 


nem  mesmo  o  erudito  Sr.  bispo  de  Vizeu  na  mu 
Memoria  Histórica  c  Critica  ,  que  anda  impressa 
nas  obras  da  Academia  Ueal  das  Sciencias ;  e  ou- 
tros preferem  resumos,  que  melhor  se  compadecem 
com  as  publicações  litlcrarias  do  género  do  Pan<i- 
rama,  a  obras  difusas  com  quanto  cheias  de  saber, 
c  repletas  de  vastos  conhecimentos  litterarios.  Pa- 
ra esta  qualidade  de  leitores  escrevemos  pois,  r 
por  isso  esperamos  dos  mais  rígidos  censores  a  nn'- 
recida  desculiia  ,  se  escrevermos  mal  sobre  assum- 
pto tratado  bem  c  magistralmente  por  penna«  m.ii^ 
hábeis. 


Aqucllc  respeito  c  veneração  que  é  devido  ú  me- 
moria de  uni  grande  homem  ,  exige  que  seus  con- 
cidadãos religiosamente  lh'o  tributem  por  duplica- 
do motivo.  —  1.°  Como  testemunho  de  gratidão  pa- 
ra com  o  n(dirc  esteio  da  grandeza  nacional.  —  2.° 
Como  dever  que  tem  por  ol>jeclo  transmiltir  á  pos- 
teridade modellos  dignos  d'imitação.  Altos  e  mui 
nobres  exemplos  nos  oflereccm  os  séculos  moder- 
nos, que  apesar  das  inculpações  que  cscriptorcs  coe- 
vos e  ânimos  prevenidos  lhes  tem  feito,  nem  por  is- 
so deixam  de  se  avantajar  sobre  os  séculos  antigo?. 
Se  é  portanto  gratidão,  que  não  menos  dever,  con- 
servar iiniolados  para  os  \indouros  os  nomes  illus- 
Ircs  dos  varões  excelsos  que  honraram  a  sua  pá- 
tria, quem  melhor  o  merecerá  entre  os  grandes  en- 
genhos de  Portugal  que  Luiz  de  Camões  ;  esse  que 
por  seu  transcendente  mérito  ,  e  pela  ingratidão  c 
desamparo  em  que  morreu  no  seio  da  terra  ,  que 
boje  ,  porem  tarde  ,  se  ufana  de  lhe  haver  dado  o 
ser .' 


I.uiz  de  Camões  ,  nasceu  em  Lisboa  no  anno  de 
loáí  ,  segundo  a  melhor  opinião,  inda  ([iie  Se\r- 
rini  de  Faria  e  Garcez  Ferreira  sustentem  que  fór.i 
no  anno  de  1517.  Simão  Vaz  de  Camões,  e  Aiuia 
de  Sá  de  Macedo  foram  os  progenitores  do  grande 
porta.  Os  ascendentes  de  Luiz  de  Camões  eram  im- 
bres  ,  e  a  sua  familia  originaria  do  Galiza.  O  Milar 
desta  era  o  caslello  de  Camões  ,  junto  ao  cabo  de 
Finisterra  ,  donde  deriva  o  seu  appellido. 

Aasco  Pires  de  Camões  foi  o  [irimeiro  clcsía  Iíi- 
milia  que  jiassou  a  Portugal  cm  1370,  onde  seguir, 
o  p,ir;ii!o  do  Sr.  D.  Fernando  contra  eirei  D.  Hen- 
rique de  Caslella.  A  julgar  pela  grandeza  da  do;i- 
ção  que  o  soberano  portugucz  lhe  fez  ,  e  os  cargos 
quo  lhe  confiou,  devia  ser  a  acquisição  deste  fidal- 
go considerada  de  muita  imjiortancia  ,  o  a  sua  pes- 
soa lida  em  grande  valia.  Casou  era  Portuga!  roni 
a  filha  de  Gonçalo  Tenreiro,  capitão  mór  das  arrnn- 
das  ,  de  quem  teve  ,  Gonçalo  A'az  de  Camões  ,  .íoã;) 
i  Vaz  de  Camões,  e  Constança  Pires  de  Camões. 


o  PANORAMA. 


Do  primogenilo  descendem  varias  familias  ,  mui 
illuslres  do  reino.  Da  aliiança  que  fez  o  segundo 
com  Ignez  Gomes  da  Silva  ,  procedeu  António  Vaz 
de  Camões  ,  o  qual  casou  com  Guiomar  Vaz  da  Ga- 
ma, de  quem  teve  Simão  Vaz  de  Camões,  que,  co- 
mo dissemos ,  foi  o  progenitor  do  nosso  immortal 
jioeta. 

Seus  pais  consta  não  eram  abastados,  porque  pro- 
>inham  de  um  ramo  segundo;  e  é  notório  que  no 
nosso  Portugal  filhos  segundos  são  geralmente  pou- 
co avantajados  ;  no  emianto  apesar  dos  poucos  bens 
da  fortuna  ,  grande  cuidado  tiveram  em  cultivar  os 
raros  talentos  de  seu  filho.  P.  M. 

(Coniinuar-sc-ha.) 


Bem  querer  e  mal  fazer. 

[Memorias  insulanas]. 

=  1531  = 

I. 

A  moura ,  o  galan  c  uma  discreta. 

Socega-le  e  respira, 

Formosa tjue  semblante 

E'  esse  cheio  de  ira  ! 
Onve-me  um  pouco,    escula-me  um  instante, 

Pôde  ser ,  se  me  ouvires , 
Que  em  vez  de  raiva  ,  só  de  amor  suspires. 

=  Jodo  Xavier  de  jMaílos-  = 
Ode  2.»  =  vol.  2.° 


oDiGo-TE,  minha  irraaã,  que  são  boas  horas  de  nos 
acolhermos  a  nossos  aposentamentos.  —  A  noiíte  vai 
de  corrida.  A  agulha  já  foge  das  mãos  dessa  mou- 
ra escrava  ,  que  ahi  está  pcrdidinha  de  somno  ;  e  a 
mim  mesma  começa  a  torvar-se-me  a  cabeça.  Adeus 
até  amanhaã. 

"Assim  me  despedes,  Isabel?  São  poucas  as  ve- 
zes que  venho  a  vcr-te  depois  que  tomei  estado  ,  e 
«•stas  mesmas  já  a  ti  te  parecem  longas,  quando  de 
companhia  estamos.  IVão  é  isso  de  tão  boas  e  tão 
unidas  irmaãs  que  nós  éramos  I 

«Da  minha  amisade  ,  Águeda,  não  creio  eu  que 
possas  já  agora  duvidar.  Bem  te  quizera  sempre 
«•omigo  e  ao  pé  de  mim.  ftlas  este  repasto  d'alma  , 
com  que  na  tua  conversação  me  deleito ,  não  pódc 
durar  sempre  ;  amanhaã  o  renovaremos ;  por  em 
quanto  o  corpo  lambem  pede  o  seu  descanço.  Con- 
to que  serás  minha  por  estes  dias. 

«Não  to  aílianço  ,  que  asinha  mo  tornarei  a  mi- 
nha morada,  mal  que  meu  senhor,  e  esposo,  fòr 
de  volta  da  Capitania.  Não  te  quero  accresccntar 
enfadamentos.  .  .  . 

Dizendo  ,  liidia-se  erguido  ,  dobrando  c  anafando 
«uidadosamentc  a  obra  de  lavor  cm  que  trabalha- 
va ,  c  ao  pronunciar  as  ultimas  palavras  ,  com  voz 
um  tanto  despeitosa  ,  põ-la  sobre  um  cscabcUo  que 
alli  ficava  á  mão,  fazendo  semblante  de  sahir. 

"Que  c  isso,  minha  irmaã  ,  nem  as  boas  noites 
me  dás?  Não  te  vás,  não,  assim  agastada.  Tem 
mão  nesse  teu  génio  assomado  c  vem  abraçar-mc. 
Já  niugucm  tenho  na  terra  se  não  tu  para  me  que- 
rer e  amar  bem  do  coração  ;  ninguém  ,  nem  pai , 
nora  mãi  ,  nem  marido.  Águeda  ,  acaso  te  offendi 
tu? — pcrdoa-m'o  se  o  fiz.  Queres  tu  por  tão  pou- 
co fazer  quebra  nesta  nossa  tão  boa  e  tão  sauta 
iimisade? 

Aliraçaram-se  antes  de  se  separarem  c  o  fira  das 


despedidas  foi  assim  mais  amigável  e  menos  seve- 
ro que  o  principio.  Eram  arrufos  e  susceptibilida- 
des de  irmaãs  c  amigas,  sempre  fáceis  de  se  des- 
fazerem ,  mormente  quando  n'uma  era  tamanho  o 
desamparo  de  alheios  alTcctos  e  n'outra  tão  vivo  o 
sentimento. 

D.  Isabel  e  D.  Águeda  de  Abreu  eram  filhas  de 
João  Fernandes  de  Abreu  ,  senhor  da  Lombada  do 
Arco  na  mui  fértil  c  formosa  ilha  da  Aladeira.  D. 
Águeda  casada  com  Miccr  Eslevam  Esmeraldo,  ri- 
co fidalgo  genovez  ,  vivia  ha  muito  em  seus  coutos 
c  herdades  ,  visitando  de  longe  em  longe  a  irmaã 
a  quem  muito,  e  muito  d'alma  ,  presava.  D.  Isa- 
bel ,  viuva  de  João  Rodrigues  de  Noronha ,  que 
servira  clrei  como  bom  vassallo,  já  capitão  mór  do 
mar  na  índia  ,  já  depois  capitão  d'Ormuz,  conser- 
vava-se  em  sua  morada  quasi  sempre  em  solidão  , 
visitada  de  seus  parentes  raras  vezes  ,  e  mais  raras 
sahindo  a  visita-los  ;  respeitada  de  todos  e  por  to- 
dos bem  havida.  Era  cila  sobremodo  formosa  c  tão 
formosa  como  discreta  e  tão  discreta  como  rica ,  e 
era  moça  e  era  linda  ,  mas  com  sè-lo  tanto  ,  e  de 
tantos  requestada  ,  nem  por  isso  se  tentou  em  vol- 
tar á  vida  de  festas  e  saraus  que  a  chamava,  e  aon- 
de brilharia  —  dizia-lh'o  o  seu  espelho   de  Veneza 

—  a  primeira  entre  as  melhores,  e  a  melhor  entre 
as  de  mais  nome.  A'iu-se  pois  uma  mulher ,  preza 
por  quanto  o  mundo  pode  prender,  fugir  delle, 
enccrrar-se  com  suas  saudades  e  guardar  lealdade 

—  caso,  cm  verdade  ,  de  homérica  estranheza  !  — 
a  seu  marido  morto ;  ao  passo  que  outras,  de  quem 
já  o  mundo  se  vai  despedindo,  não  a  guardam  nem 
aos  esposos  vivos.- — Senão  houvera  o  mal  como 
se  avaliaria  o  bem? 

A  Lombada  do  Arco  ,  terra  de  que  tinha  o  se- 
nhorio, e  aonde  ordinariamente  vivia,  era  uma  no- 
bre c  mui  va^ta  herdade ,  abundante  e  copiosa  de 
todas  as  cousas  precisas  ,  e  bem  provida  de  quanto 
o  mais  apurado  desejo  podia  appeteccr.  As  casas 
cm  que  a  illustre  Rica-dona  (1)  fazia  seu  domici- 
lio eram  amplas  c  magnificas  no  interior ,  fortes  e 
bem  torreadas  no  exterior  ;  estando  ,  para  o  que 
desse  e  viesse  ,  abastecidas  de  numerosos  domésti- 
cos ,  homens  de  armas,  com  grande  copia  delias, 
e  escudeiros  ,  como  convinha  ao  estado  c  lustre  de 
tão  fidalga  senhora  ,  o  á  segurança  de  tão  grande 
habitação  ,  assim  posta  ao  desamparo  no  meio  dos 
campos  e  longe  da  cidade. 

Era  alta  noite.  O  serão  e  a  palestra  das  duas  ir- 
maãs que  ha  muito  se  não  viam  —  bem  que  somen- 
te perfumados  daquella  bcmdila  simplcza  de  nossos 
pais,  bem  que  mui  longe  dos  adubos  e  sainèles 
dos  saraus ,  bem  que  unicamente  empregado  no 
trabalho  [que  dcllc  se  não  dcsprcsavara  as  mais 
fidalgas  mãos]  c  em  colloqnios  aflectuosos  —  ti- 
nham-se  prolongado  fora  do  costumado.  Já  as  ayas, 
donas  ou  donzellas ,  com  licença  de  sua  ama  ,  se 
haviam  recolhido  aos  seus  quartos,  deixando  as 
obras  de  costura.  Já  a  moura  valida  de  D.  Isabel 
e  que  ao  pé  da  sua  camcra  dormia,  cabeceara  mi;i 
sollVi\ cimente  ,  quando  D.  Isabel  se  resolvera  a  sc- 
parar-se  da  irmaã  ,  mais  por  lhe  desejar  o  preciso 
repouso  do  que  para  a  si  própria  o  dar.  Ficando 
só  aiqiroximou-se  da  moura  que  dormia  ou  parecia 
dormir  sobre  o  seu  trabalho  e  sacudindo-a  a  accor- 


(1)  O  tiliilo  de  Rico-linmem,  dado  aos  fidalgos  senlio- 
res  de  largos  patrimónios,  snlisisliu  nlé  os  Icnipos  dVIrei  D. 
Manuel  —  suas  mullieres  eram  cliamadas  ricas-donas.  Morto 
J).  IManuel  cm  IMX  ntxo  julgamos  commelter  grave  ana- 
cluoiiismo  conservando  este  Ululo  10  annos  depois. 


o  PANORAMA. 


dou  rccoramondando-lhc  o  dcscanro  na  camilha  que 
para  cila  alli  eslava  feita.  Despertou  a  escrava  es- 
tonteada c  confusa  apparelhando-se  indecisamente 
para  obedecer  ao  mandado  de  sua  senhora.  Disse- 
ra-se  ao  vè-la  que  nunca  tamanho  somno  pesara  cm 
pálpebras  femininas.  Sahiu  D.  Isabel  da  camcra  cm 
que  SC  achava ,  para  o  seu  interior  aposento  ,  logo 
alli  próximo,  desacompanhada,  que  a  somnolenta 
moura  não  parecia  cm  estado  de  poder  prestar  ser- 
viços, e  nem  cila  os  exigia  de  suas  ayas,  mormen- 
te áquellas  horas  tão  adiantadas.  Sahindo  cerrou 
para  si  a  porta  para  onde  entrara  e  deixou  só  a 
moura  que  ficara  de  pé  do  mesmo  modo  que  a  se- 
nhora a  deixara  c  como  se  ainda  assim  dormira. 
.\penas  porem  D.  Isabel  do  todo  desappareccu  ,  er- 
gueu cila  a  cabeça  com  gesto  seguro,  c  abrindo  os 
olhos  vivos  ,  brilhantes  e  africanos  ,  sacudiu  de  si 
toda  aquella  cxpressiio  pesada ,  lenta  c  desleixada 
que  pouco  antes  se  lhe  notava.  Ficou  imraovel  co- 
mo estava ,  nem  um  só  exterior  movimento  revelou 
a  súbita  mudança  que  fizera  ,  por  modo  que  se  al- 
guém alli  estivesse  junto  delia,  custar-lhe-ia,  ven- 
do-a ,  a  accreditar  o  que  seus  próprios  olhos  lhe 
dissessem  ,  lai  era  a  iramobilidade  e  silencio  cm 
que  a  manhosa  se  conservava.  E  coratudo  todo  o 
seu  ser  mudara.  Não  era  já  o  rosto  parado,  os  olhos 
abatidos  ,  e  o  gesto  incerto  de  quem  succumbe  ao 
somno  :  eram  faces  animadas,  olhos  e  gesto  expres- 
sivos c  intelligentes  ,  como  ao  primeiro  exame  se 
julgaria  que  os  nunca  cila  poderia  ter.  Levava  as 
vistas  ora  para  a  parle  aonde  D.  Isabel  se  sumira  , 
ora  para  uma  janella  que  lhe  ficava  fronteira.  Pa- 
recia aguardar  alguma  cousa  com  grande  ancie- 
dade.  A  camera  em  que  isto  se  passava  era  mui 
aceiada  ,  porem  mui  singela.  Um  largo  estrado  pa- 
ra as  ayas ,  alguns  cscabellos  soltos  c  espalhados 
sem  alinho  ,  cocedras  e  alfombras  {2)  para  pousar 
os  pés,  c  a  um  canto  a  camilha  da  moura,  com  seu 
cabeçal  c  almadraques  mui  alvos ,  sem  que  por  to- 
da ella  houvesse  mais  ornamentos  nem  alfrezes  (S). 
—  Uma  porta  que  dizia  para  um  corredor  commu- 
nicando  com  o  resto  da  casa ,  outra  que  levava  ao 
aposento  de  D.  Isabel ,  isto  é  ,  ao  seu  quarlo  de 
dormir  e  ao  seu  oratório  ,  que  era  contiguo  ,  e  de- 
fronte deste  uma  jauella  única ,  dando  para  um 
largo  pomar ,  todo  resceudente  debaixo  daquclle 
amoroso  céu  da  Madeira  ,  morno  e  suave  ,  c  quasi 
sempre  céu  de  primavera.  —  Portas  e  janellas  po- 
rem estavam  cuidadosamente  cerradas ;  ouvia-se 
apeuas  lá  fora  o  manso  rumorejar  da  folhagem  ,  e 
algum  desses  sons  perdidos  c  confusos ,  único  si- 
gnal  qu3  sobresahc  no  adormecimento  geral  da  na- 
tureza. Passár<a-se  um  bom  espaço  e  ainda  a  mou- 
ra permanecia  immovel ,  mas  alerta  e  com  ar  in- 
dagador. Por  fim  foi-se  passo  a  passo  encaminhan- 
do surrateiramente  para  a  porta  do  aposento  de  D. 
Isabel ,  e  depois  de  ler  alli  applicado  o  ouvido  , 
contente  ao  que  parecia  daquelle  exame,  dirigiu- 
se  para  a  janclla,  mas  tão  levemente,  que  nem  quem 
na  mesma  camera  estivesse  a  prcsenliría.  Chegada 
que  fui ,  parou  cosida  cora  a  umbreira  de  pedra  e 
ficou  perfeitamente  queda  ,  á  maneira  d'uma  esta- 
tua. Era  coratudo  fácil  de  conhecer-se  a  aturada 
applicação  com  que  empregava  o  sentido  auditivo, 
tendo  as  mãos  cruzadas  sobre  o  peito  ,  e  o  collo 
estendido  do  mesmo  modo  que  a  formosa  Floripes 
vendo  da  torre  do  almirante  Balão  caminhar  para 
o  suplicio  o  seu  Ião  querido  Gui  de  Borgonha  ,  co- 

(2)  Alcalilas. 

(3)  Mobília. 


mo  no-lo  pinta  o  critico  José  Agostinho  de  Mace- 
do,  naquelle  seu  bom  livro  das  =:/'a/t'nrfas.=  Uma 
sombra  movendo-sc  c  atravessando  assim  a  camera 
de  um  para  outro  lado  não  faria  menos  rumor  do 
que  a  moura  fez  no  ir  cumprindo  a  obra  misterio- 
sa de  que  toda  parecia  occupada.  Passaram-sc  ain- 
da instantes ,  c  pouco  depois  sentiu-se  um  iiequenn 
assovio  curto  e  intermittentc  que  ouvidos  pouco  apu- 
rados não  saberiam  ao  certo  distinguir  desses  quei- 
xumes longínquos  das  florestas  edan(julc.  Xão  acon- 
teceu porem  assim  com  a  moura.  Tirou  mui  acau- 
teladamente as  grossas  trancas  da  janella  ,  com  si- 
lencio tamanho  ,  c  tal  presteza  que  nem  que  toda 
a  rida  a  tivesse  passado  em  estudar  a  arte  de  des- 
trancar janellas.  Passada  esta  primeira  operação  res- 
tava só  correr  o  fecho  :  fè-lo  assim  e  a  larga  porta 
da  janella  desandou  nos  seus  gonzos,  gemendo  agu- 
damente c  dando  súbita  passagem  á  brisa  nocturna 
que  fez  oscillar  c  encurvar  a  breve  chamma  d' um 
candéu  ,  única  luz  que  á  moura  ficara.  Ao  inespe- 
rado rumor  comprimiu  ella  a  respiração  ,  cessando 
lodo  o  movimento,  e  escutando  anelada  em  quanto 
o  coração  lhe  pulava  lá  no  peito.  Nada  se  seguiu. 
Com  passo  lento  ,  apenas  trahido  por  um  ligeiro 
ranger  do  pavimento,  foi  direita  á  camilha  tirou  de- 
baixo do  cabeçal  uma  escada  de  corda  ,  com  seus 
ganchos  e  com  iguaes  cautelas  voltou  á  janella  , 
firmou  uma  das  extremidades  no  parapeito  e  pcn- 
dendo-se  para  fora  atirou  com  a  escada  a  baixo. 

Em  menos  de  um  credo  viu-sc  successivamentc 
appareccr  a  cabeça  ,  os  hombros  e  por  fira  todo  o 
corpo  de  ura  homem  ,  que  enlrou  com  o  mesmo  si- 
lencio com  que  tudo  se  acabara.  Era  clle  moco  c 
bem  disposto  ,  c  trajava  gibão  singelo  apertado  por 
um  cinto  de  couro  debruado  com  um  pequeno  cir- 
culo mui  luzidio  de  peltrc  (4) ,  c  umas  calças  gol- 
peadas ,  tudo  de  panno  grisisco  (5)  ordinário.  lS"ão 
dizia  porem  esta  apparenle  c  peã  modéstia  de  ves- 
tuário ,  nem  com  o  seu  ar  decidido  ,  que  bera  se 
podia  chamar  insolente  ,  nem  com  o  penteado  c 
desvelado  dos  cabellos  perfumados ,  nem  com  as 
largas  botas  ornadas  de  formosas  esporas  á  gineta 
lustrosas  e  sonoras  ,  nem  com  o  arrogante  pluma- 
cho  que  lhe  ondeava  no  chapéu ,  nem  sobretudo 
com  o  longo  e  rico  punhal  que  trazia  no  cinto,  cu- 
jo cabo ,  mui  primorosamente  lavrado  ,  tinha  es- 
culpida uma  torre  de  prata  ,  em  campo  verde,  com 
ameias  e  coruchéu  ,  rematando  cm  cruz  de  ouro  , 
c  dois  lobos  rompendo  contra  a  torre  :  ora  estas 
eram  as  armas  d'uraa  nobre  familia  (C)  ,  a  primei- 
ra então  entre  as  da  ilha. 

Apenas  saltou  no  pavimento  tirou  o  desconheci- 
do ,  assim  inconsequente  no  seu  modo  de  trajar  , 
uma  bolça  ,  que  parecia  bem  recheada  de  esphe- 
ras  (~ j  de  ouro  c  ,  enlregaudo-a  desleixadamente  á 
moura  ,  caminhou  cora  ar  deliljcrado  para  a  porta 
do  aposento  de  D.  Isabel.  Quanto  á  escrava  ,  que 
cm  toda  esta  sceua  ,  rapidamente  passada  ,  não  dis- 
sera palavra,  tomando  a  bolsa  e  pesando-a  nas  mãos 


(4)  Lalãj. 

(5)  Panno  escuro  ou  de  còr  leonada  ;  naliiralmciile  do 
gris  dos  francezes ,    dos  quaes  lahez  nos  vinha  o  t;il  panno. 

(6)  Estas  são  com  eíTeiío  as  armas  dos  Camarás,  con- 
cedidas p"r  D.  AlTonso  5.°  em  Santarém  em  1540  a  .Tuài> 
Gonçalves  Zarco,  descobridor  da  illia  da  Jladeira,  com  o 
appellido  de  Camará  de  Lobos  ,  em  memoria  de  uma  ia|)a 
ou  jrula  á  feição  de  camará  ,  mui  trilhada  dos  lubos ,  e  pri- 
meiro loiar  que  aquelle  capilão  visitou  quando  sahiu  eni 
terra.  —  Nobil.  &c. 

(7)  Moeda  mandada  cunhar  por  eirei  D.  Manuel  qee 
tinha  d'um  lado  uma  esphera  e  do  outro  a  leira  uMra" 


8 


O   PANORAMA. 


foi  aninhar-se  na  sua  camilha  como  se  de  nada  sou- 
bera c  nada  vira. 

Já  o  atrevido  intruso  se  dispunha  a  franquear  a 
porta  quando  esta  descerrando-se  deixou  ver  a  di- 
gna e  severa  figura  de  D.  Isabel ,  que  tendo  passa- 
do o  tempo  no  seu  oratório,  e  presentindo  rumor, 
se  encaminhava  a  ver  o  que  se  passava.  D.  Isabel 
ora  uma  dama  de  corarão  varonil  ,  e  animo  intré- 
pido ;  parou  e  medindo  o  indiscreto  hospede  com 
as  vistas,  pareceu  antes  admirada  que  assustada  ; 
não  foi  assim  porem  com  elle  ;  apesar  do  despejo 
fjuc  mostrara  ,  ficou  mcãmcntc  abalado. 

«Porventura,  meu  primo ■ — disse  D.  Isabel  cor- 
rendo toda  a  camera  cora  os  olhos  ,  e  dando  visos 
de  conhecer  já  o  modo  porque  se  eíTecluára  a  es- 
tranha ascenção  do  desconhecido  —  porventura  con- 
vém a  nm  cavallciro  leal  fazer  visitas  a  estas  horas 
da  nuulc,  quando  de  dia  é  recebido;  entrar  pela 
janella,  quando  a  porta  está  franca?» 

A  serenidade  e  placidez  com  que  esta  pergunta 
fui  feita,  e  o  tom  e  ar  senhoril  de  quem  afazia,  co- 
mo que  um  pouco  desconcertaram  o  nosso  pimpão  , 
(jue  linha  talvez  feito  conta  com  uma  scena  mais 
de  romance.  —  E  nisto  dava  elle  ares  do  certos  lei- 
íorcs  que  eu  d'aqui  estou  ouvindo  a  chamarem-mc 
somsaborão  e  o  que  mais  quizcreni  ,  por  lhes  não 
aproveitar  aqui  tão  boa  occasião  para  gritos,  des- 
maios ,  pragas  ,  blasphemias  ,  punhaes  ,  coroando 
ludo  depois  ....  com  uma  boa  ressurreição  ,  muito 
Irisante  c  muito  a  tempo.  Mas  que  quereis?  Prefe- 
ri antes  fazer  passar  as  cousas  mais  simples  e  chaã- 
mcnte ,  isto  é  ,  como  realmente  aconteceram.  Já 
lambem  no  meu  bom  tempo  vos  fiz  a  vontade,  já 
cri  isso  cousa  inimitável  ,  porem  que  hade  ser? 
esta  pobre  humanidade  é  tão  frágil  I  Agora  ...  ago- 
ra digo  como  dizia  o  elegante  e  dolorido  Bernar- 
dim Kibeiro  que,  entre  nós,  era  poeta  a  valer.  .  .  . 

. .  .  Na  crença  e  na  esperança. 
Em  ambas  ha  hi  cuidado  , 
Em  ambas  ha  hi  mudança. 

Postoquc  pouco  á  sua  vontade  com  a  recepção 
que  lhe  faziam  ,  da  qual  palpavelmente  se  via  que 
não  era  temido,  procurou  comtudo  o  incógnito  con- 
servar boa  feição,  balbuciando  Ires  ou  quatro  tri- 
vialidades que  não  acertou  em  acabar,  até  que  por 
fim  pôde  formular  esta  resposta,  que  elle  provavel- 
mente julgou  mui  cabal  ,  e  que  vós  julgareis  como 
quizcrdcs. 

« Prima  e  senhora  minha  ,  se  ,  para  o  que  per- 
tendo  do  vós  eu  vos  buscasse  de  dia  ,  talvez  nem 
de  uonte  podesse  voltar,  a  menos  que  o  não  flzessse 
em  som  de  guerra.  .  .  . 

Aqui  tomou  elle  um  gesto  soberbo  em  quanto 
que  cila  sorria  encolhendo  os  hombros.  Continuou  : 

«E  isso  não  o  desejo  eu.  Se  pela  porta  vos  pro- 
curasse arriscava-mc  um  tanto  a  sahir  pela  janella 
mesmo  apesar  de  todas  as  diligencias  desta  ou  de 
outra  mais  honrosa  arma  para  a  minha  mão.»  — 
!'onsou  a  mão  no  punho  do  ferro  e  olhou  para  o  lo- 
gar  nú  da  espada.  —  «Assim  que,  preferi  entrar 
polu  janella  para  sahir  pela  porta  ,  buscar-vos  de 
noute  para  vos  apparccer  de  dia. 

« E  SC  vós ,  primo  ,  arriscardes  tanto  ou  mais 
neste  do  que  arriscaríeis  no  primeiro  desses  dois 
casos? 

Tambcra  já  era  visível  que  o  bom  do  primo  ti- 
nha já  reassumido  toda  a  sua  deliberação ,  momen- 
tos interrompida. 


«Não  arriscarei  não,  prima  e  senhora  minha  — 
tornou  elle  com  ar  acatado  mas  resoluto  —  que  vós 
estais  aqui  em  meu  poder,  e  eu  acabei  comigo 
cumprir  hoje  o  que  de  vós  pertendo.  Dormem  to- 
dos,  só  nós  velámos.  .  .  enlendeis-me. 

D.  Isabel  d'iim  volver  d'olhos  calculou  a  somma 
de  probabilidades  a  favor  da  opinião  do  primo,  que 
parecia  homem  afferrado  ás  suas  ,  e  vendo-se  só  , 
no  meio  do  silencio  e  da  noute,  sem  meios  de  cha- 
mar soccorro  ,  e  á  mercê  inteira  de  um  indi\iduo 
deliberado  ,  tendo  só  junto  de  si  a  pérfida  escrava 
que  fazia  semblante  de  dormir,  achou  que  a  sua 
situação  era  precária  a  não  poder  sc-Io  mais ,  mas 
como  discreta  que  era  tomou  a  sua  decisão  e  disse 
rigidamente  ao  primo  : 

«Que  perlcndeis  pois  do  mim? 

«Que  me  trateis  a  mim,  formosa  prima,  —  res- 
pondeu elle  —  com  menos  asperidade  do  que  a  to- 
dos tendes  tratado.  Somos  iguaes  nos  bens  e  na  fi- 
dalguia ,  somos  parentes  ...  e  cu  amo-vos.  .  .  Oh  I 
não  vos  irriteis.  —  Se  me  ouvirdes  talvez  troqueis 
vossa  fera  condição  .  .  .  consenti  em  dar-me  a  vossa 
mão.  Os  nossos  senhorios  são  visinhos  ,  torna-los- 
licmos  o  mais  vasto  morgado  de  toda  a  ilha.  .  .  .  E 
já  agora  que  outra  cousa  podeis  vós  fazer  I  .  .  .  .  O 
homem  que  entrou  no  vosso  aposento  pela  janella 
como  amante,  só  deve  de  sahir  pela  porta  como  es- 
poso. 

«Ou  como  salteador. 

«E  quem  ousará  em  toda  a  ilha  affirmar  que  An- 
tónio Gonçalves  da  Camará  entrou  em  casa  de  D. 
Isabel  d'Abreu  como  salteador.  Com  que  testemu- 
nhas o  provareis?  Nem  com  dizc-lo  ficareis  menos 
dcsh ourada  ,  prima  e  senhora.  » 

«Dcshonrada  ! 

D.  Isabel  meditou  algum  tempo,  e  depois  sem 
perturbar-se  respondeu  : 

«  E  não  podereis  vós  ,  para  cumprirdes  vosso  in- 
tento ,  deixar  de  me  deshonrar  aos  olhos  de  lodos? 
Ide-vos  por  onde  viestes.  Que  ninguém  vos  pres- 
sinta. Voltai  em  poucos  dias  para  me  levardes  co- 
mo esposa  ,  que  nisso  consinto  e  havido  depois  o 
rescripto  de  Roma  serei  vossa  mulher.» 

António  da  Camará  ,  presumido  e  namorado ,  es- 
teve para  allí  morrer  de  gosto.  Beijou  a  mão  de  D. 
Isabel ,  e  esgotou  todo  o  repertório  de  suas  fine- 
zas ,  que  ella  supportou  com  admirável  paciência. 
Um  momento  de  deliberação ,  linha  no  seu  concei- 
to, conquistado  a  inconquistavcl  prima,  e  sem  real- 
mente compromette-la  tinha  elle  vencido  o  que  sem 
o  escândalo  julgara  invencível. 

Uma  hora  depois  todos  os  accusadores  signacs 
de  invasão  nocturna  tinham  desapparecido  com  tan- 
to silencio  como  o  com  que  se  haviam  apromptado. 
Na  principal  sala  de  sua  morada  D.  Isabel  dava 
esta  ordem  a  um  escudeiro. 

«  Que  todos  os  homens  d'armas  ,  escudeiros  ,  e 
serventes  da  Lombada  do  Arco  ,  estejam  promptos 
ao  primeiro  alvor  da  manhaã.  Que  as  armas  se  ap- 
parelhcm  e  que  se  faça  boa  guarda  ,  e  aprestos  pa- 
ra qualquer  defensão. 

«  Receia  acaso  ,  vossa  mercê  ?  . .  .  » 

«Obedecer  c  calar  I  » 

A  moura  desappareceu  também. 

S.  Leal  Júnior. 
[Continuar-te-ha .  ] 


A  cnRiosiDADE  se  apascenta  de  noticias  ;   c  o  mundo 
é  um  thcalro  de  novidades. 


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5.J 


o  PANORAaiA. 


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III 


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1  ff'^ 


Janeiro  14 —  1843. 


ii."  bEIUE — >oi      il. 


10 


o  PANORAMA. 


Para  cabal  intelligencia  deste  cartão  do  insigne  Ra- 
phael  referiremos  primeiro  a  scena  evangélica,  que 
representa  ,  segundo  o  texto  Sagrado  ,  c  servindo- 
nos  da  Iraducção  da  Vulgata  pelo  P."  Pereira.  = 

—  «E  veio  Jesus  para  as  partes  de  Cesárea  de 
Filippe  :  e  fez  a  seus  discípulos  esta  pergunta  ,  di- 
zendo :  Quem  dizem  os  homens  que  c  o  Filho  do 
Homem?  —  E  elles  responderam  :  Uns  dizem  que 
João  Baptista  ,  mas  outros  que  Elias  ,  c  outros  que 
Jeremias,  ou  algum  dos  prophetas.  —  Dissc-lhcs 
Jesus:  E  vós  quem  dizeis  que  sou  Eu?  —  Respon- 
dendo Simão  Pedro  disse  :  Tu  és  o  Christo  (1)  ,  Fi- 
lho de  Deus  vivo. —  E  respondendo  Jesus,  lhe  dis- 
se; Bemaventurado  és  Simão  lilho  de  João:  porque 
não  foi  a  carne  e  sangue  quem  to  revelou  ,  mas 
sim  meu  Pai  ,  que  está  nos  Céus. —  Também  te  di- 
go que  tu  és  Pedro  (2)  ,  e  sobre  esta  pedra  edifi- 
carei a  minha  Igreja  ,  e  as  portas  do  inferno  nao 
prevalecerão  contra  ella.  —  E  Eu  te  daiei  as  cha- 
ves do  Reino  dos  Céus.  E  tudo  o  que  ligares  sobre 
a  terra  será  ligado  também  nos  Céus,  e  tudo  o  que 
desatares  sobre  a  terra  será  desatado  também  nos 
Céus."  — 

Fácil  é  dccomprehender  que  a  acção  e  exposição 
deste  assumpto ,  não  obstante  o  sublime  e  solemne 
das  palavras  ,   não  tem  a  variedade  de  circumstan- 
cias  requeridas  para  a  composição   de  um   painel 
cm  grande  :   porem  o  talento  inventivo  de  Raphael 
achou  meio   de  o   apprescntar  variado  ,   próprio   c 
completo.  —  O  Redemptor  está  figurado,  como  era 
de  rasão,   a  conveniente  distancia  e  na  postura  de 
raageslosa  singeleza  :   com  uma  das  mãos  aponta  o 
rebanho  de  ovelhas,  que  o  artista  trouxe  ao  quailro 
alludiudo  ás  memoráveis  palavras,  que  o  Salvador 
dirigiu  ao  mesmo  apostolo  cm  outra  occasião  :  apas- 
centa as  minhas  ovelhas  ;    cora   a  outra   mão  entrega 
as  chaves  ao  fiel  Simão  Pedro  ,   que   de  joelhos  as 
recebe  com  summa  reverencia.   Os  outros  apóstolos 
formam  ura  grupo  bastante  unido  ,   como  o  seu  nu- 
mero exigia  :  um  delles,  que  tem  a  mão  esten<iida, 
mostra-se  penetrado   de  todo    o  mystcrio   daquellas 
palavras  ,   e  contempla  Pedro  como  vigário  do  Di- 
vino Mestre,  ao  passo  que  o  discípulo  querido,  João, 
de  mãos  postas   parece  chegar-se  a  Christo  ,    expri- 
mindo no  rosto  sincero  o  alYeeto  que  o  anima.  Cada 
cabeça   deste  grupo  tom  sua  phisionomia  peculiar, 
com  a  expressão  adequada  :    porem   o  semblante  do 
Salvador  é  verdadeiramente  sublime  e  formoso,  an- 
nunciando  todas   as  circumstancias  que  tinham   de 
.Tcompanhar  a  sua  divina  missão  na  terra,  o  desam- 
paro em  que  Israel  o  havia  de  por  ,    o  amargo  cáli- 
ce que  devia  esgotar  ,   e   o  triuinpho    final  sobre   a 
morte  e  o  peccado  :   pelo  que  Uaphacl  trajou  Jcsu 
Christo  por  modo  diverso  do  que  ordinariamente  fi- 
guram  a  sua  imagem  sacrosanta  ,   e  lhe  poz  cm  os 
pés  e  mãos  os  signaes  da  futura  crucifixão. — Todo 
o  cartão   foi  delineado   com  tanla  naturalidade   que 
não  será  fácil  imaginar   o  como  poderia  succeder  o 
acontecimento  ,  que  indica  ,  de  outro  modo  que  não 
fosse  o  que  alli  está  representado. —  O  transumplo, 
que  apprcscntàmos,  serve  para  revelar  o  pensamen- 
to do  cximio  artista  :   bem  pôde  conheccr-se  que  o 
acabamento  de  suas  obras   só  nos  originacs  se  ava- 
liará ,   e  quando  muito   nas  copias   cxtrahidas   por 
mãos  de  pintores  dislinctos. 

(1)     O  nome  Christo  quer  ilizcr  o  ungido  de  Dcm- 
(í)     O  prinripe  dos  Apóstolos  leve   por  primeiro   nome 
Simão,    que  Jesus  llie  miulou  para  Crphas  ,  ijite  qiirr  dizir 
Ptílro  [Evanj.   seg.  S.  JoSo  cap.  1.°  j^  42]  ,   e  é  palavra 
«yriaca ,  eqiiivalciUe  de  rocha  ou  pedra- 


O  BOBO. 

1128. 

I. 

Inlroducfão. 

A  MORTE  de  ACfonso  6.°  de  Leão   e  Castella  produ- 
ziu  nos   estados  christãos  da  Ilespanha   aconteci- 
mentos ainda  mais  graves  do  que  os  previstos  por 
elle,  no  momento  cm  que  ia  trocar  a  cola  c  a  cer- 
vilheira  de  guerra  pela  mortalha  pacifica  do  sepul- 
chro,  que  o  recebeu  no  mosteiro  de  S.  Facundo  ou 
Sahagun.    O  génio  inquieto    dos  barões   leonezes , 
gallegos  e  castelhanos,   facilmente    achou  pretextos, 
para  dar  largas  ás  suas  ambições  e  vinganças  ,   na 
violenta  situação  politica,   em  que  o  príncipe  mori- 
bundo collocára   o  paiz.   Costumado  a  considerar  o 
valor  brilhante,  a  audácia  desmesurada,  o  phrenesi 
das  batalhas  e  conquistas,  como  o  primeiro  dote  de 
qualquer  monarcha  ,  e  achando-sc  orphão  do  único 
filho  que  o  céu  lhe  concedera  —  o  infante  D.  San- 
cho morto  cm  annos  viçosos  no  infeliz conDicto  d'U- 
cles — Affonso  alongava  os  olhos   pelas  províncias 
do  império  ,   buscando   ura  homem   cujo  braço  fos- 
se assaz  firme  para  fazer  reluzir  o  seu  montante  ao 
sol  dos  combates,  e  cuja  fronte  fosse  assaz  robusta 
para  não  vergar  sob  o  peso  do  seu  diadema  de  fer- 
ro. Era  mister  escolher  um  marido  para  D.  Urraca 
sua   filha   mais  velha  ,    viuva   do  conde   de  Galliza 
Raymundo  ;    porque   a  ella    pertencia   o  Ihrono  por 
um  costume  introduzido   a  despeito   das  leis   golhi- 
cas  ,  que  davam  aos  grandes  c  homens  livres  o  di- 
reito d'eleger  os  reis.  Entre  os  ricos-homens  mais 
illuslres  dos  seus  vastos  estados  nenhum  achou  o 
velho  digno  de  tão  altos  destinos.   .\lTonso  rei  d'A- 
ragão  tinha  ,  porem  ,  todos  os  predicados  que  o  al- 
tivo monarcha   entendia   serem  necessários  ao  pri- 
meiro dos  defensores  da  cruz ,    e  foi   a  este  que  no 
seu  leito  de  agonia  desejou  que  D.  Urraca  desse  a 
mão  d'esposa  ,  apenas  succcdesse  no  throno.  Assim 
esperava  por  nm  lado  que   a  severidade   e  energia 
do  novo  príncipe  contivesse  as  perturbações  intesti- 
nas, e  que  o  seu  esforço  não  deixasse  folgar  os  ára- 
bes com  a  noticia  da  morte  daqucllcque  por  tantos 
annos  lhes  fora  flagello   e  destruição.    Os  aconteci- 
mentos posteriores  provaram  ,   todavia  ,    que  Affon- 
so C.°  inleiramente  se  enganara  (•). 

A  historia  do  governo  de  D.  Urraca  ,  se  tal  no- 
me se  pódc  applicar  ao  período  do  seu  predomínio, 
não  é  mais  que  um  tecido  de  luctas  intestinas,  de 
vinganças  atrozes  e  covardes,  de  roubos,  de  revol- 
tas e  de  violências.  A  dissolução  da  rainha,  a  fero- 
cidade tenaz  do  marido  ,  o  orgulho  c  cubica  dos 
barões,  convertiam  tudo  n'um  cabos;  e  a  guerra 
civil  ,  ao  passo  que  deixava  vigorar  <i  império  dos 
mussulmanos,  demorava  a  decisiva  vieloría  da  raça 
goda  ,  entre  a  qual  os  ódios  dos  bandos  destruía  os 
germens  de  nacionalidade  que  tanto  trabalhara  por 
fazer  prosperar  o  allumiado  Afionso  C." 

Disse  os  germens  de  nacionalidade  ;  porque  de 
feito  apenas  então  o  eram  na  Ilespanha  esses  milha- 
res de  vínculos  moraes  que  unem  os  homens  do 
mesmo  paiz  ,  dos  mesmos  costumes ,  e  da  mesma 
linguagem  ,  c  a  que  hoje  se  chama  uma  sociedade 
política,  ou  um  povo.  A  elevação  do  rei  aragonez  ao 
tlirono  castelliano  não  suscitou  a  má  vontade  dos 
barões   por  elle   ser   nm  príncipe  estrangeiro  ,    mas 

(«)  Esla  relai;rio  parece-me  conciliar  os  tesleoiuulios , 
alé  certo  ponto  encontrados,  do  arcelji,>iio  D.  llodrigo  e  da 
llisloria  Compostellana  acerca  deste  successo. 


o  PANORAMA. 


fl 


porque  aos  estrangeiros,  isto  é,  aos  anligos  vassal- 
los  do  novo  rei ,  se  entregavam  com  prcicrencia  os 
caslclios  ,  as  honras ,  os  prestamos  c  lodo  o  género 
de  poderio.  A  resistência  era  individual,  porque  os 
interesses  eram  singulares.  O  conde,  o  rico-liomcm 
da  Estremadura,  de  Galliza  ,  de  Castelia  ou  de 
Portugal,  referia  a  si  e  as  suas  ambições,  esperan- 
ças, ou  temores,  os  successos  politicos,  e  alTcrindo 
tudo  exclusivamente  por  esse  typo  ,  procedia  em 
conformidade  com  ellc.  E  como  seria  de  outro  mo- 
do? A  idéa  de  nação  e  de  pátria  não  existia  ainda. 
Correi  aschronicas,  as  historias  e  os  diplomas,  não 
achareis  uma  só  palavra  que  designasse  a  idéa  de 
hespanhoes  ,  uma  palavra  de  signilicação  complexa 
que  distinguisse  a  rara  goda  da  sarracena.  Acha- 
reis o  asturo,  o  gallecio  ,  o  portugallcnse  ,  o  cas- 
tellão;  isto  é  o  homem  do  districto  :  mais,  achareis 
o[compijstcllano,  o  toledauo,  o  barcellonez  ;  isto  é  o 
homem  domunicipio;  mas  o  nome  dehespanhol,  ou 
outro  qualquer  equivalente,  esse  não  o  encontrareis. 
E  porque  falta  a  expressão?  É  porque  a  entidade 
não  existia  :  não  existia  politicamente.  Havia-a  , 
mas  era  sob  outro  aspecto ,  cm  outra  relação  ;  na 
da  unidade  religiosa.  Essa  sim,  que  apparece  clara 
e  distincta.  A  sociedade  christaã  era  una  ,  e  preen- 
chia até  certo  ponto  o  vácuo  da  sociedade  civil. 
Quando  era  necessário  achar  o  signal ,  com  que  se 
representasse  um  filho  da  Peninsula  não  árabe,  um 
só  havia  que  exprimisse  precisa  e  exclusivamente 
a  idéa  genérica  dessa  grande  farailia  :  Cliristiunuf!. 
O  epithcto  que  designava  a  crença  ,  indicava  a  so- 
ciedade ;  e  assim  cada  cathedral  ,  cada  parochia  , 
cada  acisterio,  cada  logar  de  culto  era  um  anel  da 
cadèa  única,  posto  que  robusta,  que  pelo  lado  mo- 
ral ligava  os  individues  iguaes  em  condição  ou  ge- 
rarchia.  Fora  daqui  apenas  se  daVam  duas  espécies 
de  relações  fortes  e  caractcrisadas :  uma  espontâ- 
nea, outra  nascida  decircumstancias  alheias  á  von- 
tade do  individuo.  Eram  as  primeiras  as  que  se 
denominavam  conjurações  ou  irmandades  —  as  ver- 
dadeiras associações  niunicipaes  desse  tempo  ;  as 
segundas  as  que  resultavam  da  situação  di\ersa  das 
pessoas  —  as  do  colono  e  do  senhor  ;  as  do  homem 
de  trabalho  e  do  homem  de  guerra.  Entre  o  barão 
e  o  barão,  o  alcaide  e  o  alcaide  ,  o  prcstamciro  e 
o  prcstamciro,  os  laços  sociaeseram,  porem,  tão  té- 
nues, que  se  desfaziam  cm  pó  ao  primeiro  sopro  das 
paixões  violentas,  que  tão  facilmente  se  despertavam 
nos  rudes  corações  daquelles  tempos. 

Dessa  frouxidão  dos  laços  sociacs  nasceu  a  nação 
portugueza.  —  Pela  morte  dWffonso  6.°,  seu  genro 
Henrique  partiu  os  laços  que  o  prendiam  ao  resto 
da  Uespanha  otcidenlal  e  christaã.  Esta  separação, 
que  não  foi  mais  que  uma  obra  d'ambição  c  de  or- 
gulho ,  e  um  resultado  da  viciosa  organisação  da 
Uespanha  no  duodécimo  século,  veio  por  milagres 
do  esforço  e  da  prudência  humana  a  constituir  a 
nação  mais  forte  c  audaz  da  Europa  nos  fins  do  de- 
cimo quinto.  Mas  os  seus  primeiros  dias  foram  tem- 
pestuosos :  e  no  modo  porque  esta  planta  dcbil  e 
tenra  pôde  escapar  ás  repetidas  procellas,  que  acer- 
cavam nos  primeiros  dias  da  sua  vegetação,  desco- 
brem os  olhos  mais  incrédulos  a  mão  da  Providen- 
cia. Quaes  seriam  hnjc  as  relações  do  Oriente  e  do 
Novo  Mundo  com  o  Occidente,  se  Portugal  tivesse 
perecido  no  berço?  Quem  ousará  dizer  :  ícm  Por- 
tugal a  civilisação  do  gencro-humano  seria  hoje 
qual  c? 

O  conde  Henrique  pouco  sobreviveu  ao  sogro  — 
apenas  três  annos  :  mas  durante  esses  três  annos  lo- 


dos aquelles  actos  seus  ,  cuja  memoria  chegou  ató 
nós,  representam  um  pensamento  único  —  o  alimen- 
tar o  incêndio  das  discórdias  civis  que  devoravam 
Hespanha  goda.  Nas  luctas  de  D.  Urraca,  dos  par- 
tidários de  seu  filho  Aflbnso  Raimundez  ,  c  do  rei 
d' Aragão,  qual  foi  o  bando  do  conde?  Todos  suc- 
cessivamente,  porque  nenhum  era  o  seu.  O  ícucon- 
sistia  cm  constituir  um  estado  independente  nos 
territórios  que  governava.  E  no  meio  dos  tumultos 
e  guerras  era  que  ardia  o  império,  elle  teria  visto 
coroadas  de  bom  succcsso  as  suas  diligencias  ,  se  a 
morte  não  viesse  atalhar-lhe  os  desígnios  junto  dos 
muros  d'.\storga. 

5Ias  a  sua  viuva  ,  a  bastarda  de  AfTonso  6.°,  era 
digna  do  ambicioso  e  ousado  borgonhcz.  .\  leóa  de- 
fendeu o  antro  ,  onde  já  não  se  ouvia  o  rugido  de 
seu  fero  senhor  ,  com  a  mesma  energia  c  esforço  , 
de  que  clle  lhe  dera  tão  repetidos  exemplos.  Du- 
rante quinze  annos  luctou  por  conservar  intacta  a 
independência  da  terra  que  lhe  chamava  rainha  ,  e 
quando  seu  filho  lhe  tirou  das  mãos  a  herança  pa- 
terna ,  só  havia  um  anno  que  a  altiva  dona  dobra- 
ra, até  certo  ponto,  acerviz  afortuna  dojovenheroe 
AfFonso  Raimundez.  Mas  esta  pedra  preciosa,  arran- 
cada á  força  da  coroa  Iconeza,  nunca  mais  devia  tor- 
nar a  engasiar-se  nclla. 

Todavia  se  a  sede  do  poder  que  devorava  o  mo- 
ço .\nbnso  Henriquez  não  existisse  :  se  os  ódios  e 
a  cubica  de  muitos  ricos  homens  ,  e  provavelmen- 
te d'alguns  membros  do  cloro  ,  não  houveram  lan- 
çado entre  a  mãe  e  o  filho  o  facho  da  guerra  ,  o 
amor  teria  talvez  mudado  os  futuros  destinos  deste 
angulo  da  peninsula  hispânica. 

Fernando  Peres  de  Trava  ,  filho  do  conde  Pedro 
Frojiaz,  aio  do  infante  AfTonso  Raimundez  ,  ganhou 
o  coração  da  infanta  ,  e  brevemente  se  viu  cônsul 
e  senhor  das  duas  provindas  que  cousliluiam  os  do- 
mínios de  D.  Thereza  —  Portugal  e  Coimbra.  No 
meio  dos  deleites  do  amor  e  dos  furores  da  guerra, 
as  duas  grandes  paixões  dessas  eras  ,  ella  parecia 
deslembrada  de  que  o  terrível  neto  de  Roberto  de 
Borgonha  deixara  no  mundo  um  successor  do  seu 
gcnio.  e  cega  pela  affeição  entregara  ao  amante  o  que 
recebera  do  esposo  ,  deixando  talvez  perpetuamente 
sujeito  ao  estranho  o  seu  despresado  filho. 

Como  duas  hienas  furiosas,  D.  Urraca  e  D.The- 
resa  tinham  combatido  largos  annos  ri  frente  dos 
seus  cavalleiros ,  e  a  sorte  das  armas  favorável  a 
principio  á  infanta  ,  favorecera  por  fira  as  da  rai- 
nha. Vencida  successivamente  em  vários  recontros, 
e  vendo-se  por  fim  cercada  no  castcllo  de  Lanhoso, 
D.  Thercsa  soube  ainda  salvar-se  ,  suscitando  os 
mal  amortecidos  ódios  entre  sua  irmaã  e  o  malva- 
do Diogo  Gelmirez  ,  arcebispo  de  Compostella  ,  cu- 
jos cavalleiros  e  peões  eram  o  principal  nervo  do 
exercito  inimigo.  Se  esquecera  nos  braços  de  D. 
Fernando  o  antigo  amor  do  conde  borgonhez  ,  ao 
menos  não  esquecera  a  sua  tortuosa  politica. 

Deverá  ,  porem  ,  a  historia  attribuir  eschisiva- 
mcnte  áquella  mulher  enérgica  e  ambiciosa  a  glo- 
ria ,  se  é  gloria,  desses  tenebrosos  enredos?  Não  é 
crivei  que  D.  Fernando  de  Trava  ,  filho  do  maior 
inimigo  occulto  de  D.  Urraca  ,  e  alcaide  de  muitos 
castellos  do  próprio  Gelmirez  ,  fosse  alheio  a  tal 
successo.  Mas  quem  pôde  alevantar  iiiteiraraenlc  o 
sudário  de  um  passado  de  sete  séculos,  e  dizer  aos 
que  o  escutam  :  vede-o  qual  elle  era? 

Seja  como  fór  ,  é  certo  que  a  affeição  mutua  de 
D.  Thereza  e  de  D.  Fernando  parece  ler  sido  dura- 
doura.  Em  todas  as  crises  do  seu  tempestuoso  go- 


12 


O  PANORAMA. 


verno  ella  o  achou  sempre  ao  lado.  A  decisiva  \i- 
ctoria  do  moço  AíTodso  Ilenriquez  quebrou  aquelle 
tracto  intimo  de  tantos  annos  ;  mas  porventura  só  a 
morte,  que  não  fardou  a  dar  repouso  á  infanta,  ex- 
tinguiu essa  constante  amisadc. 

Se  na  batalha  do  campo  de  S.Mamede,  junto  de 
Guimarães,  D.  Thcreza  e  o  conde  houveram  trium- 
phado  do  moço  Aflbnso  Ilenriquez,  outra  provavel- 
mente fora  a  sorte  do  nosso  paiz.  D.  Fernando  de 
Trava  era  um  dos  mais  illustres  ricos-horaens  de 
ílalliza  :  a  sua  bandeira  fluctuava  cm  muitos  cas- 
lellos  daquolla  vasta  c  guerreira  provincia.  Se  aos 
grandes  scnliorios  que  herdara  de  seu  pai  e  aos  que 
linha  em  presl.imo  de  Diogo  Gclmirez  ajuntara  o 
dominio  dos  dois  condados  de  Portugal  e  Coimbra  . 
ellc  fora  sem  conlradicção  o  mais  poderoso  barão  de 
toda  a  Ilespanha  goda.  No  meio  das  revoltas  c  re- 
sistências que  o  celebre  Affonso  Rairaundez  ,  cha- 
mado o  imperador,  encontrou  na  fidalguia  da  dila- 
cerada monarchia  de  sua  mãe  D.  Urraca  ,  não  se- 
ria por  certo  o  conde  o  menos  ousado  na  desobe- 
diência ,  nem  o  mais  fácil  de  subjugar.  A  guerra 
entre  aquelle  príncipe  e  o  seu  poderoso  vassallo 
traria  forçosamente  ou  a  sugeição  aCastclla  dos  es- 
tados do  conde  Henrique  de  Borgonha  ,  ou  o  ser 
hoje  a  Galliza  uma  das  províncias  de  Portugal,  e 
alem  delia  talvez  mais  algumas  outras  dessa  gigan- 
te Ilespanha,  que  por  tantas  vezes  tem  tentado  de- 
Torar-nos.  Mas  a  existência  da  monarchia  portu- 
gueza  estava  decretada  na  mente  de  Deus.  Este 
paiz,  cujos  destinos  eram  o  conquistar  para  ochris- 
tianismo  e  para  a  civilisação  três  partes  do  mundo, 
devia  ter  em  recompensa  unicamente  a  gloria  :  e  a 
gloria  delle  é  tanto  maior  quanto,  encerrado  na  es- 
treiteza de  breves  limites,  o  seu  nome,  que  retum- 
bou por  todo  o  globo  ,  pertence  a  um  povo  sumido 
no  meio  dos  grandes  impérios  da  terra. 

Pobres  ,  fracos  ,  humilhados  ,  depois  dos  tão  for- 
mosos dias  de  poderio  e  renome  ,  que  nos  resta  se- 
não o  passado?  Lá  temos  os  thesouros  dos  nossos  af- 
fectos  e  contentamentos,  em  quanto  no  presente  só 
achámos  vácuo  e  tristeza.  Esqueçamo-nos  pois  del- 
ia ,  c  vivamos  de  vida  melhor  ,  a  de  nossos  avós. 
O  trato  dos  que  foram  grandes  e  fortes  restaurará 
talvez  o  sentimento  moral,  moribundo  nos  corações 
da  geração  que  ora  passa.  Sejam  as  memorias  da 
pátria,  que  tivemos,  o  anjo  de  Deus  que  nosrcvoque 
a  energia  social  c  aos  santos  allectos  da  nacionali- 
dade. Que  todos  aqucllcs  a  quem  o  engenho  e  o 
estudo  habilitara  para  os  graves  e  profundos  traba- 
lhos da  historia  se  dediquem  a  ella.  No  meio  de 
uma  nação  perdida  ,  mas  rica  de  tradições ,  o  mis- 
ter de  recordar  o  passado  c  uma  espécie  de  magis- 
tratura moral  ,  c  uma  espécie  de  sacerdócio.  líxer- 
citcm-no  os  que  podem  e  sabem  ;  porque  não  o  fa- 
zer é  um  crime. 

E  a  arte?  Que  a  arte  em  todas  as  suas  formas 
externas  represente  este  nobre  pensamento  :  —  que 
o  drama  ,  o  poema  ,  o  romance  sejam  sempre  um 
eccho  das  eras  poéticas  da  nossa  terra.  Que  o  po- 
vo encontre  em  tudo  e  por  toda  a  parte  o  grande  e 
venerando  ^ulto  de  seus  anle]iassados.  Ser-lhe-ha 
amarga  a  comparação.  Mas  como  ao  iimoecnlinho 
infante  da  Jerusalém  Libertada  ,  homens  da  arte  , 
aspergi  de  suave  licor  a  borda  da  taça  onde  está  o 
remédio  que  pôde  salva-lo. 

No  meio  do  tumultuar  das  facções,  entre  os  gri- 
tos de  ódio  e  vingança,  entre  as  injurias  c  pragas 
das  cóleras  humanas  ,  sobre  o  soído  doloroso  do 
chorar  c  gemer  do  desalento,  não  vos  lerem  ás  ve- 


zes os  ouvidos  umas  toadas  harmoniosas  e  suaves  , 
que  vem  consoladoras  partir  o  ruido  selvagem  des- 
ta geração  dissídula  ,  que  se  agita  sobre  o  abysmo 
do  seu  nada?  È  o  cântico  d'amor  ed'espcrança  que 
alevanta  a  juventude  :  c  ella  que  por  cima  das  nos- 
sas misérias  saúda  as  velhas  glorias  da  sua  terra 
natal  ;  ella  innocentc  c  pura  ,  que  não  alcança  de 
todos  os  nossos  pensamentos,  interesses,  e  ambi- 
ções senão  ura  — a  liberdade —  aquelle  talvez  jus- 
tamente ,  que  exprimimos  sem  o  comprehender. 
Nós  os  homens  feitos  ,  homens  do  sccpticismo  e  da 
cubica  ,  esperámos  que  as  paginas  que  nos  compe- 
tem nos  annaes  do  paiz  sejam  brilhantes  e  lembra- 
das !  —  É  á  geração  que  se  alevanta  que  isso  per- 
tence.  O  que   nos  cabe   a  nós  não  queremos,   não 

ousámos  dizc-lo Oxalá  ella   possa   esquecer- 

nos  ,  cobrindo-nos  os  restos  com  uma  campa  lisa  e 
sem  nome.  Será  essa  a  melhor  prova  de  que  nos 
perdoou  o  havermos  sido  indignos  do  que  foi  e  do 
que  será,  o  havermos  sido  uma  lacuna  tenebrosa 
no  livro  tão  illustre  e  poético  da  linhagem  portu- 
ga eza. 

Em  quanto  ,  porem  ,  não  chegam  esses  dias  em 
que  o  puro  e  nobre  engenho  dos  que  então  hãode 
ser  homens  celebre  exclusivamente  as  solemnida- 
des  da  arte  no  altar  do  amor  pátrio  ;  no  meio  des- 
ta Palmyra  moral  ,  destas  vastas  ruinas  da  nacio- 
nalidade ,  amontoadas  pelos  furores  das  dissenções 
civis,  pela  morte  do  sentir  e  crer  porluguez  ,  ale- 
vantemos  uma  das  muitas  pedras  lombadas  dos  tem- 
plos e  dos  palácios  ,  para  que  os  obreiros  robustos 
que  não  tardam  a  surgir  digam  quando  a  virem : 
(cns  mãos  que  te  pozerani  ahi  eram  débeis,  mas  o 
coração  que  as  guiava  antevia  já  algum  raio  da  luz 
que  nos  allumia.  » 

Contarvos-hemos  ,  pois ,  uma  historia  do  tempo 
antigo  ,  áspera  o  mal  limada  como  elle  ;  uma  his- 
toria da  infância  da  monarchia.  Tenebrosa  e  má  foi 
essa  infância  ;  porem  não  tanto  tenebrosa  c  má  co- 
mo a  sua  velhice.  Se  quereis  principiar  a  ouvi-la, 
lede  o  seguinte  capitulo.  ^    nerculano. 

[Continua  no  N."  ímmediato.] 


Bem  querer  e  mal  fazer. 

(Memorias  insulauas.) 

=  1531  = 
II 

O  homem  propõe  e  Deus  dispõe. 

Tari!l.=A1i  !  senhor  ! 
TiRiD.  =  Que  é  isso? 
TxREL.^Qiie  liade  ser?  esta  rapa- 
i\fii  por  nuiilas vezes pro- 
mclleu  c.Tsar  comigo  e  ago- 
■.  .     "       •  ra  não  quer. 

'  CoBBioi..=Apelloeu  porniira.  Sempre 

>  .  fiz  zomliaria  ilelle. 

Comidia  anliija- 

Mal  raiara  a  manhaã  ,  branqueando  os  cimos  das 
serras  visinhas ,  já  na  Lombada  do  Arco  se  crusa- 
vam  por  todos  os  lados  os  escudeiros  c  homens  de 
armas  dei).  Isabel  d'Abreu.  —  Nos  ângulos  tor- 
reados da  casa  vigiavam  as  atalayas  entretendo  as 
horas  frescas  da  alvorada  a  estender  os  olhos  pela 
encosta  abaixo  c  lá  ao  longe  jielos  campos,  dclci- 
íaudo-sc  com  o  suave  espectáculo  da  natureza  a  es- 


o  PANORAMA. 


perguioar-se   somnolenla  por  aquelles  ameníssimos 
valles  como  quem  mal  sahia  do  somno  nocturno. 

O  súbito  armamento  e  a  atíitude  defensiva  que 
D.  Isabel  tomara  preoccuparam  todos  os  ânimos. 

«Que  será  isto?  Nem  que  cm  Africa  estivéramos 
nos  apparelhariamos  tão  fervorosos. 

<iO  que  vos  seguro  é  que  nem  era  Africa,  c  mais 
alli  é  a  guerra  já  costume,  vi  eu  nunca  dama  de 
animo  tão  valente  como  nossa  ama,  que  Deus  guar- 
de. Sc  ouvísseis  a  firmeza  com  que  ella  ordenou 
liontcm  todas  as  cousas  de  defcnsiio.  O  que  houve 
não  o  sei  eu  ;  mas  ,  Fernara  ,  aquelle  escudeirote 
pimpão  —  bem  sabeis?  —  que  primeiro  foi  chama- 
do, afiirma  que  dera  com  a  fidalga,  que  Deus  guar- 
do ,  toda  turvada  c  carrancuda  c  que  se  lhe  divi- 
savam no  rosto  signaes  de  quem  chorara. 

«Que  seria? 

«E  tão  tarde  ,  tão  fora  d'horas  ! 

IVisto  estavam  os  escudeiros  juntos  n'um  pateo 
interior  ,  buscando  assim  a  interpretação  do  que 
elles  não  alcançavam  ,  acudindo  um  com  um  com- 
mento ,  outro  com  um  parecer ,  outro  emfim  com 
uma  sentença  magistral  ,  a  única  no  seu  conceito 
admissível  e  provável ,  quando  Fcrnam  ,  o  próprio 
de  quem  se  trat.ira  ,  sobreveio  para  reforçar ,  re- 
provar ou  decidir  as  opiniões.  —  Era  elle  ainda 
moço  ,  robusto  ,  presumido  ,  com  cara  avinagrada 
e  gesto  de  arremetter  ,  tirando  um  pouco  para  D. 
Quixote  e  outro  pouco  para  Sancho  Pança ,  o  escu- 
deiro de  ímmortal  memoria  ;  e  dotado  ,  para  coroa 
de  tudo  o  mais  ,  de  punho  ligeiro  e  língua  veloz  , 
servíndo-se  não  poucas  vezes  daquelle  para  corro- 
borar os  argumentos  desta  ,  o  que  lhe  dava  entre 
os  companheiros  uma  força  e  superioridade  de  dia- 
léctica verdadeiramente  respeitável.  Era  emfim  um 
desses  tarcllos  e  mctlídiços  —  como  ha  tantos  pelo 
inundo  —  que  pertcndeni  fallar  de  tudo,  e  em  tu- 
do ter  sempre  rasão.  Tal  como  acabamos  de  pinta- 
lo  ;  mal  chegara  ,  examinada  a  questão ,  o  que  ,  en- 
tre nós,  não  era  diflieíl  ;  visto  que  em  toda  a  casa 
não  se  fallava  de  outra  cousa  ,  começou  logo  sua 
doutoral  prelenga  por  este  theor. 

«  Ide-vos  ,  ide-vos  ,  pobres  moços ,  que  estais  ahi 
a  fazer  conjecturas  vaãs.  Se  quereis  saber  o  que 
vai  perguntaí-m'o  a  mim  ,  que  tenho  novas  cer- 
tas. Não  ,  que  também  não  deixo  escapar  nada  pe- 
la malha. 

Apínharam-se  todos  em  roda  do  oráculo. 

« .\posto  eu  que  nem  pela  testa  vos  passa  quem 
deve  de  ser  a  primeira  sabedora  de  lodo  o  enredo, 
e  talvez  lambem  causa  delle? 

«Não,  não.»  —  Clamaram  todos  com  impaciên- 
cia. 

«Pois  dirvo-lo-heí  eu.  É  a  moura,  aquella  escra- 
va mui  valida  de  nossa  ama. 

Desta  vez  a  cousa  pareceu  tão  pouco  provável 
que  um  expressivo  e  geral  encolhimento  d'hombros, 
acolheu  ,  cm  vez  do  desejado  e  habitual  aplauso  , 
a  grande  descoberta  do  novísta.  —  Era  claro  como 
o  dia  que  nenhum  dos  circumstantes  lhe  acredita- 
va a  mínima  palavra.  O  Ferrabraz  chamou  era  seu 
soccorro  a  maior  terribilidade  de  que  pode  reves- 
tir o  rosto  já  de  si  pouco  meigo  ;  mas  foi  em  vão  : 
tornava-se  límpido  ,  a  não  poder  sc-lo  mais  ,  que 
por  esta  occasião  o  credito  vulgarmente  concedido 
ás  suas  rasões  fugia  a  bom  fugir.  E  comtudo  era 
porventura  a  primeira  vez  que  acertava.  —  .\ssím 
se  julga  com  frequência  ahi  por  esse  mundo! 

«A  moura,  a  moura  I — Que  a  moura  seja  rasão 
para  andarmos  por  aqui  a  madrugar. . ,  Ora  I 


«Sim  ,  sim  ,  moiremo-nos  (1)  nós  pela  moura. . . 
Bem  dito,  senhor  Fernando. 

E  estas  c  outras  quejandas  zombarias  romperam 
o  antigo  respeito  guardado  ao  escudeiro  que  arro- 
ga liava  os  olhos  c  trincava  os  beiços  de  pura  cho- 
iera.  Nunca  tamanho  desacato  fora  commettido  con- 
tra a  veneranda  pessoa  do  Sr.  Fornam,  liem  dese- 
jara elle  em  forma  de  auctorisada  citação  assentar 
quatro  punhadas  tczas  pelos  honrados  narizes  dos 
dignos  ouvintes,  mas  os  bracellões  eganles  (2)  que 
lampejavam  ao  redor  ,  quantiosos  como  eram  ,  não 
agouravam  grande  divertimento  para  o  aggressor  : 
leve  portanto  de  conter-se  reservando  ,  já  se  sabe  , 
para  melhor  occasião  o  direito  de  desforra,  conten- 
lando-se  por  esta  vez  em  traduzir  a  grande  ira,  que 
lá  dentro  Ihcfervia,  n'um  extenso  vocabulário  d'in- 
jurias,  fervorosa  e  apressadamente  vomitadas,  con- 
tra os  descommedídos  ,  que  fizeram  por  compensa- 
ção grande  prova  de  paciência  aturando  a  intermi- 
nável loquella  do  escudeiro  com  edificante  submis- 
são. 

«Santo  nome  de  Deus  !  —  Más  maleitas  que  nos 
colham  '.  —  Nossa  Senhora  do  Funchal  I  que  venham 
estes  franchíuotes  sem  siso ,  estas  raãs  de  charco 
lodeiro,  estes  parvos  que  não  sabem  dilTerençar  um 
gentil  (3)  de  D.  Fernando  d'um  cotrim  (4)  de  I). 
.\nbnso  5.°  insultar  um  homem  sisudo  que  tem  vis- 
to como  são  as  cousas  e  os  homens '.  Com  setecen- 
toi  demónios; — Bera  Irufaes  (5)  vós  outros  para 
quem  tão  néscio  c.  —  5[erecieis  que  vos  ensinasse 
agora  a  bem  viver  ,  para  que  outra  vez  não  viés- 
seis desmentir  quem  sabe  mais  que  vós  e  que  mui- 
to favor  vos  faz  cm  vos  querer  abrir  os  olhos.  Se 
eu  disse  que  a  moura  era  havida  n'isto  é  porque 
tenho  fundamento  para  dízè-lo.  Mas  nada.  . .  É  dei- 
tar pérolas  a  porcos Fícai-vos ,  ahi ,  ficai-vos 

com  essas  vossas  necedades  ,   e  desatinadas  suppo- 
síções  ,  ficaí-vos  que  vos  não  quero  já  dizer  nada. 

E  fez  semblante  de  retirar-se. 

O  escudeiro  fallava  de  consciência  —  e  bem  o  sa- 
be o  leitor  amigo.  —  Ou  fosse  pela  lógica  das  ra- 
sões, ou  pela  verbosidade  do  orador,  ou  emfim  pe- 
la volubilidade  das  palavras  epor  uma  trovoada  de 
persuasivos  perdigotos  que  distribuía  liberalmente 
por  todas  as  caras  dos  attentos  espectadores,  o  cer- 
to c  que  estes  pareceram  convencerem-se  de  que 
tinham  andado  mal  e  —  crescendo  sobre  isto  o  cos- 
tume de  ouvi-lo  e  crc-lo ,  apesar  do  bom  numero 
de  patranhas  com  que  diariamente  os  regallava  — 
todos  instaram  com  o  bom  do  homem  para  que  fi- 
casse e  fatiasse.  Ora  elle  que  não  queria  outra  cou- 
sa ,  nem  se  achava  nunca  tão  bem  como  quando  ti- 
nha publico  para  ouvi-lo  e  novas  para  contar ,  ven- 
do alem  disso  as  dóceis  disposições  dos  ouvintes 
resolveu-se  a  continuar. 

«Já  que  tanto  apertais,  digo-vos,  meus  chocarreí- 
rotcs  ,  que  só  sabeis  truanices  e  jogralidadcs  fora 
de  ponto  ,  que  a  moura  hontem  mesmo  desappare- 
ccu  sem  que  se  possa  alcançar  para  aonde.  Mas  o 
hortellão  indo  ha  pouco  áquelle  pomar  de  pece- 
gueiros  que  fica  logo  por  baixo  das  jancllas  dos 
aposentos  de  nossa  ama  e  senhora  ,  deu  com  umas 
pegadas  de  homem.  —  Foi  elle  mesmo  que  mo  con- 

(1;  i:  Mouremo-nos  ;  "  como  se  disseranios  ti  cancenio- 
nos  ,  fatigiiemo-nos.  ^r — Expressão  proTcrbial  daquelles  tein- 
jioâ    i<Moiiranilo-me  Je  Iraballios.  "  Bernardim  Ribeiro. 

(2)  Armadura  defensiva  dos  braços. 

(3)  Moeda  de  ouro  meúda,  mandada  cunhar  por  aquel- 
le rei Era  de  4  espécies. 

(4)  Outra  moeda  de  ouro. 
(s)     Escarneceis. 


ií 


o  PANORABIA. 


tou  muito  em  segredo  e  cu  só  vo-lo  digo  aqui  a 
vós  em  confidencia  —  as  quaes  pegadas  estavam  as- 
signadas  na  terra  fresca  ,  desde  o  muro  que  diz  lá 
para  os  campos  alé  ;is  ditas  janellas,  parecendo  umas 
que  iam,  outras  quc.vinhani.  O  liortellão  que  não  c 
ahi  nenhum  toTito  observou  serem  feitas  não  por  pé 
de  villão,  mas  pelo  de  quem  traria  pellotc  de  pan- 
no  de  engrez  (6)  ,  e  calças  talliadas  ao  viez  ,  que 
até  em  risco  subtil  —  vi-o  eU' — denunciava  no  chão 
a  passagem  das  esporas. 

«  E  que  tem  isso  cora  a  moura  ? 

A  incredulidade  parecia  de  novo  apossar-se  dos 
escudeiros  com  a  prolixidade  e  miudeza  das  des- 
cripeõcs  do  Sr.  Fernam  que  se  ia  afastando  prodi- 
giosamente do  ponto  questionado. 

«Tem  muito  [acudiu  clle  pressentindo  a  presen- 
ça do  inimigo,  e  sallando  ao  assumpto  pouco  mais 
ou  menos  como  o  venerando  Jonathan  Oldcnbuck 
de  Sfonlíbarns  saltaria  n'uma  lenda  ou  dcscripção]. 
Tem  muito  ,  que  a  par  das  pegadas  machas  dis- 
tinguem-sc  outras  curtas  e  pequenas  ,  ao  que  pare- 
cem de  mulher  ,  só  com  a  dillerença  que  estas  não 
vão  e  vêem,  vão  só.  Ora  a  moura  [dòr  de  levadi- 
gas  consuma  todos  os  infiéis]  dorme  justamente  na 
camará  que  deita  para  o  pomar  —  não  me  escapou 
isso,  quando  ao  aposento  da  fidalga  fui  certo  dia  re- 
ceber uma  sua  ordem  —  é  portanto  claro  que  anda 
por  aqui  embrulhada  grande  cm  que  a  moura  tem 
parte. 

Bom  juizo  tinha  o  primeiro  que  se  lembrou  de 
dizer  vox  populi  ro.r  diaboli ,  porque  o  olfalo  deste 
é  tal  que  rasteja  polo  faro  o  mais  encoberto  acon- 
tecimento, não  lhe  ficando  de  todo  escondido,  nem 
que  sobre  clle  se  cerrem  as  trevas  do  segredo  me- 
lhor guardado,  nem  que  lhe  passem  por  cima  as  ho- 
ras mais  repousadas  e  misteriosas.  Esta  consequên- 
cia lerá  já  tirado  o  leitor  inlelligente  ,  vendo  os 
succcssos ,  que  só  eu  e  elle  julgávamos  saber,  já 
tão  finamente  adivinhados  pelo  indagador  escudeiro. 

Sabidos  estes  novos  e  importantes  documentos 
ia  proceder-sc  no  respeitável  conciliábulo  ao  me- 
lhor do  arrasoado  ,  isto  é  ás  analyses  ,  corollarios  , 
e  deducções  ,  quando  um  brado  da  mais  elevada 
atalaya  ,  partindo  do  araciado  cimo  d'uma  das  tor- 
rinhas ,  veio  saltear  os  echos  dormentes  do  pateo  o 
suspender  a  caudal  torrente  dos  principiados  argu- 
mentos. O  grito  de  alarma  ,  repetido  de  boca  em 
boca  ,  fez  cm  momentos  reunir  no  pateo  principal , 
posto  cm  frente  da  casa  ,  lodos  os  que  tinham  ar- 
mas. 

Seguindo  as  iusirocróes,  que  lhes  haviam  sidoda- 
das,  bradara  a  atalaya  apenas  vira  no  campo  maior 
cavalgada  picar  direita  ás  casas  da  Lombada.  E 
ainda  que  nisto  cumpria  seu  cargo,  com  rasão  jul- 
garia pouco  necessário  o  appclido  (7)  visto  que  a 
companhia  avistada  figurava  trazer  as  mais  pacifi- 
cas inli^nções.  Compun!ia-se  ella  de  modesto  nume- 
ro do  cavalleiros  ,  escudeiros,  pagens,  mui  atavia- 
dos c  garridos,  cavalgando  soberbos  ginetes  cober- 
tos de  jaezes  custosos  que  era  um  não  se  cançar  de 
admira-los.  Viidia  na  frente  de  todos  um  cavallei- 
ro,  que  aos  demais  parecia  levar  vantagem,  não  me- 
nos na  elegância  ,  e  ritiueza  do  traje  qno  no  airo- 
so do  porte  ,  gentileza  o  garbo  da  figura  ,  formosa 
cm  pcrioição  ;  logo  cm  seguida  um  pagem  ,  mais 
que  os  outros  adereçado  ealfenado,  lhe  trazia  asna 
bandeira  ,  caminhando  apoz  quantos  na  cavalgada 
tram.  Nascia  o  sol  o  aos  mais  suaves  dos  seus  pri- 

(0)     CfTlo  paiino  cine  vinha  de  Inglaterra. 
(7;     Cliamaiiienlu. 


'  meiros  raios  brilhava  aquella  vistosa  comitiva  ,  to- 
da luzente  de  ouro  e  prata  ,  toda  arraiada  de  co- 
res vivas,  toda  enfeitada  de  estofos  e  finos  pannos, 
de  sedas  e  penachos  ondeantes.  Ora  quem  tanto  se 
atavia  ,  certo  é  que  se  não  dispõe  a  tentar  hostili- 
dades. Todavia  a  conclusão  ,  por  mais  que  a  todos 
parecesse  rigorosamente  lógica,  não  embaraçou  que 
os  servidores  da  Lombada  do  Arco  se  ajuntassem 
no  logar  mencionado,  perdidos  de  conjecturas  mais 
ou  menos  próximas  da  verdade,  mas  todos  dispos- 
tos a  bem  cumprirem  seu  mister  de  obedientes 
servos. 

Em  quanto  a  cavalgada  trotava  pelo  encosta  ,  as 
portas  d'uma  sala  no  Ínfimo  pavimento  que  andava 
ao  live!  do  pateo  se  abriram  ,  dando  passagem  á 
varonil  D.  Isabel  d'Abreu  ,  que  appareceu  ,  reves- 
tida do  seu  ar  fidalgo  e  senhoril ,  mas  sem  mostras 
nem  de  tristeza  ,  nem  de  temor,  nem  de  incerteza. 
Fitaram-se  nella  lodos  os  olhos ,  curiosos  pela  con- 
fidencial revelação  do  escudeiro  Fernam  ,  que  nin- 
guém já  deixava  de  saber  ....  muito  cm  segredo. 
Nada  se  podia  deduzir  do  seu  porte.  Era  ousado  e 
modesto,  era  sereno  c  altivo.  O  próprio  Fernam  foi 
obrigado  a  confessar  que  por  esta  vez  a  sua  mesma 
agudíssima  penetração  lhe  falhava.  Seguiam  a  no- 
bre viuva  suas  donas  e  donzellas  ,  todas  ellas  ,  pe- 
lo menos ,  tão  curiosas  e  impacientes  como  os  ho- 
mens d'armas  e  escudeiros  ,  e  ao  lado  caminhava 
sua  irmaã  D.  Águeda  com  quem  ,  diziam  as  ayas 
mais  madrugadoras,  ainda  antes  de  amanhecer  se 
encerrara  longo  espaço.  Chegando  ao  meio  do  pa- 
teo ergueu  os  olhos  para  seus  servidores  ,  c  vendo- 
os  tão  numerosos  ,  tão  feros  c  tão  bera  apparelha- 
dos  ,  como  que  sorriu  satisfeita. 

«(Honrados  servidores  da  Lombada  do  Arco  [dis- 
se ella  com  voz  toda  impregnada  da  aflectuosa  bon- 
dade do  seu  coração]  ,  quereis  vós  boje  servir  de 
amparo  e  defensão  a  uma  pobre  viuva  indefcza  e 
desamparada,  qne  só  vos  tem  avós  por  seu  abrigo? 
Quereis  por  meu  respeito  expor  as  vidas  ,  susten- 
tando meu  dito  c  resolução,  e  affrontando  orgulhos 
de  soberbos  ?  .  .  . 

«Que  venham,  que  venham  [respondeu  a  chus- 
ma ,  bradando]  mostrar-liies-hcmos  que  a  bésia  ,  a 
lança  c  a  espada  vai  também  nas  mãos  dos  defen- 
sores de  vossos  coutos  como  nas  dos  mais  ufanos  e 
mais  fidalgos.  .  .  Que  venham!  Viva  D.  Isabel  d'A- 
breu  ,  nossa  ama  e  senhora  1 

Pouco  é  preciso  para  excitar  o  cnthusiasmo  da 
multidão.  jVpesar  de  sua  rudeza  e  vicios  ha  no  po- 
vo reunido  iim  certo  sentimento  de  generosidade 
que  talvez  provém  da  consciência  da  sua  força.  Es- 
te sentimento  ,  portanto  ,  desperto  á  vista  de  uma 
dama  formosa  ,  moça  ,  cheia  de  bondade  ,  branda 
no  seu  dominar  ,  meiga  posloqne  animosa  ,  scnsi- 
vel  ,  c  por  fira  mulher  ,  necessariamente  devia  de 
acccndcr  o  ardor  daquellcs  homens,  tanto  mais 
quanto  se  ella  appresentava  desvalida  c  supplicau- 
te  ,  crescendo  sobre  as  outras  rasões  a  vaidade  de 
ser  o  appoio  c  defensão  de  quem  tão  lidalga  era  c 
tão  persuasivamente  implorava.  Tuilo  isto  coidiecia 
D.  Isabel  e  com  tudo  contara  quando  se  decidira  a 
vir  ao  meio  dos  seus;  consequência  fácil  de  tirar 
examinando  o  olhar  de  intidligcneia  que  para  a  ir- 
maã vohèra,  no  momento  cm  que  o  clauiiu-  da  tur- 
ba tanto  a  seu  gosto  a  interronqicu. 

Nisto  estavam  quando  novo  grito  (Fuma  alalaya 
annunciou  que  a  cavalgada  parava  jnnto  d'alli.  De 
feito,  visinho  tropear  de  ginetes  provou  o  annun- 
cio.   «Abri  as  portas,  meus  Icaes  servidores  [dis- 


o  PANORAMA. 


15 


50  D.  Isabel]  Quem  comvosco  se  acha  não  deve  de 
arrecciar. 

Soberbos  foram  alguns  escudeiros  cumprir  a  or- 
dem de  sua]  ama  ,  e  as  portas  patentes  de  par  em 
par  deram  entrada  aos  de  fiJra. — O  espectáculo  en- 
tão foi  estranho.  —  D.  Isabel,  só,  no  meio  de  seus 
servidores  ,  firmes  c  cobertos  d'armas ,  a  luzirem 
aos  primeiros  raios  da  raanbaã  ,  como  polido  muro 
do  aço  ,  trajando  singelas  roupas  de  viuva  em  di- 
gna e  magestosa  attilude  :  —  António  Gonçalves  da 
Camará — já  de  certo  os  nossos  leitores  terão  adivi- 
nhado que  elle  era  o  gentil  chefe  da  cavalgada  — 
alinhado  e  ataviado  como  namorado  que  era,  me- 
neando graciosamente  seu  formoso  ginete  fouveiro  , 
seguido  de  sua  bandeira  ,  c  acompanhado  dos  me- 
lhores de  sua  casa  e  senhorios.  —  Era  para  ver  . .  . 

Pasmou  o  alvoroçado  galan  vendo  o  guerreiro  ap- 
parelho  com  que  ora  recebido  ,  e  não  sabendo  ain- 
da o  que  pensasse  quiz  ao  menos  mostrar  o  como 
era  cortez  e  sabido  cavalleiro.  Apenas  transposera 
as  porias  descavalgou  promptamente,  e  atirando  com 
gracioso  desleixo  as  rédeas  do  ginete  ao  braço  do 
seu  pagem,  adianlou-se  para  D.  Isabel ,  surprehen- 
dido  6  como  que  um  pouco  perturbado. 

«  Que  me  quereis  ,  galhardo  primo  ?  [perguntou 
esta  com  modo  soberano  e  despedido]  Que  vos  traz 
a  minha  morada  Ião  de  manhaã  ainda  ,  e  tão  bem 
acompanhado  ? 

Sabidos  os  acontecimentos  da  noutc  esta  pergun- 
ta, com  tal  modo  e  cm  tal  logar  e  posição,  era  era 
boa  verdade  pouco  recreativa  e  animadora  :  por  is- 
so o  António  da  Camr.ra  dando  mostras  de  hesita- 
ção respondeu  balbuciando. 

«Mas  eu  .  .  .  formosa  prima  .  .  .  cuidava.  .  .  .  De- 
pois .  .  .  sabeis.  .  . .  Em  certeza.  .  .  . 

«Fallai,  primo,  fallai  ;  ou  dareis  aso  a  crèr-se 
que  vos  assusta  a  minha  presença. 

António  da  Camará  ergueu  a  fronte  com  aliiveza, 
c  relampeando-lhe  os  olhos  acudiu  com  brios  de 
cavalleiro. 

«Assustar-me  eu  ,  senhora  !  .  .  .  Já  que  assim  o 
quereis,  fallarci  ,  e  mal  de  quem  não  attender  ao 
meu  dito.  .  .  O  a  que  eu  venho  aqui  bem  o  sabeis, 
senhora  prima.  Venho  exigir  de  vós  o  cumprimen- 
to de  uma  promessa.  . .  . 

«Arrancada  á  falsa  fé  [interrompeu  D.  Isabel 
com  ar  e  voz  de  rainha,  imperiosa  e  altiva,  olhan- 
do fidalgamenle  em  redor  —  sublime  neste  momen- 
to]. Arrancada  de  noute  por  traição  de  uma  moura 
ingrata. .  .  . 

Aqui  os  dois  escudeiros  íjue  ficavam  aos  lados  do 
nosso  amigo  Fornam  saltaram  para  a  banda  ambos 
ao  mesmo  tempo  pondo  doridamente  am:\p  na  ilhar- 
ga.—  Eram  causa  deste  inesperado  movimento  duas 
rijas  e  triumphantes  cotoveladas  ,  applicadas  como 
victoriosa  advertência  pelo  bom  do  homem  que 
não  se  descuidou  de  firmar  estes  dois  padrões  da 
sua  gloriosa  descoberta  cora  mais  alguma  valentia 
do  que  honestamente  devera,  lembrado  ainda  talvez 
das  malignas  risadas  dos  coUegas.  —  No  cmtanto 
T>.  Isabel  continuava  com  vehemencia. 

"Por  traição  de  uma  moura  ingrata  e  de  um  ca- 
valleiro desleal  ,  mais  mouro  do  que  a  moura,  que 
á  maneira  de  salteador  se  introduziu  pelas  trevas  , 
escondida  e  furtivamente,  no  seio  das  famílias,  amea- 
çando uma  mulher  indefcza  ,  ameaçando-a  com  a 
dcshonra  e  a  infâmia  publicas.  .  . .  Escutai-rae  até 
ao  fim  ,  meu  pri.mo  ,  que  não  é  de  cortez  interrom- 
per uma  dama. .  .  E  vós  cavalleiros  e  escudeiros .  .  . 
vós  leaes  servidores  de  minha  casa  ,   e  vós ,   estra- 


nhos ,  escutai-me  também. . .  Aquella  promessa  as- 
sim extorquida  ,  assim  por  mim  feita  ,  como  único 
meio  de  salvar  a  reputação,  devo  eu  cumpri-la  ?  .  . . 
Não,  António  Gonçalves  da  Camará,  não  é  com  ac- 
ções de  villão  que  se  conquistam  puros  affeclos. .  . 
Ide-vos  ,  que  vos  denuncio  diante  destes  honrados 
servos  ,  pelo  vil  que  hontem  penetrastes  aleivosa- 
mente como  traidor  e  indigno  nos  meus  aposentos  , 
aonde  só  vos  fiz  promessa  de  seguir-vos  hoje  como 
vossa  mulher  para  evitar  o  propósito  infame  a  que 
vínheis  deliberado. .  .  .   Ide-vos  e  envergunhai-vos  , 

senhor  ,   ide-vos  cm  paz  ou  senão oUiai  para 

mim.  Estou  no  meio  dos  meus  servos  fieis,  que  bem 
como  eu  ainda  não  perderam  lembranças  de  seu 
amo. 

Tremulo  de  ira  por  se  ver  assim  burlado,  e  fais- 
cando-lhe  os  olhos,  levou  António  da  Camará  a  mão 
ao  punho  da  espada  era  quanto  nas  abaladas  filei» 
ras  dos  de  D.  Isabel  mais  de  uma  besta  se  encur- 
vava e  mais  de  um  ferro  sabia  da  bainha.  Atten- 
tando  porem  em  si  e  vcndo-se  trajado  de  sedas ,  os 
da  Lombada  do  Arco  cobertos  de  ferro  ,  diminuta 
a  sua  comitiva  e  a  de  D.  Isabel  numerosa  e  ap- 
parelhada  ;  tenteando  o  lado  e  achando  a  espada 
de  enfeite  em  vez  da  do  combale  ;  olhando  para  os 
seus  e  notando-os  indecisos  em  quanto  os  contrá- 
rios pareciam  delorminados  c  impacientes ,  como 
quem  só  aguardava  o  minimo  sigual  de  sua  ama, 
cujo  só  respeito  os  continha  ,  acabou  comsigo  em 
disfarçar  a  cholera  que  o  roía.  —  Sem  dizer  pala- 
vra ,  que  rn'o  não  consentia  seu  despeito  ,  caval- 
gou com  os  seus  ,  e  fazendo  uma  vénia  ,  um  tanto 
irónica  ,  partiu  afrmcnndo  com  anciã  raivosa  as  es- 
poras nos  ílbaes  do  pobre  ginete,  que  tudo  presen- 
ceára  cora  exemplar  indílTerença  o  que  ,  afinal, 
como  diz  o  nosso  inimitável  Toleutino  «...  foi  só 
quem  perdeu  no  tal  jnguinho. 

Silenciosa  também  voltou  D.  Isabel,  com  sua  ir- 
maã  e  suas  ayas,  a  recolhcr-se,  c  ainda  bem  de  to- 
do não  era  ida  já  o  amigo  Fernam  ,  que  arreben- 
tava por  fallar  ,  arrebanhando  em  volta  de  si  os 
companheiros  lhes  gritava  como  se  levasse  era  gos- 
to particular  o  ensurdece-los  a  todos  ,  esfolando  ao 
mesmo  passo  as  mãos  á  força  de  esfrega-las  em  si- 
gnal  de  suprema  satisfação  :  .         - 

«Então  ,  então  que  vos  dizia  cu? 

.5.  Leal  Júnior. 
[Continuar-sc-ha.] 


g^O  objecto  destes  capítulos,  que  alguém  te- 
ria por  novella,  é  fielmente  extraindo  d'um  manus- 
crípto  do  Dr.  Gaspar  Fructuoso  ,  intitulado  «Sau- 
dades da  Terra»  —  feito  em  1579  e  dividido  era 
51  cap.  ,  ura  dos  quaes  [cap.  3G]  ,  o  de  que  nos 
aproveitamos,  tem  por  titulo  «Do  que  fez  António 
Gonçalves  da  Caraara  ,  filho  da  camareira  mór  da 
rainha  D.  Catbariua  ,  na  ilha  da  Madeira  e  do  que 
mais  lhe  aconteceu  casando  nella  e  fora  delia.» — • 
Deste  Dr.  Gaspar  Fructuoso  dá  a  biographia  Cor- 
deiro a  pag.  40  do  cap.  2."  do  2."  livro  da  sua 
«Historia  Insulana.»  Não  c  portanto  um  romance, 
mas  uma  historia  que  narrámos.  O  facto  é  ou  con- 
temporâneo ou  quasi  contemporâneo  do  auctor  que 
o  conta  ;  podemos  por  consequência  crè-lo  em  boa 
fé  sem  faltarmos  ás  regras  da  mais  escrupulosa  her- 
raeneulica  —  No  demais  cumprc-nos  alfiançnr  que 
rigorosamente  copiamos  e  conservamos  toda  a  ac- 
ção ,  situações,  caracteres,  oposição.  Unicamen- 
te ami)lificâmos  c  accommodàmos  algumas  parti- 
cularidades,  fazendo  aqui ,   ou  acolá   ligcirissim.as 


16 


O  PANORAMA. 


alterações  na  superfície  do  assumplo  som  que  do 
inlimo  era  nada  bulíssemos. — Da  primitiva  simplici- 
dade c  porventura  rudeza  do  manuscripto  ,  lambem 
uma  ou  outra  vez  tentaremos  dar  uns  longes ,  mas 
J}Uscando  sempre  contribuir  com  o  nosso  mingua- 
do contingente  de  forças  ,  para  fazer  realçar  o  tal 
ou  qual  drama  que  ha  ahi,  por  meio  d'ura  colorido 
vivo,  de  um  estylo  animado,  c  de  um  dialogo  con- 
veniente. Temos  para  nós  que  é  esta  a  melhor  ma- 
neira ,  c  já  agora  talícz  a  única  neste  século  ,  de 
ensinar  a  historia  ,  não  que  assim  leve  menos  tra- 
Lalho  ,  tempo  c  vigilias  a  quem  escreve  ,  mas  por- 
que ,  ao  mesmo  passo  que  deleita  ,  instruo  mais  a 
quem  lê.  Por  este  acontecimento ,  que  tentamos 
aqui  romancear  ,  verá  o  leitor  como  o  espirito  in- 
dependente da  nobreza  ,  apesar  dos  golpes  dados 
por  D.  João  2.°,  se  conservava  ainda  incarnado  nos 
costumes  ,  no  existir  e  no  pensar.  É  ura  docuraen- 
lo  desse  poder  da  antiga  fidalguia,  que  cm  despre- 
zo de  lodos  os  códigos  entregava  aos  gumes  da  es- 
pada as  decisões  que  devera  de  depositar  nas  mãos 
dos  Juizes  c  interpretadores  da  lei.  É  ura  monu- 
mento do  modo  de  viver  daquclles  tempos ,  dos 
quaes ,  máu  grado  a  todas  as  pcsquizas  de  fieis  in- 
dagadores ,  ainda  tão  pouco  sabemos.  Este  padrão 
e  este  documento  julgamos  de  o  fazer  conhecido. 
—  Será  mais  uma  phrase  accrcscentada  a  essas  pou- 
cas paginas  —  que  nem  por  serem  poucas  são  de 
jncnos  monta  e  galhardia  —  da  nossa  verdadeira 
historia.  —  Desta  maneira  é  que  as  folhas  pequenas 
se  tornarão  livro  grande.  Desta  maneira  se  irá  er- 
guendo ura  Pantheon  para  os  nossos  maiores  ,  um 
íemplo  para  a  arte,  c  uma  aula  para  a  boa  lição. 
Assim  melhores  mãos  que  as  minhas  tomem  a  si  o 
dar  impulso  forte  á  cmpreza. 


Epitome  da  vida  de  Luiz  de  Camões. 

(Continuação.) 

Li'iz  de  Camões  foi  de  tenra  idade  ,  passada  a  sua 
primeira  educação  ,  continuar  os  seus  estudos  na 
universidade,  que  elrei  D.  João  .3.°  tinlia  trans- 
ferido de  Lisboa  para  Coimbra  ,  convidando  para 
nella  serem  professores  alguns  dos  nacionaes  c  es- 
trangeiros mais  famosos,  entre  os  quaes  cumpre  no- 
mear o  celebre  Gcorge  Buchanan  ,  que  os  enredos 
fradcscos  obrigaram  depois  a  fugir  de  Portugal. 

Dos  progressos  que  fez  Camões  naquella  univer- 
sidade se  pôde  julgar  pelas  suas  obras  compostas 
na  idade  juvenil  ,  taes  como  elegias  c  sonetos  que 
passaram  á  posteridade  ,  e  que  posto  com  menos 
renome  do  que  os  seus  Lusiadas,  nem  por  isso  sem 
grande  conceito  c  apreço  dos  vindouros  ;  não  assim 
(los  coevos,  emeujonumero  contaremos  o  nosso  Fer- 
reira, que  posto  fira  condiscípulo,  na  universidade, 
de  Luiz  de  Camões  ,  nem  por  aquelles  primeiros 
ensejos  se  lhe  mostrara  afeiçoado.  íí  provável  que 
!''erreira  e  outros  contemporâneos  dislinclos  não 
prevessem  então  o  extraordinário  talento  que  o  jo- 
ven  poeta  mostrou  depois  ,  ou  que  talvez  preveni- 
dos pelo  estylo  moderno,  que  Camões  adoptara  sem 
eomludo  despresar  o  antigo  ,  não  lhe  fizessem  nes- 
se tempo  a  justiça  que  elle  merecia.  Seja  como  filr, 
não  encontrámos  cm  partem  alguma  apontamentos 
que  nos  levem  a  crer  quií  o  nosso  Vate  grangeas- 
se  a  amisade  dos  bons  engenhos  seus  eondiscipu- 
los  ,  .sabemos  só  que  .aos  i8  ou  20  annos  de  idade 
acabou   os  seus  estudos  ,   e  voltou  á  còrtc  onde  re- 


sidiam seus  pais ,  e  onde  segundo  os  costumes  da- 
quclles tempos  os  nobres  vinham  mostrar-se  para 
aperfeiçoar  a  sua  educação,  e  passar  d'alli  ás  es- 
cholas  militares  da  Africa  c  da  Ásia. 

Dotado  de  raro  engenho  ,  de  presença  agradável , 
de  ardente  imaginação  ,  e  de  coração  sensivel  , 
viu-se  procurado  e  estimado  por  todos  aquelles  que 
cultivavam  as  lettras  ,  e  admittido  na  corte  e  na 
mais  alia  sociedade.  Foi  alli  que  viu  D.  Catharina 
de  Atavde  (•)  ,  que  se  devemos  crer  a  descripção 
encantadora  do  poeta  ,  era  um  composto  de  graças 
e  de  belleza.  Esta  senhora  era  dama  do  paço,  e  a 
julgar  pelo  seu  appellido.  parenta  do  primeiro  con- 
de da  Castanheira  ,  D.  António  de  Atayde  ,  podero- 
so valido  de  D.  João  3.°  Estes  amores,  que  inspi- 
raram a  Camões  grande  numero  de  suas  poesias  , 
em  que  sobresahe  a  Écloga  XV  ,  foram  a  primei- 
ra causa  dos  seus  infortúnios.  A  falta  de  bens  da 
fortuna  ,  que  não  a  de  nascimento  em  que  elle  era 
igual  a  D.  Catharina  ,  fez  com  que  a  familia  desta 
senhora  não  só  procurasse  impedir  esta  união  ,  que 
tinha  por  pouco  vantajosa  ,  mas  sobre  elle  chamas- 
se o  rigor  das  leis  ,  mui  severas  nesse  tempo  contra 
qualquer  que  se  atrevesse  a  ter  amores  no  paço. 

O  valimento  dos  parentes  de  D.  Catharina  piidc 
conseguir  que  fosse  Camões  desterrado  da  corte 
para  o  Uibalejo,  retiro  em  que  para  allivio  de  suas 
magoas,  se  entregou  todo  ao  estudo  c  á  poesia. 
Grande  parte  de  suas  rimas,  a  Elegia  3.",  c  pro- 
vavelmente as  suas  comedias  ,  foram  compostas 
nesse  degredo  ,  e  segundo  Manuel  de  Faria  'então 
foi  também  concebido  o  plano  do  seu  poema. 

Assim  na  flor  da  idade  viu  Luiz  de  Camões  cor- 
tadas as  mais  charas  esperanças  de  sua  futura  car- 
reira ,  c  na  villa  de  Santarém  continuou  por  algum 
tempo  tranq'iillo  ,  entregue  todo  á  paixão  que  no 
peito  alimentava.  Azedado  pelo  não  merecido  in- 
fortúnio ,  vendo-se  no  principio  da  sua  vida  victi- 
ma  de  injustas  preoccupações  ,  voltou-se  todo  para 
a  carreira  gloriosa  das  armas  ,  e  das  cniprezas  ar- 
riscadas ,  com  que  desde  seus  verdes  annos  fora 
embalado.  Viclima  de  um  amor,  que  mais  se  ha- 
via radicado  pelo  degredo  soffrido  ,  resolveu  deixar 
a  pátria  logo  que  o  seu  degredo  acabasse. 

De  volta  a  Lisboa  tomou  o  serviço  militar,  e  quiz 
participar  da  gloria  ,  que  os  portuguczcs  então  ad- 
quiriram em  todas  as  partes  do  mundo.  Passou  lo- 
go a  Ceuta  que  nesse  tempo  governava  D.  Pedro  de 
Menezes,  e  alli  militou  com  muito  denodo  achan- 
do-sc  cm  diversos  recontros ,  e  particularmente  em 
um  combate  naval  perto  do  estreito  de  Gibraltar  , 
aonde  junto  de  seu  pai  ,  que  commandava  uma  das 
naus,  recebeu  dos  mouros  um  tiro  que  o  privou  do 
olho  direito.  Voltou  a  Lisboa  com  esta  honrosa  ci- 
catriz ,  mas  nem  por  cila  ,  nem  por  os  seus  servi- 
ços teve  a  menor  recompensa. 

/'.  M. 
[Continua]. 

Nos  VELHOS  a  ambição  de  poder  c  dominação  é  in- 
comparavelmente mais  atroz  e  vii)lenta  que  nos  mo- 
ços ;  estes  podem  esperar,  aquelles  não  querem 
perder  tempo.  —  Marquez  de  Bhricá. 

(.)  O  liccnciíulo  Jorio  Pinto  Ril)eiro  iliz  <|m'  a  pcsso.T 
por  qiipra  Cnniòca  se  perdera  (i'aiiiori>9  fora  O.  Catliarina 
d' Almada,  prima  do  poeta.  Faria  e  Sousa  assevera  ler  si- 
do D.  Catliarina  de  Alayile,  e  a  esta  opinião  se  encosta  o 
donlo  Sr.  Iiispo  de  Vizen'.  A  dama  preferida  era  sem  a  me- 
nor duvida  Catliarina  ,  (|ne  Camões  cliama  Aalcrcia  ,  ana- 
grama  daquelle  nome,  no  soneto  1A.\. 


56 


o  PANORAMA. 


17 


III"  I  'III' 


li' 


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|i!li'>|l1lili'{|ll|||l!líri!|iíl« 


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r. 


•  «1 


POUTLGAL. 
XX. 

Avi;iR(i. 

I. 

A  CIDADE  irAveiro,    que  ainda   no  mciado   do   se- 

rnlo  passado  era  villa  .    conlada  entre   as  mais  no- 

Ja.neiuo  21  — 1SÍ3. 


Iires  e  populosas  do  reino  ,  passou  no  reinadn  di» 
Sr.  D.  José  á  cathegnria  que  Icm  hoje  ,  sendo  ele- 
vada a  sé  episcopal ,  desmembrando-se  esta  v.o^n 
diocese  da  antiga  de  Coimbra  ,  e  reconhecendo  prir 
metropolitana  a  igreja  bracharense.  Tem  o  tilul;;  de 
nolre  e  notável  ,  e  na  antiga  legislação  e  sjsti.ma 
•2."  Serie  —  \vl..  11. 


18 


O  PANORA3IA. 


politico  gozava  de  voto  nas  cortes  dos  Ires  estados, 
!•  dc  muitos  e  singulares  privilégios ,  qne  ultima- 
mente tinham  sido  confirmados  em  1641  pelo  Sr. 
rei  D.  João  4.°  Por  occasião  do  exterrainio  da  fa- 
mília dos  duques  d'Aveiro  ,  sob  pretexto  d'assassi- 
iiio  intentado  contra  a  pessoa  d'clrei  D.José,  subiu 
a  tanto  o  rancor  que  até  foi  mudado  o  nome  a  esta 
cidade  ,  que  dera  o  titulo  áquclla  casa  infeliz  ,  e  o 
mudaram  para  Nova- lira ganra  ;  alterarão  que  brc- 
Yí-  durou  ,  nem  deixou  lembrança  no  povo  ,  anni- 
({uilada  logo  no  subsequente  reinado. 

Aveiro  está  situada  em  mediana  elevação  ao  lou- 
i?')  das  margens  do  Vouga  ,  quasi  toda  na  direcção 
de  norte  a  sul ,  c  cercada  de  uma  campina  fértil  , 
povoada  de  quintas  c  hortejos ,  c  abundante  em 
aguas  nativas.  Pôde  considerar-se  dividida  cm  cin- 
to partes,  uma  das  quaes  ó  a  mais  antiga,  com- 
prehendida  no  recinto  amuralhado  ,  obra  do  infan- 
te D.  Pedro,  filho  dc  D.  João  1.°;  as  outras  qua- 
tro tem  a  disposição  de  suburldos  ,  ou  arrabaldes: 
ao  norte  vão-se  levantando  as  ruas  pelo  bairro-novo 
até  a  ermida  da  Sr.""  d' Alegria  :  c  para  o  sul  na 
parle  mais  alta  da  cidade  estende-se  a  formosa  ala- 
meda ,  entre  a  porta  dita  de  Vagos  e  o  convento  de 
.St.°  António,  bcllo  passeio  donde  scdesfrucla  agra- 
dável vista  do  rio  e  do  campo  adjacente:  contribuo 
para  a  frescura  do  sitio  uma  fonte  ,  das  cinco  que 
SC  numeram  na  povoação  ,  alem  de  muitos  raanan- 
ciaes  na  visinhanca  ,  de  que  os  moradores  seapro- 
Tcilam  para  regas,  e  para  usos  domésticos,  entran- 
do a  nascente  da  Ribeira,  copiosa  c  sadia,  que  por 
um  aqueducto  c  conduzida  ao  chafariz  da  praça,  de 
(juatro  bicas,  e  tão  visinho  da  ria  que  muito  facili- 
ta as  aguadas  aos  mareantes. 

O  [jorto  é  formado  por  um  esteiro  fundo  ou  ria  , 
pelo  qual  ascende  a  maré  a  misturar-sc  com  as 
aguas  da  foz  da  Vouga,  que  por  aqui  vem,  engros- 
sado com  varias  ribeiras,  pagar  seu  tributo  ao  ocea- 
no ;  a  espécie  de  pequeno  golpho  em  frente  da  ci- 
dade é  retalhado  em  ilhotas  ou  lesirias  ,  parte  cul- 
tivadas ,  c  parto  aproveitadas  cm  marinhas.  A  bar- 
ra é  mui  susceptivcl  dc  entulhar-se  c  de  variar  de 
posição  como  a  da  foz  do  Douro,  em  rasão  dos  l)an- 
cos  d'arèa  movediços  :  delia  e  da  capacidade  de 
bcu  porto  nasceu,  c  ainda  agora  depende,  a  prospe- 
ridade de  Aveiro  ,  que  jcá  pelo  commcrcio  ,  navega- 
ção e  pescarias,  cm  outros  tempos  se  foz  assaz  opu- 
lenta, c  conseguiu  grande  importância  no  reino , 
pois  que  em  lii.-JO  contava  doze  mil  almas,  c  pos- 
suia  mais  dc  150  navios  mercantes  ,  expedindo  an- 
uiialmente  60  á  pesca  do  bacalhau  no  grande  ban- 
co da  Terra-Nova  (-)  ,  c  cem  carregados  dc  sal  de 
suas  marinhas  [hoje  mui  estragadas  c perdidas]  pa- 
ra as  províncias  do  Norte  c  para  a  Galiza. — Tão 
florccenlc  estado  succcssívamente  decahiu  desde 
1575  até  o  fim  do  século  17.°  á  medida  que  o  por- 
to se  entulhava  ;  porem  no  principio  do  presente 
século  o  mal  chegou  ao  seu  auge  :  o  movimento  con- 
tinuo das  arèas  ao  longo  da  costa  removera  a  barra 
[lara  o  sul  até  perlo  de  Mira  ,  isto  c  ,  mais  dc  15 
niíliias  da  sua  primitiva  situação.  Os  ferieis  cam- 
pos d'Avciro,  que  outr'ora  produziram,  segundo 
<ii/.ein,  trinla  mil  moios  de  trigo,  c  as  grandes  ma- 
rinlias  (]uc  rendiam  ,  igualmente  por  anuo,  dczo- 
.seis  mil  moios  de  sal  ,  solTrcram  as  fataes  conse- 
quências daquella  alteração  :  alem  de  qne  o  terre- 
no ,    dantes  espaçoso  c  fértil,  se  converteu  em  ala- 


gadiço ,  produclor  de  miasmas ,  que  despovoaram 
a  cidade  c  arredores,  fazendo  o  clima  insalubre  cm 
summo  grau.  —  Era  ministro  d'cstado  cm  1801  o 
conde  de  Linhares,  c  procurou-sc  remediar  o  mal  : 
dois  engenheiros  ,  o  brigadeiro  Oudinot  e  o  tencnta 
coronel,  Luiz  Gomes  de  Carvalho  (::)  foram  encar- 
regados de  apromplar  o  plano ;  e  com  efleito  sob  as 
suas  ordens  tiveram  começo  os  trabalhos  em  1802. 
Partindo  Oudinot  para  a  Madeira  Ceou  a  inspecção 
commetida  a  Gomes  de  Carvalho  ,  e  concluiu-se  a 
obra  a  3  d'abril  de  1808,  montando  a  despeza  to- 
tal a  cem  contos  do  réis.  Formou-se  o  porto  d'A- 
vciro  pela  construcção  de  um  dique  de  1:210  bra- 
ças d'cxtensão  por  uma  largura  media  de  72  pal- 
mos ,  elevando-se  cm  todo  o  comprimento  muitos 
palmos  acima  das  mais  fortes  mares  d'inverno.  Por 
meio  desta  repreza  ou  dique  ,  que  atravessava  in- 
teiramente o  Vouga  ,  conseguia-so  que  as  próprias 
aguas  do  rio  servissem  de  desimpedir  a  barra,  e 
levar  comsigo  as  dunas  ou  baixos  d'areias,  que  lhe 
obstruiam  a  foz  cm  comraunicação  com  o  mar.  Es- 
ta grande  obra  hydraulica  requeria  vigiada,  e  con- 
servada por  ulteriores  trabalhos. 


(•)  Viil.  o  oxlensc)  arligo  ,  ijiie  sol)ri!  u  Teira-Nuva  e  n 
pc»ca  do  l)acalli,'ni  escrevemos  a  jiai,'.  10  o  seg.  do  vol.  3.° 
da  pnuaira  Sciie. 


Aviso   CO.NTBA    SALTEADOBES. 

Se  ha  no  mundo  paciência  c  equanimidade  herói- 
ca ,  tem-no  sido  sem  a  minima  contradicção  ,  por 
mais  de  cinco  ou  seis  annos ,  a  da  imprensa  portu- 
gueza  ,  espoliada  traiçoeiramente  por  alguns  beduí- 
nos c  traficantes  lillcrarios,  que  assentaram  as  suas 
tendas  de  aduar  ,  não  nos  desertos  da  Africa  ,  mas 
na  capital  de  um  robusto  e  ílorescentc  império.  Co- 
mo succede  quasi  sempre  cãs  grandes  virtudes  ,  a 
nossa  tom  ,  porventura  ,  sido  attribuida  a  motivos 
menos  honrosos — ao  desleixo  ou  á  fraqueza;  porque 
cm  logar  de  com  o  solTrimcnto  movermos  esses  mi- 
seráveis a  envergonharom-se  do  seu  torpíssimo  pro- 
codtr,  só  temos  visto  em  resultado  levarem  as  suas 
rapinas  ao  ultimo  ápice  do  descaramento  alárabe. 
É  preciso,  pois  ,  que  saibam  que  a  paciência  hu- 
mana tom  ,   como  tudo  ,   iim  termo. 

Algum  ou  alguns  livreiros  francczes  estabelecidos 
no  Urasil  tomaram  para  honesto  modo  de  vida  roubar 
quanto  a  imprensa  de  Portugal  produz.  Seja  bom  ou 
sejaraáu,  não  ha  livro,  folheio,  artigo  de  jornal  po- 
pular, que  não  seja  reproduzido  pela  imprensa  fran- 
ccza  da  America.  È  como  o  sacco  de  qualquer  cida- 
de da  Europa  dado  pelos  soldados  do  Buonaparte  : 
vai  tudo.  Da  allura  da  sua  enorme  sciencia  e  civi- 
lisação  gallicana  aquclla  boa  gente  olha  com  sobe- 
rano desprezo  para  o  publico  brasileiro:  oeste  po- 
vo rude  c  ignorante  —  dizem  cllcs  na  profundeza 
dos  seus  pensamentos  —  lê  sem  entender,  e  esque- 
cc-sc  do  que  lem  lido  ;  lancemos  nas  columnas  dos 
nossos  jornaes-ccchos  ,  dos  nossos  livros-alheios  , 
quanto  em  Portugal  s«  pensar  e  escrever.  Que  iui- 
porta  que  os  brasileiros  o  hajam  lido  em  primeira 
mão?  É  um  negocio  de  tempo.  Quando  cá  sair  a 
lume  já  o  terão  esquecido,  e  nós  ganharemos  di- 
nheiro. D 

Tanto  éesta  opinião  insolente  e  ingrata  a  que  pre- 
side a  tão  baixn  latrocinio,  qne  nesses  jornaos  com- 

(::)  Deste  saljio  eDçeiilieiro  ha  uma  memoria  solire  a 
l)arra  do  Douro,  com  a  planla,  em  o  0."  tom.  das  da.4.cad. 
dai  Scieuc. 


o  PANORAÍHA. 


19 


postos  unicnmcnte  de  farrapos  ,  mal  cirzidos  ,  dos 
iornacs  populares  portuguczrs  ,  nunca  so  encontra- 
rá a  indicarão  ,  nem  o  norac  do  pobre  espoliado. 
•Estas  indicarucs  c  estes  nomes  revelariam  claro  co- 
mo o  dia  que  osadellos  litterarios  nãoteem  de  seu 
para  trazerem  á  praça  nem  a  mais  somenos  mcrca- 
âuria.  

Ha  nm  fado  antigo  que  pesa  sobre  este  mesqui- 
nho Portugal  ,  e  que  ,  segundo  cremos  ,  a  experiên- 
cia de  muitos  séculos  converteu  n'uni  desses  rifões, 
que  representam  c  resumem  a  sabedoria  do  povo. 
-Tudo  quanto  é  rapinavcl  e  rapinado  tem  entre  nós 
tima  denominação  caractcristica  :  cbama-se-lhc  rou- 
pa de  francezcs;  porque  os  successos  da  nossa  his- 
toria nos  hão  bera  d  nossa  custa  provado  que  no 
meio  daquella  nação,  aliás  generosa  e  honesta,  ha 
muitos  homens  promptos  sempre  a  lançar  mão  de 
tudo  o  que  podem  tirar  sem  resistência  c  conver- 
Ic-lo  cm  substancia  própria.  Os  saltos  dos  norman- 
dos e  lotharingios  nas  costas  do  Jlinho  e  da  Beira 
durante  o  sccbIo  12.°  :  as  depredações  deDuguesclin 
c  dos  seus  homens  d'armas  ,  a  soldo  dos  reis  de 
Caslella  ,  no  lini  do  14.° ;  as  piratarias  dos  armado- 
res da  Bretanha  e  Normandia  que  no  16."  infestavam 
os  nossos  mares  da  Europa  c  da  Africa;  o  sacco  do 
Rio  de  Janeiro  nos  primeiros  annos  do  18.°;  a  inva- 
são do  principio  do  19.°,  em  que  ficaram  as  igrejas 
de  Portugal  sem  um  lampadário  ,  sem  uma  custo- 
dia .  sem  um  vaso  sagrado  ;  todos  estes  factos  san- 
ctilicaram  o  rifão  ,  e  levaram  até  a  ultima  eviden- 
cia que  sobre  nós  pesava  o  fatal  destino ,  symboli- 
sado  na  phrase  popular. 

Quando ,  porem  ,  parecia  que  já  neste  pobre  c 
humilhado  paiz  não  haveria  que  roubar,  acha  o  gé- 
nio inventor  de  algum  ou  d'alguns  francezcs,  que 
nem  o  frueto  do  pouco  ou  muito  estudo  ,  do  muito 
ou  pouco  talento  —  propriedade  sagrada  entre  todas 
as  propriedades  —  se  nos  de\ia  deixar.  Depois  de 
nos  devorarem  as  mais  remotas  e  menos  legitimas 
riquezas  de  qualquer  povo  ,  as  colónias  c  conquis- 
tas, cspoliaram-nos  dos  bens  mais  domésticos,  mais 
queridos,  mais  respeitáveis  —  os  instrumentos  do 
nosso  culto;  c  como  estas  eram  as  ultimas  raias  do 
mundo  material,  ultrapassando-as ,  vieram  ainda 
Jjuscar-nos  as  tão  teuues  faculdades  da  intelligencia. 

Masse,  relativamente  a  Portugal,  este  proceder  é 
o  de  salteadores  covardes,  relativamente  ao  Brasil 
é  ,  alem  disso  ,  insultuoso  c  calumniador.  Não  se- 
ria o  engenho  brazileiro  capaz  de  produzir  obras 
d'arte  ou  de  sciencia?  Ahi  estão  as  publicações 
americanas  —  verdadeiramente  americanas  —  que 
respondam  por  nós.  O  jornal  do  Instituto  Históri- 
co ,  o  da  Sociedade  auxiliadora  da  Industria  ,  o  fa- 
zem cabalmente.  Estas  publicações  e  muitas  outras, 
periódicas  e  não  periódicas,  dão  testemunho  de  que 
também  no  grande  império  da  America  meridional 
ha  sciencia  grande  e  profunda  ,  ha  lettras  ,  ha  en- 
genho. Se  os  especuladores  da  imprensa  pertendcm 
cmpregar-se  no  commercio  das  lettras  ,  convoquem 
os  filhos  do  Brasil ,  que  podem  e  sabem  ,  tão  bem 
como  os  de  Portugal ,  preencher  honrosamente  o 
ministério  de  escriptores ,  e  recompensem  o  seu 
trabalho  ,  como  se  pratica  por  toda  a  parte  ;  como 
se  pratica  entre  nós.  Então  o  seu  commercio  será 
honestamente  proveitoso  para  clles,  útil  para  as  let- 
tras brasileiras,  e  glorioso  para  o  Brasil,  cm  vez 
de  ser  uma  calumnia  affrontosa  contra  a  nação  quo 
os  acolheu,  c  um  roubo  insolente  contra  as  cmpre- 
zas  typographicas  da  Europa,  c  eonlra  os  interesses 


dos  homens  da  sciencia   c  da  arte  ,  nascidos  alem 
do  Atlântico. 

Queremos  nós  com  isto  negar  a  qualquer  editor 
de  uma  publicação  periódica  a  faculdade  de  trans- 
crever um  ou  outro  artigo  das  publicações  análo- 
gas ,  feitas  cm  Portugal ,  um  ou  outro  trecho  dos 
livros  porluguezes?  Não  por  certo  :  tal  pcrtenção 
seria  absurda  lia  cousas  que  pela  matéria  ou  pela 
forma  podem  interessar  os  leitores  do  Brasil ,  e 
nesse  caso,  posloquc  os  livros  e  periódicos  de  Por- 
tugal não  sejam  raros  no  Novo-Mundo  ,  será  um 
serviço  feito  á  illustração  nacional  o  dar  a  tal  es- 
cripto  a  maior  publicidade  possível  : — sè-lo-hia  até 
á  gloria  de  seu  auctor.  Slas  nisto  ha  discernimento 
e  escolha;  não  ha  o  que  se  pratica  hoje;  não  se 
misturam  estupidamente  diamantes  com  velórios  , 
ouro  com  leutcjoulas:  cita-se  o  titulo  da  publica- 
cação  ,  00  o  nome  do  auctor  que  se  copia.  Simi- 
Ihante  procedimento  ó  o  dos  homens  honestos ,  o 
contrario  ou  c  inclassificável ,  ou  pertenrc-lhe  in- 
contestavelmente a  qualificação  que  acima  lhe  de- 
mos. 

Que  esse  individuo,  ou  indivíduos,  que  se  di- 
zem membros  de  uma  nação  illustre,  aprendam  do 
próprio  paiz  onde  vivem  ,  c  de  cuja  hospitalidade 
abusam,  a  respeitar  a  propriedade  alheia.  Quandn 
os  editores  dos  jornaes  brasileiros  mais  graves  e 
profundos,  julgara  dever  dar  nas  columnas  dellcs 
logar  a  composições  portuguezas,  jamais  se  esque- 
cem dos  deveres  do  homem  probo  ,  e  escrupulosa- 
mente indicam  as  fontes  a  que  recorreram.  Os  que 
talvez  no  seu  orgulho  acreditaram  ter  levado  ao 
Brasil  a  diffusão  das  luzes  encerrada  nos  seus  cai- 
xões de  typo  ,  podem  ahi  receber  lições  —  se  aca- 
so a  sua  comprehensão  tanto  alcança  —  de  verda- 
deira illustração  ,  e  o  que  mais  é  ,  de  verdadeira 
honestidade. 

Appelamos  para  o  bom  juizo  dos  brasileiros,  pa- 
ra a  opinião  publica  ,  para  aquelles  que  por  mai^ 
de  ura  titulo  são  nossos  irmãos  —  os  litteratos  d<i 
império.  Trata-se  não  só  de  nós ,  não  só  dos  inte- 
resses de  Portugal  ;  trata-se  igualmente  do  Brasil  . 
da  sua  gloria,  do  futuro  dos  seus  escriptores. — 
A  questão  da  propriedade  litteraria  choje  uma  gra- 
víssima questão  da  velha  Europa  :  a  immoralídade 
internacional  neste  objecto  capitalissimo  é  um  doj 
cancros  que  a  devoram.  Não  consintam  os  brasilei- 
ros que  este  ou  aquellc  estrangeiro  possa  iunocular 
livremente  n'um  povo  virgem  um  virus  que  cor- 
roa as  nossas  sociedades  decadentes.  Em  Portugal 
isto  só  produz  damnos  individuaes :  no  Brasil  pro- 
duzirá um  damno  commum.  Nós  podemos  dizer- 
Ihe:  Rcs  rcstra  agilur. 

Agora  que  os  cirzidorcs  d'alheios  farrapos  trans- 
crevam como  seu  este  artigo. 

Á.  Iltrcuhtno. 


O   BOBO. 

1128- 

II 

Dom  Uihas. 

O  castello  de  Guimarães  ,  qual  ahi  existi.i  nos 
princípios  do  século  12.°,  difl'crençava-se  entre  os 
outros,  que  cobriam  quasi  todas  as  eminências  «las 
honras  e  prestamos  de  Portugal  e  da  Calliza  ,  por 
sua  fortaleza,  vastidão,  e  elegância.  A  maior  par- 


20 


O   PANORAMA. 


te  dos  edifícios  desta  espécie  eram  apenas  então 
iitn  ;iggrcgado  de  grossas  vigas  ,  travadas  entre  si , 
e  formando  uma  serie  de  torres  irregulares  ,  cujas 
jiaredcs,  muitas  vezes  feitas  de  cantaria  sem  cimen- 
to ,  mal  resistiam  aos  golpes  dos  ariclcs  e  aos  ti- 
ros das  calapultas  ,  ao  passo  que  os  madeiros  que 
ligavam  esses  fracos  muros,  c  llics  davam  certo  as- 
pecto do  forlilicarão  duradoura,  tinham  o  grave  in- 
convcnienle  de  poderem  facilmcnle  inccndiar-sc. 
Assim  não  havia  caslcllo  ,  onde  entre  as  armas  e 
baslimeníos  de  guerra  não  occupasscm  um  dos  mais 
importantes  logares  as  amplas  cubas  de  vinagre  , 
liquido  que  a  experiência  linha  mostrado  ser  o 
mais  próprio  para  apagar  o  alcatrão  incendido,  que 
como  instrumenlo  de  ruina  usavam  nos  sítios  dos 
logares  aforlalczados.  Quando  o  gato  ou  a  vinea  , 
espécie  de  barraca  ambulante  ,  coberta  de  couros 
crus,  SC  approximava,  pesada  e  lenta  como  um  es- 
pectro ,  aos  muros  de  qualquer  castello  ,  em  quan- 
to os  cavalleiros  mais  possantes  arcavam  com  pe- 
dras enormes ,-  levando-as  aos  vãos  das  ameias,  pa- 
ra dahi  as  deixarem  cahir  sobre  o  tecto  da  macbi- 
na  ,  os  peões  conduziam  para  o  lanço  de  muralha 
ou  torre,  a  que  esta  se  dirigia  ,  uma  quantidade 
daquclle  liquido  salvador  capaz  d'abafar  as  cham- 
raas ,  involtas  em  rolos  de  fumo  fétido,  que  não 
tardariam  a  lamber  as  traves  angulares  do  guerrei- 
ro edificio.  Muitas  vezes  essas  precauções  eram 
inúteis,  principalmente  conlra  os  sarracenos.  Entre 
estes  uma  civilisação  immensa  tinha  moderado  o 
fanatismo,  quebrado  os  brios  selvagens,  diminuído 
a  robustez  phjsica  dos  homens  d'armas  :  a  sua  mes- 
tria, porem,  da  arte  da  guerra  suppria  estas  faltas  e 
equilibrava  nos  combates  o  soldado  musslim  com 
o  guerreiro  christão  mais  robusto,  mais  fanático  e 
por  isso  mais  impeluoso  do  ([ue  elle.  Era  principal- 
nicnlo  nos  assédios,  quer  dofcndcndo-sc  ,  quer  ac- 
commetlendo,  que  os  árabes  conheciam  todo  o  pre- 
ço da  própria  superioridade  intellectual.  As  suas 
machinas  de  guerra  ,  mais  perfeitas  que  as  dos  na- 
zarenos ,  não  só  pela  melhor  combinação  das  forças 
mechanieas  ,  com.o  pela  maior  variedade  de  enge- 
nhos c  invenções ,  davam-lhes  notáveis  vantagens 
sobre  a  grosseira  táctica  dos  seus  adversários.  Sem 
o  soccorro  da  vínea  os  árabes  sabiam  incendiar  de 
longe  os  castellos  com  os  scorpiões  arrojados  pelas 
nianganellas  de  fogo.  De  enxofre,  salitre  e  naphta 
compunham  ellcs  um  mixlo  terrível ,  com  que  des- 
pediam dos  engenhos  globos  de  ferro  cheios  do 
mesmo  composto ,  que  serpeando  c  sussurrando  nos 
aros  iam  estourar,  c  verter  dentro  dos  muros  asse- 
diados uma  espécie  de  lava  inextinguível  e  infer- 
nal ,  contra  cuja  violência  eram  baldadas  qiiasi 
sempre  todas  as  prevenções ,  e  não  menos  baldadas 
a  valentia  e  a  força  dos  mais  duros  cavalleiros  e 
homens  d'armas. 

-Mas  o  castello  do  Guimarães  podia  ,  do  tczo  so- 
bro ([ue  estava  assentado,  olhar  cora  tranquillo  des- 
dém para  os  formidáveis  c  variados  engenhos  mili- 
tares de  chrislãos  e  do  sarracenos.  X  melhor  f)rta- 
leza  daOalliza,  o  Castro  Honesto,  que  o  mui  pode- 
roso e  venerando  senhor  Diogo  Gclmirez  ,  primei- 
ro arcebispo  de  Compostella  ,  reformara  de  novo  , 
com  lodo  o  esmero  de  quem  sabia  ser  aquelle  Cas- 
tro como  a  chave  da  extensa  iloina  e  Senhorio  Com- 
postellano  ,  era,  por  trinta  léguas  em  roda,  o  úni- 
co talvez  que  ousaria  disputar  primazias  com  o  de 
Guimarães.  Como  a  daquelU; ,  a  cárcova  deste  era 
larga  e  profunda  ;  as  suas  barreiras  amplas  c  de- 
fendidas por  boasbarbacans ;  as  suas  muralhas,  tor- 


readas com  curtos  inlervallos  ,  altas  ,  amciadas  e 
desmarcadamente  grossas ,  do  que  dava  testemunho 
o  espaçoso  dos  adarvcs  que  corriam  por  cima  del- 
ias. O  circuito,  que  tão  temerosas  fortificações  abran- 
giam, encerrava  uma  nobre  alcáçova,  que,  também 
coberta  d'ameias,  campeava  sobranceira  aos  lanços 
de  muros  entre  torre  e  torre  ,  c  ainda  assoberbava 
estas,  á  excepção  da  alvarran  ou  de  menagem,  que 
macissa  e  quadrangular,  com  os  seus  esguios  mira- 
douros bojando  nos  dois  ângulos  exteriores  ,  e  er- 
guida Sobre  o  escuro  portal  da  entrada ,  parecia 
um  gigante  cm  pé  e  com  os  punhos  cerrados  sobre 
os  quadris  ,  ameaçando  o  burgo  rasteiro  e  humil- 
do ,  que  lá  embaixo  no  sopé  da  encosta  se  encolhia 
e  apoquentava  ,  como  villão  que  era  ,  diante  de  ta- 
manho senhor. 

Mas  não  vedes  ahi  ao  longe ,  por  entre  a  casaria 
da  povoação  e  a  verdura  das  almoínhas ,  que  ,  en- 
tresachadas  com  os  edifícios  burguezes,  serveia  co- 
mo de  vasto  tapeio  ,  onde  assentara  os  pannos  de 
muros  alvos  ,  e  os  telhados  vermelhos  e  aprumados 
das  casas  modestas  dos  peões?  —  Não  vedes,  digo, 
a  alpendrada  de  uma  igreja  ,  a  portaria  de  um  a- 
cístcrío  ,  a  grimpa  d'ura  campanário?  É  o  mostei- 
ro de  D.  Mumadona  :  é  um  claustro  de  monges  ne- 
gros :  é  a  origem  desse  burgo  ,  do  castello  roquei- 
ro e  dos  seus  paços  reacs.  Havia  duzentos  annos 
que  neste  valle  viviam  apenas  alguns  servos  ,  que 
cultivavam  a  villa  ou  herdade  de  Vimaranes.  Mas 
o  mosteiro  edificou-se,  e  a  povoação  nasceu.  O  ame- 
no e  aprazível  do  sitio  attrahiu  os  poderosos ;  o 
conde  lienriquc  quiz  ahi  habitar  algum  tempo  ,  e 
sobre  as  ruínas  de  um  fraco  e  pequeno  castello  ,  a 
que  03  monges  se  acolhiam  ante  o  assolador  tufão 
das  correrias  dos  mouros,  se  alevantou  aquella  ma- 
china.  O  trato  e  frequência  da  corte  enriqueceu  09 
burguezes  :  muitos  Francos  ,  vindos  era  companhia 
do  conde  ,  ahi  se  tinham  estabelecido  ,  e  os  homens 
de  ma  ,  ou  moradores  do  burgo,  conslituíram-se 
em  sociedade  civil.  Então  surgiu  o  município  :  e 
essas  casas,  apparcntemente  humildes,  encerravam 
já  uma  porção  do  fermento  da  resistência  anti-lhco- 
cratica  e  anti-feudal  ,  que  espalhado  gradualmente 
polo  paiz ,  devia  em  Ires  séculos  pòr  manietados 
aos  pés  dos  reis  a  aristocracia  e  a  Iheocracia.  Os 
imperantes  supremos  ,  enfarados  já  na  caça  ,  que 
abasteceria  de  futuro  as  mesas  dos  banquetes  trium- 
phaes  dos  seus  successores  ,  atrelavam  presto  delia 
os  lebréus  :  punham  o  concelho  ao  i)ó  do  castello  , 
do  mosteiro,  e  da  cathedral.  Guimarães  breve  ob- 
teve do  conde  um  foral  —  uma  carta  de  município, 
tudo  pro  bono  pacis  ,  como  reza  o  respectivo  docu- 
mento. 

É  nesta  alcáçova  ,  cingida  das  suas  fortificações 
lustrosas  ,  ^irgens  ,  elegantes  ,  e  todavia  formidá- 
veis, onde  a  nossa  historia  começa.  Habitavam  en- 
tão nella  a  mui  virtuosa  dona,  e  honrada  rainha,  D. 
Thcreza  ,  infanta  dos  pnrtuguezes  ,  c  o  mui  nobre 
e  excellenlc  senhor  Fernando  Pcrez  ,  condo  de  Tra- 
va ,  cônsul  da  terra  pnriugalenso  c  da  colímhrien- 
se  ,  alcaídc-mór  na  Gallíza  do  castello  de  Pharo, 
e  cm  Portugal  dos  de  Santa  Ovaía  c  do  Some.  Era 
elle  a  primeira  personagem  da  corte  de  Guimarães 
depois  de  D.  Thcreza  ,  a  fonnosmima  infanta  ,  pa- 
ra nos  servirmos  do  epíthclo  que  em  seus  diplo- 
mas lhe  dava  o  conde  D.  Heiírique  ,  o  qual  devia 
saber  perfeitamente  se  esta  denominação  lhe  qua- 
drava. Apesar  de  entrada  em  annos,  não  cremos 
que  na  epooha  a  que  se  refere  a  nossa  narrativa  , 
esto  cpithelo  seja  inteiramente  anachrouico ,   por- 


o  PAIVORA3IA. 


21 


que  nem  a  bastarda  (i'Anbnso  6.°  era  ainda  idosa, 
nem  devemos  imaginar  que  a  aíToirão  de  Fernando 
Pcrez  fosse  crua  e  simplesmente  um  calculo  am- 
bicioso. 

Esla  alTeição  ,  porem  ,  ardente  e  mutua  ,  como 
pelo  menos  parecia  ser,  sobremaneira  affiava,  tem- 
pos liavia  ,  as  línguas  dos  maldizentes.  Pouco  a 
pouco  muitas  graves  matronas,  em  quem  a  idade 
fizera  seu  ofBcio  de  mestra  da  virtude  ,  se  tinham 
alongado  da  corte  para  suas  honras  e  solares.  Com 
mais  alguma  resignação  as  donzellas  offereciam  a 
Deus  o  próprio  solTrimento  era  presenciar  este  es- 
cândalo. Demais,  a  vida  cortezã  era  tão  risonha  de 
saraus  ,  de  torneios  ,  de  banquetes  ,  de  festas  !  — 
alogravam-na  tanto  a  chusma  de  carallciros  man- 
cebos ,  muitos  dos  quacs  tinham  pela  primeira  vez 
vestido  as  armas  na  guerra  do  anno  antecedente 
contra  orei  de  Leão! — Alem  disso,  que  igreja 
iiavia  ahi,  a  não  ser  a  sé  de  líraga,  onde  as  solem- 
nidades  religiosas  fossem  celebradas  cora  mais  pom- 
pa que  no  mosteiro  de  D.  Mnma  ,  Ião  devotamente 
assentado  I;i  embaixo  no  burgo?  Que  cathcdral  ou 
acisterio  tinha  órgão  mais  harmonioso  que  este?  On- 
de se  podiam  encontrar  clérigos  ou  monges,  que 
em  mais  aíHnadas  vozes  entoassem  inn  gloria  in 
r.rcclsis ,  ou  um  cxsurgc  dominef  Culto,  amor,  sa- 
raus, tríplice  encanto  da  idade  media,  como  vos 
resistiriam  estes  corações  innocentes?  As  donzel- 
las ,  bem  que  lhes  custasse  ,  continuavam  portanto 
a  cercar  a  sua  bella  infanta  ,  que  muito  amavam. 
As  velhas,  essas  pouco  importava  que  tivessem  de- 
sapparecido. 

Tacs  rasões  ,  c  varias  outras  ,  davam  as  damas  a 
seus  naturaes  senhores ,  para  continuarem  a  viver 
a  vida  folgada  do  paço  ;  aos  pais  a  devoção  :  aos 
maridos  o  acatamento  a  mui  generosa  rainha  ,  de 
quem  elles  eram  presíameiros  e  alcaides  :  aos  ir- 
mãos ,  sempre  indulgentes,  a  paixão  pelas  danças 
e  torneios  ,  cujo  engodo  elles  melhor  ainda  sabiam 
avaliar.  Debaixo  ,  porem  ,  destes  urgentes  motivos 
outro  havia  não  menos  poderoso,  e  em  que  nenhuma 
reparava  ,  ou  que  ,  se  reparava  ,  não  se  atreveria  a 
mencionar.  Este  motivo  era  uma  bruxaria  ,  um  fei- 
tiço inexplicável  ,  uma  fascinação  irresistível  ,  que 
cm  todos  aquelles  espíritos  um  único  homem  pro- 
duzia. Cousa  incrível,  por  certo,  mas  verdadei- 
ra como  apropria  verdade.' — Palavra  de  roman- 
cista I 

E  não  era  lá  nenhum  grande  homem  ;  era  um 
vulto  de  pouco  mais  de  quatro  pés  d'altura  ;  feio 
como  um  judeu;  barrigudo  como  um  cónego  de 
Toledo  ;  immundo  como  a  consciência  do  celebre 
arcebispo  Gelmirez  ,  e  insolente  como  um  villão  de 
behetria.  Chamava-se  de  seu  nome  Dora  Bibas.  Oljla- 
to  do  mosteiro  de  D.  Muma,  quando  chegou  á  ida- 
de ,  que  se  diz  da  rasão  ,  por  ser  a  das  grandes 
loucuras  ,  achou  que  não  era  feito  para  elle  o  re- 
manso da  vida  monástica.  Atirou  ás  malvas  o  ha- 
bito ,  a  que  desde  o  berço  o  tinham  conderanado  : 
c  ao  cruzar  a  porta  do  acisterio  ,  escarrou  alli  em 
peso  o  latira  com  que  os  monges  começavam  a  em- 
peçonhenlar-lhe  o  espirito.  Depois  sacudindo  o  pó 
das  suas  çapatas  ,  vollou-se  para  o  mui  reverendo 
porteiro  .  e  por  um  esforço  sublime  de  abnegação 
atiron-lhe  á  cara  com  toda  a  sciencía  hebraica , 
que  tinha  alcançado  naquella  santa  casa  ,  gritando- 
Ihe  com  uma  visagem  d'escarneo  —  racca  marana- 
Iha,  raccamaranalha — e  desapparecendo  após  isso, 
como  a  zevra  perseguida  desapparecia  naquelles  tem- 
pos aos  olhos  dos  raonteiros  nas  florestas  do  Gerez. 


Não  referiremos  aqui  a  historia  da  solta  mocida- 
de do  nosso  oblato.  Por  mczes  a  sua  vida  foi  uma 
destas  vidas  como  era  commummenle  naquella  epo- 
cha  ,  c  o  é  ainda  hoje  ,  a  do  homem  do  povo  que  , 
a  não  ser  nos  claustros,  tentava  cravar  os  dentes  no 
pomo  vedado  ao  pobre  —  a  mui  illustre  e  aristo- 
crática mandriíce  ;  —  uma  vida  inexplicável  c  mi- 
lagrosa, uma  vida,  na  qual  ao  dia  folgado  de  fartu- 
ra c  beberronia  impensadas  seguiam  muitos  de 
perfeita  abstinência.  A  miséria  ,  porem  ,  lhe  crcou 
uma  industria  :  Dom  Bibas  começou  a  sentir  em  si 
as  inspirações  de  Irovista  c  os  garbos  de  folião  : 
pouco  a  pouco  a  sua  presença  tornou-se  tão  dese- 
jada nas  tabernas  do  burgo  ,  como  as  cubas  de  boa 
cerveja  ,  então  bebida  trivial ,  ou  antes  tão  agradá- 
vel como  os  effluvios  do  vinho  ,  que  naquella  cpo- 
cha  ainda  escaceava  algum  tanto  nas  taças  dos  peões. 
A  fama  de  Dom  Bibas  tinha  subido  a  altura  in- 
commensuravcl ,  quando  o  conde  Henrique  assen- 
tou sua  corte  em  Guimarães.  Felizmente  para  o  an- 
tigo oblato,  o  bufão  que  o  príncipe  francez  trouxe- 
ra de  Borgonha,  lançado  entre  estranhos,  que  mal 
entendiam  seus  motejos  ,  conhecera  que  era  uma 
palavra  sem  sentido  neste  mundo,  e  houve  por  bem 
morrer ,  declarando  a  seu  nobre  senhor  ,  era  des- 
cargo de  consciência  ,  que  buscasse  ,  entre  os  ho- 
mens do  condado  ,  alguém  que  exercesse  este  im- 
portante cargo  ;  porque  sorte  igual  á  sua  esperava 
qualquer  bobo  civilisado  da  cívilisada  Borgonha  , 
no  meio  destes  selvagens  estúpidos  do  Occídenle, 
Na  cúria  dos  barões  ,  ricos-homens  ,  e  prelados , 
que  então  se  achavam  na  corte  ,  propoz  o  conde  o 
negocio.  Havia  votos  que  tal  bobo  se  não  procuras- 
se. Fundavam-se  os  que  seguiam  esta  opinião  era 
que  nem  nas  leis  civis  de  Portugal ,  Coimbra  e 
Galliza  —  o  livro  dos  juizes  , —  nem  nos  degredos 
do  padre-santo,  nem  nos  costumes  tradiciouaes  dos 
filhos  dos  bem-nascidos,  ou  fidalgos  de  Portugal , 
havia  vestígios  ou  memoria  deste  oflicio  palatino. 
Venceu,  porem,  o  progresso:  os  bispos  e  uma  gran- 
de parte  dos  senhores  ,  que  eram  francezes  ,  defen- 
deram as  instituições  pátrias  ,  e  a  alegre  truanice 
daquella  nação  triumphou  emfim  da  triste  gravida- 
de portugueza  na  corte  de  D.  Henrique  ,  bem  co- 
mo o  breviário  gallo-romano  triumphára  poucos  an- 
nos  antes  do  breviário  gotbico  perante  D.  AiTon- 
so  6." 

Foi  então  que  Dom  Bibas  se  viu  elevado ,  sem 
protecções  nem  empenhos  ,  a  uma  situação  ,  a  que 
nos  seus  mais  ambiciosos  e  agradáveis  sonhos  de 
felicidade  nunca  tinha  imaginado  tiepar.  O  próprio 
mérito  e  gloria  lhe  puzcrara  nas  mãos  a  palheta  do 
seu  antecessor,  a  gorra  asini-auricular,  o  gibão  de 
mil  cores  ,  e  o  saio  orlado  de  guizos.  De  um  para 
outro  dia  o  homem  illustre  pôde  olhar  senhoril ,  e 
estemicr  a  mão  protectora  para  aquelles  mesmos 
que  na  véspera  o  apupavam.  Diga-so ,  porem,  a 
verdade  em  honra  de  Dom  Bibas  :  até  o  tempo  em 
que  succederam  os  acontecimentos  extraordinários 
que  começamos  a  narrar  ,  elle  foi  sempre  genero- 
so ,  nem  nos  consta  abusasse  jamais  do  sou  vali- 
mento e  da  sua  importância  politica  cm  damno  dos 
pequenos  e  humildes. 

O  leitor  que  não  conhecesse  por  dentro  e  por  fo- 
ra ,  como  se  usa  dizer ,  a  vida  da  idade  media  ,  ri- 
ria da  pequice  cora  que  attribuimõs  valor  politico 
ao  bobo  do  conde  de  Portugal.  Pois  o  caso  não  ó 
de  rir.  Xos  tempos  feudaes  o  cargo  de  Iruão  cor- 
respondia até  certo  ponto  ao  dos  censores  da  repu- 
blica romana.  Naquella  epocha  muitas  paixões,  so- 


22 


O  PANORAMA. 


bre  as  qtiacs  a  civilisação  estampou  o  ferrete  d'i- 
gnobeis  ,  ainda  mo  eram  liypocritas,  porque  a  hy- 
pocrisia  foi  o  magnifico  resultado  que  a  civilisarão 
tirou  de  sua  sentença.  Os  ódios  e  as  vinganças  eram 
lealmente  ferozes,  a  dissolução  sincera,  a  lyrannia 
sem  niyslerio.  No  século  dezeseis  Filippe  2.°  ente- 
nenava  seu  filiio  nas  trevas  de  um  calabouço :  no 
principio  dodecimo-terceiro,  D.  Sancho  1.°  de  Por- 
tugal arrancando  os  olhos  aos  clérigos  de  Coimbra, 
que  recusavam  celebrar  os  oflicios  divinos  nas  igre- 
jas interditas,  chamava  para  testemunhas  daquclle 
feito  todos  os  parentes  das  viclinias.  Filippe  era  um 
parricida,  polidamente  covarde  :  D.  Sancho  um  sel- 
vagem atrozmente  vingativo.  Entre  os  dois  prínci- 
pes ha  quatro  séculos  nas  distancias  do  tempo,  c 
o  infinito  nas  distancias  moraes. 

N'uma  sociedade  em  que  as  torpezas  humanas 
assim  appareciam  som  véu  ,  o  julga-las  era  fácil. 
O- difTicuItoso  era  o  condcmna-las.  Na  extensa  esca- 
la do  privilegio  ,  quando  um  feito  ignóbil  ou  cri- 
minoso SC  praticava,  a  sua  acção  recahia  ,  por  via 
de  regra,  sobre  aquelles  que  se  achavam  collocados 
nos  degraus  inferiores  ao  perpetrador  do  attcntado. 
O  syslema  das  jerarchias  mal  consentia  os  gemi- 
dos :  como  seria  portanto  possível  a  condcmnação? 
As  leis  civis  na  verdade  procuravam  annular,  ou 
pelo  menos  modificar  esta  situação  absurda  ;  mas 
era  a  sociedade  que  devorava  as  instituições,  que 
não  a  comprchendiam  a  ella  ,  nem  cila  comprehen- 
dia.  Porque  de  reinado  para  reinado,  quasi  de  an- 
uo para  anno  ,  vemos  renovar  essas  leis  ,  que  ten- 
diam a  substituir  pela  igualdade  da  justiça  a  des- 
igualdade das  situações?  —  É  porque  semelhante 
Jcgislação  era  Icttra  morta  ,  protesto  inútil  d'algu- 
jTias  almas  formosas  e  puras  ,  que  pretendiam  fosse 
presente  o  que  só  podia  ser  futuro. 

Mas  no  meio  do  silencio  tremendo  de  padecer  in- 
crivel  e  de  solTrimcnto  forçado ,  um  homem  havia 
que,  leve  como  a  própria  cabeça,  livro  como  apro- 
pria lingua  ,  podia  descer  e  subir  a  Íngreme  e  lon- 
ga escada  do  privilegio,  soltar  em  todos  os  degraus 
delia  uma  voz  de  reprchcnsão,  punir  todos  os  cri- 
mes cora  uma  injuria  amarga  ,  e  patentear  deshon- 
ras  de  poderosos,  vingando  assim,  muitas  vezes  sem  o 
.saber,  males  c  opiiressões  de  humildes.  Este  homem 
era  o  truão.  O  truão  foi  uma  entidade  raysteriosa 
lia  idade  media.  líojc  a  sua  significação  social  é  des- 
prezível e  impalpável ;  mas  então  era  um  espelho 
que  reflectia,  cruelmente  sincero,  as  feições  he- 
diondas d(!  sociedade  rachytica  e  incompleta.  O  bo- 
bo ,  que  habitava  nos  paços  dos  reis  c  dos  barões  , 
desempenhava  um  tcrrivel  ministério.  Era  ao  mes- 
mo tempo  juiz  c  algoz  ;  mas  julgando  ,  sem  proces- 
so ,  no  seu  foro  intimo  ,  c  pregando  ,  não  o  corpo  , 
mas  o  espirito  do  criminoso  no  potro  immaterial  do 
vilipendio. 

Ei  elle  ria — ria  contínuo  !  Era  rir  diabólico  o  do 
bobo  :  [)orque  nunca  deixava  de  ir  pulsar  dolorosa- 
mente as  libras  d'algum  coração.  Os  seus  dictos  sa- 
lyricos,  ao  passo  que  suscitavam  a  hilaridade  dos 
cortesãos,  faziam  senipr(í  un)avíctíma.  Como  o  cy- 
«lope  da  Odissea  ,  na  sala  d'armas  ou  do  banque- 
te ;  nos  balcões  da  praça  do  tavolado  ,  ou  das  tau- 
romachías  ;  pela  noite  Itrilhante  c  ardente  dos  sa- 
raus ;  e  até  junto  aos  aliares  ,  ao  reboar  o  templo 
com  as  harmonias  dos  cânticos  e  psalmos  ,  com  as 
vibrações  dos  sons  do  órgão,  no  meio  da  atmosphe- 
ra  engrossada  pelos  rolos  do  fumo  alvacento  do  in- 
censo ,  em  toda  a  parte  c  a  todas  as  horas  ,  o  bu- 
fão tomava  ao  acaso   o  temor  que  infundia  o  prín- 


cipe, o  barão,  ou  o  illuslre  cavalleiro ,  e  o  res- 
peito que  se  devia  a  dona  veneranda  ou  a  dama 
formosa  ,  c  tocando-os  com  a  ponta  da  sua  palheta, 
on  fazendo-os  voltear  nos  tintinabulos  do  seu  adu- 
f e  ,  convertia  esse  temor  e  respeito  n'uma  cousa 
truanesca  c  ridícula.  Depois  involvendo  o  caracter 
do  nobre  c  grave  personagem,  atassalhado  c  cuspi- 
do ,  n'um  epígramma  sangrento,  ou  n'uma  allusão 
insolente  atirava-o  aos  pés  da  turba  dos  cortesãos. 
No  meio  ,  porem  ,  das  risadas  estrepitosas  ,  ou  do 
rir  abafado ,  lançando  de  passagem  um  olhar  bri- 
lhante e  vago  ao  gesto  confrangido  e  pallído  da  vi- 
ctiraa,  c,  como  o  tigre,  recrudescendo  com  o  cheiro 
da  carniça  ,  o  bobo  cravava  de  salto  as  garras  na- 
quelle  aquém  ódio  profundo  ou  inveja  solapada  fa- 
zia saborear  com  mais  entranhavel  deleite  a  vergo- 
nha c  abatimento  do  seu  inimigo.  Então  a  pallidej 
deste  pouco  a  pouco  deslisava  n'um  sorriso,  e  ia 
tingir  as  faces  do  cortesão  que  havia  instantes  se 
recreava  folgado  na  vingança  satisfeita.  —  Se  era 
em  banquete  ou  sarau  ,  onde  o  fumo  do  vinho  e  a 
ebriedade  que  nasce  do  contado  de  muitos  homens 
juntos  ,  das  danças ,  do  perpassar  das  mulheres  vo- 
luptuariamente  adornadas,  do  cheiro  das  Dores,  das 
torrentes  de  luz  que  em  milhões  de  raios  aquece  o 
ambiente — a  loucura  fictícia  do  truão  parecia  dila- 
lar-sc  ,  agitar-sc  ,  convírter-se  n'um  turbilhão  in- 
fernal. Os  motejos  e  as  insolências  volteavam  sobre 
as  cabeças  cora  incrível  rapidez  ;  as  mãos  que  iam 
unir-se  para  approvar  estrondosamente  o  fel  da  in- 
juria vertido  sobre  uma  fronte  odiada,  ficavam  mui- 
tas vezes  immovcis,  contrahidas,  convulsas,  porque 
entre  cilas  linha  passado  a  seta  de  um  epigramma 
azeirado,  e  havia  batido  no  coração  ou  na  consciên- 
cia de  quem  imaginava  só  applaudir  a  alheia  an- 
gustia. E  por  cima  daquelle  estrépito  de  palmas, 
de  gritos  ,  de  rugidos  d'indignação  ,  de  gargalha- 
das ,  que  gelavam  frequentemente  nos  lábios  dos 
que  as  iam  soltar,  ouvia-se  uma  voz  esganiçada  que 
bradava  e  ria  ,  um  tinir  argentino  de  guizos  ,  um 
som  baço  de  adufe  ;  viam-se  brilhar  dois  olhos  re- 
luzentes e  desvairados  n'um  rosto  disforme  ,  onde 
se  pintava  o  escarneo ,  o  desprezo,  a  cólera,  o  des- 
façamento  ,  confundidos  c  indistinclos.  Era  o  bobo 
que  nesse  momento  imperava  despótico  ,  lyrannico, 
inexora\el,  convertendo  por  horas  a  frágil  palheta 
em  sceplro  de  ferro  ,  c  erguendo-se  altivo  sobre  a 
sua  miserável  existência  como  sobre  um  throno  de 
rei  —  mais  porventura  que  throno  ;  porque  nesses 
momentos  elle  podia  dizer:  o  os  reis  lambem  tão 
meus  servos !  b 

Tal  era  o  aspecto  grandioso  c  poético  d,iquella 
entidade  social  exclusivamente  própria  dos  tempos 
feudaes,  padrão  levantado  á  memoria  da  liberdade 
e  igualdade,  c  ás  tradições  da  ci\il(*ação  antiga, 
no  meio  dos  séculos  dajerarchia,  c  da  gradação  in- 
finita entre  homens  e  homens.  Quando  ,  porem , 
chamámos  miserável  á  existência  do  truão  —  a  esta 
existência  que  descrevêramos  tão  folgada  e  risonha, 
tão  cheia  de  orgulho,  d'esplendor  de  predomínio — 
era  que  nesse  instante  ella  nos  apparecèra  sob  ou- 
tro aspecto  ,  contrario  ao  primeiro  ,  c  todavia  não 
menos  real.  Passadas  estas  horas  de  convivência  on 
de  deleite,  que  eram  como  uns  oásis  na  vida  triste, 
dura,  trabalhosa,  c  arriscada  da  mcia-idade,  o  be- 
co perdia  o  seu  valor  momentâneo,  c  voltava  á  obs- 
curidade —  não  á  obscuridade  de  um  homem  — 
mas  á  de  um  animal  domestico.  Então  os  desprezos, 
as  ignominias ,  os  maus  tratos  daquelles  que  cm 
publico  haviam  sido  alvo  dos  ditos  agudos  do  cho- 


o  PANORAMA. 


23 


carreiro  cahiam  sobre  a  sua  caberá  bumilliada  cer- 
rados como  granizo,  sem  piedade,  sem  resistência, 
sem  limite  :  • —  era  um  rei  descnlhronisado  ;  era  o 
typo  c  o  resumo  das  mais  profundas  misérias  hu- 
manas. Sc  naquelles  olhos  então  assomassem  lagry- 
uias  .  essas  lagrymas  seriam  ridiculas  ,  e  cumpria- 
llie  traga-las  em  silencio:  se  um  gemido  se  lhe  alc- 
vaiitassc  da  alma,  fura  necessário  recalca-lo  ;  porque 
llie  responderia  uma  risada:  se  a  vergonha  lhe  tin- 
gisse as  faces,  deveria  esconder  o  rosto;  porque  es- 
sa vermelhidão  seria  bafejada  pelolialito  de  um  di- 
cto  de  torpeza:  se  uma  grande  cólera  lhe  carregas- 
se o  gesto,  toruar-Ihe-hiam  como  remédio  um  inso- 
lente escarneo.  Assim  no  largo  tyrociuio  de  um  dií- 
ii' ultoso  mister,  o  seu  primeiro  e  capital  estudo 
era  varrer  da  alma  todos  os  affeclos ,  todos  os  sen- 
li;uenlos  nobres  ,  todos  os  vcstigios  da  dignidade 
moral ;  csquecer-sc  de  que  havia  no  mundo  justi- 
ça ,  pudor  ,  brio  ,  virtude  ;  csquecer-sc  de  que  o 
primeiro  homem  entrara  no  paraiso  animado  pelo 
«ipro  do  Senlior  ,  para  só  se  lembrar  que  sahíia 
(iille,  já  precito,  por  uma  inspiração  de  Satanaz. 

Tudo  isso  —  dirá  o  leitor  —  c  muito  bom;  porem 
não  explica  o  prestigio,  a  espécie  de  fascinação  que 
1).  Bibas  exercitava  no  espirito  das  damas  c  don- 
zellas  da  viuva  do  conde  Henrique  ,  a  bclla  infan- 
I-  de  Portugal.  Lá  vamos.  O  nosso  D.  Bibas  com 
•  seus  cinco  palmos  d'altura  era  um  homem  ex- 
triiirdinario  ,  e  a  truanice  essencialmente  franceza 
tn;!ia  por  arle  delle  feito  em  Portugal  um  verdadei- 
ro progresso;  estava  visivelmente  melhorada  no  ter- 
reno alheio,  como  os  alperchcs,  dcquercsa  cm  seus 
e  ;!ilarcs  o  adail  dos  poetas  portuguczes.  O  novo  bu- 
fão do  conde  Henrique  ao  começar  os  graves  estu- 
dos e  as  difTicuUosas  experiências  de  que  carecia 
pr.ra  preencher  dignamente  o  seu  cargo  ,  teve  a  fe- 
liz inspiração  de  associar  algumas  doutrinas  caval- 
leirosas-  com  os  mais  prosaicos  elementos  da  cho- 
cirricc  fidalga.  Na  torrente  dos  desvarios  ,  quando 
mais  violento  derramava  era  roda  de  si  a  lava  ar- 
ileiíto  dos  dictos  insultuosos  c  cruéis ,  nunca  dos 
'   '  ios  lhe  sahiu  palavra  que  fosse  despedaçar  a  al- 

:  de  uma  dama.  D.  15ibas  debaixo  da  cruz  da  sua 
espada  de  lenho  sentia  bater  ura  coração  portugucz 
■ — -portugucz  da  boa  raça  dos  godos.  Supponde  o 
!ii.TÍs  humilde  dos  homens;  supponde  a  mais  nobre, 
a  mais  poderosa  mulher :  que  esse  homem  a  salpi- 
que do  lodo  da  injuria,  e  será  tão  infame  e  covar- 
dia como  o  poderoso  entre  os  poderosos,  que  insul- 
t.isse  a  donzclla  innocente  c  desvalida.  E  porque"? 
P  :que  um  tal  feito  sae  fora  das  raias  da  humani- 
(!  ide  :  não  o  praticam  homens:  não  o  julgam  as 
1  IS  :  julga-o  a  consciência  ,  como  um  impossível 
nnral ,  como  um  acto  bestial  e  monstruoso.  Para 
arjuolle  que  usa  de  similhante  feridade,  nunca  lu- 
ziu ,  nunca  luzirá  no  mundo  um  raio  de  poesia?  E 

i.iahi  alguém — mais — ha  ahi  algum  politico, 

SI  qual  ao  menos  não  sorrisse  uma  vez  esta  filha  do 
e  11?  Dom  Bibas  não  pensava  isto;  mas  sentia-o,  li- 
i;!i:i-o  no  sangue  das  veias.  D'aqui  a  sua  influencia; 
().iqui  o  gasalhado,  o  carinho,  o  amor  com  que  do- 
nas c  donzellas  tratavam  o  pobre  truão.  Quando 
contra  esle  individuo,  fraco,  c  ao  mesmo  tempo 
terror  c  ílagello  dos  fortes ,  se  alevantava  alguma 
grande  cólera  ,  alguma  vingança  implacável  ,  elic 
tinha  um  asylo  seguro  onde  iam  quebrar  era  vão 
1  jdas  as  tempestades  :  era  o  bastidor ,  á  roda  do 
qual  as  nobres  damas  daquelles  tempos  matavam 
as  horas  tediosas  do  dia  ,  bordando  na  reforçada 
tela  com  Dos  de  mil  cores  historias  de  guerras  ,   ou 


folguedos  de  paz.  Alli  D.  Bibas  agachado,  cnnovc- 
lado  ,  sumido  ,  desafiava  o  seu  furioso  aggrcssor  , 
que  muitas  vezes  sahia  mal-fcrido  daquclle  comba- 
te desigual ,  cm  que  o  bobo  se  eubria  das  armas 
mais  temidas  de  um  nobre  cavallciro  —  a  protecção 
das  formosas. 

Tal  era  o  personagem  que  em  grande  parle  at- 
trahia  os  corações  feminis  para  a  corte  da  bella  in- 
fanta. Era  um  planeta  obscuro  á  roda  do  qual  gra- 
vitavam soes  :  era  o  centro  de  systema  astronómico 
um  pouco  diverso  do  nosso.  Mas  Copérnico  ainda 
não  linha  nascido  para  endireitar  amachina  do  uni- 
verso. Cremos  ,  portanto  ,  não  haver  commeltidi) 
um  anachronismo  demasiado  grosso.  Todavia  dei- 
xámos aos  chronologos  a  averiguação  do  ponto,  que 
não  deixa  de  valer  a    pena. 

E  o  mais  é  que  este  capitulo  jú  vai  largo,  e  ain- 
da propriamente  não  começámos  a  narrativa.  Fa-lo- 
liemos  no  immcdiato.  Entretanto  não  se  persuada  o 
leitor  que  tem  adiantado  pouco.  Fica  sabendo  algu- 
ma cousa  do  systema  militar  do  século  12.°,  fazen- 
do idéa  clara  do  que  era  um  bobo  feudal ,  conhe- 
cendo o  illuslre  Dom  Bibas  ,  e  ,  sobretudo  ,  acha-sc 
aporta  do  caslello  de  Guimarães,  aonde  forçosa- 
mente tínhamos  de  o  conduzir,  para  presenciar  os 
successos  ahi  passados  no  verão  do  anno  de  11-28, 
os  quacs  constituem  o  âmago  e  substancia  desta  ad- 
mirável c  mui  verídica  historia. 

À.  Herculano. 
[Continua]. 

EDUCAÇ.lO. 

Da    rXIUDADE    das  imagens    nas    ESCnOLAS. 

Nos  PAizrs  cm  que  esíão  mais  aperfeiçoados  os  nic- 
Ibodos  do  ensino  publico  ,  nas  escholas  primarias 
principalmente,  se  costumam  collocar  imagens  em 
vuKo  ou  cm  pintura  qnc  representam  aos  olhos,  c 
olíerecera  á  comprehcnsão  dos  meninos,  passagens  e 
successos  de  boa  doutrina  c  moralidade  ,  que  im- 
primam cm  seus  corações  o  amor  do  bem  ,  c  criem  em 
seu  peito  a  nobre  emulação  das  acçijcs  virtuosas.  Os 
instituidores  e  regedores  destas  escholas  tem  com- 
prehcndido  muito  santamente  a  utilidade  pratica  do 
preceito  de  Horácio  que  rccommendava  se  falias- 
se  mais  pelos  olhos  do  que  pelos  ouvidos  aos  ho- 
mens carecedores  d'instrucção.  Se  esta  linguagem 
da  vista  c  conveniente  mesmo  para  instruir  os  adul- 
tos,  muito  mais  aproveitará  nas  primeiras  idades 
ordinariamente  Ião  distrahidas,  quanto  cubiçosas 
d'espcctaeu!os. 

Segundo  estes  princípios  de  reconhecida  eviden- 
cia os  inspectores  das  escholas  primarias  da  AUe- 
manha  e  da  França  n'alguns  departamentos  tem  or- 
denado que  nas  aulas  c  nos  salões  de  estudo  das 
classes  fossem  coUocadas  certas  imagens  ,  cuja  re- 
presentação melhor  servisse  á  inslrucção  moral  dos 
meninos.  Com  elfoito  ,  quanto  mais  tenra  fòr  a  ida- 
de dos  educandos  tanto  mais  serão  estes  estranhos 
ás  tristes  realidades  da  vida  ,  e  ávidos  pelo  contra- 
rio das  imagens  que  lhes  representem  os  prodígios 
da  Historia  Sagrada,  as  obras  de  caridade  c  de  mi- 
sericórdia ,  as  acções  kjuvaveis  de  toda  a  espécie, 
os  monumentos  de  lodo  o  género.  Cora  sua  memo- 
ria nova  c  viçosa,  cora  sua  imaginação  fina  e  viva, 
com  sua  curiosidade  e  innocente  ambição ,  compre- 
hendem  elles  logo  o  objecto  representado,  decoram 
a  sua  historia  ,  c  vão  repetir  no  seio  de  suas  famí- 
lias estas  narrações  ,    o  as  scenas  que  estão  coslu- 


m 


o  PANORAMA. 


•» 


mados  a  ver  c  contemplar  diariamente  nas  escho- 
las.  Utilidade  grande  se  tem  tirado  desta  engenho- 
sa instituirão  nas  salas  d'as}lo  da  infância  onde  de 
ha  tempos  se  acha  em  vantajosa  pratica,  como  fica 
ohservado  a  pag.  212  do  vol.  2."  da  primeira  serie 
deste  Jornal :  igual  proveito  resultaria  para  os  re- 
colhimentos de  meninas ,  nas  reuniões  mesmo  mais 
particulares  em  que  pessoas  pias  e  caridosas  eostii- 
mam  ás  vezes  juntar  para  educação  primaria  e  gra- 
tuita os  meninos  da  sua  visinhanra? 

Assim  que  ,    muilo  conveniente  seria  estabelecer 
por  primeira  condição  do  ensino  primário,  que  nas 
aulas   estivessem   collucados   alguns  bustos  ou  pen- 
durados  painéis   representando   as  sccnas   da  crea- 
ção  ,    alguns  acontecimentos  caraclerisíicos  da  vida 
do  Redemptor,   e  de  sua  missão  divina  ;   as  acções 
jnais  meritórias  c  abalisadas  dos  prophetas,  dos  pa- 
Iriarchas  ,   e  dos  santos  da  antiga  c  nova  lei ;    c  os 
serviços ,  virtudes  e  patriotismo   dos  bons   sobera- 
nos ,   e  dos  súbditos  que  honraram   o  seu  paiz  e  se 
consagraram  ao  bem  da  humanidade.  Conformemen- 
te  a  esta  tenção   figurariam   muilo  discreta   e  util- 
mente nas  escholas  alguns  painéis  que  representas- 
sem : —  a   crcação   do   mundo;  —  a   primeira    falia 
d'Adão   e  Eva  que  os  reduziu   em   castigo  de  sua 
desobediência  ,  assim  como  a  seus  descendentes  ,  á 
condição   de  pobres   morlaes  ;  —  Noé   salvado  com 
seus  filhos   e  netos  do  diluvio  universal  cm  premio 
de  sua  fé   e  da  sua  justiça; — Moysés  despedaçan- 
do as  taboas  da  lei  ,    deixando  abandonados   a  uma 
torpe  idolatria   os  israelitas  em  punirão  de  sua  re- 
beldia;— Daniel  impassível,  c  confiado,  na  cova  dos 
]eões ,   desarmados  de  sua  fereza   cm  respeito   ao 
embaixador  de  Deus  ; — o  Salvador  do  mundo  nas- 
cendo u'um  pobre   e  desabrido  presépio  para  ensi- 
nar aos  homens  a  suportar  a  humiliação  e  os  traba- 
lhos da  vida  humana; — os  pastores  e  os  reis  ren- 
dendo homenagem   ao  Senhor   dos  céus  c  da  terra  , 
postoque  nascido   c  envolto   nas  mantilhas   da  indi- 
gência ; —  a  fugida  para   o  Egyplo  ;  —  a  bondade  e 
omnipotência   de  sua  missão  ,   ensinando  na  monta- 
nha ,  ressuscitando   o  filho    da  viuva    de  Naim;  — 
Christo   expirando   no  calvário   entre  dois  facinoro- 
sos ,    levado  ao  suplicio  pela  mais  negra  ingratidão 
a  tantas  obras  de  sua   beneficente   caridade;  —  S. 
Pedro  pregando  a  doutrina  do  divino  Jlestre  c  con- 
vertendo  3:000  judeus;  —  S.  Paulo  no  meio   dos 
sábios  no  areópago  d'Alhenas  indicando  qual  era  o 
Deus  desconhecido  á  philosophia  pagaã  —  S.  Carlos 
l$orromeu  vestido  de  sacco,  e  cingido  de  corda  pa- 
ra  aplacar  o  fiagello   da  peste  ,    c  administrando   a 
Eucharistia   aos   empestados   de  Slilão  ;  —  S.  Fran- 
cisco Xavier  ensinando   o  evangelho  aos   infiéis   á 
sombra  dos  palmares  do  Indostão;  —  o  I'.°  António 
Vieira  cathcquisando  e  civilisando  os  Índios  do  l!ra- 
sil  ;  —  S.   João   de  Deus   consagrando   sua   vida   ao 
serviço   dos  bospilaes;  —  a  rairdia    Santa  Isabel  le- 
vando no  seu  regaço   o  pão   que  cila  mesma  ia  dis- 
tribuir aos  pobres; — o  grande  rei  D.  Aflonso  Hen- 
riques prostrado  no  campo  d'Ourique  diante  do  rei 
do  céu,   do  vencedor  das  batalhas;  —  D.  João    1." 
caminhando  a  pé  até  Ouimarães  cumprindo   o  voto 
feito  á  Senhora  da  Oliveira  ;  —  o  condestavol  repar- 
tindo seus  grandes  bens  por  seus  parentes  c  amigos 
para  consagrar-se   a  uma  profissão  mais  austera    de 
virtude. —  Emfira  o  lacto  c  bom  gosto  lios  inspecto- 
res das  escholas  ,    e  asylos  ,  escolherá  deste  nume- 
ro, e  de  outros  factos  que  não  faltam  ,   os  que  mais 
adequados  pareeam  a  um  tão  louvável  lim. 

J.  C.  \.  e  C. 


AnECDOTA    I.\GLEZi. 

O  nariz,  ou  a  lei  rigorosamente  cnteníliila  á  letlra. 

QfEM  residiu  na  Allemanha  ,  e  seguiu  attenlaraente 
o  estudo  da  jurisprudência  nesse  paiz  ,  conhece  a 
sinceridade  com  que  o  sábio  allemão  pesquiza  o  es- 
pirito e  profunda  o  sentido  das  leis  e  para  peneirar 
seus  princípios  verdadeiros  sobe  a  origem  delias. 
Em  ínglalerra  acha-se  inteiramente  o  contrario:  a 
leltra  da  lei  é  tudo  ;  perante  o  texto  positivo  nada 
são  as  insj)iraçõcs  da  equidade  natural:  o  que  está 
escriplo  como  lei  é  justo,  meramente  porque  é  lei ; 
e  o  caracter  jjositivo  da  nação  britannica  descobre- 
se  na  obs;;rvancia  da  sua  legislação  da  mesma  ma- 
neira que  em  os  ncgocius  correnles  da  sua  indus- 
tria e  commercio.  —  Nos  livros  se  tem  diio  muito 
acerca  do  cxaggerado  respeito  dos  inglezes  á  lettra 
da  lei,  c  se  tem  citado  por  vezes  singulares  exem- 
plos :  o  mais  curioso  em  nosso  entender  é  o  que 
refere  Muralt.  —  Ura  homem  linha  decepado  o  na- 
riz a  outro  ;  por  este  maleficio  foi  citado  para  o 
tribunal  competente  ,  e  accusado  do  crime  de  mu- 
tilarão. O  advogado  do  réu  ,  que  bem  sabia  que  o 
facto  eslava  provado  ,  procurou  nos  diccionarios  de 
chirurgia  o  verdadeiro  sentido  da  palavra  mutila- 
ção  ,  e  viu  que  era  a  amputação  ou  destruirão  de 
um  membro  do  corpo  ;  procurando  em  seguida  a 
palavra  memlro  achou  que  não  poderia  dar-se  este 
nome  senão  áquella  parte  do  corpo  que  se  corapo- 
zessc  de  músculos,  nervos,  veias,  e  outras  muitas 
cousas,  metade  das  quaes  o  bom  do  letrado  não  di- 
visava no  nariz.  Portanto  fez  consistir  toda  a  dc- 
feza  do  seu  constituinte  em  provar  que  o  nariz  , 
sendo  destituído  de  certas  parles  essenciaes,  que 
formam  os  outros  membros  do  corpo,  não  devia 
chamar-se  nem  rcputar-se  membro .  e  que  por  isso 
o  corte  do  nariz  não  constiluia  miitUarão  á  face  da 
lei,  e  que  em  conclusão  o  seu  cliente,  não  obstan- 
te ser  repreheusivel  a  acção  que  pralicára  ,  devia 
ser  absolvido  ,  como  incompetentemente  accusado 
do  crime  de  mutilação.  O  jury  adoptou  este  pare- 
cer, c  o  (lesnarigador  ficou  quite  do  delicio  e  no 
andar  da  rua.  Mas  ainda  isto  não  é  o  mais  interes- 
sante da  historia  :  lembrou  ao  ministério  que  a  sol- 
tura do  réu  ,  pelas  consequências  prováveis  ,  amea- 
çava a  existência  de  todos  os  narizes  em  Inglater- 
ra ;  pelo  que  levou  ao  parlamento  uma  proposta 
para  determinar  o  genuino  sentido  da  lei;  uma  so- 
lemnc  deliberação  da  assemblca  legislativa  decla- 
rou que  o  nariz  era  membro  ,  c  que  os  tribunacs  e 
cidadãos  assim  o  /içassem  entendendo  e  houvessem  por 
certo  daquella  data  cm  diante. 


\Ão  ha  no  mundo  alegria  sem  sobresallo  ;  não  ba 
concórdia  sem  dissensão  ;  não  ba  descanço  sem  tra- 
balho ;  não  ha  riqueza  sem  miséria  ;  não  ba  digni- 
dade sem  perigo  ;  finalmente  não  ba  gosto  sem  des- 
gosto.—  Heitor  Pinto. 

QinM  são  os  ricos  neste  mundo?  Os  que  lêem  mui- 
to? Não;  porque  quem  tem  muito,  deseja  mais,  c 
quem  deseja  mais  ,  falta-llíc  o  que  deseja  ,  e  essa 
falta  o  faz  pobre. —  Vieira. 

O  CAMINHO  da  verdade  é  único  e  simples:  c  o  da 
falsidade  vario  c  inlinilo. — ■Amador  Arrues. 

A  iiinANinvoE  faz  parecer  os  homens  cxleriormenlc 
como  ellcs  devera  ser  interiormente. —  La  Vnnjere. 


57 


o  PANORAMA. 


2S 


JUNCO  OV  NATIO  CHINA  SZ  GVESBA 


O  Remate  da  desavença  entre  a  China  e  a  Inglater-  ] 
ra  ,  ou  para  melhor  dizer  entre  o  imperador  chim, 
mandarins  e  seus  apaniguados,  e  as  forças  que  pa- 
ra os  constranger  enviou  o  governo  britannico,  não 
podia  ser  duvidoso  para  quem  tivesse  alguns  co- 
nhecimentos geographicos  e  históricos  :  pessoas  hou- 
ve, despidas  de  prevenções,  que  logo  o  anteveram  : 
a  victoria  devia  caber  aos  inglezes.  De  toda  a  gen- 
te, quem  menos  o  podia  duvidar  era  a  nação  portu- 
p:uoza,  que  não  deve  deslembrar-se  das  façanhas  de 
sons  maiores  nas  regiões  da  Ásia  :  pertencendo  tal- 
vez mais  avantajada  gloria  a  elles  que  aos  moder- 
nos que  lá  tem  peleijado  ;  e  explicaremos  o  nosso 
dito.  —  Se  a  China  é  o  theatro  da  guerra;  os  chins 
não  estão  mais  adiantados  na  manobra  militar  ,  e 
na  construcção  das  armas  de  fogo  ,  do  que  no  tem- 
po em  que  imploraram  o  nosso  auxilio  para  lhes 
alimparmos  de  piratas  as  costas  marítimas  ,  servi- 
ço a  que  devemos  a  concessão  para  o  estabeleci- 
mento era  Macau  :  porem  os  europeus  tem  feito  nas 
armas,  e  na  strategia,  notáveis  progressos,  que  ma- 
nifestam assombrosa  superioridade,  e  por  consequên- 
cia asseguram  prósperos  os  resultados. —  Se  a  índia 
é  o  campo  dos  combates,  hoje  não  ha  lá  turcos  e  ru- 
mes tão  experimentados  e  peritos  naarte  bellica,  co- 
mo acharam  os  nossos  antepassados  que  os  iam  re- 
bater e  expulsar.  —  Portanto  concluimos  que  á  na- 

Janeiro  28—1843. 


cão  portugucza  não  põe  espanto  o  desfecho  da  luta 
entre  chins  c  inglezes  ;  a  qual  apesar  delra\ada  em 
tão  remotos  climas  tem  por  suas  consequências  com- 
mcrciaes  enlevado  a  attenção  dos  políticos  e  econo- 
mistas da  Europa. 

Lancemos  os  olhos  para  a  figura  de  um  navio  de 
guerra  chim  ,  examinemos  a  construcção  do  casco , 
consideremos  na  acção  de  suas  velas  geralmente  fa- 
bricadas de  esteira  ,  na  imperfeição  dos  aparelhos  , 
na  covardia  e  falta  de  patriotismo  dos  mareantes  e 
defensores  ,  na  orgulhosa  ignorância  dos  que  os  ca- 
pitaneara, c  ficaremos  convencidos  de  que  com  ele- 
mentos taes  não  podia  o  império  cdesíiai  depositar 
grande  confiança  em  sua  armada  ;  c  os  factos  de- 
monstraram que,  na  hora  do  accommcttimento,  vão 
era  o  apparato  de  anticipado  triurapho  ,  cobrindo- 
se  ,  como  usam  ,  de  infinitas  bandeiras  e  Uamulas 
multicores.  Pelo  que  respeita  ao  exercito  era  terra, 
á  excepção  de  poucas  tropas  tártaras  de  legitima 
casta  .  é  tudo  um  bando  sem  verdadeira  organisa- 
ção  militar  c  pouco  interessado  na  defeza  dos  pró- 
prios lares,  ou  daquelles  de  seus  compatrícios. — 
As  gazetas  tem  relatado  a  tomada  de  praças  impor- 
tantes do  império  c  o  desbarato  das  tropas  chinas 
pela  divisão  expedicionária  britannica  ;  e  no  prin- 
cipio da  campanha  deu-se  uma  batalha  naval  ,  que 
os  mesmos  papeis  políticos  igualmente  narraram  pc- 
2."  Serie  — VoL.,  II. 


.^••>^ 


2ÍÈí 


O  PANORAMA. 


A  lo  miúdo.  Elliot  commandava  somente  duas  fraga- 
tas a  3  de  novembro  de  1839,  quando  o  accommet- 
teram  trinta  embarcações  chinas  com  mais  de  qua- 
tro mil  homens  a  bordo  :  não  durou  meia  hora  a 
acção  ,  e  seis  navios  chins  foram  mettidos  a  pique  , 
o  outros  ficaram  desarvorados  ,  fugindo  o  restante 
da  frota  celestial  com  grande  precipitação  o  em  ab- 
soluta desordem. 


Beu  queber  e  mal  fazeb. 

(Memorias  insulaua^.) 


=  Í331  = 
III 

È  teima  ! 

Quem  porfia  mata  caça. 
Rifão  do  povo. 

«Não  sei  que  máu  presenliraento  mo  assalta  o  co- 
ração, presada  irmnã.  Cuido  que  esta  minha  con- 
descendência me  será  de  infeliz  succcdimcnlo. 

«E  porque  o  cuidas,  irmaã?  Acaso  tens  que  re- 
ceiar?  Não,  não  deves  faltar  já  agora  que  promet- 
testc  c  que  anciosamcnle  es  esperada. 

«Bem  sabes  tu,  Águeda,  como  eu  quiz  evitar 
este  empenho.  . .  Não  sei .  . .  como  que  advinho  al- 
gum desastre. 

«Desastre  ! — ^que  desastre?  Não  é  a  lua  vida  pa- 
ra vivè-la  assim  reclusa.  Do  mais  tens  fugido  ao 
mundo.  . . 

«Não,  de  mais,  minha  irmaã,  mormente  ha  dois 
annos  para  cá.  Que  se  terá  dito  de  mira?  como  te- 
rão interpretado  o  meu  procedimento? 

«Como  de  quem  c  tão  honesta  c  animosa  dama. 
Todos  culparam  o  excesso  e  máu  passo  de  An- 
tónio da  Gamara  ;  e  elle  mesmo  justificou  o  que 
delle  se  dizia  ,  c  fez  justiça  a  si  mesmo  ,  partindo 
|)ara  o  reino.  Por  lá  anda  clle  já  a  estas  horas  bem 
esquecido  seguramente  de  sua  loucura  e  temeri- 
dade. 

«Todavia  fallou-se,  e  fui  eu  assumpto  de  pales- 
tras e  serões  ,  nera  sempre  mui  caridosos.  .  . 

«Bagatcllas  já  passadas.  Vamos,  minha  irmaã  , 
os  nossos  parentes  e  amigos  sem  duvida  se  impa- 
cientara ,  e  —  vès?  —  até  o  teu  escudeiro,  Fernam, 
lá  está  fora  a  menear-se  como  um  possesso  ,  fallan- 
do  com  os  demais,  que  o  ouvem  de  boca  aberta. 
São  seguramente  conjecturas  que  faz  sobre  a  nossa 
demora.  Vem  ,  minha  irmaã ,  é  mister  distrahir-le  : 
vera. 

Dois  annos  eram  passados  ,  como  o  leitor  já  terá 
▼  isto.  António  da  Camará  ,  ou  fosse  convicção  de 
erro,  ou  considerações  de  animo  repousado,  ou  cm- 
lim  arrependimento  c  pejo  ,  tinha  deixado  a  ilha  e 
partido  para  Lisboa,  aonde  corria  fama  que  se  con- 
servava ainda.  O  dialogo  das  duas  irmaãs  versava 
pois  sobre  o  irem  ao  baptisado  de  um  parente  que 
vivia  na  Calheta.  Recusava-sc  D.  Isabel  como  qucra 
tão  costumada  estava  ao  seu  bom  retiro.  Instava  D. 
Águeda  ,  como  quem  tão  louvável  desejo  tinha  de 
a  ver  alegre  e  folgada.  D.  Isabel  cedeu  por  fim  aos 
rogos  lia  irmaã,  e  com  ella  se  desceu,  ataviada  cm 
som  (lo  fpsta  ,  ao  pateo ,  de  que  já  falíamos  ,  aonde 
a  esperava  um  luzido  cortejo  de  parentes  o  servos 
seus. 

Lá  estava  lambem  o  nosso  antigo  conhecido  Fer- 
nam,  que  não  faltava  por  estas  occasiões  solcmnes. 


analisando ,  comraentando  e  provando  o  sabido  e 
por  saber  ,  tudo  mui  conOdencialmcnte  ...  a  quan- 
tos encontrava. 

Era  nas  primeiras  horas  de  um  dia  mui  formoso. 
—  Cavalgaram  as  duas  damas  em  mullas  cobertas 
de  gualdrapas  de  grande  custo,  e  seguidas  por  seus 
parentes  ,  e  por  poucos  mas  escolhidos  escudeiros  , 
deram  a  andar  por  aquelles  campos  amenos. 

Na  passagem  das  terras  da  Lombada  do  Xtco  pa- 
ra a  Calheta  era  força  passar  pelas  da  Lombada  da 
serra  d'agua,  herdade  e  vivenda  de  António  da  Ca- 
mará. De  preferencia  tomara  D.  Isabel  outro  cami- 
nho que  á  vista  da  morada  do  homem ,  cujo  no- 
me lhe  recordava  a  penosa  impressão  d'uma  scena 
que  nunca  ella  esquecera  ;  mas  não  havia  meio  de 
faze-lo.  Cumpria  passar  junto  da  Lombada  da  serra 
d'agua  ,  ou  renunciar  a  fazer  sua  visita. 

Chegara  a  luzida  companhia  a  um  viso  (1)  ou 
portella,  d'onde  se  descobria  grande  porção  de  ter- 
reno.—  A  esquerda  ,  no  declive  do  serro  que  iam 
descer ,  ficavam  sobre  um  pequeno  combro  as  ca- 
sas da  Lombada  da  serra  d'agua  ,  meias  encrava- 
das em  densas  e  espessas  maltas  que  se  estendiam 
lá  para  longe  ,  e  como  encostadas  a  outro  cabeço 
mais  alto  ,  mui  abundante  era  fontes  e  cascatas  na- 
turacs,  donde  á  herdade  viera  o  nome.  Ao  ver 
aquella  morada  ,  d'onde  nenhum  rumor  sahia  ,  mu- 
da e  abandonada  ,  triste  e  como  saudosa  de  seu  se- 
nhor ,  que  lá  pelo  reino  se  andava  á  maneira  de 
desterrado,  sentiu  D.  Isabel  comprimir-se-lhe  o  co- 
ração. Apesar  de  tão  virtuosa  e  varonil ,  era  mu- 
lher ,  c  que  mulher  ha  ahi  que  não  chegue  a  per- 
doar erros  d'amor,  e,  ao  cabo,  a  corapadecer-sc 
de  quem  por  taes  erros  padece?  Tinham  passado  as 
casas  silenciosas  ,  alvejando  mclancholicamentc  en- 
tre a  maciísa  verdura,  e  eram  enlrados  n'uma  fun- 
da rodeira  (2),  guarnecida  d'um  lado  por  uns  bar- 
rancos cheios  do  balseiras  e  silvados,  e  do  outro 
pelas  matlas  de  que  acima  falíamos.  Lá  pelo  meio 
desla  rodeira  um  homem  estava  parado.  Tinha  a 
fronte  descoberta  ,  ondcando-lhe  os  cabellos  negros 
e  luzidios  era  roda  das  faces  gentis  ,  mas  queima- 
das. Batia-lhe  o  sol  de  chapa  sem  que  elle  pare- 
cesse presentir-lhe  o  ardor.  Tinha  os  dentes  cer- 
rados com  força  ,  alvejando-lhe  a  travcz  dos  lábios 
semi-ahertos ,  as  feições  contrahidas  ,  e  o  peito  an- 
elado como  por  algum  grande  temor  ou  esperança. 
I)issera-se  que  a  face  da  sua  vida  ia  mudar,  tama- 
nha era  e  tão  visivel  a  sua  agitação.  Vestia  desali- 
nhadamente  ,  e  as  peças  mais  notáveis  no  todo  do 
seu  trajar  eram  uma  boa  couraça  de  Milão  ,  e  uma 
forte  espada  pendente  ao  lado  ,  segura  por  ura  cin- 
to de  couro  guarnecido  de  chaparia  do  ferro  ,  ao 
qual  estava  lambera  presa  uma  comprida  adaga  de 
punho  singelo  mas  valente.  \  primeira  vista  nin- 
guém julgaria  acompanhada  a  estranha  personagem 
que  descrevemos  ,  mas  quem  melhor  reparasse  no 
continuo  mecher  e  remecher  da  folhagem  da  mal- 
ta ,  c  sobretudo  no  súbito  a|)pnrrcimenlo  de  algu- 
mas cabeças  espreitando  por  entre  as  arvores ,  e 
guarnecidas  de  luzentes  morriões  ,  para  logo  con» 
«'luiría  que  andava  por  alli  sorprcsa  ,  ou  ardil  tra- 
mado por  muitos. 

Entretidos  cm  sua  conversa ,  e  muito  mais  por 
causa  d' um  desvio,  não  deram  os  nossos  caminhan» 
tes  pelo  ameaçador  aspecto  do  homem  que  lá  esta- 
va no  caminho,  se  não  quando  próximos  delle  che- 
garam.   Um  grito  geral   de  espanto  ,    se  não   do  tc- 


(1)  Cume,  lo^Mr  emiiienlo. 

(2)  Carril ,  cammlio  para  carro. 


o  PANORAMA. 


S7 


mor ,  sabiu  então  de  todas  as  bocas  ao  dar  por 
eJle. 

Era  António  Gonçalves  da  Camará. 

Com  olhos  irosos  mediu  por  algum  tempo  as  duas 
irraaãs  e  a  sua  commiliva  que  ,  parados  c  espanta- 
dos lodos ,  tinha  ante  si ,  saboreando  o  prazer  de 
os  ver  assim  embaraçados  com  sua  [irescnça.  Pas- 
sado o  primeiro  instante  d'assombro  os  cavalleiros , 
parentes  de  D.  Isabel ,  ainda  que  quasi  desarma- 
dos ,  tomaram  a  dianteira  e  arrancaram  para  Antó- 
nio da  Camará,  que  nem  um  passo  se  arredou.  Fo- 
ra desigual  o  partido  para  este  ,  se  ao  mesmo  tem- 
po .  grande  copia  de  homens  armados  de  lodo  o 
ponto  ,  sahindo  da  malta  e  cnfílcirando-se  atraz  do 
'  1  senhor  da  Lombada  da  serra  d'agua ,  não  o  toruas- 
'  )    sem  assim  para  os  de  D.  Isabel. 

Orgulhoso  e  arrogante  adiantou-se  então  António 
da  Camará,  e  pondo-se  immovel  com  os  braços  cru- 
zados diante  de  D.  Isabel  ,  que  nem  neste  extremo 
sentira  soçobrar-lhe  o  animo  ,  bradou  com  voz  aba- 
hida  de  raiva  e  de  amor  : 

aParecia-vos  avós,  senhora  prima ,  que  nunca 
mais  nos  veriaraos?  Pensáreis  ler-me  burlado  e  zom- 
bado a  vosso  sabor,  sem  que  mais  nossos  rostos  e 
vistas  se  encontrassem?  Olhai  bem  para  mim. — 
Quem  c  agora  aqui  o  mais  poderoso.  Não,  minha 
prima,  não  se  dirá  de  António  da  Camará  que  uma 
mulher  o  venceu  cm  animo  e  astúcia.  Dois  annos 
são  já  andados.  — Julgáreis  que  Ião  pouco  era  mis- 
ter para  abafar  o  amor  e  a  raiva  que  me  faziam 
guerra  no  coração?  Não,  senhora.  Nestes  dois  an- 
nos não  houve  dia  em  que  eu  não  dissesse  :  «silen- 
cio ,  meus  ofTcndidos  brios  ,  silencio  ,  meus  ultra- 
jados affeclos  ,  silencio  ,  minha  alma  tão  ardente  , 
vossa  hora  hadc  chegar-vos  lambem  ; »  e  a  cada 
momento  que  passava  eu  sentia  o  sangue  fervcr-me 
cada  vez  mais  impaciente ,  que  o  fim  ,  o  Ião  dese- 
jado termo,  que  eu  próprio  assignára  aos  meus  pro- 
jectos, se  ia  passo  a  passo  aproximando.  Ei-lo  che- 
gado a  final.  Tive  noutes  ,  sem  somno ,  pensando 
no  publico  ultrage  que  de  vós  recebi ,  tive  dias  e 
mezes  de  amargura  e  desespero,  lembrando-me  que 
não  éreis  um  homem  a  quem  podesse  ir  pedir  con- 
tas da  minha  injuria  ,  lavando  com  o  seu  sangue  a 
nódoa  da  minha  face. 

r  Nódoa  só  vo-la  fará  o  que  ides  sem  duvida  pra- 
ticar. 

"Escutai-mo,  senhora  prima,  que  lambem  me 
chegou  a  minha  vez  de  pedir-vos  que  me  escuteis. 
live  momentos  de  fraqueza,  em  que  julguei  a  mor- 
te o  caminho  nnico  para  sahir  de  tão  apurado  tran- 
ce ,  mas  por  fim  a  mim  mesmo  me  venci ,  c  acabei 
comigo  cm  vingar-me  ,  pelo  modo  com  que  hoje  o 
farei.  Crestes  que  nunca  voltaria.  —  Voltei,  sem 
que  o  suspeitásseis.' — Eis-me  aqui,  e  assim  como 
de  vossa  casa  sahi  á  força,  sem  armas  para  me  dcf- 
fender  ,  assim  entrareis  vós  para  a  minha  sem  es- 
cudeiros para  vos  guardarem.  Então  éreis  vós  a  for- 
te, a  bem  defendida,  e  cu  o  trajado  de  festa  e  sem 
defeza.  —  Hoje,  senhora  prima  —  bem  o  vedes  —  c 
de  todo  o  ponto  o  contrario,  sois  vós  a  indefeza  e 
ea  o  poderoso. 

Dizendo  ,  com  uma  das  mãos  levou  da  fiel  espa- 
da ,  c  com  a  outra  travou  das  rédeas  da  mulla  em 
que  D.  Isabel  cavalgava  ,  arremettendo  com  os  es- 
cudeiros e  cavalleiros  desta  ,  que  apesar  de  muito 
menos  cm  numero  e  faltos  de  armas  suíTicientcs , 
já  se  achavam  dispostos  a  perder  as  vidas  cm  defe- 
za da  illustre  viuva.  Seguiam  a  António  da  Cama- 
rá todos  os  seus  bem  armados  e  comentes  pela  des- 


forra que  iam  ler.  —  De  uma  c  outra  parte  havia 
emulações  excitadas,  raivas  e  ódios  accordados  ,  o 
resultado  devia  portanto  ser  sanguento  c  terrivcl , 
mormente  para  os  de  D.  Isabel,  se  a  varonil  senho- 
ra ,  com  um  gesto  imperioso  c  significativo ,  não  0- 
zcsse  abrir  passagem  ao  seu  inesperado  conductor , 
que  atravessou  por  entre  clles  estupefactos,  com 
gesto  ameaçador ,  arrogante  c  decidido ,  seguido 
pelos  da  sua  facção  a  sussurrarem  pragas  mal  dis- 
farçadas. O  numero  e  as  armas  destes  não  menos 
que  o  mandado  de  D.  Isabel  influiu  na  prompta 
obediência  dos  seus  servos  e  amigos. 

Verdade,  verdade,  cm  lodos  os  tempos  a  morte 
foi  negra. 

E  era  o  que  pensava  o  verboso  escudeiro  ,  Fcr- 
nam  ;  cm  quanto  António  da  Camará  tomava  ufano 
o  caminho  de  suas  casas ,  com  a  preciosa  prca  ;  P. 
Águeda  se  lastimava  ;  e  os  demais  se  esbravejavam. 
Com  o  modo  encolhido  c  envergonhado  de  um  ho- 
mem ,  que  julgando-se  um  Ajax  ,  acha  por  fim  qu<» 
não  passa  d'ura  Tersithes ,  Fernam  murmurou  Ui 
comsigo  : 

o  Por  esta  não  esperava  eu  1 » 

[Continuar-se-ha.] 


Obsebvações  gbâmhaticaes. 

Uma  das  muitas  vantagens  das  polygraphias,  do  gé- 
nero do  Panorama  ,  c  de  servir  de  armazém  ,  cm 
que  cada  um  possa  depositar  as  idcas  que  lhe  oc- 
corrcrcm  ,  e  cuja  publicação ,  parecendo-lhe  poder 
ser  útil,  seria  impraticável  por  outro  modo  ;  já  por 
serem  idéas  destacadas,  já  porque  sendo  em  peque- 
no numero  não  podem  formar  um  corpo  de  doutrina. 

Isto  ó  o  que  nos  acontece  com  as  idéas  soltas  que 
desejariamos  communicar  ao  publico  ,  para  serem 
por  elle  julgadas,  e,  no  caso  de  o  merecerem,  ela- 
boradas pelos  mestres  da  arte  ;  a  fim  de  servirem 
algum  dia  a  formar  a  tão  desejada  grammatica  pbi- 
losophica  da  lingua  porlugueza. 

Já  no  K.°53  do  Panorama  oncrccemos  aos  nossos 
compatriotas  as  três  regras  que  nos  parecem  suíR- 
cientes  para  se  conseguir  entre  nós  uma  orthogra- 
phia  uniforme  e  fundada  cmprincipios  deboarasão. 

Não  quizemos  dizer  ,  que  aquellas  regras  possam 
servir  a  todo  o  mundo  :  pois  que  nem  todos  sabem 
se  tal  ou  tal  palavra  é  geralmente  cscripla  de  uni 
modo  uniforme  por  todos  os  andores  distinctos; 
nem  todos  sabem  applicar-lhc  a  regra  da  analogia  ; 
e  menos  ainda  marcar  qual  seja  a  sua  etymologia. 

A  nossa  mente  é  ,  que  se  os  homens  doutos  ado- 
ptarem estas  trcs  regras  e  as  seguirem  ,  na  mesma 
ordem  em  que  as  propomos ,  dentro  em  mui  pouco 
tempo  se  estabelecerá  entre  elles  uma  orthograpbia 
uniforme,  e  á  sua  imitação  entre  as  pessoas  que  não 
tendo  assaz  conhecimentos  para  fazer  um  uso  acer- 
tado daqucUas  ,  nem  de  outras  nenhumas  regras , 
só  lhes  cumpre  seguir  o  exemplo  dos  primeiros. 

Hoje  daremos  algumas  definições  que  ou  faliam 
nas  grammaticas,  ou  são  tão  inexactas  que  só  podem 
ser\ir  para  corromper  as  noções  elementares  (ia 
SC  iene  ia.  

As  línguas  constam  dephrascs,  estas  depala\ras, 
as  palavras  de  syllabas,  e  as  syllabas  de  sons  a  que 
correspondem  na  escripta  certas  lettras. 


28 


O  PANORAMA. 


Seria  bom  que  a  cada  som  correspondesse  uma 
só  lellra  ,  e  que  a  cada  Itttra  não  correspondesse 
senão  um  único  som. 

'São  aconlcce  porem  assim  em  nenhuma  das  lín- 
guas que  conhecemos. 

Alem  disso  ha  muitos  mais  sons  do  que  letíras  ; 
c,  mesmo  nas  mais  pequenas  nações,  a  pronuncia 
de  cada  palavra  varia  quasi  tanto  como  nellas  ha 
não  só  de  províncias  ou  decommarcas,  mas  de 
bairros  e  de  classes  de  cidadãos  em  uma  mesma 
cidade. 

Os  sons  de  que  se  compõe  a  falia  humana  distin- 
gucm-se  pelos  órgãos  da  voz  que  concorrem  para  a 
sua  formação. 

São  estes  órgãos  —  a  garganta  ,  o  paladar  ,  as 
gengives  ou  niaxillas  ,  os  dentes  ,  os  beiços  ou  la- 
I)ios,  e,  combinanjo-se  com  cada  ura  delles,  a  lín- 
gua. 

O  complexo  de  todos  estes  órgãos  parcíaes  cons- 
tilue  o  urgão  geral  da  falia. 

Aos  sons  que  provém  do  órgão  geral  ,  sem  um 
concurso  especial  de  nenhum  dos  órgãos  parcíaes , 
da-se-lhes  o  epitheto  de  vugaes. 

Aquelles,  em  cuja  producção  se  faz  sentir  a  acção 
especial  d'algura  dos  órgãos  particulares,  da-se-lhcs 
o  epitheto  de  consoantes. 

Aos  sons  vogacs  correspondem  as  Icllras  vogacs 
a  ,  e  ,  i ,  o  ,  u  ,  y  ,  oM  ô. 

Quando,  ao  emittir  um  som  vogal  comprimimos 
as  fossas  nasacs,  de  modo  que  o  arexpellido  só  pas- 
se pela  boca  c  não  pelo  nariz  ,  da-sc-lhes  o  epithe- 
to de  nasaes  ,  taes  são  ,  am  ,  an  ,  ã  ,  em  ,  cn  ,  im  , 
in  ,  om  ,  on  ,  õ  ,  um  ,  un  ,  yra  ,  yn. 

Aos  sons  consoantes  correspondem  as  Icltras  con- 
soantes— 

g,  c,  k,  q  guturacs;  porque  o  primeiro  órgão 
parcial ,  a  garganta  ,  concorre  especialmente  para 
a  sua  producção. 

Í  Palatinas 
dar. 

ou  rr'}  MaxiUares :  órgão  especial  as 

J  gengives. 
Labiacs  :  órgão  especial  os  lábios. 
Labio-dcnlaes :  órgãos  especiaes  os  lábios 
e  os  dentes. 

O  som  vogal  pôde  ser  mais  ou  menos  agudo,  mais 
ou  menos  mudo. 

Dá-se  pois  a  nome  ie  áiphtJiongo  ao  som  composto 
de  dois  sons  vogaes  ,  um  agudo  e  o  outro  mudo  , 
taes  são  :  —  ae  ,  aí ,  ao  ,  au  ,  ay 


Ih 

,n 

li 

eh 

.  j 

,  X 

z  , 

s  . 

c, 

ou 

n  , 

1, 

r , 

rh 

d  , 

t 

1>. 

m 

,  b 

— 

f. 

v- 

-L 

ab( 

órgão  especial  o  pala- 


ei, 

eo, 

eu 

-  ey 

lU 

oe. 

01  , 

(•) 

oy 

Ul  , 

ãe  , 

uy 

ãi  , 

ão 

,  am 

eim 

,  em  , 

em 

oe  , 

Ol. 

Os  diphthongos  distingucm-sc  em  perfeitos  e  im- 
perfeitos. 

São  perfeitos  aquelles  cm  que  o  som  vogal  agudo 
se  destaca  fortemente  do  outro  som  vogal  mudo : 
exemplos  :  suliiu  ,  riu  ,  rio  ,  andarão. 

São  imperfeitos  aquelles  em  que  o  primeiro  som 
é  quasi  Ião  mudo  como  o  segundo  :  exemplos :  du~ 
bio  ,  alrio  ,  andaram. 

Podem,  alem  disto,  ser  os  sons  compostos  de  dois 
ou  mais  sons  consoantes  cora  um  som  vogal  simples 
ou  diphthongo  ,  taes  como  — 

(•)     liste  mesmo  som  cxprime-sc  muitas  Twes  aisim;  fi. 


bda 

,  bde  &  cl  ....  dr,  11  ,  gl ,  mn 

bl 

cn                 fr,  gn 

br 

cr                        gr 

et 

Pl 

SC        ti 

pn 

Ir 

pr 

Chama-sc  syllaha  a  todo  o  som  vogal  só  ,  bem 
como  o  que  é  seguido ,  precedido  ,  ou  seguido  e 
precedido  de  sons  consoantes  ,  simples  ou  compos- 
tos. N'uma  palavra  composta  de  mais  de  um  som 
vogal  simples  ou  diphthongo,  ha  tantas  syllabas , 
quantas  são  as  suas  vogaes,  e  cada  syllaha  consta 
da  sua  vogal ,  da  consoante  simples  ou  composta 
que  a  precede  ;  e  também  da  que  se  lhe  segue ,  s» 
não  houver  depois  outra  vogal  ;  porque,  havendo-a, 
pertence-lhe  a  consoante  que  a  precede. 

Silvestre  Pinheiro  Ferreira. 


FSDRO    HVNES. 

A  EFFiGiE  de  varão  tão  insigne  nas  sciencías,  como 
foi  o  famoso  mestre  de  dois  homens  merecidamente 
celebres  ,  o  infante  D.  Luiz  filho  de  D.  Manuel ,  e 
o  vice-rei  da  índia  D.  João  de  Castro,  requeria  la- 
ta informação  de  sua  biograpiíia  e  profundos  escrí- 
ptos ,  por  isso  que  a  notoriedade  de  seu  nome  em 
toda  a  Europa  é  um  brasão  porluguez  ,  apregoado 
poios  sábios  mais  distinctos  ,  d'entre  os  quaes  ,  por 
via  d'exemplo  ,  citaremos  só  dois  :  —  Montucla, 
Histoire  des  Mathcm.  tom.  1."  part.  3."  liv.  3.°; 
Bailly  ,  Histoire  de  VÁstronom.  mod.  lom.  1.°  pag. 
368  e  370. —  Escacas  são  porem  as  particularida- 
des sabidas  de  sua  vida  publiia  e  domestica  ;  e  por 
outro  lado  ,  para  tratar  fimdaiuenlalraente  do  méri- 
to de  cada  uma  de  suas  obras  ,  do  valor  que  tem 
cm  relação  á  epocha  do  escriptor,  e  da  influencia 
que  tiveram  no  futuro  desenvolvimento  c  progresso 
dasciencia,  era  mister  tecer  uma  dissertação,  alheia 
do  intuito  do  nosso  jornal  ,  superior  ao  cabedal  de 
nossos  conhecimentos,  e  porventura  inútil  e  enfa- 
donha para  o  máximo  numero  de  leitores. —  Alejn 


o  PANORAMA. 


29 


de  que,  quanto  aos  homens  de  racdiocre  instrucção 
convém  saber  tocante  ao  illuslrc  portugucz  ,  Pedro 
iSiincs  ,  fica  expendido  cm  dois  artigos,  assim  mes- 
mo nada  breves  ,  a  pag.  17i  e  178  do  vol.  5.°  da 
Serie  1.'  deste  nosso  semanário.  Bemquizemos  en- 
tão acompanhar  a  noticia  com  o  retrato  de  Nunes , 
mas  não  podendo  have-losatislizcmo-nos  com  a  men- 
ção das  obras  ,  c  os  apontamentos  mais  certos  da 
vida  (iaquelle  que  temos  por  titulo  reconhecido  da 
cloria  da  pátria.  Agora,  possuidores  do  transum- 
pto,  que  na  precedente  gravura  reproduzimos,  tam- 
bém nos  limitámos  a  commeniorar  novamente  o  no- 
me do  grande  malhematico  portugucz.  A  quem  mais 
desvcladaniente  pesquizar  o  âmago  de  substancial 
doutrina,  que  este  raro  engenho  derramou  por  seus 
livros,  forçoso  6  folhea-los  e  medita-los  ;  os  que  tão 
somente  quizercm  conhecer  as  matérias  de  que  cl- 
les  tratam,  e  qual  é  a  sua  transcendência  e  impor- 
tância ,  consultem  um  escripto  de  outro  portugucz, 
[^nosso  contemporâneo  e  também  porsciencia  afama- 
do] :  Ensaio  histórico  sobre  a  origem  c  progressos  das 
Matliematicas  cm  Portugal ,  dado  á  luz  em  Paris  por 
Francisco  de  Borja  Garção  Stocklcr  ,  que  morreu 
barão  daVilla  da  Praia.  Este  sábio  diz  ahi ,  a  pag. 
29  ,  que  Pedro  Nunes  é  o  «...  gcometra  maior  que 
as  Hcspanhas  tem  produzido  ,  e  incontestavelmente 
iim  dos  maiores  que  no  século  1G.°  íloreceram  na 
Europa. 

Concluiremos  com  um  extracto  do  mesmo  Ensaio, 
porque  o  cremos  de  summa  importância. —  «É  nes- 
ta obra  também  [falia  do  tratado  dos  crepúsculos] 
que  o  nosso  geometra  deu  pela  primeira  vez  a  idca 
de  uma  elegantíssima  divisão  ou  graduação  do  as- 
trolábio, por  meio  da  qual  se  podem  avaliar  as  al- 
turas e  distancias  dos  astros  até  minutos  e  segun- 
dos ,  ainda  que  no  limbo  do  instrumento  se  não 
achem  marcados  mais  que  os  graus;  divisão  que 
udraitte  uma  simplificação  assaz  obvia  ecom  a  qual 
ainda  se  usa  nas  alidadas  de  todos  os  instrumentos 
astronómicos,  que  servem  para  medir  distancias  an- 
gulares. Se  o  auctor  desta  simplificação  foi  o  mes- 
mo Pedro  Nunes  ou  Pedro  Vcruier  ,  que  pela  pri- 
meira vez  a  publicou  por  escripto  em  Í631,  é  ques- 
tão que  admitte  argumentos  por  uma  e  outra  par- 
te :  o  que  porem  de  nenhuma  sorte  se  pôde  contes- 
tar é  que  até  ha  bem  poucos  annos  não  havia  um 
só  livro  de  astronomia,  nem  um  só  instrumento  as- 
tronómico, em  que  esta  divisão  tivesse  outro  nome 
senão  o  de  Aonius ,  derivado  do  appellido  Nunes 
do  nosso  geometra  ;  e  que  ainda  quando  Vernier 
fosse  sem  duvida  o  inventor  da  simplificação  men- 
cionada ,  não  havia  rasão  bastante  para  alguns  as- 
trónomos modernos  pertenderem  mudar-lhe  o  nome 
de  Xnnius  em  o  de  Verdier;  quando  a  primeira 
idéa  de  avaliar  as  partes  menores  das  marcadas  na 
graduação  dos  instrumentos  é  indubitavelmente  de- 
vida a  Pedro  Nunes ,  e  mil  vezes  mais  engenhosa 
do  que  a  segunda,  que  daquella  se  deriva  cora  ex- 
trema facilidade. 


USOS  E  COSTl^ES  DE  POVOS. 

Recentes  observações  n'cm  domingo  em  Londres. 

Um  observador  perspicaz  ,  e  de  agudo  engenho  ,  ao 
mesmo  tempo  escriptor  facil  c  ameno  ,   contou   ao 
publico  ,   ha  dois  annos  ,  as  anecdotas  ,  que  da  lin- 
guagem franceza  trasladámos  agora. 
Tiuha  eu  ás  oito  horas  ouvido  aiissa ,  segundo  o 


meu  rito,  e  cumprido  csle  dever  religioso  assen- 
tei boamente  que  podia  ,  como  nos  dias  anteriores 
e  não  obstante  ser  domingo ,  proseguir  nos  hábitos 
a  que  estou  costumado  todas  as  manhaãs.  Encami- 
nhei-me  ao  botequim  ,  dito  Vercy  ,  para  almoçar  ; 
pasmei  de  achar  a  porta  ainda  fechada,  bati ;  abriu- 
se  uma  grctinlia  desconfiadamente  e  com  mysteri<i 
e  perguntaram.- — -Que  quer  41  senhor?.  .  —  Essa  é 
boa  '.  (Juero  almoçar.  .  .  —  Não  pódc  ser  ,  senhor  ; 
c  exactamente  a  hora  do  sermão. —  Será  para  a  vos- 
sa pessoa;  mas  eu  que  já  ouvi  missa  estou  liber- 
to, e  creio  que  posso  almoçar.  .  .  —  Será  onde  vos 
aprouver  menos  nesta  casa:  dai-me  licença  de  cer- 
rar a  porta  ,  porque  se  a  vissem  assim  mal  aberta 
leria  de  pagar  uma  enorme  multa.  —  E  a  porta  l'e- 
chou-se. 

Ora  faça-se  idéa  da  tolerância  anglicana  saben- 
do-se  que  quando  o  pastor  protestante  prega  o  seu 
sermão,  todos  os  catholicos,  judeus,  scismaticos  , 
e  musulmanos  ,  estão  obrigados  ,  para  almoçarem  , 
a  esperar  pacientemente  que  se  acabe  a  pregação  , 
com  a  qual  nada  tcem  ,  nem  lhes  importa. 

Passeava  eu  pela  rua  ,  via  todas  as  portas  abso- 
lutamente fechadas,  edificava-me  a  observância  una- 
nime da  solemnidade  do  domingo  :  acertou  de  pas- 
sar um  radical  do  meu  conhecimento  ,  e  dissc-me. 
—  Não  ouviu  o  pregão  daquella  mulher  que  vai 
passando?. — Ouço,  mas  não  a  entendo.  —  E  uma 
vendedeira  que  apregoa  peixe  :  creio  que  sabeis 
que  ao  domingo  e  á  hora  do  sermão  ninguém  abri- 
rá a  poria  para  comprar.  —  Então  porque  perde  o 
tempo  em  apregoar?  —  Eu  explico;  é  porque  nós 
radicacs  lhe  pagámos  para  apregoar.  Guardar  o  do- 
mingo é  cousa  muito  dos  nossos  costumes,  mas  ac- 
crescentaram-lhe  uma  coacção  legal  ,  que  nós  e  to- 
dos os  homens  de  bom  juízo  julgamos  adversa  á  li- 
berdade constitucional.  Afim  de  podermos  levar  es- 
ta questão  ao  parlamento,  expedimos  pelas  ruas  al- 
guns bufariíihciros  c  vendedeiras  ambulantes  ,  á 
espera  que  a  policia  os  agarre  como  infractores  das 
posturas  e  observancias  domingueiras  :  se  isto  acon- 
tecer, os  apprehendidos  devem  protestar ,  e  fazer 
ura  requerimento  que  a  opposição  hade  sustentar 
vigorosamente.  Porem  o  ministério  ,  que  suspeita  a 
trapaça  e  quer  evitar  o  ir  a  questão  ás  camarás  , 
deixa  apregoar  como  vedes  c  faz-se  mouco.  Mas 
corra  o  tempo  ,  que  se  continuar  a  ler  os  ouvidos 
tapados  hade  chegar  ao  rego  ;  seguiremos  pela  pis- 
ta os  pares  eeclesiasticos  ,  e  eu  ,  que  vos  estou  fal- 
lando,  sou  capaz  de  mandar,  um  destes  domingos, 
commelter  á  compra  um  salmão,  ou  um  rodovalho, 
ao  muitíssimo  reverendo  arcebispo  de  Cantuária  ; 
toma-!o-ha  ,  e  veremos  se  tamanho  escândalo  [uo- 
voca  ou  não  provoca  a  desejada  discussão. 

Finalmente,  ás  duas  horas  da  tarde  ,  Deus  lou- 
vado ,  estavam  acabados  todos  os  sermões  na  am- 
plíssima cidade  de  Londres,  c  pude  com  effeito  al- 
moçar sem  oITender  ao  céu,  nem  á  igreja  anglica- 
na. À  sabida  do  botequim  fui  passear  a  Rcgcnt- 
Park.  Por  ambos  os  lados  da  lameda  principal,  es- 
tavam a  espaços  armadas  algumas  mesas ,  e  do  al- 
to de  cada  uma  delias  um  individuo  arengava  ao 
troço  de  gente,  grupada  ao  redor,  sem  que  a  maio- 
ria dos  passeanles  fizesse  caso  disso.  —  Que  estão 
vendendo  aquelles  homens?  —  disse  para  o  meu 
companheiro. — Aquelles  homens  nada  vendem  ;  são 
pregadores  religiosos  determinados  a  converter  os 
Ímpios ,  e  que  os  não  deixara  ,  nem  sequer  no  pas- 
seio.» Approximando-me  ,  reconheci  a  verdade  da 
resposta  do  meu  amigo,  e  o  que  me  pareceu  mais 


3?) 


O  PANORAMA. 


notável  foi  a  polemica  que  ás  vezes  se  ateava  entre 
o  discursador  o  seus  ouvintes.  Não  gostei  disto,  e 
relirci-me. 


Idéas  históricas  sonnE  cadeias  (•). 

«  O  QVF.  faz  maior  honra  a  alguns  estados  da  fe- 
derarão americana  é  a  reforma  do  código  criminal, 
a  conversão  das  cadeias  cm  oílicinas  de  trabalho , 
e  a  dos  criminosos  cm  operários  úteis,  que  são  sus- 
ceptíveis de  tornar  a  entrar  no  seio  da  sociedade 
depois  de  ter  satisfeito  ás  condições  exigidas.  É  o 
estado  da  Pcmilvania  quem  deu  o  exemplo  ;  o  da 
3S[oi'a-Yorck  o  seguiu,  e  em  ultimo  logar  os  da  Yir- 
ginia  e  do  Massachmsct .  Dezcscte  annos  d'cxpcricn- 
cia ,  depois  do  estabelecimento  da  cadeia  de  VHa- 
ãelfia ,  c  pouco  mais  ou  menos  doze  annos  quanto 
á  de  Nova-Yorck ,  tem  sido  coroados  com  os  mais 
felizes  resultados. 

o  A  legislatura  da  Pensilvânia  aboliu  a  pena  de 
morte  para  todo  o  crime,  excepto  para  o  assassínio 
no  primeiro  grau.  A  de  Nova-Yorck  comprchendeu 
nesta  excepção  osfalsarios,  c  os  falsificadores  de 
moedas.  O  objecto  do  castigo  é  a  emenda  do  cri- 
minoso procurando  por  todos  os  meios  próprios  Ira- 
3e-lo  ao  pesar ,  ao  esquecimento  dos  seus  antigos 
hábitos,  e  a  fazer  pelo  trabalho  uma  reparação  com- 
pleta á  sociedade.  Para  este  effeito  se  tem  imagi- 
nado diversos  meios  ,  cuja  influencia  sobre  o  moral 
c  sobre  o  physico  é  sufTicientementc  conhecida  pe- 
los physiologislas ,  e  pelos  observadores  do  ho- 
mem. 

«Estes  meios  são  —  1."  a  reclusão  solitária  n'um 
quarto,  um  regimen  dietético  particular ,  e  o  si- 
lencio ;  —  2."  Depois  de  um  certo  tempo  a  admis- 
são dos  criminosos  aos  trabalhos  cujas  officinas  es- 
tão distribuídas  por  classes :  —  3."  A  applicação 
felizmente  calculada  de  certas  máximas  para  fazer 
.sentir  ao  homem  a  sua  dignidade,  e  a  necessidade 
do  trabalho  que  importa  a  cada  um  :  —  4.°  A  con- 
tabilidade para  o  rendimento  deste  trabalho:  —  5." 
A  extrema  regularidade  nos  cuidados  que  se  refe- 
rem ao  aceio  geral  e  pessoal :  —  6.°  A  ordem  da 
comida,  a  do  retiro  e  a  dodescanço:  —  7.°  O  exer- 
cício religioso. 

«Far-se-ia  diíficnltosamenle  uma  idéa  da  ordem 
admirável  que  reina  nestes  logares  ,  que  se  reputa- 
riam antes  conventos  erigidos  era  manufacturas  do 
que  em  cadeias.  Tudo  se  acha  disposto  de  tal  mo- 
do que  ha  alli  a  maior  segurança,  c  se  previne  a 
evasão  dos  condemnados.  Todas  as  oílicinas  estão 
n'uma  actividade  constante.  Elias  são  compostas  de 
tecelões  ,  de  alfaiates  ,  de  çapatoiros  ,  de  marcenei- 
ros ,  de  torneiros,  de  relojoeiros,  de  fabricantes  do 
pregos,  de  culeleiros  ,  de  serradores  de  mármore, 
c  de  muitos  outros  ollicios. 

«Quem  poderia  imaginar  que  se  conseguiu  fazer 
observar  entre  os  trabalhadores  um  silencio  absolu- 
to? Nunca  gritam  ,  nem  cantam,  e  nem  podem  res- 
ponder ás  perguntas  dos  estranhos.  Não  lhes  ó  con- 
cedido chamar  uns  aos  outros,  excepto  por  causa 
dos  instrumentos  de  que  tom  precisão.  Eu  fiz  a  cx- 
liericiicia  disto  na  fabrica  dos  pregos,  que  é  a  mais 
considerável  c  a  mais  productora  ,  na  presença  de 
um  guarda  que  me  accompanhava.  Netdium  operá- 
rio respondeu  ás  minhas  jicrguntas.  Alguns  destes 
condemnados  tem  confessado  ,  que  (luercriam  antes 
soffrcr  a  morte   do  que  serem  obrigados   a  este  si- 

(•)     Concluído  <le  pag.  423  do  n."  53  desta  8.*  Serie-. 


lencio  e  ao  trabalho.  O  que  recusasse  estar  por  is- 
to,  ou  o  que  perturbasse  a  ordem  estabelecida,  se- 
ria mandado  para  ura  quarto  solitário  e  submeltido 
a  um  regimen  severo,  que  de  ordinário  consiste  em 
farinha  de  maiz  fervida  com  raelasso  e  agua  ;  per- 
deria alera  disso  a  sua  parte  do  rendimento  dos  tra- 
balhos, e  se  lhe  levariara  era  couta  as  despczas  fei- 
tas durante  a  sua  suspensão. 

«As  mulheres  não  tem  communicação  alguma  com 
os  homens,  e  o  seu  regimen  é  um  pouco  differente. 
Asseiilou-se  não  dever  prohibir-lhes  o  fallar :  ellas 
se  occupam  em  cozer,  em  lavar,  em  preparar  o 
cânhamo,  o  linho,  o  algodão,  em  cardar,  em 
fiar ,  &c. 

«O  rendimento  dos  trabalhos  dos  condemnados  6 
destinado  para  pagar  as  despezas  da  captura  c  do 
processo,  os  objectos  roubados,  a  multa  cm  pro- 
veito do  estado,  o  sustento ,  o  vestido  ,  as  ferra- 
mentas ,  os  ordenados  dos  empregados  e  a  conser- 
vação da  casa.  O  cofre  do  estado  adianta  as  despe- 
zas ,  e  muilas  vezes  o  governo  local  perdoa  a  mul- 
ta. Ha  condemnados ,  cujo  trabalho  ó  de  tal  sorte 
productor  que  podem  ainda  mandar  dinheiro  ás 
suas  familias.  Na  occasião  dos  descontos  se  lhes 
faz  conhecer  o  excedente  liquido  do  producto  da 
venda  dos  objectos  mainifacturados ,  depois  de  de- 
duzidas as  supraditas  despezas. 

«Agora  perguntarão  como  c  que,  tratantes,  «ce- 
lerados cobertos  de  crimes  ,  tem  podido  converter- 
sc  cm  alguns  annos?  Ate  que  ponto  se  pôde  contar 
com  as  suas  promessas  para  consentir  em  restituir- 
Ihcs  a  liberdade?  Quaes  são  os  seus  abonadores 
para  com  a  sociedade?  Depois  do  conhecimento 
m  lis  ou  menos  profundo  do  coração  humano ,  não 
ha  uma  quasi  certeza  de  que  clles  recahirão  nos 
mesmos  vicios?  Os  fundadores  tem  previsto  todas 
as  ohjecçõ:s  ,  e  a  experiência  ,  mais  forte  que  os 
raciocínios,  já  tem  respondido  cm  favor  do  novo 
syslema. 

«Resulta  das  listas  comparativas,  formadas  de- 
pois das  ultimas  mudanças  feitas  no  código  crimi- 
nal ,  que  os  crimes  tem  diminuído  pouco  mais  ou 
menos  pela  ametade ,  e  que  um  pequeníssimo  nu- 
mero de  criminosos  tem  sido  condemnados  em  con- 
sequência de  reincidência.  D 

Tal  é  o  maravilhoso  systeraa  que  aquelles  gover- 
nos tem  adoptado  ,  c  que  outros  observadores  co- 
mo La  Rocliofoncaxdd-Liancourl  ,  c  Roberto  J.  2'urn- 
butl  tem  ampla  c  inleressantemente  descripto  e  con- 
firmado. Sua  utilidade  está  demonstrada  pela  ex- 
periência .  e  os  governos  que  a  desprezarem  co- 
l)rcni-se  do  opprobrio  mais  abominável  e  odioso.  A 
leitura  superficial  do  que  levamos  dito  talvez  exci- 
te a  reflexão  de  que  similhantes  casas  devem  antes 
ser  apetecidas  do  que  temidas.  Biissol  na  sua  via- 
gem á  America  diz  que  os  presos  em  Filadélfia  pas- 
sam tão  bera  ,  que  não  tem  desejo  nem  lembrança 
de  sahir.  Porem  alem  de  que  isto  é  desmenlido  por 
outros  observadores ,  quem  não  vè  que  o  pão  da 
prisão  c  sempre  pão  de  dor  ,  que  aquelle  regimen 
(■humano,  mas  não  pôde  ser  cobiçado ,  e  ullima- 
menlc  que  o  sentimento  da  perda  da  liberdade,  é 
indelével,  o  que  nada  o  pode  iiidemnisar?  Demais 
a  severidade  da  disciplina  tem  feito  que  alguns  pre- 
sos tenham  antes  querido  a  morte  do  que  similhan- 
tc  clausura. 

São  frívolas  c  absolutamente  inattendiveis  as  ob- 
jecções com  que  se  tem  pertcndido  mostrar  que  as 
cadeias  da  Pensilvânia  não  podem  servir  do  model- 
lo  ás  da  Europa ,  porque  nesta  não  ha  ,   scginido 


o  PANORAIMA. 


31 


diiem  ,  as  circumstancias  favoráveis  que  ha  cm 
aquella  ,  c  são  : ' — a  raridade  da  miséria  ,  o  que  se 
funda  na  distribuição  mais  igual  das  propriedades 
tcrritoriacs  ;  a  mesma  raridade  dos  delictos  ,  e  sua 
pouca  variedade  ;  a  systcmalica  constância  ,  a  infa- 
tigável paciência  dos  quíihns  ;  c  ultimamente  a  bon- 
dade e  alTabilidade  dos  carcereiros.  Porem  quem 
não  vè  que  estas  qualidades  são  os  fructos  das  suas 
leis  c  instituições  ,  e  que  em  qualquer  parte  que 
se  applicarem  hãode  produzir  elTeitos  similhantes? 
Na  Europa  os  abusos ,  e  os  erros  vão  cedendo  o 
campo  á  rasão  e  á  justiça  ,  e  prcpara-se  uma  epo- 
cha  em  que  estas  hãode  aqui  representar  as  scenas 
mais  sublimes  e  gloriosas  para  a  espécie  humana. 
A  França,  que  em  mais  de  uma  cousa  se  tem  collo- 
cado  á  frente  da  civilisação  ,  abriu  também  na  Eu- 
ropa o  exemplo  da  nova  reforma  das  cadeias.  A  de 
Rouen ,  como  as  demais  ,  centro  da  corrupção  pliy- 
sica  c  moral ,  foi  era  1806  transformada  em  oITici- 
na  de  trabalho :  alli  se  fia  o  algodão  ,  e  os  presos 
recebem  lições  de  lèr ,  escrever,  contar  e  de  mo- 
ral religiosa.  Naquelle  logar  reinam  a  ordem  ,  o 
aceio,  e  a  moralidade.  \  cadeia  de  Mclun  e  outras 
são  dirigidas  pelos  mesmos  principies.  Portugal , 
quando  reformou  suas  velhas  e  cançadas  institui- 
ções ,  lambem  tratou  de  melhorar  as  suas  cadeias  , 
c  uma  commissão  zelosa  do  bem  publico  adoptou 
algumas  medidas  em  beneficio  de  taes  estabeleci- 
mentos. Mas  o  que  fez  não  basta  ,  que  muito  lhe 
resta  a  fazer  ainda  ,  e  a  aproveitar  de  tão  dignos 
e  poderosos  exemplos. 

P.  M. 

Epitome  da  vida  de  Liiz  DE  Camões. 

(Continua do  de  pag.  i6.J 

Impellido  então  o  nosso  poeta  pelo  desejo  de  não 
expor  a  maior  dosar  a  reputação  da  sua  amada  ; 
cançado  de  contratempos  e  injustiças,  por  se  ver 
órfão  de  pai ,  que  commandando  uma  náu  naufra- 
gara junto  a  Gòa ,  e  sobretudo  desgostoso  das  inju- 
rias da  corte,  resolveu  passar  á  índia.  Não  deixou 
porem  o  ninho  pátrio  sem  viva  saudade,  exclaman- 
do as  palavras  de  Scipião.  —  Ingrata  pátria  ,  non 
pofsidcbis  ossa  mea.  —  Taes  haviam  sido  os  desgos- 
tos que  nclla  soffrèra  que  lhe  arrancaram  esta  amar- 
ga apostrophe  ! 

Não  encontrámos  nos  biographos  particularidades 
algumas  acerca  dos  amores  do  nosso  poeta,  nem  sa- 
bemos os  motivos  porque  rompeu  tão  doces  laços  e 
te  expoz  ás  cruéis  penas  de  uma  longa  ou  eterna 
separação.  Vè-se  porem  pelos  seus  cscriptos  que  a 
sua  determinação  era  não  voltar  mais  á  pátria  ,  on- 
de tão  cruéis  dissabores  havia  experimentado. 

Alistou-se  pois  de  novo ,  e  em  loo3  embarcou 
na  nau  ,  que  coramandava  Fernão  Alvares  Cabral , 
uma  das  quatro  que  compunham  a  esquadra  que 
este  fidalgo  levara  debaixo  de  suas  ordens  para  a 
índia.  Um  furioso  temporal  que  sobreveio  durante 
a  viagem  fez  separar  a  esquadra  e  retardar  três  das 
naus  que  a  compunham,  chegando  somente  á  índia 
nesse  anno,  depois  de  haver  soíTrido  muito  pela  tor- 
menta,  a  náu  S.  Bento  em  que  ia  Luiz  de  Camões. 

Era  então  governador  dos  Estados  da  índia  D. 
AfTonso  de  Noronha,  que  por  essas  epochas  apromp- 
tava  uma  expedição  contra  o  rei  de  Chembé,  on  da 
Pimenta  ,  na  costa  de  Slalabar.  O  nosso  heroc,  am- 
bicioso de  gloria,  assentou  praça  de  voluntário  nes- 
sa expedição  militar,  e  nella  com  seus  companhei- 
ros d'arma3  ganhou  novos  louros ,  sendo  o  rei  de 


Chembé  completamente  derrotado  ,   c  constrangido 
a  pedir  pazes  que  se  lhe  concederam. 

A  insalubridade  do  clima  fez  grande  estrago  noi 
nossos  valorosos  portuguezes  ,  que  mui  dizimados 
voltaram  a  Gúa,  sendo  Camões  do  numero  dos  que 
escaparam  ás  febres  daquelle  clima  devastador.  De 
volta  cora  a  expedição  pouco  dcscanço  teve  ,  por- 
quanto havendo  perdido  o  seu  melhor  amigo,  D.  An- 
tónio de  Noronha  ,  morto  ás  mãos  dos  mouros  cm. 
Tetuão ,  assim  como  seu  tio  o  governador  D.  Pedro 
de  Menezes,  no  combate  junto  a  Ceuta,  se  angmen- 
tarara  seus  dissabores,  e  o  levaram  a  tomar  de  nc- 
vo  o  serviço  logo  que  se  lhe  offerecesse  occasião 
opportuna.  Não  tardou  esta,  porquanto  no  anno  de 
laoo  succedendo  D.  Pedro  Mascaranhas  a  D.  Affon- 
so  de  Noronha  ,  deu  commissão  a  Manuel  de  "\"as- 
concelios  de  ir  com  uma  armada  cruzar  na  boca 
do  Mar-lloxo,  para  esperar  e  combater  as  naus  dos 
mouros.  Oífereceu-se  Luiz  de  Camões  para  ir  nes- 
ta expedição,  mas  a  esquadra  depois  de  pairar  de- 
balde defronte  do  cabo  Guardafú  até  se  lhe  passar 
a  monção,  foi  invernar  em  Ormuz  no  golfo  pérsico. 
Alli  passou  o  nosso  poeta  o  inverno,  que  para  clle. 
não  foi  perdido  em  ócio  vil ,  dando  sua  imaginação 
fecunda  vivo  colorido  a  tudo  quanto  via  e  ouvia  ,  e 
inflammando-se  cada  vez  mais  seu  peito  em  ardente 
patriotismo  sobre  os  altos  feitos  portuguezes  de  que- 
a  índia  era  então  o  thealro. 

Voltando  no  anno  seguinte  a  Gòa  achou  fallccido 
o  vice-rei  D.  Pedro  Mascaranhas,  e  snbstituido  o 
seu  logar  por  Francisco  Barreto  ,  homem  altivo  , 
fofo  c  prepotente  (Ij.  A  corrupção  dos  costumes, 
a  sede  de  ouro,  e  a  ambição  eram  as  feições  ca- 
racterislicas  do  governo  arbitrário  de  Barreto  ,  que. 
á  similhança  dos  déspotas  odcava  os  liltc ratos ,  o 
despresava  o  saber.  Luiz  de  Camões  indignado  con- 
tra os  vicios  predominantes,  exhalou  sua  virtuosa 
indignação  escrevendo  aquella  satyra  que  intitulou 
— Disparates  da  índia  —  na  qual  com  branda  criti- 
ca censurava  a  corrupção  geral  ,  sem  comtudo  par- 
ticularisar  os  corruptores.  Seu  corarão  honrado, 
nobre  ,  e  desinteressado  ,  mal  podia  deixar  de  sen- 
tir profundamente  o  quanto  iaraos  descendo ,  na- 
quella  parle  do  mundo  ,  de  nossos  antigos  brios 
e  costumes  ,  e  inda  menos  deixar  de  rcprehender 
com  justa  severidade  a  degeneração  a  que  caminhá- 
vamos. 

A  nobre  ousadia  de  Camões  desagradou  a  Barre- 
to, que  irritado  de  ver  censurados  os  vicios  de  que 
elle  participava  ,  tomou  por  pretexto  certa  satyra 
ridicula  que  então  circulava  em  Goa  ,  e  encabe- 
çando-a  em  Luiz  de  Camões  ,  que  accusava  de  fal- 
tar ao  respeito  devido  á  auctoridade  ,  abusou  do 
poder  de  que  lhe  cumpria  ter  sido  severo  guarda  , 
e  desterrou  o  illustre  vate  para  as  ilhas  Molucas. 

Aggravou-se  a  sorte  do  nosso  malfadado  heroe 
com  mais  este  golpe  fatal ,  mas  nem  por  isso  seu 
magnânimo  coração  succnmbiu  co  meio  do  não  me- 
recido infortúnio,  nem  por  ofTendids  quiz  desaggra- 
var-se  do  prepotente  governador  que  assim  o  mal- 
tratara. 

Três  oumais  annos  discorreu  por  Malaca  ,  pelas 
Molucas  ,    e  por  Macau  ,   cumprindo   a  pena    deste 


(l)  Alguns  escriplores  e  hiograi-ihus  perleiídeni  ,  ijiie 
Francisco  Barreio  era  homem  de  grandes  qualidades,  lilje- 
ral ,  bom  soldado  ,  bom  governador  no  loc.ante  aos  negócios 
da  guerra,  e  muiio  benemérito  na  índia  e  Africa  do  rei  e 
da  pátria.  Accrescenlam  porem  que  era  noi  pouco  vão  ,  e 
prompto  a  se  resolver  por  mexericos.  (Veja-se  Diogo  di> 
Goito,  e  a  Memoria  do  Sr.  bispo,  F-  A.-  Lobo,  que  em  oii- 
fro  logar  citámos). 


X» 


32 


O  PANORAaiA. 


degredo ,  mas  conservando  sempre  a  lembrança  de 
suas  desventuras  ,  que  não  menos  aviva  saudade 
daquella  que  conslaulcmente  amara.  Por  essa  cpo- 
clia  acabou  o  vice-reinado  do  governador  Barreto  , 
[que  seja  dito  em  seu  abono  falleceu  pobre]  (2)  e 
chegou  a  Goa  D.  Constantino  de  Bragança  ,  succe- 
dcndo  em  1558  no  governo  das  índias.  Este  acon- 
tecimento deu  logar  a  Luiz  de  Camões  de  reclamar 
justiça  ,  e  o  novo  viso-rci ,  com  quem  havia  antigos 
laços  de  amisade,  lhe  levantou  a  pena,  e  o  nomeou 
provedor  dos  defuntos  e  ausentes  cm  Macau  ,  com 
«  fim  de  o  empregar  e  de  melhorar  a  sua  condição. 
É  tradição  constante  que  passava  muitas  horas  a  tra- 
lialliar  no  seu  Poema  ,  c  ainda  hoje  em  Macau  ,  na 
quinta  do  conselheiro  Manuel  Pereira  ,  se  mostra 
uma  gruta  denominada  de  Camões  ,  onde  o  nosso 
poeta  ia  trabalhar  na  sua  composição,  procurando 
iiaquclle  sitio  ameno  e  impenetrável  aos  raios  do 
sol ,  cntregar-se  todo  ao  laborioso  estudo  que  tanto 
amava  (3).  AUi  foi  passando  o  melhor  tempo  da  sua 
vida  ,  ao  abrigo  das  precisões  ,  a  que  podia  satisfa- 
zer com  os  emolumentos  do  seu  cargo  ,  quando  se 
lhe  suscitaram  desejos  de  voltar  aGòa  ;  de  D.  Cons- 
tantino pôde  oljter  a  necessária  licença  ,  e  breve 
tratou  de  se  embarcar  com  o  mais  crescido  cabedal 
de  que  se  viu  senhor  no  decurso  de  sua  vida. 

Mas  a  sorte  inimiga  ,  que  ainda  não  estava  can- 
çada  de  persegui-lo,  tomou  por  cmpreza  frustrar  as 
mais  bem  concertadas  esperanças  de  Luiz  do  Ca- 
mões ,  e  tornar  em  pezares  as  mais  vivas  alegrias  ; 
não  quiz  que  ellc  fosse,  diz  o  erudito  Sr.  Bispo  de 
Vizcu  ,  no  tocante  a  teres  e  proveitos  ,  mais  ventu- 
roso do  que  em  amores.  O  navio,  cm  que  se  havia 
embarcado  ,  padeceu  triste  naufrágio  na  foz  do  rio 
Mccon  ,  na  costa  de  Camboja.  Nesse  naufrágio  per- 
deu elle  tudo  quanto  possuia  ,  podendo  apenas  so- 
hre  uma  taboa  salvar  com  a  vida  o  seu  mais  pre- 
cioso thesouro  ,  o  manuscripto  do  seu  poema  ,  que 
por  fortuna  e  gloria  nacional  chegou  á  posteridade. 
Desse  naufrágio  nos  diz  Barbosa  Machado,  fallando 
de  Camões  —  «que  se  salvara  em  uma  taboa  com  o 
«  seu  divino  poema  ,  imitando  a  Júlio  César  ,  que 
o  no  porto  de  Alexandria  entrara  levando  em  uma 
«  mão  a  espada  ,  e  em  a  outra  os  seus  commenta- 
«  rios. » 

Em  1561  chegou  a  Goa,  com  esta  única  riqueza 
que  tanto  serviu  para  sua  e  nossa  fama,  c  grato  se 
amostrou  para  com  o  governador ,  a  quem  devera 
o  bcm-cstar  e  Iranquillidado  de  que  gozara  duran- 
te o  tempo  do  seu  excellente  governo  ,  que  em  tu- 
do ,  conforme  os  historiadores  ,  fora  o  opposto  do 
de  seu  ruim  predecessor.  Não  continuou  porem  por 
muito  tempo  a  momentânea  tranquillidade  que  des- 
fructára  Luiz  de  Camões ,  porquanto  D.  Constanti- 
no foi  chamado  á  corte  deixando  o  governo  a  seu 
succcssor  o  conde  de  Redondo  ,  que  posto  amigo  e 
favorecedor  do  poola  não  pôde  impedir  que  inimi- 
gos ciosos  do  seu  mérito,  homens  malévolos,  o  ac- 
cusassem  de  malversações  na  administração  da  pro- 
vedoria de  Macau.  Foi  posto  cm  juizo  c  encarcera- 
do ,  e  quando  estava  para  sahir  innocenlc  e  puro 
da  accusação ,  as  portas  da  prisão  se  lhe  fecharam 


(2)  Fr.  Manuel  dos  Santos  diz  ,  que  F.  Barreto  dera  a 
aluía  a  Deus  ,  em  uma  casa  do  palha,  sem  se  acliar  em  seu 
escriplorio ,  nem  cm  seu  poder  ,  um  cruzado  para  as  suas 
exéquias !  Foi  morrer  sem  gloria  nos  inhospitos  sertões  da 
Africa,  junto  iís  ribeiras  do  rioCnama,  e  em  tamanho  apar- 
to ,  que  até  teve  escasso  logar  para  ser  sepultado  em  uma 
pol)re  c  solitária  ermida  das  visinliauças. 

(3)  Vid.  nma  estampa  deste  retiro,  da  maneira  que  ho- 
je é  coníervado  a  pag.  39  do  1."  vol.  da  Serie  primeira. 


por  embargo  que  lhe  poz  um  cidadão  de  Gõa,  cha- 
mado Miguel  Rodrigues  Coutinho,  que  se  disse  seu 
credor  pela  somma  de  dusentos  cruzados.  Por  essa 
occasião  valeu-se  do  vice-rei ,  e  com  dignidade  lhe 
pediu  o  desembargasse  ,  o  que  este  fez  com  grande 
nobreza  d'alma. 

Livre  da  prisão  continuou  na  índia  embarcando- 
se  nos  verões  para  ser\ir  nas  armadas,  c  entregan- 
do-se  nos  invernos  ao  estudo  e  ás  suas  composições. 
No  serviço  militar  distinguiu-se  não  menos  do  que 
nas  lettras  ,  c  assim  ficou  em  Goa  por  algum  tem- 
po até  que  aconteceu  morrer  o  conde  de  Redondo  , 
succedendo-lhe  D.  .\ntão  de  Noronha  no  governo  da 
índia.  Segundo  pudemos  colligir  das  diversas  noti- 
cias biographicas  que  temos  diante  de  nós  ,  o  nos- 
so malaventurado  vate  soffreu  por  esse  tempo  o  gol- 
pe mais  sensível  que  sua  alma  elevada  podia  expe- 
rimentar. D.  Catharina  de  Attayde  falleceu  na  pá- 
tria ,  deixando  Luiz  de  Camões  entregue  á  mais 
pungente  dor,  pois  nesta  tão  duradoura  affeição  pu-  L 
nha  ellc  suas  ultimas  e  mais  charas  esperanças.  11 

líavia  por  essa  epocha  acabado  o  seu  Poema,  e 
cheio  de  desgostos  sem  ter  cousa  que  o  prendesse 
aos  Estados  da  índia  ,  onde  experimentara  os  vai- 
véns da  caprichosa  fortuna,  resolveu  passar  ao  rei- 
no, a  fim  de  buscar  socego  c  independência  ,  e  of- 
ferecer  á  pátria  a  sua  composição  que  tanta  honra 
lhe  devia  dar  um  dia  ,  e  que  tão  mal  recompensa- 
da fora  então.  Cheio  deste  projecto  andava  buscan- 
do os  meios  que  lhe  faltavam  para  effeiluar  a  via- 
gem ,  quando  a  sua  má  estrella  lhe  deparou  a  Pe- 
dro Barreto,  governador  nomeado  para  Sofala  ,  o 
qual  lhe  propoz  o  acompanhasse  fazendo-lhe  mil 
promessas  enganadoras  (í).  Pedro  Barreio  era  da- 
quelles  homens  sórdidos  ,  que  de  tudo  sabem  tirar 
partido ,  e  na  ofTerta  apparentemente  generosa  que 
havia  feito  a  Camões  levava  a  mira  em  o  tornar  to- 
talmente seu  dependente  ,  c  cm  medrar  á  sombra 
da  fama  litteraria  que  o  nosso  poeta  já  então  mere- 
cia. A  Moçambique  aportaram  Camões  c  o  indigno 
Pedro  Barreto ,  e  alli  ficou  o  primeiro  naquella  in- 
hospita  terra  por  algum  tempo  sem  amigos  ,  nem 
protectores  ,  reduzido  á  maior  miséria  sem  poder 
proseguir  em  sua  viagem,  porque  a  isso  obstava  seu 
iniquo  credor. 

[Continuar-se-ha.] 


Prudencía  é  o  temor  rasoavel  das  consequências  , 
que  as  nossas  acções  podem  ter.  —  Compara-se  o 
homem  do  grandes  talentos  ,  mas  falto  desta  virtu- 
de ,  ao  Polyphemo  da  fabula  ,  que  robusto  mas  ce- 
go não  pôde  ,  por  falta  de  vista  ,  fazer  uso  da  sua 
força.    , 

Somos  escravos  das  leis  [dizia  ura  jurisconsulto  ro- 
mano] para  podermos  ser  livres. 

Sejímos  bons,  e  depois  seremos  felizes  :  não  quei- 
ramos o  premio  antes  da  victoria  ,  nem  o  salário 
antes  do  trabalho.  —  Rousseau. 

(4)  Este  facto  que  alguns  escriplores  não  acreditam  ,  o 
oa  subsequentes  a  respeito  de  Pedro  Barreto ,  é  narrado  por 
muitos  outros  dignos  de  credito,  entre  estes  Pedio  Mariz  ,  e 
o  Morgado  d eMattlieus,  tão  eicellente  litlerato  como  atila- 
do critico. 


ERRATA . 

N.°  5G,  pag.  20,  liu.  48  — presto— perto. 


.38 


o  FANORASIA. 


33 


PORTUGAL.  e  meia  tle  Chaves  ,  e  entre  esta  villa  e  o  seu  ai  ra- 

>^-r  j  balde   da  língdalena  tem  uma  famosa  e  Ijeiíi  edifi- 

cada  [luiite  ,    que  levantaram   us  romanos.- — O  rio 
O  Iajiega  e  Amarante.  corta  obliquamente  a  serra  do  Marão,    levando  i'o- 

j  pia  d'aguns  comparável  ao  Lima;  de  Cbavcs  cami- 
>"asce  o  rio  Tâmega  era  Galiza,  na  serra  do  S.  Ma-  i  nha  para  sudoeste  por  entre  as  Iragosidades  daqutl- 
lucde,  de  um  manancial  chamado  Taraicelas,  c  bai-  j  las  ásperas  montanhas,  das  quaes  recebe  muitos  e 
asando  para  o  estreito  valle  de  Laça  ,  prosegue  por  1  abundantes  ribeiros  ,  como  são  o  Beça  e  o  Basto, 
outro  mais  largo  e  fértil,  o  de  Monterrey.  através-  \  Ainda  que  corre  em  leito  apertado  emrasão  da  ele- 
a  tronteira  dos  dois  reinos  pcainsulares  a  légua  j  vação  de  suas  margens,   tem  entre  ellas  deliciosos 


Feveueiko  4 —  1843. 


2.'  Seiue  — VoL..  1!. 


u 


o   PANORAMA. 


valles  ,  que  produzem  muito  vinho  verde  ,  mi- 
lho ,  centeio  ,  linho  ,  e  legumes  ,  c  nas  quebradas 
irroximas  ha  soutos,  que  dão  fartura  de  castanhas. 
As  aguas  do  Tâmega  criam  peixe  miúdo  de  pouca 
monta  ,  mas  a  cilas  sobem,  provenientes  do  Douro, 
os  sáveis  ,  lampreas  e  mugens  ,  que  fornecera  em 
certas  estações  saborosa  pescaria.  Tem  íaetier-se 
nu  Douro  no  sitio  a  que  chamam  Entre-ambos-os- 
rios  ,  duas  léguas  abaixo  da  villa  cujo  prospecto 
oíTerece  a  precedente  estampa. 

Amarante  ,  terra  de  mui  remota  fundarão  ,  occu- 
pa  a  margem  direita  do  rio,  que  acabámos  de  des- 
crever, sobre  o  qual  tem  uma  ponte  faliricada  com 
muita  solidez ,  c  da  cabeça  desta  começa  a  villa  , 
(jue  se  pôde  dizer  constar  de  uma  rua  geral ,  tor- 
tuosa, c  de  plano  inclinado,  a  que  vem  dar  algu- 
mas travessas;  correndo  denascente  a  poente,  com 
a  igreja  de  S.  Pedro  ao  meio  da  subida  ,  c  pouco 
acima  a  casa  da  municipalidade :  no  mais  alto  tem 
seu  assento  a  casa  da  Misericórdia.  Ao  norte  ha  a 
rua  deGuimarãcs,  estrada  para  essa  villa  :  ao  poen- 
te, também  costa  acima ,  segue  a  rua  doPorlo, 
estrada  para  esta  cidade.  Possuía  muitos  edificios 
nobres,  a  maior  parte  dos  quaes  foram  incendiados 
pelos  francczes  na  invasão  de  1809  ;  e  na  sua  pro- 
ximidade, para  lodos  os  lados  ainda  era  superior  o 
2mmero  de  notáveis  c  deleitosas  quintas,  pertencen- 
tes a  famílias  mui  conhecidas,  assim  da  còrtc,  co- 
mo das  províncias.  Amarante  é  uma  posição  mili- 
tar importantíssima ,  ao  norte  do  reino  ,  e  por  esta 
circumstancía  tem  sido  thoatro  de  repetidos  c  por- 
fiados combates ,  cujas  consequências  im.mcdiatas 
são  sempre  a  devastação  das  propriedadej,  quer  ur- 
banas, quer  rústicas.  —  Apesar  da  situação  emi- 
nente em  que  se  acha  ,  como  por  outra  parte  é  so- 
branceira ao  frondoso  Viille  do  Tâmega  ,  não  dei- 
xa de  ser  aprazível  residência,  e  agradáveis  os  seus 
contornos.  Dista  de  Guimarães  sínco  léguas  a  sues- 
te ;  e  porque  também  apen.is  fica  a  uma  Icgua  da 
serra  do  Marão ,  é  muito  provável  que  ,  por  es'a 
-situação  topographica  na  estrada  principal  do  Por- 
to para  Traz-os-montes  ,  sendo  encontrada  pouco 
antes  daquclla  escarpada  serrania ,  lhe  pozesse  a 
antiguidade  o  nome  ú'Atitcmoranam,  que  se  corrom- 
peria depois  em  Amarante.  No  campo  das  conjectu- 
ras ,  sobre  etymolngías  quasi  sempre  incertas,  te- 
mos esta  por  mui  crível ,  não  obstante  a  derivarem 
os  nossos  antigos  geographos  do  nome  de  um  cau- 
dilho romano  ,  Amarantus  Senccionis  ,  cuja  sepultu- 
ra se  uchára  no  hospital  de  S.  Marcos  da  cidade 
lio  IJraga.  Também  os  mesmos  auctores  escreveram 
que  fora  originariamente  povoada  pelos  turdetanos  da 
Lusitânia  ,  3G0  annos  an'es  de  Jcsn  Chrísto  ;  que 
os  romanos  a  reformaram  e  augmcntaram  ;  que  os 
bárbaros  enxames  das  tribus  do  septcntrião,  desliui- 
dores  do  império  dos  Césares,  a  devastaram  tão  com- 
pletamente que  delia  não  havia  vestígio  em  12o0. 
i'or  estes  annos  £.  Gonçaio  ,  dito  de  Amarante  pa- 
ra distinrçãi)  de  outro  St.°  o  augustiníano  .S.  Gon- 
çalo de  Lagos ,  á  volta  da  viagem  aos  santos  loga- 
re.s,  veio  habitar  uma  capeijínha  que  ou  achou  de- 
.saraparada  ,  ou  erigiu  desde  os  fundamentos  ,  sita 
n'iim  outeiro,  que  campeava  .sobre  o  Tâmega  :  á 
sua  caridade  e  amor  do  bem  publico  é  fama  que 
foi  devida  a  primeira  ponte  que  se  lançou  sobre  o 
rio  nesta  paragem  :  aqui  falleceu  o  servo  de  Deus , 
p  a  concorrência  dos  fieis  a  visitar  o  seu  sepulchro 
deu  origem  á  crcação  do  i)ovo  hoje  conhecido  pelo 
nome  de  villa  de  Amarante.  Tem  esta  uma  uníca 
freguczia  ,   da  invocação  de  S.  Gonçalo  ,  erecta  no 


templo  do  convento  dominicano  ,  mandado  levantar 
por  eireí  D.  João  3.°  e  seus  succcssorcs  :  era  esta 
casa  religiosa  uma  das  melhores  que  no  reino  pos- 
suía a  ordem  de  S.  Domingos,  com  dois  claustros 
espaçosos  ,  chafariz  d'agua  perenne  ,  grande  dor- 
mitório lateral  ao  rio,  e  dilatada  cerca. 

Amarante  ,  antes  das  recentes  divisões  judiciaria 
e  administrativa  ,  tinha  juiz  de  fora  ,  e  um  termo  , 
o  mais  diminuto  de  todo  o  reino,  e  por  maneira  tal 
que  somente  na  rua.  que  serve  de  transito  aos  que 
frequentam  as  estradas  do  Porto  e  Minho  para  Traz- 
os-montes  e  Beira  ,  havia  três  jurísdicçõcs  civis  , 
três  ccclcsiasticas  ,  três  foraes  ,  e  três  pelourinhos. 
K  actualmente  cabeça  de  comarca,  a  qual  se  com- 
põe dos  concelhos,  de  Amarante  calculado  em  4:199 
fogos,  c  de  St."  Cruz  de  riba-Tamega  com  3:598 
ditos. 

Illustra-se  esta  villa  por  ter  dado  o  nascimento  a 
João  Pinto  llíbeiro  ,  pessoa  mui  principal  da  famo- 
sa c  feliz  restauração  de  1G40 ,  que  deu  a  estes 
reinos  monarcha  legitimo  e  natural ,  aeclamando  o 
Sr.  D.  João  4." ,  e  collocando  no  throno  a  dynastía 
bragautina.  Foi  também  berço  do  poeta  jovial  c  sa- 
tjTÍco  ,  Paulino  Cabral  de  Vasconccllos ,  mais  co- 
nhecido por  abbade  de  Jazente.  —  António  de  Sou- 
sa de  SIacedo  descendeu  de  uma  família  de  Ama- 
rante, mas,  postoque  o  P.'  Luiz  Cardoso  o  faça  na- 
tural desta  villa,  veio  ao  mundo  na  cidade  do  Por- 
to ,  como  fica  relatado  na  breve  biographia  de  tão 
insigne  varão  ,  a  pag.  343  do  antecedente  volume. 


O  DIVIDO. 

O  LOCAR  do  órgão  da  audição  tanto  no  homem  ,  co- 
mo nos  outros  animaes  ,  é  na  cabeça.  —  A  única 
parte  visível  deste  órgão  é  o  pavilhão,  ao  qual  vul- 
garmente chamam  orelha  ,  e  que  apresenta  na  sua 
forma  condições  muito  favoráveis  para  modificar 
os  sons;  segundo  parece  todas  as  partes,  de  que  se 
compõem  estes  órgãos  ,  offereccm  estas  condições  , 
umas  em  maior  numero  c  outras  cm  menor.  O  [)a- 
vilhão  em  muitos  animaes  é  uma  verdadeira  corne- 
ta acústica  ,  como  por  exemplo  no  cavallo  ,  c  sus- 
ceptível de  se  mover  em  diflercnles  sentidos.  —  O 
pavilhão  concentra  as  ondas  sonoras  no  canal  audi- 
tivo, oqual  inlroduzindo-se  na  cabeça,  até  um  certo 
ponto,  é  terminado  obliquamente  pelo  tympano  que  é 
uma  membrana  delgada,  movei  c  elástica,  que  ser- 
ve para  fechar  uma  cavidade  óssea  chamada  a  cai- 
xa do  tympano  ;  a  caixa  do  tympano  tem  uin  orifi- 
cio  que  está  em  communicação  com  a  boca  por 
meio  de  um  canal  chamado  a  trompa  d'Eustachío  ; 
c  serve  esta  communicação  para  que  renovando-se 
o  ar  ,  a  pressão  atmosphcríca  seja  sempre  a  mes- 
ma. X  caixa  do  tympano  ainda  tem  outras  duas 
aberturas,  uma  em  cima  chamada  a  jancUa  oval  . 
outra  mais  em  baixo  chamada  a  janella  redonda  ; 
n'cst('S  dois  orificios  ha  músculos,  a  qnc  está  presa 
a  cadèa  dos  ossos  suspensa  no  interior  da  caixa  : 
esta  cadèa  c  composta  de  quatro  ossos,  chamados  , 
—  o  marlello  —  a  bigorna  —  o  Icniíoular,  e  o  es- 
tribo ;  tem  estes  nomes  ,  em  consequência  da  se- 
melhança que  apprescnta  a  sua  forma  com  a  des- 
tes objectos  —  julga-sc  geralmente  que  esta  cadéa 
serve  para  modificar  as  sensações  muito  violen- 
tas que  o  órgão  podcsse  sentir  :  basta  distende-la 
muito  c  á  membrana  do  tympano  ,  para  produzir 
este  cffeito  —  ha  pessoas  que  perlcndem  ter  esta  fa- 
culdade a  ponto  de  se  fazerem  surdas  quando  que- 


o   PANORAJ^IA. 


36 


rcm.  —  O  pavilhão  —  o  canal  auditivo  —  a  mem- 
brana do  lympano  —  a  caixa  ossoa  ,  a  cadra  dos  os- 
sos e  a  Irompa  de  Euslachio  formara  o  que  se  cha- 
ma ouvido  externo.  O  ouvido  iiílcruo  é  composto 
de  um  canal  ósseo  em  spiral ,  chamado  o  caracol , 
preso  por  uma  das  suas  extremidades  á  membrana 
<la  jauclla  redonda  ,  e  a  outra  extremidade  abre- 
se  em  uma  cavidade ,  chamada  o  vestihulo ,  esta 
cavidade  está  dctraz  da  janella  oval.  O  veslibulo 
lomraunica  com  trcs  canacs  semi-circulares  de  na- 
tureza óssea  ,  cheios  de  uma  matéria  parda  de  que 
se  não  conhece  o  uso.  —  Os  últimos  ramos  do  ner- 
vo acústico  merjíulham  em  um  liquido  transpnrcn- 
rente  que  enche  as  spiras  do  caracol. 

Parece  que  as  vibrações  sonoras  concentrando-sc 
no  pavilhão  ferem  a  membrana  do  tympano,  repro- 
duzindo-se  na  cavidade  óssea,  como  na  caixa  d'um 
tamfcor. 

O  modo  por  que  a  sensação  do  som  se  transmilte 
ao  nervo  acústico  ó  um  segredo  da  natureza  que  não 
sabemos  que  se  haja  ainda  descoberto. 

Sabe-se  que  a  membrana  do  tympano  pôde  rom- 
per-se,  ou  perfurar-se.  sem  que  a  audição  deixe  de 
ler  lograr,  tanto  que  ha  pessoas  que  fumam  e  deixam 
sahir  pelo  ouvido  o  fumo  que  aspiram  ,  sem  que 
sejam  atacados  de  surdez  ;  c  comtudo  é  mister  que 
'>  fumo,  introduzido  pela  trompa  de  Eustachio  na 
membrana  do  tympano  ,  saia  por  uma  fenda  feita 
nessa  membrana.  —  A  perfuração  do  tympano  é  até 
uma  operação  cirúrgica  ,  praticada  com  vantagem 
para  a  cura  de  alguns  casos  de  surdez.  —  Os  ires 
primeiros  ossos  da  cadèa  de  que  falíamos  lambem 
I'arccem  desnecessários  a  audição;  pois  julga-se 
que  não  c  alterada  pela  queda  de  nenhum  delles  ; 
confessámos  que  não  seguimos  rigorosamente  esta 
opinião  porque  nos  parece  mais  phisiologico  suppor 
que  deve  resultar  alguma  alteração  no  ouvir  ,  pela 
falta  d'um  ou  d'oulro  destes  três  ossos  ,  e  esta  opi- 
nino  pode  ainda  fundar-se  no  facto  ,  em  que  geral- 
mente se  Concorda  ,  de  que  a  queda  do  estribo  , 
que  é  o  quarto  osso,  causa  a  surdez. 

Os  esforços  dos  phisiologistas  tem  sido  baldados 
para  explicar  o  inechanismo  da  audição — -o  órgão 
do  ouvido  6  destinado  a  recolher  os  sons  ,  e  trans- 
i:iiltir  as  sensações  ao  nervo  acústico;  eis  as  pou- 
cas palavras  era  que  se  podem  resumir  muitos  dos 
livros,  que  acerca  deste  assumpto  estão  escriptos. 
O  sentido  do  ouvir  appresenta,  entre  outras,  uma 
circumstancia  digna  de  attenção ,  e  é  o  seu  desen- 
volvimento antecipado  nos  feios  ;  pois  este  sentido 
começa  a  exercer-sc  logo  depois  da  nascença.  Do 
mesmo  modo  que  os  outros  sentidos,  ou  talvez  mais 
do  que  elles  ,  é  susceptivel  de  educação. 

Os  selvagens  ouvem  melhor  do  que  os  povos  ci- 
vilisados  ;  tem-se  visto  selvagens  ,  nas  ílorestas  da 
America  do  sul  ,  encostarem  o  ouvido  á  terra  ,  c 
perceber  o  numero  c  a  direcção  dos  seus  inimi- 
gos ,  estando  estes  a  grande  distancia.  O  órgão  do 
ouvido  é  sujeito  a  muitas  doenças,  que  occasionam 
a  surdez,  esta  quando  é  completa  traz  comsigo  gra- 
víssimos inconvenientes ;  e  sendo  era  idade  avança- 
da altcra-se  a  voz  de  modo  que  se  chega  a  faliar 
muito  baixo  ou  confusamente. 

A  perda  do  ouvir  será  ou  não  recompensada  de 
algum  modo  pelo  aperfeiçoamento  de  outro  sentido  ? 
—  Eis  uma  questão  em  que  por  ora  não  podemos 
em  consciência  apprcsentar  o  nosso  parecer.  —  As 
questões  que  parecem  menos  interessantes  são  ss 
que  muitas  vezes  custam  mais  a  resolver. 

iS.  /.  Jlibeiro  do  Sá. 


O    CEGO    PEREGBINO. 

Jtimancc.  (•) 
I 

—  «A  porta,  menina,  abri 
A  um  triste  peregrino  , 
Cego  ,  cançado  ,  c  com  fome  , 
Que  perileu  de  noite  o  tino  : 

Que  por  bando  de  malvados 
Foi  na  estrada  investido  , 
De  seu  haver  eslnilhado  , 
De  agudo  ferro  ferido. 

Prestes  ,  ó  linda  menina  , 
Ao  desvalido  accudi ; 
Soccorrei-o  ,  senão  morre  ; 
A  porta  ,  menina  ,  abri.»  — 

—  «Não  dei  causa  a  luas  queixas, 
De  teu  damno  não  me  importa  : 
Como  és  desconhecido , 

Não  te  abro  a  minha  porta  : 
Acordai ,  ó  minha  mãe  , 
Deixai  já  tanto  dormir:   ' 
Não  ouvis  lá  fora  o  cego 
Com  seu  estranho  pedir?»  — 

—  «Sc  ellc  pede,  ó  minha  filha, 
Da-lhe  pão  e  gasalhado ; 

Não  negues  comida  ,  e  lume 

A  um  pobre  desgraçado,  »  — 
A  donzella  a  porta  abre  , 

Bem  que  seja  a  seu  pezar ; 

Pressuroso  o  peregrino 

Cruza  alem  do  limiar  ; 
São  nobres  seus  ademanes  , 

É  garboso  o  seu  pizar  ; 

Ninguém  pobre  lhe  chamara 

Se  não  visse  o  seu  trajar: 
Veste  grosseiro  burel , 

De  sandalhas  vem  calçado  ,     ~ 

Por  cordão  de  rijo  esparto 

O  corpo  traz  apertado. 
Cobre  chapéu  c  cabeça  '     . 

Té  aos  olhos  o  capuz  , 

Porque  o  rosto  se  cão  veja 

A  claridade  da  luz. 

—  «Aguarda  ahi ,  peregrino. 
Que  o  pão  e  vinho  te  dou  , 
Faxa  que  o  sangue  le  vede 
Com  presteza  apromptar  vou.  » — 

—  «Não  vás,  formosa  donzella. 
Tamanha  fadiga  ter  , 

Fome  e  sede  já  não  tenho , 
Nem  sinto  o  sangue  correr.  » — 

—  «  Se  não  tens  fome  ,  nem  sede  , 
E  o  sangue  já  te  parou  , 

O  teu  caminho  prosegue  , 
Que  a  descançar  eu  me  vou.»  — 
■ — <!Não  darei  com  o  caminho, 
Que  não  sei  e  que  é  ruim  ; 
E  depois  que  sou  comtigo 
Tc  mesmo  não  sei  de  mim. 


(•)  João  (le  Barros  dá  este  nome  ás  troTas  po|)ularei 
antigas,  jierínadido  talvez  de  que  provém  das  r-?nas  ou  cob- 
soanles  :  romance  deriva  da  língua  ro!n.''ã  on  dos  írovadoret 
provençaes. — -Fiinda-se  a  nossa  lireve  coniiíosição  .ias  aoll- 
gas  trovas  do  céi/o ,  que  principiara  . 


Abri  essa  poria , 
Feclial  o  postigo , 
Botai  cí  um  len(;o  , 
Que  eu  yeniio  ferido , 


&C. 


3G 


O  PANORAMA. 


Bondosa  ,  linda  donzella  , 
flnioi  o  triste  ccguinho  , 
Air  iVira  da    clareira  , 
J'eIo  direito  caminho.»  — 

—  n  Es|)r'ares  sob  este  colmo 
A  nianliaã  melhor  seria  ; 
Nado  o  sol  ,  de  boamente 

A  estrada  te  ensinaria.»  — 

—  itPéga  na  roca  .  ó  filha  , 
E  na  estriga  de  linho  , 
Sabe  o  cego  seus  infresses  , 
Vai  cnsinar-lhe  o  caminho.»- 

A  donzella  inexperiente 


Tal  dilo  não  agradou  ; 

Mas  (lurqiic  o  disse  a  velha 

Obedeceu  e  calloií. 
Em  quanto  o  fuso  procura  , 

Os  dois  conversam  a  mão, 

De  antigo  conhecimento 

Indícios  seguros  dão. 
Deste  colloquio  breve 

A  donzella  nada  ouviu  ; 

louocenle  e  sem  suspeitas 

Tomou  a  roca  e  sabiu. 

./.  M.  cVÂ.   F. 
i  Coinlnir-sc-ha.) 


coi.oai30  cows'íirJ3s  os  ss.i:sumz-çcsos. 


Cmristovío  (^olon  ,  ou  Colombo  [como  de  ordinário 
i'5cre\emos]  ceava  um  dia  de  sociedade  com  vários 
pedantes  :  estes  ,  que  invejavam  a  gloria  de  tão  in- 
signe homem  ,  quizeram  provar-lhc  que  nada  fora 
facil  Como  o  descobrimento  do  Novo-Mundo.  Co- 
lombo não  respondeu  ,  deixou  proscguir  a  conver- 
sação ,  e  quando  achou  op|i(irtuno  ensejo  perguntou 
sorriíuio-sc  se  algum  dos  circumstantes  sabia  a  ma- 
neira de  suster  aprumado  um  ovo  em  cima  da  nic- 
za  ,  posto  sobre  uma  das  extremidades  e  sem  cama 
ou  encosto.  Todos  entraram  a  i>òr  de  banda  pratos 
e  guardanapos  ,  (;  tomando  ovos  lidavam  de  balde 
para  os  manter  a  pino  ,  amparando-os  com  os  dc- 
<Ios  a  ver  so  descobriam  modo  de  que  se  tivessem 
direitiis  e  sem  tombar;  por  fim  cansados  de  infru- 
ctuos.is  diligencias  protestaram  que  tal  não  podia 
couseguir-se. — «Agora  o  veremos.»  —  disse  gra- 
vemente o  illuslre  navegante ;  e  batendo  na  racza 


com  uma  extremidade  do  ovo,  que  tinha  na  mão. 
amolgou-a  e  fez  que  ficasse  direito.  —  «Isso  faz 
qualquer»:  exclamaram  a  uma  voz  os  concurren- 
tes  :  porem  Colombo  limitou-se  a  noiar-lhe  que  es- 
ta exclamação  é  a  que  se  faz  sempre  depois  dos 
grandes  descobrimenids  e  das  árduas  emprezas , 
quando  as  diliiculdades  apparecem  dissipadas  pela 
força  (lo  talento. 

Esta  anccdota  ,  que  refere  um  historiador  italia- 
no ,  é  popular  eui  llespauha  ,  e  ainda  ninguém  lhe 
negou  anthenticidade.  —  (iuilherme  Hogarlh  ,  cele- 
bre |)intor  do  século  passado,  elegeu  este  assum- 
pto para  um  painel  de  que  c  copia  a  gravura  aci- 
ma. Este  ensaio  ,  quer  considci'ado  como  composi- 
ção ,  quer  como  estudo  do  contraste  das  pbisiono- 
niias,  pôde  dar  alguma  idéa  do  engenho  de  seu  au- 
ctor.  Nada  dislrabe  do  objecto  principal  ;  a  postu- 
ra de  cada  uma  personagem  .   os  gestos ,    a  expres- 


o  TANORAaiA. 


37 


são  das  fciríios  ,  o  movimento  dn  rorpn  ,  tudo  se 
dirige  a  Cliristovão  Coloiiilio.  í".  impossível  deter  a 
vistu  em  qualquer  dos  convidados,  sem  de  eertn 
modo  nos  vermos  obrigados  a  lita-la  inleiramonte 
no  centro  da  acção  ,  até  descnnear  com  interesse 
na  figura  do  protagonista  :  a  phisionomia  deste  vc- 
sc  revestida  de  toda  a  dignidade  que  o  génio  do 
pintor  podia  imprimir-lhe  ;  deixa  entrever  na  sere- 
nidade do  rosto  a  intenção  de  mostrar  que  a  ima- 
ginação do  Colombo  não  se  deteve  neste  episodio 
mais  que  um  passageiro  instante  ,  para  em  seguida 
se  encaminhar  a  outras  idéas  mais  sublimes  ,  ou  a 
roais  gloriosas  recordações.  l*or  uma  combinação 
feliz  o  interesse  momentâneo  vislumbra  nas  caras 
dos  assistentes  .  e  posloquc  de  variadas  expressões 
são  estes  aceidentes  de  physionomia  adequados  ás 
circunistancias  ,  e  vigoram  o  pensamento  geral. — 
Na  esquerda  divisa-se  um  velho  calvo  ,  de  froule 
encrespada  e  cerrando  os  beiços  por  despeito  ;  tra- 
tou de  suster  o  ovo ,  mas  sem  chamar  a  attenção 
dos  outros,  como  se  deixa  ver  pela  postura  dos  bra- 
ços cruzados  ;  tem  íitado  a  attenção  no  rosto  de  Co- 
lombo ,■  para  quem  olha  desdenhoso  ,  o  que  6  bem 
de  observar  notando-se  que  está  recostado  e  de  ca- 
beça alia  disfarçando  sentimentos  d'invcja.  É  lam- 
bem por  isso  que  o  navegante  de  preferencia  se 
dirige  a  ellc  e  se  compraz  em  pór-lhe  silencio. — 
No  lado  fronteiro  ha  um  mancebo  occupado  na  so- 
lução mechanica  do  problema  :  lodo  o  corpo  incli- 
na para  o  ovo  quebrado  por  Colombo  ,  e  não  pare- 
ce mui  persuadido  da  moralidade  da  parábola  ;  in- 
culca que  está  para  al)rir  a  boca  e  proferir :  — 
«.Não  senhor,  não  foi  isso  o  que  se  propòz.» — Dos 
dois  homens,  entre  os  quaes  está  sentado  Colombo, 
um  de  idade  madura  e  cabeça  descoberta  ri  ás 
gargalhadas ,  e  sem  malicia  ,  da  subtileza  com  que 
Colombo  aprumou  o  ovo  ;  mas  já  não  é  o  mesmo  o 
riso  tão  expressivo  do  velho  de  óculos  e  barreie 
que  parece  captivado  da  perspicácia  de  Colombo, 
p  nada  participar  do  ódio  do  que  lhe  visinha.  Quan- 
to á  quinta  personagem  que  dá  punhadas  cm  si , 
entregaudo-se  a  ura  rir  sem  acabar  ,  pôde  suppor- 
se  que  applica  toda  a  sua  attenção  á  scena  muda, 
que  se  passa  entre  Colombo  e  o  primeiro  velho  ,  e 
que  diz  lá  comsigo  : — «por  todos  os  santos  e  san- 
tas! que  o  basbaque  ficou  burlado  e  não  sabe  que 
resposta  dó.»  — 


0 

i:oBO. 

1128- 

IH       - 

0 

Sarau. 

O  a?pk!:to  do  burgo  de  Guimarães  indicaria  tudo  , 
menos  um  desses  raros  pcriodos  de  paz  e  repouso  ; 
de  festas  e  pompas  civis  e  religiosas  ,  que  ,  seme- 
lhantes aos  raios  do  sol  por  entre  nuvens  húmidas 
de  noroeste  ,  alegravam  a  terra  ,  sorrindo  a  espaços 
no  meio  das  tempestades  politicas  que  varriam,  na- 
quella  epocha  ,  o  solo  ensanguentado  da  Península. 
Como  se  houvera  alargado  um  braço  até  então  pen- 
dente ,  o  castello  roqueiro  tinha  estendido  do  an- 
gulo esquerdo  da  torre  do  miradouro  uma  compri- 
da couraça  de  vigas  c  entulho  que  vinha  morrer 
em  um  cubcllo  na  orla  exterior  do  burgo.  Depois, 
da  extremidade  daquella  muralha  inclinada,  do  ou- 
teiro para  o  valle,  corria  a  ura  e  outro  lado  do  ba- 


luarte nma  tranqueira  de  pouca  altura  ,  donde  fa- 
cilmente besteiros  e  frecheiros  poderiam  despejar 
a  salvo  seu  armazém  em  quacsqucr  inimigos  que 
eouimetlessem  a  povoação.  O  cubcllo  era  como  o 
punho  cerrado  do  disforme  braço  que  sabia  da  tor- 
re alvarran  ,  c  a  tranqueira  como  uma  faixa  com  a 
qual  o  desmesurado  gigante  de  pedra  parecia  ten- 
tar unir  a  si  o  burgo  apinhado  lá  embaixo.  Alem 
disto,  o  mosteiro  de  D.  Mumadona  ,  iiostnque  ve- 
lho c  fraco,  também  parecia  animado  dVspirito 
guerreiro;  porque  as  ameias  que  coroavam  o  ter- 
rado do  campanário  ,  pouco  antes  lombadas  em 
grande  parte  c  cnbertas  de  hervas  c  musgo,  esta- 
vam limpas  e  galeailns  de  novo  nos  seus  logares  , 
ao  passo  que  por  rnlre  ellas  se  divisava  uma  gros- 
sa manganella  assentada  no  meio  do  eirado  cm  dis- 
posição de  arrojar  pedras  para  a  campanha,  que  se 
dilatava  diante  do  formidável  engenho. 

Todavia  estas  evidentes  caulcllas  e  precauções 
militares  desdiziam  bastanteraente  do  que  se  passa- 
va no  castello.  Era  pela  volta  das  dez  horas  d'uma 
noite  calmosa  de  junho.  A  lua-cheia  batia  de  cha- 
pa nas  muralhas  esbranquiçadas  ,  as  sombras  das 
torres  macissas  listravam  d'alto  a  baixo  as  paredes 
dos  paços  inleriorcs  de  faixas  negras  sobre  a  palli- 
da  silbaria  de  mármore  ,  tornando-a  semelhante  ao 
dorso  da  zcvra  selvagem.  Contrastavam  ,  porem  ,  a 
melancholia  e  silencio  deste  espectáculo  nocturno 
as  torrentes  de  luz  avermelhada  jorrando  por  en- 
tre os  maincis  que  sustinham  ao  meio  das  altas 
e  esguias  janellas  as  bandeiras  c  laçarias  de  pedra. 
Estes  maincis  c  bandeiras,  formando  flores  e  ara- 
bescos ,  recortavam  de  mil  modos  aquclles  vãos  af- 
fogueados  e  brilhantes ,  rotos  a  travcz  das  listas 
alvacentas  c  negras  ,  de  que  a  lua  arraiava  a  fron- 
te do  soberbo  edificio.  Na  penumbra  do  extenso  pa- 
teo  que  corria  entre  as  muralhas  e  a  frontaria  do  pa- 
ço ,  branquejavam  os  saios  dos  cavalleriços  («)  que 
tinham  de  rédea  as  mnllas  de  corpo  dos  senhores, 
e  ricos-homeus  ;  scintillavam  os  freios  de  ferro  pu- 
lido  e  as  sellas  á  mourisca,  tauxiadas  de  ouro  o 
praia  ;  ouvia-se  o  palear  dos  animaes  e  o  sussurro 
dos  servos  conversando  c  rindo  cm  tom  sumido. 
Mas  era  lá  cm  cima,  nas  salas  esplendidas,  que  se 
viam  passar  rápidos  como  sombras  os  vultos  de  da- 
mas e  cavallciros  arrebatados  no  turbilhão  das  dan- 
ças ;  lá  soavam  as  melodias  dascitulas,  das  harpas, 
das  doçáiuas,  por  entre  as  quaes  rompiam  os  sons 
vividos  das  eharamellas,  o  estrépito  das  trombetas, 
o  rebombo  dos  tímpanos  ;  e  quando  aqucllas  toadas 
afrouxavam  e  morriam  cm  sussurrar  confuso,  reti- 
nia uma  voz  áspera  c  aguda  que  vibrava  no  meio 
daquelle  ruído  de  festa.  Então  í"azia-se  um  profun- 
do silencio,  que  não  tardava  a  ser  partido  por  gri- 
tos e  risadas  estrondosas,  que  reslrugiam  pelas  abo- 
badas ,  cruzavam-se  e  confundíam-se  repercutidas 
em  borborinho  infernal.  Via-se  claramente  que  a 
embriaguez  da  alegria  havia  chegado  ao  extremo 
auge  do  delírio ,   e  que  dahi  avante  não  podia  se- 

(•)  Os  cavnlltriços  eram  os  servos  que  Iralavam  ilos  gi- 
neles  e  cavalgaduras  dus  nobres.  Di/.eraus  oqueeram  porque 
delles  não  se  faz  menijào  alguma  no  Elucidário,  e  levissima 
em  Durante  verbo:  CnhnVarius.  Vò-se,  porem,  em  que  con- 
sistia e<te  cargo  servil  il'uni  inslrumenlo  d'iujenuidade  de 
1033  [Cullec.de  var.  privileg.  T.  5.°  Doe.  3.°]  Fique  di- 
to por  uma  vez  que  todus  os  nomes  que  eoípregamos,  sce- 
nas  que  descrevemos ,  costumes  que  pintamos,  são  riirorosa- 
mente  tiistoricos.  Fácil  mis  fora  sumir  este  romance  em  tini 
pelajo  decilações;  mas  falece-nos  a  fnria  da  erudição.  Enão 
seria  ella  ridícula  uo  humilde  Listoriadur  d'uni  humilissimo 
truào  ?         ,. .         . 


3« 


O  PANORAMA. 


não  decrescer.  O  tcdio  c  o  cançaco  não  tardaria  a 
separar  aquella  rntnpanliia  lustrosa  ,  que  parecia 
esquecer  nos  braços  do  deleite  que  tudo  ao  redor 
delia,  no  caslcllo  e  no  burgo,  annunciava  as  triste- 
zas dú  guerra  c  os  riscos  dos  combates. 

De  feito  ,  já  nos  rcaes  aposentos  da  bcUa  infanta 
de  Portugal  muitos  dos  ricos-homcns  c  infanções , 
.'.pinhadõs  aos  cinco  e  seis,  aqui  eacol.í,  ou  encos- 
tados aos  balcões  da  sala  d'armas,  começavam  a 
lallar  com  viva  agilação  dos  successos  do  tempo. 
As  donzellas  iam  ;;sscntar-se  nas  almadraqucxas  en- 
fileiradas junto  da  parede  no  topo  da  sala  ,  onde  se 
erguia  ,  cousa  de  um  pó  acima  do  pavimento  ,  o 
■vaslo  estrado  da  infanta.  Esta,  na  sua  cadeira  d'cs- 
paidas,  escutava  l''crnão  Perez,  que  firmando  a  mão 
no  braço  da  cadeira  ,  c  curvado  para  ella  por  de- 
traz  do  espaldar  ,  com  aspecto  carregado  ,  parecia 
dirigir-lhe  de  quando  em  quando  palavras  breves 
c  vchementes  ,  a  que  D.  Thereza  ,  que  não  sahíra 
do  seu  logar  desde  o  começar  do  sarau  ,  respondia 
muitas  vezes  com  nionosyllabos,  ou  com  nm  volver 
d'olhos  em  que  se  pintava  a  angustia ,  desmentin- 
do o  sorriso  forçado  que  ,  frouxo  c  passageiro  ,  lhe 
adejava  nos  lábios. 

Junto  ao  topo  do  estrado,  do  lado  esquerdo  da 
infanta,  ura  joven  cavalleiro  em  pé  fallava  também 
em  voz  baixa  com  uma  formosa  donzclla,  que,  recli- 
nada na  ultima  almadraquexa  ,  respondia  entre  ri- 
sadas aos  ditos  do  outro  interlocutor.  E  todavia  no 
gesto  do  cavalleiro,  na  vivacidade  das  suas  expres- 
sões ,  no  seu  olhar  ardente  se  revelava  que  as  res- 
postas alegres  da  donzella  desdiziam  das  palavras 
apaixonadas  do  mancebo  ,  cujo  aspecto  se  entriste- 
cia visivelmente  com  aquella  alegria  intempestiva 
e  cruel. 

Ao  pé  de  uma  das  columnas  de  pedra  ,  que  su- 
bindo ao  tecto  SC  dividiam  como  os  Inuicos  de  nm 
plátano  cm  aríezões  de  castanho  ,  os  quacs  morren- 
do nos  vértices  das  ogivas  cm  bocctes  dourados 
pareciam  sustentar  o  renque  de  lampadários  gigan- 
tes pendentes  da  escura  profundeza  daquellas  vol- 
tas; —  ao  pé  d'uma  destas  columnas,  no  lado  op- 
posto  da  sala,  trcs  personagens  fallavam  lambem  ha- 
via largo  tempo  ,  sem  fazerem  caso  do  tanger  dos 
menestréis  ,  do  doudejar  das  danças ,  do  sussurrar 
confuso  que  redemoinhava  era  volta  delles.  Era  a 
sua  conversação  de  género  diverso  das  duas  que  já 
descrevemos.  Aqui  os  trcs  indivíduos  pareciam  to- 
mar todos  vivo  interesse  no  objecto  de  que  se  oc- 
cupavam  ,  ainda  que  de  modo  dilícrcnte.  Um  del- 
les ,  alto ,  magro  ,  trigueiro  e  calvo  ,  porem  não  de 
velhice,  porque  era  homem  de  quarenta  annos,  tra- 
java um  saio  negro,  comprido,  e  apertado  pela  cin- 
tura com  uma  larga  faixa  da  mesma  cór,  vestuário 
próprio  do  clero  daquelle  tempo  :  o  outro  ,  ancião 
venerável,  tinha  vestida  uma  cogulla  monástica  . 
igualmente  negra ,  .segundo  a  usança  dos  monges 
bentos  ;  o  terceiro  (inalmcnte  ,  o  mais  moço  dos 
tíes,  era  um  cavalleiro  que  mostrava  ter  pouco  mais 
de  trinta  annos,  membrudo,  alvo,  cabellos  anncladns 
e  louros  —  um  verdadeiro  nobre  da  raça  germânica 
dos  visigodos.  O  clérigo  calvo  ,  com  os  olhos  quasi 
sempre  fitos  no  chão  ,  só  os  punha  de  relance  na- 
qucllc  dos  dois  que  fallava;  mas  este  olhar  incer- 
to e  sorrateiro  bastava  para  descobrir  nelle  uma  In- 
dilfercnça  hypocrila  e  uma  curiosidade  real.  No 
voslo  do  velho  pintava-se  profunila  attcnção  ,  prin- 
cipalmente .i';  palavras  do  mancebo,  as  quacs  enér- 
gicas ,  vehciiientcs  ,  o  rápidas  ,  davam  testemunho 
das  vivus  coniinoçõcs  que  agitavam  a  sua  alma. 


Dos  três  grupos  em  qne  no  meio  de  tantos  ou- 
tros fizemos  principalmente  reparar  o  leitor  ,  já 
elle  conhece  as  personagens  do  primeiro  —  a  vinvi 
do  conde  Henrique  ,  e  Fernando  Perez  de  Trava. 
Para  clareza  desta  importante  historia  necessário  é 
que  lhe  digamos  quem  eram  os  que  compunham  os 
outros  dois ,  e  lhe  expliquemos  os  porquês  da  si- 
tuação respectiva  de  cada  um  desses  indivíduos. 

Entre  as  donzellas  da  infanta-rainha  uma  havia 
em  que  ella  ,  mais  que  em  nenhuma  outra  ,  tinha 
posto  as  suas  alTeições  e  complacências  ;  e  cora  ra- 
são  :  —  crcára-a  de  pequenina.  Dulce  era  filha  de 
D.  Gomes  Nunez  de  Bravacs,  rico-homem ,  que 
morrera  na  rota  deVatalandi  combatendo  como  es- 
forçado a  par  do  conde  borgonhez.  Expirando  o  no- 
bre cavalleiro  cncommendou  sua  lilha  orphã  á  pro- 
tecção do  conde.  Este  não  se  esqueceu  da  supplica 
do  guerreiro  moribundo;  trouxe-a  para  seus  paços, 
e  entregou-a  a  sua  mulher.  Nos  tenros  annos,  Dul- 
ce promcttia  ser  formosa,  e,  o  que  não  era  de  me- 
nos valor ,  de  um  caracter  nobre  e  enérgico  e  ao 
mesmo  tempo  meigo  e  bondoso.  Pouco  a  pouco  D. 
Thereza  lhe  ganhou  amor  de  raãi.  Até  os  vinte  an- 
nos ,  que  já  Dulce  contava,  este  amor  não  afrou- 
xara ,  nem  no  meio  dos  graves  cuidados  que  cer- 
caram a  infanta  nos  primeiros  tempos  da  sua  viu- 
vez .  nem  com  a  louca  alleição  do  conde  Fernão 
Perez.  As  esperanças  que  a  donzella  dera  se  ha- 
viam inteiramente  realisado.  Dulce  era  um  anjo  de 
bondade  e  de  formosura. 

Mas  este  anjo  innoccnte .  rodeado  de  carinhos 
das  mais  nobres  damas,  das  adorações  dos  mais  il- 
Instres  cavalleiros  da  corte,  parecia  ter  cerrado  in- 
teiramente o  coração  ao  amor.  Verdade  c  que  en- 
tre os  mancebos ,  sempre  attentos  a  indagar  as  in- 
clinações das  donzellas  ,  tinham  existido  suspeitas 
de  que  esta  indifferença  e  frieza  era  mais  simulada 
que  verdadeira.  Elles  haviam  observado  que  os 
olhos  de  Dulce  costumavam  litar-sc  com  desusada 
complacência  n'um  donzel  ,  que  bem  como  ella  fo- 
ra crendo  na  corte.  Era  este  Egas  Moniz  Coelho  , 
primo  do  ancião  Egas  Moniz  ,  senhor  de  Cresconhc 
c  Rezende,  caio  do  moço  infante  Alliniso  Ilenriquez. 
Pouco-diflerentes  em  idades,  scinelliantes  era  génio 
e  caracter,  c  educados  juntos,  desde  tenros  annos, 
pelo  respeitável  senhor  da  Honra  de  Cresconhc,  os 
dois  mancebos  haviam  contrahido  aniisade  intima. 
Na  mesma  noite  c  na  só  de  Zamora  tinham  velado 
as  armas.  Como  prova  da  sua  independência  poli- 
tica ,  D.  AfTonso  tomara  do  altar  a  armadura  o  a 
si  ir.oprio  se  fizera  cavalleiro.  Das  mãos  dellc  re- 
cebeu depois  o  mesmo  grau  ,  alvo  da  ambição  de 
toilds  os  mancebos  nobres,  o  seu  amigo  da  infância  ; 
e  o  infante  eEgas,  até  ahi  irniãns  pela  alfeição  mu- 
tua, ficaram  liesde  então  mais  unidos  ainda  jicla  fra- 
ternidade das  armas. 

.\s  suspeitas  dos  moços  cavalleiros  tinham  nasci- 
do pouco  depois  da  vinda  de  D.  AlTonso  e  de  Egas 
para  a  corte  de  Guimarães.  Mas  semelhantes  sus- 
peitas breve  se  desvaneceram.  Inesperadamente  Egas 
Moniz  partiu  para  as  guerras  d'ultramar,  ou,  co- 
mo hoje  se  diz,  para  a  cruzada.  Ninguém  atinou 
com  o  motivo  desta  súbita  resolução.  Todavia  ,  se 
os  amores  com  Dulce  existiam  realmente  ,  era  es- 
sa jiaixão  quem  o  afastava  delia.  Nascido  com  es- 
pirito ardente  ,  trovador  e  guerreiro  ,  Egas  preci- 
sava de  obter  gloria,  porque  as  almas  poéticas  da- 
quelle  tempo  não  coraprehendiam  o  amor  sem  re- 
nome ,  nem  talvez  sem  esto  o  encontrariam  no  seio 
dc  nobre  donzella  ,  digna  de  sua  alfeição.   A  terra 


o  PAj\ORA]>1A. 


39 


santa  er.i  naqiiclla  cpocha  o  campo  mais  foi-til  para 
os  coifadorps  de  gloria  :  as  rcpiitarOcs  ailquiriíias 
na  Palestina  reliirabavam  por  toilo  o  orbe  cliristão. 
Era  o  amor  (jucni  arrastava  Eu'as  para  essa  vida  do 
riscos,  privarões  c  combates?  Quem  poderia  dizc- 
lo '.'  Ninguém  sequer  o  pensou. 
■  O  que  é  certo  é  que  depois  da  sua  partida,  Dul- 
ce pareceu  mais  triste  que  de  costume.  Porem  ,  se 
eram  saudades,  ou  essa  alma  enérgica  soube  escon- 
der seu  marlyrio  e  devorar  no  silencio  c  na  solidão 
da  alta  noite  as  suas  lagrymas ,  ou  as  saudades  se 
extinguiram  no  meio  da  vida  risonha  e  distrahida 
da  corte.  O  moro  trovador  tinha  esquecido  a  todos  : 

—  pôde  ser  quo  também  a  cila. 

Entretanto  uma  nuvem  dccavallciros  a  cercaram 
de  adorações.  Debalde  I  Só  um  esperava  accender 
alguma  faisca  de  amir  neste  coração  gelado.  Era 
Garcia  Bermudez  ,  cavalleiro  aragoncz  ,  valido  do 
conde  de  Trava,  c  uma  dasmelhorcs  lanças  d'Hcs- 
panha  .  que  com  clle  viera  a  Portugal.  Dotado  de 
generoso  animo  ,  mas  sobradamcnte  altivo  ,  c  con- 
fiado no  próprio  mérito  ,  Garcia  Bermudez  amava 
a  donzella  querida  de  D.  Thereza  ,  e  esperava  ser 
correspondido;  porem  no  coração  de  Dulce  achara 
um  aflecto  quf  lá  não  quizera  encontrar: — amor 
sim  ;  mas  amor  d'irniã.  Era  ellc  quem  no  meio  das 
festas  obtinha  todas  as  preferencias  da  filha  adopti- 
va da  infanta  :  a  sua  conversação  a  qun  mais  lhe 
apprazia.  Comtudo,  quando  nomeio  do  ruido  c  ale- 
gria dos  sar.íus,  ou  cavalgando  no  ginete  possante 
e  correndo  ao  lado  do  palafrem  de  Dulce  pelas  flo- 
restas .e  çarçaes,  nas  montarias  e  caçadas,  ellc  bus- 
cava ensejo  para  ])roferir  essas  pala\ras  vchemcntes 
que  escutadas  sem  cólera  coroam  esperanças  de  mui- 
tos dias,  e  repellidas  entenebrecem  o  futuro,  e  de- 
voram lima  existência,  Dulce  esquivava  sempre  com 
um  gracejo  esse  instante  decisivo,  e  oaragonezapar- 
'Tndo-se  delia  amaldiçoava  a  hora  cm  que  a  amara, 
;ra  dahi  a  pouco  imaginar  novo  ensejo  cm  que  po- 
uesse  resolver  per  uma  vez  o  seu  incerto  destino. 

Dulce  era  a  donzella  ,  assentada  na  extrema  al- 
madraquexa  do  estrado  ;  Garcia  Bermudez ,  o  ca- 
valleiro com  quem  ella  faliava  e  ria  :  e  o  que  en- 
tre os  dois  se  passava  ,  uma  repetirão  dessas  scc- 
nas  em  que  tantas  vezes  a  destreza  da  mulher  que 
não  ama  sabe  triumphar  cruelmente  da  mais  terrí- 
vel entre  as  mais  terríveis  paixões ,  o  amor  do  ho- 
mem ,  recalcado  no  coração  pela  indiffcrença  da- 
quclla  a  quem  no  abysrao  do  seu  orgulho  disse  ; 

—  tu  serás  minha  I 

Dos  três  personagens  que,  cm  pé  no  outro  extre- 
mo do  vasto  aposento,  pareciam  alheios  a  tudo  quan- 
to passava  em  volta  dellcs ,  embebidos  em  disputa 
\ioIenta,  ura  era  o  celebre  Gonçalo  Mcndcz  da 
'laia  ,  ao  qual ,  em  verdes  annos  ,  extremadas  gcn- 
liezas  d'armas  tinham  feito  dar  o  appellido  de  Li- 
dador, de  que  por  toda  a  sua  larga  vida  elle  se 
havia  de  mostrar  constantemente  digno.  Era  o  ou- 
tro o  capellão  de  D.  Thereza,  o  muito  honrado  Mar- 
lim  Eicha  ,  filho  do  mui  exccllcnte  walid  de  La- 
mego .  Eicha  ,  que  submettido  pelo  conde  Henri- 
que abraçara  o  christíanismo  (::}.  Seu  filho,  Mar- 
tim  Eicha  ,  seguira  o  exemplo  paterno  ,  e  como  em 
todas  as  opiniões  deste  mundo  os  renegados  são  os 
mais  fervorosos  na  sua  nova  crença  ,   achara   elle 


(::)  Esle  .«uccesso,  que  refere  Brandão  sem  o  reprovar, 
labora  em  taes  dilTiculilades  que  seria  inadmissível  eui  histo- 
ria ;  mas  pôde,  cremos  uiís  ,  sem  offensa  das  pias  orellias 
dos  críticos ,  ter  cabida  na  gravíssima  biograpLia  do  nosso 
Dom  Bibas. 


era  consciência  (jnc  para  se  mundificar  das  torpe- 
zas do  islamismo  de\ia  abraçar  a  pura  vida  do  sa- 
cerdócio. Cónego  da  sé  de  Lamego  ,  restaurada  por 
remando  o  Magno  ,  e  que  nesta  epocha  se  achava 
unida  á  de  Coimbra  ,  o  bom  do  tornadir^»  não  po- 
derá na  santi<lade  do  seu  ministério  riscar  do  es- 
pirito a  lembrança  profaníssima  de  que  nascera  fi- 
lho de  um  walid.  ^"oavam-lhe  os  pensamentos  al- 
tivos para  os  paços  reaes  ,  como  á  gata  da  fabula 
fugiam  as  unhas  para  o  murganho  depois  de  trans- 
formada em  mulher.  Finalmente  os  seus  desejos 
cumpríram-se.  A  Lella  infanta  de  Portugal  cha- 
j  mou-o  á  corte  ,  apenas  delia  sahiu  desgostoso  o  ar- 
j  cebispo  de  Braga,  cujo  caracter  austero  mal-sofTria 
os  amores  de  Fernão  Percz  c  de  D.  Ihereza.  Mar- 
tira  Eicha  era  o  homem  talhado  para  o  caso.  O 
seu  Evangelho  fora,  por  assim  dizer,  escripto  n'um 
palimpsesto  do  Koran  ,  e  as  doutrinas  do  propheta, 
relativas  á  metade  mais  formosa  do  genero-huma- 
no  ,  rc>crdeciam-lhe  ás  vezes  atravez  da  severida- 
de das  sacras  paginas  e  confundiam-se  a  seus  olhos 
com  ellas.  Por  esta  causa  ,  vinha  o  cónego  Martim 
Eicha  a  ser  o  capellão  mais  a  ponto  naqucllas  in- 
trincadas circumstancias  ,  em  que  os  princípios  de 
theologia  moral  andavam  cm  tanta  harmonia  com 
os  costumes  ,  como  neste  bemdito  século  decimo- 
nono  as  sãs  doutrinas  políticas  andam  conformes 
com  a  realidade  dos  factos. 

Era,  finalmente,  a  terceira  pessoa  daquella  trinda- 
de argunicntadora  e  disputante  ,  o  abbade  do  mos- 
teiro de  D.  Slumadona  .  velho  folgazão  mas  hones- 
to ,  que  na  nieza  dos  banquetes  despejava  uma  la- 
ça de  vinho  ,  c  ainda  um  cangirão  de  cerveja  ,  ou 
varria  uma  palangana  de  dobrada  —  iguaria  mimo- 
sa desse  tempo  —  com  o  mesmo  fervor  e  devoto  re- 
colhimento com  que  na  solidão  da  sua  cella  resava 
as  horas  canónicas ,  ou  gargantcava  no  coro  psal- 
mos  e  antiphonas  com  os  seus  frades.  Apesar  dos 
beueficios  que  o  acísterio  de  Guimarães  recebera 
da  infanta  ;  apesar  do  gasalhado  que  encontrava 
no  paço ,  o  bom  do  velho  torcia  sem  rebuço  o  na- 
riz á  tão  intima  privança  do  conde  Fernão  Perei: 
com  a  rainha.  Não  porque  desse  ouvidos  aos  mal- 
dizentes .  que  ainda  nas  mais  puras  acções  vertem 
a  peçonha  de  seus  estômagos  damnados  ,  mas  por- 
que não  podia  negar  o  credito  ao  que  seus  olhos 
viam,  e  a  experiência  e  rasão  lhe  ensinavam.  En- 
xergava ao  longe  o  crescer  da  tempestade  que  amea- 
çava assolar  a  terra  de  Portugal :  vira  nascer  ,  en- 
grossar ,  c  rebentar  como  um  volcão  o  ódio  entra- 
nhavel ,  accumulado  por  annos  ,  entre  o  senhor  de 
Trava  e  o  moço  AlTonso  Henriquez  :  vira  dividir-se 
a  fidalguia  em  dois  bandos;  c  quando  o  infante  , 
dois  mczcs  antes  da  epocha  da  nossa  historia  ,  de- 
sapparcccra  dos  paços  de  Guimarães ,  seguido  de 
vários  ricos-homcns  e  cavalleiros  da  sua  parciali- 
dade ,  o  bom  do  abbade  conhecera  que  nma  terri- 
bílissima  lucta  se  ia  travar  entre  a  mãi  e  o  filho  , 
lucta  desnaturai  e  monstruosa,  cujo  desfeixo  ,  fos- 
se qual  fosse  ,  não  podia  deixar  de  gerar  muitos 
crimes.  A  precipitação  com  que  se  fortificara  o  bur- 
go ,  e  as  noticias  vagas  de  que  o  infante  se  appro- 
simava  de  Guimarães  con:  uraa  hosle  numerosa,  e 
acompanliado  do  arcebispo  de  Braga  e  dos  seus  ho- 
mens d'armas,  lhe  punham  ante  os  olhos  ,  conii> 
immíncntes  e  inevitáveis  .  as  scenas  tremendas  que 
de  longo  tempo  previra.  O  estado  dos  negócios  pú- 
blicos era  o  objecto  de  nccesa  prática  dos  três ;  ou 
por  nos  servirmos  de  uma  franoezia  da  moda  —  el- 
les  faziam  política. 


40 


O  PAIVORAMA. 


Era  tambcm  o  perigo  que  os  ameaçava  a  am- 
bos;  era  a  nuvem  procellosa  que  viam  Já  no  iinri- 
soote  da  sua  vida  ,  alé  ahi  tão  povoada  de  delei- 
tes ,  tão  rica  de  esplendor  e  de  predomínio ,  o 
pensamento  que  turbava  a  fronte  do  nobre  Fer- 
não Perez  ,  e  fazia  gotejar  pelas  faces  da  bella  in- 
fanta as  bTgrymas  ,  que  em  vão  ella  tentava  conter. 
Com  olhos  enxutos  e  animo  de  ferro  ,  a  Clha  de 
Affonso  6.°  tinha  vivido,  durante  dezeseis  annos  . 
quasi  sempre  nos  campos  de  batalha  ,  nos  arraiaes 
jiuito  aos  caslellús  cercados,  ou  encerrada  nestes 
defendendo-os.  Com  olhos  enxutos  e  animo  de  ferro 
tinha  visto  varias  vezes  as  rotas  dos  seus  homens 
darraas,  liriba  fugido  com  elles  :  assistira  a  mui- 
tas scenas  de  carnificina  ;  ouvira  muitas  vezes,  pe- 
la alta  noite  na  tenda  de  guerra  ,  gemidos  de  mo- 
ribundos ,  e  o  uivo  do  lobo  descendo  das  brenhas 
guiado  pelo  cheiro  do  sangue:  havia  apenas  um 
anno  que  se  vira  constrangida  a  curvar  a  cerviz  .-í 
fortuna  de  seu  sobrinho  ,  o  imperador  Affonso  ilai- 
mundez  ,  mas  nunca  sentira  coar-lhe  pelas  veias  o 
terror  ou  o  desalento  :  a  sua  alma  era  a  de  guer- 
reiro,  escondida  debaixo  das  formas  delicadas  e 
suaves  de  mulher.  Criam-no  todos :  cria-o  ella.  Mas 
o  prestigio  passou.  A  dura  prova  a  que  a  pozcra 
uma  paixão  desgraçada  revelava  emfim  a  fraqueza 
feminil.  Até  então  no  jogo  dos  combates  apenas  ar- 
riscara o  vasto  senhorio  de  Portugal ;  mas  no  que 
se  lhe  offerccia  agora  expunha  o  amante  ,  expunha 
todo  o  futuro  ,  toda  a  esperança  e  todos  os  conten- 
tamentos. Por  isso  as  lagrymas  da  bella  infanta  cor- 
riam. Quem  sabe  se  também  entre  eslas  alguma 
era  por  seu  filho  ? 

O  sarau  daquella  noite  fora  para  ella  um  longo 
raarlyrio.  O  espectáculo  do  rir  c  folgar  ,  o  translu- 
zir da  alegria  em  tantos  gestos,  faziam-lhc  mais  car- 
regada a  negra  nuvem  da  sua  tristeza  :  era  um  tra- 
to doloroso  ,  cruel,  dilatado;  era  como  o  preludio 
medonho  de  um  cântico  infernal  ;  mas  cumpria  sof- 
fre-lo  resignadamente.  Dos  cavalleiros  portuguezes, 
que  seguiam  ainda  a  corte  ,  muitos  ânimos  titubea- 
vam indecisos  entre  o  balsão  do  infante  e  o  pen- 
dão da  rainha  de  Portugal  ;  e  a  hesitação  ou  o  te- 
mor seria  o  signal  para  essa  fidalguia  brilhante  pas- 
sar ao  campo  contrario.  Fernão  Perez  contava  com 
os  cavalleiros  gallcgos,  asturianos  c  aragonezes,  de 
que  pouco  a  pouco  se  rodeara  :  mas  seria  isto  bas- 
tante para  o  salvar  c  salvar  a  infanta?  Eis  o  que 
era  mais  que  duvidoso.  Com  a  astúcia  de  fingido 
desafogo  e  destemor  elle  tentava  enganar  os  que 
vacillavam,  c  fazer-lhes  crer  ,  dançando  na  borda 
do  abysmo  ,  que  fácil  llic  seria  galga-lo. 

Mas  o  senhor  de  Trava  não  se  lembrava  nos  seus 
cálculos  políticos  d'uma  circumstancia  que  devia 
infiuir  no  resultado  final  dellcs.  O  grande  pensa- 
menU)  do  conde  llenri(|ue  ;  o  pensamento  que  o 
audaz  borgonhez  acariciara  por  tantos  annos  ,  e  a 
que  votara  a  existência  —  a  inde[icndencia  do  con- 
dado de  Portugal  —  não  morrera  com  elle:  germi- 
nou ,  alimentou-sc  ,  e  cresceu  nas  guerras  com  os 
leonezes  — ■  guerras  atú  certo  ponto  civis  ,  em  que 
D.  Thereza  pruseguíra  cora  tenacidade  implacável. 
As  mais  províncias  da  llespanha  gradualmcnie  fo- 
ram parecendo  aos  olhos  dos  cavalleiros  portugue- 
zes uma  terra  estrangeira  ,  estranhos  os  filhos  del- 
ias. Um  sentimento  de  nacionalidade  surgiu  nos  co- 
rações ,  vago  e  confuso  ,  mas  enérgico.  E  no  meio 
dos  seus  graves  cuidados  e  das  suas  previsões  pro- 
fundas ,  o  conde  de  Trava  se  esquecera  de  (|ue  vi- 
ra pela  primeira  vez  o  sul  sob  o  céu  da  Galliza. 


Se  D.  Thereza  triumphassc  ,  elle  —  o  estrangei- 
ro—  seria  o  senhor  da  nobre  e  livre  terra  de  Por- 
tugal. D.  AlTonso  Henriquez,  porem,  nascera  áqueni 
do  Minho.  Assim,  muitos  daquellesquc  o  ambicioso 
filho  de  Pedro  Froylaz  suppunha  indecisos  na  vés- 
pera da  grande  lucta  ,  eram  já  seus  inimigos. 

É  o  que  o  leitor  melhor  avaliará  por  si  próprio 
se  quizer  escutar  a  conversação  travada  entre  Gon- 
çalo .Mendez  da  Maia  ,  o  santo  abbade  do  mosteiro 
de  D.  Mumadona  ,  e  o  mui  reverendo  capellão  da 
rainha.  .Não  será  grande  o  incommodo  :  basta-lhe 
lançar  os  olhos  para  o  capitulo  seguinte. 

(À.  Hcraihino. 


BOTÂNICA. 


EojinTCio  ,  or  simaoi'.ma. 

(Lin.  Bomhax  Prntandrum.) 

A  AKVORE  bombycio  ,  ou  sumaoúma  merece  atlcn- 
ção  pela  sua  figura  differenle  da  das  ontras  arvo- 
res. É  uma  das  mais  grossas,  e  maiores  que  nas- 
cem nas  .Vnlilhas.  O  tronco  em  cima  e  em  baixo 
é  mnilo  parecido  com  o  das  outras  arvores,  porem 
no  meio  tem  uma  tal  inchação  ,  que  dobra  a  gros- 
sura das  duas  extremidades,  mas  o  que  é  mais  sin- 
gular são  as  suas  raizes  ,  que,  sendo  mui  grossas 
descrevem  scmi-arcos  ,  sahindo  fora  da  terra  seis 
até  oito  pés  ao  redor  do  tronco;  aponta  destas  rai- 
zes se  estende  depois  muito  pnr  todo  o  terreno  vi- 
sinho.  O  lenho  desta  planta  é  tão  brando  e  macio 
que  alguns  lhe  chamam  arvore  queijo  ;  a  natureza 
porem  a  armou  de  tantos  grossos  espinhos,  que  não 
fica  impune  quem  se  atreve  a  olTende-la.  Alem 
disto  cresce  rapidissimamente  ,  e  dá  uma  soberba 
folhagem  digitada  ,  e  llòres  bellissimas  ,  ás  quaes 
surccdera  fruclos  oblongos  ,  quasi  como  pepinos  , 
pontudos  para  a  base  ,  mais  grossos  para  o  cume  . 
e  que  se  abrem  em  cinco  partes,  quanilo  estão  ma- 
duros. Dentro  destes  fruetos  acham-se  sementes 
que  são  pardas,  do  tamanho  de  pequenas  ervilhas, 
e  cobertas  de  um  pèlio  ,  ou  espécie  de  algodão  fi- 
níssimo ,  mas  que  é  mui  curto  para  se  poder  fiar. 
Fslo  porem  não  obsta  a  que  o  colham  para  encher 
almofadas,  e  colchões:  mas  é  preciso  lodo  o  cui- 
dado que  lhe  não  chegue  fogo  ,  porque  a  menor 
faísca  bastaria  para  o  incendiar,  e  cora  tal  rapidez, 
que  não  daria  tempo  para  se  apagar  esto  ligeiro 
incêndio,  que  pôde  tornar-se  mais  considerável:  é 
por  isso  que  os  índios  se  servem  delle  em  logar  de 
isca.  Dizem  que  os  iuglezes  fazem  com  elle  cha- 
péus finos.  —  Neste  género  entram  as  piunriras  do 
Brasil. 

Mriú  de  excluir  os  pnrfjullina  e  niitrns  insectos  ífov 
firãds  rereaes.  —  Embeber  n'agua  ou  toldos  on  len- 
çoes  de  linho,  espreme-los  e  estende-los  depois  as- 
sim molhados  sobre  o  grão  eiui'lleira<lo  :  duas  ho- 
ras apenas  passadas  ,  se  encontrarão  os  insectos  pe- 
gados aos  lençoes  c  toldos:  é  preciso  então  ir  en- 
redando ou  envolvendo  os  pannos  com  cuidado  c 
destreza  para  os  não  deixar  escapar;  e  seguidamen- 
te mergulhar  tudo  n'agua  para  afogar  os  insectos. 


Escuta  mil  vezes,  c  não  falles  mais  que  uma. 

A  VIDA  sem  sciencia  c  uma  espécie  de  morte. —  So- 
cratcs. 


59 


o  PANORAMA. 


41 


03  PEREGRIUTOS  DE  S.  THIAGO. 


As  PRiNxiPAES  peregrinações  ou  romarias  da  Chris- 
tandade  ,  que  na  idade  média  foram  mui  frequen- 
tes ,  são  qnalro  : — Jerusalém  na  Palestina  ,  Uoma 
e  Loreto  na  Itália  ,  S.  Thiago  em  Corapostella  na 
Galiza.  Entre  todas  a  principal  e  a  mais  arriscada, 
havida  sempre  por  mais  meritória  ,  foi  a  visita  aos 
santos  logares  ,  thealro  das  scenas  da  Redcmprão. 
Já  no  4.°  século  da  era  christaã  concorriam  os  pe- 
regrinos á  terra  santa ;  porem  a  hostilidade  que 
dos  húngaros  e  d'outros  experimentavam  no  cami- 
nho desviou  por  muito  tempo  os  romeiros  ,  que 
trocaram  aquella  jornada  pela  de  Roma  ,  e  a  de  S. 
Thiago,  que  se  levavam  a  cabo  com  poucos  perigos 
e  incommodos. 

Na  idade  média  subiu  de  ponto  o  enthusiasmo 
religioso  c  o  fervor  dos  romeiros  que  em  grandíssi- 
mo numero  iam  ver  c  venerar  o  St.°  Sepulchro  , 
então  em  poder  dos  mussulmanos  ,  cuja  insaciável 
cobiça  ,  de  mistura  com  o  rancor  .  nascido  da  dif- 
ferença  de  crenças  e  de  porfiosas  batalhas  ,  impu- 
nha aos  peregrinos  christãos  toda  a  qualidade  de 
vexações  ,  maltratando-os  corporalmente  e  cora  in- 
jurias, faltando-lhes  com  o  preciso,  e  extorquindo- 
Ihes  dinheiro  por  mil  diversas  maneiras.  Tão  odio- 
so tratamento  ,  nos  fins  do  século  undécimo  ,  iu- 
ílammou  o  zelo  de  Pedro  ílermita  a  tal  auge  que 
aconselhando  e  pregando  a  primeira  cruzada  ,  le- 
vantou toda  a  Europa  contra  os  infiéis  da  Palesti- 
na :  é  esta  a  origem  certa  das  guerras  ditas  sagra- 
das ,  que  a  ambição  continuou,  e  que,  em  meio  de 
scenas  de  barbaridade,  brotaram  germens  de  futu- 
ra civilisação,  porque  é  incontestável  que  com  as 
cruzadas  nos  vieram  muitos  fructos  do  Oriente, 
muitos  elementos  d'industria,  commodidades  e  há- 
bitos ,   anteriormente  desconhecidos.  —  Antes  des- 

Fevereiro  1 1  —  1843. 


sas  luclas  sanguinolentas  ,  a  jornada  ordinária  dos 
]ieregrinos  era  de  grandíssima  volta  e  de  riscos  in- 
finitos ,  partindo  de  Constantinopola  para  Jerusa- 
lém ,  atravessando  regiões  da  Ásia ,  povoadas  de 
turcos  e  scismaticos.  —  Era  quanto  os  cruzados  oc* 
cuparam  a  Palestina  ,  foi  ,  sem  comparação  ,  mais 
fácil  a  visita  aos  santos  logares,  porque  se  reduzia 
á  viagem  do  Mediterrâneo  ;  como  ao  presente  acon- 
tece, tendo  cessado  os  ódios  encarniçados  das  guer- 
ras por  causa  de  crença  religiosa.  —  Outro  cami- 
nho houve ,  que  era  cruzar  o  deserto  arenoso  e  ge- 
ralmente estéril,  que  jaz  entre  o  Egypto  e  a  Palesti- 
na :  calculava-se  a  jornada  de  12  a  15  dias,  do  Cai- 
ro até  JaíTa,  a  antiga  Joppe  (•)  :  é  pelo  commum 
abandonado  pela  falta  d'aguas,  expondo-se  os  pas- 
sageiros por  qualquer  incidente  aos  horrores  da  se- 
de n'um  clima  abrazador. 

Deixando  porem  essas  longas  c  trabalhosas  pere- 
grinações,  expliquemos  a  nossa  estampa.  Repre- 
senta ella  dois  romeiros  de  S.  Thiago  ,  que  por  vo- 
to fazem  a  jornada  ;  levam  o  bordão  de  peregrino 
c  a  cabacinha  pendente  ,  com  sua  csclavina  vesti- 
da ,  como  era  de  uso  para  tacs  actos;  a  bolça  de 
couro,  e  a  fita  a  tiracollo.  A  esclavina  era  uma  es- 
pécie de  opa  ,  aberta  por  diante  ,  com  sua  murça 
entapizada  de  conchas  ,  do  género  das  pmteolas  ,  e 
a  que  se  costuma  chamar  vieiras. 

Sem  entrarmos  nas  elucidações  d'historia  cccle- 
siastica  ,  que  tendem  a  provar  a  vinda  do  a[)ostolo 
ásHespanhas,  eque  os  eruditos  encontrarão  na  E.r- 
pcditio  Hispânica  do  Iheatino  D.  Manuel  Caetano  de 
Sousa,  diremos  que  o  sepulchro  de  S.  Thiago  em  Com- 

^•")  Achar-se-ba  a  visla  do  bazar  de  JalTa  e  uma  noti- 
cia desta  cidade  e  euas  TÍsinbanças  a  pag.  17'i  do  5."  vol. 
da  1.*  Serie.       ■  , 

2."  Serie.  — Vol.  11. 


i-2 


O  PANORAMA. 


poslclla  foi  a  mais  freqiienlada  romaria  ila  nossa 
puiiinsula  ,  onde  não  só  concorriam  hcspatihoes  e 
portuguczcs,  porem  os  devotos  de  muitos  reinos  da 
F.iiropa  ,  notando-se  na  obra  de  Kynicr  o  grande 
numero  dos  que  \inham  annualmenle  de  Inglaterra 
satisfazer  este  acto,  que  julgavam  indispensável  á 
salvarão  de  suas  almas. — 

lia  para  os  romeiros  um  grandioso  hospital  cm 
('ompostclla  ,  e  quando  a  festividade  do  Si."  Apos- 
tolo cahe  ao  domingo  é  notável  ainda  a  afluência 
de  pessoas,  porque  cm  tal  dia  goza  a  sé  daquella 
cidade  do  privilegio  de  um  jubileu,  como  o  do  an- 
no  santo  cm  Roma  ,  que  os  lieis  ganham  de  25  era 
23  annos.  Da  mesma  maneira  que  na  capital  do  or- 
be catholico  o  summo  pontífice  abre  por  suas  mãos, 
em  solemne  procissão  ,  a  porta  que  chamara  ■porta 
xanta  do  jubileu ;  assim  nas  primeiras  vésperas  da 
C.ircumcisão  do  Senhor  ,  festividade  que  como  to- 
dos sabem  começa  o  anno  novo  ,  abre  o  arcebispo 
de  Santiago  com  solemnidade  e  grande  concurso  a 
porta  da  sé  ,  denominada  igualmente  poria  íaiiírt  , 
na  fachada  do  oriente  ;  e  torna  a  fecha-la  no  dia 
ultimo  do  anno. 


gpljHa^H^ig^^ 


><» 


Observações  gbaumíticaes. 

.! Á  dissemos  ser  ura  grave  defeito,  coramum  a  to- 
das as  linguas  que  nos  são  conhecidas  ,  o  não  le- 
rem uma  lettra  para  cada  som  ,  e  um  só  e  uuieo 
som  para  cada  lettra. 

Este  defeito  é  mais  ou  menos  frc([ucnlc  nas  dif- 
ferentrs  linguas  modernas,  porque  das  antigas  (jue 
havemos  apprendido ,  nada  consta  de  certo.  Alem 
disso  ha  algumas  cujas  grammaticas  tem  estabele- 
cido um  certo  numero  de  regras  ,  pelas  quaes  se 
pôde  conhecer  os  casos  cm  que  a  cada  lettra  se  de- 
ve dar  os  seus  diflercntes  valores.  Mas  ha  outras 
linguas  cm  que  os  homens,  que  sobre  ellas  tem  cs- 
criplo,  pouco  ou  nada  curaram  a  este  respeito,  lis- 
te ultimo  é  o  caso  da  lingua  portugueza. 

Cada  uma  das  nossas  vogaes  tem  de  dois  até  qua- 
tro sons  diversos  ,  c  não  só  nos  faltam  regras  para 
sabermos  quando  cada  um  destes  sons  deve  ler  lo- 
gar  ,  mas  nem  mesmo  o  uso  admilliu  que  se  expri- 
missem por  meio  d'acccntos,  como  se  pratica  n'ou- 
Iras  nações,  estas  diversidades  ,  salvo  n'um  peque- 
Jio  numero  de  casos. 

A  negligencia  dos  nossos  escriptores  chegou  mes- 
mo ao  ponto  de  excluírem  o  acceulo  grave  nesses 
[loucos  casos  em  que,  límítando-se  ao  agudo,  se 
appresentam  debaixo  deste  signal,  como  se  tivessem 
o  mesmo  som,  Ictlras  de  sons  diversos  como  modelo 
o  tt(l('to.  Não  seria  assim  se ,  adoptada  a  orthogra- 
phia  franceza  ,  nesta  parle,  se  escrevesse:  modelo 
c  adi-lo. 

A  mesma  falta  de  regras  se  observa  a  respeito  do 
accento  circumílexo  ,  (]ue  ora  se  ommiite  ,  ora  se 
substitue  escre\cndo  ou  cm  vez  de  ò ,  sem  se  dar 
rasão ,  nem  se  estabelecer  uma  marcha  uniforme 
no  uso  de  nenhum  destes  caracteres. 

Duas  rasõcs  se  costuma  ilar  em('a\or  da  suppres- 
são  dosaccentos  :  uma  é  ,  que  obsta  a  bclleza  c  sim- 
plicidade dos  escriplos.  A  outra  éque.  pronuncian- 
do-se  <lilTcrentementc  nas  diversas  províncias  c  até 
lios  dinVrentes  bairros  d'uma  mesma  cidade  e  nas 
dillerenles  classes  da  sociedade  ,  esta  diversidade 
produziria  na  cscrípta  uma  tediosa  disparidade. 


Quanto  á  primeira  destas  rasões  ,  bastaria  fazer 
observar  que  os  acccnlos  cm  nada  seoppõcm  á  cal- 
ligraphia,  nem  nosescriptos  francczes,  nem  nos  gre- 
gos ,  onde  elles  são  tão  numerosos. 

Quanto  á  segunda  objecção  ,  dizemos  que  ,  bem 
pelo  contrario,  o  modo  de  fixar  a  boa  pronuncia,  e 
de  dchellar  os  provincialismos,  seria  a  adopção  dos 
accentos  :  porque  cada  um  notando  comoaccentuam 
os  escriptores  mais  cultos,  e  que  todos  devem  re- 
conhecer como  clássicos  ,  vir-se-hia  por  fim  a  esta- 
belecer uma  só  accentuação  como  a  única  admissí- 
vel e  verdadeiramente  nacional.  Isto  é  oquc  accon- 
teceu  em  França. 

Nem  se  diga  que  os  inglezcs  ,  apesar  do  grande 
numero  de  sons  que  cabe  a  cada  lettra  ,  pensaram, 
como  nós,  que  convinha  não  sobrecarregar  a  cscrí- 
pta cora  accentos.  Os  grammalicos  inglezes  tem  re- 
duzido a  um  pequeno  numero  de  regras  ,  umas  or- 
dinárias, outras  extraordinárias,  com  algumas  pou- 
cas excepções,  toda  a  theoria  das  vogaes,  <'nlretan- 
to  que  nós  outros  ignorámos  ,  ou  ,  pelo  menos ,  eu 
ainda  não  encontrei  quem  soubesse  indicar  as  re- 
gras, que  por  um  lado  o  instíncto,  por  outro  o  ou- 
vido ,  costumam  observar  na  pronuncia  geralmente 
adoptada  nas  classes  cultas.  É  tralialho  que  ainda 
está  por  fazer  e  que  valeria  a  pena  de  se  empre- 
hcuder. 

Silvestre  Pinlidro  Ferreira. 


Anecdotas  de  dois  genekaes  russos. 

\o  ANXO  de  171(),  quando  Pedro  1."  se  achava  em 
Copenhague,  conferenciando  com  o  rei  de  Dinamar- 
ca si>bre  o  seu  projectado  desembarque  na  provin- 
da de  Sclioncn  na  Suécia,  formava  parte  do  seu  sé- 
quito o  tenente-gcncral ,  Bohn  ,  filho  de  iiin  clérigo 
lutlierano.  O  pai  do  tenente-general  tinha  morrido 
em  muita  pobreza,  e  ninguém  sabia  se  o  filho  exis- 
tia ,  nem  aonde  se  achava. 

Depois  de  muito  tempo  chegou  ao  conhecimento 
da  mãi  de  Bohn  que  este  se  achava  em  Copenha- 
gue ,  e  que  era  general  ao  serviço  da  Uussia.  A 
alegria  que  leve,  e  o  desejo  de  tornar  a  ver  seu  fi- 
lho ,  levaram-na  a  conceber  o  projecto  de  se  diri- 
gir áquella  capital.  Apenas  alli  chegada  foi  ter  á 
casa  aonde  lhe  indicaram  morava  o  general,  e  sen- 
do informada  por  um  criado  deste  que  não  estava 
cm  casa  ,  exclamou  cheia  de  pezar  :  —  Dizei  pois  a 
vosso  amo  que  aqui  veio  sua  mãi,  a  qual  nada 
mais  deseja  que  vc-lo  e  abraça-lo,  c  que  voltará 
amanhaã. » 

A  pobre  senhora  julgou  que  obteria  por  este  mo- 
do o  que  tanto  desejava  ,  porem  a  prosperidade  ti- 
nha endurecido  o  coração  de  seu  filho.  A  soberba 
suffocou  os  sentimentos  da  natureza  ,  e  o  general 
moslrou-se  grandemente  oITendido  quando  ouviu  o 
recado. T— «Minha  mãi  morreu  ha  ânuos,  disse  elle  ; 
é  sem  duvida  alguma  mulher  pol)re  ,  ou  alguma 
louca,  que  se  serve  de  similliantc  prele.xlo  ,  para 
conimover  a  minha  caridade. 

Fácil  será  imaginar  com  (juc  sobrcsalto  a  mãi 
!  octogenária  repetiu  a  sua  visita  na  manhaã  seguin- 
te: mas  ah  I  em  vez  de  conseguir  estreitar  nos  bra- 
ços maternos  o  querido  filho,  recebeu  por  mão  de 
um  ajudante  de  campo  dez  ducados,  e  a  intimação 
de  não  tornar  a  molestar  o  general.  Cheia  d'iiidi- 
gnação  pegou  no  dinheiro,  e  atirando  com  ellc  aos 
pés  do  ajudante,  disse:  —  ((Senhor,  não  \\m  a  es- 
ta casa  pedir  esmola,  vim  para  abraçar  meu  filho; 


o  PANORAMA. 


43 


se  elle  repudia  sua  mãi ,  cila  lambem  de  hoje  por 
diante  o  desconhece  como  filho.»  —  As  lagrimas 
cmbargaram-lhc  a  voz  c  não  a  deixaram  prosoguir. 

Eslc  acontecimento  não  tardou  ninilo  que  se  não 
divulgasse  jjor  toda  a  cidade  ,  c  breve  chegou  nos 
ouvidos  da  imperatriz,  lluhn  não  podia  achar  censo- 
ra mais  rígida  do  que  Catharina  1.°,  que  nunca 
perdia  occasião  de  aliudir  ao  seu  obscuro  nasci- 
mento ,  raostrando-se  sempre  grata  para  com  o  seu 
bemfeitor. 

Mandou  chamar  a  viuva  ,  c  tendo  verificado  que 
cila  era  na  realidade  mãi  do  insensível  general,  or- 
denou que  Hohn  viesse  á  sua  presença  :  então  re- 
prehcndendo-o  severamente  ,  ordenou-lhe  que  desse 
a  sua  mãi  cm  quanto  fusse  viva  duzentos  rublos  de 
renda  annual.  liohn  recebeu  o  condigno  castigo  pe- 
la dureza  de  seu  coração  ,  não  só  na  publica  re- 
prehensão  que  a  imperatriz  Ibe  dera,  c(uno  lambem 
no  desprezo  geral  que  desde  então  soffreu. 

Em  q\ianto  Bohn  assim  procedia  para  com  sua 
virtuosa  mãi,  antcpunham-se-lbe  na  corte  como  con- 
traste os  nobres  actos  do  general  Baiier  ,  que  não 
se  envergonhava  de  ser  filho  de  pais  de  baixa  con- 
dição. Esta  parte  histórica  da  vida  do  distincto  ge- 
neral é  como  segue  — 

No  anno  de  1712  ,  quando  o  exercito  russo  oc- 
cupava  o  líolslein ,  sob  o  coramando  do  general 
MenzikotT,  Bauer  commandava  a  cavallaria.  Xin- 
guem sabia  de  quem  era  filho  este  general  ,  e  até 
se  ignorava  o  logar  do  seu  nascimento.  Acliava-se 
então  acampado  junto  a  Ilusum.  Um  dia  convidou 
a  jantar  todos  os  officiaes  da  sua  divisão ,  e  varias 
pessoas  dislinctas.  Quando  os  convidados  se  acha- 
ram reunidos  ,  mandou  chamar  um  moleiro  e  sua 
mulher  ,  que  viviam  naqucllas  visinhanças.  Seme- 
lhante couvite ,  por  parte  de  um  general,  causou 
algum  susto  aos  dois  esposos,  porem  Bauer  fez  quan- 
to pôde  para  os  tranquillisar,  edisse-lhe  que  o  con- 
vite, que  lhes  enviara,  tinha  por  objecto  o  obter  al- 
gumas informações  locaes  dopaiz.  Ao  janlarsentou 
ambos  a  seu  lado  ,  e  fez  ao  moleiro  varias  pergun- 
tas acerca  da  sua  familia. 

Isto  produziu  o  desejado  eíTeito  no  animo  do  mo- 
leiro ,  e  soltou-lhe  a  lingua.  Principiou  por  contar 
a  sua  vida  ao  general  ,  e  narrou  que  lhe  pertence- 
ra o  moinho  por  morte  de  seu  pai  ,  por  ser  elle  o 
íilho  mais  velho  :  accrescentou,  que  tinha  mais  dois 
irmãos,  um  mercador,  e  outro  também  moleiro.  — 
«Então,  perguntou  o  general,  sois  Ires  irmãos?  — 
Éramos  quatro  ,  replicou  o  moleiro  ,  mas  o  quarto 
assentou  praça  de  soldado  ,  e  nunca  mais  dclle  ti- 
vemos novas,  o  que  nos  induz  a  crer  que  foi  morto 
era  algum  combate. 

«1'ois  vive  ainda,  bradou  Bauer,  Icvantando-sc 
c  abraçando  o  moleiro  e  sua  mulher  :  sou  eu  esse 
irmão  que  julgáveis  fallecido  I  »  —  É  fácil  suppòr 
qual  seria  o  pasmo  dos  convidados  ao  ouvir  estas 
palavras  :  lodos  se  apinharam  era  redor  de  Bauer  , 
que  então  accrescentou:  —  «Tinheis  curiosidade 
de  saber  aonde  eu  nascera  ,  e  quem  eram  meus 
pais  ;  agora  .  senhores  e  camaradas  ,  deveis  estar 
satisfeitos,  ^(eu  pai  foi  um  moleiro  honrado  ;  este 
o  logar  do  meu  nasciraento  ;  e  eis-aqui  meu  irmão, 
que  eu  lenho  a  honra  de  vos  appresentar.  »  —  O  ge- 
neral ao  proferir  estas  palavras  abraça  de  novo  o 
moleiro  e  a  cunhada  ,  e  delles  se  despede  até  ao 
dia  seguinte. 

No  dia  immcdiato  mandou  apromptar  um  sum- 
ptuoso janlar  no  moinho  aonde  nascera  ;  encheu  de 
presentes  e  beneficies  os  seus  Ires  irmãos ,   e  man- 


dou ,  poucos  dias  depois,  o  único  filho  do  moleiro, 
seu  sobrinho  ,  para  Herlin  ,  aonde  foi  educado  ,  c 
alli  cm  seguimento  teve  o  jovcn  Bauer  a  honra  de 
perpetuar  o  nome  illustre  de  seu  preclaro  lio. 


A  ÇIEDA  »0  IMPÉRIO  GnEGO. 

nTiMU  eu  á  vista  e  no  pensamento  [escreve  o  gran- 
de poeta  das  Meditações  era  suas  Notas  de  viajan- 
lej  Ioda  a  scena  em  que  se  passaram  ,  de  muitos 
séculos  até  boje,  um  sem  numero  de  dramas  ou 
sinistros  ou  gloriosos  ,  que  todos  se  me  prcsenla- 
vam  com  seus  pcrsonnagcns  e  os  rastos  que  deixa- 
ram sanguíneos  ou  de  gloria.  Figurava-se-me  ver 
sahir  dos  recessos  do  Cáucaso  as  dibras  levadas  do 
instinclo  de  peregrinação,  dado  por  Deus  ás  nações 
conquistadoras  como  o  dera  ás  abelhas  que  desam- 
param a  toca  d'um  tronco  para  fundar  enxames  no- 
vos :  via  a  soberba  imagem  patriarchal  d'Ottonião 
em  meio  de  suas  lendas  e  rebanhos,  espalhando  a 
sua  gente  pela  Asia-Menor  em  progresso  successi- 
vo  ,  e  ao  acabar  nos  braços  de  seus  filhos  ,  já  seus 
logartcnentes  ,  dizendo  a  Orchão. — «Morro  sem 
magua  ,  pois  te  deixo  por  successor  ,  vai  propagar 
a  lei ,  o  pensamento  de  Deus  ,  que  de  Meca  \eio 
demandar-nos  ao  Cáucaso;  sè  caridoso  e  clemente 
como  elle ,  porque  assim  chamara  os  príncipes  so- 
bre o  seu  povo  a  benção  de  Deus.  Não  abandones 
meu  corpo  a  esta  terra  ,  que  para  nós  é  apenas  es- 
trada ,  dcposila-o  em  Conslanlinopola  ,  no  sitio  que 
eu  te  indicar  no  leito  da  morte.»  —  Dahi  a  alguns 
annos  ,  Orchão  ,  filho  d'Ottomão  ,  acampava  junto 
a  Scutari ,  nos  mesmos  outeiros,  que  matizam  ago- 
ra negrumes  de  bastos  cyprestes  :  o  imperador  gre- 
go, Cantacuzeno,  vencido  da  necessidade,  lhe  dava 
sua  filha  ,  a  linda  Theodora  ,  para  quinta  esposa  do 
thálamo  polygamo  :  a  juvenil  princeza  atravessava 
ao  som  de  musicas  aquelle  braço  de  mar,  onde  es- 
tou vendo  fluctuar  os  navios  russianos ;  ia  como  vi- 
clima  immolar-se  inutilmente  para  prolongar-se  por 
breves  dias  a  vida  do  império.  Dentro  em  pouco  os 
filhos  d'Orchão  approximam-se  da  praia  ,  seguidos 
d'alguns  valentes  ,  cm  uma  noite  construem  três 
jangadas  ,  sustidas  em  bexigas  de  boi  cheias  d'ar  , 
e  nellas  passam  o  estreito  ajudados  das  trevas  ;  as 
scntinellas  gregas  dormem  ;  um  mancebo  rústico, 
que  ao  alvorecer  sahia  para  o  trabalho,  encontra  os 
ottomanos  desgarrados  ,  cnsina-lhc s  a  boca  do  sub- 
terrâneo que  vai  dar  ao  interior  do  caslello  ;  e  «les- 
te modo  os  turcos  tem  ura  pé  e  uma  fortaleza  na 
Europa. — 

Tinham  desde  então  decorrido  quatro  reinados  . 
e  Mahomet  2.°  respondia  aos  embaixadores  gregos  : 
—  «nada  emprehendo  contra  vós;  o  império  ilc 
Conslanlinopola  tem  por  limites  as  muralhas  da  ci- 
dade. » —  Mas,  ainda  assim  limitada,  não  deixa 
esta  dorrair  o  sultão,  que  manda  acordar  o  seu  \i- 
sir,  c  lhe  diz: — «Quero  Conslanlinopola;  cora  es- 
ta idéa  não  posso  conciliar  o  somno  ;  Deus  me  cii- 
Irega  o  império.» — No  auge  de  brutal  impaciên- 
cia ,  arrcmeça-se  acavallo  ás  ondas  .  que  ameaçam 
traga-lo.  —  «Vamos  [dizia  aos  soldados  no  «lia  do 
ultimo  assalto]  só  reservo  para  mira  a  eidade  ;  ri- 
quezas e  tudo  o  mais  é  vosso.  Terá  o  governo  da 
minha  maior  província  o  que  primeiro  escalar  .i 
praça.»  —  Toda  a  noile  aterra  e  as  aguas  foram 
allumiadas  por  innumeraveís  fogueiras  c  lumes,  que 
substituíam  a  claridade  diurna  :  tamanho  era  o  fer- 
vor dos  ottomanos  ao  aguardar  o  dia  era  que  devia 
cafair-lhes  nas  mãos  a  preza. 


u 


o  PANORAMA. 


Durante  este  breve  espaço ,  sob  a  cúpula  escura 
de  St/  Sophia  ,  o  esforçado  e  infeliz  Constanlino 
veio  ,  na  sua  extrema  noite  ,  orar  cora  lagrimas  ao 
deus  do  império:  —  ao  despontar  da  aurora,  sabia 
elle  acavallo ,  acompanhado  dos  clamores  e  gemi- 
dos de  sua  famiiia  ,  para  ir  morrer  como  heroe  (») 
na  brecha  da  sua  capital:  —  passou-se  isto  aos  29 
de  maio  de  1453.»  —  Corramos  denso  véu  sobre  os 
horrores  desse  dia. 

Tríplice  muralha  formou  cm  remotas  eras  três 
recintos,  que  fechavam  e  defendiam  a  cidade  by- 
zanlina  ;   todas  eram  furtes  e  torreadas:    ainda  se 


conhecem  n'uma  planta  ,  tirada  por  um  florentino  , 
emli22.  marcadas  cento  e  oitenta  torres,  asquaes, 
na  maioria,  se  derrocaram  ,  ou  tem  sido  apeadas  e 
desfeitas  pelos  turcos  para  a  erecção  de  edifícios 
seus  ou  públicos  ou  particulares;  assim  vai  acon- 
tecendo á  que  era  nossa  gravura  appresentâmos  ,  e 
que  assim  mesmo  ainda  ha  poucos  annos  conserva- 
va a  grande  porção  que  escapou  do  incêndio  e  as- 
solação n'um  motim  geral  dos  janizaros  ,  por  ucca- 
sião  das  dissensões  entre  Selim  cMustaphá; — con- 
i  flagrações  e  ruinas,  que  até  o  presente  século  eram 
em  Constantinopola  frequentes. 


A  TOB^as:   QUEIMADA  £M  C0KrSTANTIN070I.A. 


O  liono.  ,  Logo  veremos  porque. 

11-S.  ^        -  Convidámos   o  leitor   para  escutar   a  conversação 

IV.  travada  entre  Gonçalo  Mendez,  o  abbnde  benedicti- 

Iteceios  c  esperanças.  '  no,  e  o  mui  reverendo  cónego  de  Lamego,  Maitim  lii- 

cha.   Pode  ouvi-los  agora.  Embebidos  no  seu  grave 
l)u.>»  Bibas  não  era  bobo;  era  o  diabo.  disputar,    todos  três   se  esqueceram  complctamenle 

/.s     >,,.  ,    .     \  7.    ~,  ;       ;     T     do  logar  onde  estavam  ,  e  do  sarau  ,  que  depois  do 

(•)     Morreu  combatemlo ;  nem  elle  hnlia  a  culpa  do  de-      ,       ,    .  ,    .,  ,  ,        ,    ,, 

liloravel  eíla.lo  em   «lue  achara  o  império,    i:'  noiavel   que     ''«"'''"J"'-  ^'>i'lo  e  alegre   ao  redor  delles  ,    esmore- 

um  Consliiiitiiio  fundasse  o  império  hyzanlino ,   que  se  ex-  |  '"''''  J''    *-'  esfriava   em  paroxismo  liiial.    A  noite  cor- 

lin-uiu  em  puder  de  oulru  do  mesmo  nome.  rèra  scni  que  de  tal  dessem  tino.  —  Sobre  o  tumul- 


o  rANORA3IA. 


45 


tnar  dos  passos  ,  sobre  o  ruido  do  fallar  confuso  , 
sobre  as  toadas  dos  instrumentos  ,  quo  affrnu^am  , 
ouve-se  primeiro  o  vosear  retiimliante  do  Lidador: 
depois  as  palavras  flautadas,  escandidas,  niellinua- 
mente  hypocritas  do  capellão  da  infanta,  e  por  ul- 
timo as  falias  brandas  ,  tardas  ,  e  suaves  do  bcne- 
dictino.  Ksta  gradarfio  corresponde  ao  progresso  de 
silencio  que  principia  a  predominar  na  sala  :  é  a 
medida  do  tédio  que  leva  de  vencida  o  deleite  na- 
quclle  ajuntamento  lustroso. 

i  ....«Eis-abi  —  dizia  o  Lidador  voltando-se  para 
Marlim  Eicha  — o  que  eu  havia  previsto:  eis-ahi 
o  resultado  final  do  desenfreado  orgulho  do  senhor 
de  Trava  ,  e  dessa  desgraçada  affeirão  da  rainha. 
Depois  do  folgar  pacifico  em  jogos  de  lavolado  c 
isaráus  offcrecem-nos  uma  festa  de  sangue.» 

«Mas  quem  sabe  se  essas  novas  são  verdadeiras? 
I — interrompeu  o  abbadc  ,  que  parecia  olhar  duvi- 
doso para  o  honrado  cónego  de  Lamego. 

«Sei-o  eu'.  —  replicou  este  cora  gesto  de  sobre- 
jcenho  e  de  auctoridade. —  Ouvi-as  do  escudeiro  que 
[as  trouxe  e  —  accresccntou  com  sorriso  de  rayste- 
rio  —  disse-mo  quem  tão  bem  corao  elle  o  sabia,  e 
jácerca  disso  me  perguntava:  —  Pois  que  faremos, 
D.  Eicha?  —  È  lastima: — é  na  verdade  lastima! 
;N'ão  me  sofTre  o  animo  ver  assim  um  moço  ambi- 
cioso e  louco  desacatar  com  armas  rebeldes  sua 
mãi  ,  sua  senhora.  Largo  campo  á  cubica  de  honra 
le  domínios  ,  se  perlende  ganhar  nome  e  poder  ,  se 
lhe  abre  em  terras  d'infieis.  Se  tem  sede  de  san- 
gue ,  derrame  o  sangue  dos  maldílos  ismaelitas , 
moabilas  e  agarenos.  Os  campos  do  sul  ahi  estão 
'patentes  á  ambiçiio  dos  ousados.  Que  vão  devastar 
ias  searas  dos  mouros,  derribar  as  suas  povoações  e 
icastellos,  incendiar-lhes  as  mesquitas,  onde  diaria- 
racnte  se  repelem  as  blasphemias,  torpezas,  e  im- 
mundicies  do  abominável  alcorão.  Deus  hade  puni- 
o  :  o  castigo  c  infallivel  ,  mas  para  isso  a  espada 
christã  encontrar-sc-ha  no  ar  cora  a  espada  christã, 
e  a  lança  roraper.í  a  cervilheira  assignalada  cora  a 
cruz  de  Jcsu-Christo.  » 

O  honrado  cónego  invectivava  assim,  todas  as  ve- 
zes que  lhe  cabia  a  talho  ,  contra  os  sectários  de 
jMafamedc,  porque  os  conhecia  de  perto. 

«Mas  —  acudiu  o  abbade  —  se  o  infante  (raz  es- 
se numero  de  cavalleiros  e  besteiros:  se  o  mui  po- 
ieroso  arcebispo  de  Braga  o  favorece  tão  claramen- 
•  se  os  burguczes  da  sé  do  Porto,  e  os  de  Coim- 
.  r  I  começam  a  agitar-se  ,  como  dei.xara  a  rainha 
'.!•  vir  a  concórdia  com  seu  filho?» 

'  E   impossivel- — •  interrompeu    Martim  Eicha. — 

1^'le  pertende  que  o  illustre  conde  de  Trava  Iheen- 

Irigue   os  feudos   e  prestamos   que  tem   da  munifi- 

fiicia  real  ,  e  que  saia  destes  paços.   >'ão  contente 

•1  isso  ,    pertende  lambem   que  sua  mãi  lhe  ceda 

ipremo  poder:  invoca  o  exemplo  de  .Vffonso  Rai- 

,niiindez  ,   e   o  direito  de  succeder   a  seu  pai  ,    sem 

lie  lembrar  que  jamais  Henrique   de  Borgonha  cin- 

íi    a  coroa  de  conde,    se  não  houvera  sido  o  es- 

de  uma  filha  de  Affonso  o  grande.  Que  herdou 

Jc  feito   o  infante   de  seu  pai?   Cm  nome  glorioso; 

Tiais  nada.    Portugal  não  é  herança  dos   duques  de 

Borgonha  ,  mas  dos  filhos  dos  reis  da  Ilespanha  ,  e 

D.  Thereza  é  filha  do  ultimo  delles.  n 

O  Lidador  sentiu  subir-lhe  ás  faces  o  rubor  da 
■nlera  ao  ouvir  estas  palavras.  «É  falso  —  excla- 
3inu  elie  —  que  a  alguém  devesse  o  conde  de  Por- 
ugal  05  senhorios  que  deixou  a  AfTonso  Ilenriquez 
—  a  Affonso  Henriqucz,  di-lo-hei  sem  receio  I  — 
50  orei  Iconez  lhe  disse:  —  vai  e  hasteia  o  leu  pen- 


dão de  conde  nas  fronteiras  do  occidcnle  ,  era  que 
aos  seus  ouvidos  tinham  chegado  os  gemidos  dos 
cavalleiros  do  conde  Uaimundo  de  (ialliza  ,  passa- 
dos á  espada  pelos  sarracenos  junto  de  Lisboa.  Nun- 
ca depois  disso,  acaudelados  por  elle,  voltaram  cos- 
tas aos  infiéis  os  guerreiros  da  cruz.  Portugal  era 
até  ahi  um  paiz  devastado  :  era  quasi  um  deserto  , 
por  onde  corriam  á  rédea  solta  os  almogavares  mou- 
riscos :  hoje  os  campos  estão  cultivados  ,  os  castel- 
los  seguros,  os  burgos  e  cidades  renascem  das  suas 
ruinas.  Respeitai  as  cinzas  do  nobre  conde  :  res- 
peitai-as  ao  menos  diante  de  mim  ,  que  delle  rece- 
lii  as  armas  de  cavalleiro,  c  que  ainda  combati  en- 
tre os  seus  homens  d'armas.  Não  sei  se  vos  lem- 
brais disso?  !  » 

O  Lidador  talvez  alludia  á  conquista  de  Lamego. 
Era  acaso  uma  injuria  que  elle  dirigia  ao  filho  do 
vvalid  ,  e  não  uma  pergunta.  O  certo  é  que  Slartim 
Eicha  Ciou  os  olhos  no  tecto  ,  o  depois  volveu-os 
lentamente  pnra  o  chão  ,  como  quem  offerecia  a 
Deus  a  affronta  e  se  resignava  nella.  Gonçalo  Men- 
dez  proseguiu  : 

«Chamais  ao  infante  rebelde  contra  sua  mãi.  Não, 
vos  digo  eu  !  — mil  vezes  não  !  Por  largo  tempo  o 
mancebo  generoso  viveu  nestes  paços  esquecido  , 
despresado  ,  como  um  infimo  homem  d'armas.  O 
seu  nome  escripto  nas  cartas  e  doações  ,  acima  do 
nome  do  conde  de  Trava  ,  era  unicamente  o  que 
ainda  recordava  de  quem  elle  era  filho.  Escarneo 
cruel  na  verdade  ;  porque  esse  que  ahi  se  chamava 
infante  de  Portugal  era  obrigado  a  curvar  a  cabe- 
ça diante  do  senhor  estranho.  É  a  esse  que  elle 
vem  arrancar  o  poder,  porque  o  poder  est.i  cm  suat 
mãos.  Credes  que  approvo  o  feito?  Não  por  certo. 
.\nlc  os  barões  e  ricos-homens  — na  cúria —  deve- 
ra requerer  seu  direito.  Mas  pcrdeu-o  acaso  por- 
que ,  esgotado  o  soffrimcnlo  com  o  excesso  da  op- 
pressão ,  respondeu  á  violência  com  o  brado  de 
guerra  ?  Os  senhores  e  infanções  portuguezes  não  o 
cròem.  Se  o  cressem  não  o  teriam  escutado  :  não  o 
seguiriam  aquelles  ([ue  ora  o  seguem.» 

O  bom  do  capellão  não  se  deu  por  vencido,  c 
com  inflexivel  tenacidade  replicou  : 

<<\  rainha  D.  Thereza  domina  em  Portugal:  o 
conde  de  Trava  é  um  conde  ,  um  rico-homcra  ,  um 
alcaide  ;  mais  nada.  Os  barões  porluguczes  jura- 
ram-lhe  lealdade  a  ella  ,  e  é  contra  ella  que  se  re- 
bellam.  Dizei-me  vós  ,  senhor  cavalleiro  ,  de  quem 
tendes  vossas  honras,  feudos  e  prestamos?  —  De 
quem  ,  como  vós  ,  os  tem  e-lles? 

«A  rainha  é  a  viuva  do  conde  Henrique.  Não 
queirais  obrigar-me  a  dizer-vos  o  que  acerca  dei- 
la  tumultua  nesta  alma.  Basta  que  responda  á  vos- 
sa pergunla.  As  honras  que  possuo  herdei-as  do 
meus  avós  :  os  prestamos  ganhei-os  ;i  lança  c  á  es- 
pada :  foi  preço  de  sangue  o  que  dei  por  elles.  Feu- 
do e  lealdade?  Ricos-homens  de  Portugal  guardam- 
no  a  quem  lhes  guarda  seus  foros.  Tem  estes  sido 
guardados?  Sabemo-lo  nós:  sabe-o  Deus.  Elle  será 
o  nosso  juiz.  n 

«O  juizo  de  Deus  —  tornou  Martim  Eicha  com 
mal  disfarçada  raiva — proferc-se  em  repto  e  com- 
bate ,  segundo  foro  dos  hem-nascidos  d'Hespanha. 
Porque  não  ides  com  os  accostados  que  pelejam  de- 
baixo de  vosso  pendão,  e  vivem  de  vossa  caldeira, 
ajuntar-vos  com  o  infante?  .\flirmn-vos  que  entre 
elle  e  a  filha  d'Afronso  de  Leão  ha  repto  ,  e  have- 
rá combate.  Tereis  ahi  o  juiro  de  Deus.» 

«Porque  eu,  —  atalhou  o  Lidador  cravando  nelle 
os  olhos  indignados  —  homem  alTeilo  á  viJa  de  ha- 


46 


O  PANORAMA. 


talhas,   trabalharei  alé  o  fim,  para  que  irmãos  não 

derramem  sangue  d'irmãos  em  lucta  de  mãi  e  de 
liiho  ;  — porque  eu  o  homem  que,  ao  abrir  os  olhos 
no  mundo  ,  a  primeira  luz  que  vi  foi  o  reflexo  bri- 
lhante de  armas  pulidas  ,  e  que  espero  ,  ao  cerra- 
los  para  sempre ,  vè-las  reluzir  no  volver  derra- 
deiro delles ,  tomei  a  meu  cargo  o  vosso  mister  ,  o 
mister  dos  clérigos  e  letrados  da  corte,  dos  homens 
de  paz  ,  dos  prudentes  ,  que  saudacs  o  dia  em  que 
lanças  chrislãs  topem  em  escudos  dechristãos;  que 
sorrides  á  imagem  desse  dia  em  que  esperais  ver 
satisfeitos  ódios  e  vinganças  mesquinhas.  Tentarei 
frustrar  o  atroz  pensamento  dos  raáus  ,  e  se  o  meu 
tentar  sahir  vão  ,  ao  menos  a  consciência  hade  fi- 
ear-me  tranquilla.  » 

O  capellão  ,  que  sabia  qual  era  o  caracter  vio- 
lento de  Gonçalo  Mendez  da  Maia  ,  julgou  acertado 
não  lhe  responder  :  o  abbade,  porem,  que  se  havia 
conservado  cm  silencio  durante  a  disputa  ,  tomou 
nesse  ponto  a  mão. 

«Quanto  a  mim  —  disse  ellc  —  não  me  perdoe  o 
senhor  na  hora  extrema  do  passamento  ,  se  mentem 
minhas  palavras.  Sempre  c  cm  toda  a  parto  clamei 
pela  paz,  c  ainda  hoje  clamo  por  ella.  Também  cu 
como  vós  quizera  que  o  infante  na  cúria  dos  barões 
requeresse  direito;  mas  como  vós  também  quizera 
que  não  Ih'o  negasse  a  rainha,  postoque  que  o  de- 
mande armado.  A  tal  façanha  o  incitou  o  orgulho 
do  conde  de  Trava  ,  e  o  generoso  e  nobre  sangue 
que  corre  nas  veias  do  nobre  mancebo.  Com  a  mão 
sobre  o  coração  ,  vos  juro  que  me  borrorisa  esta 
guerra  desnaturai.  Mas  como  evita-la?  Como  ousa- 
reis vós  tenta-lo  ;  vós  ,  talvez  o  único  rico-homem 
da  corte  de  Guimarães ,  que  ousa  ser  francamente 
inimigo  do  conde  de  Trava.» 

"Tenía-lo-hei  —  replicou  o  Lidador  —  como  leal 
cavalleiro.  Antes  que  as  novas  da  vinda  de  D.  Af- 
fonso  ,  para  accommctíer  sua  mãi  e  seu  mortal  ini- 
migo ,  houvessem  corrido  de  boca  em  boca  ;  antes 
que  os  mais  intinios  conselheiros  do  nobre  Fernão 
Perez  —  dizendo  isto  ,  Gonçalo  Mendez  olhava  pa- 
ra Martini  Eicha  —  nos  podessera  asseverar  que  o 
.sangue  se  havia  de  verter  ,  já  cu  o  sabia  :  sabia-o 
porque  esses  vallos  alevantados  á  pressa  em  volta 
do  burgo  ;  essa  couraça  que  os  prende  ao  castello  : 
os  engenhos  postos  a  ponto  nos  eirados  c  torres  , 
me  diziam  sobejamente  que  nos  ameaçava  guerra. 
<iucrra  de  sarracenos.'  IVão  vem  tão  .longe  suas  ar- 
rancadas. Guerra  do  imperador?  Não  quebrámos 
até  hoje  nosso  preito  com  ellc.  \  causa  do  temor 
existia,  pois,  em  Portugal.  O  infante  não  ha  Ires 
mezes  que  sabiu  daqui  ,  c  já  muitos  castellos  o 
receberam  por  senhor.  Vi,  soube,  c  callei.  Mas  a 
cúria  dos  barões  e  rico.s-homcns  da  corte  está  con- 
vocada para  se  ajuntar  amanhã.  Lá,  no  meio  dos 
que  servem  e  temem  ,  eu  que  não  temo  nem  sirvo, 
fallarci  bem  alto.  Mostrarei  á  rainha  que  se  perde  ; 
que  D.  AfTonso  tem  por  si  lilhos-d'algo  ,  bispos, 
liurguezcs  ,  c  villões  de  bchelrias.  Direi  ao  conde  : 
— -  nobre  conde  de  Galliza  ,  é  necess<irio  ceder  ao 
infante  de  Portugal.  —  Então  ,  se  não  fir  escu- 
tado  

«Então?...  interrompeu  Martim  Eicha. 

"Então  acceitarei  vossos  consellins.  No  campo  do 
infante  ainda  cabem  dez  lí-ndas  para  mais  cem  ho- 
mens d'armas  ,  besteiros  (;  funiiilmlarios  :  ainda  lá 
se  pôde  soltar  mais  um  pendão  ao  vento  assolador 
das  batalhas. n 

O  abbade  ia  de  novo  fallar,  pensando  talvez  crt- 
mo  abrandaria  a  cólera  que  se  accumulava  no  ges- 


to carregado  do  Lidador.  Mas  uma  risada  que  rcs* 
Irugiu  por  cima  das  cabeças  dos  três  lh'as  fez  invo- 
luntariamente erguer.  A  fronte  de  Gonçalo  Mendez 
desenrugou-se  repentinamente.  Quasi  ao  mesmo  tem- 
po ellc  e  o  abbade  soltaram  uma  gargalhada.  Só 
Marlira  Eicha  não  ria. 

Tinha  rasão  sobeja. 

No  calor  da  disputa  nenhum  dos  três  reparara 
era  D.  Bibas  que  se  acercara  da  columna  junto  da 
qual  conversavam.  Oboboapplicára  por  algum  tem- 
po o  ouvido  ás  palavras  violentas  do  Lidador  ;  mas 
o  borburiuho  dos  passos  c  do  fallar  contínuo  ,  dos 
sons  retumbantes  dos  instrumentos  naquclla  immen- ' 
sidão  da  sala,  o  não  deixavam  perceber  senão  algu- i 
mas  vozes  soltas  que  muito  lhe  excitavam  a  curio- 
sidade. Piodeando  o  feixe  de  columnellos,  que  se- 
gundo o  gosto  árabe  unidos  só  pela  base  e  pelo  ci-  ' 
mo  formavam  a  columna  oupilaslra  em  que  vinham 
repousar  os  artesões  do  tecto,  trepara  manso  e  man- 
so lirmando-se  nos  lavores  da  pedra  ,  e  se  assenta- 
ra sobre  as  grandes  folhas  de  Iodam  enlresachadas ' 
de  liguras  extravagantes  de  centauros,  harpias,  de- 
mónios ,  c  gorgonas  ,  em  que  o  architecto  mostrara 
ceder  ás  influencias  da  arle  normanda  ,  que  come- 
çava a  expulsar  a  architectura  sarracena  dos  ediíi- 
cios  da  Ilespanha.  Visto  naquclla  altura  ,  assentado 
no  capitel ,  com  os  braços  lançados  sobre  os  pesco- 
ços de  duas  figuras  horrendas  ,  era  que  se  assegu- 
rava, D.  Bibas  pareceria  também  uma  crcação  des- 
vairada da  mente  do  esculptor ,  se  fitando  os  olhos 
brilhantes  no  reverendo  cónego ,  e  fazendo-lhe  uma 
visagem  truancsca,  não  começasse  a  cantarolar  com 
um  acompanhamento  de  risadas  estrondosas  : 


Quem  me  dera  o  meu  infante 
Nestes  seus  paços  reaes 

D'ora  avante  '. 

Tra-lirá , 

Ah  ,  ah  ,  ah  I 

Ovençaes 

Do  gallego 
Só  hi  vejo  a  cada  instante  ! 

Arrenego  , 

Dom  Garcia  , 
Desses  teus  aragonezes  , 
E  também  dos  portuguezes 
Que  te  fazem  companhia  1 

Capellão, 

Cauzarrão  , 

Hão  ,  hão  ,  hão  I 

ira-lirá  , 

Ah  ,  ah  ,  ah  '. 
Vou  fazer  de  um  mouro  ao  fdho 
l'm  famoso  arremedilho  , 

Mui  de  ver  , 
Em  que  a  li  te  heide  mellcr  , 

Meu  rapado  , 

Descarado  ,        '  .,:;;  ■    ^' 

A  comer  .  >      ,  . 

i  L'm  presunto       ■  .  ' ;:;  ;:  .•. 

Com  seu  unto  , 
Apesar  de  São  Mafoma  , 
K  do  velho  iá  de  Koiaa  , 

Que  te  toma 

l'or  um  santo  , 

O  que  és  tanto 
Quanto  o  demo  que  te  l(í\e 

(^omo  deve! 

Tra-lirá  , 
Ah,  ah  ,  ah  ! 


o  PAINORAMA. 


17 


D.  Bibas  fez  uma  segunda  visascm  ao  reverendo 
Martini  líicha  ,  rodeou  o  capitel ,  e  desceu  rapida- 
mente por  entre  os  columncllos.  l)'alii  a  pouco  a 
sua  voz  esganiçada  ouvia-se  no  oulro  extremo  da 
sala  d'armas. 

O  inesperado  da  jogralidade  do  bufão  tinha  fcilo 
desatar  a  rir  o  i.idador  e  o  abbadc.  Não  assim  o 
honrado  cónego  de  Lamego,  a  quem  as  allusõcs  in- 
solentes espalhadas  naquella  trova  salyrica  haviam 
mortificado  ao  vivo.  A  cólera  fugira  da  alma  do  ca- 
valleiro ;  mas  fora  reconceutrar-sc  na  do  sacerdote. 
Nunca  D.  Bibas  ousara  tanlo  :  o  fogo  da  revolta  la- 
crava já  no  espirito  de  ura  vil  bobo  I  O  bom  do  ca- 
pellão  agarrou-se  a  este  pensamento  para  cerrar  os 
ouvidos  á  voz  da  consciência  que  lhe  dizia  terem 
batido  no  ah  o  os  motejos  cruéis  do  chocarreiro. 
Assim  ,  com  meneios  entre  hypocritas  e  altivos,  af- 
fastou-se  dos  dois  sem  os  saudar ,  e  desapparcceu 
no  meio  da  turba  doscavalleiros,  jurando  pela  pclle 
a  D.  Bibas,  e  promettendo  relatar  ao  conde  de  Tra- 
Ta,  nessa  mesma  noita  sepodesse,  todas  ascircuas- 
tancias  daquella  conversação. 

A  hora,  porem,  a  que  o  sarau  devia  acabar  soou. 
A  bella  infanta  estremeceu  ao  ouvi-la  bater  na  cam- 
pa da  torre  ahsrran.  —  Sentiu  alargar-se  a  mão  de 
ferro  que  lhe  apertava  o  coração ;  a  intima  agonia 
que  a  politica  do  conde  lhe  obrigava  a  velar  sob  o 
aspecto  mentido  do  contentamento  ,  poderia  a  final 
diíatar-se  na  soledade  em  torrentes  de  lagrimas. 
Encostada  ao  braço  de  Fernão  Percz  ,  c  seguida 
das  suas  donzellas  ,  D.  Thereza  atravessou  os  apo- 
sentos immediatos  e  recolheu-sc  a  sua  camará.  Os 
ricos-homens  e  filhos-dalgo  começaram  a  sahir  ,  e 
pouco  a  pouco  a  sala  ficou  deserta.  Apenas  um  ca- 
valleiro,  com  os  braços  cruzados  e  encostado  a  uma 
das  columnas  immediatas  ao  estrado  das  donzellas  , 
nmovel  ,  e  com  os  olhos  cravados  na  colgadura 
,ia  porta  por  onde  D.  Thereza  sabira  ,  parecia  en- 
tregue a  profunda  meditação.  Uma  voz  veio  tira-lo 
daquelle  torpor  :  era  a  de  Dom  Bibas  ,  que  repo- 
treado  na  cadeira  da  rainha  ,  olhava  para  elle  fito  , 
e  lhe  psalmeava  cm  tom  soturno,  pela  solfa  do  can- 
to  gregoriano  ,  bastas  injurias  : 

Fora ,  parvo  aragonez  , 

Dom  buirão. 

Tlão  ,  tlão  .  tlão  ! 

Vai  tratar  de  teus  amores 

No  Aragão. 

Tlão  ,  tlão  ,  tlão  I 

As  donzellas  portuguczas 

Lindas  são. 

Tlão  .  tlão  ,  tlão  '. 

E  por  isso  haver  quer  uma 

Dora  buirão. 

Tlão,  tlão,  tlão!    .         -,   , 

A  Dulce 

Ê  bella  , 

Donzella  ; 
Mas  flor  d'aleli 
Não  é  para  ti.  ,.,  .   „• ,, 

Kirieleison . 

Iiirirteison. 
Itfqniem  cetemam  dona  ris 
Et  lux  luceat  eis. 

Ocavalleiropoz-seaouvi-lo,  sorrindo,  masaquel- 
les  derradeiros  fragmentos  das  preces  pelos  extin- 
ctos ,  entoados  lugubremente,  e  reboando  uo  apo- 
sento sonoro  assemelhavam-se-lhe  aos  ecchos  das 


orações  por  finado  repercutidos  por  abobada  de  igre- 
ja em  Irinlario  cerrado.  Sentiu  correr-llie  os  mem- 
bros um  calafrio  —  não  de  temor,  porque  não  o  co- 
idiccia  o  seu  coração  —  mas  de  terror  —  desse  re- 
ligioso terror  que  na  crédula  idade-media  ás  vezes, 
e  por  mil  motivos  vãos,  vergava  os  ânimos  mais  es- 
forçados. Era  singular  o  efleito  que  nclle  produzia 
a  voz  roufenha  de  D.  Ilibas  ;  mas  é  certo  que  essa 
voz  despertava  na  sua  alma  lembranças  do  morte  e 
uma  indizível  tristeza.  Revoou-lhe  então  lá  dentro 
o  pensamento  de  que  no  cantar  do  truão  havia  o  que 
quer  que  fosse  fatídico,  e  no  seu  olhar  brilhante  o 
que  quer  que  fosse  diabólico.  Sentia  b;ilerera-llic  eoni 
força  as  artérias  frontaes,  e  sussurrar-lhe  nos  ouvi- 
dos um  zimíbiilo  intolerável.  Esqueccu-se  de  quem 
era  o  homem  que  assim  se  assentara  na  cadeira  real, 
para  dalli  lhe  repartir  as  ultimas  injurias  que  na- 
quella noite  distribuíra  com  mão  larga.  A  imagina- 
ção lhe  transformou  o  gesto  jovial  do  bobo  no  aspe- 
cto tétrico  d'um  enliçador,  e  o  seu  cantarolar  ridí- 
culo nos  acccnlos  sinistros  de  uma  vellia  stryga. 
Esta  espécie  de  delírio  era  que  havia  cabido  Garcia 
Bermudez  —  era  elle  ocavnlleiro  —  o  obrigou  a  sa- 
hir precipitadamente  da  vasta  e  já  mal  allumiada 
sala  ,  e  a  descer  ao  pateo  interior  ,  sem  olhar  para 
traz  ,  sem  encarar  o  bobo  ,  cujo  canto  soturno  fin- 
dou n'uma  destas  gargalhadas,  que  não  parecem 
vir  da  alma  ,  c  que  contristam  ,  porque  ,  naquelle 
que  as  solta  ,  revelam  alienação  mental. 

Garcia  Bermudez  parou  :  o  pateo  estava  deserto  : 
um  cavalleríço  estirado  a  um  canto  dormia  profun- 
damente, com  as  rédeas  da  mulla  possante  enfiadas 
no  braço.  O  frescor  da  noite,  e  a  serenidade  do  céu 
scintillante  d'estrellas  ,  acalmaram  o  animo  agita- 
do do  cavallciro  ;  mas  o  pulso  batia-ihe  violento  c 
febril.  O  extravagante  pesadello  dhomem  acorda- 
do ,  que  tivera  ,  não  procedera  do  bobo  ;  procede- 
ra do  lance  doloroso  por  que  pouco  antes  passara. 
No  meio  do  sarau  ,  na  ebriedade  da  festa  ,  elle  ou- 
sara finalmente  o  que  até  ahi  não  havia  ousado. 
Tudo  quanto  unia  paixão  sincera  tinha  vcheraente  , 
enérgico  ,  tempestuoso  ,  tudo  dissera  a  Dulce  :  esse 
amor ,  que  com  tanta  arte  ella  soubera  conter  nos 
limites  de  mysterio,  deixara  de  o  ser.  !\las  aquella 
alma  ,  que  parecia  tão  meiga  ,  tão  branda  ,  tão 
fácil  a  todos  os  contentamentos,  a  lodos  os  affc- 
ctos ,  achou-a  elle  indomável  c  esquiva  a  tanto 
amor.  Esta  repulsa  esmagara  o  coração  de  Garcia 
Bermudez  ,  e  a  sua  imaginação  delirou.  O  raio 
fulminara  o  cedro  :  que  muito  era  que  elle  balou- 
çasse pendido? 

O  cavalleríço  despertou  gemendo,  a  um  rijo  pon- 
tapé do  cavalleiro :  este  montou  de  salto  na  mulla 
cravando-lhe  os  acicates  no  ventre  ;  galgou  pelo  por- 
tal da  torre  alvarran.  e  ,  correndo  ao  longo  da  cou- 
raça ,  sem  saber  como  ,  achou-se  á  porta  da  sua 
pousada  ,  no  bairro  coutado  c  honrado  do  burgo. 
No. meio  de  desesperação  profunda,  uma  luz  tenu(! 
lhe  bruxuleava  na  alma.  Dulce  promettèra  explí- 
car-lhe  o  motivo  porque  rcfusava  tanto  amor.  Es- 
ta revelação  seria  feita  no  dia  immediato.  A  hora 
aprazada  fora  a  do  por  do  sol ;  o  logar ,  a  galihV 
contigua  á  sala  d'armas  ,  que  dava  sobre  os  adar- 
ves  do  norte  ,  e  que  a  esse  tempo  devia  estar  er- 
ma. Era  uma  noite  e  um  dia  eternos,  que  tinha 
de  vi\er  entretanto;  mas  a  esperança  mais  débil 
arrosta  com  a  eternidade,  e  bem  qae  frouxaraentf! 
o  cavalleiro  esperava  ainda ,  postoque  não  ousasse 
dize-lo  a  si  mesmo,   e  talvez  nem  sequer  o  cresse. 

D'ahí   a  pouco  tudo  parecia  dormir  uo  castello  e 


48 


O  PANORAMA. 


no  burgo.  Não  era  assim:  neste  velava  Garcia Ber- 
mudez  ;  naquelle  o  conde  Fernando  de  Trava  ,  a 
bella  infanta  e  Dulce,  líram  quatro  agonias ,  tre- 
mendas todas,  mas  todat  ellas  dilTerentes. 

A  variedade  é  o  que  mais  ama  na  vida  o  cora- 
ção humano.  A  providencia  não  se  esqueceu  de  con- 
ceder-lhc  cm  grau  infinito  a  variedade  na  dòr. 

(A.  Ucrculano.) 


S3C1TC1CIA  S.-J?vAL. 
Estrume  feito  d'ossos. 

IVão  canraremos  de  repetir  que  assim  como  uma 
confiança  cega  em  todos  os  preceitos  e  methodos 
estrangeiros  pôde  occasionar  ,  e  cffectivamente  tem 
occasionado ,  perda  de  gastos  e  de  tempo ,  enga- 
nando os  fáceis  imitadores,  assim  também  uma  des- 
confiança absoluta  nesta  matéria  se  torna  inimiga 
do  melhoramento  que  se  tem  approvado  j,í  entre 
nutras  nações  ,  as  quaes  devemos  imitar  no  que  fòr 
rasoavel  e  praticável.  Com  effcilo  ,  o  amor  do  ga- 
nho ,  e  os  conhecimentos  chimicos  tem  levado  ,  ha 
SO  annos  a  esta  parte,  a  ura  auge  quasi  incrivel  , 
a  agricultura  n'alguns  paizes  ;  c  como  a  industria  , 
c  o  commercio  tiram  daquella  o  seu  alimento  prin- 
cipal ,  não  ha  tentativa  ,  por  mais  estranha  e  repu- 
gnante que  pareça  á  primeira  visía,  que  os  homens 
não  tenham  feilo  para  augmenlar  o  rendimento  agrá- 
rio ,  e  diminuir  a  despeza  do  grangeio.  Ora  nós  es- 
tamos persuadidos  que  nem  mesmo  os  processos  e 
descobrimentos  úteis  devem  ser  indistinctamente 
abraçados.  Algum  ha  hi  consignado  nos  escriptos 
do  tempo ,  praticado  por  uma  nação,  modelo  na 
cubica  do  útil  ,  que  nenhum  porluguez  refiectido  e 
brioso  se  abalançarei  a  por  em  pratica  ,  apesar  de 
parecer  ,  pelo  furor  do  seu  proseguimcnto  ,  ser  do 
numero  dos  proveitosos.  Eslá  elle  mencionado  na 
excellente  obra  deMrs.  deGrandmont  c  C.  de  Las- 
leyrie  ,  intitulada  Jornal  dos  Conhecimentos  usuaes 
c práticos,  do  anno  de  183-2,  apag.  14,  n'uma  nota, 
onde  se  lè  :=0s  jornaes  do  tempo  vem  cheios  dos 
clamores  que  tem  excitado  as  escavações  feitas  ha 
alguns  annos  pelos  inglezes  nos  campos  de  batalha 
da  Allemanha  ,  para  cxtrahir  e  recolher  os  ossos 
dos  mortos.  Todos  os  logares  ,  onde  cm  resultado 
d'acontecimentos  desastrosos  ,  de  batalhas  mortife- 
ras  ,  tem  os  povos  deixado  seus  despojos  mortaes  , 
vão  sendo  objecto  d'uma  barbara  mineração:  asos- 
sadas  dos  valentes  tem  sido  procuradas  ,  violado  o 
seu  nobre  jazigo  e  em  resultado  destas  profana- 
ções ,  extrahidas  ,  despedaçadas  ,  pisadas  ,  e  leva- 
das em  barricas  para  irem  fecundar  as  terras  in- 
glezas.  Cora  eficito  ,  nem  a  repugnância  natural  a 
uma  tal  especulação  ,  nem  o  respeito  devido  ao 
repouso  dos  finados  ,  nem  a  deferência  que  recla- 
ma o  sacrificio  do  valor  em  todas  as  almas  bem 
nascidas  ,  nem  a  indignação  geral  poderam  até 
agora  suspender  os  especuladores  insulares  de  seu 
novo  e  abominável  trafico  ;  antes  tem  elles  .  ape- 
sar da  indignação  universal ,  ])crseverado  tranquil- 
lamentc  no  seu  propusilo.  A  moral  humana  desta 
vez  ,  como  n'outras  muitas  ,  não  prevaleceu  contra 
a  cubica.  Ao  ver  o  progresso  e  andamento  desta 
minerarão  ,  sem  que  nem  a  longura  do  caminho  , 
nem  o  gasto  do  Iranspnrlc  ,  nem  as  despezas  occa- 
sionadas  pelas  excavações,  tenha  resfriado  o  ardor 
da  cmpreza  ,  devemos  concluir  que  o  lucro  destes 
novos  emprezarios  de  pompas  íuncbrcs  lem  compen- 


sado largamente  o  dispêndio  que  fazem.  Á  vista 
disto  ,  e  ainda  que  similhante  exercício  industrial 
não  mereça  achar  imitadores  nas  outras  nações, 
comtudo  servirá  este  exemplo  para  prevenir  e  dou- 
trinar nossos  agricultores  afim  de  não  desprezarem 
os  ossos  dos  animaes  mortos,  que  poderem  apro- 
veitar, como  muitas  vezes  acontece,  principalmente 
na  visinhança  das  villas  e  cidades  ,  e  n'oulros  lo- 
gares ,  cm  que  estiverem  abandonados.  = 

Carvão  aulmat. 

.\ssim  traduzimos  le  noir  animalise,  nova  descober- 
ta d'eslrumes  compostos,  mencionada  no  mesmo  ci- 
tado jornal  a  pag.  279.  Nós  assentamos  que  não  se- 
ria totalmente  perdida  a  noticia  que  em  extracto 
vamos  dar  deste  novo  invento  ,  que  ao  menos  ser- 
virá de  dar  a  conhecer  aos  nossos  agricultores  a  im- 
portância dos  estrumes,  que  fazem  hoje  o  objecto  da 
applicação  dMiomens  instruídos  nas  outras  nações  , 
persuadidos  que  não  ha  objecto  mais  ulil  enecessa- 
rio  na  tarefa  do  lavrador.  O  ponto  essencial  cora 
efleito  c  o  de  multiplicar  quanto  possível  fi'ir  a  quan- 
tidade dos  estrumes  ,  lançando  mão  de  todos  os  re- 
cursos que  para  isso  contribuam.  Eis  o  caso  :  ■ — • 

Três  sábios  agricultores  franrezes  reflectindo  que 
nem  todos  os  lavradores  tem  gados  ,  e  os  de  mais 
meios  adequados  para  obter  estrumes  proporciona- 
dos a  suas  lavouras  ;  que  os  estrumes  vegetaes  são 
demorados  ainda  para  aquelles  que  tem  a  maté- 
ria primeira  ;  que  os  outros  de  matérias  animaes  , 
em  verdade  os  mais  enérgicos  ,  não  deixarão  com- 
tudo de  ter  seus  inconvenientes  ,  sendo  um  delles  , 
entre  outros  ,  o  d'attrahircm  os  insectos  ,  vermes  , 
e  ralos  devoradores;  á  força  de  tentativas  conse- 
guiram formar  uma  preparação  que  ,  não  tendo  es- 
tes incor  .enicnles,  reúne  as  vantagens  de  fácil  trans- 
porte, e  d'uma  forte  virtude  ferlilisnnlc.  O  melhor 
methodo  d'empregar  o  tal  composto  é  misturando-o 
com  outros  estrumes,  ou  substancias  apodreridas  , 
de  que  elles  se  formam.  O  nome  dado  ao  dito  in- 
vento ,  ?iO!>  animalise,  indica  que  6  feito  de  subs- 
tancias animaes,  queimadas  e  reduzidas  a  pó  de 
carvão  ;  mas  tudo  o  mais  está  ainda  secreto  ,  e  na 
propriedade  exclusiva  de  Jlrs.  Salmon  ,  Payen  ,  e 
Lupé  de  Paris  ,  que  vendem  o  producto  de  sua  in- 
venção ,  e  dizem  elles  que  i>or  um  preço  muito 
commodo.  Este  pó  carbonisado  parece  estar  sendo 
muito  usado  na  Bretanha,  nos  departamentos  do 
oeste  da  França  ,  e  nos  7  que  avisiuliam  a  cidade 
de  Nantes.  Para  os  trigos ,  cevadas  ,  centeio  e  avca 
lançam-o  na  terra  aos  punhados  como  quando  se 
semèa  ,  a  la  rolée  ,  já  seja  ao  mesmo  tempo  que  a 
semente  ,  já  depois  delia  ,  porem  antes  de  lhe  mct- 
ter  a  grade.  Usam-no  nas  plantações  e  nas  borlas, 
lançando  um  pequeno  punhailo  do  tal  estrume  na 
cova  de  cada  jilanta  ,  ou  ao  pé  delia  no  rego,  se 
assim  são  dispostas.  O  referente  desta  nova  desco- 
berta termina  o  artigo  dizendo,  que  o  carvão  ani- 
mal não  só  produz  abundantes  colheitas ,  mas  tor- 
na melhores  os  terrenos  n'uma  progressão  gradual 
a  ponto  de  dobrar  c  triplicar  o  valor  delles. 

J.  da  C.  N.  C. 


A  riLTin*  da  rasão  pelo  estudo,  exame  e  reflexão, 
pôde  conduzir-nos  a  um  grau  de  saher  que  nos  po- 
nha cm  contradicção  com  as  opiniões  vulgares  :  — 
neste  caso,  devemos  ser  prudentes,  evitando  dis- 
putas ,  e  esperando  do  tempo  a  madureza  das  ver- 
dades. 


60 


o  PANOÍIA3IA. 


49 


o   ARCO   DAS   AGUAS   LIVRES  ÂS    AMOREIRAS. 


PORTUGAL. 
XXII. 

O  Aqcedccto  Dis  Aguas  Litbes. 

;.M  1588  SC  tomaram  as  primeiras  disposições  para 
dprovisionar  de  aguas  a  cidade  de  Lisboa',  que  de 
anno  para  anno  crescia  em  população  ;  lambem  ha 
quem  affirme  que  jd  no  tempo  do  afortunado  D.  Ma- 
nuel se  fizeram  tentativas  encaminhadas  ao  mesmo 
essencial  objecto,  procurando-se  as  nascentes,  don- 
de hoje  se  deriva  o  principal  provimento  da  nossa 
capital.  Naquelle  tempestuoso  e  infeliz  reinado  de 
D.  Sebasti.io  abortou  o  desifrnio  :  muito  mais  tarde 
a  magnificência  de  D.  João  o.°  e  os  copiosos  recur- 
sos da  monarchia  levaram  a  cabo  amagestosa  obra, 
qne  é  por  cerlo  a  mais  notável  de  quantas  Lisboa 
encerra  no  próprio  recinto  c  nas  visinhanças.  È  fa- 
brica destinada  á  commum  utilidade;  eaiemd'este 
grande  preço  reúne  todas  as  condições  de  sumptuo- 
sa, por  tal  arte  que  não  duvidou  dizer  delia  o  aca- 
démico, P.°  Estevão  Cabral,  as  seguintes  expressõeí. 
FíVEREIRO  18 —  1843. 


—  «Uma  das  obras  de  maior  magnificência,  que  no 
seu  género  se  admiram  talvez  em  todo  o  mundo  ,  c 
a  obra  chamada  das  aguas  livres  na  nossa  Lisboa. 
É  certo  ao  menos  que  no  género  de  aqucductos  ex- 
cede ella  os  mais  famosos,  quaes  são  os  de  Génova, 
de  Spolelo  ,  de  Cascrta  ,  de  Roma  ,  excepto  que  na 
quantidade  de  fluido  as  aguas  livres  comparadas  com 
alguns  dclles  são  pobreza  comparada  com  riqueza, 
pois  os  romanos  e  o  de  Caserta  trazem  rios  cheios  , 
e  este  nosso  apenas  traz  um  pequeno  regato;  mas  a 
hellcza  e  a  magnificência  são  sem  controvérsia  ne- 
nhuma aqui  maiores.))  —  Desde  que  o  sábio  padre 
escreveu  ,  já  lá  vai  meio  século  ;  tem  crescido  o 
baslecimento  das  aguas  com  os  muitos  mananciacs 
descobertos  e  encanados  para  o  aqueducto  geral ; 
ha  oito  annos  tem  continuados  trabalhos  engrossa- 
do as  antigas  e  inexhauriveis  fontes,  para  cada  ve/. 
mais  a  grandeza  da  construcção  corresponder  ás  in- 
tenções que  a  suggeriram  e  ás  necessidades  de  uma 
das  principaes  cidades  da  Europa.  —  Igualmente, 
as  queixas  que  o  citado  A.  e  o  outro  académico  , 
V«Qdel!i ,  appresentaram  ,   relativamente  á  falta  de 

2,'  Serie.  —  Vol.  II. 


30 


O  PANORAMA. 


conclusão  e  aprovcilamcnlo  do  vastissimo  deposito , 
'<u  [liscina  das  Amoreiras  ,  cessaram  ,  porque  logo 
nos  primeiros  niezcs  da  restauração  efTectuada  pelo 
Sr.  D.Pedro  4.",  de  Saudosissima  Memoria,  se  com- 
pletou esse  deposito  providencial ,  com  a  notável 
circumstancia  de  se  formar  a  cascata  por  onde  as 
aguas  se  quebram  e  precipitam  ,  gozando  o  bencfi- 
oio  do  ar  e  da  luz  com  a  certeza  de  entrarem  no 
amplíssimo  tanque  mais  depuradas.  Os  antigos,  nos 
'■eus  grandiosos  aqueductos,  armavam  também  inler- 
niprck^s  e  quedas  cm  tanques  similhantcs,  para  que 
a  agua  depozessc  tudo  o  que  fosse  heterogéneo  ,  c 
«•liamavam-Ihe  piscina  limaria,  porque  tal  obra  scr- 
'ia  para  clarificar  a  agua,  deixado  o  lodo:  alem 
desta  considerarão  do  illustre  povo  romano,  dam-se 
nutras,  que  a  moderna  physica  aconselha,  para  que 
estas  artificiaes  cascatas  se  fabriquem  e  conservem. 
Nem  se  creia  que  o  P.°  Cabral ,  por  sentimentos 
de  nacional  ,  exaggerou  a  sumptuosidade  do  monu- 
mento ,  consagrado  jielo  rei  magnânimo  ao  bem  do 
]iovo  ;  nos  escriptorcs  estranhos  acharemos  confirma- 
do o  seu  juizo.  Balbiquasi  que  se  exprime  nos  mes- 
mos termos,  e  accrcscenta  [a  pag.  174  do  Ensaio] 
(jue  é  uma  das  obras  mais  mai/ni/icas  da  íiiodn-na  Eu- 
ropa ,  e  que  púãc  ser  comparada  ás  maiores  que  des- 
ta espécie  frz  a  antiguidade.  Os  mais  ,  que  a  viram 
(•  descreveram,  faliam  idêntica  linguagem  :  nasMc- 
morias  da  R.Acad.  das  Sciencias  deParís,  anno  de 
•1772,  Parte  2.",  vem  delineado  o  arco  grande,  co- 
mo cousa  singular. 

Km  pouco  mais  de  vinte  annos  se  construiu  tão 
estupendo  monumento,  pelo  risco  do  engenheiro  mi- 
litar, Jíanuel  da  Maia.  Tal  é  a  solidez  da  construc- 
rão  que  o  devastador  terremoto  de  17o5  lhe  não  fez 
dannio  ;  não  deram  de  si  os  pilares,  as  paredes  não 
.liiriram  ;  apenas  três  dos  dczeseis  torreões,  que  ser- 
vem de  ventiladores,  soffreram  algum  estrago.  Co- 
meça o  aqueduclo  quasi  a  três  léguas  da  cidade  na 
ribeira  de  Carcnque  ;  numeram-se  cm  toda  a  sua 
exlensão  127  arcos  de  forte  e  excellcutc  cantaria  ; 
a  altura  interior  do  encanamento  é  do  treze  pés  : 
quando  emsitios  eminentes  prosegue sotlerrado  tem 
a  espaços  convenientes  uns  torreões  quadrados  cora 
.sua  janella  em  cada  face  ,  resguardadas  por  grades 
de  ferro  e  redes  d'ararae  ;  e  ao  atravessar  os  valies 
caminha  sobre  cleganle  arcaria  ,  sem  era  seu  cur- 
.s'i  desdizer  do  nivellamento  próprio.- — -lia  torreões 
<iu  ventiladores  na  parte  7nais  grandiosa  da  obra  , 
a  ponte-aqucducto  sobre  a  ribeira  d'AIcantara  ;  pa- 
ra aqui  se  chama  a  admirarão  denaturaes  e  estran- 
geiros :  bella  e  dilatada  ó  a  perspectiva  que  de  tão 
desmesurada  altura  se  avista.  Por  3ij  arcos  ,  que 
unem  duas  oppostas  eminências,  sobre  uma  quebra- 
da de  espantosa  profundidade  e  na  extensão  de  400 
loesas  (♦)  segue  o  abastecimento  d'aguas  para  a  ci- 
dade nova,  a  maior  e melhor  parte  da  populosa  rai- 
nha do  Tejo.  Os  arcos  ,  como  é  bem  de  presumir  , 
variam  gradualmente,  para  qualquer  dos  extremos, 
na  dimensão  perpendicular  e  na  largura  desde  a 
volta  até  a  base  :  o  maior  ,  por  justa  antonomásia 
denominado  Arco  grande  ,  tem  de  altura  315  pal- 
mos craveiros,  e  de  largura  loO.  Parallclos  ã  nies- 
i!ia  sumiiluosa  poute-aqneducto  correm  ,  dos  lados 
don.iscente  epoente,  dois  passeios  dequasi  oilo  pal- 
mos de  largo  rom  seus  [)arapcitos,  donde  paraqu.il- 
qiicr  destas  frentes  se  desfrurla  a  pai/agem  do  nos- 
so l)ello  clima  meridional  conforme  a  variedade  das 

(•)  ]")ào-llH'  (i.s  cscrijítores  estraniieiros  ^:464  jtes  in?le- 
7.'"í .  que  segiinilo  as  laliellas  do  Sr.  Barreiros  produzem 
341  Ji;  braças  porlugiiezas. 


estações,  notando-se  o  espectáculo  das  quintas  ,  ca- 
sas de  campo,  e  terras  de  semeadura,  em  vasto  hori- 
sonle. 

Entra  o  aqucducto  na  cidade  pela  parte  do  no- 
roeste ,  onde  chamam  as  Amoreiras  por  causa  de 
nm  plantio  arruado  destas  arvores  ,  com  fonte  pu- 
blica no  centro,  e  que  fora  disposto  para  servir  á 
Fabrica  das  Sedas  erecta  por  conta  do  Estado  no 
sitio  do  Ilato  :  neste  logar  ,  ao  occidenle  ,  sobre  a 
rua  que  é  a  sabida  e  estrada  geral  desta  parte  de 
Lisboa  ,  está  um  arco  ,  á  maneira  dos  triumphaes  , 
a  um  tempo  esbelto  e  magestoso  ,  de  soberba  can- 
taria, e  pertencente  á  ordem  d'archilcctura  chama- 
da dórica  ;  no  apainelado  do  friso  da  cimalha  ,  pa- 
ra a  banda  ,  que  em  respeito  á  situação  diremos 
[ainda  que  vagamente]  do  norte  ,  lè-se  uma  elegan- 
te inscripção  latina  ,  disposta  segundo  o  gosto  do 
estilo  lapidar ,  na  qual  se  commcmora  o  pacifico 
reinado  de  D.  João  5.° ,  as  dilficuldades  e  o  feliz 
resultado  da  eropreza  do  aqueduclo  ,  com  os  encó- 
mios costumados  das  qualidades  do  monarcha  ;  tem 
a  data  de  1738 ,  e  marca  o  espaço  de  vinte  e  um 
annos  ,  que  levou  a  obra  :  no  apainelado  opposto  , 
que  lhe  é  correspondente  e  olha  para  a  cidade  ,  ha 
outra  inscripção  similhante  na  mesma  lingua  ,  que 
menciona  a  extensão  de  nove  mil  passos  do  aqucdu- 
cto, e  que  este  fura  fabricado  are  publico,  com  o  di- 
nheiro publico  ,  porque  se  fez  a  custa  da  nação  , 
contribuindo  essencialmente  o  imposto  denominado 
real  d'arjua.  Deixamos  de  traslada-las,  era  rasão  do 
grande  espaço  que  occui)ariam.  —  E  este  o  monu- 
mento commemorativo  ,  que  os  leitores  vêem  repre- 
sentado na  gravura  anteposta  a  este  artigo. 

Logo  contíguo ,  e  immediatamcníc  ao  sahir  do 
passeio  das  Amoreiras  para  o  sul  ,  ha  o  grande  de- 
posito ou  piscina  ,  de  que  acima  nos  lembrámos  ; 
na  forma  externa  é  uma  torre  quadrangular,  com- 
posta inteiramente  da  bclia  pedra  de  cantaria  em 
que  o  nosso  reino  abunda  tanto  ,  encerrando  um 
tanque  ,  construído  segundo  os  rigorosos  preceitos 
da  arte  ,  completo  era  1834  ,  limpo  e  bem  vedado  , 
com  os  couductos  necessários,  quebrando-se  as  aguas 
nas  irregulares  saliências  da  cascata  ,  e  que  forma 
ura  espectáculo  agradável  a  vista  ,  ao  passo  que  o 
ouvido  se  entretém  com  o  sussurro  que  reboa  pelas 
amplas  abobadas  ,  que  fecham  o  recinto.  Os  fortís- 
simos miiros  deste  tanque  marmóreo  tem  de  espes- 
sura 2o  palmos,  e  serve  esta  grossura,  entre  a  bor- 
da do  mesmo  c  o  muro  externo,  de  espaçosa  varan- 
da ,  que  oiTerece  folgado  passeio  a  muitos  concor- 
rentes. i>or  três  dos  lados,  ficando  no  quarlo  a  que- 
da das  aguas  ,  á  banda  do  poente  ;  nos  lados  exte- 
riores rasgaram-se  amplas  janellas  :  por  um  lanço 
d'escada  estreita  e  torcida  sobe-se  ao  eirado  que 
remata  a  forre  ,  lageado  ,  c  geral  sobre  a  immensa 
abobada  ,  e  donde  se  avista  um  liudissimo  panora- 
ma da  cidade  ,  que  talvez  não  Icn^a  rival ,  —  senão 
o  que  se  descortina  da  eminência  do  castello  —  ou 
o  prospecto  que  do  zimbório  do  convento  da  Es- 
trella  se  desfrucla.  —  O  comprimento  do  tanque  [se- 
gundo a  memoria  do  P."  Cabral]  é  de  12o  palmos, 
a  largura  de  107  ,  c  a  altura  de  37;  do  fundo  er- 
guem-so  quatro  pilastras  de  dez  palmos  quadrados, 
que  suslenlam  as  abobadas  superiores.  iCsle  grande 
edificio  é  o  que  o  vulgo  eoidiece  pelo  nome  de  «i«i 
d'(ifjua  do  llato  ,  ou  das  Amoreiras. 

A  zelosa  Sociedade  Pharmareiílira  Lusitana,  sem- 
pre atlcnla  a  indagações  e  trabalhos  de  publica  uti- 
lidade, fez  a  asialjsc  cbimica  da  agua  das  Aguas  Li- 
vres ,  que  estampou  em  o  u."  3."  do  seu  Jornal. 


o  PANORA3IA. 


SI 


>,  o  Bobo.  ^  .i,  .•     -    • 

',  r.-  1128. 

--:.:-■  V.         -       ,':,  ,■:,-,  -'1 

■  \  A  Madrugada. 

O  CÉU  oriental  começava  a  dourar-se  com  os  pri- 
meiros raios  de  sol  ijiie  surgiam  na  vermelhidão  da 
madrugada.  Allumiando  com  serena  c  ainda  frouxa 
claridade  o  burgo  assentado  na  baixa  ,  iam  relle- 
ctir-se  trémulos  no  orvalho  pendurado  nas  folhinhas 
da  relva  pelasveigas  circumvisinhas  ;  e  batendo  de 
soslaio  nas  muralhas  c  torres  do  easlcllo  tingiam 
as  pedras  alvas  e  lisas  de  còr  pallida.  Era  um  al- 
vorecer de  mauhaã  de  estio  no  Minho,  tão  suave, 
tão  poético  e  pinturesco  ,  que  talvez  por  isso  ahi 
collocarara  os  antigos  pagãos  o  Lethes,  esse  rio  cu- 
jas aguas  faziam  esquecer  as  penas  c  os  deleites  da 
vida.  Esta  virtude  ,  porem  ,  do  clima ,  este  deleite 
que  se  encontra  no  aspecto  daqucUas  lindas  paiza- 
gens,  no  murmurar  dos  arroios  percnnes,  nas  som- 
bras dos  arvoredos  frondenles.  e  na  risonha  verdu- 
ra dos  prados  ,  não  linha  podido  fazer  esquecer  ao 
ronde  de  Trava  os  riscos  da  sua  situação.  Atormen- 
tado pelos  receios  do  desfeixo  da  lucta  em  que  lhe 
era  forçoso  entrar  ,  tinha-sc  revolvido  tuJa  a  noite 
no  seu  leito  ,  sem  poder  dormir  .  ora  arrepcnden- 
do-se  de  haver  tratado  tão  duramente  o  moço  Af- 
fonso  Hcnriquez  ,  ora  fervendo-lhe  n'alma  desejos 
do  vingança  atroz  contra  o  mancebo  e contra  osba- 
rúes  de  Portugal  ,  que  successivamente  se  declara- 
vam pelo  bando  do  infante.  A  idéa  de  se  ver  cer- 
cado em  Guimarães  poraquelle  mesmo  aquém  me- 
zes  antes  fazia  esgotar  até  as  fezes  o  cálix  da  hu- 
miliação ,  accendia-lhc  o  orgulho  e  a  cólera  a  pon- 
to indizível.  Então  punha-se  a  calcular  as  probabi- 
lidades de  uma  batalha  campal.  Tinha  comsigo  mil 
lanças  entre  cavalleiros  deGalliza  ed'Aragão:  mui- 
tos ricos-homens  de  Portugal  pareciam  oonserva- 
rem-se  fieis  ,  não  a  elle  ,  mas  a  D.  Thcreza  ;  e  os 
borgonhezes  ,  companheiros  do  conde  Ilenrique  , 
educados  nas  idéas  da  absoluta  lealdade  feudal ,  e 
investidos  pela  maior  parle  emtenencias  de  terras, 
e  era  alcaidarias  de  caslellos ,  davam-lhc  toda  a 
certeza  de  que  não  abandonariam  aquella  de  quem 
tinham  seus  feudos.  Com  estes  elementos  diversos 
elle  podia  ir  em  arrancada  contra  a  hoste  de  D.  Af- 
fonso ,  superior  talvez  em  pionagcm  e  besteiros , 
mas  assaz  inferior  a  sua  em  homens  d'armas.  Se  , 
porem  ,  os  barões  portuguezes  que  ainda  se  não  ha-  j 
viam  declarado  contra  a  rainha  ,  a  abandonassem  , 
a  victoria  não  seria  tão  fácil  d"obler  :  e  posto  que 
o  conde  tentasse  minguar  o  valor  e  pericia  dos  ca- 
valleiros d'aquem  Minho  para  se  esforçar  a  si  pró- 
prio, a  lembrança  de  que  um  tal  acontecimento  se- 


deixava  bem  divisar  ,  mas  que  alguns  dos  esculcas 
apostavam  seríiarcia  Bermudez,  o  intimo  amigo  do 
conde ;  o  único  homem  que  sabia  moderar  o  seu 
caracter  violento  e  altivo  ,  c  que  parecia  senhor  de 
todos  os  segredos  daqucUa  alma  dissimulada  e  am- 
biciosa. Fosse  quem  fosse  o  cavallciro,  o  conde  ro- 
deou com  elle  osvallos,  e  passando  perto  outra  vez 
do  eastello  ,  os  dois  se  embrenliarani  n'uma  selva 
profunda  ,  que  se  estendia  a  pouca  distancia  desti; 
para  a  parle  do  norle. 

O  cavallciro  era  de  feito  o  valido  de  Fernão 
Perez.  A  amisadc  dos  dois  se  travara  e  crescera  na 
Palestina,  (iarcia  salvara  o  conde  cm  certo  recon- 
tro, no  qual  o  lilho  de  Pedro  Froylaz,  a  pé  e  cober- 
to de  feridas,  mal  se  defendia  já,  com  um  Iroro  de 
espada  partida  ,  da  multidão  dos  sarracenos  que  o 
cercavam.  Desde  então,  companheiros  de  perigos  e 
deleites,  nunca  mais  se  haviam  separado.  Era  uma 
destas  fraternidades  d'armas  de  que  os  tempos  bár- 
baros nos  oITereccm  tantos  exemplos  ,  porque  ainda 
então  cxislia  a  individualidade  do  homem  de  guer- 
ra, hoje  completamente  anuulada  pelo  valor  ficticio 
a  que  chaniànios  disciplina. 

Ao  passar  pelo  burgo,  o  conde  avistara  o  cavallci- 
ro, de  cujos  olhos  lambem  fugira  nessa  noite  o  som- 
no  ,  posto  que  por  bem  diverso  motivo.  Pela  pri- 
meira vez  Fernão  Perez  de  Trava  desejou  escon- 
der ao  seu  amigo  os  pensamentos  que  lhe  vaguea- 
vam no  espirito.  Todos  elles  se  resolviam  n'um  sen- 
timento único  —  o  temor.  Envergonhava-se  de  si 
mesmo ,  e  não  ousava  confessar  a  fraqueza  do  seu 
coração  áquelle  cujas  faces  nunca  vira  demudadas 
nomeio  dos  maiores  riscos.  Procurando  dar  ao  sem- 
blante carregado  uma  expressão  d'alcgria  ,  bradou 
de  longe  ao  cavalleiro  ,  que  embebido  em  scismar 
profundo  nem  sequer  sentira   o  tropear  do  ginete  : 

'( Jladrugador,  sois  Garcia  Bermudcz.  Já  vejo  que 
ainda  vos  lembram  as  alvoradas  d'ullramar.)> 

Garcia  soflVeou  a  mula  de  corpo  em  que  ia  mon- 
tado, e  volveu  para  traz  os  olhos.  No  seu  gesto  es- 
tava impressa  a  mais  profunda  mclancholia. 

O  conde  esporeou  o  ginete  até  emparelhar  com 
o  cavalleiro,  e  estendeu  a  mão  para  elle.  Garcia  Ber- 
mudez  apertou-a  na  sua ,  e  Fernão  Perez  sentiu 
que  esta  estava  tremula  e  febril. 

«Á  fe  que  mal  te  foi  a  noite  passada  :  a  tua  mão 
é  ardente  :  tens  no  rosto  pintado  o  padecimento.  » 

«  Verdade  é,  nobre  coude  —  respondeu  tristemen- 
te o  cavalleiro — 'duasnoiíes  similhanles  áque  pas- 
sei ,  e  estes  cabellos  estarão  brancos  ,  e  este  braço 
vergará  como  o  de  um  velho  ao  sopesar  a  lança.» 

«Mas  porque  assim  padecendo  te  diriges  para  a 
campina  ,  húmida  com  o  rocio  da  noite  ,  quaiidn 
talvez  podesscs  repousar  agora  no  somno  da  madru- 
gada ?  » 

«É  porque  busco  o  ar  e  a  luz  do  céu  como  um 
refrigério  :  é  porque  sinto  cá  dentro  um  fogo  que 
ria  possível  era,  entre  todas  asque  o  assaltavam,  a  j  me  devora,  e  preciso  de  respirar  livre  na  solidão.  <> 
mais  importuna  e  a  que  principalmente  não  o  dei-  O  conde  viu  duas  lagrimas  bailarem  sob  as  |)al- 
xára  repousar  durante  as  curtas  huras  do  uma  noi-  |  pcbras  do  cavalleiro.  Parou  espantado.  Era  inau- 
te  de  junho,   a  qual  para  elle  fiira  uma  das  mais  \  dito  ,   monstruoso,  impossível  o  que  via.   Nunca  a. 


longas  da  sua  vida 

.\ssim  apenas  a  luz  duvidosa  da  aurora  raiava  no 
oriente  ,  já  a  ponte  levadiça  do  eastello  de  Guima- 
rães descia  á  voz  impaciente  de  Fernão  Perez, 
montado  uo  seu  ginete  andaluz.  Os  atalaias  viram- 
no  sumir  entre  a  casaria  do  burgo  ,  e  d'ahí  a  pou- 
co tornar  a  apparecer  alem  dos  vallos  alevantados 
á  roda  da  povoação,  .\companhava-o  já  outro  caval- 
leiro, cujas  feições  a  escaca  luz  da  madrugada  não 


dor  de  feridas  ,  a  sèdc  nos  desertos  ,  a  fome  nos 
caslellos  sitiados,  eaté  a  morte  de  amigos  querido.s 
no  campo  de  batalha,  lhas  haviam  arrancado.  Oc- 
correu-lhe  então  um  pensamento  súbito ,  porque 
Fernão  Perez  era  hábil  em  conhecer  os  affectos  hu- 
manos. Parou  ,  e  cravando  a  vista  de  lince  no  ros- 
to de  Garcia  liermudcz  ,  disse-lhe  no  tom  firme  e 
positivo  de  quem  descobrira  um  segredo  :  — 
«Garcia  ,  tu  és  infeliz  pelo  amor  I » 


o  PANORAMA. 


o  caTalIeiro  corou  levemente ,  e  com  a  toi  afib- 
jçada  respondeu  :  — 
'  É  verdade  I  » 

O  conde  sabia  que  cllc  amava  Dulce  :  toda  a  cor- 
te o  sabia.  Fernão  Pcrez  folgava  com  aidca  de  pren- 
der por  laços  mais  fortes  que  os  da  amisade  aquel- 
le  esforçado  homem  de  guerra  á  fortuna  de  D.Thc- 
reza  e  á  sua.  Dulce  seria  disso  um  penhor,  e  a  af- 
feição  particular  que  cila  mostrava  ao  cavalleiro  per- 
suadira o  conde  e  a  infanta  de  que  os  seus  intentos 
e  desejos  seriam  l)revemcntc  cumpridos.  A  tristeza 
de  (íarcia  ,  a  que  não  achava  outra  rasão  possivel  , 
depois  de  um  sarau  a  que  tinham  assistido  tantos 
cavalleiros  mancebos  e  genlis-horaens  ,  lhe  fez  crer 
que  entre  os  dois  amantes  se  alevantára  alguma 
destas  procellas  ,  cora  que  o  suão  mirrador  do  ciú- 
me costuma  entenebrecer  ás  vezes  o  céu  risonho 
desta  quadra  da  vida  —  tão  bclla  e  tão  passageira. 
A  resposta  de  Garcia  o  confirmou  nesta  idéa. 

«Dulce  trahiu-te  ,  pois?»  proseguiu  o  conde  sem 
(irar  dellc  os  olhos. 

"Não:  —  replicou  o  cavalleiro —  porque  nunca 
fui  amado  por  ella  '.  » 

Estas  palavras  erara  uma  fria  e  morta  expressão, 
eomo  para  representar  as  paixões  violentas  o  c  sem- 
pre a  linguagem  dos  homens  :  e  todavia  no  accento 
com  que  haviam  sido  proferidas  rcvelava-se  bem  o 
martyrio  atroz  do  orgulho  offendido  c  do  amor  des- 
prezado,  que  ralava  o  coração  de  Garcia. 

"  Nunca  ! '?  —  interrompeu  Fernão  Perez. — Cria  eu 
•o  contrario  : — tinha  talvez  rasão  para  o  crer.   Se, 
porem,  não  é  Dulce  a  dama  dos  teus  alTectos  ,  ou- 
sarei  eu  perguntar  a  Garcia  Bermudez  o  nome  da 
sua  amada  e  a  causa  do  seu  padecer?» 

No  tom  destas  palavras  havia  o  quer  que  era  de 
ironia  e  motejo. 

«Conde  de  Trava  — replicou  o  cavalleiro —  só 
disse  que  jamais  fui  amado  por  Dulce  :  não  que  eu 
não  a  amava.  Nunca  o  encobri  a  ninguém  ,  e  vós 
sabeis  que  muitos  segredos  meus  ,  que  todos  igno- 
ram ,  nunca  de  vós  os  escondi.» 

O  modo  sentido  edo  amarga  reprehcnsão  com  que 
Garcia  respondera  ,  fizeram  conhecer  a  Fernão  Pe- 
rez que  a  ferida  aberta  naquelle  coração  era  dolo- 
rosa e  profunda.  Então,  estendendo  de  novo  para 
elle  o  braço  ,  disse-lhe  sorrindo  : 

«Vamos:  fallemos  serio,  e  perdoa  o  meu  gracejar. 
Se  amas  Dulce  ,  ella  será  tua.  Cóleras  de  amantes 
passam  como  a  nuvem  varrida  do  norte  ; — e  que  não 
fosse  assim,  seria  eu  o  tufão  que  a  alTugentasse.  Sa- 
hcs  que  Dulce  é  a  filha  adoptiva  da  rainha.  Será 
tua  esposa  a  um  aceno  do  conde  de  Trava ;  e  não 
é  o  conde  de  Trava  o  teu  mais  verdadeiro  amigo? 
Oh  ,  abre-me  o  teu  coração  !  » 

E  apertava  entre  as  suas  a  mão  do  cavalleiro. 
Garcia  IJormudez  alevantou  p.ira  elle  os  olhos  hú- 
midos c  tristes.  Por  algum  tempo  ficou  era  silencio, 
e  por  fira  exclamou  : 

«Não  sabes  o  mal  que  me  fizeste;  não  sabes  o 
bem  que  ora  me  fazes!  Suflocava-me  o  peso  da  mi- 
nha agonia:  deixa-la,  emfim  ,  dilalar-se  I  » 

l'.nlão,  seguindo  por  meio  da  selva,  narrou  ao  con- 
de Indo  o  que  se  passara  na  véspera,  e  a  larga  his- 
toria do  seu  desditoso  amor  ,  que  o  mundo  cria  re- 
tribuído e  feliz.  Aquella  narração  eloquente,  como 
a  paixão  Ih'a  ensinava,  chegou  a  commover  o  ani- 
mo de  Fernão  Perez,  que,  distrahido  a  principio, 
escutara  pacientemente  essa  larga  confidencia,  com 
o  único  intuito  de  tornar  mais  Íntimos  pela  grati- 
dão os  laços  (jue  prendiam  á  sua  surte  uru  homem, 


de  cujo  esforço  tanto  carecia  na  difficultosa  sittia- 
cão  era  que  se  achava.  —  Apenas  Garcia  cessara 
de  fallar,  o  conde  bradou  —  e  desta  vez  as  suas  pa- 
lavras vinham  da  alma  : 

«Cavalleiro,  Dulce  será  tua  mulher:  juro-o  pe- 
las cinzas  de  meu  pai !  » 

Era  o  mais  grave  juramento  de  Fernão  Perez. 
Poucas  vezes  o  ou\íra  Garcia  Bermudez  jurar  pe- 
las cinzas  de  Pedro  Froylaz. 

«Dulce  —  proseguiu  o  conde  —  c  orphaã  e  nobre; 
por  foro  de  Portugal  á  sua  mãe  adoptiva  ,  senhora 
dos  prestamos  de  que  cila  é  herdeira  ,  pertence  es- 
colher aquclle  que  hade  desposa-la.  Tu  serás  o  es- 
colhido ,  e  se-lo-hás  talvez  hoje  mesmo.  AfErma-to 
o  conde  de  Trava  ?» 

O  cavalleiro  ficou  por  largo  espaço  pensativo.  Rc- 
ncxões  encontradas  tumultuavam  no  seu  espirito. 
Nestas  eras  civilisadas  em  que  a  idéa  do  amor  é 
mais  pura  nos  corações  que  o  coraprehendem  ,  ne- 
tdiura  animo  generoso  deixaria  de  recusar  com  hor- 
ror esse  meio  violento  de  satisfazer  seus  desejos. 
Naquclles  rudes  tempos  ,  porem  ,  a  generosidade  e 
a  delicadeza  dos  alTectos  moracs  era  mais  um  ins- 
tincto  confuso  que  uma  doutrina  definida  ,  gravada 
na  alma  pela  educação  e  pelas  crenças  sociaes.  Era 
por  isso  que  Garcia  hesitava  entre  o  intimo  aconse- 
lhar de  uma  nobre  consciência,  e  o  cego  desejo  de 
paixão  ardente.  A  tenuissima  esperança  que  ainda 
lhe  restava  fez  triumphar  ,  em  fim  ,  a  sua  natural 
generosidade  : 

«Não  —  disse  elle  —  não  quero  dever  á  obediên- 
cia ,  o  que  só  quizera  merecer  pelo  amor.» 

♦  Que  importa? —  interrompeu  Fernão  Perez. — 
Deixa  ,  Garcia  ,  aos  trovadores  essas  alTeições  ,  que 
se  pagam  de  submissão  c  suspiros.  Juramento  feito 
pelas  cinzas  de  meu  pai ,  nunca  deixei  de  cumpri- 
lo.  Poderia  agora  faze-!o?» 

O  cavalleiro  pareceu  meditar  um  momento  :  de- 
pois accrescentou  : 

«Bera  o  sei;  mas  promette-me  uma  só  cousa.» 
«Qual  ('•?  —  atalhou  vivamente  o  conde.» 
«Que  não  será  hoje  que  o  cumpras.» 
«Oh,  quanto  a  isso  —  respondeu  Fernão  Perez  sor- 
rindo— não  o  jurei  eu.  Nem  poderia  jura-lo.  O  con- 
selho dos  barões,  que  vai  daqui  a  pouco  ajuntar-se 
nos  paços  de  Guimarães  deve  ser  demorado  e  tem- 
pestuoso.  Conheces  o  que  lá  hade  tralar-se  ;  e  que 
não  conto  com  todos  os  rieos-horaens  de  Portugal  , 
como  conto  comtigo.  Teremos  brava  batalha.» 

"  Em  quanto  este  braço  poder  menear  uma  acha 
d'armas  ;  em  quanto  nestas  veias  houver  uma  gota 
de  sangue  ,  aquella  ferirá  sem  piedade  os  teus  ini- 
migos, este  será  derramado  para  te  defender  a  ti.» 
O  conde  cahíra  naturalmente  na  realidade  da  vi- 
da ,  e  voltara  ao  habitual  egoismo  de  que  por  mo- 
mentos Garcia  Bermudez  o  fizera  sahir.  Quando  o 
avistara  ,  ao  atravessar  o  burgo  ,  tinha-lhe  occorri- 
do  consultar  o  cavalleiro  ,  cuja  mestria  de  gucrr.i 
elle  conhecia,  sobre  o  systema  que  devia  seguir  ao 
começar  a  lucta  com  AlTonso  Henriquez,  lucta  que 
bem  conhecia  ser  inevitável.  Aproveitando  o  ponto 
cm  que  tocava  quasi  imprevistamente,  foi,  sem  re- 
velar nunca  os  receios  que  o  assaltavam  ,  condu- 
zindo a  conversação  de  modo,  que,  depois  de  have- 
rem rodeado  o  bosque  ,  ao  entrarem  no  castello,  os 
dois  haviam  calculado  e  disposto  todas  as  traças  que 
julgavam  opportunas  para  chegarem  uatiuella  guer- 
ra iminiuente  a  um  desenlace  feliz  para  a  bella  in- 
fanta de  Portugal  ,  e  por  consequenria  para  o  am- 
bicioso filho  de  Pedro  Froylaz.  — [Contínua.] 


o  PANORAaiA. 


53 


o   HOTTENTOTE. 

DK3CRKTEM0S  O  Celebre  Cabo  de  Boa-Esperança  no 
volume  primeiro  da  1 .'  Serie  ;  no  2."  a  pag.  2G4,  e 
no  3.°  a  pap.  18  ,  referimos  os  costumes  e  índole 
das  Tarias  nações  decaffres,  que  cstanceiam  pela 
costa  oriental  d'Africa  ,  nomeadamente  nas  vastas 
possessões  portuguezas  :  a  pag.  380  do  vol.  1.°  da 
presente  Serie  demos  noticia  dos  colonos  do  sertão 
do  Cabo  ;  resta  portanto  fajlar  dos  hotlentotes  ,  po- 
Toaç.io  indígena  dessa  ponta  de  Africa  a  que  impo- 
zemos  nome ,  e  que ,  apesar  de  hórridas  tormen- 
tas ,  para  os  nossos  descobridores  foi  de  feliz  pre- 
»agio  abrindo-lhe  a  rola  da  índia.  —  A  raça  hotten- 
tote  ,  de  continuo  acossada  pelos  colonisadores ,  ha 
muito  que  buscava  refugio  nos  áridos  desertos  ser- 
tanejos :  as  vexações  dos  hoUandezcs  e  dos  que  lhes 
succcderam  não  só  a  tinha  reduzido  em  numero , 
mas  pri\ando-a  pouco  a  pouco  do  direito  de  apas- 
centar seus  gados  a  sujeitara  a  um  jugo  mui  pare- 
cido á  escravidão  :  a  final  os  inglezes  a  emancipa- 
ram era  jiinho  de  182S  ;  e  os  hottentotes  do  Cabo, 
ao  lodo  trinta  mil  individuos  ,  foram  admiltidos  a 
gozar  os  mesmos  privilégios  e  direitos  que  a  popu- 
lação branca  da  colónia. 

Os  hottentotes  tem  os  ossos  das  faces  mui  promi- 
nentes  ,  c  ao  contrario  o  queixo  pontagudo  em  de- 
masia :  o  nariz  extremamente  chato  c  as  ventas  mui 
abertas:  a  boca  rasgada  guarnecida  de  miúdos  den- 
tes alvíssimos;  não  tem  feios  olhos  ;  e  proporcio- 
nalmente áquella  forma  de  rosto  as  feições  são  re- 
gulares ;  é  engraçado  e  ágil  o  seu  modo  de  andar  : 
as  mulheres  são  liem  afiguradas  ,  e  tem  mãos  e  pés 
pequenos  e  bem  feitos  ,  como  não  era  d'esperar  em 
gente  rmlo. 

Esla  casta  africana  é  dotada  de  bastante  presen- 
ça d'espirito  ,  e  de  animo  reflexivo  e  reservado  ; 
desve!a-se  no  paslío   de  seus  gados,   porque  é  es- 


sencialmente pastoril  ,  nom  tem  idéa  dns  rudimen- 
tos d'agrieultura  :  não  srmí'a  nem  planta;  nem  se- 
quer sabe  fabricar  manteiga  c  queijo  ,  fazendo  ns» 
do  leite  no  primeiro  estado  liquido.  —  São  porem 
05  hottentotes  destros  na  caça  ,  cicrcicio  em  que 
muito  os  auxilia  a  vista  perspicaz  :  como  caçadores 
d'elephantes  não  só  desenvolvem  habilidade  mas 
também  ousadia. 

O  vestuário  desta  gente  consta  principalmente  de 
uma  capa  de  pelles  de  carneiro  ou  de  feras  ,  cosi- 
das com  tiras  das  tripas  dos  mesmos  animnes  :  a 
capa  serve  de  cobertor  ,á  noile  e  de  vestido  de  dia, 
trazendo-a  aberta  se  faz  calma  ,  e  conchegada  a» 
corpo  SC  ha  frio ;  quando  está  velha  aproveila-se 
para  cobertura  da  cabana  ;  se  o  dono  morreu,  nella 
o  amortalham  :  afora  ella  não  tem  o  hottentote  mai.s 
fato  que  uma  espécie  de  avental  ou  tanga  ,  penden- 
te da  cintura.  Os  que  mantém  tracto  com  os  em-o- 
peus  adoptaram  algumas  commodidades  no  trajar, 
e  usam  chapéu,  pantalonas,  e  andam  calçados,  co- 
mo se  vê  na  gravura  ,  imagem  de  ura  hottentote 
emancipado. 


Bem  ocerer  b  mal  fàzbr. 

(Memoriai  insul;maB.) 

=  1531  = 
IT. 

Bem  qxisrer  '. 


'    ,.  E  não  só  foy  espelho  ile 

perfeições  &  graças,  ilolada  de 
gentis  parles  ;   mas  vivendo  le- 
ve alffus  lanços    de  rara  vlrlu- 
'    "  de,  &dÍL'nns  de  fazermos  d'el- 

les  particular  memoria. 
,    Mo/inrch.  Liisilani!,Tom.3-° 
■  '  i.  0.  ,  Cap.  20,  parj.  98. 

Se  uma  grande  resolução  tem  o  poder  ,  quasi  sem- 
pre ,  de  abalar  por  tal  modo  ,  que  nem  tempo  dei- 
xa para  a  reflexão  ,  é  de  ordinário  incentivo  para 
fortes  e  vigorosas  acções. — .V.ssim  pelo  menos  acon- 
teceu com  os  sorprehendidos  companheiros  da  illus- 
tre  viuva  apoz  o  atrevido  rapto  de  .\ntonio  da  Ca- 
mará. 

D.  .Águeda  lutando  com  sua  grande  indignação , 
e  sua  diír  ainda  maior  ,  não  sabia  ,  no  principio  . 
que  partido  tomasse  ,  mas  lireve  recobrada  da  pri- 
meira e  tão  esmagadora  impressão  ,  cora  animo  va- 
ronil ,  que  de  família  tinha  ,  pensou  em  que  a  vin- 
gança e  a  justiça  seguissem  de  perto  a  oITensa  e  o 
erro  ,  se  não  crime.  Por  sua  ordem  alguns  da  co- 
mitiva partiram  a  todo  o  correr  de  seus  bons  gine- 
tes para  a  cidade  do  Funchal  dar  parte  ás  justiças, 
postas  alli  por  eirei  ,  do  que  era  acontecido  ,  e  pc- 
dir-lhcs  em  nome  das  oíleudidas  prompto  desaggra- 
vo  á  sua  affronta. 

Despira  a  habitação  de  .\ntonio  da  Camará  o  in- 
voltorio  silencioso  com  que  se  disfarçara.  Como  que 
a  varinha  de  condão  de  alguma  boa  fada  ,  renovan- 
do os  sonhos  queridos  da  nossa  infância  —  tão  sau- 
dosos sonhos  ;  — tinha  tocado  a  nossa  morada  :  atra- 
vez  das  janellas  c  gelosias  abertas  divisavam-se  ca- 
marás e  salas  custosamente  adereçadas  ;  entornaia 
festivas  harmonias  ,  sorria  por  todos  os  lados  a  h;:- 
bilação  alegre  nomeio  de  suas  veigas  e  cerrados  ar- 
voredos, 1     ;  .1  •    . 


íii 


o  PANORAMA. 


De  feito  era  uma  fada,  a  mais  poderosa  de  quan- 
tas fadas  passeiam  pelo  mundo  formosissimo  das  ima- 
ginações ,  qiic  Indo  aquillo  fizera  —  o  amor. 

No  meio  de  uma  camará  aonde  todos  os  primores 
da  riqueza  pareciam  tcr-sc  dado  palavra,  c  em  que 
o  ouro  e  as  perfeições  da  arte  disputavam  primazias, 
solire  os  vistosos  matizes  das  alfombras  e  tapetes  , 
e  debaixo  dos  tectos  brilliaiiles  sobresaliia  uma  fi- 
gura nobre  que  pela  còr  negra  de  seusveslidos  sin- 
gularmente contrastava  com  o  risonho  aspecto  de 
quanto  a  cercava  :  era  D.  Isabel.  Eslava  ella  assen- 
tada sem  mostras  de  abatimento  ;  altiva  e  orgulho- 
sa a  fronte,  mas  baixos  c  modestos  os  olhos.  A  pou- 
cos passos  António  da  Camará  de  pé  c  cora  os  bra- 
ços cruzados  contemplava  com  ávido  silencio  aquel- 
la  formosa  e  digna  mulher,  Ião  digna  e  tão  formo- 
sa, que  o  audaz  cavallciro,  timido  agora,  como  que 
receiava  aproximar-se-lhc  ou  quebrar  a  solcmne  mu- 
dez que  alli  reinava.  Apesar  de  tão  calados  ,  havia 
comtudo  enire  os  pensamentos  de  ambos  um  vivo  e 
enérgico  dialogo. 

Largo  espaço  permaneceram  assim  :  ella  semque- 
rer  confiar  aos  lábios  o  que  n'alma  sentia  ;  clle  sem 
ousar  interrompe-la.  Mas  o  incêndio  que  lá  dentro 
lhe  lavrava  era  mister  rebentar  ,  que  por  mui  vivo 
já  não  havia  contè-lo.  Bem  certo  c  que  para  o  amor 
não  ha  dilliculdades. —  DiíTiculdade  e  grande  era  na 
espinhosa  posição  em  que  se  achava  o  excessivo 
lamante  ,  pouco  segura  a  consciência  e  aguilhoada  a 
vontade  ,  o  encetar  conversa  ,  que  se  por  um  lado 
podia  tornar-se  desejada ,  por  outro  tinha  seu  que 
de  assustadora.  Todavia  a  acção  eslava  feita  ;  era 
necessário  portanto  sahir  do  enleio. — -Por  fim  os  de- 
sejos do  amor  venceram  as  rcprehensõcs  do  dever. 
"Km  lai  cabimento  cahi ,  formosa  prima»  —  dis- 
se .António  da  Camará  com  voz  sumida  e  incerta  — 
«([uc  nem  já  uma  palavra,  nem  uma,  vos  mereço  !  » 
«.Melhor  vos  cabe  avós  sabe-lo  do  que  a  mim»  — 
respondeu  a  nobre  dama  com  mui  fera  e  soberba  fi- 
dalguia de  animo  ,  de  modo  que  o  galan  de  novo 
guardou  silencio  ,  mas  desta  vez  mais  triste  do  que 
altivo. 

Fallando  com  António  da  Camará,  erguera  D.  Isa- 
bel para  elle  os  olhos  cheios  de  pura  indignação,  que 
ainda  da  violência  qne  lhe  fora  feita  lhe  ficara,  líai- 
xára-os  de  novo  ,  calando-sc.  .Aias  depois  ,  quando 
apoz  longa  mudez  os  ergueu  desleixada,  comoqucm 
desperta  de  pondemso  meditar  ,  deu  com  o  extre- 
moso amante  que  ao  lado  lhe  ajoelhara  cm  silencio 
complelo. 

"Que  fazeis,  senhor.'»  —  perguntou  D.  Isabel  com 
gesto  já  mais  brando,  que  não  havia  resistir  a  lai 
excesso  de  amor. 

António  da  Camará  quiz  responder  :  faltou-lbe  , 
porem,  a  voz,  cduas  lagrimas  amargas  lhe  escorre- 
garam pelas  faces.  .4quella  alma  orgulhosa  e  firme 
em  suas  vontades  cedia  á  priiiuíira  e  única  fraque- 
za de  toda  a  sua  valente  e  vigorosa  vida. 

"Vedes,  senhora?»  —  disse  elle  ao  cabo,  valcn- 
tlo  a  dominar  a  (-ommoção  que  o  assaltara  —  «vedes 
'1  que  heis  feito  de  mim  .'  Que  fui  eu  e  que  sou  ho- 
je? dizei-o  ....  Apenas  me  dobrava  a  elrei  :  nunca 
tremi ,  niuica  me  abaixei  a  pedir  nem  a  rogar  vil- 
mente ,  nunca  uma  lagrima  pueril  me  envergonhou 
esle  rosto  .  .  .  nunca  !  .  .  .  E  agora  ?  .  .  .  Dobrei-mc  a 
Imscar-vos  nas  sombras  da  noite  como  se  precisasse 
iiccultar  um  crime;  abaixci-me  perante  vós  e  os  vos- 
sos insultos  ,  minha  prima  .  .  .  lenho  pedido  ,  lenho 
rogado  .  .  .  e  peço  e  rogo  de  joelhos  como  o  faria  a 
Deus  . . .   Gaslei  aniios  de  vida  a  pensar  eni  vossos 


aggravos  e  a  procurar  — dizia  cu —  desforrar-me 
d'elles  ...  Ah  !  que  a  mira  mesmo  me  enganava  .  .  . 
Não  ,  não  era  uma  desforra  que  buscava  —  bem  o 
o  sinto  aqui  —  não  era  . . .  Era  a  vossa  vista,  senho- 
ra ,  era  uma  esperança  mal  sonhada  que  eu  no  co- 
ração embalava  ,  no  mais  fundo  do  coração  ,  com 
amor  e  desvellos  de  pai.  .  .  .  e  choro  aqui,  formosa 
prima  ,  agora  que  a  vejo  quasi  perdida  e  murcha 
essa  esperança  que  eu  creei  sempre  tão  verde  .  .  .  e 
choro ....  Que  fui  eu,  e  que  sou  hoje?  dizei-o .  .  . 

Aqui  o  fogoso  amante  parou  fazendo  soleranc  pau- 
sa. Ergueu-se  lentamente,  e  apoz  momentos  de  con- 
sideração continuou  com  voz  de  severo  sentir,  que 
ao  seu  aspecto  um  lanto  leviano  nunca  ninguém  lhe 
suspeitara. 

«Restos  venerandos  de  meus  honrados  avós,  não 
me  envergonheis  da  minha  fraqueza.  Quebrai,  se  é 
possível ,  com  as  cabeças  despidas  as  vossas  loisas 
de  pedra  ,  callai  as  reprehensões  do  tumulo  ,  surgi 
e  vinde  com  os  olhos  que  d'antes  tinhcis,  vinde  ad- 
mirar esta  por  quem  me  esqueci  da  herança  que  me 
legastes,  porquem  regeilei  gloria  ébrios,  por  quem 
me  fiz  tão  fraco  e  tão  covarde  ....  Olhai ,  senhora, 
a  que  me  vós  reduzistes  ...  O  bom  nome  ,  a  boa 
fama,  as  boas  c  leaes  acções,  tudo  por  vosso  respei- 
to desprezei ,  tudo  se  me  varreu  da  lembrança  só 
por  este  amor  que  amo  tanlo .  .  .  Eis-me  reduzido  a 
mendigar  alTectos ,  e  a  lastimar  fróxas  magnas ,  en 
que  poderá  zombar  d'umas  e  dominar  os  outros  .... 
Cahi  em  erros  por  vós  ,  formosa  prima  ,  cahi ,  não 
vo-lo  nego  .  .  .  mas  Uido  o  que  fiz  e  o  que  faço  não 
vos  movem  antes  ao  perdão  que  á  vingança?  Talvez 
por  leviandade  o  tomásseis.  .  .  ah!  não.  —  Foi  pu- 
ro c  ardente  amor  —  tão  puro  c  tão  ardente  que  nem 
eu  sei  se  podéra  sè-lo  mais  ...  Ai !  llór  da  minha 
vida,  tão  murcha  edesfolhada,  quem  te  fará  já  ago- 
ra reviver?...  Bem  o  podieis  vós,  minha  prima.... 
Oh  !  tende  dó  de  mim  ,  que  alTronto  sem  desmaiar 
as  lanças  e  os  pelouros  da  guerra,  c  que  desmaio  e 
desfaleço  perante  vós  que  inda  mór  guerra  me  fa- 
zeis .  .  .  Mas  que  é  isto?  supplicando  amor  eu  que 
em  troca  só  lucro  desdéns?  A  que  exlremo  de  bai- 
xeza me  desci !  .  .  . 

E  o  incansável  galan  media  a  sala  a  passos  des- 
compassados ,  com  verdadeiro  desespero.  A  própria 
incohereneia  de  suas  palavras ;  seus  gestos  violen- 
tos ,  e  sobretudo  a  energia  com  que  fallava  ,  iam 
pouco  a  pouco  movendo  a  gentil  viuva  a  mais  bran- 
dos sentimentos  do  que  alé  alli  mostrara.  Apesar 
de  um  tanlo  leviano  na  apparencia  ,  o  que  talvez 
lhe  vinha  da  proniptidão  com  que  tomara  suas  re- 
soluções, era  conhecido  por  um  caracter  forte  e  vi- 
goroso. Ninguém  melhor  do  que  elle  sabia  prose- 
guir  elevar  acabo  uma  decisão  tomada,  e  era,  por- 
ventura, esta  força  de  vontade  que  assim  lhe  arrei- 
gava no  coração  tão  infeliz  amor.  Primava  entre  to- 
dos na  ilha  ,  que  era  elle  fidalgo  entre  os  de  me- 
lhor nome  ,  o  valente  entre  os  de  maior  fama.  Go- 
sava  de  credito  e  consideração  geraes  ,  e  tinha  as 
qualidades  de  um  bom  cavallciro,  as  quaes  nem 
por  seus  des\arios  de  todo  se  haviam  escondido  aos 
(dhos  de  D.  Isabel,  (^om  isto,  e  com  tão  grande  af- 
fecto  n'alnia,  com  aquella  paixão  desregrada  que 
o  levara  a  commetter  esses  mesmos  desatinos,  que 
se  por  um  lado  eram  olVensas  ,  por  outro  eram  pro- 
vas enérgicas,  quem  resistiria  ao  arrebaíamenlo  do 
seu  fallar,  aos  transportes  do  seu  sentir? 

Entre  compassiva  o  agravada  luctava  a  illuslre 
viuva  comsigo  ,  sem  acabar  em  conceder  o  deseja- 
do perdão,  que  seria  sem  duvida  seguido  de  senti- 


o  PANORAIUA. 


55 


menlos  mai?  ternos  ainda  :  pondcr.mdo  de  ura  lado 
o  extremo  do  homem  que  alli  via  tão  martyrisado  ; 
e  do  outro  a  memoria  do  defunto  ,  e  os  fatiares  do 
luundo,  cousas  qiic  pouco  a  jiouco  iriam  —  deveras 
o  cremos  —  perdendo  ora  seu  espirito  a  intensida- 
de ;  quando  rumor  alto  que  soou  lá  fora  ,  e  que  á 
maneira  de  um  ccho  se  espalhou  pelo  interior  ,  a 
interrompeu  nas  suas  cogitações ,  era  bem  raá  hora 
liara  o  infeliz  António  da  Camará  ,  que  lá  comsigo 
revolvia  os  mais  violentos  projectos.  Augmentava  o 
ruido  fora  c  dentro  ,  e  augmentava  com  ellc  a  an- 
ciã intima  de  D.  Isabel ,  que  já  estava  habituada 
aos  excessos  do  cavalleiro,  e  que  alli  se  via  desam- 
parada em  seu  poder.  Submisso  fora  elle  até  en- 
tão ,  mas  quem  poderia  embaraçar  tão  fogoso  cara- 
cter? Xão  era  bem  passado  um  credo  quando  um 
pagem  bateu  apressado  á  porta  da  camará. 

a  Que  perlendeis?»  perguntou  o  cavalleiro  com 
modo  impaciente  ,  indo  ellc  mesmo  abrir. 

«O  ouvidor  da  capitania  acerca-se  de  vossa  mo- 
rada com  toda  a  sua  gente  ,  alcaides  .  meirinhos  e 
juizes  de  todas  as  villas  e  logares ,  trazendo  obra 
de  150  homens  em  sua  guarda  e  auxilio.  —  Acom- 
panham-nos  lambem  os  servos  c  homens  d'armas 
da  Lombada  do  Arco ,  fazendo  ao  lodo  irm  temero- 
so esquadrão. 

.\ntonio  da  Camará  ouviu  tudo  com  perfeito  so- 
cego  ,  e  como  que  um  raio  de  alegria  lhe  translu- 
ziu no  semblante  : 

«Não  tendes  mais  que  dizer-me? 

«Tenho  que  pedir  as  ordens  que  V.  Síercè  for 
servido  ordenar-me. 

«Ide,  dizei  que  aferrolhem  as  portas  —  se  o  não 
estão  já  —  ao  ouvidor  :  que  apparelhem  as  armas  c 
se  aprestem  para  a  defeza  até  á  ultima. 

O  pagem  obedeceu. 

«Ainda  bem»  bradou  elle  com  grande  força  ape- 
nas se  viu  só  cora  D.  Isabel  «ainda  liem  I  — Pode- 
rei mostrar-lhes  que  sou  o  mesmo  homem  que  era. 
Darei  emfim  pasto  a  esta  anciã  que  rae  rala.  Terei 
armas  para  quebrar  e  sangue  para  verter.»  Assomou 
a  uma  janella  donde  se  descobria  o  campo  por  en- 
tre o  arvoredo  e  continuou:  «Vinde,  vinde,  Sr. 
ouvidor  ,  nem  todos  os  vossos  esbirros  villões  pode- 
rão valer  contra  o  braço  desesperado  de  um  caval- 
leiro. Aqui  .  senhora  prima  ,  não  é  já  um  partido 
desigual.  Ha  braços  e  armas  de  um  c  outro  lado. 
Vou  ter  homens  na  frente  e  uma  espada  no  punho. 

«Vollai-a  antes  contra  mim. 

«Não.  —  Deus  dirá  contra  quem... 

«Que  tentais  fazer  .' 

«Ser  homem.  Vinde,  senhora,  vinde  comigo. 

«  .\rredai-vos,  que  vos  seguirei.  —  Aonde  me  con- 
duzis? 

«  A  ura  sitio  em  que  podereis  ver  tudo  o  que  vai 
passar-se. 

Nada  mais  disse.— D.  Isabel  seguiu-n  quasi  ma- 
cliinalmenle  até  chegarem  a  um  alto  eirado  no  ci- 
mo das  casas,  donde  se  descobriam  todos  os  recan- 
tos da  habitação  c  todos  ^s  campos  visinhos.  Nos 
pateos  da  casa  ,  e  nas  salas  e  camarás,  ha  pouco 
tão  festivas ,  não  se  viam  senão  armas  e  soldados. 
No  campo  a  hoste  do  ouvidor  ,  remoinhando  como 
um  bando  de  abelhas  no  seu  colmeal,  parecia  dis- 
piir-se  ao  assalto.  I.á  viu  ella  os  seus  leaes  servido- 
res .  de  todos  os  mais  activos;  via  sua  irmaã  c  al- 
guns parentes ;  mas  viu  lambem  que  os  de  dentro 
não  cediam  em  força  aos  de  fora  ,  que  os  animava 
o  espirito  de  seu  amo  e  capitão.  Viu  erafim  que  o 
resultado  ,  não  podendo  deixar  de  ser  fatal  para  os 


dois  partidos,  reunia  coratudo  maior  numero  de 
probabilidades  contra  os  seus  defensores,  .\ntonio 
da  Camará  esta>a  a  seu  lado,  calado,  apontando- 
Ihe  significativamente  o  espectáculo  que  aos  olhos 
se  lhe  oíTerecia  ,  c  deixando  um  quasi  impercepti- 
vel  ,  mas  tremendo .  sorriso  llorir-lhe  nos  lábios. 
Passou-sc  bre\e  pausa. —  D.  Isabel  pondo  os  olhos 
nelle  com  senhoril  maneira  c  singular  presença  de 
espirito,  (juc  nunca  a  abandonara  ,  rompeu  nestas 
palavras. 

«A  quem  julgais  vós,  gentil  primo,  que  uma  da- 
ma honesta  possa  conceder  um  puro  affecto  :  ao 
que  lh'o  tentar  conquistar  com  espectáculos  san- 
guentos e  espantosos  de  parentes  ,  amigos  .  e  quasi 
irmãos  degollando-se  á  porfia  ,  ou  ao  que  fór  capaz 
de  \ima  nobre  e  generosa  acção  ,  poupando  muitas 
vidas  e  muitas  almas?  .  .  .  respondei.  .  .  . 

Apoz  um  momento  de  hesitação  o  cavalleiro  tra- 
vou da  mão  de  sua  prima,  que  desta  vez  o  deixou, 
e  sem  dizer  palavra  desceu  á  maior  sala  das  casas. 
Chegado  alli  conduziu-a  ao  logar  principal ,  c  vol- 
tando-sc  para  um  escudeiro  disse  : 

«Fazei  abrir  as  portas  ao  Sr.  ouvidor.  Que  ellc 
e  suas  justiças  se  sirvam  de  entrar. 

Pouco  depois  o  ouvidor  e  todos  os  seus  entraram. 
.Si7i'a  Leal  —  Júnior. 
[Concluir-se-ha.J 


EpITOMF.    da    VIDi    DE    LllZ    DE    CaMÕES. 

{Continuado  de  pag.  32^. 

.\ssira  foi  por  algum  tempo  vivendo  na  ultima  in- 
digência a  cargo  de  algumas  almas  bemfazejas,  até 
que  a  Moçambique  aportou  a  nau  Santa  Fé  trazen- 
do a  seu  bordo  vários  fidalgos  ,  e  amigos  do  nosso 
vate.  Quiz  Luiz  de  Camões  aproveitar  a  occasião  e 
iivrar-se  de  tal  captiveiro  ,  embarcando-se  na  nán  ; 
mas  o  sórdido  governador  o  embargou  por  duzentos 
cruzados  ,  pretextando  ser  a  importância  das  des- 
pezas  que  com  elle  havia  feito  iia>iagem  desde  Gi"ia 
a  Jloçarabique,  e  sem  duvida  á  sua  partida  teria  con- 
seguido obstar  ,  se  por  ventura  Heitor  da  Silveira  . 
António  Cabral,  Luiz  da  Veiga  ,  Duarte  de  Abreu. 
António  Ferrão  .  Diogo  do  Couto  ,  e  outros  cujos 
nomes  ignorámos  ,  e  que  mereceriam  ser  eternisa- 
dos  ,  não  se  cotizassem  para  pagar  a  divida  e  de- 
sembarga-lo. Por  este  til  preço  ,  diz  Faria  ,  foi  ven- 
dida a  pessoa  de  Camões ,  e  a  honra  de  Barreto .' 

Livre  das  garras  do  desalmado  go\ernador  em- 
barcou-se  alfim  na  sobredita  nau  com  os  seus  ami- 
gos, trazendo  em  si  os  Lusíadas,  c  chegou  a  Lis- 
boa ,  depois  de  dezeseis  annos  de  ausência,  de  tra- 
balhos ,  e  de  relevantes  serviços  í-^.  Dois  succcf- 
sos  aconteceram  porem  ,  que  deviam  penetrar  de 
profunda  dõr  o  coração  do  poeta  ,  e  foram  com.i 
corredores  ou  tristes  presagios  dos  desgostos  que  o 
es[)era\am.  .\quellc  seu  grande  amigo  e  valedor  . 
Heitor  da  Silveira,  fallcceu  no  mar  e  quasi  á  \ista 
dos  penedos  da  serra  de  Cintra  ;  e  a  cidade  do  Lis- 
boa veio  achar  abrazada  na  força  da  peste  horro- 
rosa ,  que  no  anno  de  lo70  a  assolava  ,  e  que  se- 
gundo os  melhores  cômputos  levou  perio  de  seten- 
ta mil  almas  ' 

Reinava  elrei  D.  Sebastião  ,  ou  antes  era  seu  nu- 

(«>  Drz  a  Memoria  Histórica  e  Crilicn  acerca  Je  Ca- 
mões, fallando  da  náii  Sanla  Fé:  —  "Pude  aflirniar-se  ([Me 
u  nunca  surrou  as  au-uas  de  Porlngal  um  vaso  com  carrcga- 
u  cão  mais  rica  de  fama  e  gloria  para  a  gente  lusilaca.  ^' 


i« 


o  PANORAMA. 


me  reinavam  privados,  validos  e  enrcdadorcs,  que 
abusando  da  inexperiência  daquelle  jovcn  monar- 
cha  ,  c  da  educação  fanática  que  elle  rcceljòra  ,  o 
tornaram  em  seguimento ,  por  um  louco  amor  de 
falsa  gloria  ,  victiraa  infeliz  ,  causando  a  sua  per- 
dição c  a  nossa  ruina!  Com  o  pretexto  da  peste  fa- 
ziam os  validos  discorrer  elrei  pelas  províncias  ,  e 
em  seu  nome  ,  c  em  sua  ausência  iam  governando 
o  reino  a  seu  sabor. 

\estc  estado  do  cousas  difficil  devia  ser  a  Ca- 
mões o  conseguir  fallar  a  elrei,  c  iuda  mais  dif- 
ficil agradar  a  seus  ministros  c  privados  ,  quando 
lhes  appresentava  em  seu  |)ocma  offerta  que  encer- 
rava conselhos  tão  verdadeiros  quanto  eram  ousa- 
dos. Por  isso  dois  annos  decorreram  primeiro  que 
Luiz  de  Camões  pudesse  dar  á  luz  os  Lusíadas ,  e 
só  era  1372  é  que  na  cidade  de  Lisboa  appareceu 
a  primeira  edição  ,  dedicada  a  elrei  D.  Sebastião  , 
(]ue  apesar  de  entregue  todo  á  sua  malfadada  em- 
preza  africana  ,  acolheu  todavia  benigno  a  offerta  ; 
mas  nem  por  tal  pagou  generoso  ao  oflercnte  ,  pois 
consta  lhe  mandara  dar  apenas  a  mesquinha  pensão 
de  quinze  mil  réis  ,  com  o  ónus  de  residência  na 
corte ,  c  encargo  de  tirar  lodos  os  seis  mezes  novo 
alvará  para  a  cobrança  delia. 

Em  quanto  os  ministros  c  validos  d'elrci  ,  entre 
osquaes  se  contavam,  como  principaes  personagens, 
seu  confessor,  o  1'.^  Luiz  Gonçalves  da  Camará,  e  o 
irmão  deste,  Martim  Gonçalves  da  Camará,  levavam 
este  joven  monarcha  a  remunerar  por  modo  tão  im- 
próprio (lezeseis  annos  de  bons  serviços  militares  , 
e  uma  carreira  preclara  de  eminente  mérito  littcra- 
rio  ,  o  publico  acolhia  a  obra  com  o  maior  applau- 
so  ,  e  ^ingava  seu  auctor  da  injustiça  dos  cortezãos. 
IVem  deve  admirar  que  Camões  não  achasse  favor 
e  amparo  em  uma  corte  onde  os  sycofantas  ha- 
viam podido  por  suas  vis  injurias  indispor  o  incau- 
to e  inexperiente  príncipe  contra  sua  excellente  avó, 
que  acabaram  com  desgostos  ;  e  afastar  do  seu  lado 
seu  digno  aio,  D.  Aleixo  de  Menezes,  para  o  pri- 
varem de  maduros  conselhos. 

.V  curte  anilava  por  esses  tempos  de  tal  modo 
embevecida  na  louca  e  temerária  expedição  d'Afri- 
ea  ,  que  custava  sommas  immensas  ,  c  o  povo  em 
estado  tal  de  descontentamento,  pelos  vexames  que 
por  essa  causa  soffria  ,  que  o  nosso  poeta  viu-se  no 
ultimo  estado  de  desamparo  como  o  attcslam  as  me- 
morias que  delle  nos  restam.  E  a  tão  subido  ponto 
chegou  a  sua  miséria,  pela  culpável  indilTerença  de 
seus  compatriotas,  que  um  jáo  (::)  [por  nome  An- 
tónio] que  elle  havia  trazido  da  Índia,  corria  de 
noite  as  ruas  de  !,isl)oa  pedindo  esmola  para  sus- 
tentar seu  nobre  e  honrado  amo.  ,4ssim  melhor  ava- 
liava esle  intiio,  mais  humano  e  mais  grato  do  que 
os  nacionaes,  o  mérito  relevante  de  homem  tão  ra- 
ro c  grande  quanto  infeliz  era  '. 

Foi  por  esse  tempo  ,  segundo  relata  o  já  citado 
illustre  c  douto  editor  da  melhor  e  mais  nitida  edi- 

(::)  Jáo,  liabilanli;  de  Java,  e  iiío  Jào  António,  como 
alguns  escriptores  modernos  erradanienle  disseram  ,  tomando 
láo  por  JoSo  ou  Juam.  O  Sr.  J.  B.  de  A.  Garrett,  diu'no 
orD.inienla  da  nossii  moderna  li!(er;il»ra ,  em  uma  de  suas 
melhores  producçòes,  o  [loema  Camões,  fallandu  do  bom 
júo  .  assim  se  expressa  : 

" — Gemido,  que  ouve  perlo  , 

O  interrompeu.  Era  o  seu  jáo  ,  que  alHicto 

U  escutava.  Uo  liumildc  c  pobre  escravo 

i)  roíar.rio  liei  se  retalhaT», 

D.-  (iuri.lu  asiim  (jueiíar. 

Canto  X-  p»;.  198. 


I  cão  que  lemos  dos  Lusíadas  (»«),  que  ura  fídalgo 
chamado  Uni  Dias  da  Camará  ,  com  um  egoísmo  e 
insensível  importunidnde,  que  move  indignação,  veio 
ao  pobre  quarto  de  Camões,  para  fazer-lhe  queixas 
de  que  tendo-lhe  promeltído  uma  tradueção  dos 
Psalmos  penitencíacs,  não  acabava  de  a  fazer,  sen- 
do tão  grande  poeta  :  ao  que  esle  respondeu  com 
brandura  e  paciência  extraordinárias:  —  u  Quan- 
«  do  cu  fiz  aquelles  cantos  ,  era  mancebo  ,  farto  , 
i(  namorado  e  querido  de  muitos  amigos  e  damas, 
«  o  que  me  dava  calor  [loctico  :  agora  não  tenho  es- 
((  pirilo  ,  nem  contentamento  ))ara  nada  :  ahi  e.stá  o 
«  meu  jáo  que  me  pede  duas  moedas  de  cobre  pa- 
«  ra  carvão,  e  cu  não  as  tenho  para  lh'as  dar.»  — 
Pode  fazer-se  a  comparação  entre  o  jáo  ,  António  , 
c  o  fidalgo.  Rui  Dias  da  Camará,  c  decidir-se  qual 
dos  dois  era  mais  nobre? 

Nestes  últimos  annos  de  sua  atenuada  vida  ,  a 
sua  habitação  foi  mui  humilde  quarto  de  umas  ca- 
sas próximas  á  igreja  de  St.'  Anna  ,  na  rua  que 
conduzia  ao  convento  dos  jesuítas.  Dallí  ia  passar  , 
por  única  diversão,  as  tardes  ao  convento  de  S.  Do- 
mingos ,  onde  ouvia  lições  de  theologia  moral  ,  e 
praticava  com  alguns  doutos  religiosos  de  sua  fami- 
liaridade. 

O  ultimo  golpe  que  o  coração  patriótico  de  Ca- 
mões devia  receber  ,  foi  o  resultado  fatal  da  expe- 
dição d'Africa.  A  alma  elevada  do  grande  poeta 
succumbiu  sob  o  pczo  da  dor  quando  fora  informa- 
do da  noticia  desastrosa.  Cercado  por  todos  os  hor- 
rores da  miséria  e  do  desamparo,  e  não  podendo 
aquella  alma  ,  abatida  pelo  infortúnio ,  resistir  á 
viva  impressão  da  catastrophe  succedida  em  4  d'A- 
gosto  de  1578  ,  sohreveio-lhe  grave  enfermidade. 

Conservaram  os  seus  biographos  M.  S.  de  Faria, 
e  Larbosa  .Machado  dois  fragmcnlos|de  cartas  cscri- 
ptas  no  ultimo  termo  da  sua  vida.  Do  primeiro  vè- 
se  o  extremo  de  miséria  a  que  chegou  ;  e  do  segun- 
do co!he-se  quanto  amava  a  sua  pátria,  com  aquel- 
la paixão  que  o  animava  sempre  ,  c  que  conservou 
até  a  sepultura. 

K  Quctii  jamais  ouviu  dizer  [escrevia  na  primeira 
carta]  que  cin  tão  pequeno  theatro  como  o  de  um  po- 
bre leito  ,  qui:csse  a  fortuna  representar  tão  grandes 
desventuras  ?  E  cu  ,  como  se  cilas  não  bastassem  ,  me 
ponho  ainda  da  sua  parte ;  porque  procurar  resisUr 
a  tantos  males  pareceria  desaverfjonhamcnto.  » 

Na  segunda  carta  dizia  : — a  Emfim  acabarei  a  ri- 
da ,  c  ve7\io  todos  que  fui  tão  af}'eií:oado  á  minha  pá- 
tria ,  que  não  somente  me  contentei  de  morrer  nella  . 
mas  de  morrer  cum  ella .  » 

Este  mesmo  sentimento  ,  o  primeiro  c  o  ultimo 
do  seu  coração  ,  tinha  elle  já  expressado  antes  ,  c 
de  um  modo  tal  ,  que  não  ha  na  antiguidade  amor 
da  |)atria  ,  por  mais  exaltado  ,  que  lhe  leve  a  pal- 
ma. Jazia  Camões  no  seu  pobre  leito  de  misérias, 
ferido  da  ingratidão  da  sua  pátria  ,  e  do  dcsleiío  c 
abandono  em  que  seus  compatriotas  a  deixavam , 
quando  um  sujeito  seu  coulieeido  veio  dar-lhe  a 
triste  nova  da  malaventurada  jornada  de  Alcaeer- 
quivir,  da  lamentosa  morte  d'elrei  D.  Sebaíitião  ,  c 
do  lim  funesto  (|ue  ameaçava  a  pátria:  ao  ouvir  es- 
tas palavras  o  moribundo  Luiz  de  Camões  ,  levan- 
tando a  cabeça  exclamou  com  pungente  dõr  :  =ao 
menos  morro  com  ella!  [Concluir-se-ha.] 

(••)  A  qne  cliama  com  rasfio  o  Sr.  Bispo  tie  Viíeu  o 
m.iis  dijno  moniimenlo  que  podianios  alevaidar  a  memoriai 
de  Camòe.H.  Kssa  gloria  coube  ao  nobre  morgado  de  Mii- 
tbeus,  cuja  enipreza  hade  viver  na  posteridade,  como  hàw- 
df  viver  aj  ubrat  Uo  grande  poeta. 


61 


o  PANORAMA. 


57 


f ''í  ;í'.«'.'-¥s- 


TBEATRO  SE  S.  CABZ.OS. 


PORTUGAL. 


xxni. 


O  Theatbo  de  S.  CinLoé. 

O  THEATEo  de  S.  Carlos  ,  nesla  capital  ,  é  por  suas 
dimensões  ,  conveniente  fábrica  ,  e  óptimas  decora- 
ções ,  notado  como  principal  entre  ns  de  segunda 
ordem  que  na  Europa  se  numeram,  destinados  a  es- 
sas representações  ,  que  pela  musica  e  canto,  e  pe- 
lo apparato  scenico  enlevam  os  sentidos  e  conquis- 
tara os  applausos  dos  appreciadores  das  artes  agra- 
dáveis, cujo  amor  e  cultura  tanto  manifestara  o  apu- 
rado gosto  e  civilisação  dum  povo.  As  vozes  mais 
peregrinas,  habilissimos  professores  de  orchcstra  . 
pintores  abalisados  na  perspectiva  theatral  .  tem 
conjunctamcnie  desde  a  crearão  desta  casa  propor- 
cionado ao  publico  lisbonense  o  gozo  de  todos  os 
delicados  encantos  da  opera  italiana.  —  Reinando 
D.  Josél."  ouviu  a  corte  a  famosa  Zamperini  e  can- 
tores celebres  ;  mas  faltava  o  edifício  appropriado 
á  opera  ,  e  a  illusão  magica  do  perfeito  scenario  : 
—  a  dellciencia  acabou  nos  fins  do  passado  século  , 
porque  uma  companhia  de  opulentos  negociantes  le- 
vantou o  magnifico  theatro  ,  que  frequentámos  ago- 
ra ,  assentado  quasi  no  foco  da  concorrência  da  ca- 
pital, entre  o  largo  do  Loreto  c  o  sitio  do  paço  an- 
tigo da  Soberana  Farailia  de  Bragança  felizmente 
reinante.  A  companhia  compoz-se  ,  como  dissemos, 
de  poderosos  capitalistas,  á  frente  dosquaes  se  con- 
tavam o  barão  de  Quintella  ,  Anselmo  José  da  Cruz 
Sobral ,  Bandeira  .  Machado  e  outros  :  deu  o  risco 
Fevereiro  23 —  1843. 


o  archilecto  José  da  Costa  e  Silva  (•)  ;  e  dentro  do 
breve  espaço  de  seis  mczes  se  levou  a  cabo  obra 
tão  vasta  e  solida  debaixo  da  inspecção  de  Sebastião 
Anl(ínio  da  CruzSoIíral  (::)  :  foi  a  abertura  a  29  de 
abril  de  1793  para  festejar  o  nascimento  da  Snr." 
D.  Maria  Thcreza  ,  tia  de  S.  M.  F.  ,  e  então  her- 
deira presnmptiva  do  throno  :  para  esta  primeira 
representação  foi  preciso  armar-se  um  tecto  provi- 
sório. 

O  edificio  appresenta  Ires  pavimentos  na  frente  , 
que  deita  para  uma  praça  quadrada,  e  de  sulíicien- 
tc  capacidade  para  o  transito  das  pessoas  e  carrua- 
gens ;  no  primeiro  é  o  salão  da  entrada  ,  que  tem 
obra  de  90  palmos  de  comprimento  por  CO  de  lar- 
go ,  e  dá  serventia  á  platéa  ,  corredores  das  frisu- 
ras  e  escadaria  dos  outros  andares  ou  ordens  de 
camarotes:  as  três  portas  do  frontispício  ,  que  o 
são  também  do  salão,  ficam  protegidas  por  um  cor- 
po saliente,  que  forma  uma  passagem  coberta,  sus- 
tentada sobre  três  arcos  cm  frente  das  portas  e  dois 
lateraes  ,    e  defendida    com   sua  gradaria    de  ferro  , 

(.)  José  lia  Costa  e  Silva,  archilecto  muito  instruído, 
foi  natural  da  villa  de  Povos,  estudou  em  Lisboa  encenlia- 
ria  e  desenlio  ,  e  em  Bolonlia  e  Roma  a  arcliileclura ;  via- 
jou por  Ioda  allalia:  recoltiido  á  palria  rogeu  a  cadei- 
ra daquclla  mui  nolire  arte;  foi  arcliUecto  das  oliras  reaes  , 
e  conjimclamenle  com  Fatiri  dirigiu  os  primeiros  trabalhos 
do  paço  d'Ajuda,  para  o  qual  aral>o?  deram  riscos.  Fez 
também  [alem  do  Ihealro  de  S.  Carlos]  os  desenhos  para  o 
Palácio  e  Hospício  de  Runa:  e  para  o  Erário  novo,  que 
não  teve  effeilo.  Foi  académico  de  mérito  da  Academia  ro- 
mana de  S.  Lucas.  Falleceu  de  72  ânuos,  no  Rio  de  Ja- 
neiro, em  1819- 

(;:)     Vid.  Mem.  de  Cyrillo  a  pag.  237. 

2,'  Serie.  —  Vol.  II. 


58 


O  PANORAMA. 


que  ha  pouco  tempo  foi  cullocada,  masque  se  abre 
como  cancellos ,  em  noites  de  espectáculo.  O  pavi- 
,  mento  (lo  salão  c  do  cantos  de  mármore  dispostos 
em  xadrez  branco  c  azulado  :  o  tecto  tem  uma  so- 
berba pintura  do  hábil  Cyrillo  AVolkmar  Machado  , 
representando  o  «precipicio  de  Phaetonte  : — a  um 
lado  está  a  casa  da  venda  dos  bilhetes,  e  no  oppos- 
to  a  em  que  se  guardam  os  chapéus  de  chuva  e 
licngalas,  e  ahi  ao  pé  um  botequim  :  por  cima  des- 
tas casas,  que  não  tem  a  altura  do  salão,  ha  outras 
duas.  com  janellas  para  afrontaria;  uma  delias  tem 
servido  de  bilhar.  — 

O  segundo  pavimento  consta  de  outro  salão  ,  que 
foi  destinado  para  os  concertos  de  musica  ,  c  por 
três  janellas  rasgadas  dá  communieação  para  a  va- 
randa espaçosa  ,  guarnecida  de  balaustrada  e  supe- 
rior ao  corpo  saliente  da  entrada  :  aformoseam  este 
corpo  central  quatro  columnas  da  ordem  dórica  , 
que  sustentam  uma  cornija  geral  :  sobre  as  janel- 
las ha  três  apainelados  ,  cojno  se  fossem  destinados 
a  baixos-rclevos ,  o  do  meio  encerra  uma  inscri- 
pção  latina  ,  que  era  summa  diz  que  —  os  cidadãos 
lisbonenses  por  seu  amor  c  lealdade  á  Augusta  ca- 
sa reinante  dedicaram  este  monumento  em  17í)3  co- 
mo testemunho  de  alegria,  pelo  liador  a  herança 
da  coroa  c  continuação  da  regia  prole  ,  que  acaba- 
vam de  receber  por  oceasião  do  feliz  parto  da  Snr." 
I>.  Carlota,  princeza  do  Brasil.  —  Os  apainelados 
]atcracs  comprehendcm  duas  eornucopias  com  o  ca- 
duceu de  Mercúrio  ,  symholo  do  commercio.  A  sa- 
la é  adornada  com  pinturas  e  relevos  ,  c  dois  core- 
los,  um  em  cada  extremidade,  guarnecidos  de  brin- 
cados ornatos.  Contíguos  acham-se  dois  gabinetes  com 
janellas  de  peitos  para  o  largo  ;  tem  servido  de  bo- 
tequim com  entrada  distincta  do  salão.- — 

Altéa-se  o  terceiro  pavimento  tão  somente  sobre 
o  corpo  do  centro:  remata  em  segunda  timalha  co- 
roada por  dois  grandes  vasos  de  mármore  nos  ex- 
tremos ,  e  ao  meio  pelo  escudo  das  Armas  pnrtu- 
guczas  :  aqui  c  a  casa  de  pintura  de  vistas  e  deco- 
rações scenicas. 

A  sala  do  espectáculo  é  de  forma  clliptica  :  por 
tal  arte  disposta  a  platéa  cm  conveniente  declive  c 
em  relação  ao  tablado  ,  que  o  centro  é  um  perfeito 
ponto  óptico,  e  os  espectadores  gozam  cabalmente, 
e  de  qualquer  lado  ,  todas  as  vislas  ;  coutétii  cinco 
ordens  de  camarotes ,  por  banda  ,  em  numero  de 
doze  cada  uma  ;  ao  todo  120  :  a  magnifica  tribuna 
de  Suas  Magestades  ,  em  correspondência  á  boca 
do  tablado  ,  occupa  a  altura  da  ordem  nobre  e  da 
terceira  c  quarta  ordens  de  camarotes  :  por  cima 
licara  as  varandas.  A  platéa  adraitte  6Í0  pessoas. 
O  arco  do  proscénio  repousa  sobro  columnada  da 
ordem  compósita  cm  cujos  vãos  estão  assentes  duas 
estatuas  allegoricas.  Sobre  o  arco  ha  o  relógio  de 
mostrador  transparente  e  que  é  allumiado  durante 
a  rci)resentação.  llhimiua  largamente  a  vasta  sala 
um  lustre  rico  c  de  acabado  gosto  e  que  em  seus 
eristaes  reflecte  a  claridade  de  cem  lumes:  ha  mais 
(juatro  pequenos  lustres  junto  da  Heal  tribuna. — 

O  salão  do  'J.°  i)avimenlo  é  mui  capaz  para  bailes 
e  banquetes  públicos  :  neile  deram  os  negociantes  in- 
.«lezes  ao  celebre  Canning  (•»)  um  jantar  grandioso 
[a  que  assistiram  alguns  dos  meml)r<is  da  KegenciaJ 
nas  vcsperas  de  se  retirar  de  Portugal  aquelie  mi- 
nistro ,  que  viera  por  embaixador  cm  outubro  de 
ISl '(..  —  Reproduziremos  algumas  i>hrases  njemo- 
ratidas  da  falia  que  aesla  oceasião  recitou  Canning, 

(••)  Vide  a  IjiographJa  ile  Jorge  Caiiiong  a  pag.  i;9  do 
•t  "  v<il  1."  Serie.  ,  . 


anles  de  levantar  a  saudc  a  Suas  Ex."',  os  governa- 
dores do  reino.  Fallando  da  invasão  franccza  em  Por- 
tugal ,  c  da  maneira  porque  a  alliança  anglo-lusa 
combateu  a  colossal  fortuna  de  Napoleão  ,  disse  no 
meio  do  seu  discurso:  —  «Portugal  não  teria  podi- 
«  do  rcstaurar-se  sem  o  auxilio  da  Inglaterra  ;  é  is- 
«  so  uma  verdade  ;  mas  lambera  o  é  que  Portugal 
n  foi  para  a  Inglaterra  o  principal  instrumento,  que 
«  ella  empregou  ,  para  etleituar  a  maior  enipreza 
«  em  que  a  Graã-Bretanha  jamais  se  empenhou  '. 

V  Nós  trouxemos  a  Portugal  conselhos  ,  exercito, 
«  disciplina  ,  e  valor  britannico  ;  mas  nós  achámos 
«  em  Portugal  vontade  sincera  c  prompta  ,  braços 
«  activos ,  um  governo  cheio  de  confiança  ,  um  po- 
«  vo  valoroso  e  suífrcdor,  dócil  em  instruir-se,  leal 
i<  em  nos  seguir  ,  paciente  no  meio  das  privações  , 
«ca  quem  a  desgraça  não  foi  capaz  de  abater  ,  c 
(!  desanimar  ,  nera  a  prosperidade  pôde  ensoberbe- 
ce cer ,  c  embriagar. 

«  O  braço  da  Inglaterra  foi  a  alavanca  ,  que  aba- 
«  lou  violentamente  o  poder  de.Buonaparte  ;  Portu- 
«  gal  foi  o  ponto  de  apoio  em  que  aquella  alavanca 
«se  moveu.  Inglaterra  assoprou,  e  nutriu  o  fogo 
«  sagrado  ;  mas  Portugal  linha  já  erigido  o  altar  , 
«  era  que  esse  fogo  se  accendeu  ,  e  cujas  lavaredas 
«  subiram,  e  se  propagaram  a  tal  ponto,  que  o  seu 
«  clarão  foi  allumiar  o  mundo  inteiro  !  » 


^    í. 


Íí^tó2?áí> 


Meditação. 

JÁ  tinha  fugido  do  nosso  hemispherio  abrilhante  luz 
do  monarcha  dos  astros  ,  despedindo-sc  de  muitos , 
a  quem  nunca  mais  prodigalizaria  seus  raios  :  suc- 
cedéra-lhe  a  magestosa  uoile  ,  trazendo  por  gala 
o  (  ernleo  e  matizado  manto,  no  qual  as  estrellas 
scinlillavam  como  outros  tantos  diamantes  :  o  céu 
estava  sereno  ,  e  esta  serenidade  causaria  no  phi- 
losopho ,  que  o  contemplasse  ,  uma  terna  sauda- 
de do  que  ainda  não  gozámos  ,  um  vchemente  dese- 
jo de  ver  c  gozar  o  que  para  os  h(miens  foi  crca- 
do  ;  o  crepúsculo  havia  pouco  mostrara,  ainda  cheia 
de  luz  ,  a  estrada  por  onde  o  brilhante  luzeiro  ca- 
minhando deixava  apoz  si  uma  incircumscripta  cla- 
ridade ;  agora  tudo  eram  trevas,  e  se  alguma  luz 
se  divisava  ,  era  só  no  firmamento.  Passávamos  en- 
tão por  esse  mosteiro  de  virgens,  que  a  i)iedade 
de  l».  Manuel  edificou  em  os  dias  de  sua  gloria  na 
formosa  terra,  cujas  praias  banha  o  salifcro  e  abun- 
dante Sado  ;  I).  Manuel ,  homem  na  verdade  gran- 
de, que  juntou  sentimentos  de  bom  monarcha  aos  de 
príncipe  verdadeiramente  orthodoxo  ,  ainda  que  de 
todo  não  fosse  isento  do  espirito  supersticioso  da  sua 
epocha  :  os  maiores  génios  são  ás  vezes  levados  das 
idéas  dos  séculos  em  que  vivem.  Pelas  rasgadas  ja- 
nellas se  divisava  aquella  magestosa  claridade,  que 
as  luzes  fazem  de  noite  no  temido  do  Senhor,  e  pre- 
sumimos com  rasão  estarem  as  religiosas  orando  so- 
lemnementc  ;  e  não  nos  enganámos,  porque  aproxi- 
mando-nos ,  ouvimos  logo  o  canto  melodioso  e  me- 
lancbolico  da  psalmodia ,  que  impera  mais  no  cora- 
ção do  homem  do  que  quantas  harmonias  possam 
produzir  as  mais  soberbas  orchestras  :  rccordámo- 
nos  logo  do  canio  das  catacumbas,  onde  os  fieis  reu- 
nidos e(dchrav;im  seus  oiiicios  ,  apesar  dos  edictos 
mais  severos  ,  onde  o  incenso  subia  ao  mesmo  tem- 
po em  (ine  as  orações  iam  bater  as  bases   do  thro- 


o  PANORAMA. 


59 


no  do  Todo-Podernso ,  c  onde  os  sacerdotes  gemen- 
do ,  mais  com  lagrimas  do  que  com  vozes  ,  oravam 
pelo  poTo.  Oh  !  E  quando  foi  mais  augusto  c  ma- 
gcstoso  o  c\ilto  da  religião  do  Crucificado?'.  Estas 
foram  as  recordações  que  lizciiios  ao  entrar  na  igre- 
ja do  mosteiro  ,  era  cujas  abobadas  resoavam  ,  não 
as  vozes  mercenárias,  que  movidas  só  pelo  interes- 
se não  ferem  as  cnpolas  do  santuário  para  irem 
acompanhar  as  orações  dos  anjos,  mas  sim  as  inno- 
centcs  vozes  de  consagradas  virgens ,  que  ofTcrece- 
ram  ao  Altissimo  na  Uòr  de  tenra  idade  seus  puros 
corações. 

Vasio  estava  o  templo  ;  apenas  se  viam  umas  cin- 
co ou  seis  pessoas  ,  que  alli  tinham  sido  attraliidas 
só  pela  devoção  ,  e  isto  não  contribuía  pouco  para 
a  raageslade  do  logar,  livre  daquolle  tumulto  e  per- 
turbação .  que  hoje  caractcrisa  os  grandes  ajunta- 
mentos religiosos. 

Protegidos  por  este  silencio  percebiam  nosíos  ouvi- 
dos as  vozes  das  religiosas  ,  que  eram  outros  tantos 
cchos  que  repetiam  o  que  o  rei  propheta  cantara  no 
fervor  de  suas  devoções  :  que  os  monarchas,  sem  se 
des|iircm  dos  deveres  de  sua  magestade.  devem  ser 
os  primeiros  nos  exemplos  de  piedade.  Porem  o  nos- 
so eníhusiasmo  cresceu  quando  ouvimos  os  psalmos 
de  louvor,  em  que  aquellc  santo  rei  cheio  de  um 
estro  divino  convida  todas  as  creaturas  a  louvarem 
o  Senhor:  foi  então  que  sentimos  a  mais  esperanço- 
sa c  terna  sensação,  e  Icmhrando-nos  o  que  o  mes- 
mo propheta  diz  cm  um  de  seus  psalmos  ,  dissemos 
em  nossos  corações :  quão  formosos  são  os  vossos 
tabernáculos,  ó  Senhor  Deus  das  virtudes!  A  minha 
alma  se  enche  de  santos  desejos  nos  átrios  do  Senhor. 
—  Em  companhia  de  amigo  sincero  notámos  quanto 
simpathisava  a  archilectura  do  templo  com  a  sim- 
plicidade da  acção :  não  se  viam  alli  nem  ricas  al- 
faias, nem  muitos  sacerdotes,  nem  multidão  de  lu- 
zes ;  mas  tudo  decente ,  tudo  modesto  e  respirando 
devoção.  Quanto  ao  templo ,  está  longe  de  igualar  o 
de  Belém  ;  mas  em  sua  architcctura  mostra  que  D. 
ilanuel  nomeio  de  suas  grandezas,  dictadas  por  um 
génio  vasto,  também  soube  amar  a  simplicidade  ,  e 
que  nesta  mesma  nunca  faltava  aos  signaes  caracte- 
rísticos de  sua  epocha  grandiosa.  As  coluranas  do 
templo  talhadas  degranito,  formadas  de  Ires  roscas, 
unidas  entre  si,  e  formando  um  só  corpo,  foram  pa- 
ra nós  naquella  occasião  o  mais  íiel  emblema  das 
três  virtudes  —  fé,  esperança,  e  caridade  —  asquaes 
sustentam  o  magestoso  edifício  da  religião  christaã. 
Em  um  dos  lados  da  capella-mór  víamos  esculpido 
o  brilhante  escudo  de  gloriosas  recordações  ,  e  si- 
milhante  vista  não  podia  deixar  de  causar  em  pei- 
tos portuguezes  saudade  dos  tempos  cm  que  as  san- 
tas quinas  defendiam  religião  e  liberdade  nacio- 
nal ,  tremulando  nas  quatro  partes  do  globo.  Os 
quadros  do  grão  Vasco  ,  recordando  a  vida  do  Sal- 
vador ,  e  que  se  acham  nas  paredes  do  templo  ,  pa- 
rece que  nesta  occasião  se  tornaram  mais  enérgi- 
cos e  expressivos;  tanta  é  a  força  da  religiã.o  ,  que 
pôde  ser  designada  como  o  maior  e  o  mais  profí- 
cuo dos  estímulos  para  o  progresso  das  bellas-ar- 
tcs.  No  meio  de  tantas  considerações,  que  á  simi- 
Ihança  das  ondas  do  oceano  succediam  umas  ás  ou- 
tras ,  uma  sobre  todas  se  ergueu  ,  e  fez  maior  im- 
pressão :  a  utilidade  da  religião  foi  o  que  mais  nos 
occupou.  Porventura  ,  dissemos  nós,  gozaríamos  es- 
tas relíquias,  se  não  fosse  a  religião  de  nossos  país? 
E  o  que  seriam  hoje  os  povos ,  se  estes  monumen- 
tos não  tivessem  abrandado  seus  antigos  c  bárbaros 
costumes?  O  vós,  que  erapuuhaes  os  sceptros  e  cin- 


gis diademas  ,  ó  vós ,  que  cercaes  os  monarchas  c 

sois  seus  conselheiros ,  se  quereis  ronservar-vos , 
conservai  illesa  a  religião  do  paiz  cm  que  vos  a- 
chaes  ,  que  nisto  tereis  o  mais  firme  apoio.  Ella  , 
|)clo  império  que  tem  ,  doma  todas  as  paixões  <ios 
homens  ,  a  quem  faz  depor  as  armas  ante  seus  ai-  ' 
tares:  c  se  porventura  alguém  momentaneamente  fe- 
char os  ouvidos  ás  snas  vozes,  mais  tarde,  ou  mais 
cedo  lhe  hade  conceder  acaliado  tríunipho.  —  Sim  , 
a  religião  é  a  mais  firme  base  do  estado  social ,  e 
ella  só,  despida  das  prevenções  que  um  falso  zrlo  su- 
geriu, pódc  elevar  os  povos  ao  grau  de  civílisação, 
que  os  faz  grandes  :  cila  é  ,  por  assim  dizer  ,  o 
centro  d'onde  partem  todos  esses  mananciacs  ,  que 
podem  fazer  feliz  uma  nação.  Honrados  cidadãos  , 
ministros  integorrimus  ,  zelosos  militares  ,  pais  de 
família  inoralisados  ,  esposas  fieis  ,  amigos  verda- 
deiros ,  taes  são  os  frnctos  que  brotam  da  arvore 
sempre  virente  da  religião  verdadeira  ;  boa  fé  no 
commcrcio ,  valor  no  exercito,  amor  á  vida  frugal, 
augmcnto  da  agricultura  ,  desterro  da  ociosidade  , 
destruição  da  ignorância  ,  perfeição  nas  bellas-ar- 
tes  ,  eis  os  dons  preciosos  que  a  religião  offercce 
por  mimo  aos  paizcs  que  a  cultivam. 

Taes  foram  as  idéas  que  por  então  nos  occorreram, 
e  tendo  sabido  reOcxíonámos  [attendendo  ás  inspi- 
rações que  dentro  do  templo  sobre  nós  desceram] 
quanto  são  persuasivas  ,  quanto  são  agradáveis  ao 
espirito  as  bellezas  do  santuário  '. 

C.  M.  P.  Salgado. 


O   TIGRE. 

CoNFixDEV  muitos  os  leopardos ,  onças  c  pantheras 
com  os  tigres ,  dando  a  isso  causa  o  uso  vulgar  de 
chamarem  pcllcs  de  tigre  a  Iodas  as  manchadas 
com  pintas  diversas :  são  porem  animaes  distínclos 
ainda  que  do  mesmo  género ,  e  mui  communs  na 
Africa  e  cm  todas  as  partes  mcrídionaes  da  Ásia  ; 
e  a  espécie  do  tigre  está  limitada  aos  climas  mais 
ardentes  da  índia  oriental  ,  encontrando-se  no  Ma- 
labar ,  em  Sião  e  em  Bengala. 

È  o  tigre  o  segundo  entre  os  animaes  carnicei- 
ros ,  posloque  nenhum  o  iguale  cm  malignidade  c 
fereza  :  longe  da  magestade  e  propensões  generosas 
do  leão  ,  que  de  ordinário  só  acomette  avexado  da 
fome  ou  quando  provocado  ,  o  tigre  mostra-se  sem- 
pre vilmente  feroz  e  sequioso  de  sangue,  ainda  es- 
tando saciado  de  carne  e  sobre  um  montão  de  vi- 
ctimas  ;  seu  furor  não  conhece  tréguas  nem  limi- 
tes ;  assola  o  paiz  que  habita  ;  não  teme  as  armas 
do  homem  :  degola  e  destroça  rebanhos  inteiros ,  e 
com  a  mesma  sanha  despedaça  a  primeira  c  a  ulti- 
ma presa  ;  como  se  anhelára  topar  resistência  vigo- 
rosa investe  com  elephantes  e  rhinocerólcs  ,  c  ás 
vezes  cora  o  leão.  —  Na  forma  do  corpo  revela  a 
ferocidade  do  ínstincto  : — se  o  porte  nobre  do  leão. 
a  espessa  juba  que  lhe  ondca  no  collo  ,  o  olhar  ou- 
sado e  passo  grave,  annnnciam  arrogância  e  mages- 
tosa  intrepidez  :  o  tigre  manifesta  no  corpo  esguio. 
rasteiros  pés,  cabeça  mia,  olhos  ferozes,  e  língua 
sanguínea  sempre  fora  das  fauces,  os  caracteres  de 
sua  villania  e  perversidade  insaciável.  Por  fortuna 
esta  espécie  cruelissima  c  rara  bastante  ,  e  menos 
espalhada  que  o  leão  ,  ao  qual  excede  em  volume 
de  corpo. 

Os  logares  onde  o  tigre  de  ordinário  devora  as 
préas ,   são  as  beiras  de  rios  e  lagos  para  mitigar 


60 


O  PANORAMA. 


nas  aguas  o  ardor  que  ihe  excita  a  sobejidão  de 
>angui;  das  muitas  victimas. 

As  matizadas  peilcs  dos  tigres  são  de  grande  va- 
lor ,  principalmente  na  China  ,  onde  os  mandarins 
militares  usara  forrar  com  ellas  os  assentos  dos  pa- 
lanquins cm  que  saliem  a  publico  :  e  com  cITeito 
pela  belleza  e  disposição  das  listras  e  pelo  tama- 
nho são  dignas  de  apreço  para  ricos  xairéis  de  ur- 
cos  e  ginetes. 


O  P.*  Manuel  Godinho  ,  c^m  seu  engraçado  es- 
tilo anecdolico,  refere  a  defeza  de  um  porco  raontez 
contra  um  tigre  c  como  aquelle  a  final  foi  prcado. 
Vcja-se  a  Ihtação  do  nui-o  ramiiihn  que  fez  por  terra 
('  mar  ,  rindo  da  índia  a  Portugal  o  sobredito  A.  ; 
a  pag.  177  da  2.'  edição,  publicada  no  anno  passa- 
do por  esta  Sociedade  Propagadora  dos  Conhecimen- 
tos Iteis.  i 


O  TIG&E 


O  Bobo. 
112S. 
YI. 

Como  d' um  homemzinho  te  faz  um  homemzarrão. 

O  CONDE  de  Trava  acertara  nas  suas  previsões :  o 
ajuntamento  da  cúria  fora  longo  e  tempestuoso.  Os 
parciacs  da  rainha  ,  isto  é  ,  aquelles  cujo  poder  e 
ambição  se  estribava  na  influencia  do  conde  ,  pa- 
tentearam ahi ,  com  toda  a  energia  e  affecto  ,  a  sua 
inabalável  li(b'li(ia(le  ;i  filha  d'AITi)nso  6.°,  á  qual 
elles  não  pnili.ini  quebrar  seu  preito  sem  se  cubri- 
rem  d'o[iprolirio  :  por  outra  parte  ,  aquelles  que  ti- 
uham  já  poslo  a  mira  em  alcançarem  do  moço  in- 
fante as  alcaidurias  ,  os  meirinhados  ,  as  Icncncias  , 
c  os  cargos  da  còrle,  accesos  no  santo  amor  da  jus- 
tiça, pugnavam  para  que  a  elle  se  entregasse  a  he- 
rança paterna.  Era  a  lucta  da  coitxcicncia  d'uns  con- 
tra a  cousciciicia  dos  outros  ,  combate  desgraçada- 
mente trivial  em  todas  as  cpochas  de  <lisscnsões  ci- 
tís  ,  e  de  que  só  é  culpada  a  providencia  por  as- 
sim collocar  os  b.uidos  sob  o  jugo  de  persuasões 
ojjposlas ,  c  cslrcita-los  entre  o  desejo  da  salvação 


das  snas  almas,  e  a  cruel  necessidade  de  serem 
inimigos  e  perseguidores  de  conipatricios  c  irmãos, 
com  grande  e  interior  mágoa  sua  ,  como  nós  e  o 
leitor  perfeitamente  sabemos  costuma  acontecer  cm 
taes  casos  1 

I)os  ricos-homcns,  cavalleiros,  e  clérigos,  porlu- 
guezes  por  nascimento,  que  ainda  não  seguiam  aber- 
tamente o  pendão  de  AfTonso  Ilcnriquez ,  alguns 
neste  momento  decisivo  mostraram  a  sua  resolu- 
ção lirme  de  confiar  na  fortuna  de  D.  Thcreza  ;  mas 
a  maior  parle  voltava-se  para  o  sol  que  nascia  ,  tu- 
do por  amor  da  boa  terra  de  Portugal.  Entre  os 
primeiros,  nasviolentas  altercações  da  cúria,  se  ha- 
viam distinguido  os  dois  infançõcs  ,  Ayres  Mendez 
c  Pedro  Paez  :  entre  os  segundos  o  Lidador  ,  que 
cumpriu  o  que  promcltèra  a  Marlim  Eiclia.  Fernão 
Perez  viu  muitas  vezes  vacillanles  as  suas  esperan- 
ças, porque  os  nobres  compaidieiros  do  conde  Hen- 
rique, vivendo  havia  tanto  tempo  na  llespanha,  co- 
meçavam a  confundir  nos  seus  instinclos  políticos 
a  idóa  das  instituições  francas  com  a  indole  das 
tradições  sociaes  visigodas,  que  sempre  pre|)ondera- 
ram  na  Peninsula.  A  rainha  oxpozera  as  perlenções 
de  seu  lilho  perante   os  barões:    Ycrciuudo  Perez, 


o  PA]\ORA3IA. 


61 


irmão  do  conde  de  Trava  ,  genro  da  rainha  ,  c  se- 
nhor de  Vizcu  ,  que  viera  assistir  áqiiella  espécie 
de  parlamento,  tomando  a  mão  .  in\ectivára  furioso 
contra  o  iiiraiilc  .  seu  cunhado,  e  não  jioupára  fo- 
ros e  ameaças  contra  os  parciaes  dclle.  A  cólera  do 
Lidador  não  precisava  de  tanto  para  ser  excitada  , 
e  palavras  i^'ualmente  violentas  sahirani  da  sua  bo- 
ta em  resposta  ás  de  Vercmudo  Percz.  Accnsou  o 
conde  de  vexames  de  todo  o  género  ,  c  ameaçou 
também  aquelles  que  o  ameaçavam.  l'ouco  e  pouco 
o  tumulto  ,  começado  pelos  dois ,  dilatou-sc  c  cres- 
ceu. As  injurias  voaram  de  parte  a  parte  ,  os  fer- 
ros polidos  dospunhaes  iirincipiaram  a  reluzir  meio- 
arrancados  dos  cintos  ,  e  a  sala  do  conselho  ia  con- 
verter-se  u'um  campo  de  batalha  ,  quando  dois  ho- 
mens—  talvez  os  únicos  —  que  pelo  seu  caracter 
publico,  c  ainda  mais  pela  su.i  condição  moral  o 
podiam  alcançar,  atalharam  as  scenas  de  sangue  de 
que  os  paços  de  Guimarães  estavam  a  ponto  de  se- 
rem thealro.  (Juasi  ao  mesmo  tempo  dois  sacerdo- 
tes se  alevautaram  a  pedir  tréguas  era  nome  de 
Deus.  Era  D.  Tcllo  ,  arcediago  de  Coimbra  ,  um 
dclles  ;  o  Outro  ,  Fr.  Hilariáo  ,  o  bom  velho  abba- 
de  do  mosteiro  de  D.5Iuma,  que  já  o  leitor  conhe- 
ce. Àquelle  dissera  muitas  vezes  D.  Thereza  que 
assaz  grato  lhe  seria  vè-Io  bispo  da  sua  sé  ,  a  qual 
então  se  achava  orphã  de  pastor;  a  este,  a  predi- 
lecção que  sempre  mostrara  ao  seu  mosteiro  e  a 
elle  em  especial  o  moço  príncipe  ,  fazia  crer  com 
bom  fundamento  que  não  eram  vãs  de  todo  varias 
palavras  que  uma  vez  lhe  ouvira  soltar  acerca  não 
sabemos  de  que  doação  ,  ao  santo  acisterio  de  Gui- 
marães ,  de  certa  villa  ou  herdado  ,  com  cincoenta 
homens  de  creação  ,  e  seus  montes  e  pastos  ,  fon- 
tes e  lagoas  ,  êxitos  o  regressos.  Não  os  moviam  na 
Tcrdade  estas  circumstancias  ,  que  apontámos  ca- 
sualmente, a  serem,  D.  Tello  inclinado  a  favorecer 
a  justiça  da  bella  infanta  ,  e  Fr.  Hilarião  a  justiça 
de  .\flbnso  Ilenriquez.  Pregoava-os  o  mundo  por 
virtuosos  :  nós  ajuntámos  o  nosso  brado  ao  do  mun- 
do. Mas  é  indubitável  que  ambos  elles  estavam  per- 
suadidos de  que  o  outro  seguia  nraa  causa  má  ,  e 
aOigiam-se  profundamente  de  verem  assim  a  virtu- 
de desvairada  e  perdida  no  meio  do  campo  con- 
trario. 

.liguem  que  subitamente  entrasse  no  logar  era 
que  se  ajuntara  aqucUa  espécie  de  parlamento  ,  e 
visse  os  dois  sacerdotes  ,  pallidos  c  trémulos  ,  pro- 
ferirem palavras  de  rasão  e  de  paz  no  meio  do  tu- 
multuar e  vozear  dos  ricos-homens  e  infanções,  cu- 
jos olhos  chamejavam  de  cólera  ,  cujas  mãos  con- 
frangidas apertavam  os  punhos  dos  bulhões  que  re- 
luziam já  meio-arrancados  ,  attribuiría  forçosamen- 
te a  sua  linguagem  melliflua  e  cheia  de  uncção  ao 
temor  de  serem  victimas  indefensas  dos  brutaes  ho- 
mens de  guerra  ,  se  porventura  o  sangue  começasse 
a  correr,  visto  que  nem  a  cogulla  do  benedictino  , 
nem  a  garnacha  do  arcediago,  eram  apertadas  com 
o  cinto  de  couro  recamado  ,  que  cingia  os  briaes 
dos  cavalleiros  ,  e  com  que  elles  apertavam  ao  pei- 
to ,  da  esquerda  a  espada  ,  e  da  direita  o  punhal. 
Enganar-se-hia  ,  comtudo  — quanto  a  nós —  quera 
a  taes  motivos  attrihuisse  as  palavras  dos  dois  ho- 
mens de  Deus.  Ainda  cremos  na  virtude  dos  cul- 
tores da  politica  :  sabemos  por  experiência  que  a 
maior  parte  das  vezes  as  suas  expressões  são  sin- 
gelas ,  e  nascem  de  crenças  mui  fundas  ;  sabemos 
também  que  as  suas  opiniões  são  em  geral  desinte- 
ressadas ,  e  que  jamais  é  o  medo  que  os  incita  a 
pregarem  a  concórdia  e  a  paz.   E  se  isto  c  assim 


nestes  tempos  de  perversão  moral ,  cora  bom  lun- 
damento  allirmamos  que  eram  puras  c  generosas  as 
intenções  daquelles  dois  ministros  do  Senhor,  n'um 
século  em  que  as  doutrinas  do  christianismo  esta- 
vam vivas,  o  a  caridade  era  fervorosa  e  sincera. 

K  certo  ,  porem  ,  que  apesar  das  diligencias  que 
fazia  cada  um  delles  para  aquietar  o  furor  da  res- 
pectiva parcialidade,  por  muito  tempo  o  alarido 
dos  cavalleiros ,  ([ue  se  doestavam  com  bastas  e 
grosseiras  injurias  ,  cobriu  as  débeis  vozes  dos  va- 
rões apostólicos.  Finalmente  foram  ouvidos.  A  re- 
putação de  santidade  de  que  ambos  gozavam  —  no 
seu  bando  já  se  entende,  —  porque  em  epochas  de 
ódios  civis  as  reputações  facilmente  tocam  o  extre- 
mo da  profundeza  ,  mas  na  extensão  ficara  sempre 
em  metade  ;  —  essa  reputação,  dizemos,  mais  ain- 
da que  a  força  das  suas  ponderações,  lizeram  pouco 
a  pouco  asserenar  a  tempestade.  Os  ricos-homens, 
infanções  ,  e  cavalleiros  vieram  emfim  a  uma  con- 
clusão rasoavel ;  islo  é,  sahiram  d'alli  cada  vez 
mais  aíTcrrados  ás  suas  opiniões ,  e  sem  cnncluircm 
nada. 

Um  resultado  importante  produzira,  todavia,  aquel- 
la  assembléa  :  as  mascaras  haviam  cabido  de  todas 
as  faces  :  todas  as  equações  politicas  estavam  resol- 
vidas. Cada  rico-homem  sabia  em  qual  das  hostes 
havia  de  hastear  seu  pendão,  e  cada  simples  caval- 
leiro  a  que  pendão  se  havia  de  unir.  A  sorte  de 
Portugal  ficava  escripta  nas  pontas  das  lanças  c  nas 
puas  das  maças  d'armas.  A  cúria  ia  traçar  a  der- 
radeira sentença  á  luz  do  céu  —  no  campo  de  ba- 
talha. 

Como  se  fosse  alheio  aos  acontecimentos  daquel- 
le  dia,  o  dissimulado  e  manhoso  Fernão  Perez  sahí- 
ra  da  cúria  dos  barões  com  o  sorriso  nos  lábios  e 
a  raiva  no  coração.  iMcára  sabendo  que  o  poder  da 
rainha,  ou  antes  o  seu,  qnasi  exclusivamente  se  es- 
tribava no  braço  dos  cavalleiros  estranhos,  e  que  a 
fidalguia  dos  dois  condados  de  Portugal  e  Coimbra, 
que  ainda  não  erguera  o  estandarte  da  revolta,  não 
tardaria  a  seguir  o  exemplo  dos  que  já  se  haviam 
declarado  pelo  infante,  .\ttribuia  á  influencia  de 
Gonçalo  Meudez  da  Maia  este  successo  ,  e  o  seu 
ódio  contra  elle  linha  subido  de  ponto.  O  Lidador 
foi,  portanto,  aquelle  aquém  neste  dia  mostrou  mais 
prazenteiro  rosío. 

l'm  banquete  esplendido  havia  de  terminar  a  con- 
vocação da  cúria  ou  cortes.  Os  graves  cuidados,  que 
durante  a  manhã  tinham  occupado  os  corlczãos  ,  e 
ricos-homens  vindos  áquella  assembléa,  deviam  dis- 
sipar-se  no  meio  das  delicadas  iguarias  e  das  taças 
de  vinho  escumante.  ISa  mesma  sala  d'armas,  on- 
de na  véspera  resssoára  o  tripudiar  do  sarau  ,  ia 
restrugir  naquella  noite  o  folgar  do  banquete,  mais 
ruidoso  ainda  ,  porque  nesse  dia  havia  chegado  a 
Guimarães  grande  numero  de  fidalgos  de  Galliza  , 
que  em  Portugal  tinham  prestamos  e  alcaidarias 
da  bella  infanta  ,  ou  antes  de  conde  de  Trava.  Os 
vastos  aposentos  do  paço  brilhavam  com  toda  a  pom- 
pa de  um  dia  de  festa  na  idade  media.  .\s  calças 
de  muitas  cores  ,  as  plumas  das  toucas  dos  senho- 
res, os  ricos  briaes  e  cotas,  onde  já  a  armari.i,  que 
as  guerras  d'ultramar  começavam  a  converter  cm 
moda  ,  estreara  as  suas  divisas  e  bordaduras  phan- 
tasticas,  davam  um  aspecto  de  alegria  áquelle  con- 
curso ,  que  debalde  se  buscaria  nas  reuniões  mo- 
dernas, monótonas  e  tristes  em  trajos,  como  em  qua- 
si  tudo.  Pelos  eirados  c  miradouros,  pelos  adarves 
e  torres  do  castello  ,  pelas  frestas  e  balcões  do  pa- 
lácio viam-se  olhar  ,  gesticular  ,  correr ,  sumir-se  , 


62 


O   PANORAMA. 


apparecer  de  novo  centenares  de  cavalleiros.  As  es- 
cadas, os  pateos,  refcrvinm  de  escudeiros  c  pagens, 
que  subiam,  desciam,  apinhavam-se  e  dividiam-se 
em  agitação  contínua.  E  o  ruido  e  confusão  não  se 
limitavam  ao  castello  :  as  ruas  e  quclhns  tortnosas 
do  burgo  sussurravam  com  o  perpassar  dos  homens 
d'armas,  dos  besteiros  ,  c  da  pionagem  ,  que  se- 
guiam para  Ioda  a  parle  os  ricos-homens  e  infan- 
çõcs ,  cm  maior  ou  menor  numero,  segundo  a  gra- 
duarão e  poder  de  cada  um  delies.  Kra  este  um 
distinctivo  de  nobreza  ,  que  raras  vezes  o  fidalgo 
daquellas  eras  esquecia,  c  muito  menos  quando  era, 
como  então  se  dizia  ,  chamado  a  cas  d'elrci.  Assim 
nestas  assembléas  politicas ,  donde  nasceram  as  an- 
tigas cortes  ,  mais  frequentes  do  quo  geralmente  se 
crê  ,  a  povoação  destinada  para  cilas  nficrecia  um 
espectáculo  de  desordem  e  motim  impossível  de  des- 
crever ;  por  tal  arlc  que  se  inimigos  houvessem  to- 
mado de  assalto  a  cidade  ou  villa  ,  onde  tacs  sce- 
jias  se  passavam  ,  a  alarida  não  seria  maior,  nem  a 
confusão  mais  completa  ;  e  a  única  dilTercnça  seria 
quo  neste  ultimo  caso  o  sangue  jorraria  em  tanta 
quantidade,  como  naquelle  jorrava  o  vinho  ,  cos 
gritos  de  dòr  e  angustia  substituiriam  os  brados  e 
risadas  convulsas  da  embriaguez. 

No  meio  deste  borborinho,  por  toda  a  parte  atroa- 
dor,  mas  infernal  nas  salas  principacs  do  paço,  era 
notável  o  cuidado  cora  que  o  conde  de  Trava  pro- 
<Mirava  não  perder  de  vista  o  Lidador.  Se  a  alguém 
fosse  possível  reparar  nisso  .  fácil  lhe  fora  adivi- 
nhar os  motivos  de  similhante  procedimento,  depois 
do  que  se  passara  na  cúria,  e  atlenlo  o  caracter  dis- 
simulado, mas  cauteloso,  do  conde.  Era  um  ini- 
migo que  devia  causar-lhe  sérios  receios  ,  e  apesar 
das  diligencias,  que  fazia  para  os  encobrir  sob  ura 
gesto  festivo  ,  lá  se  divisava  no  seu  olhar  inquieto 
o  susto  e  a  colora  que  lhe  ralavam  o  coração. 

Assim  vigiando  os  passos'de  Gonçalo  Mendez,  Fer- 
não Perez  o  linha  seguido  de  sala  cm  sala  ,  procu- 
rando escutar  o  que  elle  dizia  nos  diversos  grupos 
de  cavalleiros  a  que  se  ajuntava.  Mais  de  uma  ho- 
ra havia  que  o  conselho  se  apartara,  o  ainda  o  con- 
de não  tinha  deixado  um  instante  de  o  vêr  e  ouvir, 
quando  um  escudeiro  do  Lidador ,  rompendo  pela 
lurba  dos  fidalgos  ,  se  chegou  ao  seu  amo  ,  c  lhe 
disse  em  voz  baisa  : 

«Senhor,  um  peão,  que  alTirma  ser  chegado  ha 
pouco  da  Tcrra-santa,  pertende  fallar-vos  e  ao  mui 
reverendo  Fr.  Hilarião.  Diz  que  vos  traz  mensa- 
gens de  amigos  vossos  ,  que  ora  andam  em  deman- 
da do  santo  sepulchro.  Um  homem  de  sua  reveren- 
cia o  busca  por  toda  a  parte  ,  e  eu  vim  entretanto 
avisar-vos.  » 

«Um  peão  vindo  da  Palestina  com  mensagem  a 
mim?  replicou  o  Lidador  em  voz  alia.  A  fé  que  me 
parece  estranho  caso  '  Não  disse  quem  o  manda- 
va ?  11 

«  .\ão  ,  meu  nobre  senhor: — respondeu  o  escu- 
deiro—  uem  eu  me  esqueci  de  lh'o  perguntar:  a 
sua  resposta  uuica  foi  que  a  vós  —  e  só  a  vós  o  di- 
ria.» 

u  Bem  !  — Talvez  assim  lh'o  ordenassem.  » 

l'roferindo  estas  palavras  ,  o  Lidador  sahiu  ,  en- 
carniidiaiidu-5C  para  as  largas  escadas  que  davam 
para  n  grande;  patco  do  caslello  em  frente  dos  pa- 
ços. 

O  coiule  de  Trava  percebera,  postoí|ue  impcrfei- 
lameule  .  este  dialogo.  Lm  pensamento  do  descon- 
fiança liie  |)assou  pelo  espirito  ,  c  o  seu  primeiro 
impulso  foi  continuar  a  seguir  Gonçalo  IMcndcz.  Mas 


esta  insistência  era  já  demasiada,  e  podia  excitar  as 
suspeitas  do  cavalleiro.  Hesitava  ainda  entre  o  ir  e 
o  ficar,  quando  viu  perto  de  si  Tructezindo  seu  so- 
brinho e  seu  pagem,  filho  deVcremudo,  e  que  mui- 
to lhe  queria.  Deus  ou  odemonio  era  quem  alli  lh'o 
enviava.  Ima  idéa  lhe  occorrêra  subitamente  ao  ver 
o  mancebo. 

«Ouve  cá,  Tructezindo  —  disse  elle  ao  gentil  pa- 
gem ,  accnando-lhe  com  a  mão  e  sorrindo. 

«Que  ordenais,  raeu  senhor  e  meu  lio?  —  per- 
guntou Tructezindo,  chegando  ao  conde  e  cravando 
nelle  os  olhos,  em  que  se  pintava  toda  a  malícia 
possível  n'um  rapaz  da  sua  idade. 

Fernão  Perez  affagou-o  pondo-lhe  a  mão  sobre  a 
cabeça  ,  d'onde  se  lhe  esparziam  em  ondas  sobre 
os  hombros  os  louros  e  anelados  cabellos. 

« Apraz-te  ,  raeu  sobrinho  ,  o  ver  esta  grão  peça 
de  cavalleiros,  que  muitas  vezes  se  acharam  já  em 
lides  de  mouros  ,  e  que  outras  tantas  teem  ganha- 
do o  preço  de  justas  e  torneios  ,  e  sido  proclama- 
dos vencedores  por  formosas  damas,  ao  som  decym- 
balos  e  trombetas ,  nos  jogos  da  argolinha  e  do  ta- 
vnlado?  Que  me  deras  tu  por  ser  um  delies,  e  cin- 
gires uma  espada  c  adaga?» 

"Dera,  meu  bom  tio  —  respondeu  o  pagem  —  dez 
ou  vinte  annos  de  vida  para  se  accrescentarcm  á 
vossa,  e  não  vos  daria  nada.  Bem  podíeis  vós,  se 
quízesseis  ,  armar-rae  já  cavalleiro  ,  como  me  pro- 
raettcstes  para  daqui  a  um  anno.  Tenho  dezesete  e 
os  dezoito  vem  tão  tarde  ! » 

«Por  minha  alma  que  respondeste  avisado!  — 
replicou  o  conde.  —  Não  quizera  eu  annos  da  lua 
vida  para  ajuntar  aos  meus,  que  d'ora  avante  me 
vem  aborridos  e  trabalhados.  Brevemente  eu  te  ar- 
marei cavalleiro  :■ — •  talvez  em  poucos  dias  ao  som 
do  tinir  de  golpes  em  fera  arrancada.  Basta  que  a 
paga  de  minha  mercê  seja  cumprires  adicadamente 
o  feito  de  que  vou  enearregar-te. » 

«  Efa-lo-heí  de  bom  grado  :  —  tornou  Tructezindo.- 
—  Mandai,  meu  tio,  que  eu  vos  obedecerei.» 

n  Um  peão  ,  vindo  de  longes  terras  ,  buscava  ha 
um  momento  Gonçalo  Mendez  da  Maia  e  o  abbade 
de  D.  Muma,  O  cavalleiro  e  o  monge  devem  ora 
estar  com  esse  mensageiro  lá  embaixo.  Acerca-te 
delies  por  meio  do  tropel  que  flnctua  apinhado  por 
toda  a  parle,  e  procura  saber  quem  é,  o  que  quer, 
donde  veio.  Escuta  lambem  ,  se  poderes  ,  suas  pa- 
lavras. » 

«E  depois?»  —  perguntou  o  gentil  pagem. 

«Vem  prestes  dizer-me  o  que  lá  se  ha  passado.» 

Ligeiro  como  um  gamo  ,  Tructezindo  desappare- 
ceu.  O  conde  ,  chegando  d'ahi  a  pouco  a  um  dos 
balcões  da  immensa  sala  d'armas,  viu  ainda  o  Li- 
dador e  o  abbade  que  encamiidiando-sc  para  uma 
viella,  que  corria  entre  os  |)aços  e  o  lanço  occiden- 
lal  da  muralha  ,  pareciam  atlentos  ás  palavras  de 
um  homem  ,  cujo  rosto  elle  não  pôde  bem  divisar, 
porque  o  levava  meio  escondido  no  capuz  de  um 
aMq)lo  zorame  de  laã  parda  e  grosseira  ,  que  quasi 
ale  (IS  pés  o  cubria.  Perto  porem  dos  Ires  viu  Tru- 
tezindo  ,  que  fingia  retouçar  com  os  outros  pagens, 
ora  Iravaudo-se  a  braços  com  elles  ,  ora  fugindo 
com  gratulcs  apupos  e  risadas  ,  mas  girando  sem- 
pre ,  como  a  borboleta  ao  redor  da  fogueira  ,  em 
\(dla  de  (ionçalo  Mendez  ,  do  desconhecido  e  do 
abbade. 

Satisfeito  da  habilidade  com  que  o  seu  pagem 
parecia  desempenhar  a  coramissão  que  lhe  dera  , 
Fernão  Perez  voltou-se  para  dentro  sorrindo  de  con- 
tentamento. Achou-se  então  face  a  face  com  Garcia 


o  PANOllAflIA. 


63 


BcrmiiiJcz  ,  tilo  triste  no  aspecto  como  ncssn  ma- 
nhaã  o  encontrara.  Alem  disso,  iiorcm,.no  carran- 
cudo do  gesto  dava  mostras  de  que  ideas  mui  gra- 
ves o  preoccupavam.  No  seu  ar  o  conde  percebeu 
que  occorrèra  algum  acontecimento  extraordinário. 

II  Preciso  de  fallar-vos  á  puridade  :  —  disse  Gar- 
cia Bermudez  procurando  niio  ser  ouvido  dos  cor- 
tesãos que  perpassavam. 

II  Vinde  comigo» —  respondeu  o  conde  de  Trava 
no  mesmo  tom  ,  e  travundo-Ilie  do  braço. 

À.  esquerda  da  sala  d'armas  uma  pequena  porta 
dava  passagem  para  extenso  e  escuro  corredor,  em 
rujo  topo  havia  outra  porta  fechada  :  o  conde  tirou 
uma  chave  ,  abriu-a  ,  e  cerrando-a  njioz  si  ,  os  dois 
cavalleiros  se  acharam  em  uma  espécie  de  jarJim- 
sinho  pênsil,  assentado  solire  uma  alta  arcaria,  que 
ligava  uma  das  torres  do  castello  com  os  paços  da 
bella  infanta.  As  camarás  desta,  c  os  aposentos  ha- 
bitados pelas  suas  damas  edonzellas,  cercavam  por 
dois  lados  este  pequeno  terrado  cuberlo  de  flores  e 
arbustos  viçosos.  Um  desses  engenhos  árabes  ,  que 
ainda  hoje  cobrem  o  solo  da  Peninsula  e  fertilisam 
as  nossas  veigas  e  pomares  ,  ministrava  constante- 
mente áquelle  ameno  horto,  de  um  poço  profundís- 
simo talhado  no  rochedo  em  que  repousavam  os  fun- 
damentos do  castello,  agua  chrislalina,  que  ao  ca- 
hir  n'um  tanque  de  mármore  sussurrava  branda- 
mente. Junto  delle  um  salgueiro  copado  formava 
uma  espécie  de  caramanchão  sobre  um  banco  de 
pedra.  Foi  para  aquelle  sitio  que  o  conde  conduziu 
Garcia  Bermudez,  dizendo-lhe:  —  «Aqui  podes  se- 
guro fallar. » 

«Acaba  de  chegar  um  dos  esculcas  ,  que  andam 
disfarçados  em  besteiros  da  behetria  do  Gonlingem 
no  arraial  do  infante:- — -disse  ocavalleiro  —  dá  re- 
bate de  que  a  hoste  rebelde  caminha  para  estes  si- 
tios.  O  velho  Egas  Moniz  de  riba  de  Douro  veio  a 
cila  com  cem  lanças.  São  já  perto  de  mil  homens 
d 'armas  os  q>ie  D.  Affonso  capitania.  Segundo  se 
diz,  elle  pertcnde  dar-vos  batalha,  c  conta  com  al- 
guns dos  senhores  da  corte  que  espera  tomem  sua 
voz  :  o  mui  reverendo  Marlira  Kicha  ,  a  quem  in- 
cumbistes juntamente  comigo  de  introduzir  alTorra- 
damente  o  mensageiro  ao  postigo  d'ábrego  ,  foi  dar 
conta  destas  novas  á  mui  cxcellente  rainhí  ,  em 
quanto  eu  vos  buscava.» 

II  Que  esse  louco  mancebo  venha,  e  achará  meus 
pendões  tendidos  no  campo.  Ahi  receberá  o  preço 
de  sua  ousadia  insensata.  Mas  cngana-se  contando 
com  os  falsos  que  nos  cercam.  Conheço-os  ,  caos 
leacs  !  Eu  deceparei  o  collo  da  serpente  ....  Gon- 
çalo Mendez  !  — Gonçalo  Mcndez  I  • — -cm  hora  azia- 
ga vieste  á  corte  :  em  hora  aziaga  te  demoraste  '. 
(iarcia  Bermudez  ,  a  infanta  de  Portugal  ,  a  filha 
dos  reis  de  Leão,  acaba  de  escolher-te  para  seu  al- 
feres :  a  ti  pertence  o  governo  de  todos  os  seus  ho- 
mens d'armas.  Ao  acabar  do  banquete  devem  estar 
levantadas  as  pontes  das  barbacans ,  c?tas  guarne- 
cidas de  vigias  ,  e  em  cada  lanço  uma  roída  e  so- 
brerolda.  A  ninguém  é  permiltido  sahir  do  recin- 
to do  burgo: — nem  a  mim  próprio.  Alfcres-mór 
de  Portugal, — são  estes  os  mandados  da  rainha  D. 
Thereza  :  vós  fareis  que  sejam  cumpridos  á  risca  I » 

Ao  proferir  estas  palavras,  todas  as  paixões  cruéis, 
tençoeiras  ,  furiosas  ,  que  ferviam  comprimidas  no 
coração  do  conde  ,  se  lhe  pintavam  no  demudado  i 
das  faces  ,  no  tremulo  dos  lábios  brancos,  nas  ru- 
gas profundas  da  fronte  carregada.  Depois  de  um 
momento  de  silencio  ,  sahindo  arrebatadamente  do 
caramanchão,  |)roseguiu  : —  -  -• 


«Se  tendes  mais  que  dizer  ,  dizei-o.  .No  momen- 
to do  perigo  nunca  hesitei,  'lereis  uma  resolução 
pnunpta.  » 

«Só  ,  que  obedecerei  pontualmente  ao  que  orde- 
na minha  senhora  e rainha:  —  respondeu  o  novo  al- 
ienas. 

Neste  momento  um  vulto  appareceu  no  limiar  da 
porta  entre-aherta  por  onde  os  dois  haviam  entrado. 
Era  o  bufão  ,  que  olhava  fito  para  o  sol  que  se  pu- 
nha ,  fazendo-lhe  visagcns  ,  e  cantarolando  sem  re- 
parar nos  cavalleiros  : 

«Tu  vais-tc  :  mas  voltas. 

«  E  elles  ir-se-hão  , 

«  E  não  voltarão?  ■ 

«Froilaz  ou  Kroilão  ; 

«Fernando  de  'Irava,  - 

«E  o  seu  valentão  ,  . 

«Dom  Buirão  , 

"D'.\ragão  , 

«Que  de  Dulce  , 

«Bella  Dulce, 

«  Quer  a  mão  .... 

"Diabo  !  .  .  . 

Engolfado  na  sua  tro\a  D.  Bibas,  a  quem  algum 
génio  avesso  iniiicllíra  a  escoar-se  pelo  corredor  es- 
curo e  a  entrar  no  jardim,  voltara  de  repente  a  ca- 
ra e  dera  ao  pé  de  si  com  os  dois  cavalleiros  ,  que 
o  escutavam. 

«Que  dizias  tu  de  Dulce,  bufão?  —  perguntou  o 
conde  com  gesto  severo  ,  e  lançando  de  relance  os 
olhos  para  Garcia  Bermudez. 

O  bobo  leu  no  aspecto  de  Fernão  Pcrez  ,  que  se 
achava  n'um  daquelles  trances  arriscados  ,  em  que 
as  suas  injurias  em  vez  d'applausos  só  lhe  acarreta- 
vam maus  tratos.  Todavia  o  dito  estava  dito.  Poz-se 
a  mirar  os  balegões  dos  cavalleiros:  eram  de  pellc 
de  gamo  ,  e  de  sola  delgada  ,  revirados  na  ponta 
em  compridos  bicos,  segundo  a  moda  do  tempo. 
Fez  rapidamente  o  seguinte  dilemma  :  ou  a  extre- 
ma ousadia  me  salva,  ou  o  que  já  disse  me  perde. 
Em  todo  o  caso  ,  preso  por  mil  ,  preso  por  mil  e 
quinhentas.  Avante! — E fazendo  uma  profunda  cor- 
tczia  ,  respondeu  : 

«Dizia  esta  humilde  creatura  que  vós,  mui  nobre 
D.Garcia,  sois  parvo  cm  perseguir  com  vossos  ridí- 
culos amores  a  minha  boa  Dulce  ,  e  que  vós  ,  se- 
nhor conde  de  Galliza  ,  nos  faríeis  especial  mer- 
cê em  irdes  visitar  as  corujas  do  vosso  castello  de 
Pharo  ...... 

«  D.  Bibas  !  » —  interrompeu  o  conde.  O  bobo  con- 
tinuou : 

«Deixando,  com  os  vossos  gallegos  brulaes,  ecom 
os  vossos  aragonezes  estúpidos  ,  os  nobres  paços  de 
Guimarães  aquelle  que  os  herdou  de  seu  pai,  o  tio 
Henrique,  antigo  truão  de  minha  corte  ...» 

«D.  Bibas!  —  atalhou  de  novo  o  conde,  cuja  có- 
lera tiniia  chegado  ao  seu  auge.  sorrindo  ferozmen- 
te—  os  que  te  enviaram  para  me  dizeres  o  que  el- 
les guardam  nos  corações  covardes  ,  esqueceram-sc 
de  vestír-te  um  saio  de  malha  bem  estofado  !  .  .  ;» 

Neste  momento  abriu-se  uma  das  portas  dos  apo- 
sentos da  bella  infanta,  e  o  capellão  Martim  Eicha, 
acompanhado  de  dois  donzcis,  de  D.  Thereza,  diri- 
giu-se  para  o  conde  : 

«  Senhor  de  Trava  —  disse  o  reverendo  cónego  — 
a  rainha  quer  immedialamente  fallar-vos.» 

«Eu  ia  pedir  isso  mesmo  —  respondeu  o  conde. — 
JJas  antes  de  partir  quero  mostrar  a  traidores,   na 


64 


O  PANORAMA. 


|>uuição  de  seu  mensageiro  ,  que  lambera  sal)erei 
puni-los.  Donzcis  ,  arrastai  este  miserável  daqui  ,  e 
♦■nlregai-o  ao  villico  do  castcllo,  que  o  mande  açoi- 
tar pelo  mais  robusio  dos  meus  cavalleriros  ,  até 
que  o  sangue  lhe  brote  das  costas  ,  como  da  lingua 
vilissima  lhe  brotam  insolências  alheias.  » 

(J  pobre  D.  liibas  tinha  errado  completamente  o 
dilemma,  por  não  mcller  nelle  os  tagantcs  ou  tiras 
de  couro  críi  com  que  se  castigavam  os  homens  de 
creaçiio,  c  que  clle  nunca  provara.  Posto  que  já  com 
Toz  tremula,  tentou  ainda  uma  bufoneria,  e  atirando 
ao  chão  aquelle  seu  vulto  de  [lipa  poz-sc  a  gritar  : 

«  Não  ,  que  cu  não  vou  !  » 

«  Donzeis,  obedecei! — bradou  o  condo,  encami- 
nhando-se  para  os  aposentos  da  infanta. 

D.  Bibas  desenganou-se  então  de  que  o  caso  era 
serio.  Dando  largas  ao  temor,  arrastou-se  apoz  Fer- 
não Perez,  exclamando  com  todos  os  signaes  de  vi- 
va ainicção  : 

"  Piedade  ,  senhor  conde  '  —  Proraetto  ...» 

O  conde  desapparccèra. 

«Levai-o  ,  donzeis!  —  disse  o  novo  alfercs-mór. 

«Também  vós,  Garcia  Bermudez?  Não!  não! 
\'ós  salvar-me-beis  destes  ...» 

íiarcia  sahira  pela  porta  fatal  do  corredor  escu- 
ro ,  que  fora  a  perdição  do  bobo.  Só  ficara  alli  o 
cónego  de  Lamego  ,  que  parecia  observar  como  os 
donzeis  executavam  as  ordens  do  conde. 

Estes  ,  do  feito  ,  tinham  posto  mãos  violentas  no 
roliço  vulto  do  respeitável  D.  liibas  ,  e  travando- 
Ihe  cada  qual  de  seu  braço  se  assimilbavam  a  dois 
mastins  ,  pouco  dispostos  a  largar  a  prèa.  O  bufão 
cora  voz  truncada  de  soluços  accorrcu-se  então  a 
ténue  e  ultima  esperança  que  lhe  restava. 

«Assassinos  malditos,  deixai-me  !  —  gritou  clle 
dando  um  empuxão  aos  dois  mancebos  que  levou 
apoz  si.  E  agarrando-se  á  garnacba  de  Martim  Ei- 
cha  com  toda  a  anciã  do  susto  e  da  desesperação , 
começou  uma  ladainha  de  supplicas  : 

« Boiíissimo  o  reverendissimo  senhor  capellão- 
mór,  que  vossa  virtuosa  reverencia  valha  a  ura  mi- 
serável jogral,  que  a  terra  d'ante  vossos  pés  beija  ! 
É  dos  caridosos  e  de  grande  coração  perdoar  aos 
que  os  offenderam.  Eu  tenho  peccado  contra  vós. 
Peccavi!  Estou  contrito.  Conhilus  sum !  Pedi  por 
mim,  santissimo  e  venerabilissimo  padre.  Ninguém 
m'incitou  para  dizer  o  que  disse.  Foi  o  diabo  que 
me  tentou.  Abrnniiitio !  Podeis  assevera-lo  a  meu 
jllustre  senhor  ,  o  nobre  conde  de  Trava  !  .  .  » 

«Filho  —  respdudeu  Martim  Eicha  ,  fazendo  um 
ademan  entre  hypocrita  e  d'escarneo  —  o  castigo  é 
muitas  vezes  caminho  para  o  arrependimento.  Ue- 
signa-le  ,  meu  filho.  Sc  nisso  não  houvera  vanglo- 
ria ,  dir-te-hia  que  no  solTrimento  d'injurias  podias 
apprender  de  mim  a  ser  resignado.» 

Proferindo  estas  palavras  ,  SIartim  Eicha  alcan- 
çara soltar  o  vestido  das  mãos  do  bobo ,  e  com  um 
sorriso  de  vingança  satisfeita  seguira  os  vestígios 
do  conde. 

D.  Bibas  perdeu  a  derradeira  esperança. 

Então  o  excesso  du  terror  e  da  desesperação  pro- 
duziu n'aquelle  espirito  ,  onde  por  annos  se  desen- 
volvera e  alimenlára  constante  irritação,  uma  des- 
tas revoluçctes  mora<ís  cm  que,  no  meio  de  tormen- 
tosa crise  ,  o  homem  se  transmuda  em  outro  ho- 
mem.   Ergueu-sc  ,  e  com  gesto  desvairado  bradou: 

«  Está  bom  !  Ninguém  se  compadece  de  mim  ! 
Serei  açuutado  como  ura  vil  servo  judeu  !  O  bobo 
receberá  essa  alTroiitosa  pena  ;  mas  elle  se  conver- 
terá n'um  demónio  ...» 


Neste  ponto  Martim  Eicha,  que  crusava  o  limiar 
da  porta,  voltou  os  olhos  e  fitando-os  no  bufão  deu 
uma  risada.  1).  Bibas  proseguiu  ,  cerrando  os  pu- 
nhos ,  e  mordendo-os  : 

«Bis,  vil  renegado?!  —  Eis,  alcaiotc  pacciro?! 
Um  dia  virá  cm  que  chores!  ....  Va)nos,  escra- 
vos !  —  X  risca  as  ordens  do  conde  covarde  !  » 

Dizendo  isto  o  bolio  ,  com  passo  firme  e  no  meio 
dos  dois  donzeis,  que  nunca  o  haviam  largado,  a- 
travessou  o  corredor  escuro.  D'ahi  a  pouco  ,  era 
um  paleo  interior  ,  ouviam-sc-lhe  os  grilos  doloro- 
sos por  entre  o  som  dos  açoutes,  e  apupos  e  garga- 
lhadas de  pagens  ,  sergentes  ,  e  cavalleriços. 

•  (Coníiiiuar-se-ha). 

(A.  lltrculanoj. 


íSoíanica. 

■    -  TinARA    D.A    TERRA. 

[Liii.   Lycopcrdon  tuber.] 

A  TiBARA  não  tem  raizes  ,  e  nasce  debaixo  da  ter- 
ra ;  é  trigueira  ,  redonda  ,  solida  ,  áspera  ao  tacto  . 
e  cheirosa.  As  sementes  estão  escondidas  em  cellu- 
las  nomeio  da  substancia  polposa.  Nospaizcs  quen- 
tes, e  nos  terrenos  sêccos  ,  e  areentos  é  que  com- 
mummenle  se  acha  esta  espécie  de  tortulho  ,  sem- 
pre escondida  debaixo  da  terra.  «Como  os  porcos 
são  muito  ávidos  ,  e  gulosos  desta  jjlanta  ,  diz  Bo- 
raare  ,  quando  a  acham  foçando  a  terra  ,  dão  logo 
a  conhecer  a  sua  boa  fbrt\uia  pelos  seus  grunhidos 
de  contentamento.  Esta  indiscrição  adverte  o  guar- 
da ,  que  sempre  os  espreita  e  corre  logo  ,  afasta-os 
ás  pauladas  ,  c  reserva  este  achado  para  as  mezas , 
aonde  se  ajuntam  paladares  mais  delicados.  Tam- 
bém se  podem  reconhecer  os  sitios  ,  cm  que  ha  Ili- 
baras debaixo  da  terra,  quando  olhando  borisontal- 
mente  sobre  a  superficie  ,  se  vêem  voltejar  voando 
por  cima  de  ura  terreno  leve ,  fendido  ,  e  grelado  , 
enxames  de  pequenas  moscas  produzidas  pelos  bi- 
xos  que  sahi:'am  das  túbaras,  e  que  lá  tinham  sido 
depositados  por  outras  moscas  similhantcs,  no  es- 
tado de  ovos.  Em  setembro  ,  ou  outubro  é  que  se 
colhem  as  túbaras.»  Elias  são  um  guizado  delica- 
do, mas  pouco  sadio,  e  quente. —  Em  vários  sitios 
doAlemtejo  se  encontram  com  frequência  estes  sin- 
gulares fructos  ,  que  não  revelam  pela  vegetação  á 
superficie  da  terra  a  sua  existência. 

Sargaço  do  mar  ,  ou  rotilhão. 
[Lin.  Fticus  vcsiculosus.J 

Este  género  c  numeroso  em  espécies  ,  que  são  as 
verdadeiras  algas  ,  que  nascem  no  fundo  do  mar. 
Os  sargaços  são  de  substancia  ou  membranosa  ,  ou 
gelatinosa  ,  ou  carnuda  ,  ou  coreacea  ,  ou  cartila- 
ginosa :  a  maior  parle  são  ramificados  cm  forma  de 
arbusto  levantado;  alguns  se  arrojam  pelo  chão  , 
ou  estão  deitados  em  lórma  de  lamina  ,  ou  de  be- 
xiga ;  sobre  as  folhas  do  maior  numero  se  elevam 
tubérculos  cm  forma  de  bexigas  fechadas,  maiores 
ou  menores  ,  mais  ou  menos  redondas.  Suppõe-sc 
que  estas  bexigas  estão  sempre  cheias  de  ar,  e  que 
sustentam  em  pé  a  planta,  ou  a  fazem  boiar.  .l(/((n- 
sun  presume  que  estas  vesículas  são  as  llores  fê- 
meas. Estas  plantas  na  agua  ,  ou  logo  que  sahera 
delia  ,  tem  a  còr  de  azeitona  ,  mas  fazcm-se  pretas 
quando  scccara.  Das  suas  cinzas  tira-se  soda  ;  os  la- 
vradores hábeis  formam  cora  ellas  excellcnles  es- 
trumes. 


62 


o  PANORAaiA. 


65 


MODO  SE  CAaaEGAa  o  CAMEEX.LO  ABABE. 


O  cAMELLo  é  uma  dadiva  de  grão  preço ,  que  Deus 
liberalisou  ao  homem  nos  climas  orientaes  ,  onde 
faz  serviços  mais  vantajosos  que  outro  qualquer  ani- 
mal domestico  :  de  tempo  immcraorial  o  amansa- 
ram ,  como  consta  dos  livros  santos.  Manso  e  sagaz 
como  o  elephante  ,  dócil  e  meneavel  como  o  cavai- 
lo  ,  mais  forte  que  o  boi ,  c  mais  seguro  no  passo 
que  as  outras  bestas ,  constitue  não  poucas  vezes 
toda  a  riqueza  de  uma  familia  árabe  :  dá  leite  em 
abundância  como  a  vacca  e  de  boa  qualidade  :  a 
carne  quando  novo  é  tenra  como  a  de  vilella  :  tem 
pello  ou  laã  superior  ás  melhores  de  carneiro  ou 
cabra  :  e  afora  tudo  isto  é  dotado  da  extraordiná- 
ria propriedade  de  jejuar  uma  semana  inteira  sem 
ao  menos  beber  ,  caminhando  por  desertos  e  char- 
necas com  sete  ou  oito  quintacs  de  carga  e  um  ho- 
mem sobre  o  costado.  Os  ermos  estéreis  da  Arábia, 
os  tisnados  areaes  da  Africa  seriam  totalmente  im- 
praticáveis,  e  muitos  paizcs  do  oriente  privados  de 
comraunicação  ,  se  o  Creador  não  houvera  provi- 
denciado dando-lhe  fartura  de  caraellos  e  dromedá- 
rios, de  tão  maravilhosa  estruclura,  adaptada  a  es- 
sas regiões  :  não  é  o  piso  d'areia  solta  para  animaes 
de  casco  c  unha:  por  isso  o  pé  do  caraello  c  reves- 
tido de  uma  pelle grossa,  callosa  e  flexivel,  que  lhe 
facilita  andar  desembaraçado  pelos  areiaes  movedi- 
ços e  do  mesmo  modo  por  trilhos  escabrosos.  —  Pa- 
eiente  ajoelha  ao  mandado  de  seu  dono  ,  e  levanta 
contente  a  carga  que  hade  conduzir  durante  cem  a 
duzentas  léguas  sem  neccsiíidad«  de  látego  ou  aci- 
Marco  4—1843. 


cate ;  e  quando  a  fadiga  lhe  desalenta  o  passo,  bas- 
ta uma  cantarola  alegre  do  árabe  que  o  guia  para 
reanima-lo  ate  o  termo  da  jornada  ,  e  ahi  torna  a 
dobrar  os  joelhos  para  que  o  alliviem  do  peso  que 
trouxera  ;  recebe  por  único  alimento  um  troço  de 
torta  de  cevada  ,  e  quando  este  escacêa  sem  elle 
passa  e  sem  beber  oito  até  dez  dias.  —  Afora  os 
quatro  estômagos  que  tem  todos  os  ruminantes ,  o 
eamelio  possue  um  ventriculo  espaçoso  ,  que  lhe 
serve  de  cisterna  para  guardar  a  agua  que  ha  mis- 
ter no  trajecto  pelos  desertos;  e  quando  precisa  de 
alguma  humidade  para  macerar  o  diminuto  alimen- 
to ,  que  lhe  ministram  ,  contrahe  os  músculos  que 
rodeiam  esse  deposito  d'agua  ,  e  despeja  no  estô- 
mago da  digestão  a  quantidade  necessária  :  tem  vi- 
da dilatada  e  pouco  sujeita  a  enfermidades.  Aquel- 
la  agua  ,  assim  reservada  ,  não  se  corrompe  com  o 
calor  vital ,  nem  se  mistura  com  algum  dos  suecos 
do  corpo  do  animal  ,  conservando-se  pura  ,  doce  , 
e  salubre.  Nesla  disposição  orgânica  ,  bem  como 
em  todos  os  phenoraenos  naturaes,  admirará  o  con- 
templador os  profundissimos  desígnios  da  providente 
Omnipotência  de  Deus,  que  assim  regrou  todas  as 
cousas  adequadamente  aos  fins  para  que  as  creára 
e  aos  logares  em  que  as  collocou. 

Ha  duas  espécies  de  camcllos  : — uma  que  tcni 
só  uma  gibba  ou  corcova  ,  como  o  que  na  gravura 
antecedente  está  figurado ,  e  esse  i  o  verdadeiro 
camello  árabe  ,  a  que  vulgarmente  chamara  drome- 
dário ■ —  «ulra  tem  duas  gibbas  no  lombo,    e  lhe 

2.°  Serib.  — Voi..  11. 


66 


O  PANORA3IA. 


l:o 


clianinra  camollo  Ijaclriano.  Os  asiáticos  c  africanos 
appcllidam  geralmente  dromedários  a  toilos  os  ca- 
ir.cllos  destinados  para  montar  ,  sem  distincrão  de 
espécie  mas  só  da  maneira  de  os  crear.  Pódc  fa- 
zer-sc  a  seguinte  compararão  :  os  de  carga  empre- 
gados nas  caravanas  servem  como  os  nossos  cavai- 
los  pesados  de  liro ,  e  os  dromedarics  como  os  ca- 
vallos  de  posta  ou  de  caca.  Um  correio  ou  drome- 
dário faz  por  dia  mais  caminho  que  o  camello  de 
cnrga  :  as  jornadas  das  caravanas  regulam  a  seis 
léguas,  e  as  de  um  postilhão  são  de  (juinzc  a  vin- 
te ;  sem  embargo  ha  alguns  camcllos  d'cxlraordi- 
naria  ligeireza.  Ura  mancebo  de  Susa  andava  na- 
morado de  uma  dama  caprichosa  ,  que  ora  muito 
a[)aixonada  de  laranjas  ;  pediu  cila  ao  ani.inte  que 
lhe  trouxesse  algumas  de  Marrocos  ,  distante  dnlli 
io  léguas,  c  onde  se  criam  as  melhores  de  Africa  ; 
o  galau  montou  o  seu  camello  ao  despontar  a  auro- 
ra ,  foi  em  busca  das  fruclas  cobiçadas  ,  e  por  noi- 
te teve  a  satisfação  de  presentear  com  cilas  a  linda 
moura . 

Quanto  ao  modo  de  adestrar  os  camellos  para  se 
baixarem  a  receber  carga  e  crguereni-se  com  cila  , 
3Ir.  Brue  allirma  que  ao  camello  recem-uascido  os 
mouros  atam  logo  os  pés  por  baixo  da  barriga,  lan- 
çam-lhe  um  pano  sobre  o  lombo  e  o  carregam  com 
pedras  para  assim  acostumar-se  :  pelo  quo  respeita 
ao  peso  com  que  podem  os  camellos,  concordara  os 
viajantes  que  é  de  seis  a  oito  quiiitaes. 

O  alimento  destes  animacs  é  como  dissemos  pouT 
CO  dispendioso  :  uma  torta  de  farinha  de  cevada  , 
um  punhado  de  dátiles  [tâmaras]  ou  de  favas  basta 
para  manter  ura  camello  lodo  o  dia  ;  alem  de  que 
lios  campos  costumam  pastar  carças  e  abrolhos;  não 
havendo  matto  que  rejeitem.  Teem  dois  dentes  in- 
cisivos mui  fortes  na  queixada  superior ,  c  entre  os 
seis  molares  da  mesma  ha  um  de  forma  torcida  que 
pôde  considerar-sc  como  preza  ou  cnlmilho  ;  ua  quei- 
xada inferior  teem  outros  dois  dentes  incisivos  o  os 
molares  pontagudos  e  encurvados  :  deste  modo  s,"io 
armados  de  um  rijo  apparulho  para  cortar  ,  despe- 
daçar e  mastigar  qualquer  substancia  vegetal  por 
furte  que  seja  ,  ao  mesmo  tempo  que  ó  appropriado 
para  pascer  a  relva  c  comer  os  talos  mais  delicados 
das  plania.s ,  porque  tendo  o  beiço  superior  racha- 
do podem  agarrar  como  se  fosse  com  tenazes  os  re- 
bentões das  arvores  e  leva-los  á  boca  com  a  maior 
facilidade  : —  n'uma  palavra  ,  tanto  ao  camello  se 
dá  de  achar  feno  macio,  como  .silvas  e  carças,  tudo 
come  bem  ,  e  de  tudo  fica  satisfeito. 


.Bem  ookher  e  mal  fazer. 

(Meinoiias  insuL-iuas. } 

=  1331  = 

[Concluxão.  ] 
Mal  fazer.' 


.  ir,:-. 


■  "    ■•  .1  NSo  .«e  i;.Tuhain  Inila.t 

•■í  •-,'.  A's  barbas  eiicliijhis. 

'    ■-■■,:■      :.  '      ■  ...       .      ;,    ■,    iJi'/""- 

Eba  peia  volta  da  meia  noite.  Dormia  quasitudo 
nau  casas  de  Micer  Kstevam  Jísmeraldo  ,  o  marido 
de  I).  Águeda  ,  que  lá  pelo  reino  se  andava  ,  e  so- 
mente as  atalayas  vigiavam  ."uidadosas  ,  que  muito 
se  arreceiavam  do  que  poderia  acontecer,  e  tinham 
Uc  vellar   por  uma   luzida  companhia.  A  habitação 


do  genovez  dera  por  uma  noute  gasalhado  ao  ouvi- 
dor e  justiças  da  capitania,  cora  suas  guardas  e  of- 
ficiaes,  e  á  illustre  viuva  com  seus  servos  c  escu- 
deiros. 

Fora  o  caso  que  D.  Isabel ,  apesar  de  mui  cora- 
raovida  pelos  excessos  de  seu  primo ,  querendo  so- 
bretudo salvar  sua  fama  ,  c  desejando  guardar-se 
fiel  a  seu  marido  defunto ,  apenas  vira  o  ouvidor , 
a  ellc  e  a  sua  irmaã  se  entregara,  dizendo  que  da- 
qiiella  habitação  a  levassem  ;  e  assim  foi  feito  sem 
que  António  da  Camará  o  impedisse  ;  tanto  o  furor 
de  se  ver  desta  arte  de  novo  zombado  o  deixara 
petrificado.  —  Aquella  sua  moderarão  porem  não 
era  mais  que  uma  pausa  de  tormenta  ,  que  devia 
renovar-se  mais  furiosa. 

Bera  quizcra  D.  Isabel  ir  pernoitar  na  capitania, 
que  SI)  alli  se  julgava  segura;  mas  por  não  cami- 
nharem de  noute,  arriscaudo-se  assim  a  serem  mais 
facilmente  sorprehendidos  polo  int^itigavel  e  furioso 
cavalleiro  ,  força  lhes  foi  ficarem  nas  casas  de  sua 
irraaã  ,  também  como  as  outras  apparelhadas  para 
qualquer  inesperado  attaque. 

Era  pelas  horas  que  dissemos  ,  e  as  atalayas  vi- 
giavam bem  alerta.  Repousavam  todos  nas  casas,  e 
a  natureza  ,  placidamente  dormida  ,  apenas  se  sen- 
tia resfolgar  nos  suspirosos  rumores  da  noite.  Subi- 
tamente sussurro  longiquo  ,  mas  que  se  approxima- 
va  gradualmente,  feriu  a  attenrão  das  atalayas.  Em 
pouco,  todos  os  que  vestiam  armas,  se  achavam 
prestes  ;  e  era  tempo  ,  que  ás  portas  lhes  batia  já 
António  da  Camará  ,  com  fora  companhia  de  seus 
servidores  e  amigos  ,  com  muita  c  mui  guerreira 
gente  da  Ribeira-brava  ,  Ponta  do  .Sol  e  Calheta  , 
entrando  nisto  bom  numero  de  fidalgos  c  cavallei- 
ros  ,  bem  vistos  era  guerras  ,  trazendo  todos  copia 
de  mantimentos,  e  dois  falcões  pedreiros;  como  que 
se  destinava  a  tomar  exemplar  vingança  ,  derriban*- 
do  e  arrasando  quanto  lhes  fizesse  obstáculo. 

Tlcsperl.ira  com  todos  a  perseguida  senhora  ,  que 
nem  por  perseguida  era  menos  amada  ,  o  em  quan- 
to sua  irmaã  maldizia  o  causador  de  tantas  inquie- 
tações e  ta:. tos  males  ,  rnmo  os  que  de  certo  iam 
haver  ,  encaminhava-se  ella  ao  logar  mais  elevado 
das  casas  para  que  podesse  presenciar,  o  porventu- 
ra remediar,  o  que  nem  todos  os  lamentos  ou  pra- 
gas remediariam.  ISão  a  movia  ódio  contra  seu  pri- 
mo ,  que  já  cila  lhe  avaliara  a  alma  grande,  e  a  si 
mesma  se  achava  culpada,  pagando  sua  generosida- 
de com  tanta  ingratidão  ,  movia-a  o  desejo  de  evi- 
tar sangue  e  ruina. 

Quando  ella  chegou  ao  alto  já  o  combate  princi- 
piara. Retiniam  as  armas  insoHVidas.  Praguejavam 
horrendamente  os  combatentes  ,  vozeavam  e  amea- 
çavam. Era  uma  vista  do  inferno.  No  meio  da  gri- 
ta medonha  o  do  tremendo  revolver  ,  arremerar  c 
faiscar  das  armas,  troavam  os  dois  falcões  vomitando 
chanimas  e  fumo  ,  e  levando  o  estrago  ás  abaladas 
paredes  da  casa.  I).  Isabel  prostrou-sc  de  joelhos 
na  presença  desta  scena  espantosa.  Elrvou-se  men- 
talmente a  Deus,  e  arguiu-so  a  si  mesma  do  que 
via  e  ouvia.  Tremeu  pela  primeira  vez  e  ficou,  su- 
blime naquclle  momento  ,  assim  collocada  acima 
das  destruições  ,  que  já  não  valia  a  evitar  ,  orando 
como  anjo  de  paz  no  seio  dos  furores  da  tempesta- 
de. No  mais  ardente  da  peleja  viu-se  um  cavalleirn 
tomar  uma  hacha  antiga  das  mãos  de  um  peão,  en- 
caminhar-se  á  porta  principal  e  amiudar  os  gol|)os  . 
apesar  dos  pelouros  c  garruchas  que  sidirc  elle  cho- 
viam; com  braço  tão  valente  (|ue  a  porta  em  breve, 
estalando   e  saltando   de  seus  gonzos  ,   abriu  franca 


o  PANORAMA. 


67 


entrada.  Nada  parou  na  frenlc  do  temerário  peleja- 
dor. A  espada  substituíra  a  liaclia  ,  e  por  onde  a 
espada  passava  abria-se  diante  dollc  amplo  cami- 
nho, r-hamar-lhe-hicis  voluntariamente  um  como  an- 
jo exterminador.  Correu  assim  todas  as  casas  e  por 
fim  dcsappareceu  á  maior  parle  das  vistas. 

Entrevíra  D.  Isabel  o  aconlorido  ,  mas  tão  rápi- 
do se  passara  que  ainda  ella  orava  ,  e  ainda  cogi- 
tava em  quem  fosse  o  arrojado  combatente,  quando 
esle  lhe  appareceu  ao  lado  com  a  espada  ensan- 
guentada na  mão.  todo  o  asperlo,  os  olhos  e  a  fron- 
te indammados  de  guerreiro  ardor.  Não  era  o  no- 
cturno e  insensato  galan  ;  não  era  o  amante  ,  ora 
quebrantado  .  ora  furioso  :  era  vietorioso  campeão 
em  lide  perigosa  ;  era  a  melhor  ílúr  dos  cavallciros 
insulanos;  era  um  hnmcui  ,  quasi  um  heroe;  era 
António  da  Camará.  Ao  ver  a  linda  viuva  prostra- 
da ,  cora  os  olhos  húmidos  c  o  coração  nos  lábios, 
debaixo  daquellc  puro  e  recamado  céu ,  cm  tão 
pias  e  mclancholicas  horas,  aovc-la  superior  ao  crú 
espertacnlo  que  lhe  ellc  viera  dar,  sentiu  cahir-lhe 
todo  o  furor,  esqueceu  tudo  e  só  viu  que  felicida- 
de haveria  no  mundo  para  quem  possuísse  tão  en- 
cantadora crealura  de  Deus. — Tomou  a  espada  ven- 
cedora foi  depò-la  aos  pés  da  nobre  viuva ,  e  com 
branda  e  resignada  voz  ,  q\ie  ninguém  esperaria  de 
tão  rude  guerreiro,  assim  lhe  faltou,  um  tanto  quei- 
xoso. 

«Ei-la,  senhora  —  esta  que  a  todos  fez  dobrar  , 
ei-laque  só  perante  vós  se  dobra.  Anciava  porachar- 
vos  .  .  .  Corri  tudo  .  .  .  achci-vos  em  fim.  Assim  pa- 
gais .  formosa  prima  ,  quanto  por  vosso  respeito  se 
faz.  Dizei-mc  lambem  agora  ,  D.  Isabel ,  quem  jul- 
gais vós  que  possa  melhor  merecer  de  Deus  c  dos 
homens,  dos  que  dormem  para  sempre  nas  suas  ar- 
maduras de  ferro,  ou  dos  que  vellam  nos  caminhos 
da  vida  ;  quem,  a  que  por  eégo  caprixo  ccrcéa  tan- 
tas existências  ,  ou  a  que  apenas  com  uma  palavra 
sua  dá  paz  e  socego  a  quem  socego  e  paz  só  por 
ella  arrisca  e  barateia  —  dizei-o?  Vedes,  senhora, 
alé  aijui  não  passou  de  estrondo  e  roncarias  de  lon- 
ge ;  o  verdadeiro  combate  vai  agora  principiar. — 
Alli  nesse  terreiro  se  disputará  a  entrada.  Aèdes  , 
lá  começam  a  involver-se.  Embatem-se  como  ondas 
fervendo  ,    topam-se  ,  malham  ,  derrubam  ,  cabem  , 


tempo  ainda 
.   atalhai-os .  . 


n  Ala- 
tomai 


likisphemam  . .  .  É  tempo, 
Ihai-os  .  .  .  Deus  do  céu  . 
era  troca  a  rainha  vida. 

«A  vossa  vida  .  .  .?  '  >  - 

«A  minha  mão  .... 

«Enganais-me  como  até  aqui?  .  .  . 

«Não  ,  não  . .  .  este  momento  é  decisivo  e  solem- 
nc  .  .  .  Por  minha  mãi  e  meu  pai .  .  .  pelas  cinzas 
de  meu  marido  .  . .  por  esta  hora  e  pelo  céu  .... 

«  Basta  .... 

■<  Ide Jtcu  Deus  guiai-o  I  .  .  . » 

-     António  da  Cnmara  tinha  já  desapparecido. 

Minguem  se  lhe  oppoz  .  que  todos  estavam  em- 
penhados em  renhido  coiifliclo  disputando  a  entra- 
da. Chegado  ao  meio  dos  combatentes  a  sua  presen- 
ça dissipou  tudo  com  gesto  auctorisado  .  abriu  ca- 
minho por  entre  uns  e  outros.  .  .  .  Seguia-o  anciosa 
com  as  vistas  D.  Isabel  lá  do  seu  terrado.  O  que 
elle  disse  não  ouviu  cila,  mas  derramou  n  alma  em 
sinceras  graças  quando  viu  o  combate  cessar  eabra- 
çarcra-se  todos  em  boa  amisade.  —  Nunca  tamanho 
pesar  a  opprimíra  ! 


Alguns  mezcs  depois  o  nosso  antigo  conhecido,  o 


incorrigível  Fernão,  cclel)rava,  reunido  com  seus  ca- 
maradas, o  feliz  consorcio  de  sua  ama  a  muito  no- 
bre c  poderosa  senhora  D.  Isabel  de  Abreu,  com 
o  muito  alto  e  muito  honrado  cavallciro ,  António 
(ionçalves  da  Camará. 

«  A  saúde  de  nosso  amo  novo. —  dizia  clle  empinan- 
do um  venerando  cangirão  que  de  mão  em  mão  cor- 
ria —  «  E  de  quem  [accrescentava  com  certo  sor- 
riso de  vaidadej  e  de  quem  sempre  disse  que  nis- 
to viriam  a  parar  todos  aquelles  dares  e  tomares.» 
(' Bofe  —  continuou  depois  de  breve  pausa,  passan- 
rlo  para  diante  o  cangirão  e  levando  a  mão  á  face 
aonde  lhe  licára  duradoura  memoria  de  um  bom 
jilvaz,  que  um  escudeiro  da  Lombada  daserrad'A- 
gua  lhe  pregara  no  altaque  daS  casas  do  genovcz  — 
bofe  que  sempre  me  lembrarei  daquella  certa  noi- 
te .,  . 

«Esse  não  tínheis  vós  previsto,  Sr.  Fernão.»  — 
Observou  d'alli  maliciosamente  ura  dos  companhei- 
ros. 

«Se  não  previ  isso  ,  posso  ainda  prever  que  ten- 
des todos  os  merecimentos  ,  Sr.  chocarreiro  ,  para 
serdes  pendurado  d'um  sovereiro ,  exactamente  co- 
mo o  cacho  pende  da  parreira.» 

Uma  gargalhada  geral  respondeu  ao  violento  sar- 
casmo do  escudeiro  ,  que  ficou  roxo  do  vinho  c  de 
cholera  ,  e  que  apesar  do  tudo  se  conservou  sem- 
pre ,  sem  emenda  ,  dando  novas  e  calculando  pro- 
babilidades. 

A  cada  qual  sua  sinal 

[Silva  Leal  —  Júnior. J 


O  ARCO  DE  Lara. 


Na  estrada  que  vai  de  Barcelona  a  Tarragona  ,  a 
três  léguas  de  distancia  desta  ultima,  acha-se  o  ar- 
co de  Bara,  fragmento  dos  muitos  monumenios  que 
a  dominação  romana  erigiu  naquclla  parle  d'Hes- 
panlia  ,  sendo  talvez  a  comarca  tarragonense  onde 
o  povo  rei  ostentou  mais  a  sua  magniliccncia  e  po- 
der ,  não  só  por  ler  encontrado  fidelidade  e  af- 
feição  nos  habitantes,  como  porque  foi  essa  a  prin- 
cipal porta  de  sua  entrada  nas  Hespanlias.  e  o  and 
central  da  vasta  cadeia  que  imia  Koma  com  a  nos- 
sa península. 

Não  obstante  a  muila  deteriorarão  que  no  arco 
de  Bara  causaram  os  ultrajes  do  tempo  e  dos  ho- 
mens, pôde  affirmar-se  que  é  digno  de  altenção  , 
por  sua  formosura,  simplicidade  e  boas  proporções  : 
—  tão  pouco  tem  sido  o  cuidado  em  o  conservar 
que  a  parte  ,  que  diz  para  o  nascente  e  costa  ma- 
rítima ,  está  quasi  inteiramente  arruinada  ,  dcsap- 
pareceu toda  nma  columna  e  do  mesmo  modo  gran- 
de porção  da  imposta  em  todo  o  arco  :  a  inscripção 
já  em  tempo  do  celebre  antiquário  D.  António  An- 
gustin  eslava  tão  apagada  que  mal  se  podia  ler  ;  os 
capiteis  das  coluninas  quasi  que  se  não  distinguia 
a  que  ordem  pertenciam. 

A  obra  é  toda  de  cantaria  ;  tem  em  cada  frente 
sobre  o  sou  socco  quatro  columnas  da  ordem  co- 
rinthia  ,  duas  a  cada  lado  do  arco  :  na  cornija  lia- 
se  uma  inscripção  que  [segundo  a  interpreta  o  P.'' 
Flores,  no  tom.  23.°  da  Esp.  saqroda]  dizia  —  ter 
sido  cmisaçirado  por  tcstammlo  de  Lncin  JJcinio  Sii- 
ra ,  filho  de  Lúcio  da  tribu  Scrqia.  Este  Sura  foi 
Ires  vezes  cônsul  em  lempo  de  Trajano  durante  os 
annos  102,  104,  107;  pelo  que  o  monumento  con- 
ta obra  de  dezesetc  séculos  d'existencia.  Nada  se 
tem  alcançado  ao  certo  sobre  o  motivo  da  sua  crcc- 


C8 


O   PANORAMA. 


rão,  não  passando  de  conjecturas  mal  fundadas  quan- 
lo  a  sirnilhante  respeito  se  tem  dito;  igualmente  é 
ignorada  a  etvraologia  do  nome  de  Bara. 


AKCO  SE  BARA. 


Os  maus,  como  os  bons,  tem  sempre  por  fira  o  seu 
maior  bera  :  mas  os  primeiros  esperam  consegui-lo 
mais  brevemente  com  damno  dos  outros ;  os  segun- 
dos cora  segurança  e  sem  risco,  zelando  e  promo- 
vendo o  bera  de  todos. 


ITBSHOIsO©!^. 


UMA  GRANDE  VIRTUDE. 

OiTANDo  a  intclligencia  e  a  perseverança;  estes  dois 
inslrunienliis  das  maiores  o  mais  formosas  obras  hu- 
manas, meneados  pelo  individuo  que  em  grau  emi- 
nente os  possiie  ,  produzem  o  famoso  capitão  ,  o  le- 
gislador illustre  ,  ou  o  grande  homem  da  arte  ou 
da  sciencia  ,  e  quando  esse  individuo  depois  de 
preencher  a  sua  missão  singular  na  terra  vai  repou- 
sar das  lidas  humanas  no  logar  onde  só  ha  paz  e 
dcscanço  —  as  soledades  do  sepulchro  ;  a  historia 
rcgistn-lhe  o  nome  nas  suas  paginas  brilhantes  ,  e 
os  ânimos  generosos  que  licam  apoz  elle  no  dester- 
ro da  vida,  e  que  vão  continuando  o  sempre  pro- 
gressivo e  sempre  incompleto  edilUio  do  idéas  e  fa- 
ctos', chamado  civilisacão  ,  saúdam  este  nome,  cc- 
Icbram-no,  repetem-no,  depõem  ante  clic  todos  cs- 


'  ses  pobres  tributos  de  gloria  ,  qne  o  presente  paga 
pontualraenlc  ao  passado  para  o  haver  do  futuro. 
O  homem  dislincto  ,  no  termo  da  sua  carreira  ,  le- 
gando á  terra  o  pó  que  recebeu  da  terra  para  se 
encorporar  no  immenso  vulto  do  universo  ,  e  a  al- 
ma á  eternidade  para  que  a  abrigue  no  seio  da  in- 
telligencia  suprema  ,  sabe  que  deixa  uma  palavra  , 
um  eccho  era  meio  da  sociedade  e  da  vida  ,  e  que 
este  perpetuo  soar  de  um  nome  é  repercutido  peren- 
nc  pelo  agradecimento  ,  pela  admiração  ,  e  até  pela 
saudade  dos  seus  naturaes  ,  e  ás  vezes  do  gencro- 
humano.  E  esta  é  a  sua  recompensa  completa  :  foi 
esse  fnrao  da  gloria  a  sua  causa  final  :  n'esse  pen- 
samento ,  phantastico ,  c  por  isso  contínuo  e  dura- 
douro ,  está  a  explicação  do  seu  padecer  e  sofTrer  , 
c  hictar  e  perseverar  nos  designios  e  obras  da  vida 
inteira.  Elle  poz  na  balança  do  alvedrio  d'um  lado 
a  reputação,  do  outro  tudo  o  que  custa  a  gloria  ,  e 
achou  que  esta  era  de  mór  valia.  Porventura  o  cal- 
culo foi  errado  ,  ou  foi  em  si  mesmo  um  erro.  Que 
importa? —  O  que  o  fez  julga-se  recompensado, 
morrendo  na  esperança  da  imraortalidade. 

A  imprensa  é  hoje  entre  os  meios  de  cumprir 
essa  espécie  de  contracto  do  individuo  com  a  so- 
ciedade ,  e  da  geração  que  passa  cora  as  que  hão- 
de  vir,  o  principal  ,  ou  antes  quasi  o  único.  Esten- 
dendo a  sua  magistratura  sobre  todas  as  formas  de 
existir  em  que  se  revela  o  homem  extraordinário, 
e  mais  robusta  que  a  pyraraide  de  Chéops  ,  sempre 
em  pé  no  meio  dos  outros  monumentos  que  os  sécu- 
los derribam  ou  consomem,  a  imprensa  pôde  dizer: 
—  só  eu  sei  o  segredo  de  perpetuar  a  gloria. 

Todavia  ,  como  as  moles  de  pedra  dos  Pharaós 
esse  foco  dos  raios  mais  brilhantes  e  puros  da  in- 
telligencia,  não  transmitte  passivamente  a  mensa- 
gem dirigida  á  posteridade.  Éella  —  a  imprensa  — 
quem  julga  ,  e  quem  formula  o  julgamento  ;  ella  , 
rainha  do  mundo ,  porque  o  é  das  opiniões.  Dis- 
tribuidora do  renome ,  muitas  vezes  o  rcfusa  ao 
qup  mais  a  teve  em  mira  ,  e  conccde-o  áquelle  que 
actuando  energicamente  na  sociedade  ou  nos  enten- 
dimentos—  nos  factos  ou  nas  idéas,  parecia  menos- 
cabar os  vii.douros  ,  e  viver  só  para  o  presente. 

E  porque?  Porque  nos  seus  juizos  a  imprensa  af- 
fere  os  homens  que  foram  ,  por  dois  lypos  capitães 
e  exclusivos  —  o  génio,  ou  a  virtude:  sem  isto,  a 
severa  dominadora  das  gentes  não  tem  coroas  para 
lançar  sobre  os  túmulos;  mas  só,  para  os  cobrir, 
o  amplo  e  espesso  manto  do  esquecimento  ,  quando 
não  ata  a  elles  a  triste  celebridade  das  maldições  e 
injurias. 

Mas  sendo  a  virtude  ou  o  génio ,  isto  é  a  força 
moral  ou  a  intellectual,  a  regra  para  avaliar  os  ho- 
mens ,  a  imprensa  ,  se  comraunimcnte  não  é  injusta 
nas  suas  decisões  derradeiras,  é  ncllas  incontesta- 
velmente incompleta. 

Incompleta,  |iorque  não  regista  senão  as  lembran- 
ças daquelles  que  viveram  para  o  mundo  ;  ([uc  im- 
|)rimiram  na  sociedade  a  sua  energia  individual  , 
e  que  ainda  nas  vaidades  da  existência  recolheram 
])arte  do  premio  que  lhes  assegurava  o  futuro. 

Com  tudo  ha  uma  virtude  modesta  ,  traiiquilla  , 
e  silenciosa,  filha  do  christianismo  e  sódelle  —  que 
passa  na  terra  desconhecida  das  turbas  ;  que  não 
deixa  vestígios  nas  tradições  humanas,  e  a  que  a 
imprensa  devia  tirar  da  obscuridade  a  que  ella  mes- 
ma se  rondemna  ;  porque  é  a  mais  enérgica,  amais 
pura  ,  a  m.iis  sublime  de  todas  as  que  exclusiva- 
menle  pertencem  ao  homem  do  Evangelho,  ao  ho- 
mem dos  tempos  modernos. 


o  PANORAMA. 


Cf) 


Esla  virludp  (•  a  da  ABNEGAÇÃO. 

Scri  nos  nossos  dias,  c  no  scpiikliro  de  um  com- 
palricio  nosso,  sobre  cujos  reslos  ainda  está  revol- 
ta a  terra  que  os  cobriu  ,  onde  iremos  li\iscar  um 
dos  mais  formosos  cxempbis  desse  esforço  mural  , 
quasi  incrivcl,  que  sacrifica  ri  bnnestidade  e  ;i  cons- 
ciência todas  as  ambições  e  esperanças ,  sem  pro- 
curar sequer  que  a  posteridade  diga  —  aquellc  foi 
um  homem  liom-sto.  —  E  ainda  mal  para  nus  que 
nesta  escolha  cumprimos  também  um  dever  de  gra- 
tidão ,  e  de  sincera  amizade. 

Falíamos  do  Sr.  Luiz  Duprat ,  um  dos  ornamen- 
tos do  foro  portuguez  ,  fallecido  pouco  ha,  cora  ge- 
ral sentimento  dos  seus  numerosos  amigos,  e  que 
nenhum  sorriso  d'odio  acompanhou  amurada  do  vil- 
timo  repouso,  porque  a  bondade  do  seu  curarão  lhe 
conciliava  o  atfecto  de  todos  os  homens  probos  ,  e 
a  severidade  do  seu  procedimento  obrigava  os  maus 
á  veneração  ,  e  constrangia-os  ao  silencio. 

Hoje  que  ,  infelizmente  ,  no  vigor  da  idade  ,  elle 
trocou  o  desterro  das  provas  pela  pátria  das  recom- 
pensas ,  é  até  certo  ponto  um  lenitivo  para  a  nossa 
magoa  o  ter  de  recordar  a  sua  memoria  para  nos 
servir  de  argumento  ao  que  intentámos  provar  — 
que  a  abnegação  recusando  a  gloria  ,  é  a  virtude 
mais  digna  de  ser  olTcrecida  como  modelo  e  exem- 
plo aos  olhos  da  posteridade.  Por  dois  modos  é  pa- 
ra nós  uma  obrigação  o  faze-lo. 

O  Panorama  deve  em  grande  parte  a  sua  existên- 
cia ao  Sr.  Duprat  ;  porque  foi  elle  um  dos  funda- 
dores mais  iniluentes  e  activos  da  Sociedade  que 
dirige  a  publicação  deste  jornal.  Com  a  profunda 
intelligencia  e  com  o  amor  do  bem  publico  que  o 
adornavam,  conhecera  aquelle  cidadão  virtuoso  o 
proveito  que  a  illustração  e  moralidade  podia  tirar 
de  similhante  empreza.  Esperava  delia  resultasse 
beneficio  aos  seus  naturaes  ;  e  com  a  tenacidade  no 
bem  ,  que  era  a  qualidade  mais  eminente  do  seu 
caracter ,  trabalhou  incansável  para  ver  rcalisado 
um  pensamento  que  não  o  fora  seu,  mas  a  que  elle 
de  coração  íe  associara.  O  resultado  coroou  suas  di- 
ligencias, e  a  sociedade  mostrou-se-lhe  grata.  Até 
o  fim  dos  seus  dias  o  Sr.  Duprat  foi  o  vice-presi- 
dente escolhido  constantemente  por  ella. 

Seremos  nós,  portanto,  agradecidos  também  ;  mas 
se-lo-hemus  ,  sem  mérito  da  nossa  parte.  Obrigados 
a  buscar  na  vida  de  um  homem  a  demonstração  da 
idéa  de  moralidade  e  justiça  que  nos  occorrèra  — 
a  de  recommendar  a  mais  modesta  e  mais  bella  das 
virtudes  á  estimação  e  respeito  dos  homens  ,  nenhum 
typo  encontrámos  que  melhor  satisfizesse  todas  as 
cundições  do  nosso  pensamento  ,  que  melhor  resu- 
misse tudo  o  que  ha  grandioso  na  abnegação  ,  do 
que  as  phases  principaes  da  vida  do  Sr.  Duprat. 

E  será  esta  uma  biographia  composta  de  datas  , 
e  dos  successos  communs  de  existência  ordinária? 
Não  ,  porque  em  alvo  diflercnte  pozémos  nós  a  mi- 
ra. Reconheccmo-nos  incompetentes  e  inhabeis  pa- 
ra alevantar  as  balisas  da  estrada  que  seguiu  aquel- 
lc que  hoje  é  cadáver.  Não  são  os  factos  da  sua  vi- 
da ,  mas  a  significação  moral  e  intima  dellcs  que 
precisamos  de  avaliar:  é  isto  o  que  importa  ao  nos- 
so intento;  é  talvez  ahi  que  se  ha-de  buscar  o  titu- 
lo da  sua  gloria  —  da  gloria  como  a  deve  entender 
a  civilisaçãu  e  este  século,  que  estampa  a  ignomi- 
nia na  fronte  dos  Domingos  de  Gusmão  e  dus  Gre- 
gorius  sétimos,  e  saúda  os  nomes  dos  Fenclons,  dos 
Carlos  Borromeus  e  dos  Caetanos  Brandões,  sem  cu- 
rar como  pensaram  dellcs  os  homens  que  os  viram 
morrer. 


Kascido  nesta   classe  que  .is  circumslancias  da 
presente  epocha  fizeram   a  mais  forte   de  todas — a 
classe  media;    dotado   de  alta  energia   c  de  robus- 
tíssima intelligencia,  o  Sr.  Duprat  se  destinara  em 
verdes  annus  á  vida  do  comraercio.  A  educação  que 
recebera  própria  para  este  género  de  vida,  fui,  po- 
rem, a  causa  de  a  aliandonar.  No  lirasil,  aonde  pas- 
sara   mui    moço ,   o   ministro   de    Dinamarca  ,   Bor- 
go  de  Primo,   o  fer  como  seu  secretario  particular, 
por  haver  encontrado  nelle  ,   alem   de  lodos   os  do- 
tes moraes  c  intellcctuaes  ,   necessários  para  o  bom 
desempenho  daquelle  mister  ,   o  que  era  raro   e  de 
estimar  nos  seus  poucos  annus ,   um  conhecimento 
profundo   das  duas  línguas  franceza  e  ingleza  ,   que 
o  Sr.  Duprat    fallava   no  extremo  da  perfeição.    Se 
os  serviços   feitos   por  elle  naquella  Legação  foram 
valiosos;    se  a  sua  aptidão  para  ter  parle  em  maté- 
rias diplomáticas  se  demonstrou  ,  e  se  finalmente  a 
sua    probidade   sahiu  illesa   de  uma  situação  arris- 
cada como  é  a  de  secretario  particular  de  um  em- 
baixador ,    cousas   são  que  basta  um  facto  para   as 
fazer  sentir.  Não  só   o  ministro  ,    que  servira  ,    tra- 
balhou com  afimco  para  fazer  entrar  o  Sr.  Duprat  , 
de  quem   se  tornara  intimo  amigo  ,   na  carreira   da 
diplomacia   portugueza  ,   mas  lambem  o  nosso  go- 
verno  entendeu   que  devia  porventura  ir  alem   dos 
desejos   de  Borgo   de  Primo  ;    nomcando-o   logo  se- 
cretario da   Legação  dos  Estados-Unidos ,   para  a 
qual ,  por  sua  importância  ,   fora   escolhido  o  Sr. 
Silvestre  Pinheiro  ,   sugeito  ,   cuja  reputação  come- 
çava a  ser  já  na  pátria   o  que  dentro  de  alguns  an- 
nos  tinha  de  ser  na  Europa  —  uma  reputação  gi- 
gante. 

Aias  então  chegara  para  Portugal  uma  nova  era  : 
era  que  só  os  vindouros  ,  talvez  ,  podem  desassom- 
bradamente julgar.  A  velha  monarchia  absoluta  de 
D.  João  2."  tinha  cumprido  os  seus  destinos  so- 
ciacs :  devia  ceder  o  lugar  á  monarchia  mixta  que 
tinha  e  tem  a  preencher  uma  grave  missão  de  pro- 
gresso. Em  1820  as  idéas,  que  havia  muito  iam  de- 
vorando as  entranhas  da  sociedade  antiga  ,  revela- 
ram-se  n'um  facto  :  este  facto  representava  o  futu- 
ro :  era  o  primeiro  pensamento  de  uma  serie  im- 
mensa  de  illaçues ;  e  estas  illações  resumiam  todos 
os  desejos  e  esperanças  dos  homens  ,  que  amavam 
de  coração  o  seu  paiz  natal.  Se  uma  lógica  má  não 
aproveitou  como  cumpria  um  postulado  verdadeiro 
e  fecundo  ,  questão  é  que  não  vem  ao  nosso  inten- 
to ,  e  que  viesse  ,  nem  este  logar  nem  a  natureza 
deste  jornal  nos  consentira  o  tracla-la. 

Aquelle  acontecimento  estrondoso  encontrou  o  Sr. 
Duprat  nessa  tão  curta  e  passageira  epocha  da  vida 
em  que  o  entendimento  dos  homens  de  superior  es- 
fera já  tem  adquirido  os  hábitos  do  grave  e  profun- 
do cogitar,  ao  mesmo  tempo  que  ainda  o  seu  co- 
ração conserva  as  crenças  vivas  ,  as  paixões  arden- 
tes e  as  illusões  risonhas  da  primeira  juventude.  E 
a  epocha  das  grandes  ousadias,  du  enthusiasmo  , 
das  exaggeraçues  ,  de  tudo  quanto  ha  poético  ,  su- 
blime e  terrivcl  nas  almas  fortes  c  generosas.  Lan- 
çai uma  destas  almas  de  fogo  no  meio  de  geração 
que  se  agite  em  volta  de  algum  desses  insondáveis 
pensamentos  de  transição,  que  de  séculos  a  sécu- 
los renovam  a  Índole  e  o  aspecto  das  grandes  famí- 
lias humanas  chamadas  nações,  e  dar-vns-heraos  os 
desvarios  ,  os  erros  falaes  ,  as  intolerâncias  violen- 
tas ,  se  quizerdes  ;  mas  lambem  as  virtudes  mais 
desinteressadas  ,  mais  nobres  ,  mais  bellas  ,  as  con- 
cepções mais  enérgicas,  mais  úteis,  mais  prolíficas. 
Aquelle  que  se  gaba  de  haver  passado  alravcz  des- 


70 


O  PANORAMA. 


sas  convulsões  espantosas  dos  povos ,  os  annos  que 
decorrem  dos  dezoito  aos  vinte  e  cinco,  alheio  ás  lu- 
ctas  das  idóas,  e  espectador  indifferentc  de  um  due- 
lo ,  que  sempre  é  de  morte  ,  entre  o  passado  e  o 
futuro: —  esse  tal  lastimai-o  !  Mal  sabe  o  desgra- 
çado que  se  gloria  de  ter  desmentido  a  grandeza 
moral  c  intellectiial  do  ser  humano  ;  que  se  gloria 
da  estupidez  e  da  mediocridade.  Os  seus  destinos 
(oram  nascer,  vegetar,  c  morrer:  , foram  os  desti- 
nos da  pura  animalidade. 

O  Sr.  Duprat  abraçou  as  doutrinas  que  preexis- 
tiam á  rcvoluçrio  ,  mas  que  ella  convertera  em  fa- 
rto material,  cabraçou-as  com  sinceridade  e  amor  : 
Tnediu-as  pelos  seus  resultados  naturaes.  Era  um 
proceder  grande  e  honesto  ,  tanto  como  o  fora  se 
houvera  seguido  as  contrarias  com  a  mesma  pureza 
d'intenções  ,  cora  o  mesmo  fervor  de  crença.  Nas 
opiniões  politicas  só  é  deshonrosa  a  indilferenca  : 
porque  é  vil  e  covarde  ;  só  é  abominável  o  calcu- 
lar o  proveito  que  se  pôde  tirar  das  desgraças  pu- 
blicas ,  porque  ahi  ha  um  egoísmo  atroz.  A  vida  , 
porem  ,  inteira  do  Sr.  Duprat  provou  que  elle  não 
compreheiídèra  jamais  o  que  é  ser  egoista  e  co- 
varde. 

Ninguém  ignora  que  os  acontecimentos  de  1820 
c  os  que  se  lhes  seguiram  foram  o  preludio  doloro- 
so de  mais  de  vinte  annos  de  dissensões  intestinas. 
Nellas  temos  sido  todos  sacrificadores  ou  victimas  : 
quasi  todos  uma  e  outra  cousa.  Podéramos  nós, 
emfim  ,  perdoar  uns  aos  outros  sobre  as  cinzas  dos 
niartyres  com  que  mutuamente  havemos  enriqueci- 
do o  larario  de  todos  os  bandos  políticos!  Essas 
dissensões ,  logo  no  começo  tempestuosas  .  arroja- 
ram para  a  Europa  o  Sr.  Duprat ,  que  na  edade  do 
22  annos  aportou  á  terra  que  lhe  dera  o  berço  —  a 
Lisboa  —  onde  nascera  em  ISOl. 

O  futuro  devia  antolhar-se-lhe  então  brilhante 
em  Portugal  —  Portugal  dizemos,  porque  o  Brasil 
deixava  de  ser  uma  província  nossa.  Os  talentos  — 
o  vigor  da  edade  —  uma  carreira  de  honras  e  es- 
plendor começada  na  primeira  juventude  e  cm  car- 
go por  onde  muitos  a  acabam  na  derradeira  velhi- 
ce—  protegido  ciricazmente  no  paço  por  um  valido 
do  monarcha  ,  e  conhecido  no  mundo  politico  ,  on- 
de se  preparava  a  grande  lide  dos  princípios  ,  co- 
ino  um  dos  caracteres  mais  enérgicos  ,  e  severos  , 
Iodos  os  sonhos  daquclla  aurora  esplendida  de  vida 
publica  deviam  ser  dourados  para  o  Sr.  Duprat. 
No  seu  coração  ardente  tumultuavam  forçosamente 
a  ambição  e  a  sede  da  gloria  ,  ao  passo  que  ,  por 
fcrto  ,  a  consciência  liic  dizia  que  as  suas  esperan- 
ças eram  legitimas  ,  c  a  rasão  que  eram  fundadas. 
Em  qualquer  dos  dois  campos  do  oppostas  doutri- 
nas elle  podia  buscar  uma  situação  distincta,  c  por 
esta  em  breves  annos  chegar  á  opulência  c  ao  po- 
der :  n'um  delles ,  ainda  tão  moço  ,  seria  recebido 
como  veterano  experimentado  ;  os  padecimentos  c 
riscos  a  que  se  evpozera  pelas."  opiniões  progressi- 
vas davam-lhe  esse  direito  :  no  outro  ,  talvez  menos 
rico  de  capacidades  ,  a  sua  acccssão  seria  de  gran- 
de vulto,  iíis  o  lisongeiro  aspecto  que  se  lhe  offe- 
recia  para  satisfazer  as  paixões  mais  cegas  e  vio- 
lentas do  coração  humano  ,  c  muito  mais  violentas 
c  cegas  naquelle  que  sabe  o  que  pôde  e  vale. 

l"oi  neste  momento  que  o  Sr.  Duprat  —  o  mance- 
bo de  \inte  c  dois  annos  —  resolveu  votar-se  ao  es- 
tudo, não  para  obter  pelas  lettras  ,  com  tempo  e 
com  custo,  a  gloria  e  a  preeminência  publica,  que 
São  fáceis  se  lhe  ofTercciam  na  vida  politica,  mas  pa- 
ra seguir  modestamente  a  carreira  comparativamen- 


te obscura  de  um  simples  cidadão  ;  para  ser  modcl- 
lo  do  bom  pae  de  famílias ,  do  homem  social  como 
o  Christíanismo  c  a  civilisação  o  requerem.  Dir-se- 
hia  que  prevendo  a  dissolução  de  costumes  ,  que 
as  proccllas  civis  haviam  de  gerar  ,  previra  tam- 
bém que  dentro  de  vinte  annos  seria  maior  e  mais 
rara  a  grandeza  moral  da  probidade  singela,  que  a 
da  energia  politica  ,  ou  a  do  engenho  extraordiná- 
rio e  da  vastidão  da  sciencia.  Aquella  alma  pura 
abnegou  de  paixões  e  esperanças  ;  porque  viu  que 
a  abnegação  era  a  primeira  virtude  nesta  cpocha 
essencialmente  alTeiçoada  por  egoísmo  hediondo, 
por  orgnlho  insensato,  e  por  desmedida  cubica. 

Mudanças  ha  destas  que,  bem  longe  de  serem  ma- 
ravilhosas ,  não  revelam  naquellcs  em  que  se  ope- 
ram senão  o  desalento  ante  as  dilficuldades  da  am- 
bição. Refogem  essas  almas  do  aspecto  do  futuro  ; 
porque  as  aterra  o  preço  de  trabalhos  ,  perigos  ,  e 
agonias  porque  se  costuma  comprar  a  celebridade. 
Semelhantes  espíritos  ou  se  enganavam  acerca  dos 
seus  destinos  ,  ou  sentiram  que  as  suas  forças  não 
eram  eguaes  a  estes.  Das  circumstancías  ,  porem  , 
que  notámos  na  juventude  do  Sr.  Duprat,  e  do  que 
elle  foi  depois  na  sociedade  civil  ,  se  vè  ,  que  as 
causas  do  novo  theor  de  vida  qnc  seguiu  ,  foram 
alheias  —  contrarias  até  —  a  todas  as  considerações 
externas  ;  c  unicamente  nascidas  das  nobres  inspi- 
rações da  própria  consciência. 

Só  a  consciência  ;  só  este  senso  intimo  e  myste- 
rioso ,  que  nos  caracteres  robustos  c  como  um  raio 
de  luz  divina  ,  porque  sem  violência  impera  abso- 
luto ,  e  sem  raciocínios  subjuga  o  entendimento ; 
que  trahe  mil  vezes  o  criminoso,  e  outras  tantas 
salva  de  si  mesmo  o  homem  honesto  ;  só  este  ver- 
bo interior  .  que  deu  á  phílosophía  um  Sócrates  ,  e 
ao  Cbristí.mismo  milhões  de  martyres,  pôde  produ- 
zir a  verdadeira  abnegação  ;  porque  esta  não  exis- 
te onde  não  ha  lucta  entre  o  que  se  crê  ou  um  de- 
ver ou  uma  acção  sublime ,  e  os  grandes  interesses 
materiaes  ou  as  paixões  mais  indomáveis  e  ar- 
dentes. 

Essa  revolução  completa  ,  não  tanto  nos  hábitos 
exteriores  ,  como  nas  crenças  ,  nas  esperanças  ,  nos 
desejos  ;  esse  abandonar,  não  tanto  a  realidade,  co- 
mo o  que  vale  mais  do  que  ella  ,  a  ventura  c  glo- 
ria sonhada  no  porvir  ,  postoque  voluntário  ,  é  um 
combate  semelhante  ao  de  .lacob  e  do  anjo,  entre 
um  pensamento  de  Deus  e  os  affectos  do  mundo. 
Vertcm-se  ahi  sangue  e  lagrymas ;  porque  os  verte 
o  coração  onde  se  pelejou  essa  terrível  batalha. 
Quando  porem  o  espirito  do  Senhor  tríumpha  .  não 
tarda  a  descer  do  céu  o  bálsamo  das  consolações. 

Esta  victoria  de  uma  idéa  pura  e  santa  custou 
por  certo  ao  Sr.  Duprat  o  que  ellas  custam  na  sua 
edade  ,  n  nas  suas  circumstancias.  Mas  não  foi  só 
isso.  Olhando  cm  roda  de  si,  buscou  uma  prolissão 
accommodada  para  viver  em  decente  mediania  ,  c 
em  que  podesse  vir  a  ser  útil  a  si,  aos  seus,  e  á 
sociedade.  Qual  mais  formosa  que  a  de  advogado? 
.\hi  havia  o  salvar  iimocenles  ;'  o  remir  de  miséria 
muitas  famílias;  o  prestar  ao  fraco  a  força  da  in- 
telligencia  c  da  sciencia  contra  o  poderoso;  o  am- 
parar a  viuva  .  o  orphão  ,  e  o  desvalido  :  o  levar  o 
lirado  severo  da  justiça  aos  ouvidos  da  iuiqtiidade. 
Era  a  profissão  mais  adequada  .í  rectidão  das  suas 
intenções,  ás  tendências  do  seu  espirito,  malsoflri- 
do  contra  todo  o  género  de  corrupções  e  lyrannias. 
Escolhcu-a  pois.  Passados  dez  ou  doze  annos  o  Sr. 
Duprat  era  ura  dos  mais  dístinctos  advogados  da 
corte. 


o   PANORAMA. 


71 


Costumam  os  homens  celebrar  a  memoria  do  fa- 
moso capitão  ,  que  principianilo  a  sua  carreira  por 
simples  soldado,  c  arriscando  a  \ida  era  com  bata- 
lhas, se  habituou  a  alTrontar  a  morte,  e  assim  che- 
gou a  empunhar  o  bastão  domando,  clalvez  o  sce- 
ptro  de  rei.  Como  se  islo  não  bastara,  a  historia 
iransmittc-lhe  o  nome  á  i)osteridade  para  exemplo 
de  vontade  robusta  ,  c  de  esforço  indomável.  L  to- 
davia que  fez  ellc?  CoUigiu  cem  vezes  em  vinte 
annos  toda  a  energia ,  toda  a  intclligencia  que  pos- 
suía ;  em  vinte  annos  cem  vezes  subjugou  os  terro- 
res do  sepulchro ,  para  no  fim  cingir  uma  coroa,  e 
escrever  o  seu  nome  para  a  perpetuidade  nos  an- 
naes  do  geuero-humano.  Depois  repousou.  Alguma 
■vez  ,  á  porta  de  seus  paços  esplendidos  ,  mendigo 
coberto  do  cicatrizes  e  de  farrapos  viria  aqueccr-se 
aos  raios  do  sol,  que  o  pai  celeste  envia  ao  podero- 
so e  ao  humilde.  Quem  sabe  se  era  veterano  obs- 
curo que  verlòra  o  seu  sangue  nas  cem  batalhas  do 
homem  illustre?  Quem  sabe  se  entre  um  c  outro 
havia  tão  somente  o  que  chamámos  fortuna  ,  c  que 
a  pliilosophia  o  o  christianisrao  chamara  providen- 
cia de  Deus?  Tahez  esse  nome  ,  que  não  morrerá  , 
significasse  apenas  o  cumprimento  de  um  decreto 
de  cima.  E  todavia  a  sua  herança,  alem  do  sepul- 
chro ,  é  a  immortalidadel 

Não  assim  a  abnegação. 

Vede  o  nosso  mancebo.  A  mediania  converteu-se 
em  alvo  de  todos  os  seus  intentos.  Lá  não  ha  co- 
roas nem  gloria  :  no  termo  da  vida  não  se  enxerga 
sobre  o  féretro,  mais  que  lagrimas  de  poucos  e  leaes 
amigos,  c  daquelles  que  a  gratidão  alli  convoca. 
Para  ella  a  campa  nãotemeccho;  porque,  em  pou- 
cos annos  ,  os  que  choram  o  extincto  terão  passado 
também.  Depois  a  herança  deslc  na  terra  será  ape- 
nas uma  —  o  silencio  profundo  do  esquecimento. 

iías  no  leito  da  morte  ha  o  esperar  do  christão  : 
alem  do  sepulchro  as  recompensas  de  Deus. 

É  o  premio  da  abnegação.  Sem  o  chrislianismo 
a  mais  formosa  das  virtudes  fora  monstruosidade 
impossível.  É  preciso  cvér  na  philosophia  do  Evan- 
gelho para  comprehender  como  a  inlelligencia  emi- 
nente recusa  as  grandezas ,  o  orgulho  ,  e  o  pobre 
renome  humano,  para  se  abraçar  com  ella. 

E  as  mais  das  vezes  a  cruz  é  pesada  :  —  coberta 
d'espinhos ,  longa  c  íngreme  a  senda  que  leva  ao 
Gólgotha. 

Onerosa  foi  aquella  ,  rude  e  dilatada  esta  para  o 
Sr.  Duprat.  Xa  profissão  que  escolhera  cumpria-lbe 
começar  pelos  chamados  rudimentos  das  leltras. 
Essa  mente  altiva  ,  habituada  ao  meditar  ;  essa  ra- 
são  que  se  ali.mentava  de  graves  cogitações  sobre  a 
sociedade  ,  e  sobre  si  próprio  ,  vergou-se  a  estudar 
as  palavras  de  uma  lingua  morta ,  e  passou  pelas 
forcas  caudinas  das  puerilidades  dos  rhetoricos. 
Aquelle  que  na  voz  da  consciência  tinha  a  prova 
da  immortalidade  do  espirito,  pacientemente  ouviu 
o  bom  de  ura  professor  provar-lha  com  raciocínios  ; 
e  o  homem  da  abnegação  decorou  sem  sorrir  as  re- 
gras d'Heineccio  para  ser  virtuoso.  A'encidas  estas 
dilliculdades  ,  que  talvez  para  o  génio  siso  mais  ár- 
duas que  para  a  mediocridade  ,  o  .Sr.  Duprat  en- 
cetou e  concluiu  o  seu  curso  jurídico. 

Entretanto  os  ódios  políticos ,  accumulados  por 
largos  dias  ,  tinham  rebentado  como  prccelias  en- 
contradas sobre  a  terra  da  pátria.  Desde  as  sauda- 
des do  desterro  até  o  estorcer  no  patíbulo  :  desde 
os  amplos  fratricídios  das  pelejas  civis,  onde  os  ais 
e  queixumes  dos  feridos  e  moribundos  soavam  n*u- 
ma  só  linguagem  ,  até  a  punhalada  traiçoeira  de 


vingança  implacável ;  desde  as  epidemias  morlife- 
ras  até  os  trances  insoIVriveís  da  fome,  Deus  derra- 
mou sobre  nossas  cabeças,  durante  seis  annos,  to- 
das as  dores  c  agonias  contidas  nos  thesouros  da 
sua  cólera.  Quando,  erafirn,  respirámos  um  dia  ;  ou, 
mais  exactamente  ,  quando  o  partido  que  primeiro 
começara  a  padecer  pode  asscnlar-sc,  vencedor  mu- 
tilado ,  junto  ao  cadáver  de  seu  adversário  ,  a  re- 
pousar sobre  um  montão  de  minas  —  a  sociedade 
antiga  desapparecèra  debaixo  destas  ,  e  os  elemen- 
tos não  só  do  força  mas  d'existencia  da  velha  mo- 
narchia,  como  a  definira  o  século  16.°,  haviam  pe- 
recido. No  logar  delia  estavam  apenas  o  pensamen- 
to da  sociedade  moderna  ,  os  gladiadores  arquejan- 
do na  arena  ,  e  o  paíz  devastado.  Era  uma  epocha 
a  ponto  para  despertar  todas  as  ambições  —  mais 
que  nenhumas,  as  nobres  e  generosas.  Derribadas  as 
tradições  hierarchicas,  o  poder  era  uma  conquista  ; 
o  gcnio  e  a  energia  as  armas  para  o  dispular.  Hus- 
ca-lo  nessas  circumstancias,  e  com  intenções  puras, 
fora  grande  e  forte  ;  porque  as  magistraturas  poli- 
ticas debaixo  das  condições  d'honcstidade  não  se- 
riam um  legado  precioso  para  a  cubica  ,  mas  ura 
variado  marlyrio  para  o  amor  da  pátria. 

Concebida  assim  ,  a  ambição  ,  depois  de  termi- 
nada a  guerra  civil  em  Í834 ,  podia  ser  uma  vir- 
tude havendo,  como  então  havia  no  Sr.  Duprat,  a 
consciência  da  superioridade  intellectual  ,  de  pro- 
fundo saber  adquirido  por  largos  estudos,  e  de  uma 
severidade  de  princípios  moraes  longamente  prosa- 
da. Por  certo,  grandes  combates  interiores  teve  el- 
le  de  vencer  contra  si  mesmo  naquella  epocha  de 
esperanças  :  mas  o  pensamento,  que  o  guiara  c  sal- 
vara no  meio  dos  cataclysmos  políticos  ,  a  sua  tão 
querida  e  buscada  mediania  —  esse  viver  exclusivo 
para  os  santos  affectos  de  família  ,  para  ser  amado 
pelos  beneficios  feitos  sem  ruido,  e  acatado  pela 
integridade  e  pureza  dos  costumes  públicos  c  do- 
mésticos —  começava  a  realisar-se  ;  c  ainda  mais 
uma  vez  a  abnegação  triumpbou.  O  homem  eloquen- 
te ,  cogitador  ,  e  illustrado  ,  sabendo  que  as  portas 
do  parlamento  se  lhe  abril  iam  de  par  empar  quan- 
do o  quizesse ;  sabendo  qne  desde  esse  ponto  o  ca- 
minho do  poder  lhe  era  fácil  ;  esqueceu-se  disso 
tudo  para  cumprir  os  destinos  que,  por  assim  di- 
zer ,  elle  para  si  próprio  creára. 

Oito  annos  exercitou  o  Sr.  Duprat  o  mister  d'a- 
dvogado  :  oito  annos  viveu  em  Lisboa  no  meio  dos 
seus  concidadãos  ,  que  o  conheceram  c  julgaram. 
A  immensa  energia  da  sua  alma  não  bastou  uma  vi- 
da laboriosíssima  repartida  nas  occupações  do  fo;"o, 
na  actividade  com  que  se  dedicava  ao  estabeleci- 
mento de  associações  úteis,  nas  fadigas  a  que  não 
sabia  esquivar-se  onde  quer  que  havia  a  derramar 
beneficios ,  a  enxugar  lagrimas ,  a  confortar  desa- 
lentos ,  a  consolar  amarguras.  Essa  energia  não 
achando  ainda  em  tudo  islo  o  necessário  alimento  , 
devorou-lhe  rapidamente  a  existência  ,  que  organi- 
sação  robusta  lhe  promettia  bem  larga.  Este  homem 
tão  austero  comsigo  como  indulgente  com  os  outros, 
e  que  nascera  para  padecer  e  soffrer ;  para  luctar 
tenazmente  com  as  paixões  e  com  a  dór ,  cumpriu, 
até  o  fim  a  sua  missão  provideiKÍal ,  sem  ter  goza- 
do de  tudo  o  que  na  vida  é  suave  e  aprazi\cl  se- 
não os  sentimentos  atíectuosos  de  csfioso  e  de  pae  , 
e  as  santas  alegrias  que  traz  apoz  si  a  certeza  de 
haver  muitas  vezes  sacrificado  o  repouso,  a  paz  in- 
tima ,  e  a  fortuna  ,  ao  proteger  c  salvar  desgraça- 
dos ,  ao  cumprir  rigorosamente  os  deveres  civis,  e 
ao  favorecer  todas  as  tentativas  de  verdadeiro  e  so;- 


72 


O  PANORAMA. 


lido  progresso.  Deus  coroou  o  seu  obscuro  e  inti- 
mo m.Trtjrio  ,  a  sua  abnegação  sublime  ,  com  uma 
afiliei iva  eiiferniiiladc,  que  aos  olhos  dos  outros  pa- 
recia incomportável  ,  c  que  aos  seus  apenas  signifi- 
cava mais  alguns  dias  de  prova  e  de  resignarão. 

E  elle  K?\pirou  Iranquillo.  Deixava  na  terra  seu 
Telho  pae,  uma  esposa,  c  seis  fdhinhos.  dos  quaes 
era  único  arrimo.  Como  pois  lho  eslava  socegado  , 
não  o  coração,  onde  tinha  a  sua  sede  a  morte,  mas 
o  espirito?  Era  que  nessa  hora  suprema  sentia  que 
ou  tudo  quanto  clle  creu  ,  tudo  quanto  dezoito  sé- 
culos tem  crido,  era  escarneo  e  mentira,  ou  a  pro- 
videncia não  podia  esquecer  tanta  orphandade.  Es- 
perou em  Deus.  porque  era  ura  justo:  confiem  tam- 
bém nelle  os  que  choram.  Vinte  annos  de  honesti- 
dade deram  ao  moribundo  o  direito  de  dizer  ao 
Eterno: — «Sètu,  oh  Senhor,  o  pae  dos  pobres 
abandonados ! » 

Que  os  brilhantes  escriptores  da  historia  cele- 
brem os  nomes  dos  que  agitaram  o  mundo  ;  dos 
que  se  assentaram  victoriosos  no  campo  dos  homi- 
cidios  Icgaes  e  collcctivos,  chamados  combates,  ou 
transmudaram  a  face  das  sociedades,  chegando  aos 
cdificios  vacillantcs  das  instituições  seculares  o  fa- 
cho das  revoluções.  Nós  escriptores  do  povo  ,  hu- 
mildes como  elle  ,  apenas  fizemos  aqui  lembrada  a 
nossos  irmãos  uma  virtude  exclusivamente  popu- 
lar, e  que  os  poderosos  não  podem  comprehender  , 
porque  seria  a  negativa  da  sua  existência.  Esta  vir- 
tude é  a  abnegação.  No  meio  dos  que  ora  vive- 
mos ,  o  mais  sublime  exemplo  delia  foi  a  vida  do 
Sr.  Duprat.  Dizemo-lo  do  fundo  da  nossa  consciên- 
cia. Se  nos  enganamos,  erga-se  uma  só  voz  que  o 
negue!  —  Nem  entre  os  seus  inimigos  —  se  os  ti- 
nha—  haverá  por  certo  quem  se  alevante  para  nos 
dizer  :  — Mentistes. 

Fora  difficultoso  o  prova-lo. 

* 

Em  quanto  durou  o  período  penoso  da  doença 
acudia  multidão  de  pessoas  de  differcntes  classes 
da  sociedade  ,  soilícita  a  inquirir  noticias  do  enfer- 
mo :  Ião  espontâneo  testemunho  de  milhares  de  con- 
cidadãos,  em  que  não  havia  distincção  debando 
ou  de  jerarchia  ,  é  manifestação  absoluta  da  valia 
do  homem,  por  cuja  vida  todos  se  interessavam. — 
Nas  crises  da  moléstia  ,  e  desde  o  seu  principio ,  e 
no  seu  progresso  até  o  golpe  fatal  ,  dois  hábeis  fa- 
cultativos assistiram  ao  Sr.  Duprat  com  os  soccor- 
ros  da  sciencia  e  com  desvelado  zelo;  o  seu  parti- 
cular amigo  ,  o  Sr.  Dr.  Bernardino  António  Gomes 
foi  lãtr-assiduo ,  quanto  em  casos  taes  pódc  sè-lo  o 
homem ,  o  medico  ,  o  amigo  :  o  Sr.  Barrai  prostou- 
se  com  o  mesmo  cuidado  e  efficacia- 


NOVOS  INVENTOS. 

Brulote  a  vapor. 


A  fiCRRRA  parece  ter  decahido  da  moda  :  os  costu- 
mes lhe  são  avessos.  E  entretanto  nunca  a  imagi- 
nação dos  homens,  c  o  espirito  d'invenção  tão  uni- 
versalmente espalhado  se  tem  occupado  com  tanto 
aOuco  e  com  tão  vastos  resultados  nas  raaohinas  de 
guerra  ,  como  nesta  nossa  cpocha.  O  luxo  das  ar- 
tes ,  o  progresso  das  sciencias  naluraes  nada  quer 
écixar  por  tentar  :  a  arte  e  a  sciencia  de  matar  gen- 
te não  tem  ficado  retrograda.  Fortuna  será  para  o 


género  humano  se  estes  novos  inventos  ficarem  ser- 
vindo sómetite  para  ostentação  scientifica,  consigna- 
da na  imprensa  ,  e  exposta  nos  museus. 

Entre  as  temerosas  machinas  de  guerra  ,  que  ha 
pouco  mais  de  um  anno  se  estavam  preparando  em 
Woulwich  na  Inglaterra  ,  nenhuma  se  considerava 
tão  terrivel  como  a  do  brulote  a  vapor,  sem  exce- 
ptuar mesmo  o  outro  chamado  infernal  que  cuspia 
um  esguicho  de  fogo  mais  longe  do  que  as  bombas 
hydraulicas  de  maior  força  atiram  ura  rcpucho  de 
agu?.  Estes  brulotes  consistem  em  dois  fusos  ou 
grossas  bainhas  cónicas  formadas  de  aduelas  for- 
tissimas  ou  tábuas  apertadas  com  arcos  de  ferro  co- 
mo se  faz  aos  lonneis.  Estas  duas  azas  cónicas  se 
prendem  aos  lados  d'uma  comprida  prancha  de  pi- 
nho longa  de  80  a  90  pés.  Sobre  esta  espécie  de 
jangada  se  estabelece  um  destes  velhos  barcos  de 
vapor,  da  força  de  6  a  15  cavallos  ,  que  se  encon- 
tram [nos  portos  d'lnglalcrra  principalmente]  pelo 
valor  da  ferragem  que  ainda  contéra  :  na  extremi- 
dade da  proa  um  canhão  paixhans  carregado  até  á 
boca  termina  o  apparelho. 

Esta  raachina  é  destinada  a  ser  despedida  com 
toda  a  celeridade  de  que  fór  capaz,  durante  a  noi- 
te, contra  o  flanco  dos  navios  inimigos.  A  ponta  ou 
aguilhão  de  ferro  do  pranchão  se  encrava  no  costa- 
do do  navio,  e  a  força  do  choque  incendia  o  canhão 
que  abre  uma  larga  brecha  ao  lume  d'agua  ,  põe  o 
fogo  á  embarcação  e  a  melte  irremediavelmente  a 
pique  n'um  raomento. 

O  que  ha  de  particular  nestas  machinas  éque  se 
por  acaso  não  aferram  o  objecto  perlcndido  ,  conti- 
nuam sua  marcha  era  linha  recta  em  quanto  lhe 
dura  o  combustivel ;  e  é  fácil  retorna-las  a  1  ou  2 
léguas  de  distancia  por  meio  dos  barcos  a  vapor  : 
apanhadas  ,  e  reforçadas  com  novo  carvão ,  se  lan- 
çam de  novo. 

Assim  que  ,  um  cento  destes  brulotes  que  não 
custariam  talvez  mais  de  8  on  10  mil  francos  cada 
ura,  pôde  dar  cabo  de  100  navios  de  guerra.  O 
inventor  baptisou-a  com  o  nome  de  dardo  do  mar 
[javelot  de  mer]  ,  porem  os  marítimos  se  obstinam 
a  chamar-lhes  lançadeiras  do  mar  [navettes  de  mer] 
porque  são  lançadas  e  tornadas  a  lançar  até  que  se 
abalroem  com  os  navios  adversos. 

=  A  guerra  marítima,  diz  o  jornalista  ,  donde 
extrahiraos  o  artigo,  vai  mudar  inteiramente  de  fa- 
ce ;  o  vapor  só  operará  tudo  ahi  ,  bem  depressa  ;  e 
o  combate  terá  logar  entre  machinas.  A  potencia  , 
que  tiver  maior  numero  destas  c  mais  engenhosas  , 
estará  segura  da  preeminência  no  mar  e  na  terra  , 
na  paz  e  na  guerra.  = 

J.  da  C.  X.  C. 


Montanhas  submarinas. —  Alguns  gcographos  ,  n» 
começo  do  presente  século  ,  suppozcram  que  por 
debaixo  do  mar  se  dilatara  cordilheiras  de  montes, 
que  não  manifestam  os  extremos  rumes  aciraa  do 
nivel  das  ondas ,  excepto  em  desmesuradas  alturas, 
que  constituem  ilhas  escarpadas ;  cia  parte  desta 
hypothese  concordam  com  os  raais  antigos  escripto- 
res. A  America  e  a  Africa  [dizia  o  celebre  liuachej 
estão  ligadas  por  uma  serie  de  terras  muito  e  mui- 
to superiores  ás  profundezas  do  abysmo  marítimo  : 
as  ilhas  dos  Açores  ,  que  encontrámos  no  Atlantici) 
são  pontos  culminantes  desta  cadeia  de  serras  sub- 
marinas.» —  Se  a  idéa  deste  A.  não  fór  absoluta- 
mente verdadeira,  tem  pelo  menos  grande  probabi- 
lidade n'uma  infinidade  de  casos  e  localidades. 


63 


o  PANORA3IA. 


73 


ZUBTSATO  DE  VAN  DYCK. 


SiBiDO  é  que  foi  Rubens  o  fundador  da  grande  es- 
chola  de  pintura  ,  dila  ílamcnga  ;  —  Yan  Dyck  foi 
o  seu  melhor  discípulo ,  e  por  isso  o  segundo  na 
ordem  dos  que  illustraram  essa  eschola.  Watelet , 
escriplor  entendido  na  matéria  ,  diz  :  —  «  Se  não 
põem  Van  Dyck.  como  pintor  d'historia,  na  mesma 
catiiegoria  que  Rubens,  confessam  que  excedera  es- 
te na  delicadeza  dos  toques  e  das  cores  ,  e  que  no 
mais  algumas  vezes  o  igualara  :  se  não  teve  o  mes- 
mo calor  d'imaginação,  a  mesma  abundância  de  ta- 
lento ,  empregou  por  outro  lado  traços  mais  mimo- 
sos ,  melhor  caracter  de  desenho  ,  mais  verdade  no 
colorido.  Pela  reunião  destes  bellos  dotes  que  pos- 
suía ,  talvez  que  viesse  a  ser  superior  ao  mestre  se 
não  tivesse  sido  dislrahido  do  género  histórico,  que 
pintava  com  summo  gosto.  Como  retratista  tem  ine- 
gavelmente o  primeiro  logar  depois  do  Ticiano ,  e 
mesmo  este  não  lhe  leva  a  palma  senão  pelo  que 
respeita  ás  cabeças  ,  porque  o  flamengo  vence-o  na 
elegância  dos  accessorios  ,  e  os  reproduzia  com  a 
maior  verdade  conservando  a  sua  maneira  franca  ; 
arcusava  o  caracter  de  tudo  o  que  queria  represen- 
tar sem  caliir  todavia  naquelle  modo  frio  e  falto  de 
graça  que  muitos  julgam  próprio  do  género  de  re- 
tratos ,  como  se  todos  os  géneros  de  pintura  não 
tivessem  igualmente  por  lim  a  expressão  das  appa- 
rencias  da  natureza  :  sempre  as  suas  attitudes  são 
simples,  e  agradam  sempre  porque  são  naturaes : 
nas  cabeças  puz  tanta  expressão  de  verdade  como 
perícia  d'arte.  »  —  X  fecundidade  do  pincel  de  Vaa 
Makco  11—1843. 


Dyck  assombra  ,  como  a  de  Rubens ,  e  mais  ainda 
como  a  de  Raphael,  porque  Rubens  falleccu  velho. 
Verdade  é  que  para  o  fim  de  seus  dias  ,  quando 
em  Inglaterra  se  via  cercado  de  muitas  obras  ,  ti- 
nha adoptado  certa  maneira  cxpeditiva  :  não  foram 
porem  esses  painéis  acabados  á  pressa  que  lhe  ad- 
quiriram subida  reputação  ;  o  grande  numero  de 
quadros  da  melhor  cpocha  da  sua  vida  provam  que 
bem  sabia  ligar  a  facilidade  de  maneira  cora  o  aca- 
bado e  perfeição  conveniente. 

António  Van  Dyck  nasceu  era  .Antuérpia  em  1399  : 
pela  afleição  ás  artes  e  aproveitamento  no  estudo  dis- 
tÍBguiu-se  logo  entre  seus  condiscípulos  ,  merecen- 
do a  estima  e  elogios  do  mestre,  lin  dia  que  Ru- 
bens sahíra  da  officína  a  espraiar  e  refrescar  a  ima- 
ginação ,  como  elle  dizia  ,  Van  Dyck  e  seus  compa- 
nheiros entraram  no  gabinete  do  mestre  para  exa- 
minarem um  «descimento  da  cruz»  que  andava  pin- 
tando ,  approxímando-se  porem  demasiado  do  qua- 
dro ,  e  tropeçando  um  cahiu  ,  e  desfigurou  o  braço 
á  Jladsalena  .  e  a  barba  á  Virgem  ,  a  que  Rubens 
acabava  de  dar  o  ultimo  retoque  ;  temerosos  das 
consequências  que  a  sua  imprudência  occasionaría, 
estavam  insensatos  sem  saberem  tomar  resolução  , 
quando  um  dclles  mais  arrojado  bradou:  «É  mis- 
ter que  sem  perda  de  tempo  remediemos  este  ruim 
acaso  :  temos  ainda  três  horas  ,  tome  o  mais  habil 
a  palheta  e  tente  reparar  o  que  se  desfigurou  :  por 
meu  voto  elegeria  Van  Dyck:»  —  todos  applaudi- 
ram  a  escolha,  excepto  o  preferido:  mas  instado  dos 
2.'  Serie.  —  Vol.  II. 


74 


O  PANORAMA. 


companheiros,  c  receoso  do  enfado  do  mestre,  pòz- 
sc  ,í  obra  ,  c  a  desempenhou  rom  lai  mestria  que 
Jiuhens,  ao  examinar  na  seguinte  manhaã  o  que 
]iinl;ira  no  dia  anterior,  disse  era  presença  dos  dis- 
cípulos que  medrosos  o  estavam  olhando  "  —  pare- 
cc-mt'  esse  braço  e  essa  cabeça  o  melhor  que  hon- 
lem  acabei.»  —  Este  quadro  do  descimento,  dos 
mais  formosos  de  Rubens  ,  existe  agora  na  igreja 
(ie  X.  S/  d'Antuerpia. 

Cubicou  Van  Dyck  conhecer  o  famoso  Hals ,  c  a 
esse  intento  fez  expressamente  uma  viagem  allaar- 
lera  :  vaãs  foram  as  suas  diligencias  para  o  achar 
cm  casa  ,  e  afinal  resolveu-sc  a  deixar-lhe  recado 
de  que  uma  pessoa  o  esperava  para  retratar-se  :  — 
quando  se  viu  na  presença  de  Hals  ,  dissc-lhe  que 
era  um  estrangeiro  ,  e  que  desejava  lhe  tirasse  o 
retrato,  porem  que  para  essa  tarefa  sú  podia  dispor 
do  tempo  de  duas  horas  :  Hals  tomou  o  primeiro 
pedaço  de  tela  que  lhe  ficou  ;i  mão  ,  e  depois  de 
haver  pintado  breve  espaço  pediu  ao  supposto  es- 
trangeiro se  erguesse  para  observar  o  que  estava 
feito: — o  modelo  dçu-se  por  mui  satisfeito  da  co- 
pia ,  e  travando  conversações  indiffercutes  .  trouxe 
a  campo  o  assumpto  da  pintura  ,  de  que  disse  ler 
algumas  luzes  ,  c  que  se  lho  permittisse  mostraria 
o  pouco  de  que  era  capaz  ;  e  tomando  lambem  ou- 
tro panno,  rogou  a  Hals  que  occupasse  o  logar  que 
olle  havia  deixado  :  assim  foi  feito  por  mutua  con- 
descendência ;  mas  que  assombro  foi  o  de  Hals  quan- 
do ao  levantar-se  viu  o  retrato!  —  "o  senhor  por 
certo  é  Van  Dyck  1  —  foram  as  suas  primeiras  vozes, 
abraçando  o  collega  com  transportes  de  admiração 
e  afTecto.  Desde  então  os  dois  artistas  mantiveram 
reciproca  e  sincera  araisadc. 

Aan  Dyck  visitou  ,  para  instruccão  própria  ,  Ro- 
ma ,  Florença  ,  Génova  e  Nápoles  ,  c  também  via- 
jiin  pela  Sicilia  :  de  volta  ;í  pátria  deu-se ,  já  então 
bastante  conhecido ,  ao  exercício  de  sua  arte  ;  e 
por  esse  tempo  aconteceu  com  elle  uma  anecdo- 
ta  ,  que  devemos  referir.  O  cabido  de  Courtray  en- 
commendon-lhe  ura  painel  para  a  bòcca  do  retá- 
bulo do  allar-niór  da  coUegiada  :  o  artista  ])inlou 
nm  Christo  crucificado  ,  e  escolheu  a  situarão  em 
que  os  algozes,  acabando  de  pregar  no  madeiro  a 
Ticlima  sagrada,  arvoram  a  Cruz  para  a  fixar  no 
solo  :  concluida  a  obra  veio  appresenta-la  ao  cahi- 
ilo ,  os  cónegos  concorreram  a  vè-la  e  declararam 
unanimes  que  a  pintura  era  detestável  e  o  pintor 
ura  ridículo  borrador.  A  custo  pode  conseguir  que 
assentassem  o  quadro  em  seu  logar  c  lhe  satisfizes- 
sem o  preço.  Todavia  algumas  pessoas  curiosas,  in- 
folligentes  da  Arte  ,  passaram  por  Courtray  ,  viram 
e  louvaram  com  admiração  o  painel  ,  deitaram  boa 
fama  deile  por  outras  terras  de  Flandres,  e  os  bons 
ç  competentes  juizes ,  e  professores  ,  que  o  vieram 
contemplar  ,  declararam  que  esta  crucifixão  era  o 
melhor  quadro  do  auctor.  Os  cónegos  ,  pasmados 
então  de  sua  crassa  ignorância  ,  Icmbraram-se  de 
encommendar  mais  dois  painéis  a  Van  Dyck  ,  que 
lhos  fez  a  justiça  que  mereciam,  e  se  desforrou  do 
uístilto  que  recebera  ,  não  acccítando  a  obra. 

Viajou  novamente  este  artista,  deixando  nas  prin- 
cipaes  cortes  vestígios  do  seu  talento  ,  príncípal- 
nienle  como  retratista,  porque  nãó  lendo  rival  nes- 
tií  género  era  pelos  príncipes  e  jjoderosos  procura- 
<}o  •  assim  adquiriu  riqueza  bastante,  apesar  da 
profusão  de  seus  gastos;  onde  principalmente  au- 
gmeiílou  os  seus  lucros  foi  na  Inglaterra  ,  sendo 
chamado  a  Londres  por  Carlos  1."  que  lhe  prodi- 
galisou   distincções   c  favores  :   nesta  corte  tratava- 


'  sr  como  rico  e  cavalheiro  ,  e  desposou-se  com  a  fi- 
lha de  lord  Ruthwen  ,  d'uma  casa  mui  illustre  da 
Escócia;  todo  o  dote  da  senhora  consistia  porem 
em  alta  jerarchia  e  extremada  bellcza. 

Van  Dyck  era  pródigo  e  ostentador :  sabia  ser 
cortesão  ,  como  entre  outras  se  mostra  da  seguinte 
anecdota.  —  Retratando  a  esposa  de  Carlos  1.°  de- 
tinba-se  nimiamente  a  conlemplar-lhe  as  mãos  que 
eram  mui  formosas ,  no  que  attenlando  a  rainha 
perguntou-lhc  porque  se  esmerava  mais  em  copiar 
as  mãos  do  que  o  rosto: — respondeu  o  artista:  — 
«porque  espero,  senhora,  que  essas  mãos  me  dcem 
recompensa  digna  de  (|uem  tão  lindas  as  possue.u 
■ — Fallcceu  cm  Londres,  de  ^2  annos ,  em  l(iíl. 


A  Perda  d'Arzilla. 


[1349.] 

Era  noite  :  do  céu  limpo  e  seieno 
Milhões  d'estrellas  tremulas  pendiam  , 
Quaes  as  nocturnas  lâmpadas  d'um  templo  ; 
E  as  ribas  ermas  sussurrar  se  ouviam. 
D*allerosa  galé  o  negro  vulto 
Corta  ao  largo  —  bem  largo  —  o  mar  do  Algarve 
E  lá  nas  serras  d'Alrica  fronteiras 
Branqueja  a  espaços  o  albornoz  do  alarve. 
Como  tocheíros  ,  com  brandões  accesos  , 

De  um  féretro  ao  redor , 
Cuja  vermelha  luz  o  horror  da  morte 

Só  faz  sentir  melhor  : 
Taes  as  nocturnas  almcnáras  fulgem 

Nas  torres  d'atalaia  , 
Pelos  outeiros  ,  que  circumdam  muros 

De  povoação  na  praia. 


Arzilla  ,  a  guerreira  , 
Hi  jaz  na  afllicção  , 
Que  a  rendeu  aos  mouros 
Elrei  Dom  João. 

Tomar-te-ha  Deus  contas  , 
Rei  fraco  e  jirasmado  , 
De  tão  grande  vilta  , 
De  teu  grão  peccado. 

Maldíz-lc  nos  mares 
Valente  fronteiro  , 
Que  ua  sé  de  Ceuta 
Se  armou  cavalleiío; 

Que  dez  aduares 

Em  Tanger  queimou, 
E  em  muros  d'Alcacer 
Dez  elches  matou  ; 

Que  era  hoje  d'.\rzilla 
Temido  adail  , 
E  a  quem  tu  mandaste 
Fugir  como  vil. 

* 

Vcde-o  lá  na  gavia 

Da  negra  galé  , 

De  braços  cruzados  , 

Imraovel ,  em  pé. 
E  a  náu  que  arfa  e  voa 

Na  fremente  via  , 

Ferindo  na  esteira 

Fugaz  ardentía. 
E  d'Afríca  as  praias, 

Que  a  ré  vão  fugindo: 


o   PANORAMA. 


Vò 


E  as  vagas  que  rolam 
Distantes  imitindo. 
Em  roda  ,  o  silencio  — 
Xo  céu  ,  noite  escura  : 
E  o  peito  (lo  triste 
Confrange  ;i  amargura. 


Do  veterano  as  faces 
O  salso  pranto  rega  ; 
Nos  africanos  montes 
Saudoso  os  olhos  prega. 

Sento  no  seio  as  anciãs 
D'incomportavel  dòr  ; 
E  ás  vezes  range  os  dentes 
Em  trances  de  furor. 

Um  cântico  á  su'alma 
A  indignação  inspira  : 
Vae  sussurra-lo  ao  longe 
Aura  que  branda  espira. 


O  canto  do  Àdail. 

Ouando.  ao  longe,  nos  campos  d'Ar2Ílla, 
-Vlvejava  do  mouro  o  albornoz  , 
E  corria  ,  e  corria  veloz 
O  ginete  de  Bellaraarim  : 

Quando  o  esculca ,  sabido  da  villa 
Da  raanbã  ao  primeiro  fulgor  , 
Não  podendo  a  atalaia  transpor  . 
Vinha  ás  portas  bater  de  Çaíim  : 

Quando  era  Tanger ,  a  forte ,  se  ouvia 
De  armaduras  continuo  tinir, 
E  nos  ares  se  via  luzir 
O  montante  ,  a  acha  d'armas ,  e  o  criz  ; 

Quando  era  Ceuta  vencida  se  erguia 
Soljre  o  alcácer  pendão  portugucz , 
Contra  o  qual  na  mesquita  de  Fez 
A  gaziia  pregava  o  caciz  : 

Quando  Alcacer-Ceguer,  a  viçosa  , 
Que  em  vergéis  se  reclina  gentil, 
Pela  noite  fragrante  d"abril 
Centre  os  robles  sorria  ao  luar; 

Porque  ,  rico  de  presa  formosa  , 
Já  voltou  nobre  alcaide  christão  , 
E  inda  ao  longe  de  incêndio  o  clarão 
Tinge  o  céu  sobre  um  triste  aduar  : 

Nossa  estrella  era  então  esplendcnte  ; 
Nosso  nome  era  um  som  de  terror  ; 
Nossos  pães  conduzia  o  Senhor, 
Qual  Judá  d'entre  a  sarça  do  Horeb. 

Portugal ,  oh  leão  do  occidenle  , 
Tu  rugias  á  beira  do  mar , 
E  o  teu  grito  cá  vinha  troar 
Temeroso  no  ardente  Almagreb  ; 

Era  o  tempo  dos  crentes  e  ousados  : 
Era  o  tempo  da  gloria  da  cruz  I 
Ora  contam-se  as  páreas  d'Ormuz; 
Tem  só  nome  Cochim  ,  Calecut.  '    ■ 

E  esses  muros  dWrzilla  ,  regados 
Com  o  sangue  de  ra.irtyres  mil , 
Ermos  hoje  tu  deixas,  rei  vil  , 
Porque  o  Estreito  passou  Rais  Dragut '. 

Oh  valentes  da  Índia  ,  do  oceano  , 
Roncadores  de  feros  no  mar  , 
Cuja  espada  ,  porem  ,  faiscar 
Não  sabe  inda  do  mouro  no  arnez  , 


Mostrar  vinde  o  valor  sobre-humano 
.Neste  clima  de  sol  mirrador  '. 
Aqui  fama  se  compra  com  dòr: 
Fácil  gloria  esquecei  uma  vez. 

As  galés  do  arrais  mouro  são  fortes  ; 
Sua  chusma  berbers  de  Takrur  ; 
Como  o  vosso  rei  indio  ,  IJadur  , 
Não  ha-de  elle  acabar  á  traição. 

L'ma  festa  de  sangue  c  de  mortes 
Do  occidenle  nas  vagas  tereis; 
Elmos  rijos  aqui  achareis  , 
Não  o  craneo  d'inermc  sultão! 

Mercadores!  —  deixai  vosso  cravo, 
A  canella  ,  a  pimenta  ,  o  marfi  ; 
Os  vestidos  de  seda  despi  ; 
Ponde  em  vez  de  collar  um  gorjal. 

Vella  e  remo  soltai  no  mar  bravo  ; 
Vinde  junto  de  nós  combater  ; 
Nós  que  Arzilla  deixámos  perder  , 
Porque  elrei .  .  .  .  c  um  rei  desleal. 

Para  nós  os  castellos  d'avante  : 
Para  nós  a  arrombada  ,  e  bailéu  : 
Para  nós  pelejar  ante  o  céu  , 
Que  nos  campos  d'Arzilla  nos  viu  : 

Para  nós  o  machado  e  montante  :  — 
Para  vós  a  bombarda  e  arcabuz  :  — 
Para  nós  ,  ao  cahir  ,  ver  a  luz  , 
Ver  a  mão  que  estes  peitos  feriu  : 

Para  nós  o  tombar  derradeiro 
Sobre  o  férreo  esporão  das  galés  :  — 
O  pelouro ,  de  sob  o  convez  , 
Cá  de  longe  enviar  ....  para  vós  !  — 

O  sudário  do  morto  fronteiro 
Alva  escuma  da  proa  será  : 
E  em  seus  lábios  —  Árzdla\  —  ouvirá 
Quem  ouvir  sua  ultima  voz. 


* 


E  elles  —  os  fortes  d',4sia  —  não  vieram 
Do  cavalleiro  d'Africa  ao  chamar  : 
E  a  náu  d'elrei  ao  infamado  Tejo 

Veio  aportar : 
E  o  adaíl  dcpoz  as  armas  ,  rotas , 

Não  no  espaldar ; 
Que  nunca  o  bom  fronteiro  viram  mouros 

Costas  voltar. 


E  tomando  o  bordão  de  peregrino  , 
Foi-se  á  Batalha  ,  que  é  mosteiro  pobre 

De  dominicos  , 
Frades  mui  santos  ,  que  os  judeus  queimavam  , 

Porque  eram  ricos  ; 
No  meio  desses  túmulos  que  encerram 
Os  despojos  mortaes  dos  reis  que  foram  , 

Féretro  antigo 
O  adaíl  procurou:  — de  ura  rei  soldado 

Era  o  jazigo. 
Quando  o  viu  ,  ajoelhou  nos  degraus  dcllc  , 
E  palavras  ,  que  as  lagrimas  cortavam  , 

Lhe  dirigiu  : 
Maldição  para  alguém  pedia  ao  morto;  „    - 

Mas  nada  ouviu  !  ,    ; 

Então  ,  lívido  o  rosto  ,  os  lábios  brancos  , 
X  fronte  lhe  pendeu  sobre  o  ataúde 

Do  rei  extincto  : 
Expirara  ao  dizer — -pcrdcu-se  Arzilla! — • 

A  .\tronso  Quinto. 

(A.  Herculano.) 


o   PANORAMA. 


IGBEJA  SO  C£MITZKIO  AO  NO&TE   SE  IiOMDKES. 


AVENIDA  EGYFCIA. 


«No  KERVOR  da  agitarão  da  vida  iremos  parar  á 
pousada  dos  mortos,  u  =Tal  foi  o  pensamento  que 
nos  occorreu  ao  seguir  a  ruidosa  estrada  de  Cam- 
dcii  ,  olhando  para  os  marcos  que  indicavam  o  tri- 
lho do  Cemitério  ao  norte  de  Londres.  —  Ha  urna 
distracção  para  <iuom  fitr  pelo  ramo  inferior  do  ca- 
minho ,  suliurhano  da  metrópole  ,  em  que  se  des- 
fructam  algumas  paizagens  amenas,  c  que  em  bre- 
ve esparii  guia  ao  mesmo  recinto  melancholico,  dan- 
do a  entrada  para  o  declive  meridional  da  eminên- 
cia ,  em  (jue  a  igreja  está  situada  ,  e  dispostos  os 
inoniiiiicnlos  em  relação  ao  assetito  do  templo. — 
Chamamos  a  este  logar  melancholico  pelas  recorda- 
ções que  suscita  ,  pelas  saudades  que  renova  ,  pe- 
las feridas  <i'alma  que  de  novo  faz  sangrar  :  tería- 
mos sob  esta  consideração  o  direito  de  lhe  darmos 
a  denominação  Ue  triste  c  digno  de  aborrecimento : 


mas  a  arte  humana  ,  que  esluda  niuilo  jiara  disfar- 
çar magnas  cabalar  sentimentos,  emhcllezou,  quan- 
to podia,  este  conimum  jazigo  de  graiule  parte  dos 
moradores  da  opulenta  e  muito  povoada  Londres. 
—  Pompas  e  applausos  e  monumentos  fúnebres  se 
não  poupam  de  ordinário;  isto  é,  vaidades  de  vi- 
vos ,  consolações  do  orgulho ,  que  não  aproveitam 
aos  mortos  ;  e  só  a  familiares  caprichos ,  a  ostenta- 
ções publicas  satisfazem.  —  Não  se  diga,  porem, 
que  promulgando  ião  severa  moralidade  ,  quere- 
mos ,  ou  como  cynicos  entregar  os  despojos  mor- 
laes  as  prezas  das  feras,  ou  adoptar  o  meio,  conta- 
gioso para  os  vivos  ,  de  sepultar  nos  recintos  aco- 
bertados dentro  das  cidades  ,  quer  sejam  templos  , 
quer  logares  a  esse  fim  espccialmenle  sagrados:  — 
trazemos  sij  á  lembrança  o  ponco  apreço  das  hon- 
ras fúnebres ,   como  quem  se  persuade  que  não  ha- 


o  PANORAMA. 


77 


verá  epitaphio  que  salve  da  maliliorão  da  posleri- 
(iadc  o  homem  que  uão  andou  reclainenlc  nos  ca- 
minhos da  vida  social  :  assim  como  não  ha  sarco- 
phago  que  escouda  o  reproho  ao  seu  eterno  e  faial 
destino. 

A  primeira  vinheta  mostra  a  igreja  ,  da  commu- 
nlião  prolcslantc,  no  cemitério  ao  norte  de  Londres: 
■■1  secunda  é  iransuniplo  do  que  chamam  —  a  aveni- 
ili  e^ypcia  —  porque  com  seus  oheliscos  ,  entrada 
de  prolongada  volta  d'ahobada  ,  arcliilcctiira  maci- 
ça c  pezada  ,  indica  o  cslylo  de  construir  que  os 
egypcios  tiveram  :  at(!  os  informes  monumentos  da 
apparição  da  arte  tem  sido  imitados  om  miniatura 
pela  insaciável  vontade  de  cousas  singulares,  de 
que  SC  acha  possuida  a  geração  moderna. 


O  Bobo. 
1  128. 
VII. 

O  homem  do  zorame. 


Os  TRES  personagens  que  o  conde  de  Trava  vira  en- 
caminharem-se  para  a  corredoura  contigua  aos  mu- 
ros do  castello  ,  c  cujos  passos  e  conversação  man- 
dara observar  ])elo  pagem  ,  iam  demasiado  preoc- 
cupados  para  haverem  de  reparar  nos  jogos  c  brin- 
cos de  Truetezindo  e  dos  seus  companheiros  ;  e 
tanto  mais  que  na  viella  perpassavam  também  ás 
vezes  os  ovençaes ,  uchõcs ,  e  sergentes  occupa- 
dos  nos  preparativos  do  banquete  ,  tornando  assim 
menos  notável  a  pessoa  do  pagem  ,  cujas  feições  , 
até,  já  não  seria  fácil  divisar  na  estreita  passagem, 
a  certa  distancia,  e  á  luz  duvidosa  do  longo  crepús- 
culo ,  que  no  verão  vem  apoz  o  sol  posto  ,  e  que 
era  a  hora  a  que  esta  scena  se  passava. 

Kssa  claridade  do  fira  da  tardo  seria  comtudo 
ainda  bastante  forte  para  o  Lidador  e  Fr.  Hilarião 
conhecerem  o  mensageiro  que  os  buscava  ,  senão 
fora  o  grande  capuz  dozoramc,  onde  tinha  como  su- 
mido o  rosto  .  do  qual  apenas  eram  bem  visiveis 
dous  olhos  brilhantes  e  uma  espessa  barba  loura. 
Quasi  ao  mesmo  tempo  os  dous  haviam  chegado  ao 
pé  do  desconhecido,  e  lhe  tinham  perguntado  d'on- 
de  vinha  e  quem  o  mandava,  k  res|!Osta  do  peão 
foi  tirar  um  pequeno  rolo  de  pergaminho  ,  atado 
com  fio  negro ,  de  uma  bolça  de  couro  que  trazia 
pendente  do  cinto ,  e  pò-lo  nas  mãos  de  Gonçalo 
Mendcz. 

O  Lidador  recebeu  a  carta  e  perguntou  de  novo  : 

«Mas  quem  te  mandou  ,  peão?» 
(   «Ura  cavalleiro  portuguez  —  respomleu  o  desco- 
nhecido—  que  encontrei  mui  malferido  na  alberga- 
ria dos  hospilalarios  era  Gaza.  O  triste  c  cativo  qua- 
si  que  se  morria.» 

Estas  palavras  excitaram  quasi  ao  mesmo  tempo 
curiosidade  c  receios  no  espirito  de  Gonçalo  Men- 
dez  ;  e  quebrando  rapidamente  o  fio  negro  entregou 
a  carta  a  Fr.  Hilarião  ,  dizendo-lht  : 

«Como  a  vós  vem  também  a  mensagem,  lereis 
esses  riscos  pretos  que  ahi  estão. —  Por  minha  boa 
espada! — cousa  é  que  nunca  entendi.» 

Não  era  raridade  :  quasi  toda  a  Qdalguia  d'então 
se  podia  gabar  de  outro  tanto. 

Fr.  Hilarião  desenrolou  o  pequeno  pergaminho  e 
começou  a  lèr.  Entretanto  o  Lidador  filou  os  olhos 
no  peão,  cuja  voz  lhe  parecia  ter  jú  muilas  vezes 
ouvido.  .  .,_..    .  ,  .. ,  .,,.,,, 


«Pobre  mancebo!  — exclamou  o  ahbadc  ,  tremu- 
lo ,  e  empallidecendo.  » 

«Ouem?  —  interrompeu  Gonçalo  Mendcz  voltaii- 
do-so  para  clle  sobresaltado. 

«Fm  cavalleiro  —  re|ilicou  Fr.  Hilarião  ■ —  que 
amei  como  filho  :  c  que  o  desejo  de  oITerccer  á  da- 
ma que  requestava  um  nome  glorioso,  levou  á  Pa- 
lestina. Só  talvez  eu  soube  a  causa  de  sua  partida, 
de  que  muitas  vezes  tentei  dissuadi-lo  ;  porque  pre- 
via o  que  succedcu.  Oh  que  em  quanio  o  pobre  tro- 
vador assim  morria  por  Dulce,  ella  folgava  em  seus 
novos  amores  com  Garcia  líermudez.  —  Mulheres, 
mulheres  !  » 

«Egas  Moniz,  ó,  pois.  morto?  —  interrompeu  tris- 
temente o  Lidador,  que  das  palavras  do  abbade  co- 
nhecera de  quem  era  a  carta.  —  Mensageiro,  ([ue 
dizes  tu?  Sabes  certo  (]ue  clle  é  finado?» 

Fm  gemido  inV(duntario  do  peão  ,  que  recuara 
ouvindo  as  palavras  do  abbade  ,  fora  a  causa  desta 
pergunta. 

«Digo-vos,  senhor  —  tornou  o  peão  com  voz  al- 
fogada  —  que  ora  é  ellc  morto.» 

Mas  o  cavalleiro  não  reparou  na  sua  perturba- 
ção :  o  monge  começava  a  ler  alio  o  pergaminho 
que  tinha  nas  mãos.  A  magoa  do  Lidador  era  pro- 
funda ;  porque  a  sua  alTeição  por  Egas  fora  cons- 
tante e  sincera.  Póz-se  a  escuta-lo.  e,  bem  como  ao 
velho  ÍT.  Hilarião,  as  lagryraas  lhe  rolavam  pelas 
faces. 

«  Escrevo-tc  ,  Gonçalo  Mendez  —  lia  o  abbade- — 
nas  vésperas  talvez  de  morrer.  Deus  porventura  não 
quer  que  meus  olhos  tornem  a  ver  o  logar  onde 
nasci.  Novas  são  aqui  vindas  de  que  Fernão  Perez 
de  Trava  tem  reduzido  á  condição  de  vassallo  o  no- 
bre filho  de  meu  senhor,  o  conde  Henrique.  Criei- 
me  cora  o  infante  :  sei  que  elle  não  o  sofIVerá  largo 
tempo  ,  nera  os  ricos  horaens  de  Portugal  o  soffrc- 
rão  lambem.  A  minha  espada  pertence  áquelle  de 
quem  a  recebi  em  Zamora  :  resolvi-me  por  isso  a 
atravessar  os  mares.  Um  recontro  com  os  infiéis  me 
cortou,  porem,  os  passos.  Tu,  Lidador,  accorrerás 
ao  infante  mellior  que  o  seu  Egas,  que  o  seu  irmão 
d'armas.  Cem  lanças  entre  acostados  e  homens  de 
tuas  honras  ,  podes  por  em  seu  campo  :  eu  a  custo 
lhe  levaria  cincoenla.  E,  alem  disso,  não  vale  a  lua 
espada  dez  vezes  mais  que  a  minha?  Se  a  guerra 
for  começada  sei  certo  quc^já  estarás  com  D.  Aflbn- 
so.  Um  pobre  romeiro  portuguez  me  jurou  sobre  a 
cruz  dar-tfr  esta  carta  onde  quer  que  te  encontras- 
se.—  Faze-lhe  mercê  por  minha  alma.» 

Durante  a  leitura  do  pergaminho,  humedecido 
pelas  lagrymas  do  velho,  o  desconhecido  havia  pro- 
curado conter  as  paixões  que  lhe  agitavam  o  espi- 
rito. Gonçalo  Mendcz  ficara  cm  silencio  ,  apertando 
cora  a  mão  a  fronte.  O  homera  do  zorame  dirigiu- 
se  então  ao  abbade  : 

nOuairto  a  vós,  venerável  monge,  o  nobre  ca- 
valleiro me  ordenou  vos  buscasse  cm  vosso  mostei- 
ro ;  que  vos  peilisse  ura  triutario  cerrado  de  vossos 
frades  ,  e  que  vos  lembrásseis  dello  era  vossas  ora- 
ções. Agora  que  mandais  de  mim?» 

«Vaes  partir?  —  perguntou  o  Lidador,  com  um 
tom  em  que  parecia  revelar-se  a  desconfiança.» 

Já  —  tornou  o  romeiro.  —  É  noite  ;  e  não  sei  ain- 
da se  é  longe  se  perto  o  termo  da  minha  jornada.» 

E  de  feito  havia  anoitecido  :  os  paços  começavam 
a  illuminar-se  ,  e  os  candelabros  e  tochas  vertiam 
atravcz  das  frestas  e  balcões  dos  aposentos  reaes 
uma  luz  brilhante  ,  cujos  raios  baliam  de  chapa  no 
vulto  rebuçado  do  mensageiro.    O  cavalleiro  c  o 


78 


O  PA1VORA3IA. 


monge  olhavam  íilos  paracllc.  Depois  Gonçalo  Mcn- 
dcz  disse  algumas  palavras  ao  ouvido  de  Fr.  Uila- 
rião  ,   e  prosegiiiu  o  seu  interrogatório: 

«Para  onde,  pois,  te  diriges?  —  disse  ellc  ao 
descíinliecido  ,  hesitando  ,  e  como  quem  já  a  custo 
continha  na  alma  bem  diversos  pensamentos. 

<<  l'ara  onde  Egas  Moniz  —  respondeu  cora  vehe- 
inencia  o  homem  do  zorame  —  cria  qnc  eu  vos  en- 
<'ontrassc ,  meu  senhor  cavalleiro :  para  o  campo 
de  D.  .\fronso.  Peão  como  sou,  irei  pelejar  por  elle, 
que  c  meu  senhdr  natural.  Que  osricos-hnmens  fol- 
guem entretanto  nos  paços  onde  estranhos  gover- 
nam ,  onde  D.  Thereza  se  esquece  do  que  o  infan- 
te (•  fillio  de  D.  Henrique.» 

Jyitão  Gonçalo  Mendez  fazendo  recuar  o  capuz 
que  cobria  a  cabeça  do  supposlo  mensageiro,  olhou 
para  clle  alguns  instantes.  Á  luz  nocturna  que  o 
allumiava  reconhcceu-o  então.  As  suas  vivas  sus- 
peitas se  haviam  realisado. 

"Egas!  Egas!  —  exclamou,  apertando-o  ao  peito 
—  pensavas  que  o  som  da  tua  voz  podia  nunca  cs- 
quecer-me? — Como  ousaste  assim  entrar  era  Gui- 
marães ; —  tu,    sobrinho  do  senhor  de  Cresconhc  ; 

tu  ,  um  dos  da  linhagem  de  liiba  de  Douro? — 

Para  que  esta  carta  cruel  que  veio  arrancar  lagry- 
mas  ao  bom  Fr.  Hilarião,  que  te  ama  como  um  fi- 
lho? Cria-te  ainda  na  Syria.  ■> 

«De  lá  cheguei  ha  poucos  dias  —  respondeu  o 
mancebo  ,  lançando  um  dos  braços  á  roda  do  pes- 
coço <lo  velho  monge  que  tentava  lambem  abraça- 
lo  chorando,  mas  de  contentamento.  —  As  primei- 
ras novas  de  que  o  infante  e  os  infanções  de  Portu- 
gal tentavam  sacudir  o  jugo  do  conde  de  Trava  di- 
rigi-me  ao  arraial  de  D.  Alfonso  que  se  encaminha- 
va para  aqui.  Lá  o  teu  nome  ca  affronlado  cora  o 
titulo  de  desleal  pelos  teus  inimigos.  Estavas  em 
Guimarães  :  as  apparencias  condemnavam-te  ,  e  o 
meu  coração  padecia.  Vim  poisdizcr-tc  —  Lidador, 
é  tempo  de  combater  !  Oueria  .  porem  ,  saber  pri- 
meiro se  as  rainhas  palavras  tinham  na  tua  alma  a 
mesma  força  que  d'antes  :  queria  saber  se  a  tua 
amisade  havia  expirado  como  o  amor  de  Dulce  , 
que  eu  já  sabia  se  esquecera  de  mim  :  foi  para  is- 
so esta  carta.  Sei  agora  ao  certo  que  ainda  te  pos- 
so dar  o  suave  nome  de  amigo  ;  sei  emfim  que  a 
amisade  dura  mais  que  o  amor.  Vós  —  accrcscen- 
lou  elle  voltando-sc  para  o  monge  —  perdoaes-me 
por  certo  a  magoa  que  vos  causei  !  i> 

«Oh,  meu  filho,  meu  filho!  replicou  Fr- Hila- 
rião :  para  que  vieste  expòr-tc  á  vingança  de  Fer- 
não Perez  ,  que  mortalmente  odèa  a  linhagem  de 
Kiba  de  Douro?  Podias  tu  duvidar  da  lealdade  do 
mais  generoso  e  valente  dos  ricos-homens  de  Por- 
tugal ?...!> 

«Xão  :  mas  era  necessário  que  pndcsse  dizer  aos 
que  de  desleal  o  accusam  :  —  vús  mentis,  e  sobre 
isso  porei  meu  corpo  ;  c  mentis  [)orque  de  sua  bo- 
ca ouvi  eu  que  na  hora  do  combate  o  seu  pendão 
se  hasteará  Junto  da  signa  do  infante.  Não  direi 
nisso  a  verdade,  meu  bom  o  leal  cavalleiro?» 

«Egas  —  respondeu  o  Lidador: — que  te  impor- 
tam a  li  ou  a  mim  os  ditos  de  alguns  sandeus? 
<Juando  ellcs  ousarem  vir  a  Guimarães  dizer  o  que 
ainda  hoje  (ionçalo  Mendez  disse  na  cúria  ao  con- 
de de  Trava  ,  Ic-los-hei  então  por  mais  esforçados 
e  niais  leaes  do  que  elle.  Até  o  lím  pri)Curei  evitar 
esta  guerra  atroz  d'irmãos.  Perdi  a  derradeira  e.s- 
perança.  Agora  volta  ao  arraial  ;  e  piules  allirmar  a 
Allbnso  Henrique/,  que  dentro  de  dons  dias  outenta 
homens  ({'armas  c   sessenta  bx'steiros  da  terra   da 


Maia  estarão  no  seu  arraial.  Dizc-lhe  mais,  qne  o 
traidor  Gonçalo  Mendez  espera  com  vinte  cavallei- 
ros  que  elle  chegue  para  se  unir  a  seus  pendões, 
não  de  noite  como  salteador  covarde,  mas  á  luz  do 
do  meio-dia  ,  era  que  peze  ao  conde  de  Trava.» 

A  indignação  do  rico-homem  rompera  como  tor- 
rente ;  o  monge  ,  porem  ,  confrangia-sc  ,  Icmhran- 
do-se  do  perigo  a  que  se  expozera  o  imprudente 
Egas  .Moniz.  Assim,  inlerrompendo-o,  disse  ao  man- 
cebo : 

oÉ  necessário  que  parlas  já.  No  meio  do  ruido  c 
confusão  do  banquete;  entre  a  multidão  de  genlo 
que  vaguca  ainda  pelo  castello  e  pelo  burgo  ,  nin- 
guém te  conhecerá.  Mas  qualquer  imprudência  pô- 
de perder-te  :  qualquer  imprudência  !  .  .  .  Reptara 
bem  Egas.  Estes  paços  encerram  para  ti  a  morte.  • 

Erara  o  amor  e  o  ciúme  do  moço  trovador  que 
o  bom  do  monge  mais  receava.  Sabia  quanto  clle 
amava  Dulce  :  conhecia  a  violência  das  suas  pai- 
xões ,  e  que  a  do  ciúme  devia  ser  terrivel  naquel- 
Ic  coração.  Porventura  o  motivo  da  sua  vinda  a 
Guimarães  não  fora  só  o  que  dizia.  Estas  idéas , 
que  de  golpe  tinham  occorrido  a  Fr.  Hilarião,  lhe 
faziam  desejar  cora  tanto  affinco  a  partida  breve  do 
cavalleiro. 

«Não  sei  porque  a  rainha  vida  periga  dentro  des- 
tes muros  —  replicou  Egas  Moniz.  Ha  mui  jioucos 
dias  que  cheguei  a  Portugal;  e  o  conde  de  Trava 
não  sabe  se  o  meu  balsão  Quclua  no  arraial  do  in- 
fante. .  .  » 

«Esqueceste  depressa  na  Terra  santa  —  interrom- 
peu o  monge  —  que  quando  ha  ura  cadáver  d'as- 
sassinado  entre  farailia  e  familia  ,  a  vingança  ,  se- 
gundo o  brutal  foro  d'Hespanha  ,  que  os  santos  câ- 
nones ainda  não  poderara  destruir  ,  dura  de  pães  a 
filhos;  convoca,  sob  pena  de  deshonra  ,  todos  os 
parentes  do  morto  c  do  assassino  a  lides  atrozes  e 
a  ódios  implacáveis.  A  linhagem  de  Riba  de  Dou- 
ro segue  toda  os  pendões  do  infante.  O  conde  folga- 
ria com  que  a  de  Trava  c  Trastamara  fosse  chama- 
da a  defender  os  dclle  pela  voz  imperiosa  do  que 
ricos-homciis  e  infanções  crêem  brio  e  dever.  Lem- 
bra-te  ,  meu  filho  ,  da  linhagem  a  que  pertences  , 
de  que  o  conde  é  homem  feroz  ,  e  que  tu  serias 
uma  victima  illustre  para  pretexto  de  perpetua  guer- 
ra de  homizio  entre  Portugal  e  Galliza.» 

O  mancebo  ficou  por  algum  terapo  pensativo  r. 
murmurou:  — «cumprir-se-ha  meu  destino!  De- 
pois voltando-se  para  o  abbade  disse-lhe  :  —  «Ficai 
tranquillo,  bom  Fr.  Hilarião  ,  esta  mesma  noite  sa- 
birei  de  Guimarães.  » 

"E  breve!  —  acudiu  o  Lidador.  —  O  esforço  não 
excluo  a  prudência.  Se  todavia  alguém  tentar  em- 
bargar-te  os  passos  não  te  esqueças  de  que  Gonçalo 
Mendes  está  aqui,  e  que  tcra  comsigo  vinte  escu- 
deiros valentes. » 

Neste  instante  as  trombetas  tocavam  pelos  eirados 
do  paço  e  pelos  adarves  do  castello  ,  c  ouviam-se 
romper  da  banda  da  sala  d'armas  os  sons  ásperos 
o  vibrantes  das  charamelas. 

«  fi  o  signal  de  que  começa  o  banquete  —  notou 
o  abbade  ,  a  quem  similhanles  sons  eram  suaves  , 
ainda  nas  maiores  angustias.  —  íí  necessário  appre- 
sentarmo-nos  a  tempo  ,  para  não  causarmos  suspei- 
tas. )) 

Egas  apertou  a  mão  do  Lidador,  abraçou  o  mon- 
ge, o  puxando  o  capuz  do  zoranie  para  diante,  se- 
guiu ao  longo  da  viella  .  em  quanto  os  dois  retro- 
cediam e  se  encarainhavam  para  a  escada  principal 
do  palácio,  com  passos  lentos  c  conversando  em  voz 


o   rAINOKA31A. 


79 


baixa.  .Vnles  de;  chesrarem  acima  viram  passar  por 
cllcs  um  pagL-ni  ;;algamio  os  degraus  qualro  a  qua- 
Iro  ,  c  riiuiii  cnmo  um  perdido. 

<i  Estes  rapazes  são  doidos!»  —  disse  o  monge 
para  o  seu  companheiro  de  modo  que  o  pagem  o 
ouvisse. 

Este  olhou  para  traz,  litou  os  olhos  era  Fr.  Hila- 
rião  com  !íra\idade  cómica  ,  e  deu  uma  gargalha- 
da ,  continuando  a  galgar  a  escadaria. 

Era  Tructcsindo. 

fÇontimtar-se-ha). 
(Â.  Herculano;. 


PORTLGAL.    . 
XXIV. 

COJIO    V   VU.1.\  DF.   S\>T.\nKJI  IIOIVE  V.ÍRIOS  NOMES   (•). 

MtiTO  remotos,  e  escuros  são  os  tempos  a  que  hou- 
>cramos  de  recorrer  ,  se  tomássemos  por  empreza 
escrever  acerca  da  fundação  desta  anliquissima  vil- 
!a  :  e  SC  os  tempos,  por  apartados,  nos  dariam  gran- 
de ,  e  por  ventura  baldado  trabalho  ,  cm  rastrear  a 
verdadeira  era  ,  não  nos  dariam  menor  as  incerte- 
zas das  historias  ,  e  das  memorias,  que  nos  ricarara 
dos  diversos  povos  ,  e  gentes  ,  que  ou  por  vários 
casos  ,  ou  por  atrahidos  da  riqueza  ,  fertilidade  ,  e 
doçuras  deste  nosso  pai/.,  dclle  se  fizeram  senhores, 
c  por  ellc  fizeram  e  sotTreram  durissimas  guerras, 
c  continuados  sustos.  O  que  se  pode  ter  por  sem 
dúvida  é  que  os  fertilissimos  campos  de  Santarém  , 
e  a  natureza  defensável  daquelle  Idgar  convidariam 
desde  logo  os  primeiros  habitadores  deste  paiz  a 
ficarem  alli  de  assento,  e  a  edificarem  a  vjlla  na- 
quelle  mesmo  ponto  ,  que  a  natureza  formara  como 
atalaia  .  e  defensão  dos  riquíssimos  e  alegres  valles 
que  o  cercam.  Não  nos  embaraçaremos  aqui  com  a 
natureza  ,  origem  c  costumes  desse  primeiro  povo  , 
que  lançou  os  fundamentos  desta  Ião  formosa  e  tão 
histórica  villa  ;  pois  que  tratando  somente  do  seu 
nome  ,  ou  nomes  ,  força  é  que  sobresaltemos  todas 
essas  verdadeiras  ou  fabulosas  historias,  c  que  ape- 
nas apontemos  ossnccessos  que  se  casam  com  o  nos- 
so ponto  ;  nem  entenderemos  na  fe  que  nos  elles 
merecem.  O  primeiro  nome  ,  do  que  havemos  me- 
moria ,  que  os  antigos  lusitanos  dessem  a  esta  nos- 
sa villa  ,  foi  Scalabis  .  e  lambem  scalabicastrum  . 
ambos  procedidos  da  mesma  origem,  e  prendendo 
no  mesmo  succcsso  ,  o  qual ,  segundo  as  historias  , 
passou  quasi  doze  séculos  antes  da  era  vulgar  por 
esta  forma.  Levando  os  lusitanos  daquelle  tempo 
grande  enfado  na  duração  do  seu  governo  republi- 
cano [senão  era  que  amestrados  pela  experiência 
queriam  ser  governados  por  outra  melhor  forma] 
elegeram  rei  ura  natural  ,  chamado  Gorgoris  ,  de 
cujos  espíritos  e  boas  partes  esperavam  grandes  me- 
lhoramentos para  o  paiz  ,  e  mormente  para  a  agri- 
cultura ,  em  que  era  homem  entendido  ,  e  de  gran- 
de reputação  por  haver  introduzido  ,  ou  animado  a 
creação  das  abelhas  ,  e  o  uso  do  mel  e  da  cera  :  se 
outras  doçuras ,  ou  outras  luzes  trouxe  a  este  povo 
o  novo  rei,  não  o  sabemos  nós  :  o  mais  que  nos  diz 
a  historia  ,  e  o  que  vem  ao  nosso  caso  é  que  uma 
sua  filha  dera  á  luz  uni  menino  ,  que  por  certo  não 
fora  desejado  .  nem  esperado  por  elrci  ,  seu  avô  ;  c 
que  por  isso  ,    e  pelo  mais  ,    que  dabi  podéra  arrc- 

(•)     A'id.  a  noticia   de   Santarém   coui   uma  estampa  a 
pag.  172  e  sei;,  do  vol.  3."  da  1."  Serie. 


cear  por  si ,  e  pelo  reino  ,  o  mandara  cllc  malar,  c 
lançar  ao  Tejo  ,  julgando  que  com  a  morte  deste 
innoceiíle  ficaria  mais  segura  ,  ou  menos  oITendida 
sua  coroa  :  porem  l)a!dado  foi  este  bárbaro  empe- 
nho :  que  os  decretos  da  Providencia  estão  muito 
fora  dos  compassos  da  prudência  e  da  ardileza  hu- 
mana. C)Tcjo,  que  em  maravilhas  não  devia  de  ser 
Inferior  nem  ao  Nilo  ,  nem  ao  Tibrc  ,  senão  que 
aos  mais  famosos  do  mundo  linha  de  ser  igual  ou 
superior;  o  Tejo  toma  brandamente  cm  seus  braços 
o  menino  ,  e  como  que  o  vai  acalentando  até  o  en- 
costar em  mimosa  cama  de  rosas  e  de  mangcrona 
na  margem  próxima  áquelle  sitio  aonde  está  a  villa 
de  Santarém  ,  e  ;'onde  foi  salvo  e  creado  ,  dando 
depois,  do  seu  próprio  nome  —  que  foi  Abi d ix :  e  do 
successo  —  noineá  villa  5c(j/aW.v,  ou  Escalabis,  como 
se  dissera  esra  Abidis ,  isto  é  logar  aonde  .Vhidis  foi 
alimentado.  Não  occultaremos  a  circumstancia,  que 
nos  referem  as  historias,  /leque  foi  uma  corça  quem 
primeiro  acudiu  ao  menino  e  lhe  serviu  de  ama  : 
nesta  parte  não  tem  o  nosso  Abidis  (juo  invejar  a 
Cyro  ,  ou  a  líomulo. 

O  segundo   nome   que   teve  esta   villa   foi  Jidium 
Prwsidium  cm  obsequio   de  ,lulio  César,   quando  já 
quasi  toda  a  Lusitânia  estava  feita  colónia  romana  , 
e  se  dava  por  grande  honra  este  titulo   ás  suas  me- 
lhores cidades  e  villas  :  nem  se  julgue  que  foi  só  á 
força  d'arraas   que  Roma   alcançou   tanto  favor   dos 
lusitanos;  que  bem  cara  lhe  custou  a  confiança  qiio 
nellas  punha  ,   vendo  muitas  vezes  rolos  e  vencidos 
seus  exércitos   por  este  povo  ;   e  não  podendo  levar 
d'elle   o   melhor   senão    por   feias  traições»   ou   por 
grandes  promessas  e  muita  brandura.   Este  ultimo 
partido   seguiu  Júlio  César,    e  logrou   com  privilé- 
gios, honras,  isempçõcs  e  liberalidades,  o  que  não 
podéra    alcançar   com   o  esforço   de  seus  exércitos  ; 
viu  abrandar-se   o  orgulho  lusitano  ,    e  pacificar-se 
esta   rica  província.    Foi  então  celebrado   seu  nome 
por  muitas  partes.    Beja  tomou  o  nome  de  Par  Jú- 
lia,  Évora  o  de  Liberalitas  Jiiliu.  Merlola  o  de  Jú- 
lia Mirlili^,  Lisboa  o  de  Feliatas  Júlia  cOm  as  hon- 
ras de  município  de  cidadãos  romanos  para  os  seus 
moradores  ,    c  Santarém  trocou    o  nome  de  Scalabis 
j  por  o  de  Julium  Pra-sidium  como  levámos  dito.  Mas 
i  nem  a  grandeza  das  honras  ,    nem  a  lembrança  dos 
i  beneficios ,   que  de  Júlio  César  receberam   os  lusl- 
!  tanos  ,   poderam  apagar   em  corações  tão  avessos  ao 
j  domínio  estranho  o  que   delle  conservavam   e  lem- 
I  bravam  esses  nomes  :  acabaram  ,  e  quasi  que  estão 
]  esquecidos  ! 

'  [Coticluir-se-Iia.j 


A   ELEV.^ÇiO  DO   HOMEM   SEM   MEEITO. 

C.vDA  homem  tem  o  seu  talento   que  deve  cultivar , 
o  seu  destino  que  deve  seguir,  a  sua  mota  que  não 

i  deve  ultrapassar.  Sc  cultiva   um  talento  que  a  na- 

:  tureza  lhe  não  deu  .    se  segue  um  destino  que  ella 

I  lhe  não  marcou  ,  se  ultrapassa  a  mela  qne  ella  lhe 
poz  ,    perde   o  tempo  .   o  trabalho  ,    a  consideração 

I  que  d'ouíra  sorte  alcançaria;  e  torna-se  um  objecto 

'  de  desprezo  e  de  riso. 

Todo  o  que  pertender ,  como  o  atrevido  Ícaro, 
sahir  fora  da  sua  esphera  natural  ,  e  alar-se  a  uma 
região  que  lhe  não  pertence  ,  valendo-se  unicamen- 

;  te  das  azas  de  sua  vaidade  ,  tão  perigosas  e  frágeis 
como  as  de  cera  que  ícaro  levava  em  sua  temerá- 
ria ascensão,    conte  que   hadc  >oltar  para   o  ponto 

I  d"onde  sahiu ,   e  será  muito  feliz  se  não  destroncar 


8t) 


O  PANORAMA. 


as  pernas  no  seu  retrocesso.  Os  repetidos  naufrágios 
(lestas  raachinas  aerostaticas  deverão  escarmentar  os 
l>resumidos ;  mas  a  filáucia  c  incorrigivel ,  c  zom- 
ba de  todas  as  lições  da  experiência. 

Gire  cada  um  dentro  do  seu  círculo,  que  do  con- 
trário tirará  desagradáveis  resultados.  Dispa-se  de 
invejas  e  d'arabições  ,  e  i'ão  passará  pela  serasabo- 
ria  da  gralha  du  fábula,  que,  namorada  da  formo- 
sura das  pennas  dos  pavões  ,  c  querendo  fazer  li- 
jíura  no  meio  destas  aves  ,  voltou  espicaçada  e  co- 
berta de  vergonha  para  a  sua  grei.  O  mundo  cora- 
põe-se  de  tudo  ,  tem  pavões,  e  tem  gralhas:  ser 
gralha  não  é  villeza  ,  mas  querer  ser  pavão  é  lou- 
cura. Cada  ente  tem  o  seu  destino,  e  a  sua  impor- 
tância :  se  os  pavões  se  gloriam  da  sua  bella  i)lu- 
luagem ,  as  gralhas  podem  gloriar-se  de  ler  ensina- 
do os  caracteres  das  lettras  aos  homens  ,  como  dis- 
se Lucano  nos  seus  versos.  Ninguém  se  vá  metter 
onde  não  cabe  ,  nem  queira  representar  no  theatro 
da  sociedade  papel  para  que  não  tem  arte  :  se  nas- 
ceu para  o  ridículo,  não  aspire  ao  serio;  se  tem 
alma  i)ara  o  pathelico  ,  deixe  o  terrível;  se  sahiu 
azado  para  lacaio  ,  não  vista  a  purpura  ,  nem  era- 
])unhe  o  sceptro.  Esta  doctrina  está  Ioda  cifrada  no 
canou  de  lógica  :  — 

ISlIdl  aggrcdilor ,  imita  Minerva. 

Não  se  abalance  a  nada  algum  mortal 
Contra  seu  génio ,  c  instincto  natural. 

Os  que  se  deslembrara  deste  saudável  aviso  ,  tão 
documentado  pelas  lições  da  experiência  ,  de  ordi- 
nário são  victimas  do  seu  orgulho  e  da  sua  vaida- 
de ,  e  merecem  que  se  diga  delles  o  mesmo  que  o 
nosso  Miguel  do  Couto  Guerreiro  diz  ,  na  sua  Arte 
{loetica  ,   dos  que  se  mettera  a  poetas  sem  vèa  :  — 

Elks  tem  para  versos  tanto  sueco 
Como  para  solfista  tem  o  cuco. 

O  publico  ,  da  sua  parte  ,  põe-se  a  rir  de  todos 
os  que  menoscabam  esta  máxima  salutar  ,  e  que 
procurara  uma  importância  que  a  natureza  lhes  não 
deu  ,  como  Iodas  as  aves  se  riem  das  vaidosas  per- 
tenções  do  cantor  de  maio  :  — 

Houve  grande  galhofa  ,  tudo  ria  '*' 

Uos  louvores  que  o  cuco  pertendia. 

Nem  as  artes  ,  nem  as  sciencias  ,  nem  as  ropu- 
lilicas  hão  mister  dos  serviços  de  homens  ,  que  não 
nasceram  para  exercer  as  primeiras  ,  para  cultivar 
as  segundas,  para  administrar  as  ultimas.  Jlas  dei- 
xando tudo  o  mais ,  consideremos  só  —  A  elevação 
do  houíera  sem  mérito. — 

Se  os  horaíus  tivessem  menos  orgulho  ,  vaidade 
c  ambição  ,  c  mais  alguma  tintura  de  modéstia  ,  e 
mesmo  de  um  amor  próprio  mais  delicado  ,  as  re- 
publicas seriam  mais  bem  servidas,  e  não  veríamos 
tanta  gente  elevada  ,  que,  para  interesse  seu  e  do 
publico,  nunca  deveria  passar  da  esteira  cm  que  a 
natureza  oscollocára,  marcando-lhes  expressamente 
o  seu  destino  pelo  talento  cpela  habilidade  que  lhes 
dera. 

O  nosso  século  appresenta  ,  nesta  matéria  ,  uma 
carreira  tão  pouco  delicada,  que  desalia  a  indigna- 
ção c  o  riso  dos  homens  sisudos  e  cordatos.  Vemos 
que  hoje  cada  um  se  constituo  juiz  de  seu  mcrito 
pessoal  ,  e  que  o  não  julga  devidamente  considera- 
do e  premiado,  em  quanto  ha  uma  vantagem  a  con- 
seguir ,  uma  honra  a  lucrar,  um  interesse  a  haver, 
um  degrau  a  íubir  na  escala  da  jcraichia  social. 


Os  antigos  esperavam  que  os  chamassem  para  os 
cargos;  os  modernos  procuram-nos.  Os  antigos,  ain- 
da depois  de  chamados,  hesitavam  muitas  vezes, 
meditavam  comsigo  ,  ajudavam-sc  do  conselho  dos 
amigos,  olhavam  para  o  peso  do  emprego  e  para  a 
capacidade  dos  bombros  ,  cnlendiam-se  com  o  céu, 
e  não  eram  poucos  os  que  acaba\am  i)or  agradecer 
a  mercê,  sem  se  poderem  resolver  a  acceita-la. — 
Agora  qualquer  homem,  que  não  tem  muitas  vezes 
outra  importância  senão  a  que  elle  mesmo  dá  a 
si,  julga-se  asado  para  tudo  ,  e  trabalha  para  se 
coUocar  onde  a  ambição  e  a  vaidade  próprias  lhe 
dizem  que  é  o  seu  logar. 

As  circumstancias  dos  tempos  fazem  muitas  vezes 
reputações  que  nunca  existiram,  nem  existiriam  pa- 
ra todo  o  sempre,  a  não  ser  o  poder  magico  e  crea- 
dor  das  mesmas  circumstancias.  Vale  hoje  um  ho- 
mem, d'uma  ui)nucadissima  mediania,  pofque  vende, 
a  quem  quer  que  o  tire  tia  sua  obscura  e  devida 
posição  ,  a  sua  omnimoda  cooperação.  Alguém  que 
precisa  destes  manequins,  com  quanto  conheça  a  sua 
nullidade  ,  considera-os  ,  ajuda-os  ,  facilila-lhes  a 
elevação,  e  vai  rindo  ás  escondidas  dos  misera\eis, 
e  fazendo  os  seus  arranjos.  Os  nossos  homens  ,  cujo 
relevante  mérito  está  cifrado  no  seu  orgulho  e  no 
seu  descommedido  atrevimento,  lulam  a  bochecha  , 
alteam  o  sobroliio ,  regulam  melbodicamcnle  o  mo- 
vimento dos  olhos  ,  concertara  os  ademanes  ,  mesu- 
ram o  passo  ,  compassam  as  falias  ,  e  reputam-se 
umas  notabilidades  ,  que  ainda  merecerão  uma  es- 
tatua ,  ou  ao  menos  um  epiíaphio  honroso  que  os 
distinga  lá  nocampo  da  igualdade.  (Juem  os  .ijudou 
vai  bem  :  tira  o  seu  interesse  ,  tem  os  seus  escra- 
vos ,  e  ,  emfim  ,  lá  sabe  o  seu  jogo.  A  republica  , 
porem  ,  e  aquclles  que  os  sofírem  é  que  não  vão  da 
mesma  sorte.-. —  a  republica  porque  é  mal  servida, 
e  os  que  os  soílrem  porque  são  victimas  da  sua  ina- 
ptidão. 

Elles  que  se  levantaram  do  logar  onde  a  nature- 
za os  collocára  [que  bem  sabe  o  que  faz  !  ]  dão  por 
paus  e  por  pedras,  e,  segundo  o  citado  Guerreiro  : — 

Por  isso  de  seus  loucos  desvarios 
Tiram  só  paleadas  c  assovios. 

Os  que  estão  de  fora  vendo  a  representação  co- 
meçam de  rir  a  panno  cheio,  como  as  aves  se  riam 
do  pardal  de  que  já  falíamos,  e  vão  dizendo  uns 
para  os  outros,  fazendo  uma  engraçada  parodia  dos 
versos  de  Guerreiro  :  — 

Elles  tem  para  empregos  tanto  suceo 
Como  para  soljista  tem  o  cuco. 

(O  Moralista.) 


fígsques  petrificados. —  \a  margem  Occidental  do 
Missouri ,  [>'orte-.4.merica]  algumas  milhas  acima 
do  sua  juncção  com  o  Vellow-stone  [o  pedra-ama- 
rella]  ,  as  lombas  das  serras  ,  que  estão  superiores 
ao  nível  do  rio  obra  deSitoesas,  mostram  um 
pbenomeno  credor  de  mui  especial  observação  ;  por- 
quanto a  superfície  inteira  desse  terreno  se  desco- 
bre semeada  de  troncos ,  raízes  ,  e  ramos  de  arvo- 
res ,  mas  tudo  convertido  em  substancia  de  pedra  : 
—  quem  as  vè,  capacita-se  que  algumas  arvores  fo- 
ram arrancadas  pelas  raízes,  outras  partidas  acima 
do  pé.  —  Dois  olhcíaes  das  tropas  dos  Kstados-l  ni- 
dos  [vulgo  America  ingleza]  mediram  um  dos  tron- 
cos maiores  e  acharara-lhe  \inte  e  dois  palmos  de 
circumferencia.  .    , 


64 


o  PANORA3IA. 


81 


TAJl^í^CA  DS.  I.OUÇA,  XM  MIBAGAYA. 


PORTUGAL  XXV 


Porto. 


Por  vezes  lemos  fallado  da  nobre  e  rica  cidade  do 
Porto  [a  segunda  deste  reiao  a  lodos  os  respeitos] 
com  a  consideração  que  merece  ,  e  com  a  largueza 
que  comportam  os  limites  do  nosso  Jornal  e  a  som- 
ma  de  noticias  que  havemos  adquirido.  Começámos 
pelo  bosquejo  do  caracter  geral  de  seus  habitantes 
no  3.°  artigo  sobre  o  Minho,  quo  inserimos  a  pag. 
147  do  vol.  2."  da  Serie  antecedente  ,  tratámos  es- 
pecialmente do  Douro  a  pag.  177  do  vol.  3.°,  e  das 
particularidades  concernentes  á  cidade  a  pag.  281 
desse  vol.,  1(51  do  i.°,  c  233  do  5." — Xa  presen- 
te Serie  2.',  por  occasião  de  eslampar-mos  o  cons- 
pecto da  igreja  de  Cedofeita  ,  discorremos  sobre  a 
muita  antiguidade  dessa  collegiada  ;  agora  colligi- 
remos  as  encontradas  opiniões  de  dois  cscriptores  , 
ambos  nacionaes  e  ecclesiasticos  ,  acerca  da  epocha 
da  fundação  da  freguezia  de  S.Pedro  deMiragaya  : 
—  e  se  pelo  que  loca  ao  edifício  ,  representado  na 
gravura  com  que  este  numero  abre  ,  nnda  podemos 
dizer  ,  quer  da  casa  ,  quer  do  estabelecimento  [que 
vem  a  ser  a  fabrica  de  louça  de  Miragaya]  é  por- 
que ,  ou  por  negligencia  e  ommissuo  ,  ou  por  mal 
fundados  receios ,  não  nos  foram  ministradas  as  in- 
formações que  soUiciíámos  de  pessoa  apta  a  forne- 
cè-las.  Sabemos  só  que  desta  manufactura  está  sa- 
hindo  boa  louça. 

Miragaya   é  um  bairro   assaz  povoado ,   ao  sul 

da  cidade,   e  fronteiro  a  A'illa-N'ova  de  Gaya  ,  cir- 

cumstancia   de  que  tirou   o  nome  ;   está  em  relação 

ao  Porto,  guardadas  as  devidas  proporções,  como  o 

M.\Rr,o  18— 184o. 


dibíricto  d'.\lcanlara  para  com  Lisboa  :  tem  um  lar- 
go ,  guarnecido  de  arvores  ,  assim  como  de  um  pa- 
rapeito á  beira  do  rio  ,  e  de  boa  casaria  com  vista 
para  o  Douro  :  as  grandes  cheias  salvam  aquella 
guarda  e  vão  na  parte  opposla  inundar  o  pavimento 
das  logeas  :  por  tempo  ameno  é  este  largo  um  pas- 
seio agradável.  —  Alem  de  outras  ,  a  principal  in- 
dustria do  bairro  consiste  em  muitas  ferrarias. 

Pelo  que  respeita  á  igreja  parochial  í  edificio  raui 
apoucado  e  mesquinho,  erecto  ou  reparado,  no  lo- 
cal de  outro  mais  velho,  mas  cuja  remotissima  an- 
tiguiilade  é  contestável  ,  pela  boa  critica  ,  como  se 
verá  do  segundo  cxcerplo  ,  que  poremos  aqui.  — 
O  arcebispo  D.  Rodrigo  da  Cunha  ,  exprirae-se  a 
este  respeito,  no  Calai,  dos  bispos  do  Porto,  2.' 
part.  cap.  43.°,  da  maneira  seguinte  — 

—  «O  padre  fr.  Miguel  dos  .\njos  .  chronisla  da 
Ordem  dos  Eremitas  de  St.°  Agostinho  ,  em  certos 
papeis  que  nos  mandou  ,  tocantes  ás  cousas  deste 
bispado  [em  que  nós  o  consultámos  como  pessoa  tão 
douta  nas  antiguidades  e  como  natura!  desta  cidade] 
nos  escreve  que  a  cidade  do  Porto  esteve  [segundo 
tradição]  primeiro  na  paragem  em  que  está  agora 
Miragaya,  o  dahi  a  mudaram  os  suevos  para  o  mon- 
te da  sé  e  paços  do  bispo  :  pelo  que  lhe  parecia  que 
a  igreja  de  S.Pedro  de  .Miragaya  fora  edificada  por 
S.  Basilco  ,  primeiro  bispo  do  Porto,  e  dedicada  a 
S.  Pedro  ,  que  ainda  então  vivia  ,  e  viveu  alguns 
annos  depois  ,  qucrendo-lhe  S.  Basileo  ,  com  esta 
honra  [lagar  a  saúde  que  lhe  dera  á  poria  do  tem- 
plo em  Jerusalém,  como  em  sua  vida  deixámos  re- 
ferido (lo  Juliano  ,  arcipreste  de  Toledo  :  que  o  te- 
ve por  aquelle  coxo,  que  o  santo  apostolo  sarou  in- 
do em  coDipanhia  de  S.  Joãu  ,  á  porta  especiosa  do 
templo  :  opinião  que  o  padre  fr.  Luiz  de  todo  abra- 
ça ,  e  nós  agora  ,  cora  auctoridade  de  tal  escriptor, 

2.°  Serue.  — YoL.  11. 


8-2 


O   PANORAMA. 


temos  por  mais  provável.  E  já  pôde  ser  que  este  foi 
o  primeiro  templo  que  o  glorioso  apostolo  S.  Pedro 
teve  dedicado  a  seu  nome  »  — 

O  padre  Agostinho  Rebello  da  Costa  impugnando 
o  que  acima  fica  transcripto  ,  diz  por  este  modo  ,  a 
pag.  103  e  segg.  da  Descripç.  do  Porto  ,  cap.  3.° 
—  «Porem  devendo  eu  fallar  com  aqueila  circums- 
pecção  digna  de  uma  matéria  tão  grave ,  digo  que 
não  posso  concordar  cora  esta  opinião,  hera  que  abo- 
nada por  tão  doutos  o  respeitáveis  escriptores  :  — 
primo;  porque  já  mostrei  no  cap.  1."  que  esta  ci- 
dade fora  fundada  pelos  suevos,  sem  que  até  aquel- 
le  tempo  houvcíse  nella  povoação  alguma  mais  que 
o  pequeno  logar  de  Gaya ,  que  íica  da  parto  me-i- 
dional  do  Douro,  e  que  forma  cora  Villa-Nova  um 
grande  hairro  da  cidade ;  e  se  até  aqucUe  tempo 
não  havia  povoação  alguma  ,  como  podiam  haver 
bispos  que  a  governassem?  —  Secundo;  porque  é  iii- 
crivcl  que   em  vida  dos  apóstolos  houvesse  quem 

consagrasse  templos  á  sua  memoria  tcrliú :  em 

nenhum  Concilio,  ou  geral  ou  provincial,  nem  ain- 
da era  escriptura  ou  documento  algum  authentico 
apparece  nome  de  bispo  que  fosse  desta  cidade  até 
o  tempo  do  bispo  Constâncio:  os  nomes  dcArisber- 
fo  ,  Thimotheo,  c  Viator  ,  que  fazem  único  liispo 
da  igreja  de  JUeincdo  no  districto  deste  bispado, 
são  igualmente  excluídos  pelas  rasõcs  expostas,  qiie 
se  mostrariam  mais  energicamente  e  cm  toda  a  sua 
extensão  se  eu  houvesse  de  tratar  este  ponto  funda- 
mentalmente.—  Não  deixarei  comtudo  de  escrever 
ura  particular  fundamento  ,  que  junto  aos  referidos 
me  confirma  na  opinião  de  que  foi  Constâncio  o  pri- 
meiro bispo  do  Porto.  Sabc-se  perfeitamente  que 
fundando  elrei  Theodomiro  a  igreja  de  Cedofeita 
pelos  aunos  de  339  fora  sagrada  a  mesma  igreja  no 
anno  seguinte  de  360  por  Lucrécio  ,  bispo  de  Bra- 
ga. Ora  se  havia  no  Porto  bispo  que  podesse  cele- 
brar este  acto,  para  que  foram  buscar  o  bracharen- 
se?.  .  Se  eslava  então  vago  o  de  Porto,  porque  ra- 
r.ão  não  consta  esta  vacatura  dos  aulhcnticos  e  an- 
liquissimos  documentos  ,  guardados  no  arcliivo  da 
mesma  CoUegiada  ?  Porque  rasão  não  consta  da  ins- 
cripção  lapidar,  que  está  sobre  a  porta  principal, 
c  que  é  um  compendio  de  tudo  o  que  alli  se  obrou? 
Porque  rasão  não  consta  da  copiosa  attcstação,  que 
enviou  ao  St.°  P."  João  2:í.°  o  bispo  do  Porto  D. 
Fernando  P.amires  no  anno  de  1318,  que  refere 
cora  admirável  exacção  toda  a  historia  da  sua  ori- 
gem? Mas  como  hade  constar,  se  na  mesma  attes- 
lação  se  declara  que  adita  igreja  fora  edificada  pri- 
meiro que  a  cathedral?  Sendo  pois  esta  posterior 
áquella  ,  como  seria  possível  que  tivesse  bispo  para 
a  sagrar,  naquelle  aimo  de  360?  —  O  que  se  sabe 
com  certeza  é  que  esta  igreja  de  S.  Pedro  de  Mi- 
ragaya  já  estava  edificada  no  anno  dcli33,  cmque 
foi  nella  depositado  o  corpo  de  S.  Pantaleão  ,  mar- 
tyr  ,  padroeiro  da  cidade "  — 

A  igreja  de  Mirugaya  goza  a  permissão  pontificia 
de  Lauspereime  em  todas  as  quintas  feiras  do  anno  ; 
e  possue  uma  imagem  de  Jesus  Crucificado  ,  tida 
de  longos  tempos  era  grande  veneração  dos  fieis. 


AkCHEOLOGIA   1'OUri'GL'EZA. 

V[. 

Viaijcm  a  Portugal  dos  cavalleiros  Tron  c  Lippomani. 

(1380.) 
QukNoo  o  anno  passado  offereccmos  aos  leitores  do 


Panorama  vários  extractos  da  viagem  do  cardeal 
Alexandrino  (1)  tendentes  a  fazer  conhecer,  melhor 
do  que  se  conhecem,  as  nossas  antigas  cousas,  pro- 
meítemos  ahi  extrahir  algumas  passagens  de  outro 
livro  inédito,  que  nos  pareciam  dar  no  alvo  em  que 
tínhamos  posto  mira.  Este  livro  é  uma  narração  da 
viagem  dos  dois  embaixadores  mandados  pela  re- 
publica de  Veneza  cumprimentar  Philippe  2.°  pela 
conquista  de  Portugal.  A  epocha  da  viagem  é  quasi 
a  mesma  da  que  já  extractámos ;  mas  o  auctor  ano- 
nyrao  desta  toca  outros  pontos  mui  diversos  dos  que 
em  grande  parte  haviam  dado  matéria  ás  observa- 
ções do  antecedente  escriptor.  No  presente  manus- 
cripto  ,  a  relação  do  caminho  que  os  embaixadores 
fizeram  pelas  províncias  nadr,  contém  que  não  se 
ache  em  obras  [)o:tuguezas  impressas.  Na  descri- 
pção,  porem,  particular  de  Lisboa,  apontam-se  tan- 
tas parlicularidaúes  sobre  os  usos  ,  hábitos  e  grau 
de  civilisação  do  paiz,  c  tantas  noticias  económicas 
ignoradas,  por  certo  ,  dos  leitores  ,  que  julgámos 
conveniente  lançar  aqui  a  memoria  dessas  cousas, 
que  porventura  importam  mais  á  historia  do  que 
commummente  se  cuida. 

Na  descripção  geral  de  Lisboa  e  particular  das 
igrejas,  paços  rcaes  ,  Iiospital ,  &c.  nada  ha  notá- 
vel nesta  viagera  ,  senão  os  muitos  erros  acerca  de 
quasi  tudo  o  que  é  histórico  ,  em  que  o  auctor  só 
parece  ter  consultado  pessoas  menos  instruídas  em 
taes  matérias.  Nessas  descripções  o  bom  do  vene- 
ziano ,  auctor  do  livro  ,  segue  o  estylo  eommura  no 
seu  terapo  :  as  igrejas  são  grandes,  aceadas  ,  ricas  ; 
os  paços  vastos,  sumptuosos,  nobres  ;  e  com  isto  se 
contenta.  Não  assim  no  que  vamos  extractar  ,  co- 
meçando pela  noticia  da  fonte  dos  cavallos  d'aramc, 
já  tão  celebre  no  tempo  de  D.  Fernando. 

«  Para  o  lado  da  porta  que  chamam  da  Cruz  ,  ha 
outra  fonte  ,  ou  antes  lago ,  que  denominam  dos  ca- 
vallos ;  porque  da  boca  d'alguns  cavallos  de  metal 
sa ;  tanta  agua,  que  forma  uma  corrente  a  modo  de 
ribeiro.  >>  ,  ... 


(c  Posto  que  Lisboa  seja  tamanha  e  tão  nobre  po- 
voação ,  não  tem  palácio  algum  de  liurguez  ,  ou  de 
fidalgo ,  que  mereça  consideração  quanto  á  raate- 
ri,> :  e  quanto  á  architectura  apenas  são  edifícios 
muito  grandes.  Ornam-os,  porem,  de  tal  modo  que 
na  verdade  ficam  magníficos.  Costumara  forrar  os 
aposentos  de  rasos  (2)  ,  de  damascos  ,  e  de  finíssi- 
mos razes  no  inverno  ,  e  no  verão  de  couros  doura-  ^ 
dos  mui  ricos,  que  se  fabricam  naquella  cidade.  ji 

As  ruas,  bem  que  largas,  são  muito  ínconimodas,  '' 
por  subidas  e  descidas  contínuas  a  que  obriga  a 
desigualdade  do  terreno Por  isso  usam  os  mo- 
radores andar  a  cavallo  ,  do  que  procede  vcrera-se 
naquella  cidade  bellissimos  ginetes  ,  que  os  portu- 
guezcs  compram  por  todo  o  dinheiro,  atlendendo  a 
grande  estimação  cm  que  os  tcera.  Não  usara  de 
coches ,  e  quatro  ou  seis  que  ahi  havia  eram  de 
castelhanos  que  seguiam  a  corte.  Quanto  as  ruas 
em  geral  são  más  e  incómmodas  para  andar  assim 
a  pé  como  era  coche  ,  tanto  é  fácil  ,  deleitosa  ,  c 
bella  a  Uua-nova  pelo  seu  comprimento  c  largueza, 
mas  sobre  tudo  por  ser  ornada  de  uma  infinidade 
de  lojas,  cheias  de  diversas  mercadorias  para  o  uso 
de  nobre  c  real  povoação.  —  Entre  cilas  ha  quatro 
ou  seis  que  vendem  objectos  trazidos  da  índia  ,  co- 
mo |)orcellanas  finissimas  de  vários  feitios,  conchas, 

(1 1     Viii.  a  |iat'-  5;H  c  3-15  ilu  Vul.  l.",  preseiitu  ticrie. 

Çi)     lias  o ,    [luuuos  de  lan  sem  felpa. 


.■  ■.  r.  i 


\H/:\r. 


o  PANORAMA. 


»3 


cocos  lavrados  de  diversos  modos ,  caixinhas  guar- 
necidas de  raadroperola  ,  c  oiilias  ohras  similhan- 
tes ,  que  d'aiitcs  se  compravam  i)or  moderado  |ire- 
ço ,  mas  que  ullitnariienle  eram  caríssimas  |)or  Ires 
respeitos:  o  da  peste  que  havia  assolado  a  cidade; 
o  do  sacco  dado  pelos  castelhanos  quando  entraram 
em  Lisboa  ,  bem  que  eiroi  houvesse  ordenado  ao 
duque  d'Alva  tal  não  consentisse  aos  soldados ;  c 
ultimamente  pela  rasão  de  não  terem  vindo  arma- 
das da  índia  durante  dois  annos.  .\a  mesma  llua- 
nova  ha  muitas  lojas  de  livros,  com  infinito  numero 
dellcs  cm  portugucz  ,  castelhano  ,  latim  e  italiano. 
Todos  são  mui  caros ;  e  por  isso  os  estudantes  ,  por 
serem  pobres ,  costumara  mais  aluga-los  [como  ahi 
dizem]  a  tanto  por  dia,  do  que  compra-los.  Não  de- 
ve esquecer  aqui ,  que  na  praça  chamada  do  Pe- 
lourinho velho  estão  de  continuo  assentados  mui- 
tos homens  com  mesas  ante  si  (3)  ,  os  quaes  se  po- 
dem chamar  notários  ou  copistas  sem  caracter  de 
oiliciaes  públicos  ,  e  que  neste  exercício  ganham  a 
sua  subsistência.  Sabida  que  c  a  idéa  de  qualquer 
freguez  que  se  chega  a  elics ,  immediatamente  re- 
digem o  que  SC  pertende  ,  de  modo  que  ora  com- 
põem cartas  d'araore5  ,  de  que  se  faz  grande  gasto , 
ora  elogios,  orações,  versos,  sermões,  epicedios  , 
requerimentos  ,  ou  outro  qualquer  papel ,  cm  esly- 
lo  chão  ou  pomposo.  Junto  da  Rua-nova  ha  muitas 
outras  mas,  cada  uma  das  quaes  tom  suas  lojas  de 
uma  só  espécie  de  mercadorias.  Ka  dos  ourives  do 
ouro  havia  muitas  mal  abastecidas  de  pedras  pre- 
ciosas, de  pc-olas,  d'ambar,  e  d'almiscar,  em  con- 
sequência da  tardança  da  frota.  \  prata  em  Lisboa 
é  lavrada  com  delicadeza  e  variedade ,  por  ser  cos- 
tume, assim  entre  nobres  como  entre  plebeus,  usa- 
rem de  pratos  e  bacias  de  prata.  Ha  igualmente 
ahi  lojas  cheias  de  doces  e  frutas  seccas ,  c  cober- 
tas, primorosamente  preparadas,  de  que  se  faz  gran- 
de trafico,  mandando-as  para  diversas  partes  do  mun- 
do. Vende-se  também  ,  em  uma  única  rua  ,  grande 
quantidade  de  telas  de  Ioda  a  sorte  ,  portuguczas , 
flamengas  c  italianas:  das. primeiras  são  na  verdade 
bellas  algumas  que  chamam  casiquino  [  ?  ]  mui  finas 
c  alvas,  e  alguns  lenços  á  mourisca,  que  são  bara- 
tos e  lindos.  IVoutra  parte  ,  em  certa  viclla  ,  tra- 
balham delicadamente  ao  torno,  cm  que  fazem  guar- 
da-soes  de  barba  de  baleia  ,  obra  acabada  ,  e  cocos 
lavrados  a  modo  de  taças  ,  com  embutidos  de  ma- 
deira do  Brasil.  Vasos  de  estanho  ,  c  mais  objectos 
deste  metal  se  fabricam  abundantemente  n'outra 
rua  ,  e  se  carregam  para  a  índia  ,  onde  dão  grande 
lucro. 

O  comraercio  da  praça  de  Lisboa  é  muito  consi- 
derável pela  correspondência  que  tem  ordinariamen- 
te com  todas  as  outras  da  Europa  e  do  Novo-Mun- 
do ,  de  modo  que  as  permutações  são  importantís- 
simas ,  e  os  negociantes  possuem  grossos  cabedaes  ; 
porque  só  nas  especiarias  e  drogas,  que  vem  a  Lis- 
boa ,  depois  que  expirou  pelos  annos  de  1304  o 
commercio  da  Syria  ,  c  d'Alexandria  ,  ganham  rios 
de  dinheiro,  que  perdem  os  nossos  venezianos,  pois 
eram  elles  quem  fazendo  trazer  estas  preciosas  mer- 
cadorias pelo  Mar-riixo  a  Beyruth  e  a  Alexandria  , 
d'alli  as  transportavam  a  Veneza  nas  galh''S  d'alto 
bordo.  Bem  como  costumam  partir  deSe>ilha  todos 
os  annos  armadas  para  irem  ás  índias  occidentaes 
pertencentes  á  coroa  de  Caslclla  ,    assim  costumava 

(3)  Desla  velha  usança  de  Lisboa  faz  já  menção  D.  de 
Góes  na  descripçSo  de  Lisboa,  escripla  em  latira  na  primei- 
ra metade  da  século  1G.°  —  de  que  aisum  dia  daremos  os 
extractos  mais  curiosos. 


clrei  D.  Sebastião  mandar  ordinariamente  uma  fro- 
ta de  Lisboa  ás  índias  orientaes.  No  anuo  om  que 
este  rei  morreu,  partiu  no  mez  de  março  para  Ma- 
laca ,  segundo  me  contaram  ,  uma  náu  del:''(()0  to- 
neladas ,  c  um  mez  depois  mais  cinco  do  mesmo 
porte  para  (ióa.  Lra  este  o  numero  de  vasos  que  ia 
aniuialmente,  e  aquella  a  monção  da  partida.  Kssas 
naus  levavam  carga  delrei  e  dos  particulares.  Por 
couta  destes  ia  vinho  ,  azeite  ,  pannos  linos  de  va- 
rias cores  ,  d'lnglaterra  ,  Flandres  c  Castella  ,  bar- 
retes finos  c  ordinários  de  Toledo  ,  escarlatas  de  Ve- 
neza c  de  Valência  ,  rasos  de  Florença  ,  sarjas  de 
lan  de  Flandres,  marlotas  de  Constantinopola,  acol- 
choados e  calças  de  seda  de  Nápoles  ,  Vídludos  de 
Génova  ,  damascos  de  Lucca  ,  taffetás  e  calças  de 
seda  de  Toledo  ,  sarjas  de  seda  e  luvas  de  Valên- 
cia. Por  conta  d'elrci  carregavam-se  coráes  cm  bru- 
to e  lapidados  ,  azougue  ,  cinabrio  ,  arame  ,  espe- 
lhos c  diversos  vidros  de  Veneza  ,  mercadorias  que 
ninguém  podia  enviar  sem  expressa  licença  delle. 
O  que  ,  porem ,  principalmente  se  exportava  era 
uma  grandíssima  porção  de  prata  cm  reales  caste- 
lhanos, negocio  em  que  se  ganhavam  30  por  cento  ; 
e  aflirmaram-me  que  os  contractadores  das  especia- 
rias ,  e  vários  outros  negociantes  mandaram  nas 
cinco  ultimas  naus  para  Góa  um  milhão  e  trezentos 
mil  ducados.  Este  tracto  havia  crescido  a  tal  pon- 
to que  era  de  maior  lucro  a  ida  que  a  volta  

A  carga  para  Lisboa  consistia  principalmente  em 
pimenta  a-  granel  ,  que  devia  subir  ,  por  contracto  , 
pelo  menos  a  trinta  mil  quinlacs,  c  que  se  dividia, 
metade  para  elrei ,  que  não  entrava  neste  negocio 
com  somma  alguma,  e  a  outra  metade  para  os  con- 
tractadores que  tinham  o  exclusivo  da  pimenta  :  o 
quinhão  de  elrei  compravara-na  ordinariamente  os 
mesmos  contractadores  a  32  ducados  o  quintal.  Aos 
particulares  era  licito  mercadejar  em  qualquer  ou- 
tra especiaria  pagando   os  direitos  

Do  reino  de  Soffala  vinham  todos  os  annos  a  Lis- 
boa 170  barras  d'ouro,  e  uma  barra  vale  para  ci- 
ma de  300  ducados  :   lambem   de  Soffala  e  de  toda 

a  Guiné  vinha  grande  quantidade  de  marfim  , 

Traziam-se  igualmente  a  Lisboa  sedas  da  China  , 
pannos  finíssimos  e  ordinários  de  algodão  do  Bra- 
sil ,  bellos  tapetes  da  Pérsia  ,  ébano  ,  aguila  ,  pau 
brasil ,  dixes  e  louça  transparente  de  porcellana  , 
bórax  ,  camphora  ,  laca  ,  alocs-hepatico  ,  tamarin- 
dos ,  cera,  almíscar,  âmbar,  algalia  ,  beijoim , 
pérolas  ,  rubins  ,  diamantes  e  mais  pedras  precio- 
sas em  abundância,  e  outras  varias  mercadorias  que 
iam  do  Egypto  para  Alexandria,  as  quaes,  todavia, 
não  eram  a  milessima  parte  das  que  vinham  a  Lis- 
boa nas  sobreditas  frotas  

Os  homens  da  cidade  de  Lisboa  e  de  lodo  o  Por- 
tugal são  de  mediana  estatura  ,  mais  baixos  que  al- 
tos, magros,  de  cór  ferrenha,  cabcllos  e  barba  pre- 
los ,  olhos  negríssimos  ,  e  mui  similhantcs  no  exte- 
rior aos  gregos.  O  seu  trajo,  antes  da  morte  do  car- 
deal rei  ,  era  mui  mesquinho  ,  em  consequência  da 
pragmática  ,  que  não  consentia  usassem  vestidos  de 
seda  ;  pelo  que  trajavam  um  saio  de  baeta  prcla  , 
calções  de  panno  escoccz,  borzeguins  de  marroquim, 
chapéu  de  feltro  e  capa  comprida  da  mesma  bacia. 
Com  a  chegada  d'elrei  catholico  allcraram  o  seu 
antigo  trajo  ,  porque  ,  posto  que  conservaram  a  ca- 
pa de  baeta  ,  começaram  a  usar  do  gilião  de  raso  , 
bragas  e  calções  de  velludo  e  meias  de  seda  ,  cou- 
sa que  nunca  tinham  calçado,  bem  como  cscarpins, 
dos  quaes  não  era  possível  achar  um  só  par  antes 
da  entrada  d'clrci ..  porque  lodos,   sem  excepção  , 


Si 


o  PANORAMA. 


calçavam  borzpguins.  São  os  portuguczcs  mais  am- 
biciosos de  louvores  que  outra  qualquer  nação  do 
raundo  ,  adirmando  que  as  suas  façanhas  são  mila- 
grosas. Celebram  Lisboa  com  tal  copia  de  palavras, 
que  a  fazem  igual  ás  principaes  cidades  do  mundo, 
e  por  isso  costumam  dizer  :  —  Quem  não  vè  Lisboa, 
não  vè  cousa  bòa.  =  A  gente  miúda  gosta  que  Ibe 
dêem  o  tratamento  de  srnlior  ,  manba  esta  commum 
a  toda  a  Hespanba.  Vivem  parcamente  ,  porque  a 
plebe  pela  maior  parte  é  pobre  ,  o  os  cavalleiros 
que  se  teera  cm  conta  dóricos  fundam  a  opinião  da 
sua  riqueza  em  possuírem  uma  ou  duas  aldèas,  com 
trinta  ou  quarenta  visinhos  cada  uma  ,  no  meio  de 
campinas  estéreis  com  vinte   ou  trinta  folhas  culti- 


vadas ,  e  tudo  o  mais  inculto,  áspero,  c  coberto  de 
pedras ,  cora  alguns  cazebrcs  mesquinhos ,  e  mal 
concertados,  como  eu  o  experimentei  durante  mui- 
tas semanas  daquella  viagem. 

Poucas  pessoas  se  dão  ahi  .is  Icltras  ;  mas  appli- 
cam-se  muitos  ao  commercio,  género  de  vida  abor- 
recida dos  nobres  ,  que  nem  podem  ouvir  fallar  cm 
tal,  tendo  por  gente  villissima  os  mercadores.  Exer- 
citam-se  apparentemente  nas  armas  ,  c  algum  tanto 
em  cavalgar  .  conlentando-se  com  ter  leves  princí- 
pios destas  duas  profissões  ,  sem  quererem  suppor- 
tar  mui  diuturno  ensino. 

f  Continuar-se-ha) . 
(A.  Herculano). 


O  FHAISAO  AUGOS   OU  SE  JONO. 


De  PlTASis  ,  na  Ásia  menor  ,  foi  transportado  á  Eu- 
ropa ,  em  tempo  do  poderio  romano  ,  o  faisão  com- 
mum ,  reduzido  ao  captiveiro  da  domestieidade  ,  e 
criado  para  satisfação  da  vista  ,  c  fausto  dos  ban- 
quetes, cm  moradas  d'opulcntos.  No  matiz  elegan- 
te, no  mimoso  e  fulgente  das  pennas,  ha  poucas  aves 
que  o  excedam  :  com  certeza  se  affirma  que  traja 
vistosa  plumagem,  a  um  tempo  rica  e  linda,  e  dis- 
posta com  symmetria  admirável.  —  Sobro  tudo  na 
Ásia  ha  singulares  cbellissimas  espécies  defaisões: 
CS  chins  promovem  com  desvelo  a  multiprieação  dos 
que  chamam  dourados  ,  c  dos  prateados  ,  em  rasão 
dos  reflexos  metallicos  das  pennas  :  —  a  mais  sa- 
liente desta  família  é  a  que  os  naturalistas  appelli- 
daram  faisão  de  Juno,  ou  de  placas  coloridas  nas 
azas;  habita  algumas  regiões  meridionaes  da  Ásia  , 
mas  particularmente  a  Samatra  ;  corresponde  em 
tamanho  ao  corpo  do  pavão  ,  tem  a  cabeça  e  pes- 
coço qiiasi  despidos  de  pennas  ,  c  as  do  centro  da 
cauda  medem  de  quatro  a  ciuco  palmos  de  compri- 
mento ,  de  cor  caslanho-cscnra  com  pintas  bran- 
cas cercadas  de  anéis  d'um  negro  brilhante;  a  cor 
geral  é  parda  com  linhas  arruivadas  ,  c  na  parte 
inferior  do  corpo  parda  com  mistura  de  ruivo  ;  as 
guias  secundarias  das  azas ,  Ires  ou  quatro  vezes 


mais  desenvolvidas  que  as  primeiras  ,  são  do  meio 
para  as  pontas  adornadas  de  olhos,  ou  placas,  es- 
paçados regularmente  ;  e  as  da  parte  inferior  agra- 
davelmente malhadas  de  salpicos  pretos  sobre  fun- 
do roxo  claro  c  pintas  brancas  nos  extremos;  tem 
os  pés  de  mui  vivo  encarnado.  É  ave  montesinha, 
procura  solidões  ,  e  raro  baixa  ás  planícies  ,  foge 
ás  residências  dos  homens,  e  quando  apanhada,  in- 
soffrida  da  prisão,  morre  em  pouco  Icmpo  cora  sau- 
dades da  liberdade  das  selvas  e  montes  recônditos 
em  que  nascera. —  Pozeram-lhe  também  o  nome  de 
argos  e  de  ave  de  Juno,  alludindo  ao  conto  mytho- 
logico  do  pastor  do  multíplices  olhos,  que  a  esposa 
ciumenta  do  Jupiler  dóra  por  guarda  á  sua  rival  , 
a  mísera  lo  nipthamorphoseada  cm  vacca  :  isto  cm 
rasão  da  grande  quantidade  de  placas ,  como  os 
olhos  da  cauda  do  pavão  ,  que  aformoseam  as  azas 
daquella  espécie.  — 

—  Na  cxcellente  e  bem  tratada  quinta  da  Sere- 
níssima Senhora  Infanta  D.  Isabel  SIaría  ,  a  Bem- 
fica  ,  vimos  poucos  annos  ha  faisões  mui  bonitos, 
da  espécie  da  Asia-Mcnor. 


A  soEEiíBA  não  perdoa ,  a  humildade  não  se  vinga. 


o  PA^oRAaIA. 


85 


EpITOHI:    BA    VIDA    DE    Li  IZ    DE    CaHÕBC. 

(Conclusão.] 

A  FATAL  no\a  (i.i  perda  do  monarcha  em  Africa  , 
com  a  qual  a  palria  se  abismava  : — outra  perda 
individual  que  o  nosso  grande  poeta  quasi  ao  mes- 
mo tempo  experimentara,  privando-o  a  parca  do  seu 
liei  e  exemplar  jaó  ,  sem  ter  quem  o  tratasse  no  seu 
leito  de  dór  ,  foram  causas  sobejas  jiara  abbreviar 
I  os  dias  do  Vale  portuguez  :  trasladaram-nu  ao  hos- 
pital onde  se  curavam  então  os  pobres  ,  e  poucos 
dias  depois  alli  fallcceo  no  anuo  de  1379,  cm  tal 
esquecimento  .  que  até  se  ignora  o  mez  e  dia  em 
que  findou  sua  amargurada  Milà  I 

Assim  acabou  este  grande  homem  cuja  vida  foi  ura 
tecido  de  desventuras,  c  é  de  per  si  a  mais  amarga 
censura  de  quantas  se  possam  fazer  aos  portugue- 
zes  seus  coevos  I  Pobre,  ignorado,  cheio  de  misé- 
ria ,  morreu  em  um  hospital  de  pobreza  ,  o  immor- 
lal  Luiz  de  Camões,  sem  ter  ura  lençol  sequer  para 
mortalha ,  como  nos  diz  o  carmelita  Frey  Joseph 
Índio,  em  uma  uota,  que  de  seu  próprio  punho  es- 
crevera no  precioso  manuscripto  que  conservava  lord 
Holland  ,  e  hoje  tem  seu  filbo  herdeiro  do  titulo. 
Da  casa  de  Vimioso  foi  mandado  o  lençol  cm  que  o 
araortalharara  ,  e  com  que  o  sepultaram  na  igreja 
de  St.°  Anna  ,  logo  á  entrada  da  porta  ,  e  do  lado 
esquerdo,  sem  que  lhe  pozcssem  campa,  letreiro, 
ou  signal  que  distinguisse  a  sepultura  ,  que  encer- 
rou seus  despojos  mortaes. 

Passados  dezeseis  annos  ,  D.  Gonçalo  Coutinho 
lhe  mandou  cubrir  o  logar  da  sepultura  ,  que  com 
muito  trabalho  pôde  achar-sc  ,  cora  uraa  pedra  ra- 
aa,  na  qual  tinha  mandado  esculpir  o  seguinte  epi- 
taOo  : 

Aqui  jaz  Luiz  de  Camões 

Principe 

Dos  poetas  do  seu  tempo  : 

Viveu  pobre  e  miseravelmente  ; 

E  assi  morreu. 

Anno  de  M.  D.  LXXIX. 

Esta  campa  lhe  mandou  pôr  Dom  Gonçalo 

Coutinho  na  qual  se  não  euterrara 

pessoa  alguma. 

Eis  o  único  monumento  que  existia  em  Portugal, 
consagrado  á  memoria  do  misso  grande  poeta  ;  di- 
zemos que  existia  ,  porque  hoje  nem  vestígios  del- 
le  se  deparam  na  igreja  de  St.'  Anna,  a  qual  ha- 
Tendo  sido  reedificada  ,  por  occasião  do  terremoto 
de  17oo  ,  a  ninguém  lembrou  a  sepultura  de  Ca- 
mões,  apezar  da  campa  que  a  memorava.  Não  nos 
resta  pois  de  Luiz  de  Camões  outro  monumento  na- 
cional jlém  das  suas  obras  ,  sobejas  para  o  eterni- 
zar, e  que  mais  duradouro  será  sem  duvida  do  que 
qualquer  outro  ,  que  a  vaidade  dos  horaeus  como 
tardio  feudo  de  admiração  lhe  alevantaria. 

Conservaram-nos  ao  menos  os  seus  contemporâ- 
neos o  seu  retrato  ,  e  sobre  esse  foi  copiado  o  que 
mui  elegantemente  adorna  a  rica  edição  dos  Lusía- 
das publicadas  cm  Paris  pelo  já  por  nós  menciona- 
do morgado  de  Matheus  ,  litterato  distincto  ,  que  á 
memoria  de  tão  preclaro  compatriota  pagou  tão  no- 
bre quão  digno  tributo. 

Luiz  de  Camões  ,  segundo  diz  S.  de  Faria  ,  era 
de  meia  estatura,  cheio  de  rosto,  algum  tanto  car- 
regado da  fronte  ;  nariz  comprido ,  levantado  no 
meio  e  grosso  na  exlreraidade  ;  cabello  louro  qunsi 
açafroado  ;  genlil  e  engraçado  na  apparencia,  quan- 


do era  moco,  c  antes  de  perder  o  olho  direito.  Era 
no  traio  agradável  e  alegre  ,  até  o  lompo  em  qur, 
a  ad\ersidade  pezando  sobre  elle  o  fez  na  ultima 
idade  melanchcdico.  A  ternura  ,  e  sensibilidade  do 
seu  coração  vèem-se  nos  seus  versos  ,  e  na  paixão 
delicada  que  o  peito  lhe  ralara  ,  e  que  conservou 
constante  por  D.  Catharina  de  Ataíde.  O  amor  da 
sua  palria  predominava  sobre  todos  os  outros  senli- 
mentos  ;  o  seu  valor,  desinteresse,  nobreza  e  he- 
roicidade ,  eram  iguaes  a  quantos  os  tempos  <la  ca- 
vai la  ria  podem  oíTereccr-nos.  Mas  a  sua  constância 
e  fortaleza  na  extrema  adversidade,  sem  que  se  pos- 
sa mostrar  delle  uma  expressão  de  adulação  ou  de 
baixeza,  nem  que  se  repita  uma  só  de  fraqueza  ar- 
rancada pelos  padecimentos ,  o  farão  sempre  distin- 
guir cnlre  os  homens  maiores  de  todos  os  tempos  , 
por  esta  virtude  Ião  rara  ,  e  que  só  pertence  a  um 
caracter  eminentemente  superior  ás  distincções,  co- 
mo as  desventuras. 

A  antonomásia  de  Grande  que  a  posteridade  por- 
tugueza  lhe  outorgou,  c  que  somente  se  lera  dado  a 
alguns  soberanos  distiuctos  ,  parecerá  sem  duvida 
estranha  ás  pessoas  pouco  versadas  em  nossas  cou- 
sas,  e  ignaras  do  apreço  que  fazemos  deste  princi- 
pe da  poesia  nacional ;  todavia  essa  tal  ou  qual  es- 
tranheza cessará  ,  se  o  cidadão  cosmopolita  consi- 
derar que  o  sobrenome  de  Grande  cabe  a  Luiz  de 
Camões,  não  só  por  seu  mérito  relevante,  mas  lam- 
bem como  compensação  das  injustiças  que  soflreu 
ás  mãos  de  seus  contemporâneos. 

Não  nos  pertence  ,  a  nós  meros  compiladores  do 
epitome  da  sua  vida  ,  entrar  no  resumo  analytico 
das  bellezas  do  seu  poema,  nem  tão  pouco  lemos  a 
estulta  vaidade  de  nos  julgarmos  competentes  para 
similhante  empreza  ;  mas  ser-nos-ha  licito  antes  de 
concluirmos  esta  tarefa  dizer  que  para  avaliar  por 
seu  justo  valor  o  mérito  da  obra  ,  cumpre  que  Ca- 
mões ,  bem  a  similhança  do  poeta  que  foi  o  pai  da 
poesia  grega  ,  seja  visto  e  julgado  segundo  o  espi- 
rito da  nação  a  que  pertence,  e  o  século  em  que  vi- 
veu. Camões  foi  para  os  portuguezes  o  mesmo  qus 
Homero  fora  para  os  gregos  ,  o  primeiro  e  ao  mes- 
mo tempo  o  mais  nacional  dos  seus  poetas  :  nenhum 
outro  apoz  delle  soube  combinar  os  interesses  na- 
cionaes  do  seu  paiz  cora  a  vastidão  do  espirito 
poético  que  se  encontra  nos  Lusíadas.  Para  julgar 
da  sua  obra  devemos  recordar-nos  que  Camões  es- 
creveu em  uma  epocha  em  que  o  estilo  correcto  , 
formado  sobre  os  antigos  e  modernos  auctores  ita- 
lianos ,  acabava  de  apparecer  na  lilteratura  portu- 
gueza  ,  e  ainda  não  se  havia  arraigado.  Sob  cir- 
cumstaacias  taes,  Camões  esboçando  o  plano  da  sua 
epopea,  ficou  como  segregado  do  século  em  que  vi- 
veu :  foi  original  no  estilo  que  adoptou.  Camões  foi 
o  primeiro  poeta  moderno  que  conseguiu  merecer 
gera!  aceitação,  compondo  um  poema  heróico,  sober- 
bo pelo  estilo.  E  nem  esqueça  que  a  primeira  edição 
do  seu  poema  appareceu  em  1572,  em  quanto  a  Je- 
rusalém do  Tasso  foi  publicada  em  líJSO,  um  anno 
depois  da  morte  de  Camões.  Outros  modelos  não  ti- 
nha em  que  aprendesse  ,  se  exceptuarmos  Trissino, 
Bojardo  ,  e  Ariosto.  Do  primeiro  pouco  podia  co- 
lher ,  e  ainda  que  do  segundo  e  terceiro  podesse 
aprender  muito,  nada  por  certo  com  relação  a  fogo 
poético  e  estilo  próprio  de  um  poema  heróico  na- 
cional. 

Camões  foi  original  em  toda  a  sua  composição: 
cheio  de  patriotismo  e  de  heroisrao  ,  o  seu  poema 
respira  uma  nacionalidade  que  não  pôde  ser  exce- 
dida. Camões,  bem  como  o  Ariosto,  c  complelametilo 


86 


O  PANORAMA. 


o  homem  do  seu  século  e  do  seu  paiz  ;  como  ura 
dos  primeiros  poelas  foi  elle  julgado  pelos  sábios 
seus  coevos  ;  que  indifferentc  não  é  o  julgado  do 
Jmmorl.ll  Tasso.  A  posteridade  lhe  lera  feito  não 
menor  justiia,  c  posto  alguns  zoilos  hajam  com  des- 
douro próprio  procurado  menoscabar  o  mérito  re- 
levante do  Vate  que  tanto  renome  deu  á  sua  pátria, 
sobram  milhares  de  homens  de  lettras  de  todas  as 
nações ,  que  a  sua  memoria  tem  vingado  da  inju- 
riosa c  não  merecida  critica.  Falta  somente  que  a 
nação  portugueza  pague  o  feudo  expiatório  de  gra- 
tidão que  os  nossos  antepassados  do  século  16."  lhe 
denegaram  ,  erigindo  ;í  memoria  do  immortal  can- 
tor de  nossos  feitos  sublimados  condigno  monu- 
mento ,  que  atteste  aos  vindouros  o  apreço  ,  que  os 
portuguezes  fazem  do  príncipe  dos  seus  poetas  ,  o 
Gbande  ,  Liiz  DE  Camões. 

P.  M. 

PORTUGAL. 

XXIV.-  :-i,    ,r;.^ 

Como  a  villa  de  Santarém  houve  vários  nomes. 

(Conclusão.) 

Foi  pelos  fins  do  selimo  século  da  era  vulgar  que 
«m  successo  maravilhoso  e  de  grande  assombro  deu 
o  nome  de  Santarém  a  esta  nossa  villa.  Força-nos  a 
estreiteza  d'um  artigo,  que  já  foi  crescido',  a  ca- 
larmos tantos  feitos  gloriosos  .  tantas  e  tão  grandes 
recordações,  que  neste  só  nome  se  cifram  como  era 
famoso  compendio  da  historia  portugueza  :  diremos 
somente  o  donde  elle  veio  ;  cm  que  de  muitos  seja 
íabido.  Vivia  por  aquelles  sitios  ,  aonde  hoje  é  a 
Tilla  de  Thomar  ,  um  cavalleiro  mui  illustre  cha- 
mado Ermigio ,  casado  com  uma  nobre  dama  por 
nome  Eugenia  :  eram  senhores  de  grande  estado  e 
de  muitas  terras  ,  c  segundo  as  leis  da  nobreza  da- 
quellcs  tempos  apontados  como  os  maiores  valedo- 
res  daquelles  contornos  :  quiz  o  céu  coroar-lhes  tan- 
ta dita,  de  que  gosavam  em  mutuo  amor,  dando- 
Ihcs  delia  o  mais  abençoado  e  querido  fructo,  uma 
lilha  mui  formosa. —  Ircuc  foi  o  nome  que  lhe  elles 
deram  com  o  baptismo.  Cresceu  a  menina  ,  e  se 
avantajou  tanto  em  virtudes ,  c  em  belleza ,  que 
em  outra  cousa  não  se  faltava  com  maiores  gabos  c 
louvores.  Era  donzella  formosa,  nobre,  e  rica;  cer- 
to eslava  que  seria  sua  mão  disputada  por  importu- 
nos pertendentes  :  mas  a  outro  estado  a  chamavam 
seu  espirito  c  sua  inclinação  ;  votara  já  no  seu  co- 
ração a  Deus  a  pureza  de  sua  alma  ,  sua,  virginda- 
de.—  Não  seria  sem  muitas  lagrimas  que  seus  pais 
eonsentiiam  cm  que  se  ella  fosse  na  companhia  de 
suas  lias,  que  eram  religiosas  de  grande  fama  de 
santidade  ,  para  com  mestras  tão  provadas  se  insti- 
tuir em  todas  as  |)crfeições.  Lá  se  vai  Irene  fugin- 
do ao  mundo  ,  e  dando  costas  ás  suas  grandezas  ,  e 
.1  esses  todos  encantos ,  com  que  tantas  almas  se 
tnrcdam  e  se  caplivam  ,  cncerrar-sc  em  um  pobre 
mosteiro  junto  ao  rio  Nabão.  Por  esse  retiro,  por 
essa  pol)reza,  pela  estreiteza  d'essa  pobre  cclla  tro- 
cara cila  de  b(mi  grado  muitos  mundos,  se  os  hou- 
vera ;  por  um  só  dia  de  i)rática  com  as  santas  mon- 
jas ;  por  um  serão  de  hymnos  celestes  entro  as  vir- 
gens que  a  rodeain  ;  por  uma  só  hora  de  enleio  nas 
contcmiilaçães  divinas  ;  por  uni  só  momento  da  ora- 
ção matutina,  com  que  seus  lábios  mais  puros  que 
■*)  ar  da  madrugada  louvara  o  Creador  ;  por  esse  só 


momento  dera  ella  séculos  de  vida  muito  regalada. 
Foge  ella  o  mundo  ,  quanto  o  mundo  e  suas  maio- 
res grandezas  a  perseguem  :  vai  traz  ella  a  fama  de 
sua  belleza  e  de  suas  estremadas  virtudes.  —  Bri- 
taldo  se  enamora  desta  donzella  tão  apaixonadamen- 
te ,  que  já  é  certo  o  morrer  d'amores  ,  ou  do  nojo 
que  leva  em  não  ser  correspondido;  era  mancebo 
poderoso,  e  ajudado  do  grande  valimento  dos  seus, 
a  quem  era  grandíssimo  cuidado  o  vè-lo  assim  aca- 
bar c  finar-se  de  magua  ;  tudo  move  ,  tenta  todos 
os  meios,  e  só  consegue  desenganos.  Também  o  de- 
sengano c  ás  vezes  remédio  :  com  clle  não  guare- 
cia  de  todo  o  mancebo  ;  mas  não  crescia  o  mal :  e 
nessas  tréguas  folgava  o  coração  de  Irene  como  li- 
vre d'importunos  requerimentos  :  porem  essa  alma 
pura  era  destinada  a  grandes  combates.  —  A  coroa 
de  virgem  tinha  de  ser  laureada  com  o  sangue  do 
martyrio.  Remigio  ,  monge-sacerdote  ,  seu  próprio 
confessor  ...  é  o  lerrivel  instrumento  que  o  inferno 
escolhe  ...  baldadas  vê  o  monstro  suas  diabólicas 
astúcias  :  já  não  ha  traças  que  imaginar  ,  nem  ci- 
ladas que  encobrir  ;  só  em  vingar-se  põe  agora  to- 
do o  seu  cuidado.  Vingança ,  e  vingança  do  infer- 
no 1  a  infâmia  antes  da  morte  !  Não  é  veneno  ,  que 
possa  logo  mata-la  ,  que  elle  confeiçòa  ;  mais  terrí- 
vel é  ainda  o  eíTeito  d'essa  droga  infernal  !  A  vir- 
gem a  toma  no  pão  e  na  agua  do  jejum  ;  e  logo 
ancicdade  mortal  lhe  aperta  o  innocente  coração ;  o 
casto  rubor  ,  que  embellezava  suas  faces  ,  agora  é 
pallidez  do  sepulchro  ;  incham-lhe  as  entranhas  ,  e 
estala  o  cilicio,  que  já  não  pôde  abarcar-lhe  a  cin- 
tura ...  Folga  o  monstro  com  o  efTeito  ;  espalha  as 
mais  negras  blasfémias  contra  a  donzella  ;  Crraa-se 
nas  apparencias  ,  e  accende  o  ódio  e  a  vingança  no 
animo  sentido  de  Britaldo.  Compram-se  algozes  ,  e 
a  innocente  e  casta  virgem  soffre  o  martyrio  ,  e  seu 
corpo  é  lançado  ao  rio  e  levado  pelas  correntes  até 
defronte  da  villa  Scalabis :  misterioso  sepulchro  o 
ene  rra.  Correm  de  toda  a  parte  a  admira-lo  os  po- 
vos aonde  chega  a  noticia  do  portento  :  na  grande- 
za da  obra,  na  admiração  do  lavor,  na  immobilida- 
de 'da  pedra  ,  que  resiste  a  todas  as  forças  huma- 
nas ,  na  incorrupção  do  corpo  ,  nos  prodígios  ,  nas 
maravilhas,  era  tudo  se  reconhece  a  obra  de  Deus: 
Irene  é  proclamada  santa  ,  virgem  e  martyr ,  e  in- 
vocada a  sua  protecção  com  grande,  fructo.  Lá  se 
vão  já  caminho  de  Roma  o  louco  amante,  e  os  des- 
temidos algozes  chorando  em  penitente  romaria  ,  e 
confessando  por  esse  mundo  suas  culpas  e  seu  cri- 
me. O  Tejo  recobre  com  suas  aguas  o  sagrado  de- 
posito que  recebera  das  mãos  dos  anjos ;  c  a  villa 
de  Scalabis  toma  o  nome  de  Santa  Irene  ,  e  o  con- 
serva quasi  inteiro  vai  já  por  doze  séculos  como  il- 
lustre epitapbio  da  santa  virgem  e  marlyr  Irene. 


o  imperador  Nicolau :  a  musica  c  thcatros  de  Moscou- . 

Faz  dois  annos  qne  um  observador ,  que  percorreu 
o  norte  da  Europa  ,  consignou  á  imprensa  os  seus 
curiosos  apontamentos.  Tendo  a  fortuna  de  ser  hos- 
pedado ,  na  antiga  capital  russiana  ,  sob  o  tecto  do 
autocrala  ,  conta  algumas  anccdotas  da  corte;  quan- 
do alii  reside  ;  entre  ellas  achámos  nolaveis  as  (|U(! 
em  seguida  cxirahimos. 

—  A.  mesa  do  imperador   é  preparada  com  deli- 
cadeza c  gosto ,   sobresahindo   mais   em   elegância 


o  PANORA3IA. 


87 


que  Pm  profusão  ...  O  cosinhciro  r  francez.  A  so- 
briedade dl)  czar  «';  excessiva  ,  porque  não  só  se  li- 
inita  a  pouco,  quando  está  repousado,  mas  lambem 
indo  de  jornada  liasta-lhe  para  alimento  diário  uma 
aza  de  franjt.âo  e  uma  parva  ilc.  pão.  Os  almoços 
são  ministrados  nos  quartos  destinados  a  cada  pes- 
soa :  todas  as  manliaãs  vinha  um  creado  saber  se 
ou  tinha  alguém  que  me  fizesse  companhia  ,  c  se- 
ixundo  a  resposta  trazia  o  almoço. 

As  camarás ,  para  assim  dizer  ,  tem  só  três  pa- 
redes ,  porquanto  a  outra  ,  onde  fenece  o  forro  ou 
armação,  é  quasi  toda  tomada  por  uma  poèle  (1) 
immensa  de  louça  ,  que  só  uma  vez  ao  dia  c  forne- 
cida de  combustível  e  que  mantém  pcrennc  uma 
temperatura  mui  quente  :  a  sensação  do  frio  ó  tão 
desconhecida,  tão  impossivel  n'um  quarto  desfar- 
te  aquecido  ,  que  se  escusam  na  cama  cobertores  ; 
posto  que  cu  a  não  sentisse,  parecia-rac  mal  achar- 
me  no  mcz  de  novembro  apenas  com  um  lençol  cm 
cima  da  pelle  :  cubri-mc  uma  vez  com  o  capote  ;  e 
o  creado  ,  que  tinham  nomeado  para  me  servir  , 
perguntou-me  se  tinha  frio  ,  respondi-lhe  que  fazia 
isto  por  costume  antigo.  "Está  bem,  requererei  pa- 
ra o  senhor  um  cobertor  de  laS»  :  e  no  dia  seguin- 
te o  intendente  ou  mordomo  ,  depois  de  ter  dado 
busca  a  toda  a  guarda-roupa  do  palácio ,  veio  pes- 
soalmente annunciar-me  que,  sendo  caso  imprevis- 
to, não  havendo  quem  se  tivesse  queixado  de  frio  . 
não  fora  possivel  achar  uma  coberta  de  laã  cm  toda 
aquella  residência  de  sua  magestade  imperial  ;  of- 
ferecia-se-me  para  comprar  cobertor,  recusei  como 
é  bem  de  crer. 

O  palácio  em  que  mora  o  czar  no  Kremlin  não 
é  o  que  costumava  habitar  seu  irmão  Alexandre  ; 
que  delle  se  não  removeu  nem  um  movei,  respei- 
tando o  successor  a  que  fora  escolhida  pousada  do 
defunto.  —  O  imperador  reinante  costuma  alojar- 
se  no  palácio  archíepiscopal ,  que  por  ser  benzido 
quando  residência  do  prelado  conservou  a  condição 
de  logar  sagrado. 

Certo  dia  ,  o  czar  Nicolau  ouviu  fallar  de  umas 
cantarinas  ambulantes,  a  que  chamam  zinganas  (2), 
que  os  senhores  moscovitas  convidam  para  diversão 
de  suas  serenatas ;  quiz  também  ouvi-las  ,  e  dcs- 
lembrando-se  de  que  essa  gente  mesquinha  era  ex- 
comungada pelo  clero  grcgo-russo ,  mandou  que  en- 
trassem no  palácio  hentn :  alegre  foi  o  serão  com  as 
cantorias  das  recem-chegadas,  e  sua  magestade  pa- 
gou-lhes  generosamente.  Tudo  se  passou  ás  mil  ma- 
ravilhas ,  mas  no  dia  imraediato  appreseutou-sc  o 
governador  de  Moscow  no  gabinete  do  imperador. 
—  Que  novidade  ha  lá  por  fora,  principc  Gallitzin? 
...  —  «O  que  ha  de  novo  ,  senhor,  c  o  immenso 
cscandak)  que  traz  amotinada  toda  a  nossa  clere- 
zia."—  (lE  então  que  succedeu?  .  .  »  —  «Uma  pro- 
fanação ...  as  zinganas  malditas,  excommungadas, 
foram  admittidas  a  um  logar  santificado  ;  e  o  arce- 
bispo está  furioso.»  —  «E  quem  se  atreveu  a  pro- 
fanar a  igreja?.  .<>  —  «Não  foi  a  igreja,  senhor,  foi 
o  palácio  do  arcebispo  ,  igualmente  bento  ,  que 
cilas  com  sua  presença  mancharam  ;  e  o  culpado  é 
vossa  magestade.»  —  «Capacito-rae  que  tens  razão; 
nem  pela  ideia  me  passou  que  estava  em  terra  san- 
ta. E  o  arcebispo  está  fora  de  accórdo?  .  .»  —  «Será 
contenda  difficil  de  accomodar.  »  —  «Que  terei  de 
fazer  para  reparar  o  meu  descuido?  .  .  Dar-se-ha 
caso  que   o  arcebispo  por  esta  occasião  níida  esi- 


(1)     Falta-nos  o  equiv.ilenle  deste  leiíno,    porque  falta- 
va o  traste,  que  i  mui  diverso  do  que  chamimos  foção. 
(S)      Provavelmenle  ti  ganas  ,  do  italiano  zingare. 


ja?..»  —  «Creio  que  sollicita  o  aformoscamcnlo 
d'uma  igreja,  accrescentar-sc-lhe  uma  capclla  ,  ou 
cousa  deste  jaez  ;  não  sei  bem  o  que  .  .  .»  —  Pois  , 
depressa  ,  venham  os  riscos  :  enfeite-se  a  igreja  , 
faça-se  a  capclla  ,  e  o  mais  (iiie  pede  o  prelado  . 
com  tanto  que  se  esqueça  das  raparigas  excommun- 
gadas. Para  a  outra  vez  irei  ouvi-las  fora  de  minha 
casa  .  .  .  que  na  verdade  cilas  cantam  bem!  » 

Jlas  não  se  julgue  que  esta  musica  semi-bravía  , 
postoquc  pela  novidade  agradável,  é  o  único  diver- 
timento deste  género  que  desfructam  os  habitantes 
de  Moscow  :  a  cidade  tem  dois  theatros  ;  o  primei- 
ro, o  maior  em  capacidade  que  ha  na  Euro|>a,  sem 
exceptuar  S.  Carlos  de  Nápoles  ,  reproduz  em  tra- 
ducções  russianas  os  dramas  principaes  da  scena 
franccza  :  ahi  tem  tido  representações — Roberto  dn 
Diabo  ,  c  com  decorações  esplendidas,  vestuário  ri- 
co ,  mas  cantores  detestáveis.  O  imperador  não  ti- 
nha noticia  desta  opera  ,  e  apesar  da  mediocridade 
do  desempenho  delia  ,  conheceu-lhc  logo  o  mérito  , 
e  por  consequência  pediu  a  partitura,  e  applicou-se 
a  estudar  o  bello  trio  do  ultimo  acto  ,  que  lhe  fi- 
zera grande  impressão. 

Para  que  se  ajuize  do  quanto  o  imperador  Nico- 
lau preza  as  artes  agradáveis ,  em  que  é  bom  en- 
tendedor, relataremos  outra  anecdota,  que  teve  lo- 
gar na  córle  de  S.  Petcrsburgo  ,  e  que  ao  mesmo 
tempo  indica  os  singulares  usos  daquelle  paiz. 

Sahiu  n'um  dia  o  czar,  acompanhado  de  seu  ir- 
mão, o  grão  duque  Miguel,  e  sem  guarda  d'hon- 
ra ,  como  é  seu  costume ,  a  gosar  a  i)crspectiva 
grandiosa  de  Niewsky  :  pelo  passeio  á  esquerda  se- 
guia placidamente  seu  caminho  \'ernet,  actor  fran- 
cez, que  tinha  representado  excellcntemenlc  na  vés- 
pera em  um  drama  novo.  O  czar  parou  e  chaniou-o 
pelo  nome  próprio  : — Senhor  !  —  respondeu  o  actor. 
—  «Quero  cumprimentar-vos  pelo  o|ilimo  desempe- 
nho d'hontem.  —  «O  voto  de  vossa  magestade  é  pa- 
ra mim  de  grandíssimo  apreço.»  —  «Desejarei  tornar 
a  ver-vos  desempenhar  a  mesma  parte  :  fiquei  sura- 
mamente  satisfeito  ,  e  ao  eiicontrar-vos  não  pude 
resistir  ao  prazer  de  manifestar  a  minha  approva- 
ção.  —  O  imperador  proseguiu  seu  passeio,  e  Ver- 
nct  permaneceu  alguns  minutos  parado  ,  regozijan- 
do-se  do  elogio  ,  que  recebera  ;  e  antes  que  sahisse 
do  êxtase  ,  uma  transição  súbita  lho  recordou  a  vi- 
cissitude das  cousas  humanas,  sentiu  que  pela  gola 
da  casaca  o  seguravam,  e  era  a  mão  pesada  de  um 
commissario  de  policia  —  «Alto  aqui!»  —  Que  é  o 
que  me  quereis?»  —  Estais  preso.,  é  prohibido 
chegar  ao  pé  da  pessoa  do  nosso  imperador  quando 
elle  anda  a  passeio.»  —  «Mas  sua  magestade  c  que 
veio  ter  comigo.  .  .» —  Boa  historia  é  essa  !  Estes 
meus  amigos  francezes  medem  tudo  pela  mesma  bi- 
tola, e  crêem  que  podem  fazer  quanto  lhe  vem  á  ca- 
beça .  .  .  Tratar  de  scguir-me  ,  e  nada  de  resistên- 
cia.»—  E  Verrret  foi  levado  á  força  para  a  casa  da 
guarda,  onde  o  retiveram  vinte  e  quatro  horas,  não 
obstante  as  suas  instantes  reclamações.  —  Dahi  a 
poucos  dias  o  actor  repetiu  na  sceua  o  níesrao  pa- 
pel, e  o  imperador  applaudiu-o  bondosamente.  Fin- 
do o  espectáculo  ,  sahiu  do  camarulc  o  czar  ,  e  ao 
entrar  nos  corredores  viu  um  homem  cozido  com  a 
parede,  e  que  evidentemente  esperava  que  elle  pas- 
sasse ;  sois  vós,  Vernet?  nova  prova  destes  do  vos- 
so talento.»  —  Agradeço  a  vossa  magestade  tanta 
indulgência  ,  mas  rogo  que  por  sua  nimia  bondado 
a  não  manifeste  em  qualquer  occasião  que  me  pos- 
sa encontrar.»  —  Porque  dizeis  isso?»  —  Porque  <> 
benévolo  acolhimento  de  vossa  magestade  ,   ha  bens 


88 


O   PAINORAMA. 


poucos  dias,  rendeu-nie  vinie  e  quatro  horas  de  re- 
clusão á  ordem  de  um  comraissario  de  policia,  que 
SC  julga  tom  direito  de  impedir  que  alí;uem  falle 
ao  seu  imperador.  —  É  possivcl  que  assim  seja?  .  .  . 
Isso  é  demais  .  .  .  saberei  como  isso  foi .  .  »  —  No  dia 
seguinte  ,  ainda  Vcriiet  estava  meio  vestido  ,  já  vi- 
nha visita-lo  o  commissario  de  policia  agarrador , 
supplieando-lhe  com  todas  as  veras  que  lhe  descul- 
passe o  engano,  porcjue  se  achava  suspenso  do  car- 
go em  quanto  não  obtivesse  perdão  da  parte  oflen- 
dida.  Vernct  absolveu  o  homem,  por  escri[ito  ,  co- 
mo é  de  suppor. 


NOVOS  INVENTOS. 

SdBSTITCIÇÃO  ás  rodas  dos  barcos  i   VAPOR 
PKLO  CILISDRO. 

O  Mi.MSTBO  da  marinha  em  França  encarregou  ain- 
da ha  pouco  o  conde  d'Oysonville  c  Mr.  Aleinerel  , 
engenheiros  constructores  ,  d'examinar  as  vantagens 
da  substituição  dos  cilindros  [hélice]  a's  rodas  late- 
racs.  Com  eireito  todos  os  homens  (Farte  são  uni- 
formes em  reconhecer  os  graves  inconvenientes  des- 
tas machinas,  que  requerem  uma  certa  dimensão  nos 
vasos  ,  fundo  chato  ,  e  por  isso  mesmo  pouco  pró- 
prias para  vela  ,  e  exigindo  inutilmente  uma  força 
jnaior  para  vencer  a  resistência  da  agua  que  ellas  mes- 
mas elevara.  Os  cilindros  pelo  contrario  colocados  na 
culatra  [no  fundo  da  popa]  do  navio  não  levantam  a 
agua,  antes  a  atacam  c  afastam  obliquamente.  Alem 
disto  permittem  calafetar  e  crenar  a  embarcação  , 
e  prepara-la  cm  fim  de  modo  que  sustente  a  vela  e 
se  firme  sobre  ornar:  o  choque  é  muito  menos  con- 
siderável, o  balanço  mais  brando,  e  o  gasto  do  com- 
bustível ineuor. 

Os  inglczesconslniiram  logo  um  destes  barcos  em 
Dover  ,  da  força  do  80  cavallos,  ao  qual  chamaram 
Archimcdes.  O  cilindro  foi  ideado  e  construído  por 
um  francez,  BIr.  Sauvagc,  antigo  constructor  de  na- 
vios. A  velocidade  desta  embarcação,  que  anda  de 
Dover  ))ara  Calais,  é  maior  que  a  de  todos  os  outros 
Larcos  a  vapor  que  ahi  navegam  com  rodas,  não  obs- 
tante que  a  força  motriz  d'aquella  seja  menos  consi- 
derável. 

Os  americanos  inglezes  usam  também  já  desta  no- 
va construcção  ;  e  se  as  experiências  repetidas  con- 
lirmarem  as  esperanças  de  sua  preferencia,  é  fora  de 
duvida  que  os  barcos  com  o  cilindro  serão  exclusi- 
vamente encarregados  das  navegações  trans-atlanti- 
cas  ,  nas  quaes  a  economia  do  combustível  é  condi- 
rão essencial. 

Da  natureza  dos  tebbexos. 

Cada  terreno  tem  suas  propriedades  naluraes,  mais 
iju  menos  aptas  para  as  dilfcrentes  espécies  de  cul- 
tura ,  c  para  certos  e  determinados  vegetaes  :  in- 
vertida esta  ordem  a  cidheita  será  ou  nenhuma,  ou 
fraca,  ou  nimiamentedispendiosa  :  ocorrcctivo  des- 
te absurdo  está  no  perfeito  coidiecimento  das  terras. 
Os  naturalistas  c  geólogos  coutam  quatro  espécies  de 
terras  primitivas  : 

1.''  Silex  ,  ou  terra  arenosa. 

2.°  Cal,  ou  terra  calcarea. 

3.'   Argila  ,  ou  terra  grcdosa. 

i.'  Magne^ia  ,  ou  terra  talcosa. 


Mas  os  solos  puros  raramente  existem  na  nature- 
za :  sua  mistura  ,  em  proporções  variadas ,  6  que 
forma  os  solos  ou  terrenos  compostos,  cuja  denomi- 
nação resulta  da  parte  ou  ingrediente  predominante. 

Esta  denominação  mesmo  não  é  fixa  e  homogé- 
nea ;  cada  província  lhe  dá  o  nome  usado  e  conhe- 
cido praticamente  dos  cultivadores,  os  quaes  mais 
ordinariamente  distinguem  os  terrenos  por  sua  pro- 
priedade mais  ou  menos  productíva  ,  mais  ou  me- 
nos apparcnte  :  assim  dizem  terras  furtes,  terras  fra- 
cas,  terras  húmidas  ,  terras  seccas  ,  ^'c. 

A  divisão,  porem,  que  nos  parece  mais  clara, 
e  adaptada  á  sua  composição  primitiva  é  a  seguinte. 

1.°  Terreno  (/reíioío,  mais  ou  menos  firme  e  lodoso. 

2.°  Terreno  calcareo ,  composto  d'arèa's  e  saibro. 

3.°  Terreno  barrento,  de  barro  gredoso,  barro  cal- 
careo, arenoso,  saibroso,  e  ferrenho. 

4.°  Terreno  pahoír*; ,  mais  ou  menos  turfáceo. 

'ó.°  Terreno  d'arnciro  ou  charneca. 

A  natureza  das  terras  já  hoje  é  conhecida  exacta 
e  scientificamente  porraeio  da  analyse  chimica,  que 
decnmpoudo-as  aprecia  e  determina  suas  partes  cons- 
titutivas. Porem  o  modo  mais  fácil  para  os  cultiva- 
dores em  gerai  é  observar  as  plantas  que  ahi  nas- 
cem e  crescem  espontaneamente.  Se  estas  prospe- 
ram ,  se  fiorecem  e  chegam  a  um  estado  forte  e  vi- 
çoso ,  conhcce-se  por  ahi  que  é  terreno  próprio  e 
adaptado  para  os  vegetaes  do  mesmo  género.  Siga- 
mos porem  a  classificação  commum  e  vulgar  para 
sermos  entendidos  de  todos. 

Terras  fortes  chamam-se  aquellas  que  são  gros- 
sas, substanciaes  e  unctuosas,  que  se  podem  amas- 
sar entre  os  dedos:  destas  as  pardas-escuras  são  as 
melhores.  Differem  estas  das  terras  chamadas  gros- 
sas,  que  participam  mais  da  natureza  d'argila  ou 
terra  barrenta,  e  da  terra  grcdosa  que  serve  somen- 
te para  fazer  louça.  No  numero  das  terras  fortes  se 
podem  comprehender  algumas  pedregosas  que  são 
bastante  férteis,  c  destas  algumas  todas  negras  que 
são  diíliceis  d'amanhar. 

IWra  ligeira  ou  fraca  éaquella  cujos  torrões  não 
fazem  corpo  nemadherencia  ;  c  toda  desunida  :  des- 
tas as  negras  são  melhores  que  as  outras. 

Terra  húmida,  c  ordinariamente  boa  em  si  mes- 
ma, porem  a  agua  demasiada  a  prejudica,  e  por 
tanto  não  é  productíva  sem  que  primeiro  seja  san- 
grada por  meio  de  valas  ou  sargetas. 

Terras  arecntas  e  sêccas  são  de  duas  espécies  , 
uma  esbranquiçada  que  só  serve  para  bosque  ,  ou- 
tra amarelada  ou  parda  .  que  pôde  produzir. 

Os  defeitos  geraes  que  teem  as  terras  são  ou  le- 
rem demasiada  humidade,  que  as  faz  pesadas  e  frias, 
ou  muita  seccura  que  as  torna  ligeiras  ,  pulveru- 
lentas, e  por  isso  ardentes.  Estes  defeitos  se  devem 
emendar  cora  os  meios  contrários  :  estes  meios  são 
os  estrumes  e  a  caldeação  ou  mistura  de  terras  que 
tornem  suas  propriedades  mais  em  harmonia  com  a 
fertilidade.  Isto  a  que  chamámos  caldeação  c  o  qne 
os  francezes  denominam  amendemeni .  Neste  artigo 
não  nos  propomos  tratar  dos  estrumes  cm  geral,  que 
isso  fica  reservado  para  outro  logar  ;  aqui  só  os  apon- 
támos como  um  dos  correctivos  dos  raáus  terrenos. 
.4ssíra  que  ,  para  corrigir  as  terras  sèccas  e  quen- 
tes são  preferíveis  os  estrumes  que  as  refrescam  , 
quaes  são  os  dos  bois  ,  dos  porcos  ,  as  lamas  e  lo- 
dos gordurentos  ;  para  os  terrenos  húmidos  os  es- 
trumes quentes  e  ligeiros  como  são  os  de  gado  ca- 
brum  e  ovelhum  ,  os  de  pombos,  bestas  cavallares, 
e  os  mames.  <  Continua.) 

J.  da,  C.  iV.  C. 


65 


o  PANORA3IA. 


89 


A  PHEExcELLExciA  dc  Raphacl  sobre  todos  os  mestres 
da  eschola  romana  ,  som  exceptuar  Miguel  Angelo, 
deriva  da  penetrante  intelligcncia  com  que  aquelle 
grande  artista  concebia  e  dispunha  grandes  compo- 
sições, appresentando  combinações  magestosas  e  sig- 
nificativas ,  provas  de  fertilidade  e  viveza  de  enge- 
nho ;  ao  passo  que  não  sacrificava  as  mais  elevadas 
condições  da  arte  ás  que  são  reputadas  meramente 
accessorias  e  superficiaes  :  será  disto  bello  exemplo 
o  cartão  que  intitulam  S.  Paulo  prcfjando  em  Athe- 
nas.  Achando-se  neste  foco  da  civilisação  grega  o 
insigne  apostolo  das  nações,  foi  desafiado  pelos  phi- 

iVLvKço  2a— 184a. 


losophos  para  fazer  publica  declaração  de  suas  dou- 
trinas á  celebre  cúria  do  Areópago  :  acceilando  o 
convite  entrou  no  templo  do  gentilismo  e  subindo  a 
um  logar  dos  mais  notáveis  ,  fallou  assim  aos  cir- 
cumstantcs:  «Varões  athenienses  ,  cm  tudo  vos  ve- 
jo como  mui  supersticiosos  :  porque  passando  e  ven- 
do os  vossos  simulacros  ,  achei  também  uma  ara 
cora  esta  inscripção  :  Ao  Deus  não-conhccido.  Aquel- 
le ,  pois  ,  que  vós-outros  adoraes  sem  o  conhecer  , 
esse  vus  annuncio  eu." 

O  effeito  ,   que  no  auditório  produziu  aquelle  so- 
lemne  exórdio,  foital  qual  crad'esperar  da  promul- 
2,"  Serie.  —  Voi,.  II. 


90 


O   PANORAMA. 


jarão  de  doutrina  Ião  nova  como  imporlante.  As 
pessoas  que  rodeam  o  apostolo  não  hãode  conside- 
rar-se  como  uma  assemblea  promíscua  de  indiví- 
duos ,  sendo  fóra  de  duvida  que  o  intento  do  pin- 
tor foi  personificar  em  cada  figura  uma  classe  ou  sei- 
ta da  philosophia  grega,  o  que  facilmente  pódc  dis- 
tinguir-sc  na  attitudc  c  semblante  de  cada  indivi- 
duo. A  uma  parte  nota-se  o  cynico  embebido  em 
cogilarões ,  buscando  argumentos  e  dúvidas  para 
oppor  ;  de  outra,  o  estóico  apoiado  no  báculo  expri- 
me na  insolência  do  semblante  a  incredulidade  obs- 
tinada :  no  entanto  que  os  discípulos  de  Platão,  sem 
prestarem  inteira  fú  aos  myslerios  expostos  pelo  apos- 
tolo .  dão  mostras  de  comprazimento  na  formosura 
c  sublimidade  d'uma  doutrina  ,  a  muitos  respeitos 
parecida  com  a  sua  ;  pelo  que  escutam  com  alten- 
ção.  A  outro  lado  se  deixa  vèr  um  grupo  dedispu- 
tadores  .  sofistas  ,  e  impugnadores  de  toda  e  qual- 
quer religião,  embrenhados  cm  discussão  vehcmen- 
te  ,  mais  por  ostentar  subtileza  que  por  dilucidar  a 
verdade.  Ao  fundo  do  painel ,  a  considerável  dis- 
tancia ,  divisam-se  dois  rabbinos  ou  doutores  he- 
breus ,  que  tendo  ouvido  o  discurso  dão  costas  ao 
missionário  evangélico  em  demonstrarão  de  despre- 
zo ao  annuncio  das  profecias.  —  Á  primeira  vista  , 
lançada  sobre  o  desenho,  o  espectador  vê  logo  a 
principal  personagem  ,  S.  Paulo  ,  a  quem  o  artista 
revestiu  de  todas  as  circumstancias  convenientes  á 
dignidade  da  pessoa  ,  e  alta  valia  da  missão.  Re- 
presentou-o  em  pé  ,  immedíato  ao  primeiro  plano  , 
em  logar  eminente  e  a  bastante  distancia  do  audi- 
tório :  na  acção  parece  divisar-se-lhc  a  um  tempo 
a  serenidade  e  a  energia  ,  é  simples  e  mageslosa , 
c  comtudo  inQammalla  de  cnthusiasmo  divino  :  ao 
vè-lo  não  podemos  deixar  deformar  idéa  de  que  lhe 
está  manando  da  boca  a  torrente  de  eloquência  ir- 
resistível. O  effeito  immediato  do  seu  discurso,  e  o 
triumpho  eventual  da  sua  doutrina,  sufficientcmen- 
te  estão  patenteados  na  conversão  de  Damaris  e  de 
Dionísio  o  areopagita  ,  as  duas  primeiras  pessoas  no 
quadro ,  e  que  demonstram  no  olhar  e  nos  gestos 
de  affecto  a  sua  convicção  sincera  ,  a  renunciação  á 
idolatria  ,  e  a  resolução  de  abraçarem  a  fé  de  Jesu 
Christo. 

Os  edificios  ,  sem  embargo  da  inconsistência  no 
estilo  d'architcctura  em  que  alguém  faz  reparo,  são 
formosos  objectos  no  seu  tanto  ;  são  templos  das  di- 
vindades pagãs,  cujo  culto  o  apostolo  está  condem- 
nando  ;  pelo  que  tem  connexão  immediata  com  o  as- 
sumpto do  cartão.  Alem  de  que  ,  assim  por  elles 
como  pelas  estatuas  próximas,  quereria  o  pintor  ca- 
racterisar  a  cidade  de  Atheuas ,  crcadora  do  bom 
gosto  nas  artes,  e  empório  de  fausto  e  riquezas. — 
Em  summa  no  todo  do  painel  sobresahe  a  rara  ha- 
bilidade c  perspicácia  de  Ilapbael  na  invenção  e 
disposição  dos  assumptos. 


O  Bono. 

VIU. 

Rcconriliação. 


Ape>í8  Fr.  Hilarião  e  o  Lidador  voltaram  costas 
para  se  dirigirem  á  sala  do  banquete  ,  na  qual  se 
achavam  reunidos  já  quasi  todos  os  rícos-homens  c 
inf.inçõcs  viiulos  á  solemnidade  daquelle  dia,  o  ca- 
vaiiciro  cruzado  se  encaminhou  apressadamente  ao 


longo  da  corrcdoura  onde  fallára  com  elles.  Aquel- 
la  passagem  estreita  ia  por  todo  o  circuito  do  cas- 
lello  ,  acompanhando  o  edifício  irregular  dos  paços 
c  suas  accommodações  o  olBcinas.  De  espaço  a  es- 
paço alargava-se  n'uns  terreirinhos  onde  se  viam 
amontoados  instrumentos  e  arrcmeços  de  guerra. 
Para  esta  espécie  de  pateo  desciam  escadas  de  pe- 
dra que  davam  communicação  aos  adarves ,  ou  an- 
daimos da  grossa  muralha  exterior ,  c  ao  lado  de 
cada  um  delles  bojavam  para  dentro  as  torres  ma- 
cissas  e  quadrangulares  que  defendiam  as  qoadrel- 
las  do  muro.  Nesse  ponto  a  senda ,  geralmente  es- 
treita e  soturna  ,  se  tornava  ainda  mais  apertada  , 
e  ás  vezes  mais  tenebrosa,  porque  algumas  das  tor- 
res se  ligavam  ao  palácio  por  largos  passadiços  lan- 
çados por  cima  delia. 

Egas  Jloniz  passou  successivamente  três  dos  ter- 
reirinhos ,  até  que  a  final  parou  debaixo  do  escuro 
arco  de  pedra,  que  se  abria  na  extremidade  do  ter- 
ceiro. Este  ,  differente  dos  outros  ,  em  vez  de  topar 
nas  lizas  e  altas  paredes  dos  paços ,  entestava  com 
uma  casaria  baixa,  rota  por  sete  ouoito  portaes  sin- 
gellos  que  davam  para  o  terreiro.  O  tecto  daquelle 
corpo  saliente  era  um  espaçoso  terrado  que  o  passa- 
diço ligava  com  o  primeiro  andar  da  torre.  Sobre 
esse  terrado,  quanto  a  escuridão  o  permittia,  viam- 
sc  negrejar  os  topos  dos  arbustos  e  as  pontas  esguias 
dos  caramanchões  de  verdura  ,  e  sentia-se  o  cheiro 
balsâmico  das  flores ,  que  se  dilatava  na  aragem 
quasi  impcrceplivel  de  uma  noite  de  estio.  O  ca- 
valleiro  achava-se  junto  ao  jardim  onde  se  passa- 
ra ,  pouco  havia  ,  a  scena  que  tão  fataes  resultados 
tivera  para  o  honrado  e  jovial  D.  Bibas. 

Tudo  por  aquelle  lado  do  palácio  parecia  tran- 
quillo,  e  o  reflexo  da  luz  escaca  que  allumiava  os 
aposentos  contíguos  ao  piso  do  jardim,  rompendo  a 
cuslo  as  vivas  cores  das  vidraças,  vinha  morrer  nas 
trevas  a  pouca  distancia  delias.  O  cavalleiro  ao 
atravessar  o  terreirinho  parara  um  momento  e  cra- 
vara os  olhos  naquella  ténue  claridade.  Um  suspiro 
mal  contido  lhe  sussurrou  nos  lábios.  Depois,  como 
arrastado  por  um  pensamento  irresistível,  continuou 
a  caminhar  rápido  para  o  escuro  vão  junto  da  tor- 
re, e  involto  nozorame  cozeu-se  com  a  parede,  co- 
mo quem  receava  ser  allí  visto. 

Não  tardou  que  do  lado  da  corredoura  ,  opposto 
áquelie  poronde  o  cavalleiro  viera,  se  approximasse 
um  vulto  trazendo  ura  cavallo  de  rédea.  Este  vulto 
víuha  também  coberto  de  uma  espécie  de  zorarae  , 
porem  alvacento  como  albornoz  mourisco.  Deu  um 
silvo  agudo,  a  cujo  soidoEgas  pareceu  reconhece-lo, 
porque  sahindo-lhe  ao  encontro  ,  perguntou  em  voz 
baixa  e  em  árabe  :  —  És  tu  ,  Abul-Hassan  ? 

<iÉ  o  vosso  servo  :  —  respondeu  o  vulto  na  mes- 
ma lingua  ,  parando  e  sofreando  o  cavallo. 

n  Paliaste  com  teu  irmão?  A  que  horas  se  erguem 
as  pontes  das  barbacans?  —  perguntou  de  novo  oca- 
\alleiro.  « 

«Apenas  acabar  o  banquete  —  tornou  o  mouro:  — 
os  vigias  receberam  ordem  para  não  deixarem  sahir 
ninguém  do  burgo  passado  esse  momento.» 

"O  meu  saio  de  malha  —  proseguiu  Egas  —  a  cer- 
vilhcira  c  a  espada?» 

Sem  dizer  palavra  Abul-Hassan  tirou  as  três  pe- 
ças de  sob  o  albornoz  ,  o  cavalleiro  vestiu  á  pressa 
o  saio ,  poz  na  cabeça  a  cervílheira  ,  allivelou-a  so- 
bre os  horabros  áquella  espécie  de  camisa  de  ferro 
que  vestira  ,  cingiu  sobre  esta  a  espada  ,  c  atiran- 
do o  zorarae  para  cima  do  cavallo  disse  ao  mou- 
ro :  aDeixa-te  ahi  ficar  :   se  vier  alguém  que  te  não 


o  PA1VORA3IA. 


91 


conheça  e  pergunte  qiicra  és  c  o  que  fazes  nesle  si- 
tio—  responde  que  és  um  cavnileriço  do  senhor  de 
Trava,  que  te  ordenou  esperasses  aqui  com  um  cor- 
redor folgado.  Depois  de  assim  responderes  ninguém 
ousará  perguntar-te  mais  nada.» 

Proferidas  estas  palavras,  ligas  desappareceu  n'u- 
nia  escada  de  caracol  aberta  no  fundo  da  torre ,  e 
que  dizia  para  o  primeiro  pavimento  delia  :  chega- 
do ao  alto  tirou  do  seio  uma  chave  ,  e  abriu  uma 
porta  ,  não  a  que  dava  para  a  quadra  principal  da 
torre,  mas  outra  lateral  e  pequena.  Cruzou  o  pas- 
sadiço, e  n'ura  momento  achou-se  no  jardim  pênsil. 

N'aqucllc  logar  e  hora  ,  as  paixões  tumultuosas 
que  lhe  agitavam  o  espirito  o  obrigaram  a  reUe- 
ctir  alguns  momentos,  e  a  procurar  restabelecer  no 
seu  coração  a  possivcl  tranquillidade.  Que  perten- 
dia?  A  que  vinha  alli  como  um  salteador  nocturno? 
Elle  mesmo  não  o  sabia  ao  certo.  Era  apenas  uma 
vaga  esperança  de  ainda  ver  Dulce  ,  de  lhe  expro- 
bar  a  sua  leviandade  ,  de  lhe  dizer  tudo  quanto  o 
ciúme  e  a  desesperação  lhe  ensinassem.  Desde  que 
a  fama  dos  amores  da  donzella  com  Garcia  Bcrmu- 
dez  chegara  aos  seus  ouvidos,  não  houvera  para  el- 
le repousar  um  instante.  Buscando  qualquer  pretex- 
to plausível  para  se  dirigir  a  Guimarães ,  logo  que 
chegara  ao  arraial  do  infante  se  ofTerecèra  para  in- 
dagar da  própria  boca  de  Gonçalo  Mendez  qual  se- 
ria a  sua  resolução  Dnal  na  lueta  que  se  ia  travar. 
Vestindo  os  trajos  de  villão  —  o  arbim  e  o  zorame 
de  burel  —  entrara  no  burgo  ao  romper  d'alva  ,  e 
dirigindo-se  á  mouraria  perguntara  por  Abul-IIassan. 
Entre  os  mouros  que ,  ao  tirar  a  grossa  cadeia  de 
ferro  lançada  de  noite  á  entrada  do  seu  bairro,  sa- 
biam de  golpe  para  os  trabalhos  ruraes,  divisou 
brevemente  aquclle  que  buscava.  Deu-se-lhe  a  co- 
nhecer, e  antes  que  a  alegria  que  o  mouro  mostrou 
ao  vè-lo  se  revelasse  por  signaes,  que  gerassem  des- 
confianças ,  pediu-lhe  o  guiasse  á  sua  pousada.  .\hi 
entregando-lhe  uma  bolça  de  couro  com  alguns  al- 
morabitinos  disse-lhe  :  — 

uFar-me-has  tu,  Abul-Hassan ,  ainda  uma  vez  o 
serviço  que  tantas  te  devi  antes  de  partir  para  ul- 
tramar?" 

«Posto  que  o  ódio  contra  os  meus  irmãos  —  res- 
pondeu sorrindo  o  árabe  —  vos  levasse  tão  longe 
para  lhes  derramar  o  sangue,  como  se  vos  não  bas- 
tasse o  dos  musslins  da  Hespanha  ,  nem  por  isso 
vos  perdi  a  affeição,  porque  sei  por  experiência  que 
ao  menos  não  serieis  cruel  para  com  os  vencidos  co- 
mo são  quasi  todos  os  guerreiros  christãos.  O  ser- 
viço de  que  me  fallaes ,  sem  que  m'o  dissésseis  já 
eu  o  advinhei.  A  chave  da  poria  secreta  da  torre 
do  miradouro  ainda  está  em  meu  poder;  porque 
ainda  me  não  tiraram  o  cargo  do  jardim  da  rainha. 
Á  hora  da  quinta  oração  podeis  vir  busca-la  aqui.  » 

aXão  é  isso  só — interrompeu  ocavalleiro — é  ne- 
cessário que  ainda  hoje  vás  ao  Soveral  que  se  esten- 
de junto  ao  vau  do  Avicella.  Ahi  estará  um  escu- 
deiro com  omcucavallo  de  batalha  c  as  minhas  ar- 
mas: mostrando-lhc  este  anel  elle  te  entregará  tu- 
do. Conduze-me  aqui  o  ginete  e  as  armas  ao  cahir 
do  dia.  Depois  esperar-me-has  junto  ao  passadiço  da 
torre  para  o  jardim.  O  anel,  esse  guarda-lo-has  pa- 
ra ti. » 

Abul-Hassan  ia  propor  algumas  difficuldades  :  as 
ultimas  palavras  de  Egas  Moniz  as  haviam  aplana- 
do. O  anel  era  assaz  rico. 

"Na  confusão  que  hoje  vai  em  palácio,  ninguém 
reparará  na  minha  falta.  Assim  poderei  obcdecer- 
vos.  n  v,     ..    .■  .      .......    ,,  ■       .■  - 


«Ainda  mais  —  proscguiu  o  cavalleiro. —  Quando 
alravessei  a  barbacan  vi  signaes  de  que  as  pontes 
levadiças  se  costumara  erguer  de  noite.  Preciso  de 
saber  ate  quando  se  poderá  sahir  do  burgo  c  por 
onde.  Tu  o  indagarás  com  certeza.  Se  desempenha- 
res bem  tudo  o  que  te  ordeno  ,  recolherás  depois 
mais  larga  recom[ionsa. » 

No  rosto  do  mouro  ria  o  contentamento. 

<i  Meu  irmão,  o  tornadiço  ,  ainda  <■  um  dos  mes- 
tres dos  trons  e  engenhos.  Estão  a  seu  cargo  os  que 
de  novo  se  assentaram  no  cuhello  do  topo  da  cou- 
raça. Elle  deve  sabe-lo  ;  chadc  por  certo  dizcr-mo.  » 

Bem'. — tornou  Egas.  —  Agora  vai  executar  oque 
te  mandei,  e  entretanto  eu  ficarei  aqui.  Mas  volta  ao 
sol  posto  ;  porque  me  será  necessário  a  essas  horas 
deixar  a  tua  guarida.» 

D'ahi  a  pouco  o  mouro  atravessava  a  barbacan 
por  meio  da  comitiva  de  ricos-homens  que  come- 
çavam a  entrar  no  burgo  para  assistirem  á  convoca- 
ção solemne  da  cúria. 

Havia  largos  annos  que  Abul-Hassan  estava  in- 
cumbido do  jardim  pênsil.  Naquelle  século  os  dif- 
ferentes  misteres,  para  os quaes  se  requeria  ouscien- 
cia  ou  industria,  eram  quasi  exclusivamente  exer- 
citados por  mouros  e  judeus.  Na  agricultura  ,  po- 
rem ,  a  raça  árabe  era  a  única  entre  a  qual  se  en- 
contravam homens  profundamente  versados  em  to- 
dos os  ramos  dcUa.  .iVbul-Hassan  ,  captivo  em  uma 
arrancada,  obtivera  pela  sua  sciencia  agronómica  não 
só  um  tratamento  menos  duro  do  que  era  usual  en- 
tre os  christãos  para  com  os  servos,  mas  até  por  fim 
a  liberdade ,  e  com  a  liberdade  um  cargo  que  se 
casava  com  a  sua  educação  c  hábitos  —  o  de  jardi- 
neiro do  horto  pênsil.  O  toque  principal  do  caracter 
de  Abul-Hassan  era  a  avareza:  á  força  de  ouro  Egas 
alcançara  delle  muitas  vezes  ,  antes  de  partir  para 
a  Tcrra-santa,  o  ter  entrada  naquelle  logar  vedado, 
onde  podia  ver  Dulce  ,  quando  ou  as  noites  festivas, 
ou  os  cuidados  do  governo  retinham  D.  Thercza  lon- 
ge de  sua  filha  adoptiva.  A  experiência  que  tinha 
do  poder  do  ouro  na  alma  de  Abul-Hassan  fez  com 
que  entrando  em  Guimarães  o  buscasse  ,  para  com 
o  soccorro  delle  poder  levar  a  cabo  o  principal  in- 
tento que  alli  o  trouxera. 

Taes  haviam  sido  os  meios  de  que  usara  o  caval- 
leiro para  se  approximar  de  Dulce.  Por  este  modo 
era  que  elle  se  achava  alli. 

A  recordação  dessa  epocha  em  que  naquelle  mes- 
mo sitio  passara  horas  deliciosas  aos  pés  da  sua 
amante ,  que  então  innocente  e  pura  era  para  elle 
como  o  anjo  de  Deus,  que  inspirava  ao  cavalleiro  es- 
forço c  generosidade  ,  e  ao  trovador  os  seus  mais 
poéticos  e  harmoniosos  cantares  •  ;  —  essa  recorda- 
ção, dizemos,  devorava  agora  como  um  pensamento 
infernal  o  coração  do  pobre  mancebo.  Os  riscos  que 
naquelle  tempo  dourado  correra  para  ouvir  promes- 
sas e  juramentos d'amor,  palavras  d'esperança  e  de 
felicidade  ,  ia-os  correr  de  novo  para  receber  tal- 
vez o  ultimo  desengano.  Que  Ih' importava?  Sem  ao 
menos  ver  uma  vez  Dulce  é  que  elle  não  podia  mor- 
rer. Morrer  —  que,  trahido  ,  lhe  seria  a  consolação 
derradeira  ! 

Egas  se  havia  dirigido  ao  mesmo  logar  onde  pou- 
cas horas  antes  o  conde  de  Trava  ouvira  da  boca 
de  Garcia  Bormudez  as  desagradáveis  novas  da  ap- 
proxiniação  do  infante.  O  rcUexo  do  tanque  em  que 
as  estrellas  se  espelhavam  guiara  o  ca\alleiro  para 


(•)  Cantares  i  o  Donie  que  oauclor  ou  auclores  doCan- 
ciynf^iro  chamado  do  CalIe;'io  dos  Nobres  dào  a  cada  um 
doí  poemettos  ou  cantijas  de  que  elle  se  compOe. 


92 


O   PANORAMA, 


aquellc  sitio.  Pelas  ruas  tortuosas  que  piravam  por 
meio  dos  arbustos,  e  por  entre  os  canteiros  das  11o- 
res  ,  Egas  checara  junto  ao  poial  escondido  no  ca- 
ramanchão fechado.  Em  vez  de  se  acalmar  a  agita- 
rão que  lhe  despedaçava  o  coraçiio,  eslc  haleu  com 
mais  violência  ao  entrar  alli.  Tudo  estava  como 
d'antes  ,  o  céu  ,  a  noite  ,  o  jardim  :  só  um  amor  de 
mulher  mudara  :  mas  esse  amor  fora  paraelle  o  uni- 
verso, e  o  que  via  em  redor  de  si  não  era  mais  que 
uma  imagem  mentirosa  da  realidade,  lançada  sobre 
o  tumulo  do  passado,  sobre  as  ruinas  da  sua  inti- 
ma existência.  \as  recordações  de  outrora  havia 
para  cile  indizível  saudade,  mas  saudade  árida  e 
atroz  ,  sem  consolação  nem  lagrynias. 

-Vssentado  no  poial,  com  afronte  entre  os  punhos, 
o  pobre  trovador  engolfado  em  pensamentos  tene- 
brosos ,  parecia  esquecido  dos  próprios  intentos,  do 
tempo  que  fugia,  e  dosriscosque  ocercavam,  quan- 
do nomeio  do  silencio  profundo  que  reinava  no  jar- 
dim um  ténue  ruido  veio  desperta-lo  da  iramobili- 
dadc  externa  em  que  o  lançara  o  intenso  viver  da 
sua  alma. 

Este  ruido  o  fez  erguer  a  cabeça  e  lançar  os  olhos 
para  o  lado  donde  partia  aquelle  som  duvidoso: 
defronte  dclle  — e  bem  perto —  uma  porta  rodava 
lentamente  sobre  os  gonzos;  era  a  do  corredor  que 
dava  para  a  salad'armas.  Egaspoz-se  em  pé,  e  apal- 
pou o  punho  da  espada.  Lembrava-se  perfeitamente 
de  uma  noite  —  fazia  nesta  três  annos  —  em  que  as- 
sim a  vira  abrir,  e  passar  nm  cavalleiro,  cujo  vulto 
similhava  o  do  conde  de  Trava.  Esta  noite  lhe  fica- 
ra gravada  indelevelmente  na  memoria  ,  porque  fo- 
ra aquella  em  que  vira  Dulce  pela  ultima  vez,  par- 
tindo para  o  oriente.  A  dois  passos  delles  se  appro- 
ximára  o  vulto  encaminhando-se  lento  para  os  apo- 
sentos reaes.  Egas  recordava-se  bera  desse  instante 
de  receio  e  delicias,  em  que  na  mão  de  Dulce  uni- 
da aos  seus  lábios  sentira  palpitar  o  amor  e  o  susto  ; 
em  que  elle  vira  cruzar-lhe  o  delírio  celeste  da  fe- 
licidade á  imagem  de  um  assassínio.  Agora  esta  ínia- 
gem  ,  então  negra  e  maldícla,  como  que  lho  sorria, 
porque  não  se  misturava  comídéas  de  ventura  ,  mas 
com  as  agonias  da  desesperação.  Daquclla  vez  um 
suor  frio  lhe  manara  da  fronte  ao  arrancar  o  punhal 
do  cinto :  desta  o  seu  espirito  quasi  folgava  ao  ima- 
ginar que  alguaut  se  encaminhava  para  alli  da  sala 
d'armas,  e  que  elle  tinha  uma  espada.  TalvezDul- 
ce  aqui  mesmo  jur.íra  a  outro  o  amor  que  lhe  men- 
tira a  elle  !  Talvez  o  seu  rival  a  buscava  .  .  .  !  Re- 
fugiu deste  pensamento ;  porque  era  um  pensamen- 
to que  parecia  csraagar-lhe  o  coração. 

Em  quanto  tudo  isto  indistiucto  ,  travado,  dolo- 
roso, fugia  pela  sua  alma  com  mais  rapidez  do  que 
nós  o  exprimimos,  a  porta  cm  que  o  cavalleiro  ti- 
nha os  olhos  (lios,  atravez  da  ramagem  do  caraman- 
chão ,  acabou  de  rodar  nos  gonzos  ,  c  um  vulto  sa- 
hiu  para  o  jardim.  A  figura  e  o  trajo  eram  de  mu- 
lher. O  seu  andar  vagaroso  e  incerto  ,  o  arquejar 
comprimido,  o  volver  contíiuio  do  rosto,  como  quem 
observava  se  era  seguida  ,  davam  claros  signaes  da 
viva  inquietação  que  a  agitava.  Trazia  vestido  sin- 
gelamente um  epitogio  escuro,  e  os  cabcllos  invol- 
los  em  redctenuissíma  de  ouro.  Á  escaca  claridade, 
qued(!rraraava  longínquo  fulgir  das  estrcllas,  aquel- 
le vulto  de  mulher  sirailhava-sc  a  um  anjo  perdido 
nas  trevas  do  mundo  e  da  noite  ,  tanto  as  suas  filr- 
mas  eram  suaves  c  ao  mesmo  tempo  severas,  os  seus 
meneios  nobres  e  modestos.  O  cavalleiro  olhou  mais 
attentamente  ....  Era  Dulce  I  Um  grito  de  amor  , 
dcculcra,  de  prazer,  d'iadiguação,  conglobados  em 


gemido  infernal,  esteve  a  ponto  de  lhe  fugir  por  en- 
tre os  dentes  cerrados  :  mas  uma  vontade  de  ferro 
conteve  aquelle  primeiro  impulso.  Dulce  havia  pa- 
rado. 

E  parara  bem  perto  d'elle  '.  —  Egas  aspirava  o 
perfume  de  seus  cabellos,  cria  onvir-lhe  o  cicio  do 
respirar ,  o  ranger  das  roupas  negras  ,  e  nos  olhos 
o  brilho  de  uma  lagryma.  Escutou.  \  donzella  al- 
çou a  fronte  para  o  céu  e  murmurou  :  — 

o  Desventurado  !  — desventurado  !  » 

O  trovador  descobriu  nestas  palavras  a  angustia 
do  remorso  :  era  por  certo  o  remorso  quem  arran- 
cara esta  expressão  de  piedade  áqucUa  que  o  trahí- 
ra.  Quem  havia  ahi ,  senão  elle,  que  fosse  desven- 
turado? 

<'Toda  a  afTeição  de  uma  írmaã  eu  guardarei  para 
ti  —  proseguiu  Dulce.  —  Ileíde  cumprir  essa  pro- 
messa que  fiz  perante  o  Senhor  que  me  ouve  !  SIas 
o  meu  amor  c  já  de  outrem  :  —  como  o  repartirei 
comtigo?» 

A  donzella  parecia  delirar  :  tinha  os  braços  esten- 
didos e  as  mãos  unidas  como  implorando  a  piedade 
de  algum  ente  só  para  ella  visível. 

Nesta  postura,  á  luz  duvidosa  da  noite,  em  silen- 
cio profundo  ,  e  no  meio  de  atmosphera  recendente 
e  tépida  agitada  por  leve  aragem  d'estío  ,  a  fasci- 
nação do  amor  era  irresistível. 

Aquella  espécie  de  delírio  em  que  Dulce  cahíra 
trocou-se  repentinamente  em  impensada  realidade. 
Um  leve  rugir  de  folhas  sèccas  a  despertou  do  seu 
devaneio.  No  mesmo  momento  um  cavalleiro  cober- 
to do  saio  e  cervílheira  de  malha  eslava  a  seus  pés  , 
e  segurando-lhe  tremulo  uma  das  mãos  lha  cubria 
de  beijos  ardentes. 

Todo  o  ciúme  ,  toda  a  procella  ,  accumulada  por 
dias  d'intenso  martyrio  no  corarão  de  Egas,  desap- 
parecèra. 

«Meu  Deus  !  »  —  quiz  bradar  Dulce  ,  atterrada. 
Os  l.tbios  não  poderam  todavia  repeti-lo. 

Mas  instinctívamenle  recuara. 

O  encanto  que  havia  subjugado  por  um  instante 
o  mancebo  quebrou-se  então:  a  sua  alma  reconquis- 
tou o  esforço  da  desesperação  ,  que  tão  de  súbito  o 
abandon.ára. 

Ergueu-sc,  e  recuou  lambem  ;  mas  em  pé,  e  cru- 
zando os  braços,  olhou  para  apupilla  deD.Thereza 
como  o  juiz  para  um  réu. 

«Faz  agora  três  annos  e  um  dia  —  disse  elle  cora 
voz  lenta  e  na  apparencia  tranquilla  —  que  neste 
mesmo  logar  te  jurei  estar  hoje  aqui  a  teus  pés  1 
Meus  juramentos  cumpriram-se.  Dulce,  lembras-te 
dos  teus  ?» 

«Meu  Deus  1  Egas!  tu  aqui?  —  Oh!  —  que  mal 
te  fiz  cu,  para  me  matares  com  o  inesperado  da  tua 
vin3a  ?  murmurou  Dulce  desfalecendo,  e  vindo  ca- 
hir  nos  braços   do  trovador. 

-Mas  estes  braços  não  se  uniram  para  a  estreitar 
contra  o  peito!  <J cavalleiro  afastou-a  de  si  branda- 
mente ,  e  proseguiu  :  — 

«  Nào  é  minha  a  culpa  se  um  raio  cabido  do  céu 
vem  partir  a  cadeia  dos  teus  dias  risonhos  tecida 
pela  traição.  Meus  juramentos  cumpriram-se.  Dul- 
ce que  fizeste  dos  teus?» 

O  caracter  de  Dulce  era  um  mixto  inexplicável 
de  candura  e  de  energia  ,  em  que  a  fraqueza  pró- 
pria do  seu  sexo  era  muitas  vezes  subjugada  pelo 
sangue  nobre  e  generoso  que  lhe  girava  nas  veias 
—  o  sangue  dos  Bravaes.  A  alegria  súbita  de  ver 
Egas  poderia  ser-lhe  fatal ,  se  as  palavras  gélidas 
que  elle  lhe  dirigia  não  houTessem  temperado  o  de- 


o   PANORA3IA. 


«j;3; 


lirio  do  primeiro  iuslnntc.  Kcssas  palavras  conlicceii 
a  (lonzolla  (]Me  o  ciiinie  era  quem  asdiclava.  O  sen- 
timento da  injustiça  com  que  o  cavalleiro  repellia 
a  sua  ternura  a  fez  recobrar  a  consciência  da  situa- 
ção em  que  se  achava.  Durante  alguns  momentos 
um  silencio  profundo  reinou  entre  os  dois  amantes, 
que  olhavam  filos  um  para  o  outro.  Dulce,  por  lira, 
tirando  do  seio  um  pequeno  punhal,  deu  dois  passos 
para  diante,  e  arrojando  para  longe  a  bainha  lo- 
inou-o  pelo  ferro  ,  e  oflereeendo-o  a  Egas  dissc-lhc 
cora  voz  a  princípio  lirmc ,  mas  que  brevemente  as 
lagrymas  cortavam  :  — 

«Quando  ha  três  annos  ,  Egas,  o  nobre  trovador 
partiu  para  ultramar  ,  a  sua  amante  na  hora  cruel 
da  despedida  pediu-lbe  uma  lembrança,  que  bera  di- 
zia com  os  seus  tristes  prescntimentos.  Esta  memo- 
ria foi  o  punhal  toledano  que  ello  trazia  comsigo. 
Dulce  era  uma  pobre  orphan:  podiam  constrange-la 
a  ser  infiel ;  —  e  então  curapria-lhe  morrer:  foi  pa- 
ra morrer  que  ella  o  pediu Egas!  —  prose- 

guiu  a  donzella  —  os  meus  juramentos  guardei-os 
até  hoje  :  — juro-o  por  Deus  que  nos  ouve  !  Mas  se 
me  crês  culpada,  ou  que  cu  possa  vir  a  sè-lo,  vin- 
ga-te  da  traição  ,  ou  cmbarga-me  o  traliir-te. » 

E  estendia  o  punhal  para  o  cavalleiro. 
.   «Sabes  que  eu  não  poderia  assassinar-te  !  —  re- 
plicou Egas.  —  Xcra  para  te  assassinar  vim  aqui. 

O  meu  intento  era  outro Qual  ?  .  .  .  Nem  eu 

mesmo  o  sei  ...  Trouxe-mc  raáu  grado  meu  a  lou- 
cura da  desesperação.  Oh  ,  sim  !  .  .  .  agora  me  re- 
cordo ....  vinha  para  te  dizer  :  —  Dulce  ,  fizeste 
bem  em  trocar  o  foragido  ,  o  homem  que  só  pos- 
sua a  pouca  terra  que  lhe  deixaram  seus  pais;  que 
não  ganhou  ainda  nos  enredos  cortesãos  um  úni- 
co prestamo  ,  pelo  cavalleiro  estranho  que  pode  e 
vale  tudo  com  o  senhor  destes  paços  prostituídos  .  .  . 
vinha  dizer-te  que  cumpri  a  promessa  de  estar  ou- 
tra vez  n  teus  pés  dentro  de  trcs  annos.   Estive   a 

teus  pés  ! — Agora  nunca  mais  perturbarei 

tua  dita.  Escusas  de  perjurar  ao  céu  para  negar  o 
perjúrio  ...» 

Dulce  deixou  cahir  o  punhal ,  e  estendendo  para 
o  cavalleiro  as  mãos  confrangidas  c  tremulas  de  af- 
ílicção  —  interrompeu  : 

i<  A  minha  dita  cifra-se  em  tornar  a  ver-te  ;  era 
ouvir  ainda  de  tua  boca  palavras  de  ternura  :  estas 
converteram-se  em  injurias  e  escarneo.  Calumnia- 
ram-me,  e  tu  acreditaste  acalumnia Não  de- 
vias faze-lo.  Perdòo-te  ;  mas  escuta-rje  I  » 

«Escuta-metu  ainda  mais  alguraas  palavras  —  re- 
plicou o  mancebo  :  —  são  as  derradeiras  que  me 
ouvirás  !  Tu  foste  a  única  imagem  que  eu  via  em 
quanto  combati,  e  padeci,  e  soflfri  alem  mar:  para 
ti  sonhava  eu  sonhos  de  gloria  :  por  ti  fiz  resoar  as 
rainhas  endeisas  melancholicas  debaixo  dos  cedros 
do  Líbano  ,  e  com  lagrymas  de  saudade  refrigerei 
estes  lábios  queimados  pelo  sol  ardente  do  deserto. 
O  teu  nome  invoquei-o  em  mais  de  cera  recontros  , 
e  ao  invoca-lo  augraentavam-se-me  na  alma  o  esfor- 
ço e  a  constância.  Tu  eras  a  senhora  dos  raeus  pen- 
samentos ,  a  divindade  do  meu  coração. —  Voltei  a 
Portugal  onde  esperava  achar  a  recompensa  de  tan- 
to amor.  Qual  foi  ella?  O  meu  futuro  inteiro  cahiu- 
me  hoje  aos  pés  desfeito  era  cinza  ;  porque  este  fu- 
turo estava  nas  raãos  de  Dulce  ,  e  Dulce  que  eu 
cria  anjo  ,  era  apenas  raulher  !  » 

«Mata-rae  antes  com  esse  ferro  que  jaz  a  teus 
pés  —  exclamou  a  donzella  com  voz  débil  e  travada 
de  choro — ;  mas  não  me  faças  expirar  nos  tormentos 
intoleráveis  de  coar  pelo  coração  uma  a  uma  as  ago 


nias  que  para  elle  manam  das  luas  palavras.  T«ra 
piedade  de  mim  ,  Egas .  c  onve-me  '  —  que  se  me 
ouvires  has-de  arrepender-te,  o  dizer:  —  Dulce,  tii 
és  innocenU' !  ...  Os  que  te  accusaram  mentirani- 
me  !   .  .  .  Oh  '.  escula-me  por  piedade  '  » 

E  o  tom  daquellas  expressões  ,  c  a  postura  sup- 
plicante  da  formosa  orphan  abrandariam  o  instinclo 
de  um  tigre  :  o  cavalleiro  vacillou  : 

«Houvera  cu,  desgraçada  ,  de  dizcr-te  essas  pa-- 
lavras;  houvera  de  acharno  horisnnte  da  minha  vi- 
da uma  bela  de  luz  e  esperança  !  Mas  a  boca  de 
homem  (]ue  nunca  menliu  me  confirmou  sem  oqiie- 
rer  o  que  a  fama  confirma\a.  >i  —  E  dc|)ois  de  olhar 
para  ella  fito  alguns  momentos,  proseguiu  :  —  Não 
amas  tu  um  desses  aventureiros  que  opprimem  a 
boa  terra  de  Portugal?  —  não  vais  ser  em  breve  es- 
posa   :  » 

«Não  acabes  essa  idéa  Icrrivel  —  atalhou  Dulce 
com  anciã  ,  que  tocava  quasi  as  melas  do  phrenesi. 
—  Esposa?  !  Só  tua  ou  do  tumulo.  —  Nem  o  mun- 
do ,  nem  Deus  teriam  força  para  mo  constranger  a 
tanto.  As  apparencias  enganam,  Egas  !  Saberás  a  ver- 
dade : —  só  a  verdade  —  e  sè  tu  o. meu  juiz.» 

O  acccnto  com  que  a  donzella  proferira  eslas  pa- 
lavras pareciam  tanto  vir  da  alma,  que  a  persuasão 
da  infidelidade  de  Dulce,  que  tudo  conspirara  para 
arraigar  no  animo  do  cavalleiro,  começava  a  trocar- 
se  em  hcsilação  porventura  mais  dolorosa  que  a  cer- 
teza dessa  infidelidade  em  que  até  ahi  estivera. 

«Crés  tu  —  replicou  clle —  que  o  peregrino  ex- 
pirando no  meio  das  anciãs  de  sede  devoradora  re- 
cusasse a  laça  d'agua  christnilina?  —  que  o  suppli- 
ciado  ,  no  meio  dos  tratos  d'algozes,  não  quizessc 
ouvir  a  palavra  basta!  da  boca  do  juiz?  —  que  o 
conderanadoregcitasse  o  céu  pelo  inferno?  .  .  .Oxalá 
que  os  últimos  oito  dias  que  tenho  passado  ,  c  que 
devoraram  annos  e  annos  de  meu  viver  ,  não  hou- 
vessem sido  mais  que  um  pesadelo  maldito.  Anjo 
que  vi  despenhado,  podessc  eu  adorar-tc  ainda  co- 
mo a  ura  anjo  de  luz?  Se  neste  mundo  ha  para  Egas 
futuro  e  para  ti  innoccnciu  ,  salva-me  de  mim  mes- 
mo. » 

Então  Dulce  aportando  com  ura  movimento  con- 
vulso a  mão  do  cavalleiro  a  encostou  entre  as  suas 
ao  peito  ,  como  se  esperasse  que  no  pular  do  cora- 
ção elle  podesse  conhecer  que  sabia  de  lá  pura  e 
sincera  a  narração  que  lhe  ia  fazer. 

Esta  narração  era  a  historia  do  amor  de  Garcia 
Bermudez,  amor  a  que  ella  respondera  sempre  com 
a  dissimulação  como  o  leitor  já  sabe.  Dulce  nem 
disfarçou  a  espécie  de  affeição  innoccnte  que  con- 
sagrava ao  aragonez ,  e  que  dera  origem  ás  suspei- 
tas que  tão  de  leve  o  ciúme  d' Egas  accrcditára  , 
nem  os  desejos  do  conde  e  da  infanta  de  a  verem 
unida  áquelle  nobre  c  esforçado  cavalleiro.  Não  lhe 
esqueceram  os  acontecimentos  do  nllimo  sarau  ,  e 
a  repulsa  positiva  que  se  vira  finalmente  constran- 
gida a  dar.  Conhecendo  o  caracter  altivo  e  ao  mes- 
mo terapo  generoso  de  Garcia  ,  entendera  dever-lhe 
explicar  a  causa  daquella  repulsa,  e  fiar  delle  os  se- 
gredos mais  Íntimos  do  seu  coração  ,  dando-lhe  as- 
sim uraa  prova  de  estima  era  logar  de  amor.  «  Era 
esta  derradeira  consolação  —  concluía  Dulce  —  que 
eu  acabava  de  dar  áquelle  desventurado  ,  quando 
tu  vieste  cego  pelo  ciurae  despedaçar  o  coração  da 
tua  amante  ,  que  te  sacrificava  o  horaem  que  por 
certo  amaria  ,  se  para  ella  houvesse  neste  mundo 
amor,  pensamento,  esperança,  que  não  fosse  Egas, 
que  não  fosse  áquelle  que  vai  pedir-me  perdão  da* 
suas  suspeitas ,  que  Ião  tristes  me  tornaram  os  ins- 


u 


o  PANORA]»IA. 


tantes  que  deviam  ser  os  mais  deliciosos  da  minha 
vida. » 

As  mãos  do  cavalleiro  apertavam  já  com  amor  as 
de  Dulce ;  por  isso,  em  quanto  fallára,  no  roslo  da 
donzclla  as  lagrymas  se  haviam  desvanecido  pouco 
a  pouco  no  deslisar  de  um  sorriso. 

«Dulce,  Dulce!  —  exclamou  o  cavalleiro. —  Oh! 
repelc-me  que  só  amas  o  leu  Egas  1  Jura-me  que  é 
verdade  tudo  isso  !  » 

«Farei  mais  —  atalhou  a  donzella  n'um  extasi  de 
alegria.  —  Arranca-mc  destes  paços  se  ha  para  isso 
algum  meio.  Abandonarei  aquella  que  me  criou  co- 
mo filha  querida,  e  seguir-te-hei  a  ti,  que  não  podes 
abusar  do  meu  amor,  porque  és  um  leal  cavalleiro. 
•Seguir-te-hei  por  toda  a  parte ;  no  esplendor  ou  na 
miséria  ;  na  terra  da  infância  ou  nas  solidões  do  des- 
terro ;  na  liberdade  ou  em  ferros.  Junto  ao  altar  o 
nosso  amor  será  santificado  pela  benção  de  Deus , 
e  eu  serei  tua  ,  lua  só  ,  tua  para  sempre  !  » 

E  Dulce  cahiu  nos  braços  do  guerreiro  trovador, 
qne  desta  vez  a  estreitou  contra  o  peito  ,  e  lhe  im- 
primiu na  fronte  um  beijo  ardente  e  puro  como  os 
pensamentos d'aml)os.  Naquelle  instante  os  seus  co- 
rações trasbordavam  de  celeste  e  inefável  ventura  : 
—  não  cabiam  neilcs  as  grosseiras  sensações  terre- 
nas. 

«Tens  rasão  ! — disse  o  cavalleiro  —  de  cima  me 
▼eio  a  inspiração  de  buscar-te  antes  de  morrer , 
porque  tu  me  restitucs  a  vida.  Sim,  irás  comigo. 
Amanhaã  ao  cahir  das  trevas  eu  serei  aqui.  Todos 
os  meios  de  fuga  estarão  preparados  ;  no  arraial  do 
infante,  que  não  vem  longe,  acharemos  brevemente 
abrigo  ,  e  ahi  seremos  unidos  pelo  venerável  arce- 
bispo d  e  Braga.  » 

«Mas  nomeio  de  tantos  homens  d'arraas  ,  dos 
atalaias  e  vigias  que  guardam  pontes  ,  barbacans  c 
muralhas,  não  correrás  grande  risco?» 

«Oh  I  não  o  receies- — interrompeu  o  cavalleiro — 
o  ouro  e  ,  se  for  preciso  ,  o  ferro  nos  abrirão  cami- 
nho até  o  váu  do  Madroa.  Espera r-me-hão  no  bos- 
que os  meus  homens  d'armas.  Para  transpor  a  bar- 
bacan  talvez  nos  baste  vestir  as  esclavinas  de  ro- 
meiros. Ninguém  haverá  tão  impio  que  nos  pergun- 
te :  —  peregrinos  do  santo  sepulchro  ,  para  onde  c 
que  vós  ides  ?  O  romeiro  é  livre  como  a  ave  do  céu  : 
respcitara-no  o  besteiro  e  o  homem  d'arraas  :  da-lhc 
abrigo  o  villão  sob  o  seu  colmo ,  o  abbade  no  seu 
mosteiro ,  o  nobre  no  seu  castello.  Quando  ouvires 
cantar  lá  embaixo  junto  á  torre  aquella  trova  que 
eu  fiz  no  despcdir-nic  de  ti  :  — 

Vai-se  o  vulto  do  meu  corpo; 
Mas  eu  não  ; 

Que  a  teus  pés  cá  fica  morto 
O  coração : 

.Serei  vn  que  virei  arrancar-le  destes  odiosos  paços: 
c  então  serás  minha  ,  minha  para  sempre  !  » 

«IMas  se  te  descobrirem  ?  .  .  .  Oh  que  é  uma  idéa 
lerrivcl » 

Neste  momento  uni  silvo a^udo  soou  dacorrcdou- 
ra  contigua  ao  jardim. 

"  K  .\bul-llass:iii  (pie  me  faz  signal  —  disse  o  ca- 
valleiro estremeci-ndo. —  Devo  deixar-te,  minha  Dul- 
í:v.  » 

<'  Já  I '.' —  iniirTiniri)U  a  donzella.  — 

"Sim  — replicou  ligas —  para  poder  sahir  ainda 
boje  defiuiinarães.  Sem  ibso  a  tua  partida  fiira  ama- 
nhaã iiiipossivel.  » 

Um  véu  de  melancholia  cobriu  o  coração  do  Dul- 
ce, 'l-error  inexplicável  se  apossara  delia ,   como  se 


houvera  de  ser  aquella  a  ultima  vez  qae  visse  o 

cavalleiro. 

«Parle  pois:  —  disse  com  voz  dcbil  —  mas  ama- 
me  sempre  muito  !  » 

Egas  então  cahindo  a  seus  pés,  e  pegando-lhe  na 
mão  com  uma  alegria  que  tocava  quasi  as  raias  da 
loucura  ,  cobriu-lha  de  beijos. 

«Oh,  amar-te  !  ? — 'dizia  elle.  —  Mil  vezes  mais 
que  a  vida  ;  cem  vezes  mais  que  a  honra  de  caval- 
leiro I  Àmanhaã  I  —  ámanhaã  !  .  . .  —  e  para  sem- 
pre ! » 

Eerguendo-se  rapidamente,  desappareceu  no  pas- 
sadiço escuro,  que  dava  sabida  para  a  corredoura. 

Dulce  parecia  petrificada  olhando  para  o  sitio  por 
onde  Egas  sahira,  como  quem  tentava  ainda  desco- 
brir a  sua  imagem,  escutar  a  sua  voz,  no  meio  das 
trevas  da  noite  e  do  silencio  profundo  que  a  rodeava. 

Não  ouviu,  porem,  mais  que  o  tropear  de  um  ca- 
vallo  que  partia  ao  galope,  nem  viu  mais  que  a  luz 
reflexa  da  sala  do  banquete  que  batendo  pelo  inte- 
rior das  muralhas  do  castello  tingia  um  grande  lan- 
ço da  cerca  com  a  claridade  baça  e  variegada,  que 
jorrava  pelas  vidraças  de  mil  cores  do  festivo  apo- 
sento. 

Dulce  ajoelhou,  ealevantando  asmãosjuntas  para 
o  céu,  onde  scintillavam  myriadas  de  estrcllas,  que 
mal  podia  distinguir  atravez  das  próprias  lagrymas, 
exclamou  com  um  gesto  de  intima  agonia: 

«Meu  Deus,  meu  Deus! — Porque  me  desfalece 
a  esperança? !  v 

Era  o  coração  que  lhe  predizia  algum  successo 
tcrrivel? — Quem  sabe? 

(  Continuar-se-ha) . 
(A.  Herculano). 


Ahor. 

Todos  o  sentem  ,  e  parecem  comprehende-lo  ,  mas 
ninguém  soube  ainda  dizer  o  que  seja  amor.  Fata- 
lidade estranha  !  não  sabemos  da  origem  e  nature- 
za d'ura  sentimento  commum  e  universal.  Mas  que 
muito  se  lambem  o  homem  não  sabe  como  vive  , 
como  pensa  e  sente  ! 

Não  queremos  defini-lo  que  lambem  não  sabemos  : 
bera  poderam  ser  tantas  as  formulas  que  o  definis- 
sem, quantos  os  innumeravcis  individues  que  o  sen- 
tem .  e  que  buscam  exprimi-lo  ;  e  ainda  mal  o  não 
conseguíramos.  Pôde  o  género  humano  )iinlar-se  de 
uma  pincelada  ,  ou  resumir-se  a  natureza  inteira 
n'um  quadro?  Pôde  a  mão  do  Omnipotente  ,  que 
abrange  o  infinito;  a  do  homem  nunca. 

Vejamos  ao  menos  se  sabemos  como  e  onde  exis- 
te. .Mas  o  modo  e  a  matéria  nos  fogem  da  analyse  : 
um  é  tão  multiforme ,  é  tão  extensa  a  outra  que 
nos  escapam  do  pensamento,  c  quanto  mais  os  bus- 
cámos cada  vez  mais  e  mais  se  somem  e  se  afun- 
dam na  imraensidade  ,  pélago  sem  praias  onde  dcs- 
nortado  naufraga  o  misero  baixel  da  inlelligencia 
humana. 

Mas  lu  ,  oh  homem  ,  que  viajas  na  terra  ,  e  que 
nella  tão  pouco  te  demoras  ,  pára  ,  siispcnde-tc  ,  e 
rcllecte  :  pergunta  a  li  mesmo  oque  seja  amor.  Tu- 
do quanto  vês  com  os  olhos  ,  e  alcanças  com  o  en- 
tendimento ,  não  é  senão  efieitos  de  amor.  Contem- 
pla ,  que  o  verás  claramente  estampado  nas  leis  in- 
finitas e  immutaveis,  que  a  voz  da  Sapiência  Eter- 
na assignaloii  ás  obras  da  sua  Omnipotência  lá  des- 
de a  primeira  manhaã  do  mundo.  Ki-lo,  e  reconhc- 
ce-o  :   ainda  que  o  não  queiras ,  é  na  harmonia  pa- 


o  PANORAMA. 


9S» 


tente  deste  mundo  mesquinho,  em  que  habitas,  que 
o  podes  achar.  Estende  os  olhos,  e  alonga  o  pensa- 
mento pelas  sccnas  raagestosas  ,  que  se  desdobram 
ante  os  teus  olhos  desde  a  purpura  da  aurora  alé 
os  crepúsculos  do  occaso  :  rouba  alguns  instantes 
também  ao  sorano,  c  pasma  das  maravilhas  subli- 
mes que  nas  trevas  da  noite  se  manifestam  na  cú- 
pula do  lirmamonlo  ,  porque  cilas  se  bem  que  tre- 
vas alumiara  maravilhas. 

E  é  possível  que  depois  disto  ainda  o  não  aches, 
nem  o  comprchcndas'.'  llepara  :  esta  harmonia  sua- 
víssima, que  reina  em  Indo  o  que  é  e  que  foi  crca- 
do  ,  dimana  da  vontade  Suprema  ,  e  c  amor  :  amor 
é  esta  melodia  dulcíssima  dos  mundos  entre  si ,  c 
das  parles  componentes  d'um  mesmo  mundo  até  a' 
mais  diminuta  escala  ,  melodia  da  qual  pôde  a  al- 
ma iVuir  c  fartar-se  ,  mas  que  o  corarão  nunca  sa- 
berá sosinho  cabalmente  avaliar,  nem  lábios  huma- 
nos articula-la :  amor  é  uma  melodia  etherea  de 
sons,  que  disferem  harpas  celestes  e  desconhecidas, 
mas  nas  quaes  nada  ha  frágil ,  terrestre  e  sensual : 
amor  é  virtude,  é  essência  de  Deus,  é  finalmente 
Deus. 

Mas  trema  o  miserável  mortal,  que  no  sonho  dos 
seus  delírios  pensar  que  pôde  reger  ou  infringir  a 
seu  belprazer  as  leis  desta  harmonia  eterna  :  então 
elle  ,  que  nem  sabe  explicar  a  natureza  de  um  áto- 
mo de  Descartes,  nem  a  de  um  dos  mundos  de  New- 
ton ,  nem  como  vive  e  se  move  o  insecto ,  sentirá 
mirrar-se  o  seu  braço  como  palha  de  feno  ,  e  mais 
veloz  que  o  fuzilar  do  raio  ;  e  verá  os  seus  pensa- 
mentos confundidos  e  anniquílados  como  turbilhões 
de  pô  varridos  das  azas  do  vento. 

Amor  foi  fogo,  que  a  Omnipotência  Divina  accen- 
deu  somente  d'uma  vez,  ao  qual  alimenta  e  minis- 
tra matéria  do  seu  nutrímento  na  criarão  dos  seres 
até  á  consumação  dos  séculos.  Aqui  embaixo  ainda 
se  acha  submettido  ás  fórmulas ,  e  tem  resaibo  das 
partículas  terrestres  que  engendram  a  matéria  :  lá 
cmcima  será  ether  puríssimo  ,  subtil  e  volátil ,  quo 
subirá  sem  parar,  como  nuvem  de  aromas,  até  cír- 
cumdar  o  throno  do  Altíssimo.  Amor  na  terra  não 
se  cria  mais  ,  nem  se  invoca  ,  nem  se  promove  :  a 
Providencia  o  rege ,  assim  como  derrama  a  luz  no 
dia  e  despeja  as  torrentes  no  oceano. 

Se  o  homem  na  febre  das  paixões  o  evocasse , 
commetlcra  sacrilégio  :  poderá  acha-lo  talvez  ,  mas 
um  amor  bastardo  ,  filho  da  intemperança  ,  da  ím- 
moralídade  c  da  corrupção.  Tão  passageiro  trium- 
pho  lhe  custara  amarguras  sempiternas  ;  porquanto 
desesperou  da  Providencia,  não  poderá  fugir  da  ira  ', 
de  Deus,  que  cahirá  cm  cima  d'elle  c  da  sua  des-  , 
cendencía. 

Parece  que  mais  sensatas  andaram   as  gerações 
primitivas,  e  as  da  lei  cscripta  no  Sinai.  A  mytho- 
logía  era  um  culto  indirecto  a  Deus  ,  centro  de  to-  ] 
dos  os  cultos,   e  quem  somente  os  pôde   receber: 
erraram  nos  meios,  mas  não  no  fim  :  Deus  c  o  juiz,  1 
e  não  o  homem. 

Elias  viam  com  eITeito  a  creação  animada  ;  co- 
nheceram que  era  inerte  a  matéria  e  a  povoaram  de 
divindades.  Júpiter  e  Juno  figuraram  o  consorcio 
mysterioso  dos  ares:  Neptuno  e  Eólo  levantavam  as 
vagas  deste  mar,  que  viam  mover-se  :  Vulcano  ali- 
mentava a  potencia  do  fogo  :  e  Vénus  sahia  das  on- 
das do  mar  ,  descarga  e  reservatório  commum  da 
electricidade.  Os  rios  e  fontes  tinham  Naiades,  nos 
montes  habitavam  Orcades  ,  nos  bosques  Dryades  , 
Napeas  e  Satyros ,  e  em  cada  logar  um  génio.  Sem 
estes  tão  débeis  simulacros  devida  mal  podiam  con- 


ceber a  matéria  cm  acção  e  movimento  ,  c  ao  me- 
nos buscavam  explicar  assim  a  forra  das  leis  phy- 
sicas  ,  com  que  a  vontade  do  Creador  a  rege. 

Jlas  uma  casta  de  philosophia  moderna  se  alc- 
vantou  ,  e  substituiu  a  mythologia  da  antiguidade 
com  um  termo  concreto  ,  vazio  c  cmphalico  ,  se  o 
não  é  também  impio  ,  ode  —  natureza — ,  e  seia 
explica-lo,  porque  nem  sabe  ,  e  nem  pôde  ,  julga 
haver  cortado  o  nôgordio.  Nôs,  filhos  da  lei  daGra- 
ça  ,  fechámos  os  olhos  c  tapámos  os  ouvidos,  para 
não  vèr  c  ouvir;  cegos  c  surdos  parece  que  prefe- 
rimos atirar  comnosco  ás  trevas  crassas  do  [laganis- 
mo  onde  possamos  a  salvo  fartar-nos  ,  e  aturdidos 
e  incrédulos  como  que  ainda  hoje  pedimos  milagres 
ao  céu  ,  e  titubeando  na  fé  bradamos  com  as  turbas 
de  Israel :  Siveri:  es  fUius  homiuis  descende  de  cruer, 
et  salva  te  ipsum. 

Em  tempos  raythologicos,  quando  o  entendimento 
se  escorava  cm  suas  forças  únicas  ,  podéra  talvez 
perdoar-se  o  fazer  de  amor  um  prazer  sensual ,  da 
lei  da  fruição  a  sua  única  lei  ,  e  da  força  da  sua 
intensidade  e  duração  o  seu  primeiro  iiistinclo  c 
necessidade.  Era  então  filho  espúrio  das  sensações  , 
e  mal  podéra  refrea-las  :  sempre  os  prazeres  no  ho- 
mem propenderam  a  estcnder-se  e  a  reproduzir-se, 
illimitados  como  a  eternidade  ,  para  onde  o  vemos 
gravitar  accelerado  como  para  um  centro  commum. 

E  todavia  as  sociedades  dessas  eras  o  encadea- 
ram em  laços  matrimoniaes  ,  que  fossem  penhores 
de  ordem  e  de  estabilidade.  Êm  tempos  patriarchaes 
Rachel  voltando  da  fonte  sentiu  arder  o  fogo  d'a- 
raor  no  peito  virginal  ,  e  tingir-lhe  um  rubor  lam- 
bem as  faces,  mas  puro,  inuocente  e  casto  era  es- 
se amor  ,  como  o  de  um  anjo  ou  cherubim.  Lavra- 
ram paixões,  eapoz  ellas  crimes  :  algumas  almas  for- 
tes entraram  em  combate  e  escaparam  do  naufrá- 
gio. Sócrates  embrulhado  no  manto,  e  estendido 
no  leito  da  morte,  bebendo  cicuta,  defendia  a  im- 
morlalidadc  ,  provava  a  existência  de  Deus  ,  e  com 
a  palavra  c  exemplo  ensinava  sublimes  virtudes. 

Mas  estava  guardado  para  o  Christianismo,  e  era 
elle  quem  somente  podia  fazer  as  legitimas  boda» 
do  amor  com  a  religião  ,  e  ensinar-lhe  a  reprimir- 
se  ,  santificando-o  no  fim  pelo  qual  Deus  ateou  es- 
ta chamma  celeste.  Já  não  é  hoje  o  amor  brutal 
das  synagogas ,  dos  idolos  de  Baal ,  de  Vénus  era 
Grécia  e  em  Koma,  dos  pagodes  de  Brama,  dos  fe- 
tiches de  Tupá  ,  nem  o  das  mesquitas  do  filho  de 
Agar.  Estremeceram  nos  pedestaes  ,  c  cahirara  em 
terra  os  bezerros  do  ouro  israelila.  .\mor  recuperou 
um  Cm  celeste  como  o  eram  a  sua  origem  e  natu- 
reza. Foi  o  Christianismo  quem  o  fez  tornar  a  con- 
verter-se  n'um  pensamento  ,  ou  n'um  sentimento 
puro  e  incflavel ,  e  não  em  gozo  ou  sensação  mate- 
rial como  d'antes.  O  Divino  Mestre  dos  apóstolos 
foi  quem  o  ensinou  na  terra  ,  e  isto  bastará  a  con- 
firmar a  verdade  da  doutrina  do  Messias.  Emrau- 
deçam  puis  os  abalizados  philosophos,  que  não  sou- 
beram elles  resolver  o  máximo  problema  da  Crea- 
ção. 

E  deste  amor  chrisíão  que  aprende  a  esposa  a 
guardar  fé  e  castidade  ao  esposo  ,  a  mãi  ternura 
ao  filho  ,  o  amigo  lealdade  ao  amigo  ,  e  todos  com- 
paixão ao  próximo  ,  c  gratidão  ,  respeito  c  culto  a 
Deus  :  é  d'elle  emfim  que  manam  as  correntes  cau- 
daes  das  virtudes,  que  Jesus  Christo  ensinou  e  pra- 
ticou na  terra. 

Mas  do  amor  pagão  rebenta  um  fogo  brutal  e  ce- 
go ,  que  se  atéa  e  lavra  sem  poupar  idade,  sexo  ou 
condição  :   d'elle  nasce   toda   a  casta   de  crimes   o 


96 


O  PANORAMA. 


maldades ,  porquanto  não  ha  laços  que  não  quebre, 
nem  barreiras  que  não  rompa  alé  saciar-se,  e  gerar 
de  si  a  morte,  ultimo  dos  males  humanos,  e  ponte 
Icvadira  da  vida  para  a  clornidade. 

Mas  este  sentimento,  que  em  linguagem  de  chris- 
lãos  se  chamava  cm  outro  tempo  charidade  ,  se  de- 
nomina hoje  amor  em  sentido  mythologico  e  sen- 
sual ,  c  jiliilantrnjna  em  accepção  politica  e  social. 
Llazonàmos  bem  alto  de  mythologicos  ou  políticos : 
cnvergonhàmo-nos  de  parecer  christãos. 

Tiburcio  António  Craveiro. 


A  COBIÇA  DE   DINHEIRO. 


O  CLÁSSICO  escriptor  ,  Fr.  António  Fèo  ,  exprirae-se 
íiccrca  deste  vicio  pelos  seguintes  termos  em  odisc. 
;5.",  que  tem  por  epigraphe  In  tclonio  ,  do  tratado 
primeiro  da  festa  do  Evangelista  e  Apostolo  S.  Ma- 
thcus.  — 

icTelonio  é  um  furtar  com  titulo  de  divida,  uma 
tyrannia  confiada  ,  sem  haver  quem  lhe  vá  a  mão 
intitulado  com  justiça,  porque  quem  hade  ir  <á  mão 
.10  furto  auctorisado  e  coroado  com  a  obrigação?.  . 
O  ladrão  furta  ás  escondidas  onde  o  não  vejam,  se 
o  comprelicndem  corre-se  ,  o  publicano  muitas  ve- 
zes rouba  ás  claras  e  confiadamente  :  o  dinheiro  em 
quanto  é  a  matéria  da  cobiça  facilita  todos  os  pec- 
cados  ,  é  inimigo  a  cuja  obediência  estão  todas  as 
crueldades  prestes,  e  então  faz  maior  damno,  quan- 
do delle  mais  se  possue  ;  se  pondes  nelle  os  olhos 
enfeitiça,  faz  com  que  ou  quebreis  palavra  ou  vos 
faltem  com  ella  ,  não  tem  amor ,  nem  lei  com  al- 
guém ,  tanto  lhe  dá  estar  aqui  como  alli ,  na  mão 
deste  oudaquellc,  c  causador  de  discórdias ,  in- 
quietador da  paz,  roubador  da  innocencia  ,  ensina 
a  furtar,  fazer  enganos,  persuade  rapinas,  é  cabe- 
ça de  bando.  O  que  tudo  se  viu  bem  no  que  acon- 
teceu a  .loseph  com  seus  irmãos  ,  porque  entrando 
cm  geração  tão  santa  a  cobiça,  de  tal  maneira  cor- 
rompeu a  irmandade  ,  desterrou  piedade  ,  que  ven- 
deram a  Joscph  a  egypeios  .  um  irmão  a  bárbaros  , 
nm  innocentc  a  culpados  ;  atTrontaram  a  liberdade  , 
entregando-a  á  servidão ,  e  em  dando  dentro  em  si 
entrada  á  avareza  ,  de  tal  maneira  deu  o  ar  por  el- 
Ics  que  a  brandura  de  homens  se  converteu  em 
crueldade  de  feras ,  nem  lhes  ficou  logar  para  ad- 
vcrtiveiu  na  oflensa  que  a  Deus  faziam  ,  no  desgos- 
to (jue  ao  pai  davam,  na  irmandade  que  emJoseph 
violavam.  (Jue  não  fará  o  dinheiro,  quando  até  um 
bezerro,  por  de  ouro,  se  fez  adorarcomoDeus?  ....  » 

K  na  cohimna  immediala,  continuando  a  matéria 
accrescenta. — 

—  I maior  milagre  foi  converter  Christo  a  S. 

Malbcus  que  sarar  ao  pnralytico  ,  porque  se  este 
tinha  .1  doença  no  corpo  ,  o  publicano  era  enfermo 
na  alma  por  meio  da  alTeição  das  riquezas:  e  diver- 
tir um  avarento  do  desejo  de  ganhar  é  valentia  que 
só  iJeus  a  pôde  fazer.  Correm  parelha  fazer  de  um 
morto  ^ivo,  e  de  um  cobiçoso  desprezador  c  libe- 
rai; porque  aquillo  que  no  corpo  faz  a  vida,  obra 
na  alma  o  desprezo  nascido  da  charidade.»  — 


0.<   liiíjos  rio  âmbar  . 

ha  dois  grandes  lagos:  o  primeiro  terá  vinte  léguas 
de  comprido,   e  de  largura  n'algum  '        ' 


.ateraes  ao  mar  lialtico 
irá  vinte  léguas 
as  partes   duas 


de  comprido,  e  de  largura  n  algumas  partes  duas 
léguas  e  n'outras  cinco,  chama-se  Frisch-haff;  o 
segundo  tem  vinte  c  duas  léguas  por  cinco  até  seis 
<ie  largura  gcralmcBle,  e  o  deaominam  Curicb-halT. 


Kslreitas  faxas  de  terra  os  separam  do  mar,  com  o 
qual  só  communicam  pelo  estreito  de  Gast ,  cuja 
entrada  cm  diversos  tempos  tem  variado  de  posição. 
São  alfamados  os  dois  }latT  pela  rasão  do  âmbar  ou 
suceino,  que  fiuctúa  era  grande  quantidade  nas  suas 
aguas.  Esta  substancia  odorífera  ,  <•  de  origem  até 
agora  ignorada,  posto  que  é  por  alguns  reputada  de 
natureza  mineral ,  e  por  outros  a  resina  fóssil  de 
alguma  arvore  de  espécie  que  se  perdeu  nas  gran- 
des revoluções  do  globo  ;  naturalistas  ha  que  pen- 
sam ser  esta  uma  matéria  produzida  por  certa  casta 
de  formigas  grandes,  e  impellida  áquellas  paragens 
e  sobre  as  praias  pelos  ventos  do  noroeste  e  do  nor- 
te. Nos  lagos  supracitados  se  colhia  quasi  especial- 
mente, em  outras  eras,  a  maior  quantidade  dam- 
bar,  mas  hoje  minera-se  e  extrahe-se  em  muito 
maior  porção  nos  outeiros  próximos  ao  lago  ,  o  que 
induz  a  suspeitar  a  origem  mineral  da  substancia. 
]Vo  mesmo  estado  se  arranca  da  terra  na  Polónia  e 
nas  fronteiras  da  Litbuania. 


JHcmorauííum. 

25  DE  Mabço. 

n  .  .  .  no  anno  de  1646  ,  neste  dia  ,  em  que  en- 
tão cahiu  o  Domingo  de  Ramos,  celebrando-se  cm 
Lisboa  Cortes  dos  Três  Estados  do  Reino,  nos  quacs 
se  representa  o  corpo  inteiro  da  nação,  jurou  o  Sr. 
rei  D.  João  4.°,  e  com  S.  M.  os  Três  Estados  ,  de- 
fenderem, com  dispêndio  da  própria  vida  [se  neces- 
sário fosse]  a  Conceição  Immaculada  da  Mãi  de 
Deus ,  impondo  pena  de  desnaturalisação  a  toda  a 
pessoa  que  tivesse  a  sentença  menos  pia  ;  e  elegeu 
a  mesma  Senhora  ,  neste  glorioso  mysterio  ,  Prote- 
ctora e  Defensora  de  Portugal,  e  lhe  fez  a  monar- 
ci.ia  tributaria,  e  a  si  e  a  seus  successores  em  cin- 
coenta  cruzados  de  ouro  cada  anno,  applicados  pa- 
ra a  igreja  parochial  de  Villa-Viçosa,  a  qual  se  af- 
firma  ser  a  primeira  que  se  edificou  em  Hespanha 
com  o  titulo  da  Conceição.  »  Fr.  Francisco  de  St." 
Mar. — An.  Hist.  tom.  1.°,  pag.  3S3. 

António  de  Sousa  de  Macedo  occupa  o  extenso 
cap.  15.°  da  2.'  part.  de  sua  erudita  obra  =  Eva 
e  Ave  êçc. ,  em  tratar  historicamente  da  Conceição 
Immaculada  ;  e  referindo  o  mesmo  que  o  escriptor 
mais  moderno,  que  acima  citámos,  accrescenta  :  — 
Tratou-se  logo  de  que  a  insigne  Universidade  de 
Coimbra  e  todos  seus  cathedraticos  e  professores  fi- 
zessem o  mesmo  juramento e  com  ordem  do 

dito  Sr.  rei  ,  como  [irotcctor,  que  é  da  Universida- 
de ,  se  fez  o  juramento  em  sabbado  28  do  julho  do 
mesmo  anno  ,  sendo  reitor  Manuel  de  Saldanha  , 
que  morreu  eleito  bispo  de  Coimbra.»  —  Passa  lo- 
go a  transcrever  a  inscripção  commemorativa  des- 
sa deliberação  do  rei  e  das  cortes,  para  ser  inscul- 
]»ida  sobre  as  portas  das  cidades  e  fortalezas  .  o 
que  ainda  em  muitas  se  conserva  ,  como  temos  vis- 
to;  foi  composta  em  lingua  latina  pelo  próprio  mi- 
nistro ,  Sousa  de  Macedo. 

Em  1717  expediu  elrei  D.  João  li."  cartas  regias 
aos  prelados  niilrados  do  reino  para  que  em  suas 
dioceses  se  celebrasse  a  festividade  annual  em  ob- 
sequio da  Conceição  de  Maria.  —  O  Sr.  D.  João  6.° 
instituiu  ,  por  Dec.  de  6  de  fev.°  de  1818,  a  Or- 
dem de  N.''  S."  da  Conceição  de  Villa-Viçosa  ,  Pa- 
droeira do  Reino;  deram-se-lhe  os  Estatutos  por 
AIv.  de  10  de  setembro  de  1819. 


m 


o  PANORAMA. 


97 


A  ESTijiPA,  que  precedo,  ó  allcgorica  ;  designa  Mi- 
guel Angelo  alisorlo  em  suas  concepções  sublimes  , 
e  rodeam-no  os  allribulos  de  sua  gloria  .  estatuas  , 
palhetas ,  esboços  :  ao  longe  avista-sc  o  magostoso 
zimbório  de  S.  Pedro,  sua  obra  mais  estupenda. 

Miguel  Angelo  Buonarotti  foi  um  daquellcs  raros 
engenhos,  favorecidos  de  todos  os  naluraes  dotes 
no  subido  grau  em  que  parece  que  a  divindade  se 
compraz,  de  séculos  a  séculos,  em  juntar  n'unia  só 
pessoa  muitas  excellencias  ,  que  repartidas  ,  cada 
uma  de  per  si  ,  bastariam  para  ganhar  celebridade 
a  diflerentes  talentos.  Dilficil  é  assignalar  se  foi  cl- 
le  mais  insigne  na  estatuária  ,  se  na  architectura  ; 
um  escriptor  eloquente  lhe  chama  o  pai  da  pintura 
ipica  ;  foi  distincto  na  poesia  ,  mui  sabedor  littera- 
lo  ,  e  leve  óptimas  qualidades  moraes.  Era  portan- 
to impossível  que  o  Panorama  ,  no  decurso  de  qna- 
si  seis  annos  ,  mantivesse  silencio  a  respeito  de  ho- 
mem tão  celebre:  por  isso  no2.''vol.  [annodel838] 
tratando  de  suas  obras  principaes  dêmos  de\  ida  con- 
ta .  ainda  que  breve  ,  de  seu  transcendente  mereci- 
mento ,  a  pag.  82  ,  e  a  pag.  298  in  fine  :  vcja-sc 
mais  a  pag.  391  do  l.°vol.  da  presente  Serie  2.'' 

Ao  sahir  da  meninice  ,  aquellc  que  havia  de  ser 
tão  exiraio  artista  manifestou  logo  habilidade  pro- 
digiosa; c  postoque  ao  orgulho  de  sua  familia,  des- 
cendente dos  illustres  condes  de  Canossa  ,  era  into- 
Abhii.  1—  18 '(^3. 


leravel  a  idéa  de  educar  para  o  exercício  das  artes 
liberaes  o  joven  Miguel  ,  consentiram  a  final  em  o 
sulimetter  á  direcção  dos  irmãos  Ghirlandaio  ,  en- 
tão afamados  pintores  de  Florença  ,  e  que  tiveram 
a  sinceridade  de  confessar  que  o  discípulo  ao  cabo 
de  dois  annos  sobrcexcedia  seus  mestres  :  cIlcctiNa- 
mcnte  Miguel  Angelo,  de  quinze  annos  de  idade, 
já  não  tinha  professores,  nem  obras  porque  apren- 
desse, donde  veio  entregar-se  aos  impulsos  do  seu 
génio,  a  cuja  peculiar  circumstancia  se  deverá  tal- 
vez a  originalidade  ,  que  constitue  o  caracter  de 
suas  obras. 

Lourenço  de  Medicis  ,  cognominado  o  magnifico  , 
concebeu  a  idéa  de  crear  em  sua  corte  uma  cscho- 
la  de  escuiptores,  e  em  o  numero  dos  que  para  es- 
se intento  escolheu  entrou  Jliguel  Angelo,  que  em 
período  mui  curto  se  fez  sobremaneira  notável  na 
estatuária  ,  arte  que  acima  de  todas  mais  estimou  : 
fallecendo  porem  o  protector,  dissolveu-se  a  Acade- 
mia, e  Buonarotti  por  tempos  permaneceu  sem  obras 
em  que  occupar-se  ,  frouxos  como  então  estavam  o 
amor  e  gosto  pelas  Bellas-Arles  ;  até  que  o  prior  da 
casa  religiosa  da  invocação  do  Espirilo-Santo  lhe  deu 
habitação  no  convento,  encommendando-lhe  nm  cru- 
cifixo, e  facilitando-lhe  dos  hospítaes  cadáveres  hu- 
manos para  que  estudasse  a  anatomia  ,  quasi  igno- 
rada naquelle  século  ;  por  este  meio  o  mancebo  ar- 
2.'  Sbrie.  — Voi..  11. 


98 


O   PANORAMA. 


lista  adquiriu  o  gramlc  conhecimento  cm  myologia  , 
iliie  lhe  deu  nome  entre  os  niaisdistinctos  desenha- 
dores. 

O  p.ipa  Júlio  2."  chamou-o  a  Roma  e  lhe  encar- 
rcsou  a  csculptura  do  monumento  que  para  si  des- 
tinava ,  c  as  pinturas  da  capolla  sixtina  :  obras  até 
hoje  consideradas  como  prodígios  da  arte.  —  Pos- 
teriormente empregado  pelos  puntilices  Leão  10.°, 
Adriano  G.°  e  Clemente  7.°  fez  os  famosos  quadros 
do  .Iiiizo  final ,  da  Conversão  de  S.  l'aulo  ,  da  Cru- 
cifixão de  S.  Pedro  e  as  soberbas  estatuas  de  Moy- 
sés  ,  do  David  ,  e  outras ,  que  tem  sido  geralmente 
admiradas.  —  Por  morte  de  Bramante  foi  escolhido 
para  continuar  a  fabrica  da  colossal  basílica  de  S. 
Pedro  (•)  corrigindo  a  planta  primitiva,  e  reduzin- 
do a  ordem  a  confus<ão  occasionada  pela  variedade 
de  riscos  que  se  haviam  adoptado.  —  O  seu  estilo 
archilectonico  distinguia-sc  pela  grandeza  c  ousadia 
das  concepções:  e  nos  seus  ornamentos  brilha  cer- 
ta pureza  ,  filha  tão  caraclcrislica  da  sua  imagina- 
ção. 

Assim  passou  a  vida  ,  sobresahindo  eru  quanto 
rnif)rehendia  e  compunha  ,  aíé  que  sentindo  avisi- 
nhar-lhe  o  termo  delia,  na  avançado  idade  de  90 
antios.  chamou  a  seu  sobrinho  Leonardo,  a  quem 
dictou  seu  testamento  ,  limitado  ás  seguintes  pala- 
vras.—  II Deixo  a  minha  alma  a  Deus,  o  meu  cor- 
po á  terra  ,  e  os  meus  bens  a  meus  mais  próximos 
parentes.» —  Pouco  depois  deu  o  espirito  ao  Crea- 
ílor  ,  aos  10  de  fevereiro  de  1364. 


ASCSEOLOtilA  S>0RTi;6DEZA. 

■      TK.        i 
Viagem  de  Tron  c  Lippomani. 

(1380.) 
(Continuação  de  pag.  82.  J 

As  mulheres  portuguezas  são  singulares  na  formo- 
.sura  e  proporcionadas  no  corpo  ;  a  cor  natural  dos 
.seus  cabellos  é  a  preta  ,  mas  algumas  tingem-nos 
de  côr  loura  :  o  seu  gesto  ó  delicado,  os  lincamen- 
los  graciosos ,  os  olhos  negros  e  scintillantes,  o  que 
lhes  accrescenla  a  lielleza  :  e  podemos  allirmar  com 
verdade  que  era  toda  a  viagem  da  peninsula  as  mu- 
lheres que  nos  pareceram  mais  formosas  foram  as 
de  Lisboa  ;  posto  que  as  caslclhauas,  e  outras  hes- 
panholas  arrebiquem  o  rosto  de  branco  c  encarna- 
do ,  para  tornarem  a  pellc  ,  que  é  algum  tanto,  ou 
antes  muilo  trigueira  ,  mais  alva  e  rosada  ,  persua- 
didas de  que  todas  as  trigueiras  são  feias.  O  trajo 
feminino  cm  Lisboa  é  o  commum  de  toda  a  Hespa- 
níia  ;  isto  é  ,  o  manto  grande  de  lan  ou  de  seda  , 
segundo  a  qualidade  da  pessoa.  Com  elle  cobrem  o 
rosto  e  o  corpo  inteiro  ,  e  vão  aonde  querem  ,  tão 
di.sfarçadas,  que  nem  os  próprios  maridos  as  conhe- 
cem, vantagem  esta  que  lhes  da  maior  liberdade  do 
que  convém  a  mulheres  bem  nascidas  e  bem  niori- 
geradas.  As  damas  nobres  costumam  ser  acompanba- 
<ias,  pela  cidade,  dccreados  bem  vestidos,  que  lhes 
precedem  com  passos  lentos  o  socegados  .  e  de  do- 
nas que  as  seguem  com  grandíssima  gravidade,  não 
tendo  por  signal  de  boa  reputarão  o  serem  acompa- 
nhadas de  donzellas. 

O  povo  miúdo  vive  pobremente  ,  sendo  a  sua  co- 
mida diária  sardinhas  cosidas,  salpicadas,  (^)  que  se 

(.)      Viil.  a  noticia  a  paj.  297  e  segí-  ilo  vol.  S° 
(í)     ^■'itlmeslriilc  —  dialecto  veneziano  talvez. 


vendem  com  grande  abundância  por  toda  a  cidade. 
Raras  vezes  compram  carne  ,  porque  o  alimento 
mais  barato  é  esta  casta  de  peixe  ,  que  se  pesca  em 
notável  cópia  fora  da  barra  ,  como  se  pesca  muito 
outro  de  Iodas  as  qualidades  e  muito  grande  ;  mas 
cm  geral  menos  gostoso  do  que  o  das  aguas  de  Ve- 
neza ,  e  tão  caro  ,  que  faz  espanto  aos  estrangeiros 
e  custa  muito  aos  naturaes  ,  que  passam  mal  pelo 
preço  excessivo  de  tudo  o  que  serve  para  o  susten- 
to. Comem  os  pobres  uma  espécie  de  pão  nada  bom, 
que  todavia  é  barato  ,  feito  de  trigo  do  paiz  ,  todo 
cheio  de  terra,  porque  não  costumam  joeira-lo,  mas 
nianda-Io  moer  nos  seus  moinhos  de  vento,  tão  sujo 
como  o  levantam  da  eira.  O  pão  bom  e  alvo  faz-se 
de  trigo  de  fora  ,  que  trazem  de  França  ,  Flandres 
e  Allcmanba  os  navios  destas  nações  quando  vem  a 
Lisboa  buscar  sal  e  especiarias.  Este  ,  na  verdade , 
também  não  é  joeirado  ,  mas  as  mulheres  pobres  o 
escolhem  grão  a  grão  ,  assentadas  á  porta  da  rua 
com  paciência  fieugmatica  mais  própria  d'allemaãs 
que  de  portuguezas.  Estas  mulheres  tem  licença  pa- 
ra fabricar  o  pão  c  vende-lo  pela  cidade  onde  e  co- 
mo lhes  apraz  ,  o  que  sempre  é  por  alto  preço.  O 
trigo  vale  a  i280  réis  o  alqueire.  Nutre-se  também 
a  gente  pobre  de  fructa,  que  abunda  muito  e  é  ba- 
ratíssima. 

O  vinho  commum  é  pouco  bom  ,  por  não  dizer 
máu  ;  porque  não  sabem  ,  ou  não  querem  ter  o  in- 
coramodo  de  o  fazer  bom.  Vale  geralmente  a  24  rs. 
a  canada.  Os  vinhos  finos  são  excessivamente  caros  : 
os  Silrs.  Embaixadores  tiveram  de  pagar  o  branco 
para  o  consumo  ordinário  da  sua  mesa  a  60  escu- 
dos a  pipa   

Quanto  ás  vitualhas  não  é  em  Lisboa  que  se  hão- 
dc  buscar  cousas  muito  exquisitas.  Até  a  vitella  é 
rara  ;  porque  não  costumam  matar  estes  animaes  , 
guardando-os  para  crescerem  e  servirem  nos  traba- 
lhos do  campo  ou  de  abastecimento  da  cidade,  sen- 
do ,  alem  dis.so ,  ahi  a  comida  ordinária  o  capado  , 
que  é  e«cellente. 

No  tempo  de  elrei  D.  Sebastião  as  rendas  reaes 
consistiam  nos  direitos  das  alfandegas  de  Lisboa  e 
de  todo  o  reino,  assim  sèccas  como  molhadas.  D'u- 
mas  Cousas  pagava-se  o  quinto,  d'outras  a  decima  ; 
e  do  peixe,  em  muitas  parles,  mais  de  metade.  Ha- 
^ia  também  rendas  em  cereaes,  vinho,  e  outros  gé- 
neros ;  as  rendas  dos  mestrados  a  que  pertenciam  as 
ilhas  de  S.  Thomc,  Terceiras,  Cabo-verde  ,  Madei- 
ra .  e  Príncipe  :  as  da  Mina  que  pertenciam  á  Or- 
dem de  Christo.  As  especiarias  e  outras  fazendas 
que  vinham  annualmente  da  Índia  e  do  Rrasíl  pro- 
duziam 'ambem  um  avultado  rendimento.  Apesar, 
porem,  d'cste  ser  tamanho  nada  vinha  a  entrar  no  Ihe- 
souro  ;  porque  tudo  se  dispendia  em  armadas  cmais 
cousas  necessárias  para  a  conservação  daquclles  es- 
tados ,  e  afora  isso  se  distribuía  em  salários  d'oiri- 
ciacs  e  ministros  da  justiça  no  continente  ;  cm  mer- 
cês vitalícias  ,  que  chamam  tenças  ,  aos  benemeri- 
liis  da  coroa,  aos  fidalgos,  e  mais  pessoas,  que  ser- 
viam assim  no  reino  como  na  Africa  e  índia  :  em 
juros  perpétuos,  que  os  reis  vendiam,  eslaliclecidos 
nos  direitos  reaes;  cm  despesas  com  a  gente  c  pe- 
trechos necessários  para  a  defensão  das  praças  d'A- 
frica  :  em  cinco  gallés  constantemente  armadas  .  c 
110  armar  dos  navios  redondos  ,  que  todos  os  annos 
sabiam  juntos  ,  assim  para  comboiar  as  frotas  que 
iam  e  vinham  dos  portos  com  que  Portugal  coramer- 
ciava,  como  para  mandar  ao  Brasil,  a  (iuiné,  á  Mi- 
na ,   a  S.  Thomé  ;   c  finalmente  em  moradias  ,  gas- 


o  PANORAMA. 


O!» 


los  da  côrle  e  casa  real,  paga  de  creados,  esmolas, 
presentes  ,  emhaixadas,  dotes  ás  lillias  dos  croados, 
e  conservação  das  fortalezas  de  Lisboa  c  do  reino. 


As  noticias  do  viajante  relativamente  a  Portugal 
Ycrsam  desde  este  ponto  sobre  a  organisação  judi- 
cial e  administrativa,  acerca  da  qual  nada  so  accres- 
centa  que  não  se  ache  na  nossa  antiga  legislarão. 
Conclue  o  narrador  com  uma  historia  suecinta  do 
reinado  de  D.Sebastião  e  das  causas  do  desastre  de 
Alcacer-quivir  ,  da  acclamação  de  l'hili|)pe  -2."  cm 
Thomar  &c.  —  Alistemo-nos  de  exlractar  essa  parte 
relativa  á  historia  politica  ,  não  porque  seja  pouco 
interessante  e  curiosa  ;  mas  porque  é  demasiado  ex- 
tensa. 

(Â.  Herculano.) 


Antigcidade  da  poi.vob*  na  Peninsula. 

Qgando  no  segundo  volume  da  primeira  serie  deste 
jornal  publicámos  dois  extensos  artigos  sobre  a  mi- 
licia  da  idade  média  concluimos  o  nosso  traliallio 
pondo  em  grande  dúvida  ,  ou  antes  negando  o  co- 
nhecimento e  uso  da  pólvora  nasHespanhas  em  tem- 
pos remotos ,  e  recusando  o  testemunho  de  Duarte 
Nunes  do  Leão  que  menciona  esse  uso  era  epocha 
muito  anterior  ao  meado  do  século  14."  em  que  se 
crê  teve  origem  este  celebre  invento  ,  que  mudou 
inteiramente  o  systema  militar  da  Europa. 

Hoje,  porem,  daremos  aqui  algumas  noticias  con- 
trarias á  opinião  que  naquellcs  artigos  seguimos  ,  e 
que  nos  parecem  curiosas  para  a  historia  dessa  com- 
posição assoladora  ,  que  tão  lerrivel  papel  tem  feito 
nos  successos  dos  tempos  modernos. 

Duarte  Nunes  foi  buscar  ao  capitulo  10.°  da  chro- 
nica  de  D.  Sancho  1.°,  de  Ruy  de  Pina  ,  a  noticia 
que  nos  dá  da  existência  da  pólvora  e  bombardas 
no  fim  do  século  12."  Ahi  a  chronica  narrando  o 
■cerco  de  Silves  diz  que  elrei  mandou  atirar  a  uma 
torre  com  grandes  tiros  e  grossos  de  pólvora.  ^  em  is- 
to em  surama  a  ser  o  mesmo  que  diz  Nunes  do  Leão. 

É  hoje  mais  que  provável  que  a  relação  da  toma- 
da de  Silves  que  Ruy  de  Pina  nos  dá  tão  particula- 
risada  ,  e  tão  diíTercnte  da  brevidade  com  que  cos- 
tuma referir  successos  tanto  ou  mais  importantes , 
foi  tirada  de  alguma  memoria  contemporânea  ,  ou 
pelo  menos  da  chronica  geral  do  reino  de  Fernão 
Lopes ,  que  costumava  procurar  essas  mesmas  fon- 
tes ,  e  cujos  trabalhos  relativos  aos  primeiros  rei- 
nados não  chegaram  até  nós  talvez  por  inveja  e  mal- 
dade de  Ruy  de  Pina. —  Seja  como  fòr,  é  certo  que 
a  relação  ,  que  lemos  neste  chronisla  concorda  em 
muitas  circumstaacias  com  a  narração  feita  por  um 
dos  cruzados  que  assistira  áquella  conquista  ,  nar- 
rarão publicada  ha  dois  annos  pelo  Sr.  Gazzera  nas 
Memorias  da  Academia  de  Turim. 

No  que,  porem,  ochronista  portuguez  parece  ter 
.■íido  menos  fiel  a  essa  mesma  memoria  ou  documen- 
to do  que  se  serviu,  é  exactamente  neste  ponto  dos 
tiros  de  pólvora;  porque  na  narração  do  cruzado  se 
diz  que  a  torre  fora  balida  por  umas  machinas  pe- 
quenas d'clrei  ,  e  uma  grande  dos  estrangeiros.  Se 
as  machinas  dos  portuguezes  arrcmeçasscm  tiros  de 
pólvora,  como  é  crivei  que  o  narrador  allemuo  dei- 
xasse de  mencionar  uma  circnmstancia  tão  notável, 
e  para  elle  inteiramente  nova  ?  È  por  tanto  de  crer 
que  Uuy  de  Pina  quiz  enfeitar  a  relação  do  succes- 
so  com  esta  particularidade;  que  por  isso  o  seu  tes- 
temunho não  reforça  o  de  Duarte  Nunes,   e  que  se 


não  houvera  outras  provas  positivas  da  existência 
da  [lolvora  nos  tempos  primitivos  da  nossa  monar- 
chia  ,  ficaria  subsistindo  o  que  dissemos  no  nosse 
anterior  artigo  acerca  deste  objecto. 

-algumas  pessoas  acharam  estranho  qnc  no  segun- 
do capitulo  do  llobo  se  descrevesse  cutrc  os  instru- 
mentos e  tiros  projirios  para  combater  os  logares 
fortilicados  no  século  12.°,  uma  espécie  de  bombas 
ou  granadas  arrojadas  por  um  niixto  simiibantc  á 
pólvora.  Todavia  não  commettemos  ncnliuni  ana- 
clironismo  :  nessa  parte ,  como  em  tudo  o  que  ahi 
descrevemos,  procurámos  conservar  escrupulosamen- 
te a  verdade  histórica.  Para  o  provar  publicámos 
hoje  este  artigo  ,  que  servirá  ao  mesmo  tempo  de 
correcção  ao  que  se  disse  tratando  da  milícia  da 
idade  média. 

Se  dermos  credito  aos  chins  a  pólvora  é  uma  in- 
venção sua  ;  mas  são  mui  débeis  as  provas  que  ap- 
presenlam  para  sustentar  esta  pretcnção.  Entretanto 
Hyde  na  HUtoria  do. Xadrez  mostra  por  diversas  pas- 
sagens de  cscriptores  gregos  c  latinos  que  os  indios 
dcfendcndo-se  da  invasão  de  .\lexandre Magno,  em- 
pregavam o  fogo  como  meio  de  arremcçar  tiros  dos 
logares  fortificados  ;  c  nesta  mesma  obra  se  mencio- 
na a  longa  tradição  de  se  haverem  fundido  canhões 
no  Pcgú  em  cpochas  mui  remotas.  Porventura  da 
ludia  tiraram  os  árabes  o  conhecimento  da  pólvora, 
e  de  lá  provavelmente  o  obteve  também  a  China. 
A  civilisação  da  índia  parece  ser  a  mais  antiga  das 
velhas  civilisações  da  Ásia  ,  e  é  indisputável  que 
ao  trato  com  os  povos  do  Indostão  deveram  os  ára- 
bes grande  parte  da  sua.  Quanto  a  estes  nenhuma 
duvida  se  pôde  oppòr  aos  testemunhos  que  nos  res- 
tam de  que  elles  faziam  uso  na  guerra  ,  senão  exa- 
ctamente do  mixto  a  que  damos  o  nome  de  pólvora, 
ao  menos  d'outro  em  que  a  naphta  substituía  o  car- 
vão ,  mas  em  que  entravam  como  naquella  o  enxo- 
fre e  o  salitre  ,  e  que  produzia  pouco  mais  ou  me- 
nos um  effeito  idêntico. 

Na  dissertação  que  o  erudito  arabista  Casiri  pu- 
blicou em  o  segundo  volume  da  Biblíotheca  Arabí- 
co-Hispanica  ,  sobre  a  antiguidade  e  uso  da  pólvo- 
ra e  artilliaría  entre  os  árabes,  depois  defallar  bre- 
vemente do  fogo  grcgucz  mencionado  pelo  impera- 
dor Leão  na  sua  Tactira  ,  e  de  citar  o  que  sobre  a 
origem  da  pólvora  se  lè  era  Ducange  na  palavra  — 
Bombarda  —  proseguc  assim: 

«Alas  os  monumentos  arábicos  noticiam  a  sua 
muito  mais  remota  existência  entre  os  persas  e  afri- 
canos. Parece  por  isso  verisimil  que  o  conhecimen- 
to e  uso  da  pólvora  passasse  dos  árabes  para  os  hcs- 
panhoes  e  destes  para  os  francezes  ,  que  depois  fa- 
bricaram a  <iita  pólvora  ,  e  acharam  o  methodo  de 
a  granular.  K  isto  o  que  claramente  indicam  os  có- 
dices aral)ic(js  da  bibliotheca  do  Escurial ,  c  entre 
outros  o  que  se  intitula — Noiiria  c  mclliodo  rríjio — 
composto  por  Schehab  Aldin  Alabas  Ahmad  Ben 
Fadhl  ,  auctor  que  fiorescia  em  )2íí)  ,  e  que  nessa 
obra  descreve  as  varias  espécies  d'arlilharia  usada 
pelos  árabes  do  seu  tempo:  —  Serpèam  —  dizcllc  — 
e  sussurram  os  scorpiões  ligados  em  volta  ,  accosos 
com  salitre,  e  por  isso  estourando  lampejam  i-  in- 
cendeiam. Era  cousa  de  vèr  o  engeidio  sacudido 
estender  pelo  ar  uma  como  nuvem  ,  fazendo  nm  es- 
tampido terrivel  similhante  ao  do  trovão,  e  vomi- 
tando fogo  para  todos  os  lados  ,  despedaçar  ,  incen- 
diar ,  c  reduzir  tudo  a  cinzas. 

Vè-se  das  palavras  do  escnptor  que  elle  falia  de 
globos  de  ferro  expcilidos  pela  violência  do  fogo  ar- 
tificial ;   porquanto   emprega   sempre  os  vocábulos 


iOO 


o   PANORAMA. 


-Vrt/),'(ía  c  Ilariirl  ,  malcii;is  de  que  naquello  Icmpo 
SC  f;iltrir,iv,i  a  polvor.i.  Os  [nTsas  ,  os  lurcos  ,  e  os 
árabes  «lavam  aijlig.iincnlc  o  iioinc  tle  llarnrl  ai)  sa- 
litro ,  c  liojo  dão  a  mesma  denominarão  á  pólvora  : 
qnanio  ;i  Naphta  c  esla  um  s^cnero  de  hitiime  mis- 
liirado  de  enxofre. 

O  illiistre  escriplor  granadino  Aba  Alidallá  Ehn 
AlKlialhili  na  sna  Historia  Hispânica  [artn.  13)2— 23] 
lalLi  latnbem  destes  glubos  de  ferro  arrojados  com 
o  impnlso  da  naphia  .  nos  sesi"'iles  lermos  :  —  Elle 
[o  rei  de(;ranada  Ahulvaiid]  movendo  o  arraial  foi 
cercar  Baeza  cnni  grande  numero  do  tropas,  onde  fez 
desfechar  com  estrépito  conlra  o  forte  rastello  aquol- 
le  grande  ongenlio  da  naphta  e  do  globo,  cbegan- 
do-se-llie  o  lume.  —  Ksle  testemunho  é  confnmado 
liela  chronica  de  Affoiíso  11.°  Na  obra  de  llassan 
Bon  Omar  intitulada  Aura  do  vrnlo  oriental ,  escri- 
pta  na  mesma  epoclia  da  Historia  Hisiianira  igiial- 
menlc  se  (az  menção  da  pólvora  como  cousa  conhe- 
cida geralmente  naquelle  tempo  pelos  mouros. 

De  lodos  os  exemplos  do  uso  da  pólvora  entre  os 
rnabcs  o  mais  antigo  é  o  que  lembra  lilmacino  no 
livro  1.°  da  Historia  Saracniira  onde  refere,  que 
tiacgiraTl  [anno  690]  llagiageo  lendo  cercado  Mcc- 
ca  destruíra  os  tectos  da  Caba,  c  os  reduzira  a  cin- 
zas com  manganellas  e  morteiros  [mavqanis  et  mor- 
taritsj  sacudidos  por  meio  de  naphta  c  de  fogo. 

Estos  testemunhos  dos  escriptores  árabes  são  re- 
forçados por  uma  passagem  da  chronica  latina  do 
imperador  Aflbnso  Raymundez  [Liv.  2.  cap.  41]  ao 
Tucsmo  tempo  que  servem  para  explica-la.  Diz  o 
cbronista  que  os  mouros  cercando  Toledo  pozeram 
<"m  volta  da  cidade  muitas  lialistas  ,  e  machinas  ,  o 
arremessos  de  fogo,  e  Ivons  [tormenta]  para  arro- 
jar pedras  o  lanças,  o  escorpiões  para  despedir  se- 
tas, o  fundas,  e  aríetes,  e  vincas.  —  Aqui  por  ex- 
clusão de  partes,  visto  que  o  auctor  enumera  todos 
os  géneros  de  machinas  de  tiro  ,  se  conhece  que  os 
trons  [tormenta]  não  eram  senão  as  manganellas  de 
logo  que  tão  triviaes  parecem  ter  sido  entre  os  mus- 
sulmanos  da  Hesp.-mba. 

A  opinião  de  Casiri  de  que  a  invenção  da  pólvo- 
ra não  sendo  verdarleiramente  eiirnpe.i  ,  provavel- 
■meiíte  passou  dos  árabes  para  os  hespanhoes  e  des- 
tes para  as  outras  nações  francas  .  não  deixa  de  ser 
fundada.  Como  <■  crivei  que  havendo  tão  estreitas 
relações  entre  os  mouros  e  os  chrislãos  da  Peninsu- 
la  ,  estes  ignorassem  por  muito  tempo  o  modo  de 
empregar  um  tão  poderoso  agente  de  destruição  ; 
elles  cuja  vida  era  uma  serie  raro  interrompida 
de  batalhas,  assédios  e  defezas  de  castellos?  Fre- 
quentes Vezes  os  principes  sectários  de  uma  das 
crenças  se  ligavam  com  os  da  seita  contraria  para 
guerrearem  os  próprios  correligionários  ,  e  não  era 
raro  ver  marchar  unidos  na  mesma  hoslo  ou  arran- 
cada os  pendões  da  cruz  e  os  estandartes  moslemi- 
cos.  Neste  intimo  trato  militar  era  qiiasi  inipossi- 
vel  que  os  engenhos,  invenções  de  guerra,  e  armas 
pouco  a  pouco  se  não  tornassem  commnns.  A  gran- 
de mudança  das  cervilheiras  o  saios  de  malha  para 
as  armaduras  de  soliias ,  elmos,  grevas,  emlini  de 
arnez  liso  foi  uma  imitação  doscavalleiros  do  orien- 
te. Hasta  examinar  com  altenção  os  monumentos 
cidligidos  por  Monlfaucon  para  nos  convencermos 
disso.  Porque  não  succederia  o  mesmo  á  pólvora  ? 
Não  [lodcria  o  monge  .Schwartz,  a  quem  se  attribue 
a  invenção  delia,  conhecer  os  livros  dos  árabes  em 
que  se  tratasse  da  sua  confecção  cuso?  O  documen- 
to que  cila  Ducange  a  respeito  da  epocha  em  que  a 
pólvora  primeiro  apparccc  cm  França  [133S1   é  no- 


tável porque  se  trata  alii  delia  e  das  bombardas, 
não  como  de  uma  cousa  <'xtraor(linaria  ,  mas  como 
de  um  |)etrecho  de  guerra  trivialissimo  ;  e  de  feito 
este  invento  terrível  era  já  rouinuini  |)or  toda  a  Ku- 
ropa  no  meado  do  decímo-quaito  século. 

Fma  passagem  de  Pelrarcha  no  livro  intitulado 
Rrmcdio  de  varia  fortnna  [escri[)to  aiUes  de  134i 
como  o  mostra  Muralorí  no  Tom.  2."  das  ÁHliijuida- 
des  italianas]  vem  rohorar  esla  nossa  opinião  ,  mos- 
trando que  os  tiros  para  os  quaes  servia  a  pólvora, 
eram  entre  as  nações  francas  os  mesmos  qne  des- 
crevem os  escriptores  árabes.  Diz  ahi  Pelrarcha  o 
seguinte;  [I^.  1.  Dial.  9!>J.  ...  os  globos  de  metal, 
que,  introduzidas  nelles  as  chamnias  ,  são  arremes- 
sados com  horrível  ruido  ....  Era  esta  peste' rara 
ainda  não  ha  muitos  aunos,  do  modo  que  se  olhava 

para  ella  com  espanto  ;  agora  ,  [loreni ó  tão 

coinraum,  como  outra  qualquer  espécie  de  armas.» 
— Eis  aqui  [jois- trivialissima  já  a  artilharia  dos  ára- 
bes antes  do  13Í.Í,  podciido-so  deduzir  das  palavras 
do  Pelrarcha  que  ,  posto  que  menos  fiequenle  ,  já 
era  conhecida  nos  lins  do  século  13."  E  não  será 
digno  de  reparo,  que  esta  terrível  invenção  servis- 
se entre  os  christãos  do  mesmo  modo  quo  entre  os 
árabes ,  para  arrojar  uma  espécie  de  bombas  ou 
granadas?  Não  c  mais  natural  suppôr  que  os  fran- 
cos imitaram  os  mnssnlnianos ,  do  que  imaginar 
que  uns  e  outros  fizeram  o  mesmo  invento  e  logo 
lhe  deram  uma  applicação  idêntica?  É  obvio  que 
sim. 

Em  ultimo  logar  notaremos  que  á  palavra /'oírora 
se  pode  talvez  achar  melhor  elymologia  no  arábico 
Àl-harud  doque  no  latim  Puleis.  >erdade  é  que  nós 
c   os  castelhanos  tomámos   quasi    sempre   os  nomes 
latinos  na  sua  forma  do  ablativo  :  mas  não  deve  es- 
quecer que  já  tínhamos   na  Península  os  vocábulos 
Polvo  e  Pó,    correspondentes  a  Pulvis  ,    tirados  ou 
immediatamente  do  latim  ,   ou  mediatamente  d'al- 
gum  dos  dialectos  da  lingua  romana.  Os  francezes, 
os  italianos,  os  anglo-normandos  deram  á  pólvora  a 
mesma  denominação  de  pó — poiídrc,  polverc,  powdcr. 
Só  nós  os  hespanhoes — meios  árabes  no  sangue,  nos 
costumes,  e  ainda  na  linguagem,  distinguimos  aquel- 
le  niixto   [Al-barud]  pela  denominação  especial  de 
Polvm-a.  ...  ... 

•       ^    (A.  Herculano).  ■ 


FaSCINADORES  de   cobras  ISA   I.^DIA. 

Ha  diversas  passagens  na  Biblia  que  alUideni  cla- 
ramente á  opinião  ,  que  desde  tempo  immemorial 
prevalece  nas  Índias  Orientaes  ,  de  que  as  serpen- 
tes são  SMSccpliveis  do  mansidão,  perdendo  median- 
te encantamentos  toda  a  sua  malignidade.  No  psal- 
mo  o<S  compara  David  os  niahados  dizendo  :  —  O 
furor  delles  é  similhanle  ao  da  serpe  ;  como  o  do 
aspid  surdo  e  qne  tapa  suas  orelhas.  Que  não  ou- 
virá a  voz  ri'encantadores  ,  nem  do  feiticeiro  que 
fascina  destramente.  —  .\o  cap.  S."  do  Jeremias  es- 
tá escriplo  :  —  Porque  eis-ahi  que  vos  enviarei  ser- 
pentes basiliscos  para  osquaesiião  ha  encantamento. 
Todos  os  que  pela  índia  viajam  podem  prestar 
tostemiHiho  do  poder  extraordinário  que  os  peloti- 
queiros  e  charlatães  do  Indostão  exercitam  sobre  as 
cidiras  ,  a  ponto  de  as  fazerem  dançar  sobre  o  cír- 
culo qne  com  a  cauda  descrevem,  e  mover  a  cabe- 
ça em  variadas  inllcxõcs  seguindo  as  toadas  do  pi- 
fano  o  adufe  tocados  nessas  ocrasiões.  Em  Chander- 
nagor,   capital   dos  estabelecimentos   francezes  no 


o   PANORA3IA. 


101 


território  benwllm  ,  um  indio  mosirava  quatro  co- 
bras,  que  tonam  seis  |iaimos  tlc  comprido  c  mara- 
vilhosauiciile  Piisinaitas  :  —  dcfiois  de  um  preludio 
de  musica  ,  a  ccrlo  som  as  cobras  saliiram  das  ca- 
nastras redondas  em  que  estavam  uma  a  uma  ,  e 
principiaram  a  raover-sc  alçada  amelade  do  corpo  , 
ergucndo-so  e  baixando-se  pela  contracção  da  par- 
le inferior,  umas  vezes  dando  voltas  na  casa  ,  ou- 
tras chegando-sc  ao  dono  ,  c  cnleando-o  ,  e  logo  re- 
trahiudo-sc,  continuando  dest'arte  em  varias  evo- 
luções, até  que,  a  outra  toada  dos  instrumentos,  de 
amedrontar  ao  que  parecia  ,  cada  uma  se  recolheu 
a  seu  canistrel  ,  enroscando-se  .  e  ficando  quedas. 
Não  solTre  duvida  que  foram  estes  reptis  aniuieslra- 
dos  a  poder  de  pratica,  c  que  os  indios  que  vi\cm 
de  similhantes  exliibicoes  são  dotados  de  nimia  pa- 
ciência e  mui  siuiíular  sagacidade  ,  maior  ainda 
que  a  dos  salioianos  que  discorrem  alheias  terras, 
mostrando  marmotas  e  ursos  adestrados  em  danças. 
—  A  primeira  opeiação  daquellcs  peloliqueiros  sa- 
bido esta  que  é  appossarcm-se  dos  animaes  que  in- 


tentam domesticar  ;  com  cfTeilo  ,  assim  que  desco- 
brem a  loca  ,  onde  sabem  que  ha  cobra  .  começam, 
de  cavar  até  appareccr  parle  do  rabo  do  reptil,  e 
asarrando-lhe  rijamente  com  a  mão  esquerda  o  sa- 
cam para  fiira  ,  correndo  com  a  direita  velozmente 
o  cor[io  ate  lho  subjugarem  a  cabeça  enlre  os  de- 
dos :  immediataincnle  com  pinças  lhe  arrancam  os 
dois  cidmilbos  ou  prezas  venenosas,  c  íica  o  ani- 
mal incapaz  de  fazer  mais  damno  que  o  de  uma 
mordedura  ordinária,  porquanto  os  mais  dentes  são 
mui  curtos  e  desprovidos  do  fulliculo  de  pcçonlia. 
—  Levadas  as  cobras  para  casa,  principia  a  tarefa 
do  ensino,  dandu-lbes  de  comer  á  mão.  A  caça  das 
cobras,  ditas  de  capèllo,  é  um  tanto  perigosa,  por- 
que se  a  cabeça  escapa  da  mão  direita  é  inevitável 
a  mordedura  ;  por  isso  o  indio  vai  munido  de  ferro 
em  braza  para  cauterisar  inimiMlialamenle  a  ferida 
e  impedir  o  elieito  fatal.  Quanto  ao  quebranto  can- 
sado nos  reptis  pela  musica  ,  oiiiniões  ha  encontra- 
das, e  que  parece  não  terem  toda  a  saacção  da  ver- 
dade. 


FASCIItIADOR£S  Dt^  cOBaAS. 


Da  calde.vçío  das  Tcr.RAS. 


a  naturrz.i,  ou  antes  fal  q-ual  o  deitaram  as  revolu- 
ções do  globo.  Qnasi  nunca  vereis  os  camnonezes 
trocando  no  seu  campo  terra  por  terra,  quando  mes- 
mo ahi  a  tem  de  dincrcntes  espécies  e  ([ualidades  , 
Esta  maneira  simples  e  natural  de  melhorar  os  ter-  1  ou  seja  ita  snperficie  ,  ou  na  camada  inf<'rior.  D'a- 
renos  c  qnasi  absobitanicnSc  despresada  entre  nós:  ;  qui  se  segue  que  n'umas  partes  preiiomina  a  areia, 
quasi  que  existe  nm  respeito  su|iersticioso  em  dei-  '  aqnal,  sendo  nimiamente  permeável  á  agua  e  á  luz. 
xar  perpetuamente  o  terreno  tal  qual  o  apresentou  I  se  secca  e  arde  no  estio,  matando  a  planta  :  n'on- 
!,•)     Ccniinuado  di-  pag.  88.  ~~      1  Iras  é  nra  barro  forte  c  compacto,  que,  ou  pclasec- 


Í02 


O  PANORA3IA. 


cnra  da  atmosphera  se  desseca  como  pedra,  e  for- 
ma grelas,  ou  com  as  chuvas  se  ensopa  de  maneira 
íjiie  se  não  presta  á  vegetarão.  Entretanto  nada  se- 
ria mais  fácil  do  que  emendar  e  corrigir  uma  pe- 
la outra  ,  applicando-lhe  os  ingredientes  contrários. 
O  tempo  que  se  empregar  neste  importaniissimo  ser- 
viço pode  ser  lambem  aqucllc  que  sobeja  sempre 
para  intercalar  entre  os  maiores  tráfegos  da  cultu- 
ra ;  e  esta  manobra  pódc  tanto  ser  leila  por  braros 
fortes,  como  por  mulheres  e  rapazes  de  8  ou  10  an- 
nos  para  cima. 

A  regra  única  para  esta  operação  é  procurar  e 
achar  terras  que  vos  convém  misturar  cum  as  vos- 
sas, eque  faltam  no  vosso  campo.  Raras  vezes  acon- 
tecerá que  dentro  mesmo  de  vossa  propriedade,  fa- 
zendo diligencia  ccxcavações,  não  encontreis  osma- 
leriaes  desejados. 

Eis  os  principacs  terrenos  defeituosos  ,  e  os  cor- 
rectivos para  os  melhorar. 

1.°  Terrenos  ari/ilosos,  barrentos,  fortes  e  tenazes  : 
eracndam-se  estes  misturando-Ihes  terra  calearca  , 
saibro,  oxt  arein  fina,  mame,  caliça,  ou  entulho.  Sc 
por  acaso  faltassem  todos  estes  ingredientes,  se  po- 
deriam snpprir  com  uma  composição  de  estrume  dos 
menos  ardentes  com  cal  e  areia,  juntando-lhes  toda 
a  casta  de  vegetaes  ,  e  rápido  de  charneca  ,  ou  de 
terra  inculta. 

'^■°  Os  terrenos  calcarcos  d'especie  densa  e  gros- 
s»  podem  raelhorar-se  pela  terra  saibmsa  ,  c  se  fo- 
rem de  qualidade  mais  ligeira  ,  pela  argila  c  pelos 
mames  argilosos. 

3.°  Terrenos  arenosos  se  melhorara  pela  terra  cal- 
carea  ,  e  pelo  barro  ,  e  em  geral  pelas  terras  com- 
partas ,  fortes, 

i."  Terreno  cascalheiro ,  pedregoso,  se  mistura 
convenientemente  com  os  marnts  ,  argila  ,  e  o  cat- 
t-areo  bem  dividido. 

5.°  Os  terrenos  turbr<sos  ou  palustres  se  melhoram 
dessecando-os ,  ao  menos  na  superfície  ,  e  depois 
misturando-lhes  saibro  ,  areia  fina  commum  ,  calea- 
reo  ,  e  terras  grosseiras,  mame  calcareo  ,  saibro  ou 
areia  marinha  ,  e  cal ;  segundo  a  necessidade  de  se 
procurar  e  obter  estas  diirerenlcs  substancias. 

Independentemente  do  correctivo  da  caldeação  c 
mistura  das  terras  sempre  fica  um  principio  predo- 
minante em  cada  um  dos  terrenos ,  isto  c  ,  sempre 
(ica  sendo  forte  ou  fraco  ,  quente  ou  frio ,  secco  ou 
húmido ,  porque  isso  depende  de  causas  naluraes  , 
da  formação  do  solo  ,  da  exposição  e  do  clima  lo- 
cal :  sempre  portanto  precisa  o  cultivador  adaptar 
á  qualidade  do  terreno  assim  o  género  de  cultura  , 
«orno  as  espécies  de  sementes  c  de  plantas  que  mais 
lhe  convier. 

.\ssim  ,  por  exemplo  ,  as  terras  fortes  e  substan- 
ciaes  são  próprias  para  as  sementeiras  do  trigo  :  — 
as  terras  brandas  eleves  para  os  jardins  ;  —  as  ter- 
ras medias,  que  nem  são  tão  fortes  que  produzam 
trigo,  nem  tão  fracas,  que  não  tenham  alguma  sub- 
stancia ,  são  próprias  para  o  milho  grosso  ,  a  que 
chamámos  milhão;  —  as  terras  mais  fracas  podem 
dnr  centeio  ,  cevada  ,  e  aveia  ;  — o  chamado  milho 
iniudo  ou  alvo  cança  muito  as  terras,  mas  pódc  d.ir- 
se  nos  terrenos  sond)rios  e  húmidos  ; — o  painço  da- 
se  nns  terras  pedregosas  ,  e  não  precisa  d'agua  ;  — 
ò  vinha  quer  terra  forte,  mas  argilosa;  da-se  mui- 
to bem  nos  terrenos  calcarcos  c  pedregosos,  nas  en- 
costas, e  em  boa  exposição  ao  sol  ;  não  quer  humi- 
dade ; —  o  cânhamo  exige  boa  terra,  precisa  chuva 
ou  rega  ,  por  isso  mesmo  que  é  sementeira  do  ve- 
rão ; —  o  linho  commum   e  ordinário  lambera  ama 


terra  boa,  bem  preparada  e  limpa,  mais  gross»  que 
delgada;  precisa  calor,  enão  humidade;  —  o  arroz 
quer  terra  húmida,  que  se  inunde  ;  —  as  favas  re- 
querem terra  bem  estrumada  ,  e  ,  como  este  cxcel- 
lenlc  legume  não  fatiga  a  terra  ,  admitle  depois  no 
mesmo  terreno  sementeira  de  trigo,  ou  outro  cereal ; 
—  ervilhas  querem  terra  gorda  e  grossa,  um  pouco 
secca  e  bem  estrumada  ;  cançam  muito  a  terra  ;  — 
lentilhas  querem  terra  mediana,  e  seraeam-se  jun- 
tamente com  o  estrume;' — tremoçosdão-se  em  qual- 
quer terreno;  quasi  não  precisam  cultura,  pois  nera 
ao  menos  se  sacham;  enterrados  na  florescência  são 
excellente  estrume  para  as  vinhas; — os  nabos,  ce- 
nouras, rábanos,  couve  nabo  &c.  semeam-se  nas 
terras  que  produziram  cevada  ,  e  melhor  depois  de 
queimado  o  restolho  ;  dão-se  por  consequência  nas 
terras  capazes  de  produzir  aquelle  cereal ;  enão  fa- 
tigam o  terreno;  —  em  geral  todas  as  plantas  de  raí- 
zes bulbosas,  tuberosas  e  carnudas,  como  são  as  ce- 
bolas ,  batatas,  o  nabo  turncpo  ,  as  betarrabas  &c. 
convém  aos  terrenos  siliciosos  ou  saibrosos  ,  porque 
estes  por  sua  contextura  porosa  ,  e  pela  pouca  ad- 
herencia  de  suas  partes  offerecem  menos  resistência 
ao  desenvolvimento  da  raiz,  esão  elles  mesmes  mais 
permeáveis  pela  humidade  ,  e  penetrados  pelo  ca- 
lor, o  que  tudo  ajuda  ao  aperfeiçoamento  da  planta. 
De  tudo  o  que  ate  aqui  deixámos  expendido  se  po- 
dem tirar  as  conclusões  seguintes  :  —  l.^que  em  ge- 
ral os  melhores  terrenos  são  aquelles  que  contém  a 
maior  somma  de  substancias  alimentarias  para  as 
plantas.  É  por  isto  que  as  terras  calcareas  que  teem 
uma  grande  attracção  para  o  acido  carbónico,  com- 
binação chymica  a  mais  favorável  á agricultura,  são 
férteis.  2.'  que  os  terrenos  mais  estimados  são  aquel- 
les que  contém  uma  maior  quantidade  de  sedimen- 
to e  partículas  animacs  e  vegetaes  era  decomposi- 
ção, porque  ossaes  ahi  concentrados  estimulam  for- 
temente a  vegetação.  3."  que  não  ha  terreno  tão  máu 
que  não  possa  produzir  alguma  cousa  ,  emendados 
seus  defeitos  naturaes  pela  mistura  de  seus  contrá- 
rios ,  e  pelos  estrumes  adaptados,  i.'  que  antes  de 
emprehender  qualquer  género  de  cultura  se  deve 
d'antcmão  considerar  a  natureza  e  qualidade  domi- 
nante do  terreno  ,  sua  exposição  ,  e  localidade  ,  a 
lim  de  proporcionar-lhe  a  sementeira  ou  plantação 
conveniente, 

(J.  da  C.  N.  C.) 


O»  SETE  DORMENTES. 


IIa  um  grande  numero  dephrases  e  expressões  vul- 
gares, em  que  se  faz  allusão  aos  sete  dormentes;  e 
ha  também  um  grande  numero  de  pessoas  que  igno- 
ram a  historia  destas  celebres  personagens  ,  e  por 
consequência  o  valor  exacto  da  phrase  de  que  se  ser- 
vem ,  o  que  nós  aqui  poremos  em  breves  palavras. 
Entre  as  lendas  fabulosas  do  que  estão  cheias  as 
antigas  chronicas  ecclesiasticas  ,  martyrologios ,  e 
sancloracs,  uma  das  mais  notáveis  é  a  dos  sete  dor- 
mentes, os  quaes  acordaram  notemiio  do  imperador 
'Ilieoilosio  ,  o  moço  ,  c  da  invasão  dos  vândalos  na 
Africa.  (Juando  se  levantou  a  perseguição  feita  aos 
christãos  pelo  imperador  Decio  ,  sete  mancebos  no- 
bres, naturaes  d'Ephcso,  esconderam-se  dos  tyran- 
nos  n'uma  espaçosa  caverna  aberta  em  certa  mon- 
tanha próxima  daquclla  cidade.  Soube  disto  Dccio 
c  ordenou  que  entulhassem  a  entrada  da  gruía  com 
grandes  pedras.  .Vpenas  ,  porem,  esta  ordem  cruel 
se  executou  os  sete  mancebos   cahiram  cm  sorano 


o  PANORAJIA. 


103 


profundo  ,  que  se  prolongou  milaRrosanipnle  ,  sem 
lhes  consuniir  as  vidas,  por  um  período  de  1S7  ân- 
uos. Passado  todo  este  tempo  os  escravos  de  um 
certo  Adocio,  que  herdara  odominio  daquolla  mon- 
tanha ,  precisaram  de  remover  as  pedras  que  tapa- 
vam a  lioca  da  gruta  para  conslruircm  vários  edifí- 
cios ruraes.  A  luz  <io  sol  peneirou  na  caverna  e  os 
sete  dormentes  acordaram.  Como,  depois  de  have- 
rem dormido  por  alç;nmas  horas,  a  fome  os  aperta- 
va, resolveram  que  um  dellcs  chamado  Jamblico 
voltasse  disfarçado  a  cidade  de  modo  que  não  fos- 
se conhecido  dos  esbirros  de  Decio  ,  c  comprasse 
pão  para  os  outros.  O  mancebo  —  que  tal  pelo  me- 
nos se  cria  cUe  —  ao  sahir  da  caverna  mal  piule  re- 
conhecer o  aspecto  do  seu  paiz  nalal.  que  tão  fa- 
miliar lhe  era  ;  e  mais  espantado  licou  vendo  ao  en- 
trar em  Epheso  uma  cruz  triumphalmente  erguida 
sobre  a  porta  principal  da  cidade.  Dirigiu-se  a  um 
padeiro  ,  este  ficou  cheio  d"assombro  ao  ver-Ihe  o 
trajo  singular  e  ao  ouvir-lhc  a  linguagem  antiqua- 
da .  assombro  que  angmentou  quando  Jamblico  lhe 
deu  para  pagar  o  pão  uma  medalha  com  a  elligie 
denecio,  como  se  fosse  moeda  corrente  do  império. 
Jamblico  tornou-se  então  suspeito  de  ter  achado  al- 
gum thesouro  enterrado,  e  por  isso  foi  levado  á  pre- 
sença do  juiz.  Pelos  interrogatórios  e  depoimentos 
descobriu-se  finalmente  cora  admiração  geral  o  mo- 
do porque  Jamblico  e  os  seus  companheiros  tinham 
escapado  havia  quasi  duzentos  annos  á  fúria  do  ty- 
ranno  Decio.  O  bispo  d'Epheso,  o  clero,  os  magis- 
trados ,  o  povo  ,  e  até  o  imperador  Theodosio ,  fo- 
ram visitar  a  caverna  dos  sete  dormentes  ,  que  de- 
pois de  relatarem  a  sua  historia  expiraram  ímme- 
di.itamente. 

Mahomet  provavelmente  ouviu  contar  esta  lenda, 
que  devia  ser  vulgar  na  Syria  já  no  sexto  século  , 
e  assim  introduziu-a  no  Roran  como  uma  revelarão 
divina. — A  historia  é  portanto  conhecida  não  só  en- 
tre os  chrislãos  da  Europa  ,  mas  também  entre  as 
nações  da  Africa  e  da  Ásia  que  seguem  a  religião 
mahometana. — A.  H. 


PBEBO  MoMZ  ,    ou  o   AMOR   Di    PÁTRIA. 

QcE  cousa  haverá  no  mundo ,  que  não  tenha  mere- 
cido louvores  e  censuras  ,  ganhado  patronos  e  de- 
tractores,  sido  objecto  d'estima  para  uns,  d'indif- 
ferença  para  outros  ,  e  até  de  desprezo  para  mui- 
tos. S'ão  admira,  pois,  que  o  amor  da  pátria  tenha 
corrido  a  mesma  sorte  ,  e  que  ,  na  razão  de  todas 
as  cousas  do  mundo  ,  exaltado  por  uns  ,  haja  sido 
■  menoscabado  por  outros.  Vai  dependente  das  pai- 
xões dos  homens  ,  como  o  trajar  do  capricho  dos 
gostos.  Quem  não  sabe  ,  que  os  vicios  tem  figurado 
na  galeria  das  virtudes  ,  e  que  estas  tem  soffrido  o 
insulto  de  as  collocarem  no  estrado  dos  vicios?  Não 
é  muito  vulgar  chamar-se  fraqueza  á  humildade  ,  e 
grandeza  d'alma  á  ambição,  e  á  vingança?  As  pai- 
xões são  os  planetas  lerriveis  que  influem  na  moral 
e  nas  opiniões  dos  homens,  como  Marte,  e  Saturno 
em  todas  as  cousas  sublunares. 

Os  homens  tera-se  dividido  sobre  o  objecto  do 
amor  da  pátria  ;  c  estou  que  ha  demasia  no  cnthu- 
siasmo  com  que  uns  o  deffendem  ,  c  na  frialdade 
com  que  outros  o  tratam.  Estas  demasias  provam  a 
existência  d'um  meio  termo,  que  é  aquellc  que  o 
homem  circumspecto  deve  seguir.  Os  campiõcs  diu- 
rna e  d'outra  parcialidade  me  conformam  no  meu 
alvitre.    Os  patronos  do  amor  da  pátria  não  deixara 


de  achar  cordatas  algumas  reflexões  de  seus  adver- 
sários ;  e  estes  de  contemporisarem  com  outras  de 
seus  rivaes.  Querer  impugna-lo  absolutamente ,  é 
loucura  e  impolitica  ;  é  querer  guerrear  um  senti- 
mento inspirado  pela  natureza  ,  c  reclamado  pelo 
interesse  de  sociedade.  No  caso  d'excesso  ,  antes 
quizera  partilhar  o  enthusiasmo  de  seus  defensores, 
que  a  frialdade  de  seus  adversários. 

lia  muitos  homens  que  acoimam  de  ridículo  o 
aflccto  que  cada  um  consagra  ao  logar  cm  que  nas- 
ceu. Dizem:  —  que  idolalra-lo  ,  é  uma  ninharia  — 
que  amar  o  berço  é  próprio  de  crianças  —  (]ue  os 
grandes  génios  não  tem  pátria  —  que  ninguém  <■ 
profeta  na  sua  —  que  a  pátria  dá  a  vida  ,  mas  difll- 
cultosamcnte  as  honras  —  que  o  homem  não  se  faz 
grande  c  conhecido  senão  girando,  como  o  astro  do 
dia  —  Um  escriplor  celebre  ri-se  de  que  o  divino 
Homero  pintasse  aL'lysses  entre  os  regalos  dePhea- 
cia  suspirando  por  ver  o  fumo  que  se  levantava  so- 
bre os  montes  da  sua  Ithaca  ;  e  reputa  uma  das  fa- 
bulas menos  verosímil,  que  este  hcroe  preferisse  os 
riscos  da  sua  pátria  á  immortalidadc  cheia  de  pra- 
zeres ,  que  lhe  offcrecia  a  nimpha  Calipso  ,  debaixo 
de  condições  de  viver  com  ella  na  ilha  de  Ogygia. 
Este  escríptor  celebre  é  Feyjú  ,  que  no  seu  discur- 
so—  Amor  da  Pátria  ,  e  Paixão  Nacional  —  levanta 
a  voz  com  energia  contra  os  patronos  do  amor  da 
pátria. 

Algumas  cousas  ha  neste  discurso  ,  que  não  se 
conformam  com  a  boa  razão.  Este  critico  severo  at- 
Iribue  todas  as  acções  heróicas  obradas  a  favor  da 
pátria  ,  e  inspiradas  pelo  amor  delia  ,  á  ambição  , 
e  a  outras  paixões,  com  pequenas  excepções.  Refu- 
tando com  tanta  força  os  princípios  dos  scepticos 
em  outro  discurso  ,  Feyjó  parece  sccptico  a  res- 
peito dos  sentimentos  do  nosso  coração,  duvida  das 
boas  intenções  de  quasi  todos  os  patriotas.  Mas  di- 
zer o  que  pode  ser  ,  não  é  dizer  o  que  é  :  porque 
uma  paixão  pode  enfraquecer  o  mérito  d'uma  ac- 
ção heróica  d'um  homem,  não  se  segue  que  ener- 
ve a  de  todas  em  todos.  Este  scepticismo  seria  an- 
ti-social ,  e  de  outras  muitas  funestas  consequên- 
cias. Temos  muitos  meios  para  o  vencermos ,  e  pa- 
ra nos  decidirmos  com  segurança  ,  avaliando  o  me- 
recimento das  acções  dos  homens  :  o  caracter  de 
cada  um  ,  as  suas  opiniões  e  princípios  ,  o  seu  mo- 
do constante  d'obrar  são  outros  tantos  recursos  que 
temos  para  entrarmos  no  sacrário  de  seus  pensa- 
mentos. 

Se  lhe  dizem,  que  os  scythas  fugiam  das  delicias 
de  Roma  para  as  asperezas  do  seu  solo  ;  que  os  la- 
ponios  ,  por  mais  commodidades  que  se  lhe  offere- 
cessem  em  Aiena,  suspiravam  pelo  seu  pobre  e  rí- 
gido paiz  :  que  um  selvagem  do  Canadá  ,  trazido  a 
Paris,  viveu  alli  sempre  triste  ,  c  nielancholico  : 
Feyjó  responde  ,  que  estes  homens  vivem  con» 
maior  conveniência  na  Scylhia  ,  na  Laponia  ,  c  ni> 
Canadá  .  que  em  Roma  ,  em  Viena  ,  e  em  Paris ; 
que  acham  maior  prazer  nos  seus  alimentos  gros- 
seiros, que  nas  nossas  ígnarias  delicadas  ;  que  lhes 
aprazem  mais  os  gelos  da  sua  terra  natal ,  que  a 
temperatura  das  nossas  ;  que  preferem  a  liberdade 
de  mudar  de  sítio  em  todas  as  estações  á  prisão  de 
nossos  domicílios.  Custa  a  crer  que  assim  discorra 
um  homem  de  tanto  mérito ;  e  que  se  sirva  de  si- 
milhantc  sofisma  para  depreciar  o  amor  da  patri.i 
confirmado  por  aquelles  factos.  Todo  o  amor  leni 
um  motivo,  não  é  um  sentimento  abstracto  ;  c  o  d.i 
pátria  está  na  mesma  rasão.  Todas  essas  eommodi- 
dades ,  e  conveniências  que  o  severo  critico  refere. 


lOi 


O  PANORAMA. 


c  que  formara  os  laços  de  amor  da  pátria,  como  as 
simpathias  cnlrc  os  homens  as  prisões  de  amisade 
àc.  íí  natural  ao  homem  amar  o  logar  onde  nasceu, 
porque  lhe  é  natural  amar  todas  essas  conveniências. 
Masdiga.Chateaubriand  0(iue  cu  sinto,  enão  pos- 
so explicar.  Nósduvidàinos  (  vrja-se  oiicmodoVItris- 
liaiii.imo,  lie.  5.°  §.  ii),  qne  sem  amor  da  pátria 
possa  haver  nma  única  verdadeira  virtude,  uni  só 
verdadeiro  talento.  Esta  paixão  faz  procli.nios  na  guer- 
ra ;  e  nas  leltras  formou  Homero  e  Virgilio.  O  poe- 
ta cego  pinta  com  prclerencia  os  costumes  daloriia, 
onde  viu  a  luz;  e  o  cysne  de  Mantua  se  entretém 
com  as  recordações  do  seu  paiz  natal.  —  A  não  ser 
o  amor  da  pátria  ,  continua  Chatcaul)riand  ,  os  ho- 
mens se  precipitariam  nas  zonas  temperadas  ,  dei- 
xando o  resto  do  globo  deserto.  Pode  pensar-se,  que 
calamidades  resultariam  de  tal  reunião  do  género 
iiumano  cm  um  só  ponto  da  terra?  Para  evitar  esta 
desgraça  ,  a  Vrnvidimcia  [digauio-lo  assim]  prcniliu 
os  pá  de  cada  homem,  com  uma  atlracçuo  'nicrncird 
ao  (crradctjo  cm  que  cada  um  nasceu.  Os  gelos  da 
Islândia  ,  e  as  torradas  areias  d'Africa  nunca  estão 
sem  habitadores. 

Não  foi  sem  desígnio  particular,  que  esc<dhi  es- 
ta matéria  para  discorrer.  Tenho  posto  estes  prin- 
cipies para  agora  dizer,  que  uma  das  cousas  que 
íiiui  me  desoricnia  ,  é  ,  ouvir  dizer  a  qualquer  lio- 
niera  : — «Eu  sou  cidadão  do  mundo!  « — O  homem 
que  se  diz  cidadão  do  mundo,  mostra  que  não  tem 
laços  nenhuns  que  o  prendam  ,  nem  de  parentes  , 
nem  de  amigos  ,  nem  da  pátria  ;  que  tanto  lhe  vai 
em  viver  em  Portugal ,  como  em  Marrocos  ,  ou  en- 
tre os  Patagões  ;  que  lhe  é  indiíTerenle  passar  a  vi- 
da entre  christãos  ,  ou  entre  turcos.  O  homem  qtie 
se  diz  cidadão  do  mundo  ,  mostra  ,  pelo  seu  desa- 
mor a  tudo,  que  o  devera  temer;  porque  a  facili- 
dade que  tem  de  fugir  ao  império  das  leis,  fugin- 
do ,  e  passando  d'um  para  outro  |)aiz  ,  o  habilita 
para  todos  os  crimes.  E  um  homem  que  ,  perten- 
cendo a  todas  as  terras  ,  não  pertence  a  nenhuma  ; 
é  vagabundo  por  princípios  ;  é  um  niiscro  que  não 
tem  coração  ,  e  que  merece  ser  exterminado  de  to- 
das as  socieda<les.  Como  se  formariam  ellas,  e  co- 
mo subsistiriam  se  todos  os  homens  tivessem  estes 
princípios  ,  e  fossem  indifterentes  para  com  a  sua 
pátria? 

JViga  Feyjó  ,  e  os  que  o  seguem  ,  o  que  quize- 
rem.  Que  não  deve  o  mundo  e  a  sociedade  a  este 
instincto  da  natureza  ,  como  lhe  chama  Chateau- 
l)riand  ?  Que  não  lhe  devemos  nós  os  portuguezes? 
De  que  principio  procederam  tantas  acções  heróicas 
dos  nossos  nos  dias  de  nossa  gloria?  Òs  jiriucipios 
que  nos  fizeram  grandes  ei-losaqui:  —  Amor  de  re- 
ligião ,  e  amor  de  pátria  I  — 

Deixando  outros  muitos  portuguezes  beneméritos 
da  pátria  pelo  amor  que  lhe  consagraram  ,  appre- 
sento  Phebo  Moniz.  Pareceu-me  muito  própria  para 
o  nosso  tempo  uma  resposta  deste  illustre  varão. 
Vendo  ,  nas  cortes  que  juntou  o  cardeal  rei ,  que 
este  se  mostrava  inclinado  ao  partido  de  Castclla  , 
tanlo  se  afliigiu  publicamente,  e  se  enculerisou  con- 
tra a  parcialidade  philippiíia  ,  que  deu  mostras  do 
seu  desagrado.  líutãu  o  cardeal  lhe  disse  melancho- 
lico  :  —  Vhebo  Moui:  ,  vós  estais  muito  ai/astado  !  — 
O  illustre  Moniz  lhe  tornou  coin  toda  a  liberdade, 
e  firmeza  d'uni  peito  luso  :  —  .Sn»  ,  senhor  ,  porque 
nos  querem  fazer  castelhanos  .'  — 

Phebo  Moniz  não  era  cidadão  do  mundo.  Nesse 
caso  ,  faria  o  que  fazem  todos  os  que  professam 
não  ler  pátria  ,    seguiria  o  partido  de  queiu   roais 


lhe  desse.  Tinha  nascido  portuguez  ,  não  entendia 
que  podesse  ser  castelhano.  Estou  que  longe  de  Por- 
tugal, ainda  que  em  delicias  e  representações,  sus- 
piraria por  ver  a  corrente  do  seu  amado  Tejo  ,  co- 
mo llvsses  suspirava  por  ver  o  fumo  da  sua  pobre 
Itbaca.  Digno  é  ellc  de  ser  apprcseiitado  como  mo- 
delo aos  homens  que  entre  nós  representam  ,  c  que 
devera  |)roinover  a  nossa  felicidade  e  a  nossa  inde- 
pendência :  e  seguii,do-o  nós  seremos  felizes  e  sem- 


pre portuguezes. 


(O  Moralista.) 


'     ■  Os   ESQIELETOS  DOS  CARAÍBAS. 

No  archipelago  entre  as  duas  Américas  ha  um  gru- 
po de  ilhas,  que  se  denominam  ilhas  Caraíbas,  alem 
do  nome  usual  de  Antilhas,  que  se  estende  desde 
Tabago  ao  sul  até  ás  ilhas  Virgens  ao  norte  :  esto 
grupo  foi  reconhecido  por  Christovão  Colombo  na 
sua  segunda  viagem  ,  quando  tocou  era  Guadelupe 
e  cm  Antigoa.  O  centro  de  cada  uma  destas  ilhas 
é  occupado  por  um  monte,  que  em  geral  canipèa 
sobre  todas  as  outras  eminências  :  em  algumas  o 
centro  é  volcauico  :  o  mar  quasi  por  todos  os  lados 
offerece  grande  profundidade,  ainda  a  pequena  dis- 
tancia das  praias. —  Os  francezes  possuem  neste  ar- 
chipelago a  (iuadelupe,  a  Martinica,  Santa  Lúcia. 
Tabago,  e  algumas  outras  pequenas.  A  Guadelupe 
é  a  mais  importante,  tanto  pela  extensão,  como  pe- 
lo território,  que  appresenta  agradável  diversidade 
de  collinas  e  bahias  ,  c  do  fazendas  ruraes ;  c  mes- 
mo em  relação  ao  commercio  ,  porquanto  exporta 
mais  de  loO^^GOO  quintacs  d'assucar,  iOjíjOOO  di- 
tos de  café  .  e  muitos  outros  géneros  era  menor 
quantidade;  a  somnia  de  todas  estas  producções  ex- 
portadas sobe  a  seis  milhões  de  cruzados  annual- 
niente. 

Quando  >ír.  Ernouf,  oliicial  general,  foi  ha  pou- 
cos aunos  nomeado  para  o  governo  da  Guadelupe  , 
e  que  entrou  no  exercício  delle  ,  entre  vários  pon- 
tos da  ilha  ,  que  visitou  ,  foi  a  costa  de  Mole,  onde 
encontrou  cadáveres  dos  Caraíbas  [primitivos  habi- 
tantes, raça  que  os  invasores  europeus  tem  destruí- 
do] involvidos  nas  grandes  massas  de  madreporns 
petrificados  .  fez  com  que  se  empregasse  assíduo 
trabalho  para  se  descobrirem  alguns  destes  esque- 
letos notáveis  ,  que  destinava  para  o  museu  de  his- 
toria natural  de  Paris.  Este  trabalho  ,  diz  o  citado 
oliicial,  olíereceu  grandes  didiculdades  :  i.°  porque 
as  ossadas  dos  caraíbas  estão  encravadas  n'um  ban- 
co de  madreporas  ,  extremamente  duro  ;  c  que  se 
não  podem  cxtrahir  a  não  se  empregar  escopro  que 
as  vá  cortando  era  torno  :  2.°  porque  o  mar  a  cadií. 
reiluxo  cobre  o  sitio  era  que  se  acham.  Estes  res- 
tos humanos  mostram  grande  estatura  ;  a  massa  , 
que  se  deve  extrahir  cora  elles  lem  perto  de  oito 
pés  de  comprimento  sobre  dois  e  meio  de  largura  ; 
pesará  perto  de  três  mil  arráteis. —  As  opiniões  são 
diversas  sobre  a  sua  origem  :  uns  dizem  ,  que  na- 
quelle  logar  se  dera  um  grande  combate  entre  os 
naluraes  da  ilha,  e  os  de  outra  visinha  :  outros  per- 
Icndem  ,  que  fora  uma  llotilha  de  canoas,  que  nau- 
fragara alli,  onde  o  mar  quebra  com  violência  as 
suas  ondas,  quando  o  vento  rijo  o  agita  :  <iulros  ciii- 
liiii  presumem  ,  que  ira(iuelle  logar  havia  um  ee- 
niitcrio  dos  naturaes  do  paiz  ,  e  que  talvez  eiu 
tempos  posteriores  fosse  alagado  pelo  mar. 


Os  maus  tem  a  imprudência  de  se  accusarem  reci- 
procaraentc.  para  cautela  e  apercebimento  dos  bons. 


r>7 


o  PANORAMA. 


105 


MORTE  S£  RUBENS. 


CoMPREHENDEitÃo  OS  iiossos  Icilorcs  perfeilamenlc  es- 
te desenho  se  recorrerem  ao  capitulo  S.°  das  scenas 
históricas,  impressas  em  o  nosso  4.°vol.  da  1."  se- 
rie com  o  titulo  — o  Pintor  Ruhcns  ;  —  ahi  se  des- 
crevem os  últimos  momentos  deste  grande  artista 
flamengo  ,  e  o  como  o  seu  illustre  discípulo  ,  Antó- 
nio Van-Dyck  (■)  apenas  chegado  a  Antuérpia  se 
acccierou  a  dar  a  eterna  despedida  ao  mestre  vene- 
rado, entrando  ainda  com  os  vestidos  de  caminhan- 
te no  quarto  do  moribundo  ,  e  beijando-lhe  a  mão 
quasi  gélida  ,  ajoelhado  ao  pó  do  leito  ,  com  trans- 
portes de  allicção  e  viva  saudade.  Este  lance  pathe- 
tico  e  solemne  mostra  a  gravura,  e  ocioso  seria  ago- 
ra repetir  a  narração:  lambem  pouco  temos  que  ac- 
crescentar  relativo  á  vida  de  Rubens,  no  sobredito 
4.°  volume  largamente  delineada  ,  já  nos  esboços 
históricos,  já  em  as  notas  a  pag.  '269  e  immediata  : 
todavia  não  ommittiremos  as  seguintes  curiosas  par- 
ticularidades. 

Por  occasião  do  sitio  da  cidadella  de  Antuérpia  , 
temendo  os  habitantes  o  bombardeamento,  em  1833, 
deram-se  pressa  a  cubrir  e  resguardar  com  madei- 
ras e  couramas  os  preciosos  quadros  de  Rubens  e 
Van-Dyck  ,  para  que  assim  estivessem  mais  preser- 
vados de  qualquer  deterioração. 

Rubens   tinha  accumulado  grande  quantidade  de 
(t)     Yid.  o  retrato  e  noticia  a  pag.  73  deste  toI. 


Vid.  o  retrato  e  noticia  a  pas 

AiiRiL  8— 18;3. 


riquezas  ,  que  não  sú  o  agradecimento  e  favor  dos 
príncipes  ,  a  quem  servira  ,  lhe  haviam  proporcio- 
nado ,  como  também  os  preços  exorbitantes  porque 
eram  reputadas  as  suas  pinturas.  A  casa  de  sua  re- 
sidência era  um  palácio  sumptuosamente  adornado, 
e  digno  d'um  potentado  ;  ahi  com  frequência  rece- 
bia visitas  tanto  dos  estrangeiros  distinctos  que  vi- 
nham a  .\ntuerpia,  como  dos  governadores  dos  Pai- 
zcs-Baixos  ,  que  o  tratavam  familiarmente  ,  e  dos 
príncipes  a  quem  acontecia  passar  por  Flandres  ,  e 
que  pagavam  a  pezo  d'ouro  o  gosto  de  serem  retra- 
tados por  tão  nomeado  mestre. 

Certo  dia  appressntou-se-lhe  á  porta  um  sujeito, 
que  disse  ser  inglez  e  viajante,  que  desejava  conhe- 
cer o  cavalheiro  Rubens  ,  para  com  elle  tratar  as- 
sumptos de  importância  ;  admittido  á  presença  do 
dono  da  casa,  oITercceu-lhe  com  muito  mysterio  re- 
velar-lhe  o  segredo  da  pedra  philosophal  .  ajuntan- 
do que  por  ser  alchimista  de  poucos  recursos  nãu 
possuía  os  necessários  para  adquirir  os  ingredientes 
indispensáveis  para  obter  o  ultimo  c  grande  resul- 
tado. Então  Rubens,  tomando-o  pela  mão  ,  encn- 
minhou-o  ao  quarto  em  que  trabalhava  .  c  lhe  dis- 
se : — «.\migo,  já  vindes  muito  tarde,  faz  vinte  an- 
nos  que  eu  descobri  esse  mesmo  segredo.  »  —  «  Co- 
mo assim  '.  [exclamou  o  outro  espantado]  Se  nunca 
ouvi  dizer  que  estudásseis  chimica  ;  e  apezar  de 
2.'  Serie.  —  Vor.  II. 


106 


O  PANORAMA. 


meus  conhecimentos  lenho  ni  gaslo  mais  de  quaren- 
ta ânuos  para  descobrir  o  grande  achado?..»  — 
'<  Vede  aqui  toda  a  minha  alchimia  ..  —  tornou  Ru- 
bens ,  mostrar.do-lhc  a  palheta  e  pincéis  —  "Com 
rsles  achei  ha  vinte  annos  o  segredo  de  converter 
ora  ouro  os  barros  c  cinzas.» 


O  Bobo. 

1128. 

IX. 

O  Desafio. 

O  BVNoiETE  que  i)oz  termo  ao  memora-,  el  dia  do 
íijunlamcnto  solcinno  dos  barões  e  senhores  de  Por- 
tugal prolongou-sc  até  alta  noite.  D.  Thcreza  tinha 
ahi  apparccido  rodeada  de  todo  o  esplendor  real. 
J\'um  estrado  sobranceiro  ao  pavimento  da  sala  ,  c 
debaixo  de  docel  ,  formado  das  telas  mais  ricas  sa- 
bidas dos  teares  do  Jacne  de  Valência  ,  a  bella  iu- 
fnnla  viera  presidir  ao  banquete  dos  sens  ricos-ho- 
niens.  Assentada  era  uma  cadeira  ,  á  qual  o  espal- 
dar prijnorosamente  lavrado  de  bestiães  e  arabes- 
cos ,  e  os  braços  e  suppcdaneo  dourados  davam  o 
aspecto  de  um  throno  ,  a  rainha  de  Portugal ,  da 
mesa  que  tiniia  ante  si ,  e  em  que  particularmen- 
te ora  servida,  enviava  ora  a  nm  ora  a  outro  caval- 
leiro,  noiavcl  por  sua  linhagem,  influencia,  ou  le- 
nome,  alguma  das  iguarias  mais  delicadas,  que  ra- 
pidamente faziam  succeder  umas  ;ís  outras  os  peri- 
tos cosinheiros  do  paço  de  Guimarães ,  quasi  todos 
mouros,  ou  servos  ou  libertos.  Estas  provas  do  dis- 
tincção  eram  stmpre  acompanhadas  de  graciosas  men- 
sagens, que  lisongeavam  o  amor  próprio  dos  nobres 
senhores.  Escusado  talvez  fora  dizer  que  similhante 
dislincção  a  mereciam  só  aquelles  que  no  conselho, 
pelo  seu  voto  ou  opiniões  se  haviam  mostrado  lirmcs 
na  causa  da  mãi  contra  o  filho.  Para  aquelles  que, 
como  Gonçalo  Mendoz,  se  tinham  mostrado  parciaes 
lio  infante,  apenas  lançava  a  rainha  um  olhar  rápido, 
cm  que  se  misturava  a  cólera  c  ao  mesmo  tempo  o 
desprcso  ,  como  se  previsse  já  a  hora  do  triumpho, 
c  por  consequência  do  castigo.  D.Thereza,  que  des- 
de a  partida  de  seu  íilho  se  mostrara  triste,  abati- 
da ,  c  irrcsoluta  ,  parecia  nesta  noite  reassumir  to- 
da a  sna  antiga  energia.  No  seu  rosto,  banhado  de 
uma  alegria  algum  tanto  forçada  ,  conhecia-se-lhc  o 
desejo  de  que  lhe  cressem  o  animo  tranquillo  ao 
approximar  da  procella.  Dir-se-hia  até  que  intenta- 
va fazer  sobresahir  a  sua  formosura  ,  que  os  annos, 
os  cuidados  do  governo,  c  os  trabalhos  das  longas 
guerras  que  susientára  eonlra  1).  Urraca  ,  e  depois 
contra  o  imperador  ,  tinham  assaz  desbotado  ,  mas 
qnc  ainda  faziam  realçar  os  ricos  trajos  que  na- 
qiiellc  dia  vestira.  Eram  estes  um  epitogio  de  gri- 
zisco  orlado  de  pclles  mosqueadas,  c  apertado  com 
ura  cordão  entrançado  de  prata  e  seda  de  varias  co- 
res ,  uma  coifa  ou  rede  adornada  de  pedras  precio- 
sas que  lhe  retinha  as  longas  tranças,  nm  collar  de 
(uiro,  o  qual  lhe  cabia  sobre  a  camiza  de  ranzal  al- 
víssimo, qne  cm  [iregas  miúdas  lhe  vinha  fechar  na 
garganta,  c  um  amplo  manto  de  ciclatom  vermelho, 
que  pendente  dos  hond)ros  lhe  rojava  pelo  chão. 
Com  este  vestuário  ,  c  no  porte  e  meneios  altivos  , 
a  rainha  trazia  de  certo  modo  á  lembrança  a  nobre 
o  mageslosa  ligura  de  seu  pai,  o  grande  Alibnso  (i.' 
A  causa  desla  rc[)eiilina  muiiança  eslava  nas  no- 
vas que  haviam  chegado  poucas  horas  anles.  A  au- 
dácia do  infante,  a  licença  desenfreada  com  que  os 


seus  homens  d'armas  assolavam  as  villas  e  honras 
do  infantatico,  isto  é  do  que  constituía  propriamen- 
te o  apanágio  de  D.Thereza,  as  violências  que  pra- 
ticavam contra  os  villões  e  homens  de  creação  des- 
ses mesmos  testamentos,  ou  herdades,  o  furor  com 
que  derribavam  os  seus  castros  ou  logarcs  fortifica- 
dos ,  c  sobre  tudo  a  intenção  com  que,  segundo  af- 
firmavam  os  espias ,  o  moço  príncipe  se  acercava 
dos  muros  de  Guimarães,  e  que  eram  nada  menos 
do  qnc  lançar  em  jirisão  perpetua  Fernão  Peres  e 
a  própria  mãi ,  tinham  finalmente  sufTocado  no  co- 
ração desta  a  voz  do  amor  materno.  Quando  o  con- 
de de  Trava  ohcílcccndo  ás  ordens  qne  lho  trans- 
inittíra  o  capellão-mór  se  apprcsentou  perante  ella  , 
os  olhos  de  D.  Thcreza  faiscavam  de  cólera  e  de 
indignação.  Debalde  Fernão  Peres  lhe  ponderou  os 
inconvenientes  de  arriscar  a  sua  fortuna  ,  e  o  que 
mais  era  ,  a  liberdade  ou  a  vida  cm  uma  batalha 
campal :  a  violência  do  caracter  varonil  da  rainha 
que  triumphára  ,  ao  menos  momentaneamente  ,  do 
mais  profundo  affcclo,  o  amor  maternal ,  não  podia 
ceder  ás  considerações  da  prudência.  Declarou  que 
a  sua  resolução  inabalável  era  ir  ao  encontro  dos 
rebeldes  com  os  cavalleiros,  besteiros,  c  peões,  pe- 
la maior  parte  estrangeiros,  (1)  que  de  contínuo 
chegavam  a  Guimarães  attrahidos  pelos  grossos  cen- 
sos ,  ou  soldos  que  lhes  oITerecia  o  conde.  Os  ins- 
tinctos  guerreiros  de  D.Thereza,  que  os  annos  e  os 
revezes  haviam  amortecido  ,  despertavam  de  novo 
vigorosos  na  hora  em  que  era  necessário  encarar  fa- 
ce a  face  os  perigos  que  até  este  raomenlo  ainda 
pareciam  remotos. 

Assim  esta  noite  passava  bem  differcnte  daquella 
em  que  no  meio  de  alegre  sarau  só  a  bella  infanta, 
mau  grado  seu,  se  mostrara  triste  e  aborrecida.  Aqui 
eram  os  cavalleiros  que  pareciam  inquietos  e  des- 
conversáveis :  os  dois  bandos  bem  sabiam  qne  não 
tardava  o  dia  em  que  se  encontrassem  novamente  , 
não  na  mesa  do  banquete,  mas  no  campo  das  lides, 
onde  o  escorrer  do  sangue  nos  ferros  substituiria  o 
escumar  do  vinho  nas  laças  de  prata.  Para  clles  es- 
ta festa  Iirilhante  correspondia  á  ceia  do  algoz  e  do 
sentenciado  debaixo  das  abobadas  de  um  cárcere  na 
véspera  do  supplicio.  Qual  era  o  saião?  —  qual  a 
victima?  Eis  o  que  ninguém  sabia. 

Mas  talvez  nenhum  geslo  dava  mostras ,  não  de 
raelancholia  ,  mas  de  inquietação,  como  o  do  con- 
de de  Trava.  De  instante  a  instante  elle  volvia  os 
olhos  para  o  portal  da  sala  d'armas,  como  se  espe- 
rassealgucm  ;  e  de  feito  nm  logar  á  sua  esquerda 
ficara  vazio  na  esplendida  mesa  ao  começar  do  ban- 
quele.  Era  o  do  novo  alferes-mór.  Este,  desde  qne 
se  apartara  do  conde,  ninguém  mais  o  tinha  visto. 

Síuito  havia  já  que  era  noite  ,  c  as  taças,  que  os 
escanções  ,  correndo  por  detraz  das  longas  fileiras 
de  cavalleiros  com  os  picheis  nas  mãos,  enchiam  de 
novo  apenas  eram  esgotadas,  começavam  a  fazer  seu 
oflicio  :  as  frontes  iam-se  pouco  apouco  desenrugan- 
do c  soltando-se  as  liuguas.  Nos  banquetes  daquel- 
la idade  rude  e  feroz  ás  vezes  o  sangue  corria  como 
pospasto,  c  quasi  sempre  a  conclusão  do  festim  era 
uma  orgia  infernal ,  om  que  o  convívio  se  tornava 
em  scena  hedionda  de  embriaguez.  Não  era  raro  em 
similhantcs  occasiõcsvòr  os  paços  dos  nobres,  c  ain- 
da dos  reis  ,    convertidos   n'uma   cousa  hedionda   c 

(1)  A  (l<'nomina(;iio  (1'estraiigeiros  dada  aos  sidclailoj  da 
rainha  p  dorniiile  de  Trava  parece  na  verdade  inipri)|iria  , 
sendd  elleí  pela  maior  parle  ^'allpgos,  lennezes  &c.  Todavia 
a  liiiloria  dos  ijodos  os  desi;'iia  já  pelo  nome  de  aUfiiiyenne. 
Vejase  o  que  dissemos  nos  uUimos  paragrapUos  do  cap.  3.° 


o  PANORA3IA. 


107 


davidosa  entre  a  taberna  e  o  prostíbulo,  era  que  os 
filhos  dos  bcm-nascidos  mostravam  qiio  a  distancia 
moral  ,  que  cllcs  suppunham  separa-los  da  mais  vil 
gentalha,  na  roalidade  não  existia.  Se,  porem,  os 
longos  tí  sanguinolentos  homizios  enlrc  linhagem  e 
linhagem  se  originavam  facilmente  das  festas  mais 
pacíficas,  em  meio  das  taças  cheias  pela  mão  de  cor- 
dial hospitalidade  ,  muito  mais  de  recear  era  algu- 
ma rixa  funesta  entre  homens  que  guardavam  no  co- 
ração, uns  contra  os  outros,  os  mais  profundos  ódios 
humanos,  os  ódios  dos  bandos  civis. 

Estas  considerações  que  haviam  occorrido  ao  con- 
de ao  perceber  a  conversação  ,  no  princípio  langui- 
da, ir-se  tornando  viva  evchemcnte  ;  considerações 
em  que  não  reparara  a  tempo ,  atlento  ao  systcma 
que  adoptara  de  esconder  os  seus  receios  ,  e  o  pe- 
rigo da  sua  situação,  com  asapparencias  detranquil- 
lidade,  eram  agora  para  clle  motivo  de  scrios  te- 
mores. A  tardança  ,  porem  ,  do  alfcres-mór  ,  o  in- 
quietava ainda  mais.  A  rainha  não  devia  dar  o  si- 
gnal  para  acabar  o  festim  sem  que  elle  soubesse  com 
certeza  se  tudo  estava  disposto  para  impedir  a  sabi- 
da de  Guimarães  áquelles  que  atentassem.  As  mas- 
morras do  castello  deviam  povoar-se  nessa  noite  de 
todos  os  ricos-homens  da  corte  com  quem  o  infante 
Contava  ;  mas  a  segurança  deste  golpe  ,  que  iria 
transtornar  as  esperanças  do  moço  principe,  depen- 
dia inteiramente  da  rigorosa  execução  daquillo  que 
tinha  ordenado  a  Garcia  Bermudez. 

Este  entrou  em  fim  na  sala  ,  mas  em  vez  'de  se 
dirigir  ao  logar  que  parecia  baver-lhe  sido  guarda- 
do, rodeando  a  multidão  de  pagens  enfileirados  em 
pé  atraz  de  seus  senhores  ,  e  passando  por  entre  o 
tropel  dos  sergentes  ,  escanções  ,  uchões  ,  e  outros 
ovençaes,  que  attendiam  ao  serviço  do  esplendido 
banquete,  buscou  approximar-se  do  conde,  mas  de 
modo  tal ,  e  collocando-se  em  sitio  onde  delle  fosse 
visto,  sem  que  os  cavalleiros,  nos  quaes  as  amplas 
libações  do  pospasto  começavam  a  produzir  ruidosa 
alegria,  o  podessem  observar  :  —  d'alli  esperou  que 
Fernão  Peres  se  apercebesse  da  sua  chegada. 

Como  elle  viera,  não  da  sala  d'armas,  porem  da 
galleria  contigua ,  que  coramunicava  exteriormente 
com  ambos  os  aposentos  seguindo  todos  os  ângulos 
c  sinuosidades  daquella  face  do  edificio,  correu  al- 
gum tempo  antes  que  o  conde  reparasse  no  caval- 
leiro  ;  tanto  mais  que  a  sua  attenção  era  dislrabida 
pelo  que  se  passava  no  topo  da  mesa  fronteiro  a 
elle. 

Era  ahi  que  o  Lidador  se  vira  obrigado  a  ir  as- 
sentar-se  quando  voltara  com  Fr.Ililarião  de  faltar 
ao  homem  do  zorame  :  os  outros  legares  estavam  já 
povoados  de  cavalleiros,  e  por  um  acaso  bem  desa- 
gradável elle  se  achara  ao  lado  de  Vereraudo  Peres, 
de  quem  no  conselho  recebera  injurias  que  retri- 
buirá com. mão  larga.  Assim  durante  muito  tempo 
conservou-se  em  silencio  ;  mas  o  respeitável  exem- 
plo de  Fr.  Hilarião,  que  vivia  n'uma  horrorosa  in- 
certeza sobre  as  verdadeiras  dimensões  da  cmÍJia,  (2) 
incerteza  que  se  convertia  cm  confusão  completa  an- 
te as  copas  de  prata  d' um  jantar  opíparo,  o  haviam 
incitado  a  imitar  o  santo  monge  :  e  quando  o  ban- 
quete começou  a  approximar-se  do  seu  termo,  Gon- 
çalo llendes,  com  aquella  philosophia  e  equanimi- 
dade, que  inspira  ás  vezes  o  çumo  da  vide,  parecia 

(2)  A  êmina  é  uma  certa  medida  pela  qual  se  devia  re- 
gular a  ração  de  vintio  que  focava  diariamente  a  cada  mon- 
ge segundo  a  reirra  de  S.  Bento.  Sobre  a  capacidade  desta 
medida  haure  grandissimas  questões  que,  como  é  desuppOr, 
nunca  os  benedictinos  poderam  bem  resolrer. 


arrostar  alegremente  com  o  olhar  malévolo  da  rai- 
nha e  com  as  demonstrações  de  favor  que  dava  aos 
senhores  seus  jiarciaes,  lavores  que  antes  eram  uma 
injuria  para  áquelles  que  se  mostravam  favoráveis 
ás  pertenijões  do  infante,  que  uma  recompensa  da 
lidelidadc  a  ella.  O  licor  de  Uaccho  ,  como  diria 
um  poeta  da  Anadia  ,  fizera  ,  porem  ,  mais  do  que 
isso;  fizera  soltar  a  língua  do  Lidador,  e,  sem  sa- 
ber coujo,  elle  se  achou  involvido  n'unia  disputa  com 
Veremudo  Peres,  a  qual  chamara  a  attenção  não  só 
dos  cavalleiros  que  se  achavam  mais  próximos,  mas 
até  do  conde  de  Trava  e  de  D.  Thcreza. 

Foi  por  tal  motivo  que  ninguém  reparou  na  cti- 
trada  do  alferes-mór.  O  gesto  carregado  deste  ex- 
primia uma  tristeza  profunda  ,  c  o  seu  olhar  incer- 
to dava  indícios  de  que  lhe  revoavam  na  alma  gra- 
ves cuidados.  Quaes  estes  eram  sabe-os  já  o  leitor. 
Garcia  líermudez  antes  de  correr  as  torres ,  adar- 
ves  ,  c  barbacans  ,  e  de  ler  disposto  tudo  para  que 
nenhum  dos  cavalleiros  que  deviam  assistir  ao  l)an- 
quete  podesso  afastar-se  do  castello  e  do  burgo  , 
viera  ler  com  Dulce  no  logar  aprazado.  A  declara- 
ção que  cila  lhe  fizera  de  que  amava  Egas  Moniz 
tinham  apagado  no  seu  coração  o  ultimo  raio  de  luz. 
Esse  momento  fora  terrível ,  mas  ao  menos  o  seu 
amor  desprezado  podia  converter-se  em  ódio ,  c  a 
sua  desesperação  em  sede  de  vingança.  Entre  elle 
e  Dulce  não  estava  a  indifiercnça,  estava  outro  amor 

—  um  rival,  um  cavalleiro  da  linhagem  de  Kiha-de 
Douro  I  As  suas  paixões  convcrtiam-se  todas  n'uraa 
só  —  o  ódio;  e  por  esta  como  que  lhe  resfolgava  o 
espirito.  Era  esperança  tenebrosa  e  sanguinolenta  a 
que  lhe  sorria  ,  mas ,  em  fim  ,  era  uma  esperança  I 

Fernão  Perez  tentava  escutar  o  que  se  dizia  na 
outra  extremidade  da  mesa  ,  quando  sentiu  puxa- 
rem-lhe  pela  orla  do  brial.  Volloii-se  :  era  Trucle- 
sindo.  O  esperto  pagem  tinha  notado  quão  frequen- 
tes vezes  seu  lio  lançara  os  olhos  inquietos  para  a 
porta  :  isto  lhe  provara  que  esperava  alguém  ,  e  a 
falta  do  alferes-mór,  que  esse  alguém  era  elle.  At- 
lento então  a  ver  se  o  descobria  no  meio  dos  ser- 
gentes que  entravam  e  sabiam  da  sala  vira-o  che- 
gar. O  modo  porque  se  postara  atraz  dos  escudeiros 
confirmou-lhe  as  suspeitas.  Hesitou  algum  tempo  , 
mas  finalmente  resolveu-se  a  sahir  da  fileira  dos  pa- 
gens e  a  chcgar-se  ao  conde  : 

«Meu  senhor  e  lio  —  disse  o  rapaz  em  voz  baixa 

—  vede  Garcia  Bermudez  que  despreza  o  seu  logar 
do  cavalleiro:  —  e  accrescenlou  —  Não  o  faria  eu, 
SC  como  clle  calçasse  acicates  dourados.» 

«Por  essa  nova  que  me  deste  os  mereces,  meu  so- 
brinho—  respondeu  Fernão  Peres  no  mesmo  tora. — 
Te-los-has  mais  cedo  do  que  o  esperas,  se  bem  de- 
sempenhares o  que  te  vou  ordenar.)) 

Fitara  os  olhos  no  alferes-mór :  o  sígndl  que  este 
lhe  fez  desopprimiu  o  coração  do  conde. 

«Tructesindo  —  disse  clle  ao  pagem  —  approxima- 
te  da  rainha  o  mais  que  poderes,  edizc  a  qualquer 
dos  seus  donzcis  de  modo  que  cila  te  ouça  :  e  tein- 
p(i  de  acabar  o  festim.» 

D'ahi  a  pouco,  o  mordomo  da  cuiia  descendo  do 
estrado,  onde  estava  em  pé  a  pouca  distancia  do 
D.lbereza  ,  acercou-se  do  topo  da  mesa  dos  caval- 
leiros ,  e  parando  junto  de  Fernão  Peres  : 

«Senhor  conde  de  Portugal  e  Coimlira  —  disse  — 
nobres  ricos-bomens  destes  senhorios ,  infauções  de 
alem  Douro  e  áquem  Minho,  cavalleiros,  prestamci- 
ros  c  alcaides  ,  a  mui  excclleiíle  rainha  dos  porli:- 
guezes  vos  roga  espereis  o  romper  da  alvorada  para 
voltardes  a  vossos  castellos  e  solares.  Os  chefes  de 


108 


O   PANORAMA. 


linhagem  ,  (.3)  que  possuem  paços  ou  bairros  conta- 
dos e  honrados  no  liurgo  de  (iuimarãcs  não  recusa- 
rão guarida  por  uma  noite  aos  de  seu  sangue  :  os  ou- 
tros serão  albergados  neste  mesmo  caslello.  São  as 
ordens  que receiti  de  minha  graciosissima  senhora." 

INingucm  respondeu  ;  porque  D.  Tbercza  ergucu- 
sc  immcdiataniente,  e  fazendo  uma  levecortezia  aos 
ravnileiros  que  se  tinham  posto  cm  pé  ,  sahiu  do 
aposento. 

Este  acontíícimcnto  previniu  talvez  algum  caso 
funesto  entre  o  Lidador  e  Veremudo  Peres.  A  sua 
disputa  politica  tinha  chegado  a  tal  ponto,  que  de- 
balde havia  tentado  por-llie  termo  o  mui  pacífico  ab- 
hade  bcnedictino.  A  confusão,  porem,  que  produziu 
na  sala  tanto  a  ofierta  da  rainha  como  a  sua  repen- 
tina partida  separou  os  dois  contendores  ,  a  quem 
a  cólera  ia  brevemente  fazer  esquecer  o  logar  onde 
se  achavam. 

Os  senhores  c  cavalleiros  apenas  a  rainha  partira 
se  haviam  espalhado  pela  sala  do  banquete  e  pela 
.sala  d'arnias.  O  sino  de  recoliíer  ainda  tardaria  a 
soar  na  torre  alvarran  do  castello  ,  c  a  maior  parte 
delles  sahíu  pouco  a  pouco  do  paço  e  desappareceu 
pelas  ruas  torcidas  do  burgo  ,  onde  nas  pousadas 
dos  de  sua  ou  de  alheia  linhagem  foram  no  meio 
do  jogo  e  da  embriaguez  concluir  o  festim  subita- 
mente interrompido.  Eram  os  costumes  do  tempo. 

O  conde  de  Trava  ficara.  Quando  viu  quasi  ermo 
o  aposento  ,  dirigiu-se  para  (jarcia  Bcrmudez  ,  que 
entregue  a  distracção  meiancholica  se  encostara  A 
balaustrada  que  dividia  em  parte  o  estrado  da  rai- 
nha do  resto  da  sala.  Chegando  junto  delle  ,  o  con- 
de pondo-lhc  a  mão  sobre  o  hombro  ,  perguntou  cm 
voz  baixa  : 

n  Estão  de  feito  tomadas  todas  as  portas  do  bur- 
go? Não  poderá  sahir  cavalleiro  algum?» 

«(Nenhum  —  respondeu  o  alfercs-mór. —  Os  roídas 
e  sobreroldas  giram  nas  quadrellas  das  barbacans  : 
vinte  besteiros  de  pé,  Lançados  entre  estas  e  as  bar- 
reiras e  junto  das  pontes  levadiças  do  cárcova  ,  vi- 
giara exteriormente  :  ura  troço  de  corredores  almo- 
gavares  corre  no  campo  em  volta  do  castello  e  do 
burgo.  Ardiloso  e  valente  precisa  do  ser  o  que  ten- 
tar cvadir-se.  » 

'c  Excellente  ! — replicou  o  conde  sorrindo  com  a 
idéa  de  reter  em  logar  seguro  uma  parte  dos  seus 
inimigos. — Agora  ^ — ^proseguiu  el!e  —  dize-mc  ain- 
da: o  nobre  allcrcs-mór,  que  cm  quanto  nós  folgáva- 
mos nas  delicias  de  um  banquete  ,  velava  por  nós 
lá  fora  como  leal  cavalleiro  ,  não  viu  luzir  no  céu  , 
por  entre  as  trevas  da  noite,  a  sua  cstrella  feliz?» 

«A  minha  estrella  é  maldita  :  —  respondeu  o  ca- 
valleiro com  aspecto  carregado. —  Não  ha  para  mim 
Inzir  no  céu  a  esperança!  Felicidade?  Nãcf  c  no 
mundo  que  cu  a  hei-de  encontrar  !  » 

"Quem  sabe?  —  tornou  o  conde,  em  cujas  faces 
fiassára  fugitivo  sorriso  —  e  voUando-su  paraTructc- 
sindo  que  se  conservava  a  alguma  distancia  com  os 
olhos  no  chão,  continuou  :  Vem  cá  ,  meu  gentil  pa- 
gem—  hoje  será  uma  noite  aziaga  para  traidores  — 
porípie  será  a  da  justiça  ,  mas  de  justiça  recta  e 
imparcial:  a  recompensa  corresponderá  aos  méritos. 
Repete  o  que  de  relance  me  disseste  ao  começar  do 
banquete:  busquemos  achar  o  lio  desta  tèa  infernal.  » 

Então  o  pagem  narrou  o  que  percebera  da  con- 
versação entre  (lonçalo  Mendez  ,  o  homem  do  zora- 
me  e  o  abbade  do  mosteiro  de  D.Muma.  Asuanar- 


(3)  jV  principal  pessoa  de  (]iial(|iier  )iar(>nlplla.  E'  pro- 
vavelmente esta  a  uiiica  siguilicacào  forliigm-za  da  palavra 
c/l  f  ff. 


ração  era  incompleta  ,  mas  ouvira  o  nome  de  Egas 
Moniz,  e  que  este  viera  do  campo  do  infante.  Quem 
duvidaria  já  de  que  existisse  uma  vasta  conjuração 
dentro  do  próprio  recinto  deGuimarães.  Que  outros 
motivos  Irariam  alli  um  dos  mais  illustrcs  cavallei- 
ros da  linhagem  do  implacável  ,  e  manhoso  aio  de 
Affonso  Henriques?  Estas  rellexões  occorriam  de 
tropel  ao  conde  escutando  a  narração  do  seu  pagem. 

Quando  este  chegou  a  proferir  o  nome  de  Egas  , 
um  grilo  fugiu  dos  lábios  do  alferes-mór.  Fernão 
Peres  alçando  os  olhos  encontrou  os  delle,  que  pa- 
reciam faiscar.  Era  a  cólera  ,  o  ciúme  ,  a  sede  da 
vingança?  Era  talvez  tudo.  O  conde  interpretou  es- 
te grito  e  este  olhar  pelos  próprios  pensamentos. 

«Tens  rasão  ,  Garcia  —  disse  elle.  —  Indignas-le 
de  vèr  que  homens  cheios  debeneficios  e  honras  pe- 
la rainha  de  I*ortugal  ,  venham  nos  seus  paços  del- 
ia urdir  o  trama  de  seus  pérfidos  desígnios.  Mas  es- 
tão em  meu  poder,  e  nada  há  hi  que  os  salve.  Pos- 
sa eu  encontrar  ainda  em  Guimarães  o  audaz  caval- 
leiro que  ousou  entrar  na  caverna  do  tigre  I — O  al- 
goz c  o  cepo  sellarão  com  sangue  a  fiel  amisade  dos 
infames.  Egas,  não  te  esconderá  teu  disfarce!  — 
Gonçalo  Sícndez  ,  não  te  valerá  nem  a  espada  nem 
oorgulho  dcrico-homem  ! — Monge  hypocrita,  não  te 
salvará  tua  mortalha  de  homem  vivo  :  Uoma  o  que 
pede  é  ouro,  quando  defende  o  seu  rebanho  de  gar- 
nachas  e  cogullas  ,  e  a  tua  cabeça  não  a  cedera  eu 
agora  a  troco  de  mil  áureos  mouriscos.» 

Assim  a  profunda  indignação,  que  o  conde  acre- 
ditara ler  no  gesto  do  alferes-mór,  sabia  corao  uma 
torrente  do  seu  próprio  coração. 

Depois  reflectiu  um  momento  —  e  reassumiu  ou- 
tra vez  o  seu  aspecto  habitual  de  serenidade.  Não 
fora  para  vibrar  vans  palavras  de  ameaças  que  se 
approxiniára  de  Garcia  Bcrmudez.  Apoz  breve  pau- 
sa p;oseguiu  gravemente  ,  c  em  voz  assaz  alta  para 
ser  ouvido  no  outroextremo,  onde  ainda  restava  ura 
pequeno  grupo  de  cavalleiros  : 

«Senhor  alferes-mór,  esperai  aqui  as  ordens  da 
nossa  mui  excellente  rainha,  que  tem  de  communi- 
car-vos  importantes  negócios.  Eu  voltarei  a  chamar- 
vos  ,  quando  assim  lhe  approuver.  » 

Proferidas  estas  palavras  sahiu  da  sala  ,  o  enca- 
minhou-sc  para  os  aposentos  interiores  pela  mesma 
porta  por  onde  a  rainha  sahíra. 

Apenas  Fernão  Peres  desappareceu  ,  Garcia  Ber- 
mudez  travou  do  braço  de  Truclcsindo  ,  c  era  tom 
solemnc  disse-lhe  : 

«Pela  rainha  fé  juro  que  o  pagem  Tructesindo 
ámaidiaã  cingirá  sobre  o  brial  a  espada  de  cavallei- 
ro, se  cumprir  o  que  lhe  vou  dizer,  e  se  jurar  tam- 
bém guardar  sobre  isso  perpetuo  silencio. 

«Juro  ,  juro! — interrompeu  o  donzel.  Dizei  de- 
pressa o  que  pcrtendeis.  Seja  o  que  fòr  ,  e  venham 
as  esporas  douradas.» 

Era  a  idéa  fixa  do  diabólico  ])agcm. 

Garcia  liermudcz  arrancou  violentamente  uma  bol- 
ça de  couro  dourado  que,  segundo  a  moda  do  tem- 
po ,  lhe  |)endia  do  cinto  :  abriu-a  ;  tirou  de  dentro 
tnn  pequeno  pergaminho  ,  e  entregando  ao  donzel 
uma  e  outra  cousa  continuou  : 

«Aai,  e  busca  encontrar  o  incógnito  que  hontcm 
fallava  a  sós  com  (ionçalo  Mendez  c  Fr.  Hiiarião. 
Affirmas  que  lhe  viste  o  rosto  :  o  seu  nome  já  o  sa- 
bes. Faze  vigiar  o  mosteiro  e  a  pousada  do  senhor 
da  Maia  :  nãp  poupes  nem  diligencias  nem  almora- 
bitinos,  que  essa  bolça  vai  bem  recheada.  Sc  o  des- 
cobrires entrega-lhe  este  pergaminho  :  que  o  mos- 
tre aos  vigias  e  roídas ,  o  cllcs  o  deixarão  -sahir  da 


o  PAIVORAMA. 


109 


cerca  do  burgo,  o  que  sem  isso  lhe  fora  impossível. 
Em  recompensa  disto  ,  dizc-lhe  que  Garcia  Uermu- 
dez  exige  que  ámanhaã  ,  duas  lioras  antes  do  sol 
posto  ,  esteja  com  suas  armas  e  a  cavallo  no  souto 
que  se  dilata  alem  do  vau  do  Mádroa  ;  e  que  se  não 
o  fizer  é  desleal  e  covarde,  u 

i<  .\  cousa  é  dilíioultosa  :  —  replicou  o  malicioso 
doiizel.  —  E  se  hoje  não  o  descobrir? 

«Demónio! — respondeu  o  alferes-mór  batendo  o 
pé  no  chão  de  impaciência. —  Trocura-o  toda  a  noi- 
te, toda  a  raanhaã  ,  todo  o  dia  '.  K  preciso  que  o 
encontres,  se  queres  a  nobre  dignidade  do  cavallci- 
ro.  Entendes?  Sem  isso,  em  quanto  Garcia  Bermu- 
dez  fòr  alferes-múr,  couta  que  não  a  obterás.» 

Não  havia  remédio  :  Tructezindo  agarrou  na  bol- 
sa e  no  pergaminlio.  Depois  atlravessou  vagarosa- 
mente a  sala,  levantando  a  touca  pelo  lado  dctraz 
com  o  Índex  c  coçando  o  toutiço.  Elle  tinha  rasão  : 
a  cmpreza  era  dillicultosa. 

Garcia  Bermudez  cahiu  então  no  seu  habitual  scis- 
mar.  «Ao  menos,  —  pensava  o  cavalleiro  —  nunca 
cila  dirá  que  a  minha  vingança  foi  vil  e  desleal.» 

D'ahi  a  pouco  uma  voz  que  soava  da  porta  dos 
aposentos  interiores  veio  desperla-lo  dos  seus  deva- 
neios. Era  o  conde  que  com  aspecto  risonho  dizia  : 

«A  mui  excellenlc  rainha  ordena  venha  immedia- 
lamente  perante  cila  o  nobre  alferes  da  hoste  dePor- 

'^     ■  (Conthniar-sc-ha). 

(A.  HcrculamiJ. 


D.  FBANCISCA  FOSSOZ.O. 


*'  Obra  de  v^PÇO  laria  a Socieda- 
de IVopaijadora  dos  Conhecimentos  utcis 
se  assim  como  já  bo  seu  Panorama  pu- 
blicou o  retiato  de  M.ine  de  Stael,  para 
ahi  trasladasse  i"ualmeiite  o  da  nossa  por- 
ta-;ueza  sua  traauctora.  " 

O  .S>.  ^.  F.  d,:  Castilho,  em  a  Xu- 
Ucia  Uttcrítria  ,  qite  pref^cde  n  rrr- 
iâo  lias  Cfjiirfriaqôes  subre  a  Plurii~ 
Hdade  dos  Mtmdos ,  a  pag,  CXl'I, 


O  CONVITE  .  que  pela  imprensa  nos  fez  tão  distincto 
litterato,  importava  uma  obrigação,  que  tinha  de  mais 
a  mais  a  circumstancia  de  ser  de  mui  agradável  de- 
sempenho. Sollicitos  procurámos  um  retrato  da  fal- 
lecida  poetisa  ,  D.  Francisca  Possollo  ,  diligencian- 
do que    a  etTigie  fosse  inteiramente  parecida  ;    e 


eis-ahi  que  lemos  a  satisfação  de  appresentar  a  có- 
pia ,  Ião  perfeita  quanto  é  possível  ao  buril  cxecu- 
ta-Ia  ,  gravando  em  madeira. 

Se  não  fossemos  precedidos  pelo  Sr.  Castilho  ,  a 
singela  hiographia  que  tecêssemos  teria  ao  menos  o 
sabor  da  novidade  ,  e  a  valia  de  uma  recordação  c 
homenagem  litteraría  ;  mas  como  é  possivel,  depois 
de  escriptor  tão  culto  e  ameno  tratar  o  mesmo  as- 
sumpto?. .  A  sua  lembrauça  nos  recordou  uma  di- 
vida ,  que  se  por  um  lado,  apesar  de  dilliculdades, 
podia  solver-se  ,  por  outro  nos  collocava  em  grande 
apuro.  Bem  quizeramos  em  seguida  ao  retrato  es- 
tampar a  noticia  litteraria  ,  de  que  extrahimos  a 
epigraphe  ,  mas  a  impresíão  cm  livro  separado,  e 
a  nimia  extensão  no-lo  vedam.  Apunlaremos  pois 
aos  nossos  leitores  o  livro  da  pluralidade  dos  miin- 
ftoí  (1)  vertido  em  vulgar  ;  e  para  contentar  os  pri- 
meiros impulsos  da  curiosidade  nos  cingiremos  a 
succinta  narração ,  necessária  simplesmente  para 
que  conheçam  a  auctora  os  muitos  que  se  tem  re- 
creado com  a  leitura  de  seus  escriplos. 

D.  Francisca  de  Paula  Possolo  da  Costa  nasceu 
em  Lisboa  aos  4  de  outubro  de  íT83  de  farailia 
pertencente  á  feliz  mediania  social  ,  mas  dislincla 
por  suas  qualidades  moraes.  Foram  seus  pais  Ni- 
colau Possolo  e  D.  Maria  do  Carmo  Corrêa  de  Ma- 
galhães. De  ânuos  tenros  manifestou  a  sua  inclina- 
ção poética  ;  viçosa  lhe  llorecia  a  imaginação  ao  sa- 
bir  da  infância,  e  comludo  apenas  Cervantes,  Ca- 
mões .  e  poucos  mais ,  eram  os  auctores  ,  que  co- 
nhecia :  alem  das  diversões  caseiras,  a  musica  e  o 
estudo  da  lingua  franceza  foram  os  seus  entreteni- 
mentos.—  A  serie  de  annos.  passada' no  lar  domes- 
tico ,  é  de  ordinário  infértil  de  acontecimentos  me- 
morandos ;  e  se  do  varão  ,  a  quem  abençoada  Pro- 
videncia concedeu  tal  sorte  ,  nada  ha  que  se  conte 
á  posteridade  ,  quaesquer  que  sejam  as  suas  virtu- 
des ,  e  talentos,  que  haverá  que  dizer  de  uma  de- 
licada senhora  ,  educada  no  regaço  materno,  pos- 
suidora dos  dotes  qualificadores  do  seu  sexo,  e  cre- 
dores de  respeito  e  estimação  universal  ,  n.as  que 
alem  desses  dotes  só  lera  para  titulo  de  gloria  os 
escriptos  que  a  cultura  do  espirito  e  a  vivacidade 
do  engenho  produziram  em  suas  huras  dedescauço, 
ou  de  melancholia? 

Um  casamento,  segundo  a  própria  inclinação,  fe- 
liz na  constância  delle  ,  e  n  que  a  morte  do  cônju- 
ge poz  funesto  remate,  é  o  maior  incidente  da  car- 
reira vital  da  nossa  Francilia  ,  como  a  Sur.^  Posso- 
lo,  ao  estilo  arcadico  ,  se  appellidava  em  seus  ver- 
sos (2).  A  10  de  abril  de  1S13  ligou-a  o  santo  vin- 
culo do  matrimonio  a  João  Baptista  Angelo  da  Cos- 
ta ,  benemérito  oiricial  de  marinha  ;  por  dezeseis 
annos  durou  o  acertado  consorcio,  no  exercício  de 
amizade  c  ternura  reciprocas  .  dos  devores  casei- 
ros ,  e  de  actos  de  particular  beneficcncia,  em  quo 
os  dois  esposos  foram  ,  quanto  podiam  sè-lo  ,  estre- 
mados ;  até  que  a  morte  delle  os  scparnu  pela,  pri- 
meira vez,  como  se  lè  no  epitaphio  do  mausoléu  ile 
mármore,  que  encerra  os  despojos  mortaes  d'am- 
bos,  erecto  no  cemitério occidenta!  de  Lisboa.  Com- 
prehendeu  o  mesmo  tumulo  os  que  tão  unidos  ha- 
viam vivido  [removidos  seus  corpos  dos  templos  em 
que  se  achavam  depositados]   por  disposição  testa- 

(1)  jV  liem  conbeciíla  nlira  i!e  Fontenelle.  Saliiii  essa 
Iraciíioçrio  em  Lisboa  em  lí!41.  iiin  vol.  lie  o."  precediJu 
(lo  discurso  Ijiocrapliico  que  temos  cilaiiii. 

(2)  PubliCDU  um  vol.  inlilulaJo  FrnnciUa,  PasUira  do 
Tiji).  eque  dislrlbuiu  gratuitameale  eulre  as  pcssuas  de  sua 
intimidade. 


110 


o  PANORAMA. 


menlaria  da  Snr.^  Possolo  ,  que  terminou  sua  viu- 
vez, sempre  magoada  e  saudosa,  aos  19  de  junho 
de  1838. 

Para  ofTerecer-mos  o  caracter  distincto  desta  ama- 
iel  escriptòra  ,  contemporânea  nossa  ,  reproduzire- 
mos os  delineamentos  de  hábil  pintor ,  com  quem 
manteve  ella  constantes  relações  littcrarias  ,  e  que 
muitos  annos  havia  fora  admiltido  á  sua  estima  e 
sincera  amisade  (3). 

«Foram  suavidade  e  modéstia  as  principaes  fei- 
«ções  de  sua  alma  ;  partes  que  rara  vez  se  casam 
«com  aquelToutras  de  ingenho  vivo  e  promplo ,  c 
«de  um  saber  maior  que  o  vulgar  :  nem  se  arroga- 
<<  va  mais  do  que  lhe  competia  em  matéria  de  lou- 
«  Torcs,  nem  ainda  tudo  o  que  lhe  competia  ,  o  ac- 
«iceitava:  perante  homens,  se  contentava  de  pare- 
<icer  mulher;  entre  mulheres,  forcejava  por  se  lhes 
«igualar,  encolhendo,  e  dissimulando  cora  muita 
«industria  a  sua  própria  altura.  A  todos  ouvia  com 
'caltenção  e  docilidade,  como  que  de  todos  appren- 
«dcra;  comsigo  discutia,  e  amadurecia  os  seus  con- 
«ceitos;  em  tempo  e  logar  próprio,  c  sendo  reque- 
«rida,  expunha-os  com  simplicidade;  deffendia-os 
«sem  pertinácia;  sem  cólera  os  deixava  refutar; 
«refutados,  os  depunha,  mostrando  no  renuncia-los, 
«e  confessar-se  vencida,  um  género  novo  de  victo- 
"  ria  ,  mais  engraçado,  e  honroso ,  que  o  mesmo 
«triumpho.  Havia  a  poesia  pelo  melhor  de  todos  os 
«males,  pela  mais  efficaz  distracção  de  trabalhos, 
«e  consolação  de  amarguras,  e  pela  mais  innocenle 
•1  e  fructifera  das  ociosidades :  infância  de  adultos 
«se  lhe  pude  chamar,  e  com  rasão  ;  que,  se  ha  se- 
«  raphira  de  fogo,  que  possa  deCTender  a  invasores 
«e  profanações  o  paraiso  da  alma,  esse  é  a  poesia, 
«quando  em  paixão  se  chega  a  converter.  Do  afTe- 
«cto,  que  no  corarão  lhe  abundava,  repartia  com 
"todos,  e  com  tudo:  debuxava  em  si  as  penas  alheias 
■1  para  lhes  acudir  ;  imaginava  depois  as  alegrias , 
«dos  que  havia  consolado,  para  por  ellas  ,  e  delias 
«compor  as  suas;  de  míngua  de  fantasia  nasce  o 
«mais  das  vezes  a  falta  de  caridade. 

«De  virtudes,  nenhuma  se  pôde  particularisar , 
«em  que  excedesse,  a  não  ser  esta,  de  uma  uni- 
« versai  e  perenne  benevolência;  todas  as  outras , 
«as  tinha  com  igualdade,  inteiras,  e  sem  quebra. 
«Baldado  seria  o  procurar  pelo  muito  que  escreveu 
«o  minimo  vestígio,  quer  de  orgulho,  quer  de  ódio; 
«nem  menos  desse  ódio,  que  sendo  de  todos  o  mais 
«  vil,  passa  uo  mundo  por  galantaria,  e  como  tal  se 
«usa,  oqual  se  disfarça  com  a  máscara  d'esperteza 
«gracejadora  ou  de  ingenho  faceto  para  empolgar,  e 
«atassalhar,  como  por  festa,  aos  que  aborrece;  ora 
«aos  maus,  porque  não  são  bons,  ora  aos  bons,  por- 
«quc  não  são  melhores,  ora  aos  óptimos,  porque 
o  não  são  péssimos.  .\uni:a  a  sua  alva  penna  cstillou 
«fél  de  satjrn  ;  e  com  tudo  em  uma  epistola  a  uma 
«sua  amiga  fdcveu  de  ser  desafogo,  e  foi  único]  se 
«vè,  que  a  inveja  não  a  poupou,  e  que.  desde  que 
«entrou  ao  poético  estádio,  mais  de  uma  vez  lhe 
«vieram  quebrar  os  espíritos  ,  c  desconsola-la  ,  os 
«motejos,  e  grosseiros  apodos  daquellcs  que  ,  ou 
■■não  crèm  no  talento,  ou  pelo  menos  não  dão  ás 
«mulheres  licença,  para  que  o  tenham  ;  ou  teudo-o, 
«para  o  mostrarem.» 

A  Snr.'  D.  Francisca  Possolo  deixou  impressas  as 
seguintes  obras  ,  em  testemunho  de  sua  applicação 
<■  talentos  :  —  A  traducção  annotada  da  cxcellcnte 
obra  de  M.°"  de  Stael  ,  Corinna  ou  a  líalia  ;    outra 

(3)  O  Sr.  Caslilho  ,  <le  quem  tomámos  a  passagem  que 
Iraiiscrcvenios.  ViO.  cilada  Xolic.  pag.  109  a  llS. 


da  Carta  do  Conde  de  las  Casas  a  Luciano  fíuona- 
parte ;  uma  novella  em  dois  tomos  que  tem  o  mé- 
rito de  ser  composição  original ,  intitulada  Henri- 
queta d'Orlcans;  e  a  collecção  de  versos  que  já 
mencionámos.  Sahiu  posthuma  a  versão  do  livro  de 
Fontenelle  :  e  ficaram  inéditas  duas  comedias,  outra 
novella  ,  e  numerosas  poesias. —  Os  seus  versos  são 
harmoniosos  ,  no  gosto  a  que  chamam  clássico  ,  e 
pela  maior  parte  respiram  branda  melancholia  ;  as 
suas  traducções  se  não  brilham  pelo  vigor  e  cópia 
da  dicção  ,  são  claras ,  fluentes  e  desempeçadas  de 
crassos  e  tediosos  gallicismos.  Bem  mereceu  a  nos- 
sa escriptòra  as  Dores ,  que  em  tributo  á  sua  me- 
moria ,  a  lilteratura ,  que  cultivou  c  amou  ,  e  a 
amisade  que  soube  prezar  e  manter,  saudosas  lhe 
despargiram  sobre  a  campa. 


Roteiro  da  viagem  ,  qce  D.  Joio  de  Castro  fez 

A   l'BI3IEIRA  VEZ  ,    QCE   FOI  Á  InWA  , 
NO   iN>0  DE    1538. 

Dos  RoTEiBos,  escriptos  por  D.  João  de  Castro,  es- 
caca e  incompleta  noticia  nos  deixou  seu  historia- 
dor. Jacinto  Freire,  á  qual  nada,  ou  quasi  nada 
accrescentou  o  bibliographo  Barbosa.  As  indagações 
modernas  tecm  esclarecido  mais  este  assumpto.  As- 
sim que ,  são  três  os  Roteiros  ,  que  hoje  se  conhe- 
cem indubitavelmente  como  obra  daquellc  illustrc 
capitão  ,  e  não  menos  insigne  sábio ,  e  escriptor. — 
O  de  Góa  a  Suez ,  por  outro  nome  o  do  Mar-ròxo 
[viagem  de  lo'tO  e  1541],  cujo  original  foi  desco- 
berto na  bibliotheca  do  museu  britannico  de  Londres 
em  1828  ,  e  publicado  era  Paris  no  anno  de  1833 
pelo  Sr.  doutor  Nunes  de  Carvalho.  O  detiòa  a  Diu 
[viagem  de  1538  e  1539]  ,  cuja  publicação  está  já 
annanciada  pelos  Snrs.  Kopkc  e  Pinto  Roby.  O  ori- 
ginal deste  Roteiro  ,  possuído  por  pessoa  particular 
na  província  do  Minho,  passou  recentemente  ao  po- 
der do  Sr.  Kcpke.  Sabemos  que  pertencera  no  sé- 
culo passado  ao  arcebispo  Cenáculo  ,  sendo  ainda 
religioso  da  Terceira  Ordem  da  Penitencia.  J\ o  Diá- 
rio autographo  deste  prelado  ,  que  se  conserva  na 
bibliotheca  pública  eborense  ,  se  lè  ,  com  referen- 
cia ao  mez  de  janeiro  de  1767  :  —  «Este  mez  de 
«janeiro  foi  fecundo  em  livros  de  estimação,  por- 
«  que  nelle  alcancei  o  manuscripto  original  de  D.  João 
(I  de  Castro  ,  Roteiro  de  Goa  a  Diu  ,  ^'c  » —  E  mais 
adiante,  em  data  de  julho  do  mesmo  anno:  —  «No 
«princípio  deste  mez  de  julho  começaram  a  vir  en- 

«tre  os  livros  communs  alguns  especiaes ,  e 

«por  este  modo,  se  o  segundo  semestre  deste  anno 
«fòr  tão  fecundo  como  o  primeiro,  ajuntarei  muito 
«bons  cartapacios  :  pois  desde  2  de  janeiro  de  ()7, 
«entre  os  communs,  me  vieram  á  mão,  de  livros  par- 
«tículares,  os  seguintes:  Roteiro  de  D.João  deCas- 
«tro,  da  sua  lettra,  foi.  ras.  &.C.  — »  De  como  este 
códice  sahisse  da  mão  de  tão  apaixonado  collector 
destas  raridades,  não  achámos  ainda  memoria  entre 
os  seus  papeis.  —  Ultimamente  o  de  Lisboa  a  Goa 
[em  1538],  qUe  não  deixará  de  sahir  brevemente 
a  publico;  e  cujo  original,  porem,  não  foi  até  ago- 
ra achado.  O  mais  antigo  exemplar  ,  que  dcllc  se 
conhece  ,  é  a,  cópia  ,  que  pertenceu  ao  collogío  dos 
jesuítas  d'Evora.  Esta  cópia  traz  em  dois  logares  a 
declaração  de  ter  sido  doada  áquclle  cnllegio  por 
elrei  D.  Henrique,  dízendo-se  n'uin  dclles:=Foi 
dom  d'elrci  D.Henrique,  de  gloriosa  memoria,  seu 
fundador  =  ,  c  no  outro  :  =  d'elrcí  D.  Henrique, 
dado  ao  collegio  do  Espirito-Santo  d' Évora  ,   sendo 


o  PANORA3IA. 


111 


ainda  cardeal.  =  A  leltra  de  uma  o  outra  declara- 
ção parece  ser  já  do  século  de  seiscentos.  Foi  tam- 
bém possuído  depois  pelo  arrel)ispo  Cenáculo ,  que 
o  deixou  na  sua  rica  liibliollieca  eborense  ,  aonde 
lioje  se  conserva.  Assim  pertenceu  j.í  este  livro  a 
dois  respeitáveis  prelados  da  igreja  eborense,  e  por 
cada  um  delles  foi  doado  como  estimável  prenda  ao 
estabelecimento  lilterario  .  que  fundou  na  sua  rae- 
Iropoie.  Por  estes  respeitos ,  e  por  ser  obra  desco- 
nhecida do  publico,  merece  aqui  memoria  mais  ex- 
tensa. 

O  tiíulo  da  obra  ó  o  que  deixámos  transcriplo  no 
alto  deste  artigo.  Tem  o  códice  103  folhas  de  papel 
ordinário ;  é  escripto  com  boa  lettra  ,  que  deve  ser 
um  pouco  posterior  ao  meado  do  século  de  quinhen- 
tos ;  opinião  esta  ,  a  que  somos  levados  por  força 
das  declarações  da  doação .  acima  mencionadas ; 
pois  SC  houvéramos  de  decidir  a  idade  da  Ictlra  pe- 
la sua  só  inspecção  ,  não  duvidáramos  affirmar  que 
era  escripta  ,  entrado  já  o  século  de  seiscentos. — 
Andaria  aqui  alguma  ])ia  fraude  dos  filhos  de  Santo 
Ignacio,  substituindo  esteapographo  com  seus  acha- 
ques, que  não  tem  poucos,  ao  verdadeiro,  e  talvez 
autographo  ,  doado  pelo  cardeal?  Não  descobrimos 
rasão  para  tanto,  nem  poderá  porventura  ser  a  mes- 
ma que  se  deu  era  Alcobaça  na  supposta  Biblia  de 
elrci  D.  Aflbnso.  —  Fique  esta  questão  por  decidir 
por  mais  práticos  paleographos ,  e  eruditos  diplo- 
máticos, que  nos  n.io  parece  de  todo  inútil,  ao  me- 
nos em  quanto  não  appareeer  o  original ,  e  o  nosso 
códice  gozar  das  honras  de  decano.  É  ornado  cora 
algumas  carias  ,  que  representam  as  umo^ícaí  ,  ou 
conhecenras  das  terras.  Depois  de  conhecida  a  obra 
lhe  accrcscentou  o  auclor  em  notas  marginaes  algu- 
mas das  observações ,  que  fez  na  segunda  vez  que 
foi  á  Índia,  no  anno  de  1545.  Tem  um  Prologo  [que 
melhor  disséramos  Dedicatória]  dirigido  a  elrei  D. 
João  3.°,  mui  judicioso  e  erudito  ,  como  obra  de 
tal  auctor.  É  o  seguinte^-.]. 

Prologo. — Por  me  parecer  que  Vossa  Alteza  re- 
ceberia era  serviço  dar-lhe  eu  couta  miudamente 
da  navegação ,  que  fez  esta  sua  grande  e  poderosa 
armada,  me  quiz  dispor  a  escrever  estes  commenta- 
rios ,  ou  para  fallar  mais  próprio,  este  Roteiro,  o 
qual .  posto  que  o  estylo  delle  seja  bárbaro  e  gros- 
seiro ,  c  a  matéria  ,  de  que  trata  ,  mais  que  todas 
estéril  e  sècca,  dado  que  proveitosa  ,  posso  aílirraar 
a  Vossa  Alteza  que  me  custou  grande  trabalho ,  e 
que  o  tempo  ,  que  nelle  gastei .  não  foi  outro ,  sal- 
vo furtado  daqiielle  que  é  obrigatório  ao  somno  o 
repouso  da  carne  :  porque  d'outra  maneira  não  ou- 
sara eu  de  consumir  nisto,  nem  cm  outra  cousa  al- 
guma ,  o  tempo  deste  cargo  em  capitania  ,  de  que 
me  Vossa  Alteza  fez  raercè  :  mas  sem  embargo  que 
o  interesse  desta  escriptura  foi  alumiar  esta  carrei- 
ra aos  simplices,  e  dar-lhe  aviso  c  regras  para  que 
mais  seguramente  a  possam  passar. 

Verdadeiramente  ,  senhor  ,  que  muitas  vezes  me 
envergonho  comigo  quando  cuido  na  grandeza  de 
seu  estado,  e  no  baixo  serviço  que  lhe  appresenio 
com  esta  obra  ,  a  qual  não  digo  eu  ser  capaz  de  se 
pôr  em  suas  altas  e  reaes  mãos,  mas  em  outras  al- 
gumas de  marinheiros  rústicos  ,  como  não  somente 
carece,  e  c  falta  de  feitos  heróicos,  c  é  falta  de  ma- 
iorias nobres  cillustres,  mas  ainda  de  vocábulos 
conhecidos,  e  termos  usados  enlre  cortesãos,  c  gen- 
te polida,  porque  jamais  se  faz  festa  d'oulra  cousa, 
que  do  nomes  ,  de  ventos ,  e  de  fortunas  e  mudan- 
ças  do  mar ,   de  alterações  do  ar,   de  apparencias 

(•)     Nie  coaservânioí  a  orlhogra](hia  antiga. 


do  céu ,  de  caminhos  e  rodeios  que  faz  a  uáu  ,  de 
aves  marinhas  e  pouco  nobres  ;  c  isto  ainda  com  or- 
dem assaz  comprida  c  embaraçada.  E  pois  os  que 
escreveram  da  imagem  do  mundo,  e  historia  de  cos- 
niographia,  tratando  de  gentes,  terras,  mares,  mon- 
tes, rios,  promontórios  e  cidades,  espantados  de  se 
verem  entrar  em  matéria  tão  árdua  e  dilticultosa  . 
chamam  muitas  vezes  as  musas  cm  seu  favor,  e  não 
acabam  de  se  desculpar  ,  dizendo  não  haver  nesta 
matéria  eloquência  nem  graça  alguma  :  com  quanta 
mais  rasão  posso  eu  tomar  todas  estas  salvas,  maior- 
mentc  sendo  notório  que  não  escrevo  este  livro  pa- 
ra se  lèr  ás  damas  e  a  galantes ,  e  se  aproveitarem 
delle  nas  cortes  e  paços  reaes;  raas  os  de  Leça  e 
Matlosinhos. 

Ora,  considerando  eu  como  Vossa  .4lteza  seja  Ião 
grande,  que  nenhum  serviço  se  lhe  pode  fazer,  que 
seja  proporcionado  a  sua  grandeza,  tomei  atrevimen- 
to para  lhe  queimar  este  alecrim  edefumadouros  de 
villa  ,  por  ser  bem  certo  que  os  não  receberá  era 
menos  valia  c  preço  que  o  muito  estimado  incenso 
de  Arábia  :  e  também  não  sei  como  se  me  foi  me- 
tendo em  cabeça  que  Vossa  .\líeza  no  tempo  passa- 
do favoreceu  algumas  obras  pequenas,  que  sahirara 
de  minha  mão  ,  |)elo  qual  não  somente  se  contenta- 
ram os  homens  de  lhe  comerem  a  carne  ,  e  rocrera 
os  ossos  ,  mas  ainda  de  lhe  tirarem  os  tutanos. 

E  por  tanto  ser-me-ha  necessário  ,  ó  bemaventu- 
rado  rei ,  que  ,  ou  Vossa  Alteza  não  queira  ouvir 
juizos  contra  osta  obra  de  pessoas,  que  sem  nenhum 
respeito  reprehendem  o  que  não  entendem  .  e  con- 
dcmnam  o  que  cm  verdade  não  sabem  ,  o  que  sem 
nenhuma  duvida  em  presença  das  partes  não  fariam: 
ou  me  dè  licença  para  lha  dedicar;  porque  então 
quem  haverá  no  mimdo  tão  ousado,  que  sabendo  ser 
Vossa  .\lteza  o  defensor,  não  fique  espantado.  Eque 
freio  pude  haver,  se  este  não.  contra  os  maldizen- 
tes e  roedores  ,  os  quaes  haverão  por  premio  incor- 
rerem na  infâmia  daquelles  que  combatem  com  os 
mortos,  com  tanto  que  com  seus  sophismas  e  malí- 
cias possam  aniquilar  meu  trabalho  e  escurecer  mi- 
nha empreza.  Porque  como  neste  Roteiro  vão  escri- 
plas  muitas  cousas ,  que  parecem  estranhas  e  im- 
possíveis, as  quaes  escrevi  medrosamente,  não  por- 
que delias  não  fosse  mui  cerlílicado  ,  mas  por  re- 
ceio que  tive  de  sahír  da  opinião  commum  ,  vendo 
de  uma  parte  que  escrevendo-as  poria  espanto  nos 
que  as  lessem,  e  d'oulra  (jue  dissimulando-as  ca- 
hiria  eni  culpa  e  negligencia  :  terão  ousadia  para 
me  responderem,  emais  sabendo  quão  mal  se  guar- 
da justiça  aos  absenfes. 

Já  me  contentaria  de  ser  julgado  por  juizes  sus- 
peitos ,  com  tanto  que  fossem  ofiiciaes  desta  arte  e 
ollicío  domar;  mas  receio  que  aconteça  nisto  o  que 
ordinariamente  vemos  por  experiência,  que  na  scien- 
cia  de  que  os  homens  menos  sabem  ,  e  na  arte  em 
que  são  menos  exercitados,  naquellas  querem  pra- 
ticar mais  soltos,  e  mostrarem  que  são  sullicientcs 
mestres. 

Apelles  não  somente  solTrcu  que  umçapateiro  li;e 
taxasse  um  não  sei  que  .  que  faltava  a  um  çapalo  . 
que  logo  emendou;  raas  tomando  o  rapateiro  a  Mr 
a  pintura  .  soberbo  do  juízo  que  tinha  feito  ,  que- 
rendo re[irelicnder  falta  na  [lerna  da  imagem,  sahiu 
Apelles  a  elle,  dizendo-lhe  ,  não  eon>em  a  çapntoi- 
ro  julgar  de  outra  cousa  que  não  são  çapatos.  Este 
mesmo  .\pelk'S  teve  ousadia  de  dizer  ao  grande  .\lr- 
xandre  .  que  vinha  muitas  vezes  folgar  á  sua  oDici- 
na  ,  onde  trabalhava,  [querendo  aporfiar  com  elle 
em  cousas  da  pintura!  qxic  se  calasse ,  que  os  me- 


112 


O  PANORAMA. 


fl 


niiios  que  estavam  moendo  as  tintas  se  ririam  delle. 
E  por(|iie  neste  tempo  mais  azinha  se  aeiíaruo  mui- 
tos Apelies  ,  no  primor  c  artificio  da  arte  ,  que  um 
só  na  liberdade  e  franqueza  de  fallar  e  responder: 
que  devo  cu  fazer ,  senão  pedir  soccorro  a  Vossa 
Alteza  ,  e  Vossa  Alteza  que  menos  pôde  fazer  que 
tocar-me  com  uma  sombra  c  mostra  de  seu  favor. 

Quem  ha  no  mundo,  que  possa  fazer  uma  sobeja 
benevolência,  sencão  elle?  Pedi-la  cu  é  muito,  mas 
dá-la  Vossa  Alteza  é  pouco,  mormente  Iodas  as  vc- 
7es  que  lhe  lembrar  como  tem  conquistado  as  duas 
Mauritanias  ;  como  os  seus  estandartes  despregados, 
c  por  caminhos  públicos,  se  foram  assentar  no  cu- 
me do  monte  atlântico;  como  os  ardentes  mares  das 
duas  Ethiopias  são  lavrados  e  subjugados  das  suas 
armadas  ;  como  as  praias  do  oriente  estão  submetli- 
das  e  sujeitas  a  seu  império  ;  como  os  moradores  dos 
famosos  rios,  Euphratcs,  Indo  e  Ganges  lhe  são  obe- 
dientes o  tributários  ;  como  Taprobana  ,  que  os  an- 
tigos criam  ser  outro  mundo  novo,  reconheifu  seu 
alto  nome,  e  lhe  paga  páreas.  Quem  nesta  niachina 
e  redondeza  ,  onde  o  immenso  Deus  deu  o  império 
aos  mortaes,  gozou  de  tão  gloriosos  triumphos?  Lo- 
go rasão  será  que  derribado  a  seus  pés  me  atreva  a 
lhe  otTcrecer  esta  obra  ,  da  maneira  que  ura  lavra- 
dor appresentou  ao  grande  rei  Artaxcrxes  um  vaso 
de  agua  clara  ,  por  não  ter  outra  cousa  cora  que  o 
servir  e  lhe  mostrar  gazalhado.  Porque  na  verdade 
parece  cousa  formosa  e  justa  ,  e  somente  digna  de 
grandes  e  poderosos  príncipes,  que  aos  dons  c  ser- 
viços, que  lhe  fazem,  seja  posto  o  preço  segundo  a 
possibilidade  e  animo  daquelle  que  os  apprcscnta  , 
e  não  pela  valia  e  reputarão  cm  que  são  tidos  do 
mundo.  (Conduir-sc-ha.) 

J.U.  daC.  Rkura. 


SaOlTOlCIA  ECI^!:SS^:IC!A• 
Pr.EDiCADos  d'im  Friteiiio. 

De  lodos  os  methodos  de  conservação  das  frutas  , 
o  mais  provado  e  o  mais  simples  consiste  em  colo- 
ca-las n'um  quarto  ,  ou  sótão  destinado  a  este  lim  , 
com  as  seguintes  condições  :  —  que  o  quarto  ou  só- 
tão seja  situado,  se  poder  ser,  voltado  ao  norte, 
guarnecido  em  volta  com  prateleiras  ou  estantes  de 
madeira,  dispostas  com  a  separação  conveniente  de 
fi  a  S  polegadas  ,  c  defendidas  na  borda  exterior 
com  gradiídias  ou  defcza  de  taboas  de  ferro  quanto 
baste  para  defender  da  queda  as  frutas  ahi  depos- 
tas. Convém  que  o  quarto  seja  vedado  e  defendido 
com  boas  portas  c  janellas,  de  modo  que  não  pene- 
tre muito  o  ar ,  o  qual  alteraria  a  temperatura  ,  e 
produziria  bolor  e  podridão.  Convirá  igualmente 
que  ahi  não  penetre  a  luz  ,  c  que  as  frutas  estejam 
em  cama  macia  de  palha,  ou  feno  muito  sècco,  que 
se  deve  mudar  quando  humedecer  ,  até  para  ir  ti- 
rando os  pòmos  ou  frutas  (jue  começarem  a  detc- 
riorav-se  ,  para  não  contaminar  as  outras. 

■  .,  .  CiiUiciiii  das  frutas. 

Deve  cscolhcr-se  tempo  enxuto,  que  não  seja  nem 
demasiado  sècco,  nem  húmido  ,  o  haver  cuidado 
cm  examinar  não  somente  as  espécies,  mas  lambem 
a  exposição  ,  a  fim  de  não  colher  senão  os  frutos 
que  tem  chegado  ao  grau  sulliciente  de  maturação 
em  todas  as  suas  partes.  Deverão  ser  despegados  da 
arvore  ou  á  mão ,  ou  com  um  muito  simples  e  fá- 
cil instrunieuto  bem  conhecido  ,   cuciUc-fruit ,   para 


com  aquellcs  a  que  se  não  pôde  chegar.  Todo  o  ca- 
so consiste  em  evitar  a  macerarão  ou  picadura  dos 
frutos  ,  que  occasionaria  a  decomposição  ou  altera- 
ção. Devem  ser  depostos  e  conduzidos  ao  fruteiro 
com  melindre  ,  c  arranjados  segundo  suas  espécies 
nas  prateleiras  d'antemão  preparadas,  lendo  a  pre- 
caução de  passa-las  por  um  panuo  de  laã  a  fira  de 
enxuga-las  da  sua  humidade  natural.  Todos  os  po- 
mos ou  frutos  que  a(iprescntarem  qualquer  princi- 
pio d'alteração  ou  defeito  essencial  devem  ser  re- 
gcitados.  Dispostos  assim  ,  e  ficando  os  mais  ma- 
duros nas  prateleiras  inferiores,  convém  cobri-los 
com  folhas  de  papel  pardo  ,  ou  com  tiras  de  Dane- 
la,  que  defendendo  os  frutos  das  moscas  e  da  poei- 
ra ,  tem  a  propriedade  de  absorverem  a  humidade 
que  elles  largam.  Isão  se  deve  entrar  frequente- 
mente no  fruteiro  ,  nem  deixar  penetrar  corrente 
d'ar :  convirá  entretanto  visita-lo  de  tempos  a  tem- 
pos para  a  extracção  dos  pomos  locados. 

Supplcmcnlo  aos  fruteiros. 

Quando  não  ha  posses  ou  commodidade  para  cons- 
truir um  fruteiro  regular,  ou  quando  a  abundância 
é  tal  que  este  não  basta  ,  podem  guardar-se  c  con- 
scrvar-se  os  frutos  em  talhas  ou  cm  toneis  pela  ma- 
neira seguinte  :  nu  fim  da  talha  ou  barrica  ,  que 
melhor  será  se  fòr  nova  e  bem  enxuta  ,  se  lança 
uma  camada  de  farelo  bem  sècco  e  o  mais  limpo 
de  farinha  que  ser  possa  ;  sobre  esta  camada  se  ar- 
ranja a  primeira  ordem  da  fruta  que  se  quer  guar- 
dar ,  tendo  o  cuidado  de  colocar  o  pedúnculo  das 
maçaãs  para  baixo,  e  o  das  peras  para  cima  ;  sobre 
estas  se  põe  outra  camada  de  farelo  que  as  cubra  ; 
e  assim  ir  alternando  umas  c  outras  até  que  se  en- 
cha a  vasilha.  Depois  se  tampão  com  boa  cobertu- 
ra c  SC  depositam  era  logar  enxuto. 


Os  adoradores  de  Xaca.- — Estes  formam  uma  das 
Ires  principaes  seitas  do  Japão.  Vivem  era  com- 
mum  como  frades;  levantam-se  ao  bater  a  meia 
noule  para  cantarem  dilíerenles  hymnos  ;  reunem-se 
todas  as  tardes  para  escutar  o  discurso,  que  o  seu 
superior  lhes  faz  sobre  algum  objecto  demorai,  fin- 
do o  qual  lhes  distribuo  vários  pontos  doutrinaes 
para  meditarem.  Algumas  vezes  lhes  representa  um 
homem  nos  últimos  momentos  da  sua  vida  ,  e  lhes 
refere  as  exi>robrações  com  que,  segundo  a  crença, 
o  corpo  e  a  alma  nestes  derradeiros  instantes  reci- 
procamente se  debcllão. — A  meditação  dura  uma 
hora  ;  quando  esta  acaba  ,  cada  um  dá  conta  ao 
superior  dos  pensamentos  que  o  seu  espirito  conce- 
beu ,  e  das  deliberações  que  tomara. 


Estadística  relif/iosii  na,  Áustria. —  Segundo  uma 
csladistica  recente  da  Áustria  c  dos  paizes  que  del- 
ia dependem  ,  comprehendidos  os  estados  que  pos- 
suo na  Itália,  numeram-sc  neste  império  2o:500:()00 
catholicos,  3:500:000  que  seguem  a  igreja  grega, 
2:i)00:()00  da  igreja  não-unitaria,  l:-2(;0:000  luthe- 
ranos  ,  á::ií-0:000  da  igreja  protestante  reformada, 
ío:000  socinianos  ,  e  (i00:0O(l  judeus.  —  O  numero 
de  casas  religiosas  de  homens  ascende  a  7fit>  com 
10:854  pessoas,  sendo  27  ordens  religiosas.  Os  con- 
frades das  Mercês  possuem  3í  casas  com  542  pen- 
sionistas,  os  bencdictinos  37  casas  com  1:0!(3  pen- 
sionistas ,  e  os  capuchos  98  casas  com  1298  pen- 
sionistas. Ha  137  conventos  contendo  3:6Gl  rau- 
llieres.  ,      '    ■ 


•11 


68 


o  PANORA3IA. 


ii;j 


o  MONUM£SiTO  S£  QUI:NTA  F£IB.A  SANTA  EM   SEVII.HA. 


ScMPTcosAS  e  graves  são  geralmente  na  Península 
as  solemnidades  religiosas,  sobre  tudo  as  mui  au- 
gustas conj  q,ie  a  Igreja  catholica  celebra  a  Sema- 
na, santa  por  excellencia.  Era  a  nobre  e  antiga  Se- 
vilha se  fazem  com  excessiva  pompa;  mas  o  que 
nessa  cidade ,  e  por  esse  tempo  ,  mais  captiva  a  at- 
tenrão  dos  estrangeiros  é  o  deposito  ,  erecto  na  sé  , 
c  destinado  unicamente  para  encerrar  o  Senhor  em 
Quinta  feira  Jlaior  ;  cbaraam-lhe  vulgarmente  «o  mo- 
numento» e  é  famoso  cm  toda  a  Hespanha  ,  corres- 
pondendo á  magnificência  e  grandioso  apparato  cura 
que  o  cabido  celebrava  as  cerenionias  desta  sema- 
na-—  Levanta-se  debaixo  de  uma  das  abobadas  do 
cruzeiro  entre  o  espaço,  dito  cbarola  ,  c  a  porta 
grande  ,  sobre  o  local  da  sepultura  de  litterato  D. 
Fernando  Cólon.  Delineou  esta  obra  magnifica  o 
mestre  António  Florcnlim  ,  e  dando-lhe  principio 
em  1547  a  concluiu  em  1534:  constava  então  de 
três  corpos,  rematando  com  a  cruz  :  as  estatuas  fo- 
ram lavradas  pelos  mclhofcs  esculptores  que  nessa 
Abril  lo— 18i3. 


epocha  tinham  nome:  depois  lhe  accrescentaram  <? 
quarto  corpo  ;  e  tem  sido  restaurado  por  vezes  no 
tocante  a  ornatos.  É  construído  de  madeira  c  estu- 
ques ,  formando  um  composto  de  bella  architectura 
com  quatro  frentes  livres.  O  primeiro  corpo  contem 
16  coluranas  dóricas,  grupadas  ás  quatro  e  apprc- 
scntando  duas  em  cada  frente  ,  sustentando  o  euta- 
blamento  geral  :  tem  dentro  outro  menor  ,  constan- 
do de  coluninas  pequenas  que  recebem  uma  cúpula 
á  maneira  de  baldaqulno  ;  ahi  se  colloca  a  famosa 
custodia  de  Juan  d'Arfe,  cora  uma  urna  de  ouro, 
que  encerra  a  Sograda  Forma  ;  sobe-se  a  clle  por 
um  lauro  de  degraus.  O  segundo  corpo  é  da  ordem 
jónica  ,  com  8  columnas  ,  e  no  centro  quatro  e  pos- 
ta no  meio  a  imagem  do  Salvador  :  sobre  oito  pe- 
dcstaes  ,  onde  se  lêem  inscrlpções  latinas  ,  levan- 
tam-se  as  estatuas,  de  obra  de  li  palmos,  que  fi- 
guram .ibrahão  ,  Melchlsedech  ,  .Moysés  e  Aarão  , 
e  as  allegoricas  da  Vida  eterna  .  da  Natureza  hu- 
mana ,  da  Lei  antiga  ,  e  da  Lei  da  Graça  :  nos  in- 
2.'  Sekie.  — YoL.  11. 


11  i 


o   PANORAiMA. 


! 


Icrvallús  dos  pedcstacs  corre  a  balaustrada.  A  Icr- 
rcira'  divisão  só  tem  8  columnas  corintliias  ;  collo- 
cadõ  no  centro  o  Seniior  preso  á  columna  :  r  cireura- 
dadi)  pelas  íis;uras  de  S.  Pedro  ,  Salomão  ,  a  raiiilia 
Sabii  ,  o  sacerdote  do  conselho  ,  o  sayão  da  bofeta- 
da, o  soldado  que  jogou  a  túnica  inconsutil,  Abra- 
l>ão  c  Isaac.  Coroam  este  terceiro  corpo  pyramidcs 
com  globos  dourados.  —  A  quarta  divisão,  o  sup- 
plcmento  moderno  ,  na  verdade  apoucado  ,  ó  da  or- 
dem compósita  ;  nem  guarda  proporções  com  os  de- 
mais, nem  com  o  lodo  da  obra;  tem  a  forma  cir- 
cular, e  sobre  a  cúpula,  que  sustentam  pilastras  , 
está  arvorado  o  Santo  Crucifixo.  —  A  altura  total 
do  mimumenlo  é  de  120  pés  castelh.  ,•)  o  o  seu  diâ- 
metro na  base  é  de  80.  • — Em  tempos  antigos  illu- 
iiiinava-sc  com  grande  esplendor  e  profusão  ,  para 
o  (]ue  ,  segundo  o  testemunho  dó  um  escriptor  do 
sccnlo  !(!." ,  se  gastavam  só  em  velas  e  tochas  três 
mil  libras  de  cera  ,  alem  de  I2S  lam|)adas  de  pra- 
ta que  estavam  accesas. 


Cbristianismo  —  Philosopuía  . 

A  EXISTÊNCIA  de  uma  doutrina  moral  contém  neces- 
sariamente cm  si  a  existência  de  muitos  factos :  as 
acções  dos  homens  são  as  substituições  das  fórmu- 
las, por  assim  dizer,  algébricas,  chamadas  ou  cren- 
ças religiosas  ou  theorias  de  ollicios  e  deveres.  To- 
da a  importância  de  qualquer  sciencia  de  applica- 
ção  deriva-se  não  tanto  delia  como  dos  seus  resul- 
tados práticos  ,  e  é  por  elles  que  devemos  avalia-la. 
A  sciencia  dos  actos  humanos  pertence  a  esta  ca- 
thegoria. 

Ouando  a  moral  se  firma  uas  revelações  buscadas 
no  céu  (lenomina-se  religião  :  quando  nas  inspira- 
ções espontâneas  da  consciência  denomina-se  lei  na- 
tural ;  quando  no  estudo  das  relações  sociaes  ,  e 
nas  consequências  lógicas  do  grande  princípio  hu- 
mano chamado  sociabilidade  ,  deuomina-se  philo- 
sophia.  Estas  ires  espécies  de  normas  d'acções  cou- 
duzem  forçosamente  a  resultados diflcrcntes,  porque 
as  íuas  condições  são-  diversas. 

Philosophia  —  consciência  —  religião:  três  fontes 
do  bem  obrar;  do  tudo  quanto  ha  grande,  bello,  c 
generoso  no  desterro  da  vida.  Qual  delias  é  mais 
pura  c  caudal? 

A  religião:  porque  a  religião  não  lluclua  nos  seus 
preceitos,  acceita  o  homem  como  um  typo  de  misé- 
ria e  da  grandeza  ,  como  corpo  e  como  espirito  ,  c 
exige  de  nós  a  moralidade  em  nomo  de  uma  causa 
linal- — a  vida  das  recompensas. 

Ligados  com  especulações  ontológicas  ,  com  dou- 
trinas mctaphysicas  ,  vacillantes  ,  contestáveis  ,  e 
perpetuamente  contestadas  ,  os  princípios  moraes 
das  escholas  philosophicas  tem  seguido  de  perto  , 
arrastados  por  ellas,  todos  os  desvarios  dessas  dou- 
trinas até  o  nosso  tempo.  ;. Quem  nos  diz  que  as  de 
hoje  lião  serão  regcitadas  como  erros,  ou  ,  mais  ri- 
gorosamente ,  quem  nos  diz  onde  está  a  rasão  ,  c  a 
verdade  no  meio  do  combale,  que  ainda  dura  entre 
as  diversas  parcialidades,  nesta  proviíicia  do  mundo 
iijlellecinal  ?  Quem  nos  diz  que  a  nossa  sciencia  não 
será  matéria  de  riso  jiara  a  geração  que  ha-dc  suc- 
ceder-nos?  I 

A  historia  da  philosophia  (■  a  historia  de  um  edi- 
fício começado  ha  milhares  d'annos,  em  que  um  sé- 
culo revolve  os  fundamentos  que  outro  lançou  ,  pa- 
ra lançjr  os  seus,  os  quaes  igualmente  são  rcvolvi- 

(•)     152  palmus  iiortugT:  o  iliiimclro  101  -*.  ditos. 


dos  pelo  scculo  seguinte  ,    cujos  trabalhos  condem- 
iiará  o  que  vier  apoz  elle. 

Desde  a  moral  de  Platão  deduzida  do  amor  da 
formosura  divina  ;  desde  a  moral  de  Epicuro  ,  mo- 
ral negativa,  que  põe  o  profundo  despreso  da  huma- 
nidade como  pedra  angular  do  proceder  humano  : 
desde  as  escholas  da  Grécia  até  o  materialismo  gros- 
seiro dos  eneyclopedistas ,  que  máxima,  que  regra 
de  acções  deixou  de  ler  altares,  deixou  de  ser  con- 
demnada  ?  .Nenhuma. 

Constância,  perpetuidade,  só  a  teem  os  preceitos 
iminulaveis  das  crenças  religiosas. 

Substitui,  porem,  o  individuo  á  eschola  :  substi- 
tui a  inspiração  da  consciência  aos  raciocínios  do 
entendimento,  mais  incompleto  ,  mais  vacillante  e 
mais  estéril  será  ainda  o  sentimento  moral. 

De  que  dependem  os  aflectos  do  coração?  Da  ín- 
dole c  engenho  do  homem  ,  da  sua  educação  ,  há- 
bitos ,  propensões,  e  até  da  sua  physíologia.  Mais: 
a  doença  ou  a  saúde  ,  a  felicidade  ou  o  infortúnio  , 
fazem  variar  o  seu  modo  de  sentir  em  relação  aos 
seus  similhantes.  Os  instiiictos  da  consciência  só 
podem  por  isso  produzir  a  anarchia  moral ,  a  con- 
tradicção  dos  actos  humanos. 

A  virtude  sem  fé  não  tem  verbo  que  a  explique  ; 
é  uma  linguagem  escripta  com  caracteres  hierogly- 
phicos  ,  que  se  vêem  sem  se  compreheuderem ,  e 
em  que  os  eruditos  só  encontram  matéria  de  discus- 
são e  de  conjecturas. 

Estas  considerações  rápidas  e  abstractas  tornam-se 
mais  evidentes,  applícando-as  ás  doutrinas  especiaes, 
e  a  um  aspecto  único  destas.  Deixemos  de  parte  a 
fonte  moral  da  consciência,  que  ora  derrama  o  mel, 
ora  o  absinthio  ;  ora  verte  o  bálsamo  das  consola- 
ções ,  ora  é  árida  como  o  rochedo  tostado  de  serra- 
nia núa  e  erma  ,  o  que  será  sempre  na  terra  um 
acas),  ou  um  mysterio.  Chamemos  á  prova  a  phi- 
losophia do  nosso  tempo  c  a  religião  do  nosso  paiz: 
estabeleçamos  a  comparação  entre  cilas  no  mais  gra- 
ve c  importante  dos  seus  resultados  —  a  beneficcn- 
cia. 

D"onde  viemos  nós  os  que  ora  vivemos?  —  qual 
é  a  nossa  filiação  intelleclual  e  moral?  A  geração 
presente  veio  de  uma  geração  argumentadora  e  in- 
crédula ;  a  nossa  epocha  veio  de  uma  epocha  em 
que  o  orgulho  dos  homens  chamou  a  crença  divina 
de  dezoito  séculos  ao  tribunal  humano  de  uma  dia- 
léctica implacável:  nascemos  no  meio  das  blasphe- 
mias  e  alaridos  dos  inimigos  do  Evangelho  :  assisti- 
mos ainda  aos  últimos  dias  do  julgamento  :  ainda 
ouvimos  coudemnar  a  doutrina  de  Jesus  porque  era 
indigna  da  grandeza  de  Deus  ,  e  porque  não  era 
athcistica  ;  porque  era  severa  ,  e  porque  era  indul- 
gente ;  porque  era  copiada  de  crenças  antigas  ,  se- 
guidas largos  annos  por  milhares  d'homens  ,  e  por- 
que era  impossível  segui-la  ;  porque  era  perturba- 
dora dos  estados,  e  porque  era  umelcmenlo  de  ser- 
vidão. Aflerido  pelas  oiiiniões  mais  oppostas ,  c  no 
fim  regcitado  por  contrario  a  todas  ellas  ,  vimos  o 
cbristianismo  expulso  do  templo  da  philosophia  ,  e 
a  cruz  dcsterraila  como  iim  symbolo  inútil.  As  es- 
cholas dos  sophistas  que  não  podiam  couvir  entre  si 
110  mínimo  ponto  de  doutrina,  concordaram  todavia 
n'um  "csullndo  :  foi  este,  que  a  religião,  clara,  de- 
finida ,  acceita  pelas  mais  profundas  e  vastas  intel- 
lígeiícias  que  o  mundo  proiluzíra  em  perto  de  dois 
mil  annos  ,  origem  de  innumeraveis  acções  nobres  , 
formosas  e  sublimes  ,  causa  principal  e  quasí  úni- 
ca de  todo  o  progresso  das  sociedades  modernas  , 
era  absurdo  c  mentira ,  era  um  mal  intolerável ,   ç 


o   PA]\ORA3IA. 


llli 


que  no  rahos  monstruoso  ,  canibianle  ,  incerto  das 
doutrinas  contradiclorias  dos  sopliislas,  que  nem 
um  só  bem  haviam  trazido  á  terra,  nem  encluif;ado 
uma  lagrymn  ,  nem  gerado  uma  consolarão  ,  nem 
inspirado  um  só  feito  generoso  e  forte,  eslava  a  ver- 
dade ,  a  evidencia ,  a  felicidade  ,  e  o  fundamento 
seguro  do  crer  e  do  obrar  humano. 

Era  demasiado  demente  e  ridícula  esta  pcrlenção 
dos  sophistas.  para  que  a  epocha  actual  lhe  não  vol- 
tasse as  costas  com  ledio  edesprèso.  Mas  a  cruz  ja- 
zia por  terra,  coberta  de  lodo  espadanado  contra  el- 
la  por  insensatos  :  o  seu  antigo  prestigio  estava  des- 
truido  ,  e  os  homens  passaram  muito  tempo  por  ci- 
la, sem  que  houvesse  uma  intelligcncia  robusta  que 
ousasse  ajoelhar  na  encrusilhada  ,  e  abraçar-so  com 
o  symliolo  da  redcmpção.  Os  primeiros  que  o  tenta- 
ram tinham  por  certo  grande  coração  ;  porque  ocou- 
trastar  o  escarneo  das  turbas  é  a  mais  subida  pro- 
va de  esforço.  A  energia  destas  almas  leve  a  sua  re- 
compensa —  a  consciência  de  haverem  contribuído 
poderosamente  para  a  restauração  moral  da  socie- 
dade —  e  se  o  christianismo  não  Iriumphou  ainda 
completamenlc  das  preoccupações  vergonhosas  do 
século  passado  ,  não  se  carece  de  grande  perspicá- 
cia para  antever  que  não  tarda  o  dia  em  que  a  Eu- 
pa  seja  outra  vez  verdadeiramente  christaã. 

O  espiritualismo  c  hoje  sem  contradicção  o  aspe- 
cto caraclerislico  da  philosophia  ,  como  o  da  escho- 
Ja,  ou  antes  cscholas  dos  encyclopedistas  fora  o  ma- 
terialismo :  estes  dois  systemas  ,  ambos  cllcs  orgu- 
lhosos por  diverso  modo  ,  e  por  diverso  modo  in- 
completos, ahi  estão  frente  a  frente,  ahi  luctam  de- 
sesperados ,  até  que  um  seja  esmagado  pelo  outio  , 
sorte  que  ,  segundo  parece  ,  está  reservada  ao  mais 
velho — o  da  pura  animalidade  dos  encyclopedistas. 

Todos  os  homens ,  cujo  espirito  c  mais  ou  menos 
cultivado,  seguem  ou  por  inllucncia  da  auctoridade 
alheia  ,  ou  por  meditação  própria,  uma  dessas  dou- 
trinas :  ambas  ellas  actuam  portanto  no  caracter  mo- 
ral das  classes  elevadas  :  quanto  ás  inferiores  cus- 
ta-nos  a  dizer  que  um  sensualismo  brutal  predomi- 
na nos  seus  hábitos  e  instinctos;  que  o  materialis- 
mo, pouco  a  pouco  expulso  do  meio  daquellcs,  que 
primeiro  recebem  as  inspirações  de  uma  civilisacão 
progressiva,  vai  aninhar-se  nas  tabernas,  nos  prosti- 
IjuIos  ,  e  o  que  muito  é  de  sentir  nas  choupanas  col- 
madas. Em  mais  d'uma  ,  quando  a  desventura  se 
assenta  ao  pobre  lar  do  camponez  ,  este ,  que  d'au- 
tes  se  abrigava  na  resignação,  no  orar,  no  derra- 
mar lagrymas  aos  pés  da  cruz  ,  procura  agora  o  es- 
quecimento na  embriaguez  ,  o  remédio  da  miséria 
no  roubo  ,  e  até  a  salvação  no  suicídio.  A  incredu- 
lidade ,  ameaçada  de  desterro  nas  regiões  onde  por 
mais  de  cíncoenta  annos  imperara  como  rainha,  faz- 
se  fabril  e  bucólica  :  senhoril  c  disputadora  ninda 
ha  pouco,  torna-se  rude,  bestial,  e  grosseira.  Quan- 
tas vezes  temos  ouvido  sahir  de  humilde  alvergne 
os  sons  terríveis  de  profundo  descrer  1  —  quantas 
vezes  temos  respirado  o  bafo  mortal  da  blasphemia 
sahido  de  habitações  ,  onde  a  única  excepção  ás  ex- 
tremas misérias  da  existência  fora  a  esperança  1  A 
causa  deste  aíilictivo  espectáculo  buscai-a  na  histo- 
ria dos  desvarios  dos  últimos  oitenta  annos  :  os  ho- 
mens que  podiam  remediar  tanto  mal  ;  aquellcs  que 
na  significação  mais  extensa  da  palavra  ,  presidem 
aos  destinos  populares  ,  são  filhos  intellectuaes  ,  são 
discípulos  da  Encyclopedia.  Todos  os  meios  mais 
santos  ,  mais  suaves  ,  e  productivos  da  felicidade 
publica  —  os  religiosos,  teem  sido  condemnados  no 
lespirito  superficial  desses  bomen»  como  perigosos  e 


ineíTicazes  ,  e  o  christianismo,  o  grande  cívilisador 
dos  tempos  modernos  —  considerado  como  um  ins- 
trumento quebrado  e  inútil.  Assim  o  povo  abando- 
nado a  si  mesmo  ,  quasi  sem  culto,  c  sem  pastores, 
vai  perdendo  diariamente  a  sua  riqueza  moral ,  a 
herança  de  crença  e  doutrina  que  lhe  haviam  lega- 
do seus  pais.  A  religião,  cujo  primeiro  alvor  come- 
ça de  novo  a  despontar  no  oriente  do  nosso  íntimo 
viver  ,  tão  descorado  c  triste  ,  apenas  se  entreve  no 
liorisonte  das  alturas  espiritualistas  ;  são  .  porem  , 
(jrofundas  as  trevas  uos  valles  e  nas  planícies  ras- 
teiras ,  onde  pousam  as  névoas  mephytícas  de  um 
sensualismo  hediondo. 

Tal  é  o  estado  moral  da  sociedade  :  duas  philoso- 
phias  contrárias,  que  pelejam  mais  um  desses  com- 
bates travados  entre  ellas  diariamente  desde  milha- 
res d'annos  :  as  almas  nobres  lidando  cm  silencio 
para  despertarem  do  somno  estúpido  do  sccplicismo  ; 
e  o  povo  dançando  tristemente  feroz  sobre  asruinas 
do  altar  e  da  cruz.  Vejamos  como  esses  trcs  elemen- 
tos—  as  duas  doutrinas  rivaes,  e  a  bruta  indilTcrença 
da  ignorância  se  traduzem  na  vida  :  procuremos  o  seu 
valor  na  applicação  — n'um  facto —  e  comparemos 
este  com  o  facto  análogo  como  o  produzia  d'antes  , 
como  o  produzira  ainda  hoje  ,  se  fosse  dominadora 
entre  os  homens,  a  moral  divina  do  Calvário.  Aca- 
reemos  o  amor  dos  homens  em  Deus  —  a  charidade 
—  com  o  amor  dos  homens  pelas  doutrinas  das  es- 
cholas,  não  das  que  ensinam  a  dureza  de  coração  e 
o  egoísmo,  mas  das  mesmas  que  ensinam  essa  com- 
paixão e  humanidade,  a  que  se  chama  pbilantropia. 

Vede  aquelle  edilicio  :  as  janellas  estão  abertas: 
os  espelhos  das  paredes ,  os  feixos  dourados  dos 
umhraes  e  portas  ,  os  adereços  de  pedras  preciosas 
que  adornam  as  mulheres  ,  custosamente  trajadas  , 
refrangem  multiplicados  os  raios  de  luz  derramados 
dos  lustres  esplcndcntes  :  ouvcm-se  lá  dentro  as  toa- 
das harmoniosas  dos  instrumentos,  e  vozes  humanas 
que  modulam  cantos  voluptuarios  :  vè-se  d'ahi  a 
pouco  o  turbilhão  das  danças  passar  cercado  de  um 
ambiente  de  perfumes,  que  derramam  as  essências  e 
as  Qores  variegadas  :  os  mais  delicados  manjares  . 
as  bebidas  mais  deliciosas  gyrara  no  meio  daquella 
turba  que  se  agita  como  possuída  de  loucura  fe- 
bril :  o  deleite  pinta-se  cm  todos  os  rostos  ,  porque 
a  um  tempo  ahi  o  aspiram  lodos  os  sentidos;  —  as- 
pira-o  ,  até  ,  a  imaginação  ,  porque  muitas  vezes  la 
desabrocha  a  primeira  esperança  da  corrupção  e  do 
adultério  ;  lá  ,  nessa  atmosphcra  impregnada  de  se- 
ducções  ,  de  sensualidades  ,  de  delírio  ,  as  paixões 
mais  ignóbeis  refervem  e  trasbordam  despeadas' , 
porque  a  poesia  de  que  ahi  se  reveste  a  vida  mate- 
rial e  externa  láz  esquecer  ainda  as  almas  mais  ge- 
nerosas e  fortes  os  contentamentos  da  vida  intima  ; 
lá  ,  emfim  ,  a  própria  virtude  troca  seus  brios  em 
languidez  ,  e  deíxa-sc  morrer,  como  o  viajante  que 
debaixo  da  sombra  atraiçoada  da  mancenilha  sente 
coar-lhe  a  morte  nas  veias  ,  e  mal  cuida  que  esse 
adormecer  suave  que  o  consola  seja  um  somno  per- 
petuo. 

Esta  sala  esplendida  é  uma  eschola  de  perdição, 
instituída  iior  homens  corruptos  no  meio  da  socie- 
dade que  locou  a  meta  da  decadência  e  do  desca- 
ro  ?  É  Koma  serva  que  se  alevanta  do  seu  pó  e  re- 
nova entre  nós  os  serões  vertiginosos  de  Trimal- 
cião?  Nada  disso.  Sc  quereis  a  explicação  deste  es- 
pectáculo ,  o  programraa  deste  ardente  festim  ,  eii- 
trac  em  est 'outro  edilicio,  onde  a  custo  vedes  atra- 
vez  dos  baços  vidros  de  breve  janella  frouxo  luzir 
de  lâmpada  ,   semelhante  a  eslrella  longinqu.i ,  vis- 


116 


O  PANORAMA. 


ta  alravez  de  ar  chuvoso  por  fenda  rasgada  em  céu 
negro.  È  ura  convcntinho  onde  ha  annos  callaram 
as  orações  monásticas.  Entrac.  O  dormitório  está 
em  silencio  ;  a  lâmpada  ,  cujo  bruxulear  enxergas- 
tes de  longe  ,  pende  do  tecto  no  cruzar  dos  corre- 
dores :  esses  quartos  ou  cellas  estão  povoados  de 
infelizes,  que  recuando  ante  o  aspecto  da  fome  vie- 
ram acolhcr-se  á  morada  destinada  para  aciuelle 
que  não  adiou  quinhão  no  banquete  da  vida.  Este 
logar  melanchnlico  e  pobre  é  um  asylo  de  mendi- 
cidade ;  aqucUoulro,  alegre  e  esplendido,  uma  sa- 
la de  baile.  A  ebriedade  do  festim  nocturno  produ- 
zirá um  bem  ;  alimentará  estes  velhos  e  inválidos  ; 
foi  essa  a  condição  do  deleite:  as  paixões  —  talvez 
os  vicios  —  fazem-se  humanas,  e  civilisam-se.  É 
um  progresso  real  ;  e  este  progresso — sejamos  jus- 
tos—  deve-se  á  illustração  e  á  philanlropia.  Elias 
leera  sabido  fazer  que  propensões  e  alTectos  cul- 
))ados  e  menos  nobres  combatam  contra  outros  ain- 
da mais  vergonhosos  c  destruidores  ;  e  desses  com- 
bates tem  sabido  babilmcnle  tirar  vantagens  pa- 
ra o  bom  e  honesto.  Assim  na  grande  inimoralida- 
de  das  loterias  existe  pela  cubica  uma  contribuição 
espontânea  para  a  infância  abandonada  ;  assim  n 
avareza  mata  ,  nas  caixas  económicas  ,  o  jogo  ,  a 
embriaguez  ,  a  gula  :  assim  a  grande  piostituição 
dos  theatros  chega  a  ser  digna  de  perdão  quando  o 
preço  d'indecencias  vai  fazer  subsistir  os  institu- 
tos de  educação  infantil.  Agradeçamos  tudo  isto  á 
orgulhosa  intclligencia  humana  :  são  estes  os  mais 
brilhantes  resultados  do  seu  progredir,  e,  sincera- 
mente o  dizemos,  se  mais  não  tem  feito,  éque  nun- 
ca ella  poderá  ir  mais  longe  do  que  a  espalhar  be- 
neficios  matcriaes.  D'ahi  avante  só  a  religião  acha 
senda  para  caminhar.  A  generalisação  é  o  caracter 
das  doutrinas  da  eschola.  Estas  quando  ensinam  o 
beneficio,  attendem  a  uma  abstracção  —  ao  homem, 
não  aos  indivíduos.  O  amor  ]iiedoso  dos  nossos  si- 
milhautcs  chama-sc  por  isso  philanlropia  ;  o  chris- 
tianismo  chamava-lhe  caridade.  A  caridade  vinha 
«lo  coração;  a  philanlropia  nasce  do  entendimento. 
Hoje  os  corações  eslão  mortos  porque  a  crença  pas- 
sou :  vive  a  intelligcncia  porque  a  excita  e  cultiva 
uma  civilisação  vigorosa. 

O  christianismo  entendia  de  bem  diverso  modo  o 
amor  da  humanidade  ,  porque  entre  este  amor  e  o 
genero-humano  estava  a  idéa  de  Deus.  A  caridade 
era  alTectuosa  ,  modesta  e  espiritual  ,  em  quanto  a 
philanlropia  é  dura,  ostentosa  e  grosseira.  Entre 
um  coulro  systema  de  bemfazcr  ha  a  distancia  que 
vai  da  philosupiíia  do  céu  á  philosu(ihia  terrena.  O 
christianismo  sabia  que  no  homem  havia  espirito  c 
corpo.  O  christão  sabia  doer-se  de  um  e  d ' outro  : 
a  sua  caridade  não  era  materialista. 

Oue  vale  a  vossa  virtude  ,  filha  da  civilisação  , 
comparada  á  que  se  estribava  na  fé?  Que  lucrou  o 
mundo  emtrcjcar  a  humildade  sublime  dosque  bus- 
cavam por  Ioda  a  parte  amarguras  da  alma  para 
consolar,  dores  phjsicas  para  mitigar,  pela  sober- 
ba fastosa  daquellcs  para  quem  é  preciso  velar  a 
lioa  obra  com  a  máscara  atlractiva  das  paixões  ou 
do  deleite?  A  vossa  beneficência  esquece  completa- 
mente ávida  interior;  cera  a  esta(|ue  a  beneficên- 
cia religiosa  dedicava  os  seus  mais  ricos  thesouros, 
a  sua  mais  alTectuosa  compaixão.  Vós,  que  se  vos 
dá  das  agonias  do  espirito? 

JNcssa  morada,  triste,  pobre,  silenciosa,  e  esque- 
cida, reverso  negro  doípiadro  brilhante  de  um  bai- 
le; nessa  mesma  habitação  do  mendigo,  que  é  to- 
davia uma  das  justituiçues  mais  formosas  v  puras 


dos  nossos  dias,  iremos  buscar  um  exemplo.  Vereis 
que  a  philantropia  não  suppre  a  caridade  ,  ou  para 
melhor  dizer  que  a  civilisação  não  suppre  o  chri-s- 
lianisrao. 

Sobre  uma  das  duras  enxergas  ,  infileiradas  pe- 
las paredes  desses  aposentos  desadornados  ,  dorme 
um  velho  cego  ,  cujo  rosto  vos  encobre  a  escacez 
da  luz  qucallumia  o  dormitório.  Interrompem-lhe  a 
espaços  o  respirar  sereno  esses  gemidos,  que  ainda 
em  sonhos  a  dor  moral  sabe  arrancar  das  profunde- 
zas do  coração  ,  sem  que  os  lábios  se  descerrem. 
Que  importa  isso  á  philanlropia  ?  Ella  deu-lhe  pão 
e  uma  enxerga.  Que  importa  as  chagas  avenenadas 
que  lhe  lavram  lá  dentro?  —  Deu-se-lhe  um  tecto 
que  o  resguarde  das  injurias  do  tempo.  É  o  que 
basta  :  o  cancro  inlerior  não  se  vè. 

E  todavia  se  indagardes,  a  historia  do  cego  men- 
digo achareis  que  havia  ahi  alguma  infelicidade 
mais  profunda  c  tremenda  ,  a  que  fcJra  necessário 
applicar  ,  não  os  soccorros  materiaes  ,  mas  o  bálsa- 
mo das  consolações.  Era  um  homem  honesto ,  a 
quem  a  cegueira  fez  pobre.  Duas  filhas  o  alimenta- 
vam do  produclo  do  seu  trabalho  :  faltou-lhes  este 
um  dia  —  uma  semana  —  um  mez  —  ;  e  a  miséria  da 
familia  desventurada  chegou  a  extremidade  horrí- 
vel. Enlão  a  devassidão  veio  em  nome  da  fome  ba- 
ter á  porta  das  que  até  aquelle  momento  haviam  si- 
do puras,  e  ellas  a  seguiram  ao  proslibnlo.  .\s  duas 
arvores  frondosas  nascidas  da  raiz  do  cedro  carco- 
mido, e  que  lhe  encobriam  a  decrepidez  cora  a  sua 
verdura,  foram  cerceadas,  e  o  sol  ardente  acabou 
de  mirrar  o  cedro  moribundo.  Aquclla  alma  dera 
em  terra  nos  trances  de  dilatado  morrer.  A  philan- 
tropia passou  por  lá  —  e  encontrando-o  no  charco 
da  rua,  afastou-o  com  o  pé  para  o  receptáculo  caia- 
do deste  género  de  misérias  ,  e  depois  foi  bailar 
nos  suas  salas  douradas,  para  que  o  velho  mendigo 
tivesse  um  bocado  de  pão  negro  |)ara  temperar  com 
lagrymas  ,  e  um  pedaço  de  saial  grosseiro  para  se 
cobrir.  Era  só  disto  ;  —  era  principalmente  disto 
que  elle  carecia? 

Não,  mil  vezes  não!  —  Mas  a  civilisação  fez  o 
que  pode.  Seria  loucura  exigir  impossíveis  da  phi- 
lanlropia. 

O  que,  porem,  fora  para  ella  impraticável,  fa-lo- 
hia  sem  custo  a  caridade  do  christianismo. 

A  beneficência  ,  inspirada  pela  religião  ,  não  tem 
essa  triste  faculdade  de  generalisar  que  para  a  be- 
neficência philanlropica  se  converteu  n'um  princí- 
pio. Os  seus  preceitos  são  universacs  e  rigorosos  ein 
si ,  mas  na  applicação  tornam-se  individuaos  e  va- 
riados. A  caridade  cluislã  teria  cruzado  talvez  o 
limiar  daquella  familia  mesquinha,  antes  que  a  de- 
vassidão houvesse  chegado  lá  ,  guiada  pela  mão  da 
fome  :  teria  sido  para  ella  a  provideucia.  Mas  quan- 
do houvesse  vindo  tarde  para  impedir  o  mal  ,  con- 
tcnlar-se-hia  de  atirar  ao  infeliz  e  abandonado  cego 
ura  pedaço  de  pão  negro?  Oh  por  certo  que  não! 
Teria  escutado  os  gemidos  daquella  alma  atribula- 
da :  teria  fallado  ao  desditoso  de  Deus  e  da  espe- 
rança :  teria  chorado  com  elle.  Faria  mais:  procu- 
raria arrancar  á  devassidão  as  suas  viclimas  :  al- 
cança-lo-hia  talvez  ,  e  reconstruiria  pelo  arrependi- 
mento a  felicidade  de  uma  familia  ;  por(iue  só  o 
mundo,  que  se  crc  mais  perfeito  (]ue  o  céu  ,  é  ine- 
xorável para  com  aquelle  que  uma  vez  errou  :  a  fé, 
essa  tem  perdão  c  esquecimenlo  para  o  que  se  con- 
verteu. Fora  tudo  isto  o  que  fizera  a  beneficência 
christã,  c  não  arrojar  o  coração  despedaçado  do  ve- 
lho para  um  thoatro  Uu  juiscrias ,   onde  muitas  vc- 


o   PANORAMA. 


117 


2CS  se  misturam  com  ellas   a  cólera  ,   os  tícíos  e  a 
desesperação. 

O  defeito  capital  de  bcneCcencia,  que  não  se  es- 
triba no  christiauismo  ,  c  o  esquecimento  completo 
dos  alTectos  humanos  :  é  por  isso  que  despedaça  in- 
rtiflerente  os  santos  afTectos  de  família  ,  para  disse- 
minar os  indivíduos  na  realidade  da  vida  pelos  re- 
parliraenlos  e  casas  dos  quadros  estatísticos  da  mi- 
séria publica.  A  paternidade,  o  amor  filial  c  ma- 
terno, as  saudades  do  lar  domestico,  isso  não  com- 
prebende  ella  :  para  tudo  e  para  lodos  tem  asylos 
e  soccorros  ,  nieuos  para  a  mais  importante  entida- 
de moral ,  para  a  sociedade  que  é  origem  de  todas 
as  outras,  para  a  família. 

A  beneficência  (fhoje  conhece  apenas  a  sede,  a 
fome  ,  a  nudez  :  a  nossa  beneficência  c  essencial- 
mente incompleta  .  porque  é  materialista. 

Condemnàmos  nós  a  sua  existência?  Sem  duvida 
não !  Abençoámos ,  ao  contrario  ,  os  homens  que 
supprem,  como  um  pensamento  mundano  pude  sup- 
prir,  o  sublime  pensamento  chrislão.  Mas  seja-nos 
Jicilo  deplorar  que  o  orgulho  da  sabedoria  terrena 
acreditasse  que  em  si  linha  recursos  que  lortiassem 
inútil  a  eterna  c  insondável  sabedoria  do  evange- 
lho :  seja-nos  licito  saudar  a  aurora  desse  dia  que 
já  rompe  no  horisoule  ,  em  que  a  cruz  triumphaule 
se  hasteará  de  novo  sobre  o  mundo  ,  para  abrigar  e 
consolar  oulra  vez  com  a  sua  sombra  divina  todo  o 
género  de  desventuras. 

(A.  Herculano.) 


EiTBACTO  DO   CAP.    1.°  DO   St.'  EvANGELHO  , 

SEGUNDO  S.  João  (1). 

«João  (2)  delle  testificou  e  clamou  dizendo:  Este 
era  aquelle  de  quem  eu  dizia  ;  o  que  vem  apoz  mim 
é  antes  de  mim  ,  porque  era  primeiro  que  eu. 

E  de  sua  plenidão  recebemos  todos  lambem  gra- 
ça por  graça. 

Porque  a  lei  foi  daiia  por  Moysés  ;  a  graça  ,  e  a 
Terdade  foi  feita  por  Jesu-Chrísto. 

A  Deus  nunca  ninguém  o  viu  :  o  Unigénito  Filho, 
que  está  no  regaço  do  Pae  ,  elle  no-lo  declarou. 

E  este  é  o  testemunho  de  João,  quando  os  judeus 
mandaram  alguns  sacerdotes  e  levitas  de  Jerusalém, 
que  lhe  perguntassem  :  Tu  quem  és? 

E  confessou  e  não  negou  ;  c  confessou  :  Eu  não 
iou  o  Christo. 

E  pierguntaram-lhe  :  Quem  pois?  És  tu  Elias?  e 
disse:  Não  sou.  —  És  tu  propheta  ?  c  respondeu  : 
>'ão. 

I)isseram-lhe  pois:  Quem  és?  Para  quedemos 
resposta  aos  que  nos  enviaram :  que  dizes  de  ti 
Bjesmo? 

Disse:  Eu  sou  a  voz  do  que  clama  no  deserto; 
endereçai  o  caminho  do  Senhor  ;  como  disse  o  pro- 
pheta Isaías. 

E  os  enviados  eram  dos  phariseus. 

E  perguntaram-lhe  e  disseram-lhe  :  Porque  pois 
baptisas  ,  se  tu  não  és  o  Christo  ,  nem  Elias  ,  nem 
propheta  ? 

João  lhes  respondeu  ,  dizendo :  Eu  bapliso  com 
agua  :  mas  em  meio  de  vósoutros  está  a  quem  vós- 
outros  Dão  conheceis. 

Este  é  aquclie  que  vem  apoz  mim  .  o  qual  já  foi 


antes  de  mim,  do  qual  cn  não  sou  digno  de  lhe  de- 
satar a  correa  da  al|)arca. 

Estas  cousas  aconteceram  em  Belhabara  ,  da  ou- 
tra banda  do  Jordão,    onde  João  estava  baptisando. 

O  seguinte  dia,  viu  João  a  Jesus  vir  a  ellc  ,  e 
disse  : 


(1)  Seiuimns  aqui  a  versão  de  João  Ferreira  d'Almei- 
da ,  mais  anliía  e  muilo  menos  conhecida  que  as  dosPP.^s 
Pereira  e  Sarmento. 

(2)  O  Baptist»  faltando  do  R«d«niptor. 


Vedes  aqui  o  Cordeiro  de  Deus,  que  tira  o  pecca- 
do  do  mundo. 

Este  c  aquelle  ,  do  qual  eu  disse  :  Apoz  mim 
vem  um  Varão  ,  que  já  foi  antes  de  mim  ;  porque 
já  era  primeiro  que  eu.  —  Et  reliqna. 


A  Meditação  no  Pkomo>'tobio.  :• 

[Fragmentos  de  um  Urro  inédito.) 

I. 

EitA  por  uma  destas  noites  vagarosas  do  inverno  , 
em  que  o  brilho  de  um  céu  sem  lua  é  vivo  e  tre- 
mulo ;  em  que  o  gemer  da  selva  é  profundo  e  tris- 
te ;  em  que  a  soledade  das  praias  c  ribas  fragosas  é 
absoluta  e  tétrica. 

Era  a  hora  em  que  o  homem  está  recolhido  nas 
suas  mesquinhas  moradas;  em  que  pelos  cemitérios 
o  orvalho  se  pendura  do  topo  das  cruzes,  e  sósinho 
goteja  das  bordas  das  campas  :  porque  a  saudade 
da  viuva  c  do  orpham  ,  a  desesperação  da  amante, 
o  coração  despedaçado  do  amigo  tinham  tido  pavor 
das  larvas  da  imaginação  ,  e  das  iniluencias  morbi- 
ficas  do  rocio  nocturno'  Para  se  consolarem,  os  in- 
felizes dormiam  tranquíllos  em  seus  leitos  macios  I  ... 
em  quanto  os  vermes  do  sepulchro  roiam  o  cadáver 
do  exlincto  ,  amarrado  á  sua  cama  de  mármore  pe- 
lo grilhão  da  morte  chumbado  nos  seios  da  pedra. 
Hypocritas  dos  affectos  humanos  ,  o  somno  enchu- 
gou-vos  as  lagrymas  ! 

E  depois  ,  as  lousas  eram  já  tão  frias  '.  Debaixo 
de  um  torrão  húmido  o  sudário  do  cadáver  tinha 
apodrecido  com  ellc. 

Haverá  paz  no  tumulo?  Deus  o  sabe.  Para  o  que 
ahi  repousa  sei  eu  que  ha  na  terra  o  esquecimento  '. 

Os  mares  pareciam  naquella  horarccordar-se  aiu- 


118 


O  PANORAMA. 


dá  do  rugido  harmonioso  do  estio,  e  a  vaga  arquea- 
va-se,  rolava,  e  esprcguirando-se  pela  praia,  reOe- 
Ctia  a  espaços  nas  golfadas  d'escuma  a  luz  indeci- 
sa dos  céus '. 

E  o  auimal  que  ri  c  chora  ,  o  rei  da  creacão  ,  a 
imagem  da  divindade,  onde  é  que  se  esconderá? 

Tremia  de  frio  em  aposento  cerrado ,  c  sentia 
confrangido  a  brisa  fresca  do  norte  ,  que  passava 
nas  trevas ,  c  sibilava  contente  nas  çarças  rasteiras 
dos  maninhos  desertos. 

Sem  dúvida  o  homem  é  forte,  e  a  mais  excellen- 
te  obra  da  creacão  1  Gloria  ao  rei  da  natureza,  que 
tiritando  geme. 

Orgulho  humano,  qual  és  tu  mais?  —  feroz,  bes- 
tial ou  ridículo? 


Era,   pois,   n'uma  destas  noites  em 

que  a  terra,  envolta  no  seu  manto  d'cscuridade,  se 
povoa  de  terrores  incertos  ;  em  que  o  sussurro  do 
pinhal  c  como  um  coro  de  finados ,  o  despenho  da 
torrente  como  um  ameaçar  d'assassinos  ,  o  grito  da 
ave  nocturna  como  uma  blasphemia  do  que  não  crè 
cm  Deus. 

Nessa  noite  fria  e  húmida ,  arrastado  por  agonia 
íntima  ,  vagava  eu  ás  horas  mortas  pelos  alcantis 
escalvados  das  ribas  do  mar ,  e  enxergava  ao  longe 
o  vulto  negro  das  aguas  balouçando-se  no  abysmo 
que  o  Senhor  lhes  deu  para  perpetua  morada. 

Por  cima  da  minha  cabeça  passava  o  norte  agudo. 
F,n  amo  o  sopro  do  vento  ,    como  o  rugido  do  mar : 

Porque  o  vento  e  o  oceano  são  as  duas  únicas 
expressões  sublimes  do  verbo  de  Deus  ,  cscriptas  na 
face  da  terra  quando  ainda  ella  se  chamava  o  cabos. 

Depois  éque  surgiu  o  homem  c  a  podridão  ,  a  ar- 
vore c  o  vérmo  ,  a  bonina  e  o  cmmurchecer. 

E  o  vento  e  o  mar  viram  nascer  o  geuero-huma- 
no  ,  crescer  a  selva ,  florescer  a  primavera  ;  —  c 
passaram ,  e  sorrirani-se. 

K  depois  viram  as  gerações  reclinadas  nos  cam- 
pos do  scpulchro  ;  as  arvores  derribadas  no  fundo 
dos  valles  sèccas  e  carcomidas ;  as  llòres  pendidas 
c  murchas  pelos  raios  do  sol  do  estio  ;  —  c  passa- 
ram ,  e  sorriram-se. 

Que  tinham  elles,  de  feilo  ,  com  essas  existên- 
cias mais  passageiras  c  incertas  ,  que  as  corrente- 
zas de  um  ,  e  as  ondas  buliçosas  do  outro? 

in.  .  . 

o  mundo  actua!  nunca  poderá  entender  plenamen- 
te o  alfecío  ,  que  vibraudo-me  dolorosamente  as  li- 
bras do  coração  me  arrastava  para  as  solidões  ma- 
rinhas do  promontório ,  quando  os  outros  homens 
nos  povoados  se  apinhavam  á  roda  do  lar  acceso  , 
c  lallavam  das  suas  magoas  infantis  ,  o  dos  seus 
contentamentos  de  um  instante. 

E  que  me  imporia  a  mim  isso?  Virão  algum  dia 
homens  que  coniprehendam  a  minha  alma,  e  as  pa- 
lavras que  ahi  lhes  ficam  cscriptas. 

Arraslava-nie  para  o  ermo  um  sentimento  ínti- 
mo :  o  sentimento  de  haver  acordado  .  vivo  ainda  , 
deste  sonho  febril  chamado  vida  ,  e  de  que  hoje 
ninguém  acorda  senão  depois  de  morrer. 

Sabeis  pois  o  que  é  c-Stc  despertar  de  poeta? 

K  o  ter  entrado  na  existência  com  um  coração 
que  trasborda  d'amor  sincero  e  puro  ])or  tudoquan- 
tii  o  rodèa,  e  ajuntarem-se  os  homens,  e  lançarem-lhe 
dentro  do  seu  vaso  d'innocencia  lodo  ,  fd',  t  peço- 
nha ,  e  dejiois  rirem-se  d'elle: 


K  o  ter  dado  ás  palavras  virtude,   amor  pátrio, 

e  gloria  uma  significação  profunda  ;  e  depois  de  ha- 
ver buscado  por  annos  a  realidade  delias  neste  mun- 
do ,  só  encontrar  ahi  —  hypocrisia  ,  cgoismo  ,  e  in- 
fâmia ; 

E  o  perceber  á  custa  de  amarguras  que  o  existir 
é  padecer,  o  pensar  descrer,  o  experimentar  des- 
cnganar-sc  ,  e  a  esperança  nas  cousas  da  terra  nma 
cruel  mentira  de  vãos  desejos,  um  fumo  ténue,  que 
ondea  em  horisonte  áquem  do  qual  está  assentada 
a  sepultura. 

Este  é  o  acordar  do  poeta.  Depois  disso,  nosabys- 
mos  da  sua  alma  só  ha  para  mandar  aos  lábios  nm 
sorriso  de  despreso  em  resposta  ás  palavras  menti- 
das dos  que  o  cercam,  ou  uma  voz  de  maldição 
desabridamente  sincera  para  julgar  as  acções  dos 
homens. 

É  então  que  para  elle  ha  unicamente  uma  vida 
real  —  a  íntima  ;  unicamente  uma  linguagem  intel- 
ligivel  —  a  do  bramido  domar  e  do  rugido  das  ven- 
tanias ;  unicamente  uma  convivência  não  travada  de 
perlidia  —  a  da  solidão. 

-■  n.    ■' 

Tal  era  eu  quando  me  assentei  sobre  as  fragas: 
e  a  rainha  alma  via  passar  diante  de  si  esta  geração 
vaidosa  e  má  ,  que  se  crè  grande  c  forte  ,  porque 
sem  horror  derrama  cm  luctas  civis  o  sangue  de 
seus  irmãos. 

E  o  meu  espirito  se  atirava  para  as  trevas  do  pas- 
sado. 

E  o  sopro  rijo  do  norte  me  alíagava  a  fronte  re- 
qucimada  pela  amargura  ,  c  a  memoria  me  conso- 
lava das  dissoluções  presentes  com  a  aspiração  sua- 
ve do  formoso  e  enérgico  viver  d'outrora. 

F,  o  meu  meditar  era  profundo  como  o  céu  que 
se  arquca  immovel  sobre  nossas  cabeças  ;  como  o 
oceano  ,  que  ,  firmando-se  em  pé  no  seu  leito  in- 
sondável ,  braceja  pelas  bahias  e  enseadas,  tentan- 
do esmigalhar  e  desfazer  os  continentes. 

E  cu  pude  enifim  chorar. 


Que  fora  a  vida  se  nella  não  houvera  lagrymas? 

O  Senhor  estende  o  seu  braço  pesado  de  maldi- 
ções sobre  um  povo  criminoso  :  o  pai  que  perdoara 
mil  vezes  couverte-se  em  juiz  terrível  ;  mas  ainda 
assim  a  Piedade  não  deixa  de  orar  junto  aos  degraus 
do  seu  throno. 

Porque  sua  irman  é  a  Esperança  ,  e  a  esperança 
nunca  morre  nos  céus.  De  la  ella  desce  ao  seio  dos 
maus  antes  que  sejam  precitos  : 

E  os  desgraçados  na  sua  miséria  conservam  sem- 
pre olhos  que  saibam  chorar. 

A  dór  mais  tremenda  do  espirito  quebrantam-na 
e  cntorpecem-na  as  lagrymas. 

O  Sempiterno  as  creou  quando  nossa  primeira 
mãi  nos  converteu  em  réprobos  :  ellas  servem  ,  por- 
ventura ,  ainda  de  algum  refrigério  lá  nas  trevas 
exteriores  ,  onde  ha  o  ranger  dos  dentes. 

Meu  Deus,  meu  Deus! — líemdito  seja  o  leu  no- 
UK-  porque  nos  deste  o  chorar. 

VI.  :, 

O  disco  esplendido  do  astro  do  dia  começa  a  sur- 
gir do  meio  dos  mares,  balouçando-se  tremulo  so- 
bre o  collear  das  ondas. 

Eu  não  te  amo,  oh  sol,  que  alagando  com  os 
turbilhões  dos  teus  raios  esta  terra  condemnada,  te 


o  PANORAMA. 


119 


assemelhas  ao  homem  cruel  que  vai  dar  uma  risa- 
da junt()  ao  leito  do  moribundo. 

K  porque  te  havia  de  amar  se  tu  és  o  inimigo  dos 
sonhos  da  imagiuaeão  ;  se  tu  nos  chamas  á  realida- 
de ,  c  a  realidade  é  Ião  triste? 

Pela  escuridão  da  noite  ,  nos  legares  ermos,  c  ;is 
horas  mortas  do  alto  silencio  .  a  phanlasia  humana 
é  mais  ardente  e  robusta. 

É  então  que  elladá  movimento  evida  aos  penhas- 
cos ,  voz  c  entendimento  ás  selvas ,  que  se  mcneam 
e  gemem  á  mercê  da  brisa  nocturna. 

É  então  que  ella  collige  as  snas  recordações  ;  une, 
parte,  transmuda  as  imagens  das  existências  que  viu 
passar  ante  si  ;  o  estampa  nas  sombras  que  a  rodeani 
um  universo  transitório,  mas  para  ella  real. 

E  é  bello  esse  mnndo  de  phantasmas  aéreos,  (lor 
entre  cujos  lábios  descorados  não  transpira  nem  per- 
júrio nem  dobrez  ,  e  a  cujos  olhos  sem  brilho  não 
assoma  o  rellexo  de  ânimos  prostituídos. 

Ahi  ha  o  repouso  ,  a  paz ,  e  a  esperança  ,  que 
desappareceram  da  terra  ;  porque  o  mundo  das  vi- 
sões cria-o  a  mente  pura  do  poeta  :  ella  dá  ser  e 
vulto  ao  que  já  é  só  ideal ;  c  o  passado  deixando 
cahir  o  seu  immenso  sudário ,  ergue-se  em  pé  ,  e 
pondo-se  ante  o  que  medita,  lhe  brada  —  «aqui  es- 
tou eu  1 1) 

E  este  o  compara  cora  o  presente  ,  e  rccíia  d' in- 
voluntário terror  : 

Porque  o  cadáver  que  se  aíevanta  do  pó  é  formo- 
so e  santo:  e  o  presente,  que  vive.  e  passa,  e  sor- 
ri ,  é  horrendo  e  maldito. 

E  o  poeta  atira-se  chorando  ao  seio  do  cadáver , 
e  diz-lhe  —  «escondc-me  tu  '.  » 

V.  lá  que  esta  alma  .  árida  como  a  urze  da  char- 
neca no  estio,  sente,  quando  ahi  se  abriga  ,  refres- 
ca-la um  como  orvalho  do  céu. 

A  ti ,  oh  promontório  escalvado  ,  cuja  fronte  nua 
varre  a  procella  ,  c  que  te  penduras  sobre  o  abys- 
mo  mysterioso  das  vagas  ;  a  ti  é  que  eu  hei-de  amar 

^«"^P^^'-  (Ã.  Herculano.) 


RorEiso  DE  D.  Joio  de  Casteo  em  1338. 

(Conclusão). 

Do  Prologo  SC  vè  claramente  que  os  fallados  0>»í- 
mentnrios  de  D.  João  de  Castro  não  são  obra  dif- 
ferente  dos  seus  Roteiros :  e  se  corrige  um  logar 
de  Jacinto  Freire  fL."  1.°  n.°  16]  ,  quando  aflirma 
que  D.  João  passou  a  primeira  vez  á  índia  roni 
praça  de  soldado ,  sendo  pejo  contrario  aqui  mui 
bem  expresso  que  ia  por  capitão  de  uma  náu  ;  o 
que  já  estava  advertido  e  emendado  nas  notas,  com 
que  ura  sábio  académico ,  c  preciarissimo  prelado 
enriqueceu  a  obra  de  Jacinto  Freire  na  edição  pu- 
blicada pela  Academia  em  lí^.3b. 

O  r.oteiro  começa  assim  :  —  «  sabbado  seis  dias 
«do  mez  d'abril  de  ío3S  nos  fizemos  á\e!Ia  de  i5cl- 
« Icm  ;  o  vento  era  de  lodo  calma,  mas  ajudando-nos 
«a  maré',  e  alguns  baleis,  que  nos  ião  rebocando, 
«fomos  surgir  entre  S.  Gião  e  Santa  Catharina. »  — 
E  acaba  cora  estas  palavras:  — «Quarta  feira  onze 
«de  setembro  até  horas  de  véspera  foi  o  venio  cal- 
«ma,  e  dahi  começou  a  viração  muito  bonança,  e 
«logo  nos  fizemos  á  vclla  ;  duas  horas  da  noite  sur- 
agimos  na  barra  de  Goa  ,  mais  por  a  bondade  de 
«Nosso  Senhor,  que  por  nossos  merecimentos,  arte, 
«e  saber;  onde  se  acabou  a  nossa  viagem,  e  este 
« livro.  —  Laus  l)co.  » 

O  quanto  D.  João  de  Castro  sabia  temperar  a  na- 


tural scccura  da  narração  de  observações  astronó- 
micas ,  e  das  dcscripções  cosmographicas  com  a 
amenidade  de  uma  escolhida  erudição  ,  já  será  pa- 
tente aos  que  tiverem  lido  o  Koleiro  do  Mar  roxo  ; 
c  receberá  nova  conlirmação  do  que  acerca  dos  dons 
archipelagos  ,  das  Canárias  ,  e  Cabo  Verde  ,  cscre- 
\cu  neste  nosso  Roteiro,  e  aqui  pomos,  por  nos 
parecer  que  não  será  leitura  ingrata. 

Descripçrw  das  ilhas  das  Canárias. 
Chamámos  Canárias  a  umas  ilhas  postas  no  mar 
atlântico  ,  em  a  altura  de  26  graus  até  28  graus  : 
correm-se  as  quatro  delias  mais  chegadas  a  terra 
lesnordeste  c  oessudoeste  ,  c  as  três  mais  ao  mar 
jazem  em  triangulo.  A  mais  próxima  a  terra  apar- 
tar-sc-ha  do  cabo  de  S.  Vicenle  ,  em  outro  tempo 
chamado  Sacro  promontório  ,  obra  de  160  léguas  , 
e  esta  se  chama  hoje  Lançarote  ,  e  a  mais  do  mar 
dista  do  mesmo  promontório  por  espaço  de  2-40  lé- 
guas ,  e  por  ilha  do  Ferro  hoje  este  dia  dos  ma- 
rcantes e  peregrinos  é  conhecida.  A  estas  ilhas  an- 
tigamente chamaram  bemaventuradas,  e  morada  dos 
deuses  ,  como  parece  em  Ptolomeu  ,  Plinio  ,  Pom- 
ponio  Mclla  ,  e  outros  gravíssimos  auctorcs  ,  mas 
todos  clles  escreveram  mui  confusamente  o  sitio , 
confrontação  ,  e  altura  delias.  Esta  foi  a  terra  mais 
Occidental,  que  chegou  á  noticia  dos  antigos,  e 
por  ella  lançou  Ptolomeu  o  meridiano  ,  a  que  cha- 
ma cero  ,  do  que  me  parece  que  nasceu  o  engano 
de  alguns  pilotos  cuidarem  que  na  paragem  destas 
ilhas  não  variam  as  agulhas  cousa  alguma.  E  pos- 
toque  seja  cousa  commum  a  todos  serem  estas  ilhas 
das  Canárias  as  bemaventuradas  ,  o  meu  parecer  é 
que  Ptolomeu  sentiu  oulra  cousa  ,  e  chamou  bem- 
aventuradas ás  seis  ilhas  do  Cabo  ^'erde  ,  que  es- 
tão mais  orientaes  de  todas.  A  rasão  disto  c  que 
pôz  seis  ilhas  bemaventuradas ,  que  é  o  numero 
destas ,  que  viu  ,  e  na  levação  do  polo  guardou 
muito  a  conformidade  e  semelhança,  porque  a  mais 
septenlrional  de  todas,  a  que  chama  Aprosyto, 
põe  em  altura  de  16  graus,  na  qual  altura  está  a 
ilha  do  Sal ,  e  á  mais  austral  das  bemaventuradas 
põe  em  dez  graus,  e  chama-lhe  Pinctuaria  ,  que 
per  rasão  da  altura  parece  ser  a  ilha  do  Fogo,  pos- 
toque  as  alturas  variem  Ires  graus;  c  assi  mesmo 
põe  Ptolomeu  estas  ilhas  bemaventuradas  debaixo 
de  um  meridiano  ,  como  jazem  parte  destas  seis 
ilhas  do  Cabo  \erdc.  E  se  esta  não  foi  a  tenção 
de  Ptolomeu  ,  as  suas  taboas  nesta  parte  vão  de  lo- 
do o  ponto  fora  de  rasão  ,  porque  as  Canárias  ,  e 
as  ilhas,  que  elle  chama  fortunadas,  se  bem  olhar- 
mos o  silio  ,  altura,  rota,  e  longura  ,  de  umas  e 
outras,  veremos  claro  não  poderem  as  bemaventu- 
radas ser  as  que  agora  chamámos  Canárias  :  e  po- 
rem de  todas  as  outras  escripturas  dos  cosmogra- 
phos  se  pude  facilmente  tirar  serem  as  Canárias  as 
ilhas  bemaventuradas  ,  e  somente  Ptolomeu  se  em- 
baraçar no  conhecimento  delias.  Estas  ilhas  das  Ca- 
nárias  foram  descobertas  e  conquistadas  no  tempo 

d'elrei  D.  Fernando  o  quinto  de  Casteila  

È  cousa  muito  para  notar  que  sendo  es- 
tas ilhas  tão  visinhas,  os  moradores  de  uma  não  ti- 
nham conhecimento  dos  que  viviam  na  outra.  Os 
canárcos  viviam  sem  casas;  mas  em  covas  e  chou- 
panas passavam  sua  vida  :  adoravam  um  só  deus ; 
tinham  linguagem,  que  elles  só  entendiam  :  por  ar- 
mas usavam  uns  paus  agudos;  é  gente  bellicosa  e 
solfredora  de  muito  trabalho  ;  correm  c  saltam  pe- 
las montanhas  e  logares  ásperos  como  a  outra  gen- 
te o  pôde  fazer  por  terra  chã  ;  e  assi  trepara  por  as 
rochas ,  como  cabras.  Estas  ilhas ,  postoque  cada 


120 


O  PANORAMA. 


nnia  dollas  tenha  nome  próprio,  todas  em  geral 
são  chamadas  as  Canárias ,  por  rasão  de  em  uma 
delias  nascerem  grandes  e  poderosos  cães,  como  se 
parece  em  1'Iinio  ,  livro  (>."  de  sua  Cosmographia  : 
a  terra  destas  ilhas  é  mui  abastada  de  toda  a  sorte 
de  mantimentos  e  gados,  os  ares  mui  sãos,  e  gran- 
demente temperados. 

Bcscripçuo  das  ilhas  do  Cabo  Verde. 

O  Cabo  Verde  ,  ao  que  posso  comprehcndcr  ,  c  o 
promontório,  a  que  Plínio  e  I'omponio  chamam  Hes- 
perionccras.  Estas  ilhas  são  as  insulas  Gorgonas , 
morada  dasMcduseas,  e  o  mar,  que  lava  estas 
terras ,  o  golíão  hesperio.  A  causa  de  isto  assi  ha- 
ver de  ser ,  são  as  palavras  de  Plinio  [livro  6.° 
cap.  31],  que  dizem  desta  maneira  =  deste  pro- 
montório se  começa  a  fronlaria  das  terras  a  virar 
.lo  occidentc  e  mar  atlântico  ,  e  direito  delle  estão 
as  ilhas  Gorgonas  ,  espaço  de  duas  jornadas  navc- 
gando  =  que  quer  dizer  ,  duas  singradiiras.  E  por 
quanto  as  seis  ilhas  do  Cabo  Aerde,  que  estão  mais 
orientaes  das  outras ,  distam  do  mesmo  Cabo  por 
70. .80  léguas,  qne  são  duas  singraduras  de  vento 
galerno,  a  que  Plinio  chama  jornadas ,  parece  qne 
fica  claro  o  Cabo  Verde  ser  o  promontório  Ilespe- 
rionceras ,  e  as  ilhas  ,  que  se  lhe  oppucm  ,  a  sa- 
ber ,  que  se  chamam  do  Cabo  A^erde  ,  insulas  Gor- 
gonas ,  morada  das  Meduseas.  E  faz  muito  a  este 
propósito  sabermos  que  das  Canárias,  ou  ilhas  bem- 
avcnturadas  ,  para  o  sul  não  ha  outras  ilhas  senão 
estas,  para  que  digamos  que  possam  ser  as  Gorgo- 
nas; nem  outro  promontório  mais  illustre  ,  que  es- 
te do  Cabo  A'erde,  e  que  con:  tanta  rasão  possa  ser 
o  llesperionceras.  Porem  se  houvermos  de  conje- 
cturar estas  conferencias  polias  taobas  de  Ptolomeu 
[taboa  3.^  da  Africa]  ,  olhando  á  altura  ,  c  longura 
do  promontório  llesperionceras  ,  parccer-nos-ha  ha- 
ve-lo  então  de  ser  a  ponta  da  serra  Leoa  ,  com  tan- 
to que  as  ilhas  do  Cabo  Verde  ,  ou  Gorgonas ,  se- 
jam as  fortunadas  ,  o  que  não  é  rasão  ,  porque  em 
tal  caso  as  nossas  alturas  e  longuras  se  conformam 
com  as  de  Ptolomeu  ,  as  quaes  alturas  e  longuras 
ficam  mui  differentes,  fazendo  das  Canárias  as  ilhas 
bemaventuradas,  como  é  justo,  e  opinião  commum, 
Assi  que  nesta  parte  não  devemos  estar  por  Ptolo- 
meu, nem  é  honesto  poder-sc  cuidar  que  estas  ilhas 
do  Cabo  Aerdc  sejam  as  fortunadas,  como  quer  que 
a  esterilidade  delias,  e  destemperança  do  ar  sejam 
de  todo  o  ponto  contrarias  ao  que  se  escreve  da 
fertilidade  e  suavíssimos  ventos  e  ares  das  fortuna- 
das ,  as  quaes  qualidades  se  acham  nas  Canárias. 
Destas  ilhas  do  Cabo  Verde  370  léguas  a  loeste 
passa  o  meridiano  ,  que  determina  a  conquista  e 
navegação  de  tudo  o  universo  entre  os  reis  de  Por- 
tugal e  Castella  ,  a  saber ,  180  graus  deste  meri- 
diano para  o  oriente  é  dos  reis  de  Portugal  ,  c  ou- 
tros 180  para  a  parle  do  occidente  dos  reis  de  Cas- 
tella. Esta  quantia  de  graus  ccaminho,  que  perten- 
ce a  Portugal  ,  até  o  dia  de  hoje  não  são  acabados 
de  navegar  ,  porque  as  armas  dos  portuguezcs  so- 
mente são  mostradas  aos  povos  da  China  e  Aloluco, 
ficando-lhe  ainda  muitos  caminhos  para  fazer  pelo 
oriente  dentro  ,  até  chegarem  ao  lim  e  termo  dos 
180  graus  ,  que  per  direito  lhes  pertence. 

Os  curiosos  de  contrastes  e  myslerios  não  deixa- 
rão de  observar  a  sorte  singular  destes  Roteiros  , 
cm  irem  sahindo  á  luz  na  ordem  inversa  da  sua 
composição. 

Que  é  feito  do  2."  Roteiro  da  cost»  da  índia  ,  de 


que  D.  João  de  Castro  falia  repetidas  vezes  no  de 
Goa  a  Diu  ,  que  c  o  1.°  daquella  costa? 

J.  H.  da  (Junha  Rivara. 


Curso  elementar  d' Ãgrieullura,  de  Mr.  Raspai I ,  tra- 
duzido e  annotado  pelo  Sr.  Dr.  A.  J.  de  Fifjueiredo 
e  Silva. —  Tratado  o.°  e  ultimo.  Economia  rural. 
Logo  que  se  annimciou  a  vulgarisação  desta  obra  , 
que  versa  sobre  tão  ponderosa  doutrina  ,  como  são 
os  preceitos  geraes  porque  se  governa  a  Agricultu- 
ra ,  tratámos  de  a  inculcar  aos  nossos  leitores.  Vi- 
de Panorama,  N.°  1(17  [de  1840].  Dos  primeiros 
tratados ,  a  começar  pelo  da  Lavoura  ,  dêmos  espe- 
cial noticia :  e  tivemos  o  prazer  de  ver  posto  em 
corrente  e  linipa  linguagem  portugueza  um  livro 
que  em  França  mereceu  notáveis  elogios.  E  incori- 
tcslavelmente  um  dos  méritos  do  nosso  Iraductor  o 
cuidado  que  lhe  mereceu  a  língua,  que  com  a  maior 
semrasão  desprezam  muitos,  que  para  ahi  trasladara 
obras  puramente  lillerarias  ,  com  tanto  menor  des- 
culpa quanto  é  sem  compararão  mais  fácil  a  sua 
tarefa  ,  não  tendo  que  atlender  a  terminologia  par- 
ticular ,  nem  á  concisão  c  perspicuidade  d'cstilo, 
que  em  obras  didácticas  são  requeridas  sem  prejuí- 
zo da  indispensável  clareza. 

De  todos  os  tratados,  este  da  Economia  rural  é 
o  de  mais  gera!  applicação,  quasi  que  não  precisa 
do  estudo  de  inducções  e  comparações  :  até  para 
facilitar  mais  o  seu  uso,  ajuntou-lhe  o  traductor 
notas  profícuas  ,  contendo  ,  entre  outros  objectos  ,  o 
methodo  simples  para  o  lavrador  formar  suas  con- 
tas ,  a  reducção  de  nossos  pczos  e  medidas  ás  uni- 
dades do  moderno  systema  francez  ;  no  corpo  da 
obra  ,  onde  convinha  ,  tinha  feito  as  reducções  á 
nossa  moeda.  —  .\brangc  o  tratado  —  1.°  o  q\ie  diz 
respeito  ás  habitações  agrícolas  ,  e  aos  apriscos  e 
dccommodações  dos  animacs  domésticos;  —  2.°  o 
que  é  concernente  aos  capitães  para  grangeio  de 
uma  fazenda,  e  á  sua  contabilidade; — 3."  quanto 
convém  saber-se  acerca  da  creação  dos  gados  em 
geral  e  em  especial ,  e  melhoramentos  das  raças  , 
sem  desprezar  algumas  noções  veterinárias.  —  \.° 
trata  do  mel,  dos  laclicinios ,  das  farinhas,  e  das 
bebidas  fermentadas  :  em  snmma  afora  muitas  cou- 
sas úteis ,  remata  com  excellentes  corollarios  d'e- 
conoinia  publica  e  rural,  que  aos  interessados  mui- 
to cumpre  estudar. 

Intenta  o  mesmo  Sr.  Dr.  Figueiredo  em  seguida 
a  este  curso  publicar  os^.Vnnaes  d'.^grirnllura=r 
por  quadernos  mensaes,  para  que  este  ramo  impor- 
tanlissimo  tenha  seu  particular  representante  em  a 
imprensa  portugueza,  como  já  os  teem  outras  scien- 
cias  ,  por  exemplo  —  as  medicas:  —  louvável  é  seu 
empenho  ,  e  por  isso  damos  em  substancia  o  seu 
programma.  —  Terá  pois  por  lim  —  «Instruir  os  la- 
vradores porluguezes  acerca  do  estado  actual  e  su- 
bsequentes progressos  da  Agricultura  nos  paizes  mais 
adiantados;  bem  como  sobre  o  que  nas  outras  artes 
e  sciencias  lhe  disser  immedialo  respeito.  —  Regis- 
tar quaesquer  descobertas ,  observações  e  ensaios 
feitos  no  nosso  paiz  ;  para  o  que  se  acceita  e  se 
agradece  a  collaboracão  de  todas  as  pessoas  compe- 
tentes.—  .\dvogar  os  interesses  da  classe  agrícola  , 
propondo,  discutindo  e  vulgarisando  (]uaesquor  al- 
vitres ,  que  possam  concorrer  para  o  augmento  de 
sua  prosperidade.  —  Publicar  as  noticias,  que  che- 
garem ao  conhecimento  da  redacção  ,  bem  como  to- 
dos os  actos  do  poder  executivo  ,  projectos  de  cor- 
tes &c.,  que  d'algnm  modo  vão  iuUuir  na  sorte  do 
lavrador  porluguez. « 


69 


o  PANORAaiA. 


121 


■1 


o  CA3TELI.O  SE  SANTIAGO  SE  CACEPI. 


A  MLLA  de  Santiago  de  Cacem  ,  na  província  do 
Aiemléjo  ,  c  iiispado  de  Béja  ,  eslá  situada  na  en- 
costa oriental  d'um  outeiro  em  cujo  cume  campeara 
as  ruinas  d'um  antigo  castelio.  Pela  posição  eleva- 
da em  que  está,  e  pela  solidez  e  rijeza  de  seus  nia- 
leriaes  .  mostra  ter  sido  o  dominador  do  paiz  cir- 
cumvisinho.  A  sua  cerca  ou  muralha  era  rodeada 
de  dez  torres,  de  que  só  existem  nove,  porque  uma 
foi  derrubada  era  1822  quando  se  edificou  a  fronta- 
ria  da  igreja  situada  em  um  dos  ângulos  do  sul. 
Destas  nove  torres,  cinco  são  redondas  e  quatro 
quadradas  ,  sendo  a  collocação  destas  ultimas  — 
duas  nas  frentes  de  sul  e  norte  ,  e  duas  nos  ângu- 
los do  poente.  Tem  no  centro  seu  alcarar  fortifica- 
do, sua  cisterna  espaçosa,  c  sua  torre  de  menagem 
[de  que  apenas  metade  está  em  pé].  O  desenho  pre- 
cedente mostra  o  lado  oriental :  devia  appresentar 
quatro  torres;  porem  a  igreja  occupa  ,  como  disse- 
mos, o  logar  da  primeira  da  esquerda. — A  sua  ori- 
gem perde-se  nas  sombras  dos  séculos.  Se  foi  fun- 
dação dos  fenícios  ,  dos  romanos  ,  dos  godos  ou  dos 
árabes,  quem  o  sabe? —  A  historia  nada  diz  a  este 
respeito,  e  apenas  os  monumentos  e  a  tradição  ele- 
vara sua  débil  voz. 

A  pouco  mais  d'uma  milha  ao  nascente  deste  cas- 
telio, sobre  outra  eminência,  junto  á  ermida  de 
S.  Braz  ,  se  vêem  os  restos  d'outro  forte  de  diver- 
sa construcção  ,  e  ao  parecer  mais  antigo.  Sendo 
prior  desta  matriz  Bonifácio  Gomes  de  Carvalho  , 
mandou  cm  1800  ,  por  ordem  do  Ex.""  bispo  de 
Beja  ,  D.  Fr.  Manuel  do  Cenáculo  ,  fazer  ahi  exca- 
vações:  o  resultado  foi  achar-se  uma  escada  de  pe- 
dra ,  que  Gnalisava  em  uma  casa  cuja  abobada  es- 
tava cabida.  —  Xcsta  mesma  escavação  se  acharam 
cinco  pedras  de  mármore  contendo  inscripções  ro- 
manas ,  funerárias,  que  se  lêem  perfeitamente,  al- 
guns penates  ,  e  uma  figura  da  divindade  protecto- 
ra dos  jardins;  o  que  o  Ex."""  Cenáculo  levou:  e 
um  pedaço  de  pedra  era  que  se  viara  distinctamen- 

te  as  lellra3  = /'or/a  Cicit Esta  pedra  dcsappa- 

receu  :   é  provável  que  esteja  sepultada  em  algum 

Abuij.  22—  1843. 


cabouco  ,  ou  que  o  marrão  a  reduzisse  a  estilhas. 
—  Na  parede  do  adro  do  hospital  está  encravada 
uma  pedra  quadrada,  cm  cuja  inscripção,  já  gasta, 
se  lè  ainda  ^^  Esculápio  Deo.=  Estes  e  outros  mo- 
numentos confirmam  ser  esta  villa  a  Mirobriga  dos 
antigos,  occupada  depois  pelos  romanos;  e  d'aqui 
se  pôde  coilígir  que  o  castelio  de  S.  Braz  [nome 
que  lhe  dão  por  estar  junto  á  ermida]  era  fundação 
deste  grande  povo,  visto  os  monumentos  que  ahi  se 
acharam  e  se  estão  achando  (Ij. 

A  fundação  de  Mirubriga  é  attribuida  aos  cyprios, 
no  domínio  dos  celtas  ,  se  acreditarmos  Manuel  de 
Faria  e  Sousa.  Eis  suas  palavras:  —  «Junto  á  la 
«villa  deCacen  fundo  esta  gente  [cyprios]  la  ciudad 
«  de  Mirobriga  :  verdadcro  lestimonio  son  de  su  as- 
ei siento  sus  vestígios.  Resulto  el  nombre  de  Ias  oOi- 
«cinas  de  fundir  metal  con  artificio  estremado,  pro- 
«prio  dcstos  fundadores,  que  por  ello  se  llamavan 
«Mirones.  La  primera  mítad  deste  nombre  junta  ai 
«otro  de  Briga  [que  es  fortaleza,  y  comun  á  casi  to- 
adas las  de  Espana]  hizo  cl  de  .Mirobriga,  qui  tam- 
«  bien  fué  celebre  por  las  excelentes  obras  ,  desta 
«calídad,  vistas  en  ella  :  y  conocida  por  el  culto 
«que  seguia  de  Vulcano  ,  Dios  de  lales  fabricas, 
«cuya  imagen  bien  esculpida  fué  hallada  cn  sus 
n  ruinas.  u 

Por  estas  palavras  se  vò  qual  foi  a  sua  origem. 
Os  romanos  occupando-a  depois,  ahi  deixaram  ves- 
tígios bem  evidentes  de  seu  domínio. 

Mas  quem  fundou  o  castelio  de  que  primeiro  fal- 
íamos? Será  obra  dos  fundadores  de  Mirobriga?  se- 
rá fundação  dos  romanos?  Não  o  sabemos. —  Só  po- 


( 1 )  No  anuo  de  1  841  snccecieii  que  andando  um  trabalha- 
dor apanhando  pedra  junio  das  ditas  ruinas,  descobriu  um 
tumule  de  cinco  palmos  em  quadro  .  ferhado  com  abobada 
d'alvenaria  :  dentro  continha  muitos  ossos  qua^i  desfeitos  , 
um  vasu  ,  á  maneira  de  garrafa,  de  vidro;  um  copo;  um 
anel  lie  prata  em  cuja  pedra  se  via  esculpida  uma  Osura 
acavallo  ;  uma  esj-ecie  de  chuço  ;  e  uma  moeda  de  bronze  , 
em  que  ainda  se  di>liuiuiam  as  letlras  —  S.  C  Achou  mais 
em  diversos  sities  jraude  quantidade  de  telha  etijollos:  sen- 
do estes  de  2  palmos  de  cumpr.  e  1  "^  de  larjç. 

2."  Seiue.  —  VoL.  II. 


122 


O   PANORAMA. 


' 


dêmos  saber  alguma  cousa  a  seu  respeito  do  rei- 
nado de  D.  Diniz  por  diante.  —  Ouramos  primeiro 
António  Coelho  Gasco ,  nas  suas  antiguidades  de 
Coimbra  —  c.  26. 

«Foi  a  esclarecida  princeza  D.  Balara  filha  do 
infante  Lascaro,  que  era  filho  de  Theodoro  Lascaro, 
filho  do  imperador  da  Grécia ,  Cario  João  Bataço 
(ou  Valace] ,  e  da  nobre  imperatriz  Ilerenc  ,  sua 
primeira  mulher.  Depois  da  morte  do  imperador 
succcdeu  em  seu  império  Theodoro  Lascaro  seu  fi- 
lho ,  c  por  seu  fallecimento  deixou  seus  filhos  em 
guarda  do  t\  ranno  Paleologo ,  que  barbaramente  os 
mandou  matar,  e  usurpou  aquelle  império;  por  es- 
ta causa  ,  esta  nobre  infonta  se  intitulava  filha  do 
imperador  dos  gregos  ;  veio  a  Aragão  reinando  el- 
rei  D.  Pedro,  trouxe  comsigo  duas  filhas  que  leve, 
sendo  casada  com  o  conde  de  Viulemillia,  e  deixou 
um  filho  era  Génova  ,  chamado  João  Lascaro  ,  que 
foi  conde  de  Vinlemillia.  As  filhas  se  chamavam  D. 
Violante ,  D.  Beatriz  da  Grécia  ,  e  D.  Balaça  ,  que 
•'•  a  de  que  escrevemos.  D.  Violante  casou  com  D. 
Pedro  ,  ueto  de  clrei  D.  Jaime  ,  de  que  houve  suc- 
cessão  ;  c  D.  Balara  veio  a  este  reino  de  Portiigal 
por  aia  da  rainha  Santa  Isabel ,  e  foi  com  a  rainha 
D.  Constança  por  sua  camareira-mór  a  Castella , 
quando  celebrou  as  bodas  em  Alcaaiz  com  D.  Fer- 
nando o  4.°,  rei  de  Castella  (2)  ,  e  ficou  por  tutora 
<ios  infantes  D.  Pedro  c  D.  João  ,  por  o  mandar  a 
rainha  D.  Constança,  que  falleceu  em  Sahagum  (3). 
Depois  a  infanta  D.  Balaça  (4)  ,  fazendo  á  sua  cus- 
ta uma  poderosa  armada  ,  e  com  muitos  soldados 
navegou  para  Sines  ,  onde  junto  delia  ha^ia  uma 
fortalecida  villa  ,  que  naquelles  dias  era  habitada 
de  mouros.  Junlaram-se  com  ella  muitos  cavallci- 
Tos  calhnlicos  dos  logares  circumvisinhos  ,  cavallei- 
rosamente  a  tomou  á  força  d'armas  em  um  domin- 
go ,  cujo  combate  foi  animosamente  combalido  ,  e 
houve  finezas  de  cavallaria ;  e  por  esta  bellicosa 
princeza  a  ganhar  dia  do  apostolo  Santiago  ,  e  ma- 
tar a  Casse  ,  rei  mouro  delia  ,  lhe  chamaram  a  es- 
to logar  dabi  adiante  —  Santiago  de  Cacem.» 

No  livro  das  Visitas  da  dita  villa  a  fl'.  io9  se 
acha  a  seguinte  memoria  feita  pelo  ditoEx.""  bispo 
de  Beja.  —  Depois  de  ter  faltado  de  umas  relíquias 
achadas  nas  ruinas  da  velha  matriz  ,  continua  di- 
zendo :  — 

<i  Povoação  antiga  c  decorada  com  fidalguia  e  no- 
breza ,  donde  derivara  ,  e  com  as  quaes  combinam 
famílias  nobilíssimas  do  reino:  villa  de  assento  le- 
vantado, sadio  ,  e  rico  das  melhores  producções  da 
terra:  villa  de  muita  religião  em  todas  as  idades, 
c  o  que  se  me  oflerece  cm  idéa  geral  ;  contrahindo 
a  oração  para  o  assumpto  particular  ,  foi  esta  villa 
distinguida  pela  infanta  da  Grécia  D.  Balaça.  — 
Neste  logar  cumpre  dizer  desta  insigne  matrona  , 
cuja  ascendência  ó  como  proponho.  —  Irene  cu  in- 
fanta Lascara  ,  era  filha  de  Iheodoro  Lascaro,  filho 
de  João  IJataço,  e  seu  successor  no  império  da  Gré- 
cia, por  haver  casado  João  lialaço,  príncipe  do  me- 
lhor daquelle  império  ,  com  Irene  ,  filha  do  outro 
Theodoro  Lascaro,  o  1.°  Esta  Irene,  filha  de  Theo- 
doro Lascaro,  o  2.°,  casou  em  Génova  com  o  conde 
de  Vinlemillia,  depois  que  Miguel  Paleologo,  tutor, 
lyrannicamenle  arrancou  os  olhos  ao  pupilo  João  , 
b'gilimo  herdeiro  ,  e  casou  a  Irene  Lascara  cora  o 
tlito  Vinlemillia.  Esta  Irene  Lascara  teve  de  Vinte- 
millia  Ires  filhas  ,   Violante  ,   Beatriz  da  Grécia  ,   e 

(3)  Gar.  liv.  l."!.  dcl.  com.  cap.  27. 
(.1)     S.irit.  1.  p.  liv.  5.  in  fin. 

(4)  Res.  lib.  4  il«  aut.  Lus,  -     - 


D.  Balaça  ;  e  com  ellas  veio  para  Aragão  ,  no  tem- 
po delrei  D.  Pedro,  pai  da  nossa  rainha  Santa  Isa- 
bel.—  Balaça  veio  a  Portugal  dama  da  rainha  San- 
ta, e  casou  cora  D.  Martim  Aniies  dos  de  Sevorosa. 

((Havendo  Balaça  creado  em  Portugal  D.  Cons- 
tança ,  filha  d'elrei  D.  Diniz  ,  sendo  sua  aia,  pas- 
sou com  ella  a  Caslella  por  sua  camareira-mór ;  e 
a  esta  mesma  Balaça  deu  elrei  D.  Fernando  a  crear 
seu  filho  Affonso  undécimo. —  Accrescenlara  os  his- 
toriadores castelhanos  e  jxirtuguezes  ,  que  I).  Cons- 
tança ,  filha  dos  reis  de  Portugal ,  e  mulher  d'elrci 
D.  Fernando  de  Caslella  ,  morrera  de  paixão ,  por 
lhe  tirarem  a  educação  de  seu  filho,  que  depois  foi 
rei  D.  Affonso  ,  e  do  poder  de  D.  Balaça  ,  que  o 
creava  ,  sendo  entregue  a  seu  avô ,  c  aos  infantes 
D.  Pedro  c  D.  João.  —  Os  desgostos  de  Balara  na 
tutoria  d'clrci  D.Atfonso,  a  fizeram  vir  a  Portugal; 
e  está  enterrada  na  sé  antiga  de  Coimbra,  e  os  pa- 
peis a  ella  pertencentes  se  guardam  no  cartório  da 
mesma  só ,  e  pôde  bem  ser  que  alguns  em  Alcoba- 
ça ,  porque  o  chronisla-mór  do  reino  ,  Fr.  Francis- 
co Brandão,  no  que  imprimiu,  promello  dizer  mui- 
tas mais  cousas  de  Balaça,  que  por  sua  morte  fica- 
ram reservadas. 

<(A  combinação  de  Balaça  com  esta  villa  de  San- 
tiago ,  aponta  Brandão  ;  porque  o  mestre  daquella 
Ordem  ,  D.  Diogo  Moniz  ,  fez  com  Balaça  a  troca 
pela  villa  dePunoias  e  Santiago  de  Cacem,  da  com- 
menda  e  rendas  do  logar  de  Villalar,  que  D.  Bala- 
ça tinha  cm  llespanha  ,  feita  a  cscriptura  em  1.302 
nnnos.  O  moli\o  das  doações  declara  elrei  D.  Fer- 
nando nas  pala\ras  que  copiou  Brandão  :  =  j'»!"  la 
bnena  crianza  que  ella  fizo  cm  la  dicha  llcina  D.  Cons- 
íaH3a.=  Balaça,  estando  senhora  do  terreno  de  San- 
tiago de  Cacem  ,  cuidou  em  ennobrccc-lo. 

((A  igreja  prometia  ser  obra  sua,  pelo  menos  em 
rer  Jificação  ;  pois  que  a  reclusão  das  lasquinhas  do 
Santo-Lenho,  segundo  as  maneiras  da  igreja  grega, 
em  relicário  de  [irata  ,  depositado  cm  columna  de 
mármore,  que  sustenlava  a  mesa  ou  altar,  assim  o 
desengana.  —  Estas  lasquinhas  seriam  tiradas  da 
grande  relíquia  do  Santo-Lenho  que  a  racsraa  Bala- 
ça deu  á  igreja  ['ój.  Era  fácil  cousa  ikc.  éíc.  [con- 
tinua fallando  da  roliquKij  ,  e  mais  abaixo  diz: 

((Comtudo  o  nome  de  Cassem  do  sitio  próximo  a 
Santiago,  é  árabe,  do  tempo  era  que  nellc  dominou 
aíiuella  nação. —  Revendo  eu  as  bibliolhecas  d'Her- 
belol  e  Casiri ,  c  outros  escriplos  com  a  geographia 
nubiense  ,  sim  acho  homens  doutos  ,  e  imperantes 
em  outros  paizes  com  o  nome  de  Cassem;  comtudo 
não  encontrei  algum  nestes  sítios ,  havendo-me  per- 
suadido que  a  povoação  Santiago  deve  este  nome  ao 
esforço  e  serviços  daquella  Ordem. 

Continua  fallando  das  relíquias,  e  mais  abaixo  diz  : 

(iPara  ser  abonada  esta  resolução  do  culto,  apon- 
to abaixo  as  doutrinas  c  auclores  que  podem  ser 
consultados.  —  Começando  pelas  espécies  históricas 
acerca  da  vida  c  acções  de  Balara  ,  veja-se  Surila 
Anuaes  de  Aragão  I^.  3.  c.  75.  L.  ii.  c.  105.  Mo- 
narchia  Lusitana  L.  18.  c.  38. 

"Esta  memoria  offercço  ikc.  «kc. 

(1  B('ja  em  12  de  Março  de  1799.  —  Fr.  Manuel 
bispo  tic  Itcja. » 

Copiámos  quasi  inteira  esta  memoria  ,  porqnc  é 
por  ella,  e  |)elos  monumentos  mencionados,  que  se 
pôde  saber  alguma  cousa   a  respeito   da  dita  villa. 


(5)  lista  relíquia  ,  descoberta  nos  entulhos  (l'ym  aliar 
arruinada  ifireja ,  i  niuilo  venerada  pelos  haljilanle.s  des- 
villa ,   e  a  cila  usam  recorrer  pur  ijcca£iu(^  de  cstereiií  e 


da 

la  V 

aturadas  sêccos. 


o  PANORA3IA. 


122 


Agora  em  quanto  aos  castellos ;  qual  dclles  senho- 
reava o  inoiiro  Cassem,  é  cousa  Ião  diflicil  d'ave- 
riguar  como  a  sua  origem.  Talvez  para  o  futuro  al- 
guma anlifiiialba  venha  resolver  este  problema  ,  e 
dar  mais  liu  Js  conjecturas  que  a  este  respeito  se 
formam. 

A.  de  M.  c  S. 


Hsíosi  c  costumes  singiiUircsf. 

Abobigenks  da  COLLMniA   (*). 

QcANDO  os  habitantes  do  velho  mundo  descobriram 
o  novo,  encontraram  nas  regiões,  que  hoje  conhece- 
mos debaixo  do  nome  de  Columbia  ,  duas  socieda- 
des de  indígenas,  perfeitamente  distinctas.  Compu- 
nha-se  a  primeira  d"iiidividuos  selvagens,  feros,  an- 
thropophagos  ,  habitadores  das  vastas  planícies  de 
Caracas,  Cumana  ,  d'Apure  e  dn  Orenoco.  Viviam 
esses  desgraçados  povos  do  fructos  agrestes,  da  pes- 
ca e  da  caça.  Na  estação  das  cheias  se  aglomeravam 
nas  ramadas  das  arvores ,  onde  momentaneamente 
estabeleciam  moradia ,  a  imitação  dos  macacos.  A 
dilliculdade  de  correspondência  os  dividia  em  uma 
quantidade  innumcravcl  do  pequenas  nações ,  difle- 
rindo  entro  si  era  costumes  e  linguagem. 

Os  homens  que  formavam  o  que  poderíamos  cha- 
mar segundo  grupo  ,  viviam  em  um  estado  adianta- 
do, comparável  ao  dos  antigos  egypcios.  Habitavam 
as  partes  montanhosas.  Foi  uma  das  ires  grandes 
nações  civilisadas  que  os  europeus  acharam  ,  espa- 
lhadas pelo  solo  americano,  a  dos  muyzcas  ou  moz- 
cas. 

Os  muyzcas  residiam  na  província  de  Cundina- 
marca.  As  chapadas  de  Bogotá  eram  o  centro  do  seu 
poder.  Só  as  tradições  fabulosas  deste  povo  basta- 
riam para  indicar  uma  sociedade  cuja  organisação 
remonta  á  mais  alta  antiguidade.  Já  seus  avoengos 
existiam  ,  dizem  elles,  e  a  lua  ainda  não  era  com- 
panheira da  terra.  \'essa  epocha  os  habitantes  das 
chapadas  de  Bogotá  viviam  como  barbaras.  Anda- 
ram nús,  ignoravam  a  arte  da  agricultura,  afimen- 
tavam-se  de  comidas  grosseiras,  c  achavani-sc,  n'u- 
ma  palavra,  no  estado  o  mais  abjecto  e  deplorável. 
De  repente  ,  um  ancião  apparecc  no  meio  d'clles; 
vinha  das  planícies  situadas  a  leste  da  cordilheira 
de  Chingosa.  Trazia  barbas  crescidas  e  vestidos , 
o  que  os  fez  suiipòr  que  pertenceria  a  raça  diííe- 
rente.  Esse  homem  tinha  três  nomes,  mas  o  de  ISn- 
chica  prevalesceu  entre  os  mui/zcas.  Foi  quem  lhes 
ensinou  a  cultivar  a  terra  ,  a  lavrar ,  a  semear ,  e 
a  tirar  da  colheita  todo  o  partido  que  a  industria 
de  um  povo  agrícola  irella  pude  achar.  Feito  isso 
ensinou-lhes  também  a  arte  de  se  vestirem  segundo 
a  differente  temperatura  das  estações  ;  a  de  edifica- 
rem moradas  solidas,  a  dcreunirem-se  para  viverem 
cm  sociedade,  soccorrerem-se  ,  e  ajudarcm-se  re- 
ciprocamente. Tantos  benefícios  lhe  haviam  angaria- 
do a  veneração  publica ,  e  nada  se  opporia  a  que 
elle  gozasse  d'uma  inteira  felicidade  ,  se  não  fosse 
a  malícia  de  Umjlkaca  sua  consorte.  Esta  malvada 
mulher  dedicou-se  aos  mais  abomináveis  sortilégios 
para  fazer  sahir  o  rio  Fanzha  do  seu  leito.  Então 
toda  a  planície  de  Bogotá  foi  destruída  pelas  aguas, 
a  maior  parte  dos  homens  eanimaes  pereceram  nes- 
se diluvio ,   c  o  resto  refugiou-se  para  o  cume   dos 

(*)  Viil.  a  reípeilo  da  Calumhia  o  que  dissemos  tratan- 
do deBolivar,  vol.  S."  pag.  348  e  355. 


mais  altos  montes.  ISochira  ,  indignado  ,  expelliu-a 
para  longe  da  terra  ,  o  que  quer  dizer  que  a  man- 
dou matar.  A  tradição  accrescenta  que  ella  se  me- 
lamorphoseou  em  lua  ,  gyrando  incessantemente  a 
roda  da  terra  para  expiar  seu  crime,  tíncliica  que- 
brou os  rochedos  que  fechavam  o  valle  do  lado  de 
Canoas,  c  de  Tequendama  ,  para  facilitar  o  escoa- 
mento das  aguas;  reuniu  os  homens  dispersos,  en- 
sinou-lhes o  culto  do  sol  ,  e  morre\i  cheio  (l'annos 
c  de  gloria. 

Faremos  aqui  observar  ,  que  esse  ultimo  acto  do 
poder  de  Bochica  explica,  no  pensamento  dos  muyz- 
cas ,  o  phenomeno  da  celebre  cascata  deJequenda- 
ma  ,  onde  se  precipitam  as  aguas  de  uma  altura  de 
mais  de  oitenta  braças. 

Esse  culto  do  sol  e  da  lua  entre  os  aborigines 
destas  regiões  é  também  atlestado  por  monumentos 
de  grande  interesse  para  a  historia.  Taes  são  os  ro- 
chedos de  granito  das  solidões  do  Orenoco,  em  Cay- 
cara.  Urbana,  perto  do  Rio-Branco,  e  doCassiquiá- 
re.  A^èem-se  ahi  esculpturas  de  alta  antiguidade, 
que  representam,  quasi  á  maneira  dos  egypcios,  as 
imagens  do  sol  e  da  lua,  assim  como  serpentes,  cro- 
codilos ,  tigres ,  e  diversos  instrumentos  ou  uteusi- 
lios  caseiros  ,  &c. 

Outros  monumentos  depõem  também  a  favor  da 
antiga  civilisação  dos  povos  achados  no  solo  da  Co- 
lumbia. Vc-se,  por  exemplo,  nos  arredores  deCuen- 
ca  ,  no  departamento  do  Assuay  [hoje  republica  do 
Equador]  os  magníficos  vestígios  da  antiga  calçada 
construída  pelos  Incas  ,  ou  soberanos  do  Perii  ,  c  a 
fortaleza  de  Oinar  ou  Ingapilca.  É  um  muro  do  mui 
grossas  pedras  de  cantaria  lavrada  ,  que  forma  um 
oval,  cujo  eixo  maior  tem  mais  de  IbO  palmos  de 
comprimento.  No  centro  acham-se  as  minas  de  uma 
pequena  casa,  cuja  idade  iguala  á  da  fortaleza.  Es- 
Ic  monumento  está  situado  cm  uma  assentada  sobre 
um  pequeno  morro.  —  Os  arredores  de  Lalacnnga  , 
sobre  a  vertente  do  Cotopaxi ,  são  igualmente  cele- 
bres pelos  restos  de  dois  monumentos  pcruvianos  : 
o  Panecillo  e  a  Casa  do  inca.  O  Pauecillo  ou  Pão 
d'Assucar,  c  ura  tumulo  cónico,  que  devia  ter  ser- 
vido de  sepultura  a  alguma  grande  personagem.  A 
casa  do  Inca  é  um  vasto  edificio  quadrado  onde 
ainda  se  vêem  quatro  grandes  portas  exteriores,  oi- 
to caraeras  ,  dezoito  nichos  distribuídos  syraetrica- 
mcntc  ,  e  alguns  cylindros  próprios  para  pendurar 
armas. 

O  governo  dos  muyzcas  era  \ima  mouarchia  abso- 
luta. A  aucloridadc  do  seu  chefe  supremo,  ozaque, 
não  era  moderada  senão  pela  do  supremo  ponlilice. 
O  primeiro  residia  em  Iroca  ,  o  segundo  cm  Ttmja. 
Havia  em  Samngoso  um  templo  do  sol  ou  de  Bochi- 
ca  ,  que  os  devotos  iam  visitar  em  peregrinação  ,  c 
onde  se  celebrava  ,  lodos  os  quinze  annos  ,  um  sa- 
crificio  humano.  A  victiraa  era  um  menino  tirado  á 
força  da  casa  paterna  era  uma  aldèa  do  paiz  conhe- 
cido hoje  pelo  nome  de  .S'.  Juan  de  los  Itatios.  Era 
o  guesa  ou  o  vagabundo  ,  isto  é  a  creatura  sem  asi- 
lo ;  e  entretanto  criavam-o  com  grande  cuidado  ate 
á  idade  de  15  annos.  Este  período  de  la  annos  for- 
ma a  indicção  chamada  dos  muyzcas. 

Então  o  guesa  era  conduzido  em  procissão  pelo 
suna,  nome  dado  ao  caminho  que  Bochica  havia  se- 
guido na  epocha  em  que  vivia  entre  os  homens ,  e 
chegava  assim  á  cohimna  que  servia  para  medir  as 
sombras  equinociaes.  Osxéques,  ou  sacerdotes  mas- 
carados á  maneira  dos  egypcios,  figuravam  o  sol, 
a  lua  ,  os  symbolos  do  bem  e  do  mal ,  os  grandes 
reptis  ,  as  aguas  ,  e  as  montanhas.   Chegando  á  ex- 


121 


O  PANORAMA. 


treraidade  do  suna  ,  a  victima  era  amarrada  a  uma 
pequena  coliimna  ,  e  morta  a  frechadas.  Os  xeques 
recolhiam-llic  o  sangue  em  vasos  sagrados,  c  arran- 
cavam-lhe  o  coração  para  o  oflcrcccr  ao  sol. 

Este  povo  lambem  é  celebre  pelo  uso  dos  hiero- 
glyphos  ,  e  pelo  seu  calendário  lunar,  gravado  so- 
bre uma  pedra  que  foi  descoberta  pelo  fim  do  16.° 
século.  Sabe-sc  alem  d'isso  que  havia  trcs  espécies 
d'annos,  e  por  conseguinte  Ires  calendários.  O  pri- 
meiro anno  era  ccclesiastico,  e  conipunha-sc  de  37 
luas  :  o  segundo  era  civil,  e  conlava-se  por  áOluas  ; 
o  terceiro  era  o  anno  rural  de  12  a  13  luas.  Entre 
os  muyzcas  as  luas  se  dividiam  cm  semanas  de  três 
dias. 

Depois  do  descobrimento  do  novo  mundo,  diversas 
nações  deste  continente  se  appressaram  a  enviar  pa- 
ra l;í  colónias.  Os  inglezes  c  francezes  povoaram 
as  costas ,  os  castelhanos  foram  aos  Andes  ,  e  até 
ousaram  subir  a  montanha.  Viram  na  Cundinamar- 
ca  ,  sobre  a  planície  de  Bogotá,  c  cm  Quito,  os 
vestígios  de  uma  antiga  civilisação,  c  trataram  com 
esses  povos  illustrados  ,  que  se  lhes  submetteram, 
para  formar  um  império  llorcscente.  Os  primeiros 
não  haviam  encontrado  senão  tribus  ferozes  c  hordas 
selvagens  que  fugiam  diante  dos  reccm-chegados,  e 
recusavam  a  civilisação  que  se  lhes  offerccia. 


MOYSES. 

O  M-Gisunon  do  poTo  hebreu,  Moysés  ,  era  um  is- 
raelita da  tribu  de  Levi ,  filho  de  Amram  e  Joche- 
bcd  (1)  ;  nasceu  no  Egypto  no  anno  de  1571  antes 
de  Chrislo ,  conforme  a  vulgar  cbronologia.  Sua 
mãi  para  o  esquivar  ao  infanticida  edicto  de  Pha- 
rao ,  o  expoz,  <:ontando  apenas  trez  mezes,  cm  uma 
cestinha  ou  berço  de  vimes  sobre  as  aguas  do  Ni- 
lo (2).  Ahi  o  encontrou'  uma  lilha  de  1'haraó  quan- 
do tomava  o  banho,  e  compadecida  o  salvou  e  man- 
dou criar  ,  dando-sc  a  circunislancia  de  ter  o  me- 
nino por  ama  sua  própria  mãi  ,  pelo  que  nunca  se 
pôde  dizer  se p, Trado  do  povo  escolhido.    Foi  cduca- 

(1)  Êxodo.  cnp.  3.°— 1.°— ;  eap.  6."  — 19. 

(2)  Ex.  cai),  a." 


do  na  corte  ,  onde  aprendeu  toda  a  sabedoria  dos 
egypcios  (3).  Na  idade  de  varão  concebeu  a  idéa 
de  resgatar  do  capliveiro  o  povo  seu  consanguíneo, 
e  presenciando  o  niáu  tratamento  que  um  egypcio 
dava  a  um  israelita,  matou  aquelle  ,  e  o  enterrou 
na  areia  :  querendo  porem  no  dia  immediato  conci- 
liar dois  hebreus  mal  avindos  ,  em  vez  de  acceita- 
ção  achou  repulsa,  e  lançaram-lhe  cm  rosto  a  mor- 
te do  egypcio  :  não  recebido  do  seu  povo  ,  e  teme- 
roso da  vingança  dos  estranhos,  fugiu  para  o  paiz 
dos  inadianilas  na  Arábia  Pétrea  ,  onde  pastoreou 
rebanhos  ,  e  tomou  por  mulher  a  filha  de  Jethro  , 
sacerdote  daquelle  paiz.  —  Guiando  os  gados  de 
seu  sogro  nos  descampados  do  Sinai,  appareceu-lhe 
Deus  no  monte  Horeb  ,  em  meio  da  çarça  incom- 
busla  ,  ordenando-lhe  que  voltasse  ao  Egypto  ,  e  se 
collocasse  á  testa  da  gente  de  Israel ,  servindo-lhe 
de  conductor  para  a  promettida  terra  de  Chanaan. 
Era  Moysés  tardo  no  fallar  ,  e  por  isso  lhe  deu  o 
Senhor  por  companheiro  o  irmão  delle  Aarão  ,  que 
se  explicava  bem.  Acceitou  Moysés  a  missão  por 
obediência,  e  pelo  flagello  das  dez  pragas  constran- 
geu o  Pharaó  ,  que  então  reinava  ,  a  consentir  na 
partida  dos  israelitas  ;  e  quando  aquelle  príncipe 
enfurecido  os  perseguiu  na  retirada  abriu  as  aguas 
do  mar-vermelho ,  que  depois  da  livre  passagem 
franqueada  ao  povo  dilecto  se  reuniram  afogando 
os  perseguidores.  —  Acampados  nas  raizes  do  Si- 
nai ,  o  Senhor  lhe  promulgou  a  lei  :  por  quatro  de- 
cennios  continuou  a  guia-los  na  dilatada  peregrina- 
ção, pelos  patriarchas  annunciada  ;  e  lendo  nomea- 
do a  Josué  por  seu  successor,  falleceu  de  120  an- 
nos  no  monte  Pisagh  ,  do  lado  oriental  do  Jordão , 
de  cuja  summidade  lhe  foi  permittido  avistar  a  Ter- 
ra da  promissão;  ficou  seu  corpo  no  paiz  deMoab, 
e  o  logar  exacto  da  sua  sepultura  permaneceu  des- 
conhecido :  como  selo  no  Deuteronomio,  ultimo  ca- 
pitulo ;  e  lambem  na  epistola  catholica  do  apostolo 
S.  Judas,  onde  o  v.  9.°  é  o  seguinte  : — Porem  Mi- 
chael  o  archanjo  ,  quando  contendia  cora  o  diabo  , 
e  tratava  do  corpo  de  Moysés  ,  não  ousou  a  contra 
elle  pronunciar  juizo  de  maldicção  ;  porem  só  dis- 
se :  o  Senhor  te  redargua. 

OPentateuco,  isto  é  os  cinco  primeiros  livros  bí- 
blicos, foi  escripto  por  Moysés,  menos  o  Si."  cap. 
do  Deuteronomio  ,  em  que  se  trata  da  morte  do 
mesmo  legislador  :  dcduz-se  isto  de  xim  grande  nu- 
mero de  passagens  dos  mesmos  livros;  alem  de  que 
a  harmonia  que  entre  elles  se  nota  suppfiera  o  mes- 
mo escriptor.  As  noticias  ,  que  encerram  cm  maté- 
rias históricas  e  geographicas  ,  especialmente  rela- 
tivas ao  Egypto  e  Arábia,  e  sobre  historia  natural  , 
artes  ,  e  scieucia  militar  ,  conformam  com  todas  as 
noções  que  pudemos  formar  do  estado  das  cousas 
nesse  periodo  remoto,  descriplas  como  era  de  es- 
perar de  ura  homem  que  fora  educado  na  corte 
cgypcia,  e  que  depois  se  empenhara  cm  dirigir  uma 
nação  inteira  por  meio  de  desertos  no  es()aço  de 
quarenta  annos.  A  linguagem  é  a  mais  antiga  he- 
braica que  se  conhece:  oeslilo  dos  cânticos  annun- 
cia  a  sublimidade  característica  da  primeira  poesia 
de  um  povo.  A  disposição  da  matéria  oITerece  in- 
terrupções ou  saltos  ,  ora  narrações  ,  ora  leis  e  re- 
gulamentos;  c  assim  havia  acontecer  a  quem  esCTe- 


(3)  I.ií-se  nos  Jclos  ilos  .i/wsl- —  cpp-  7."  do  v.  20  em 
diante — No  qii:il  tempo  nasceu  Moysés,  e  er,i  mui  formo- 
so, e  foi  criado  três  nie/.es  em  ca>a  de  seu  pai.  —  E  sendo 
engeilado,  a  filha  de  Pliaraó  o  tom' n  e  o  criou  para  si  por 
seu  fillio.  —  E  foi  M(ijs(!s  instruiilo  em  toda  a  sabedoria  do» 
Egjpcios;  e  era  poderoso  era  dilos  c  feitos. 


o  PANORAMA. 


12S 


"vessc  na  sitnarão  de  Moyscs :  a  selecção  dos  malc- 
riaes  parece  foila  na  inlcnrão  de  recordar  Indo  o 
que  era  immcdiataraente  conncxo  com  a  legislação, 
alvo  principal  de  Moysés  ;  e  vè-sc  que  as  leis  são 
repelidas,  algumas,  mais  de  uma  vez,  e  outras  mo- 
dificadas no  decurso  da  obra,  oque  manifesta  a  in- 
terpolação dos  períodos,  em  que  foram  lançadas  por 
•  ícripto:  ludo  indica  que  o  legislador  e  o  historia- 
'   r  eram  a  mesma  pessoa. 

O  Pcnlatei!co  traz  entre  nós  seu  nome  de  origem 
i;rcga  ,  porque  significa  cinco  volumes.  Era  a  i)arte 
do  Velho  Testamento ,  única  reconhecida  pelos  sa- 
maritanos ,  oppostos  por  nacionacs  preconceitos  c 
usos  aos  judeus  propriamente  ditos.  Os  samaritanos 
o  conservaram  ,  ao  que  elles  diziam  ,  intacto  das 
corrupções  das  copias  hehreas  :  o  caso  c  que  nos 
dois  textos  ha  respectivamente  diflerenças  notáveis. 
O  Pentateuco  samaritano  só  foi  liem  conhecido  na 
Europa,  depois  que  o  arcebispo  Tshcr  ePietro  delia 
Valle  obtiveram  genuínas  copias  eitrahidas  no  orien- 
te :  acha-se  na  Bíblia  Polyglotta  de  .Aloríno  ,  donde 
passou  para  a  de  Walton.  Deu-o  também  á  \u?  ví 
Dr.  Blayney  em  caracteres  hebreus  cm  Oxford,  an- 
no  de  1790.  O  original  é  cm  samaritano  ,  isto  é  a 
mais  antiga  cscriptura  hebraica. 


O  Bodo. 

11Í28. 

X. 

Generosidade. 

AroMPAXHA.vDO  O  conde  de  Trava,  Garcia  Bermudez 
altravessou  a  serie  dos  aposentos  que  precediam  o 
quarto  da  rainha  ,  até  uma  pequena  sala  immcdia- 
ta  á  antecâmara  real.  Apenas  os  dois  cavalleiros 
chegaram  alli ,  um  donzel  que  estava  era  pé  junto 
da  porta  fronteira  á  da  entrada  ,  afastando  um  rico 
panno  que  mascarava  esta  ,  e  curvando-se  respeito- 
samente, proferiu  algumas  palavras  que  os  dois  não 
perceberam.  Pouco  tardou  que  D.  Thereza  appare- 
cesse  :  trajava  ainda  o  vestuário  esplendido  com  que 
assistira  ao  banquete,  e  a  viveza  desacostumada  que 
conservava  no  olhar,  fazia  crer  que  a  irritação  do 
seu  espirito,  despertada  pelas  ultimas  novas  recebi- 
das do  arraial  do  infante  ,  não  havia  inteiramente 
cessado.  O  numeroso  séquito  das  suas  donas  e  don- 
zellas  não  a  acompanhava  ,  e  com  tremor  involun- 
tário Garcia  notou  que  Dulce  era  quem  unicamente 
a  seguia. 

.\penas  entrou  ,  a  rainha  encaminhou-se  para  os 
dois  ,  que  successivamente  lhe  beijaram  a  mão  ain- 
da formosa.  Depois  ,  dirigindo-se  a  Garcia  Bermu- 
dez ,  mas  volvendo  rapidamente  os  olhos  de  quando 
em  quando  para  o  conde  ,  lho  disse  :  — 

«Cavallciro,  leal  é  o  teu  coração;  o  teu  braço 
esforçado  ,  tua  condição  nobre  e  altiva  :  por  isso  te 
escolhi  para  alferes  da  minha  hoste.  Houve  ura  tem- 
po em  que  a  filha  d'Afi'onso  de  Leão  mal  soffrèra 
que  outra  voz  differente  da  sua  surgisse  no  meio 
do  silencio  dos  cavalleiros  de  Portugal  attentos  ao 
brado  de  accommetter.  Esse  tempo  já  lá  vai !  —  Ho- 
je não  sou  mais  que  pobre  viuva  a  quem  filho  in- 
grato quer  privar  da  herança  que  recebi  dos  reis 
de  quem  descendo.  Â  ti  e  ao  nobre  conde  de  Portu- 
gal c  Coimbra  pertence  o  salvar-mc.  Elle  será  o  teu 
primeiro  homem  d'armas,  e  como  elle  todos  os  que 
ainda  não  desmentiram  o  preito  que  me  devem  ,  te 
obedecerão.  Assim  começo  cu  a  provar-te  quanto 


preso  ura  dos  mais  illustres  cavalleiros  d'Hcspanha.» 

K  rainha  fez  uma  pausa.  O  alferes-m('ir  aprovei- 
tou aquella  interrupção  —  e  respondeu  visivelmente 
perturbado  :  — 

«De  mais,  senhora,  me  tendes  provado  a  vossa 
talvez  infundada  estima  :  maior  do  que  a  realidade 
me  tendes  feito  acreditar  o  esforço  do  meu  braço. 
Encontrando  por  vós  uma  honrada  morte  no  campo 
de  batalha  eu  só  poderei  mostrar  que  era  pela  leal- 
dade ,  se  não  digno  de  tantas  honras,  ao  menos  di- 
gno da  vossa  confiança.» 

«Não  faltemos  de  morte'  atalhou  D.  Thereza. 
Taes  pensamentos  são  de  mau  agouro  nas  vésperas 
de  combater.  A  tua  vida  me  é  cara  ,  e  brevemente 
ella  te  não  pertencerá  toda  a  ti.  A  mais  grata  re- 
compensa da  tua  lealdade,  alfcres-mór  de  Portugal, 
vais  té-la. » 

D.  Thereza  tomou  então  pela  mão  a  filha  de  D. 
Goraez  Nunez  ,  e  fazendo-a  adiantar  alguns  passos , 
proscguiu : — 

«Esta  c  a  recompensa  !» 

O  conde  que  preparara  aquella  scena,  dava  todos 
os  signaes  de  contentamento  aovêr  o  espanto  de  Gar- 
cia Bermudez,  que  recuara  ao  ouvir  similhantes  pa- 
lavras. Fernão  Peres  obtivera  com  grande  difDcul- 
dade  que  D.  Thereza  assim  constrangesse  Dulce  a 
dar  a  mão  d'esposa  a  um  homem  que  não  amava. 
Não  lhe  escondera  elle  que  isto  era  uma  violência  ; 
e  sem  o  desgraçado  predomínio  que  tinha  no  cora- 
ção da  rainha  as  suas  diligencias  sahiriara  baldadas. 
Por  isso  com  sobeja  rasão  exultava. 

['ma  pallidez  mortal  cobrira  o  rosto  de  Dulce  ao 
ouvir  as  palavras  da  sua  mãi  adoptiva  ,  que  lança- 
ra para  ella  o  olhar  que  o  algoz  noviço  volve  para 
a  sua  victima  antes  de  desfechar  o  golpe.  A  rainha 
sentiu-lhe  palpitar  o  terror  na  mão  que  tinha  aper- 
tada na  sua. 

«Oh  senhora!  —  murmurou  adonzella  alevantau- 
do  os  olhos  para  a  rainha,  com  uma  iuDexão  de  voz 
tão  meiga  ,  tão  tímida ,  e  tão  dolorosa  ,  que  a  bella 
infanta  sentiu  apertar-se-lhe  o  coração. 

«  Vamos  ,  formosa  Dulce  ,  —  interrompeu  Fernão 
Peres  ,  que  lèu  no  gesto  de  D.  Thereza  o  vacillar 
da  sua  alma  —  sè  comnosco  sincera.  São  mal  cabi- 
das aqui  palavras  fingidas  de  desamor. —  Certo  que 
tu  suspiravas  pelo  momento  em  que  podesses  cha- 
mar teu  um  dos  mais  gentis  e  esforçados  cavallei- 
ros d'Hespanha.  Esse  momento  chegou » 

"Mas,  ...  senhor  conde!» — ■interrompeu  balbu- 
ciando o  alfcres-mór. 

«Basta,  Garcia  Bermudez  —  proseguiu  o  conde, 
carregando  o  sobrolho. —  És  meu  amigo,  e  a  mui  cx- 
cellente  rainha  offerece-te  para  mulher  a  sua  filha 
adoptiva  ,  a  herdeira  do  nome  dos  Bravaes.  Xão  é 
digna  de  ti?  Não  és  tu  digno  delia  ?  Esta  união  prcn- 
der-te-ha  mais  ,  se  é  possível  ,  á  terra  que  tomaste 
por  pátria  —  e  eu  assim  t'o  ordeno.  Sei  que  era  es- 
se o  pensamento  contínuo  do  teu  espírito ,  o  alvo  a 
que  tendiam  todos  os  affcctos  do  teu  coração'?» 

O  leitor  conhece  já  o  caracter  de  Dulce  :  o  pri- 
meiro instante  de  uma  situação  arriscada  era  para 
ella  o  da  fraqueza  mulheril  —  mas  era  só  um  ins- 
tante. Jfcdiu  o  abysmo  que  se  lhe  abria  debaixo 
dos  pés...  Um  dia  mais,  e  estava  salva!  —  Era  ne- 
cessário resistir:  era  necessário  colligir  todas  as 
forças  da  sua  alma.  Trémula,  mas  com  energia,  ata- 
lhou Fernão  Peres:  — 

«Xão  ,  senhor  de  Trava  !  Aquella  que  foi  segun- 
da mãi  de  Dulce  ;  aquella  que  sempre  se  lhe  mos- 
trou generosa  e  indulgente  ;   a  rainha  de  Portuga! , 


126 


O  PANORAMA. 


tem  direito  a  dispor  da  sua  mão ;  tem  direito  a  re- 
calcar-me  no  fundo  d'alma  todos  os  aflectos ,  a  fa- 
zer-me  devorar  em  silencio  as  minhas  lagrymas.  Se 
não  podesse  dobrar-lhc  a  vontade ,  se  elía  fosse  in- 
flexível, obedeccr-lhc-hia ou  morreria  talvez! — 

Mas  vós ,  senhor  conde  ,  qual  c  vosso  titulo  para 
constranger  minha  vontade?  Fostes  vós  que  honras- 
tes o  solar  dos  Bravaes?  recebeu  D.  Gomez  Nunez 
algum  préstamo  de  vossa  mão?  Que  vale  que  vós 
digaes  :  —  ordcno-o  —  se  eu,  nobre,  e  livre,  se  eu, 
neta  dos  godos,  vos  responder; — não  será? 

A  rainha  olhava  altonita  para  Dulce  ,  cuja  palli- 
dez  c  voz  trémula  desmentia  a  resolução  das  suas 
palavras.  O  furor  do  conde  ,  cujo  animo  os  aconte- 
cimentos d'essc  dia  tinham  sobejamente  irritado, 
ouvindo  aqucllas  expressões ,  que  tocavam  as  raias 
do  despreso,  rebentou  subitamente.  Esqueceu-se  do 
fingido  respeito  que  em  toda  a  parte  mostrava  pela 
rainha  ,  e  principalmente  na  sua  presença  ,  para  só 
xe  lembrar  de  que  realmente  elle  era  o  verdadeiro 
senhor  nos  paços  de  Guimarães,  desde  que  D.  Thc- 
reza  lhe  entregara  corpo  e  alma. 

«Quem  c  que  ousa  aqui  dizer  —  não  será  —  ao 
conde  de  Portugal  e  Coimbra?  —  bradou  elle  com 
iim  rugido  feroz  que  fez  tremer  a  donzella.  — Quem 
ousa  nestes  paços  resistir  á  minha  vontade  ?  —  E 
depois  de  uma  breve  pausa,  proseguiu,  dando  uma 
risada  :  — Ah,  sois  vós  nobre  herdeira  dos  Bravaes  ! 
—  vós  a  que  não  tendes  nenhum  préstamo  de  mi- 
nhas mãos!  Sois  vós  a  que  recusais  obedecer-me  ? 

Depois  de  outra  vez  ficar  alguns  momentos  callado, 
continuou  em  tom  de  mofa  :  —  Podeis  ,  senhora  po- 
derosa ,  ordenar  que  soem  as  trombetas  e  timbales 
nos  vossos  castcllos  e  honras  ,  que  os  vossos  alcai- 
des juntem  os  cavalleiros,  os  vossos  villicos  os  bes- 
teiros, archeiros  e  fundibularios  ;  que  os  vossos  al- 
feres desenrolem  os  baisões  dos  Bravaes,  para  mar- 
charem contra  o  misero  conde  de  Portugal  em  lide 
d'homizio  !  Não  ,  senhor  de  Trava  !  ?  —  Sim  ,  vos 
digo  eu  ,  donzella  !  Sim  ,  que  é  forca  assim  seja  ! 
Dizei-me  só  por  muita  mercê  :  é  o  pudor  virginal 
quem  vos  obriga  a  regeitardcs  a  mão  de  tão  gentil 
tavalleiro?» 

Fernão  Peres  cruzou  os  braços,  e  cravou  na  don- 
zella o  seu  olhar  de  girifalte.  Dulce  atterrada  com 
as  palavras  e  gestos  daquelle  homem  orgulhoso ,  ti- 
nha cabido  de  joelhos  aos  pés  da  rainha,  e  apertan- 
do-lhe  com  as  mãos  convulsas  a  barra  do  epitogio , 
exclamou: — oh,  salvai-me  ,  salvai-mc  I  » 

Dolorosa  era  a  situação  de  D.  Thereza.  Amava 
sinceramente  Dulce  ;  mas  entre  ella  e  o  conde  ba- 
Tia  laços  que  não  podia  ,  que  não  quizera  quebrar. 
Aquellas  expressões  insolentes  de  Fernão  Peres  ,  a 
audácia  com  que  elle  substituía  a  própria  vontade 
á  sua  ,  tinham  uma  significação  terrivcl  ;  dcspcrta- 
Tam-lhe  recordações  e  remorsos  !  O  primeiro  im- 
pulso do  seu  espirito  altivo  foi  a  indignação  ;  mas 
a  vergonha  ,  talvez  o  temor ,  lhe  embargou  o  mani- 
festa-la. Abaixou  o  rosto  ,  e  duas  lagrymas  lhe  es- 
corregaram |)clas  faces. 

O  alferes-mór ,  piireni ,  a  fez  sahir  daquelle  esta- 
do violento. 

«Não  —  disse  elle  approximaudo-se  de  Dulce  : 
não  serás  minha  victima  ! — Garcia  Berraudez  nun- 
ca se  esquecerá  do  dever  de  cavallciro.  Seria  aca- 
so a  minha  vida  mais  risonha  possuindo-lc,  quando 

o  leu  c<iraçã() me  rcgeita  ?  —  Sè  livre! — Becu- 

so  a  posse  de  Dulce  ,  rainha  de  Portugal  '  » 

A  pobredonzella  largou  os  vestidos  de  D.  Thereza, 
e  pegando  na  mão  do  cavallciro  beijou-a  soluçando! 


«Eu  te  amarei  como  um  irmão!  —  exclamou  el- 
la.—Eu  te  adorarei  como  um  Deus.  Oh  !  tu  sabes 
que  só  assim... » 

«Silencio!  ..  interrompeu  nobremente  o  cavallci- 
ro; porque  percebeu  que  Dulce  na  agitação  em  que 
se  achava  ia  trahir-se  a  si  própria  ,  e  revelar  o  seu 
segredo. 

O  conde  continuava  a  contemplar  esta  scena  com 
os  braços  cruzados  e  com  um  riso  cruel  nos  lábios. 
Dirigindo-se  então  á  rainha  proseguiu  no  mesmo 
tom  de  ironia  amarga:  — 

"  Bera  SC  vê  ,  senhora  ,  que  o  vosso  alferes-mór 
foi  armado  cavalleiro  pelo  Cid  Ruy  Dias.  Guarda 
puras  as  tradições  daquelle  espelho  brilhante  de  to- 
das as  cavallarias.  Mas  eu  ,  fraco  mortal ,  que  não 
ponho  tão  alto  a  mira,  penso  mais  tranquillamente  ! 
Garcia  Bermudcz  I  —  Dulce  !  — ■  escutai  o  que  vos 
digo:  são  as  minhas  derradeiras  palavras.  Ámanhaã 
a  estas  horas  o  alferes-mór  de  Portugal  terá  uma  es- 
posa, e  esta  esposa  será  a  nobre  e  rica  herdeira  dos 
Bravaes. 

E  voltando-se  para  D.  Thereza  ajoelhou  ,  beijou- 
Ihe  a  mão  ,  e  disse  :  — 

n  Espero  que  a  mui  excellente  rainha  no  momen- 
to cm  que  vai  rccolher-se  á  sua  camará,  permittirá 
que  o  mais  leal  dos  seus  vassallos  se  retire  também 
para  não  perturbar  os  colloquios  de  dois  amantes 
na  véspera  do  seu  noivado.» 

A  inflexão  que  o  conde  dera  a  estas  ultimas  phra- 
ses  tinha  o  que  quer  que  era  atroz  e  diabólico.  D. 
Thereza  estremeceu  como  sacudida  por  uma  corren- 
te eléctrica  ,  e  atravessando  vagarosamente  a  sala 
dcsappareceu. 

Fernão  Peres  encaminhando-sc  para  o  lado  oppos- 
to  ,  ouviu  Garcia  Bermudcz  repetir  com  voz  lirme  ; 

«  Não  ;  tu  nunca  serás  minha  !  >> 

t)  conde  voltou  a  cabeça  sem  parar  ,  encolheu  os 
homhros  ,  c  sahiu. 

Dulce  ,  que  licára  na  postura  em  que  se  achava 
com  a  mão  do  alferes-mór  entre  as  suas  ,  e  a  fron- 
te pendida  sobre  ella,  alevantou  então  os  olhos,  c 
fitou-os  no  cavalleiro  :  o  rosto  deste  era  solemne  e 
triste  : 

«Estás  satisfeita,  Dulce?»  —  perguntou  o  arago- 
nez. 

«Tu  és  bom  c  generoso  ,  Garcia  !  — tu  és  bom  c 
generoso!  murmurou  a  filha  de  Gomez  Nunez.  — 
Poderá  cu  otYerecer-te  um  coração  ainda  virgem  ! 
Oh  ,  de  quanto  amor  eu  cercaria  os  teus  dias !  » 

«Basta!  —  interrompeu  o  cavallciro  perturbado. 
— -Que  te  importa  ,  anjo  do  céu  ,  se  ao  passares  na 
terra  os  raios  da  lua  luz  devoraram  uma  existência? 

Que  importa?! Oh  que  nesta  idade  de 

vida  c  de  esperanças  custa  muito  a  morrer  !» 

O  alferes-mór  levou  as  mãos  ao  rosto.  Era  por- 
ventura uma  lagryma  —  e  o  mancebo  cnvergonha- 
va-se  dessa  lagryma  neste  doloroso  momento  ;  por- 
que não  era  só  doloroso ,  mas  lambem  grave  e  so- 
lenme. 

«Oh  Garcia,  Garcia! — replicou  Dulce.  —  Qual 
gratidão  poderá  exceder  a  nossa  para  comligo?! 
Tu  me  salvaste  e  o  salvaste  a  elle.  Egas,  ser-te-ha 
amigo,  irmão,  servo » 

«Que  nome  sahiu  da  tua  boca?!  —  bradou  o  ara- 
gonez  com  olhos  subitamente  accesos  de  furor. — 
Irmão!  amigo!  Amaldiçoada  a  hora  em  que  entre 
nós  se  dissessem  essas  inferuaes  palavras  !  Cuidas  tu 
que  o  amar-te,  a  ponto  de  renegar  da  miidia  alma, 
da  minha  perpetua  felicidade  ,  é  não  o  detestar  a 
elle?....  Aqui  apertando  com  força  o  braço  de  Dul- 


o   PANORAaiA. 


127 


ce  c  fazcndo-a  erguer  ,  conliiniou  cora  toz  presa. 
Olha  ,  Dulce  ,  — amanhaã  ...  Mas  não  !  ...  Sc  a  sua 
Tida  for  assaz  lar^a  para  te  possuir  ...  c  essa  vida 
provará  talvez  que  ellc  é  \\m  covarde  ....  dizc-lhc 
que  se  algum  dia  duas  hostes  estiverem  freulc  a 
frente  cm  lide  ou  arrancada  ,  c  cu  for  cm  uma ,  e 
elle  n'outra  ,  que  fuja  do  sitio  onde  vir  esvoaçar  o 
lialsão  de  Garcia  Bermudcz  ....  Que  fuja  '.  —  porque 
ha  ahi  uma  espada  que  tem  sèdc  do  .seu  sangue  ; 
porque  ha  ahi  lábios  que  Ih'o  beijcriam  ;  porque 
bate  ahi  impetuoso  o  coração  de  um  seu  inimigo 
mortal !  —  K  dizc-lhc  mais  ...  que  este  inimigo  sou 
eu  I — dize-lhe  que  não  ha  sobre  a  terra  um  logar 
onde  caibam  clle  ,  cu  ,  e  o  meu  ódio  1 » 

Proferindo  estas  palavras  ,  o  gesto  do  cavalleiro 
estava  demudado.  .\fTastou  de  si  a  donzella  com 
violência,  c  dirigiu-se  rapidamente  á  poria  dos  apo- 
sentos exteriores. 

Um  gemido  de  profunda  agonia  bateu  ainda  nos 
seus  ouvidos  ao  atravessar  a  sala  immediala  ;  c  o 
desgraçado  fugiu,   .\^rasta^a-o  a  desesperação. 

Aquclle  gemido  partira  do  seio  de  Dulce  ,  que 
dera  em  terra  como  se  fora  morta. 

(Continuar-se-ha) . 
(A.  Herculano J. 


Go>TALo  Hehmigcez. 


Kio  basta  o  movimento,  nem  a  rapidez  das  acções. 
Não  basta  a  importância  dos  acontecimentos ,  nem 
o  brilho  e  a  transcendência  dos  factos  para  fazer 
desapparecer  do  quadro  de  uraa  epocha  histórica  a 
monotonia  ,  que  repellc  por  vezes  a  attenção  ,  can- 
çaudo  o  espirito  e  afrouxando  o  interesse  no  leitor. 
Proezas  da  mesma  espécie ,  façanhas  do  mesmo  gé- 
nero ,  sentimentos  sempre  os  mesmos,  c  produzindo 
casos  só  diversos  nos  Jogares  e  nos  tempos  ,  dão  a 
similhantes  quadros  uma  tinta  uniforme,  que  osdes- 
tiluc  da  graça  ,  e  ,  por  assim  dizer  ,  da  vida  ,  pró- 
prias para  alimentar  a  imaginação.  Se  isto  é  verda- 
de em  relação  á  historia  de  todas  as  epochas  ,  mais 
o  6  ainda  na  historia  dos  povos  semibarbaros  ,  do- 
minados por  um  sentimento  único,  empenhados  u'um 
esforço  sempre  o  mesmo,  e  appresentando,  por  con- 
sequência, a  cada  passo,  caracteres  similhantes,  cs- 
timuios  idênticos,  eresullados  sensivelmente  unifor- 
mes. O  espirito  ,  na  presença  de  taes  quadros ,  ad- 
mira por  vezes  o  complexo  das  imagens  ,  attingc 
n'um  momento  a  vastidão  dos  resultados  ,  mas  des- 
cendo aos  proraenores  ,  e  achando  em  todos  clles 
uma  physionomia  commum  ,  não  tarda  em  experi- 
mentar tédio  neste  exame  ,  e  anhella  por  cuconírar 
uma  fórraa,  uma  gradação  de  còr  diversa  que  o  rea- 
nime, .^contcce-lhe  aquillo  mesmo  que  ao  viajante 
nas  planicies.  Bclla  ,  e  por  vezes  sublime  ,  c  a  im- 
pressão primeira  !  A  vastidão  ,  a  regularidade  im- 
põem um  momento  pela  sua  grandeza  ;  mas  bem  de- 
pressa a  vista  fatigada  perscruta,  com  uma  espécie 
de  impaciência,  aborda  illimitada  dohorisonte,  em 
busca  de  um  cume,  de  uma  protuberância,  de  uma 
saliência  angulosa,  que  corte,  que  interrompa  a  sua 
acabrunhadora  uniformidade.  Ivo  momento  env  que 
este  objecto  distincto  apparece  .  a  attenção  lixa-se 
sobre  elle  :  a  imaginação  presta-lhe  atavios,  que  as 
mais  das  vezes  clle  não  possue,  e  reagindo  sobre  os 
órgãos,  faz  vèr  gracioso  e  bello,  nestas  circumstan- 
cias,  o  mesmo  objecto  que  em  outras  parecera  vul- 
gar ,  e  sobre  o  qual  a  nisla  houvera  passado  inat- 
tenta. 


liaras  batalhas,  amiudados  c  quasi  contínuos  coín- 
batcs  entre  chrislãos  c  mouros  r  assédios,  surprczas, 
tomadas  c  retomadas  de  torres  e  de  caslellos  :  atre- 
vimentos c  arrojos  de  audácia  ,  de  tenacidade  e  de 
perseverança  ,  nma  e  muitas  vezes  repetidos  ,  nas 
terras  montanhosas  de  entre  Minho  e  Douro,  de  en- 
tre Douro  e  Tejo  ,  ou  nas  planicies  elevadas  de  en- 
tre Tejo  c  (luadiana  ,  formam  em  geral  o  quadro  , 
sobremaneira  interessante  ,  pelos  seus  resultados  , 
I)cla  sua  importância  intrinseca,  mas  até  certo  ponto 
monótono  ,  da  vida  c  feitos  do  fundador  da  nionar- 
chia  porlugueza.  Alguns  factos,  porem,  destacados 
da  tinta  commum,  ornados  d'um  colorido  c  de  ata- 
vios d'outra  espécie ,  c  mais  análogos  a  outras  ida- 
des ,  surgem  ,  como  adornos  vivificantes  deste  qua- 
dro ,  c  sobre  clles  é  por  certo  grato  á  imaginação 
fixar-se  ,  e  licito  á  penna  chamar  por  um  momento 
a  attenção  dos  leitores. 

Um  homem,  menos  rude  que  os  seus  companhei- 
ros, por  isso  mesmo  que  ao  valor  c  ás  forças  de  um 
Mendes  da  Maia,  ao  génio  destemido  de  ura  Giral- 
do  ,  e  de  tantos  varões  fortes  daquella  idade  ,  unia 
o  fogo  do  cerarão  ,  a  amenidade  de  espirito  ,  que  , 
em  epochas  mais  civilisadas  ,  tanto  prenderam  as 
musas  á  nossa  terra ;  Gonçalo  Hermiguez  ,  a  quem 
seu  braço  ganhara  o  appellido  de  Terror  dos  mou- 
ros ,  brilhava  na  corte  ,  ou  antes  nos  arraiaes  d'Af- 
fonso  Henriquez.  Precioso  seria  se  á  mão  deslructo-^ 
ra  do  tempo  houvessem  escapado  esses  primeiros 
gorgeios  do  canto  nacional ,  esse  accento  ,  essa  me- 
lodia, por  certo  então  novíssima  para  os  nossos  echos, 
e  talvez  mais  familiar  ainda  ,  naquella  epocha  ,  aos 
agarenos  ,  já  então  degenerados  ,  do  que  a  seus  ru- 
des vencedores.  Achar-se-hiam  alli ,  sem  duvida  , 
modelos  da  dicção  a  mais  polida  daquelles  tempos  : 
costumes  e  imagens  que  ,  por  assim  dizer  ,  nos  fa- 
riam assistir  ao  viver  c  sentir  usual  daquellas  eras. 
Tudo  ,  porem  ,  consumiu  o  tempo  :  tudo  se  perdeu 
na  névoa  inseparável  daquellas  idades  rudes,  e  de 
toda  a  poesia  d'Hermiguez  só  nos  resta  a  parte  emi- 
nentemente poética  da  sua  historia.  Não  a  procura- 
remos appreseníar  alterada  ,  não  lhe  ajuntaremos 
atavios  estranhos  ,  dcixar-lhe-heraos  as  suas  cores  , 
a  sua  simplicidade  |>roprias,  porque  o  contrário  se- 
ria, cm  quanto  a  nós,  retocar  com  pincel  grosseiro 
o  quadro  original,  perlendendo  abrilhantar  com  tin- 
ta pretenciosa  a  singella  e  antiga  luz  do  painel  pri-> 
meiro. 

Em  um  dos  curtos  inlcrvallos,  que  a  guerra  con- 
cedia raras  vezes  ao  fundador  da  monarchia,  inter- 
vallos  mais  depressa  empregados  em  preparar  os 
meios  de  levar  avante  novas  emprczas  da  que  em 
descançar  de  fadigas  já  passadas  ,  o  filho  de  Her- 
migo  Gonçalves  [que  encontrara  a  morte  na  batalha 
de  Ourique]  desejoso  de  accrescentar  o  nome  que 
entre  os  seus  já  possuia,  passou-se  com  alguns  con- 
terrâneos ao  sul  do  Tejo  ,  cora  o  projecto  de  arran- 
car aos  mouros,  e  de  entregar  a  seu  rei  e  senhor, 
algum  desses  castellos ,  núcleo  c  refugio  do  poder 
dos  contrários.  Consta-nos  que  a  sua  attenção  se  fi- 
xara sobre  o  castello  de  Almada,  sobranceiro  ao 
Tejo  ,  logar  demasiado  conhecido  para  que  delle 
juntemos  uma  descripção  prolixa.  A  força  com  que 
os  sarracenos  occupavam  a  praça  não  permittia  a 
Hermiguez,  c  á  pouca  gente  de  seu  mando,  leva-la 
á  força  descoberta,  o  que  resolveu  o  soldado  a  ten- 
tar apoderar-se  delia  por  ciladií.  Talvez  ao  desejo 
de  mais  illuslrar  seu  nome,  accrescesse  na  alma  de 
Hermiguez  o  intuito,  não  menos  natural,  de  vingar 
a  cada  instante,  no  sangue  dos  infiéis,  o  sangue  da 


128 


O   PANORAJ>IA. 


pai  veitido  na  grande  batalha.  É  mais  (]iio  provável 
que  n'ii[ua  alma  enérgica,  sensível  e  ardcnle  qual 
a  de  Hermiguez,  mais  de  uma  paixão,  mais  de  um 
sentimento  obrassem  a  um  tempo  ,  c  o  determinas- 
sem a  saliir  das  sendas  vulgares. 

Seja  como  for,  o  soldado,  conhecedor  dos  usos  e 
costumes  dos  seus  contrários,  soube  a[)roveita-los 
no  intuito  meramente  militar  ,  que  o  conduzia  ante 
Almada  ;  mal  cuidando  que,  na  occasião  em  que  só 
buscava  um  laurel  para  a  coroa  de  soldado  ,  enla- 
çaria nella  o  myrto  do  amor,  e  accrescentaria  mais 
uma  corda  á  lyra  suave,  desgraçadamente  perdida, 
mas  cujos  sons  ouviam  com  deleite  os  seus  rudes 
companheiros. 

Costumavam  os  mouros  ,  na  epocha  do  estio  ,  e 
particularmente  no  dia  de  junho  em  que  a  igreja 
celebra  a  festa  do  líaptista  ,  pôr  de  parte  os  traba- 
lhos, c  fadigas  ordinárias  da  vida  ;  c  joviaes,  ao  mo- 
do do  seu  tempo -e  costumes,  sahir  ao  campo  e  en- 
tregar-se  á  folgança  de  seus  usos.  Alli  gozavam,  ou 
dispersos  ou  reunidos,  segundo  o  [ledia  a  inclinação 
de  cada  um  .  a  viração  fresca  das  primeiras  horas 
do  dia,  tão  grata  no  estio  aos  habitantes  dos  climas 
meridionaes  ,  esse  ar  matutino  das  praias  do  Tejo  , 
mais  depressa  morno  do  que  frio  ,  e  que  ,  soprando 
da  parte  do  oceano  ,  precede  a  hora  em  que  o  nor- 
te rijo  e  fresco  vem  deslisar  as  aguas  do  rio  formo- 
so, na  parte  onde  se  confundem  com  as  dos  mares, 
entre  as  alturas  fronteiras  de  Lisboa  e  Almada. 

A  segurança,  a  paz,  a  tranquillidade  e  gozo,  a 
alegria  e  a  dissipação  que,  quacsqucr  que  sejam  os 
costumes  e  iudole  dos  povos  ,  quaesquer  que  sejam 
as  formas  que  lhes  dè  o  progresso  da  civilisação  , 
são  sempre  acompanhadas  do  desleixo  ,  do  abando- 
no e  carência  de  outros  cuidados  ,  entretinham  os 
mouros  de  um  e  de  outro  sexo  ,  contemplando  ,  ca- 
da um  a  seu  geito ,  as  límpidas  aguas  do  rio ,  em 
que  se  redectiam  a  margem  escarpada  ,  as  cristas 
distantes  das  montanhas  do  norte  ,  e  os  cumes  me- 
ridionaes da  serrania  da  Arrábida  ,  descendo  pouco 
a  pouco  ao  mar,  até  perdcr-se  nas  ondas  no  ca- 
bo extremo  entre  a  foz  do  Tejo  e  a  embocadura  do 
Sado. 

De  repente  turva  a  alegria  o  grito  tão  conhecido 
da  guerra.  Brilham  de  súbito  as  espadas  de  Hermi- 
guez e  dos  companheiros.  Velhos  ,  homens  ,  man- 
cebos ,  matronas  e  donzellas  precipitam-se  para  as 
portas  do  castello.  Buscam  refngio  no  interior  das 
muralhas.  O  filho  robusto  ampara  na  fuga  o  pai  já 
provecto  e  pezado  :  a  mãi  carinhosa  corre,  apertan- 
do contra  o  peito  o  fructo  novel  de  suas  entranhas  , 
em  quanto  arraslra  outro  ,  quasi  pendente  da  mão 
que  treme,  .\quella  clama  pelo  esposo  que  perdera: 
aquelle  pela  amante  que  lhe  escapara.  A  privação 
das  armas  torna  impraticável  a  resistência.  Hermi- 
guez carrega  sobre  os  fugitivos  ,  irapclliudo-os  ante 
si ,  mais  com  os  clamores  do  que  com  os  golpes  ; 
porque  repugnara  a  peito  tão  generoso  empregar  for- 
ça contra  a  fraqueza;  nem  lhe  deslembra  a  lei  fun- 
damental de  cavalleiros,  que  anathematiz.lra  com  a 
infâmia  a  espada  que  manchara  sangue  feminil. 

O  tropel  fugitivo  procura  debalde  recolher-sc  aos 
muros.  O  temor  c  o  susto  calam  o  scntimeulo,  tor- 
nando egoista  a  turba  escapada,  recham-sc  as  por- 
tas da  fortaleza  ,  negando  toda  a  esperança  de  re- 
fugio aos  que  de  fora  (içaram.  Cessa  desde  então  o 
clamor  dos  vencedores.  l'ra  silencio  profundo  ,  si- 
lencio como  o  de  morte,  exprime  o  desalento  e  pa- 
ralysia  dos  vencidos.  Kntregam-sc  sem  resistência 
ao  captiveiro  ,   e  vão  ser  conduzidos  peio  cbristão 


triumphantc  ao  monarcha  que  o  aguarda  nos  muros 
de  Santarém. 

1'orcm  um  cavalleiro  armado  apparece  de  súbito 
no  meio  da  turba.  Ninguém  viu  donde  sahira  ,  nin- 
guém sabe  a  intenção  que  o  guia.  Chamejam  fogo 
os  seus  olhos,  rellecte  o  sol  o  gume  polido  do  seu 
alfange.  Apparecer  ,  vibrar  a  espada  como  um  re- 
lâmpago ,  arrancar  aos  vencedores  a  mais  formosa 
das  captivas ,  monta-la  nas  ancas  do  ginete  coberto 
de  espuma ,  fexar  esporas  e  partir  como  o  raio  ,  é 
mais  breve  de  executar  que  de  dizer-se.  Mas  um 
trovão  responde  a  outro  trovão  :  mas  um  corisco  se- 
gue a  outro  corisco  :  Hermiguez  voa  sobre  o  mou- 
ro :  chocara-se  os  cavallos  :  cruzam-se  as  espadas  , 
e  o  campeão  da  cruz  recolhe ,  no  mesmo  instante  , 
a  victoria  e  a  preza  (*j. 

Assim  cahiu  ,  ou  antes  ,  assim  teio  aos  amantes 
braços  de  Hermiguez  a  suave,  a  formosíssima  Oria- 
na.  Os  rendimentos  do  cavalleiro  ,  a  magia  suave 
da  expressão  do  poeta  ,  o  influxo  divino  ,  trajando  , 
nesta  circumstancia  rara  ,  em  vez  das  asperiuadcs  , 
com  que  por  vezes  se  manifesta,  todas  as  galas,  to- 
da fragrância  e  primor  das  flores  terrenas,  obraram 
na  alma  sensível  da  gentil  agarena.  As  cândidas  ves- 
tes baptismacs  ,  graciosamente  unidas  com  a  alvura 
do  véu  das  virgens,  com  a  cândida  assucena  da  mo- 
déstia pudibunda  ,  acompanharam  ao  altar  de  hy- 
menco  a  tríplice  captiva.  Foi  ella  as  delicias  do 
scnsivcl  Hermiguez  ,  foi  cila  o  objecto  predilecto 
do  seu  canto.  Aos  echos  das  montanhas  portuguczas 
ensinou  o  primeiro  cantor  o  suave  nome  de  Oriana, 
e  quando  ,  depois  que  a  morte  lh'a  arrancara  ,  se 
separou  do  mundo  ,  votando-se  ã  piedade  e  ao  reti- 
ro ,  por  vezes  lhe  ouviram  as  frescas  aguas  do  Na- 
bão ,  em  que  merencório  fixava  os  olhos  arrazados 
de  pranto  [que  expressivo  é  o  pranto  da  saudade 
nos  olhos  do  soldado  I  ]  ouviram-lhc,  digo,  as  aguas 
e  as  margens  da  corrente  esse  nome  tão  caro  da  sua 
metade  ,  da  sua  inspiração  ,  da  sua  musa  ,  cortar- 
Ihc  de  quíindo  em  quando  os  últimos  acccntos  de 
cysne  moribundo,  que  votara  á  devoção,  á  peniten- 
cia, e  não  menos  á  saudade  I 

Fernando  Luiz  Mousinho  de  Albuquerque. 


O  penhasco  que  halancéa.  —  Junto  a  Castres  no 
departamento  franccz  dito  do  Tarn  existe  um  enor- 
me volume  de  pedra  ,  que  terá  360  pés  cúbicos  c 
o  peso  de  COO  quintaes;  é  de  forma  irregular,  po- 
rem mais  sirailhante  á  de  ura  ovo  aprumado  sobre 
uma  das  extremidades;  está  postado  á  borda  d'um 
grandíssimo  rochedo  na  ladeira  de  uma  eminência. 
Por  mui  avultada  que  pareça  mole  tamanha,  saiba- 
se  que  basta  simplesmente  a  força  de  um  homcnj 
para  lhe  incutir  certo  movimento  vibratório  ;  e  re- 
cebendo o  primeiro  balanço  ,  o  repete  sensivelmen- 
te por  seis  ou  sete  vezes.  Ousaram  presumir  alguns 
que  este  penhasco,  ao  qual  de  algum  modo  pode- 
mos chamar  oscillatorio,  foi  assim  posto  em  equilí- 
brio sobre  o  que  lhe  serve  de  base  por  trabalho  c 
industria  humana  ;  c  accrescenlaram  que  seria  al- 
guma das  celebradas  pedras  druidicas,  symbolo  da 
antiga  religião  das  Gallias  em  tempos  bárbaros. 
Não  é  o  único  ,  que  assim  balancèa  ;  outros  se  tem 
descoberto  com  a  mesma  e  grandemente  nutave! 
circumstancia  ;  é  porem  de  todos  c  sem  compara- 
ção o  mais  volumoso. 


(•)     Temos  em  metro,   no  estilo  <le  xác.ira ,   este   f.acto 
roíuanceajo  por  outra  i)eiina.  ViJ.  o  n."  44  desta S.*  Serie. 


70 


o  PANORAMA. 


129 


AS  MANUCOSIAXAS  OU  AVES  DO  PARAÍSO. 


A  míTORU  das  bellissimas  manucoriiatas ,  mais  ge- 
ralmente denominadas  =  ares  rfo  Paraiso^=  (oi  por 
muito  tempo,  desde  que  na  Europa  as  conheceram, 
um  contexto  de  fabulas  e  absurdos.  Disse-se  que  a 
fêmea  fazia  a  postura  voando ;  que  não  tinha  per- 
nas, pendurando-se  pelos  dois  compridos  filamentos 
da  cauda  nos  ramos  d'arvores  onde  dormia;  que  se 
alimentava  puramente  do  orvalho  celeste  ;  e  só  vi- 
nha á  terra   ao  cahir  morta.   Não  admira  que  com 

Abril  29—1843. 


taes  e  tão  estupendos  allributos  lhe  dessem  por  ac- 
crescimo  a  prerogaliva  d'aninharem  noParaiso  ter- 
real, único  logar  donde  sabiam,  segundo  os  crédu- 
los affirmavam.  Todas  estas  ficções  estão  hoje  des- 
vanecidas; regeiladas  a  princípio  pela  rasão,  c  con- 
cludentemente combatidas  depois  pela  observação 
dos  factos.  São  estas  lindas  aves  naturaes  da  Xova 
Guiné  e  das. ilhas  Molucas  ,  onde  os  habitantes  as 
colhem  com  as  maiores  precauções ,  para  não  des- 

2.'  Serie.  —  Voi.  U. 


130 


O  PANORAMA. 


lustrarem  a  mimosa  e  variada  plumagem  ,  que  é  a 
causal  da  grande  estimarão  que  teem  cm  algumas 
regiões  ,  servindo  as  pennas  para  enfeites  de  senho- 
ras. 

As  variedades  das  manucodiatas  podem  ser  coor- 
denadas cm  duas  principacs  espécies  :  uma  do  ta- 
manho d'um  pomho  naapparcncia,  postoque  o  cor- 
po não  seja  maior  que  o  de  um  tordo  ;  outra  do  vo- 
lume de  uma  cotovia.  Os  naturalistas  que  acompa- 
nharam a  expedirão  franccza  de  1817  descreveram 
exactamente  as  propriedades  destas  aves  :  viram 
muitas  delias  na  ilha  de  Vaigion  em  a  Nova-Guiné 
e  observaram  que  pertencem  ao  numero  dos  ani- 
maes  omnívoros ;  porem  que  o  alimento  mais  prin- 
cipal delias  consiste  em  fructas  e  insectos  ;  que  se 
aprazem  de  viver  no  recôndito  e  basto  das  Hores- 
tas  ;  que  cm  tempo  bonançoso  pousam  nas  altas  pon- 
tas das  arvores  ;  que  voam  mui  rápidas  c  sempre 
contra  o  vento,  porque  de  outro  modo  suas  boni- 
tas pennas  lhes  cahiriam  para  a  cabeça  e  lhes  im- 
pediriam o  vòo ;  que  ao  presentirem  temporal  mu- 
dam de  paragem  e  se  recolhem  a  logar  mais  segu- 
ro ;  que  apesar  da  corpulência  diminuta  são  atre- 
vidas ,  dispostas  a  resistir  ás  aves  de  prca  que  in- 
tentem persegui-las;  finalmente,  que  não  ha  exem- 
plo de  que  alguma  se  tenha  domesticado  ;  e  que  é 
imperleitissima  a  noticia  acerca  de  seus  ninhos, 
ovos,  incubação,  &c. 

Não  nos  espraiaremos  mais  sobre  o  assumpto,  por- 
que acompanhámos  a  estampa  da  manucodiala  apo- 
da ou  maior  ,  a  pag.  100  do  vol.  2.°,  de  uma  des- 
cripção  das  cores  brilhantes  que  a  enfeitam  ,  c  de 
algumas  noticias  concernentes  aos  hábitos  communs 
ás  espécies  congéneres. 

Explicaremos  a  numeração  apposta  á  estampa  pre- 
sente :  n.°  1  é  a  Paradisea  apoda  ,  que  tem  o  nome 
vulgar  de  esmeralda:  n.°  2  a  paradisea  áurea,  cha- 
mada de  seis  fios  ou  topes,  emrasão  de  seis  pennas 
compridas  que  traz  na  cabeça:  n.°  3  a  incompará- 
vel, descripta  pelo  celebre  Le  Vaillant :  4.°  a  ne- 
iulosa,  descripta  pelo  mesmo  observador:  5.°  aque 
denominam  manucodiata.  soberba  ,  que  tem  certa  ar- 
rogância de  pavão  guardadas  as  proporções  quanto  á 
grandeza. 


De  Jebsey  a  Gra.wille. 

(Fragmento.) 

I. 

Seria  pela  volla  do  meio  dia  quando  saltámos  no 
chasse-marée  que  devia  conduzir-nos  de  Jersey  a 
Saint-Maló  atravessando  aquella  estreita  porção  do 
canal  que  nos  separa  de  França.  Sentimentos  en- 
contrados eram  nesse  momento  os  meus.  O  sol  res- 
plandecia brilhante  ,  e  o  ar  estava  puro  e  sereno  : 
era  um  dia  d'outono  tão  bello  como  o  que  mais  o 
fosse  era  Portugal.  De  um  lado  alteava-se  a  ilha 
com  os  seus  outeiros  e  valles,  solo  anfractuoso  si- 
milhante  ao  nosso,  e  a  povoação  com  os  seus  edi- 
fícios cobertos  de  telha  ,  que  nos  faziam  esquecer 
aquelles  horríveis  tectos  iiiglczes  de  lousa  negra  , 
espécie  de  tabuletas  do  Spleen ,  penduradas  pelos 
bretões  sobro  as  suas  cidades  ,  e  em  que  parece 
lèr-se  a  iuscripeão  de  Dante  :  .      ,   , 

Per  me  si  va  nclla  citlá  dolente. 

Do  outro  lado  estendia-sc  o- mar,  chão  c  espelhado, 
que  nos  separava  da  França;  desse  paiz  que  para 


a  mocidade  das  nações  occidentaes  da  Europa  é  co- 
mo uma  segunda  pátria  :  porque  lá  está  o  centro 
das  idéas  que  hoje  agitam  os  espíritos,  em  socialis- 
mo e  em  litteratura;  lá  vivem  os  escriptores  que 
melhor  conhecemos  ,  que  até  amámos  como  se  fo- 
ram nossos ;  desse  paiz,  a  cujos  hábitos,  tradições, 
successos,  e  glorias,  nos  teem  associado  os  seus  li- 
vros, sem  o  seutirmos,  sem  talvez  o  querermos.  Ao 
approximarmo-nos  da  França  o  coração  não  bate  vio- 
lento, nem  se  derramam  lagrymas,  como  ao  avistar 
a  terra  em  que  nascemos ;  mas  o  animo  desafToga- 
se  ,  e  abre-se  á  esperança  :  vamos  tratar  homens  , 
que  nunca  vimos  ,  mas  com  quem  de  largo  tempo 
vivemos  pelas  intimas  relações  dos  alTectos  e  da  in- 
telligencia. 

Éramos  seis  portuguezes  a  bordo  do  chasse-marée, 
alem  de  dois  marinheiros  fraiicezes  e  um  grumete  , 
entidades  análogas  aos  nossos  antigos  desembarga- 
dores ,  cada  uma  das  quaes  cumulava  seis  ou  sete 
cargos  daquclla  vacillante  c  pequena  republica,  car- 
gos disparatados  ,  que  todavia  as  três  personagens 
desempenhavam  perfeitamente,  destruindo  assim  em 
parte  a  analogia  radical,  que  tinham  com  esses  ma- 
gistrados de  pedante  e  pesada  memoria  ,  que  não 
desempenhavam  bem  nenhum.  Um  cão  e  três  ingle- 
zes  completavam  a  collecção  dos  animaes  inclusos 
entre  as  quatro  taboas  da  frágil  embarcação. 

O  chasse-marée  é  um  transporte  inarilimo,  que  na 
minha  profunda  ignorância  das  cousas  navacs  me 
parece  similhaute  ao  hiale  portuguez  ,  ao  menos  na 
inimundicie,  e  na  carência  absoluta  de  tudo  o  que 
seja  commodidade.  Nisto  ,  entre  parenlhesis  ,  não 
sou  eu  ignorante  ;  porque  tenho  experimentado  uns 
e  outros  ,  e  posso  asseverar  que  seria  mui  difficul- 
toso  de  resolver  qual  dos  dois  géneros  de  navios 
t';m  parentesco  mais  próximo  com  as  rudes  e  aca- 
nhadas galés,  em  que  ha  sele  séculos  Guilherme  o 
conquistador  transportou  da  Normandia  para  Ingla- 
terra os  .■'scendentes  da  actual  aristocracia  britan- 
nica. 

Commoda  ou  incommoda,  era  necessário  aprovei- 
tar aquella  detestável  jangada  para  passarmos  a  Fran- 
ça ,  e  isto  por  duas  rasões  urgenlissimas  :  a  primei- 
ra porque  nenhuma  outra  embarcação  havia  no  por- 
to de  Saint-IIélier  com  destino  immediato  para  a 
costa  fronteira  :  a  segunda  porque  o  preço  da  pas- 
sagem era  apenas  uma  libra  esterlina  ,  e  uma  libra 
esterlina  era  o  fôlego  maior  que  podia  sahir  da  bo- 
ca das  nossas  bolsas  ,  cuja  phtysica  pulmonar  ia  já 
no  ultimo  período.  Tendo-nos  portanto  ajustado  com 
o  marinheiro  que  capitaneava  o  outro  marinheiro,  e 
mettído  a  bordo  os  nossos  bahus  ,  que  pelo  leve  c 
desempedido  podiam  servir-nos  de  botes  de  salva- 
ção era  caso  de  naufrágio  ,  sahimos  da  caldeira  de 
Saint-Hélíer  com  uma  brisa  forte  da  terra  que  bre- 
vemente nos  arremessou  para  o  largo.  Era  muito 
depois  do  meio  dia.  Algumas  nuvens  brancas  do 
lado  do  poente  recortavam  as  suas  franjas  irregula- 
res sobre  o  chão  do  céu  ,  que  a  luz  do  sol  tornava 
de  um  azul  desbotado.  Uaras  c  diaphanas,  aquellas 
nuvcmsinhas  l)alouçavnni-se  no  ar  ,  ao  que  parecia 
mais  vohiptuariamenle  do  que  nós,  que  sentíamos 
arfar,  |)inchando  (l'entrc  as  vagas  crespas,  o  nosso 
[lequeno  baixel.  Pouco  apouco  aquelles  vapores  ac- 
iiimulados,  cujos  contornos  occidentaes  barravam 
orlas  de  ouro,  engrossaram,  tomando  f('irnias  deter- 
minadas. Depois  correndo  gradualmente  mais  rápi- 
das, c  interpondo-se  entre  os  raios  do  s(d  ja  inclina- 
dos e  o  vulto  rugoso  das  aguas,  lhes  remendavam  o 
dorso  similhaute  á  pcUe  mosqueada  do  tigre.   Este 


o  PANORAMA. 


131 


jojTO  da  luz  dava  ao  mar  um  aspecto  verdadeiro,  e 
accorde  com  a  sua  natureza.  Que  é  elle,  de  feito, 
senão  a  mais  terrivel  das  bestas-fcras? 

E  o  vento  refrescava  d'instantc  a  instante  ,  e  os 
mastros  do  cliasse-marée  principiavam  a  sollar  de 
quando  era  quando  um  gemido  doloroso,  curvando- 
sc  para  as  vellas  quadrangulares  retesadas  diante 
delle. 

O  grumete  ia  ao  leme  :  o  marinheiro  ,  que  re- 
presentava e  resumia  a  companha,  de  bruços  e  com 
os  joelhos  sob  o  ventre,  no  ademan  de  nm  galo  que 
se  apresta  a  saltar  sobre  o  murganho  iramovcl  de 
terror  ,  parecia  examinar  os  novellos  de  nuvens  te- 
nebrosas que  se  rolavam  no  horisonte  e  cresciam 
para  nós  como  uma  visualidade  de  camara-obscura. 
A  barlavento  o  arraes  ou  capitão  [capitaine  lhe  cha- 
mávamos nós  pelo  menos]  que  representava  e  resu- 
mia a  oiricialidade  do  navio  ,  com  o  corpo  torcido  , 
e  encostado  á  amurada  ,  firmando  a  barba  nos  bra- 
ços cruzados  em  cima  da  borda ,  também  parecia 
esquadrinhar  o  céu  e  o  mar.  Dir-se-hia  que  o  en- 
capellar  das  ondas  se  regulava  e  media  pelas  rugas 
que  successivamente  augmentavara  em  numero  e 
profundesa  na  fronte  tostada  do  antigo  marujo.  Im 
susto  vago  e  inexplicável  como  que  pairava  no 
meio  de  nós.  Era  que  a  postura  e  gesto  daquelles 
dois  homens  tinham  um  não  sei  que  sinistro  e  mys- 
lerioso  ,  similhante  ao  bofar  morno  do  vento  que 
precede  e  anuuncia  a  procella. 

Nós  os  passageiros  .  assentados  n'uma  espécie  de 
canapé  mal  affeiçoado,  que  circumdava  a  coberta  á 
proa  ,  tínhamos  insensivelmente  cabido  nm  comple- 
to silencio  :  ou  para  fallar  com  mais  exacção  ,  nós 
os  porluguezes  éramos  os  que  nos  havíamos  cala- 
do ;  porque  nem  o  cão,  nem  os  três  inglezes  tinham 
proferido  ,  aquelle  um  só  ladro ,  estes  um  só  gras- 
nido  ,  desde  o  momento  em  que  saltaram  a  bordo  , 
na  abra  de  Saint-Hélicr.  O  único  ruído  que  sussur- 
rava era  o  ranger  do  baixel ,  e  o  sibilo  do  vento 
embatendo  em  nós,  e  abysmando-se  nos  nossos  ou- 
vidos ,  o  que  nos  fazia  escutar  um  som  similhante 
ao  do  pinhal  que  se  estorce  e  verga  ao  redemoínha- 
rem-lhe  por  entre  as  ramas  os  mil  braços  da  tem- 
pestade nocturna. 

Os  três  inglezes  eram  um  velho  de  cabeça  intei- 
ramente branca  e  rosto  inteiramenle  vermelho  :  a 
primeira,  certidão,  cujos  caracteres  desbotara  o  tem- 
po, de  que  a  agua  do  baptismo  passara  por  alli  ha- 
via muitos  annos ,  o  segundo  de  que  também  não 
havia  poucos  que  elle  ,  levado  de  um  santo  respei- 
to pela  matéria  do  principal  sacramento,  abjurara 
de  coração  o  tocar-lhe  com  os  lábios ,  contentando- 
se  de  humedece-los  com  os  trcs  líquidos  fundamen- 
taes  de  todos  os  contentamentos  possíveis  dos  netos 
dos  kimhris  e  saxonios  —  o  rhum,  o  vinho  e  a  cer- 
veja. Dos  dois,  um  mostrava  ser  inglez  de  cincoen- 
ta  annos  ,  outro  de  quarenta  :  o  primeiro  ,  magro  , 
da  altura  de  cinco  para  seis  pés  craveiros ,  faces 
encovadas,  nariz  meridional  ou  antes  judaico  ,  islo 
é  proeminente  e  adunco  ,  tez  ,  não  tanto  morena  , 
como  macilenta  :  o  segundo  ,  typo  saxonico  ,  islo  é 
rosto  largo  ,  e  achatado  ,  olhos  azues  ,  guedelhas 
louras,  boca  profundamente  vincada  nas  extremida- 
des do  beiço  inferior,  de  aspecto  aborrido  e  orgu- 
lhoso como  se  todo  o  fumo  de  carvão  de  pedra  brí- 
tannico  o  cercasse  com  a  sua  aureola  de  gloria  na- 
cional. De  resto  uão  havia  que  duvídar-lhes  da  pá- 
tria :  indicava-a  o  cheiro  dos  seus  vestidos  ,  suave- 
mente impregnados  do  fortúm  sebaceo  de  carneiro,  e 
aromatisados  com  os  effluvios  nauseantes  da  infusão 


do  chá  preto,  os  quacs  constituem  a  formula  odorífera 
da  sociedade  politici  chamada  os  trrs  reinos  unidos. 
Pois  também  ha  cheiros  nacionaes?  —  dirá  o  lei- 
tor. Oue  dÚNÍda  I — Cada  nação  tem  a  sua  crença  , 
a  sua  língua  ,  e  o  seu  cheiro.  O  credo  inglez  é  re- 
presentado não  sei  ao  certo  por  quantos  centenares 
de  seitas,  que  se  mandam  reciprocamente  para  o 
inferno  ,  desde  a  igreja  anglicana  ,  em  que  os  bis- 
pos e  arcebispos —  poetas,  amphyiriõcs,  millionarios 
e  políticos — bradam  anathema  contra  as  vaidades, 
luxo,  e  cubica  de  Koma ,  até  os  methodistas  que 
vão  para  os  seus  templos  caçar  as  inspirações  de  ci- 
ma ,  inspirações  que  muitas  vezes  são  papadas  por 
velha  fanática  e  tonta  ,  e  ouvidas  pelos  seus  irmãos 
com  uma  compunção  que  daria  vinte  comedias  a 
Gil  Vicente  se  hoje  vivesse,  e  viajasse  pelo  Might 
Empire  do  vapor  e  da  cerveja.  Isto  quanto  ao  cre- 
do inglez  :  quanlo  ao  cheiro  o  que  fica  dito  :  quan- 
to á  língua  o  que  logo  direi. 

A  brisa,  que  ao  sahir  deJersey  era  em  popa,  ro- 
dou successivamente  para  noroeste  ,  e  antes  do  pôr 
do  sol  soprava  já  violenta  do  lado  do  oeste.  Nós  se- 
guíamos pouco  mais  ou  menos  o  rumo  do  sul  ,  e  a 
mudança  do  vento  posto  que  ameaçadora  ,  tinha  si- 
do momentaneamente  uma  vantagem  de  commodi- 
dade  :  o  chasse-marée  corria  á  bolina  ,  e  por  isso 
o  seu  arfar  se  tornara  mais  suave.  No  horisonte  , 
quasi  pela  popa  ,  divisávamos  ainda  o  promontório 
deNoirmont,  e  pela  nossa  esquerda  proloogavam-se 
quasi  imperceptíveis  as  costas  de  França,  como  uma 
linha  negra  lançada  ao  travez  dos  mares.  O  silen- 
cio que  reinava  a  bordo  dava  certa  melancholia  so- 
lemne  ao  quadro  do  céu  nublado  ,  das  vagas  revol- 
tas ,  e  da  terra  que  parecia  quasi  desvanecer-se  na 
orla  das  solidões  do  oceano. 

O  inglez  veliio ,  que  ia  justamente  assentado  á 
minha  direita,  a  pouco  mais  de  meia  milha  de 
S.iint-Hélier  começou  a  empallídecer.  O  ar  mari- 
nho p  inimigo  figadal  do  fastio ,  e  por  isso  lería- 
mos apenas  navegado  duas  horas,  quando  começá- 
mos a  experimentar,  nós  osportuguezes  pelo  menos, 
a  immutabilidade  inflexível  desse  axioma  dietético. 
Tirámos  algumas  das  nossas  provisões  ,  e  pozemo- 
nos  a  despachar  os  requerimentos  do  estômago.  Of- 
fereci  ao  velho  que  tomasse  parte  naquella  refei- 
ção ;  mas  elle  recusou  ,  declarando-se  sea-sick  [en- 
joado] ;  todavia  para  não  perder  ,  como  verdadeiro 
inglez  ,  os  pn')s  da  minha  boa  vontade  ,  entendeu 
que  podia  trocar  uma  obra  de  misericórdia  por  ou- 
tra ,  e  deixando-se  escorregar  do  banco  ao  convez , 
fincou-me  sobre  os  joelhos  a  cabeça  enlontecida  e 
cerrou  os  olhos.  Uecommendei  então  a  Deus  os  meus 
pobres  ossos  cruraes ,  ameaçados  de  chegarem  a 
França  em  estado  de  para  nada  prestarem ,  visto 
ser  a  cabeça  do  velho  uma  verdadeira  cabeça  in- 
gleza  :  dura  ,  pesada  ,  e  macissa  ,  como  o  governo 
da  Companhia  na  Ásia. 

Porque  não  repellía  eu  a  familiaridade  ominosa 
do  bom  do  inglez  ;  de  um  homem  cuja  nação ,  co- 
mo portuguez  ,  tenho  a  obrigação  moral  de  desa- 
mar'.' Era  porque  em  conlrario  havia  duas  conside- 
rações igualmente  moraes.  Uma  cabeça  branca  é 
sempre  respeitável,  ainda  que  assente  sobre  o  tron- 
co ermo  de  coração  de  um  filho  da  Graã-Brctanha. 
Alem  disso  o  cesto  de  verga  em  que  iam  as  nossas 
provisões  estava  alli  como  um  espectro  que  me  em- 
bargava sacudir  a  fronte  do  ancião  para  o  travesseiro 
macio  do  convez  gordurento.  O  porquê  desta  acção 
simpathica  do  cesto  sobre  o  meu  espirito  di-lo-hei  em 
breves  palavras  ;  é  uma  historia  como  qualquer  outra. 


132 


O  PANORAMA. 


Miss  Parker  de  Plymouth  era  uma  donzella  de 
sessenta  annos  —  excellenle  crcatura  que  nos  hos- 
pedou  por  dous  mezcs  naquella  cidade ,   raedianle 
a  baeatclla  de  Ires  shcllings  semanaes  por  cabeça. 
A  Inglaterra  ,  como  todos  sabem  ,  é  o  paiz  da  fran- 
ca e  sincera  hospitalidade.  Éramos  ahi  nove  porlu- 
guezes ,  em  seis  camas  e  três  aposentos ,  o  que  da- 
va certo  ar  pythagorico  e  mysterioso  á  familia,  que, 
dirigida  por  Miss  Parker,   podia  servir  de  modelo 
ás  outras  ninhadas   d'eraigrados  que  ainda  viviam 
em  Plymouth.  iVinguem  tinha  uma  patroa  como  nós, 
e  os  seus  luãginys  eram  a  pérola  das  albergarias  de 
Plymouth.  A  principio  havia-se  encarregado  de  nos 
preparar   a  comida  ;    mas   poucos  dias  podemos  re- 
sistir aos  abomináveis  temperos  do  paiz.   íi  precisa 
uma  raça   d'estomagos  que  ainda  fosse  anlropo|ilia- 
ga  no  meado  do  quinto  século  da  era  chrislaã  para 
luctar  vantajosamente  com   a  cosinha  d'Inglalcrra  , 
e  estes  estômagos  só  os  inglczes  os  possuem  ,   se- 
gundo o  testemunho  do  seu  historiador  Gibbon.  Os 
nossos  cederam  a  tão  dura  prova  ,  e  vimo-nos  obri- 
gados a  dispensar  Aliss  Parker  do  mister  de  nos  en- 
venenar.   Quanto   ao  mais  éramos   verdadeiramente 
seus  filhos  cm  espirito  ;  em  espirito  ,  digo  ,  porque  , 
alóra   muitas    rellexões   pias  que   se  dignava  fazer- 
nos ,   a  nós  pobres  idolatras  do  catholicismo  ,  obri- 
gava-nos    a  respeitar   o  domingo   no  pleno  rigor   da 
igreja  anglicana  ;  isto  é  a  morrer  de  tédio  e  triste- 
za prohibindo  em  sua  casa  todo  o  género  de  diver- 
timento ,   ainda  o  mais  innoceote,    desde  pela  ma- 
Bhaã  até  sol  posto,  momento  em  que  naquelle  aben- 
çoado paiz  Deus  cede  ao  diabo  o  resto  do  dia  do- 
minical ,    e  em  que   a  devassidão  e   a  embriaguez, 
tripudiando  nos  prostíbulos  c  tabernas,    se  ving.im 
das  dez  ou  doze  horas  de  sermões  impertinentes  dos 
clcrfiymcn ,   e   de  psalmos  dcsallinados   pelas   vozes 
roufenhas   e  prosaicas  da  turbamulta  ,   debaixo  das 
abobad.is  santas  ,    poéticas  ,   e  venerandas  das  anti- 
gas igrejas  catholicas  ,   repartidas  hdje  em  camaro- 
tes  de  tlieatro  pela  pureza  aristocrática  e  beata  do 
protestantismo  inglez. 

Miss  Paiker  foi  o  único  fôlego  vivo  da  (iraã-Bre- 
tanba  ,  a  quem  na  minha  curta  passagem  por  In- 
glaterra devi  um  beneficio:  quando  partimos  para 
Jersey  deu-nos  um  cabazinho  em  que  levássemos  a 
nossa  matalotagcm  ,  e  derramou  algumas  lagrymas 
ao  despedir-se  de  nós.  Aquelle  cabazinho  era  o  que 
eslava  ante  mim  ,  e  me  sustinha  cm  cima  dos  joe- 
lhos a  cabeça  do  velho.  Sobre  as  vagas  procellosas 
do  canal  da  Slancha  ,  eu  soldava  assim  as  minhas 
contas  com  a  Inglaterra. 

O  vento  continuava  a  rodar  para  sudoeste,  e  os 
nossos  dous  marinheiros  colheram  parte  do  pan- 
no  e  mudaram  algum  tanto  de  rumo:  depois  torna- 
ram a  asscnlar-se  na  mesma  postura  em  que  esta- 
vam ,  e  tudo  voltou  ao  anterior  silencio,  que  só 
era  interrompido  pelo  marulho  das  ondas  espalman- 
do-se  no  costado  do  chassc-marée. 

Mas  um  llagicio,  mais  abominável  ainda  que  os 
condimentos  ferozes  do  cosinha  ingleza,  veio  cortar 
atrozmente  esle  silencio  triste,  que  representava 
no  meio  de  nós  a  previsão  de  imniinente  procella. 

O  inglez  alto,  de  gesto  esguio,  c  nariz  hebrai- 
sante ,  se  assentara  ao  pé  do  outro  inglez  aflciçoado 
pelo  lypo  saxonio.  no  topo  esquerdo  da  banqueta 
corrida  á  popa.  IJuas  ou  três  vezes  desde  que  le\;i- 
mos  ferro  elle  dirigiu  ao  companheiro  uma  rosna- 
dura  ,  a  que  este  respondeu  com  o  estirado  monos- 
sylaho  IVs.  A  quarta  vez,  aquella  resposta  lacóni- 
ca foi  proferida  com  certa  nielopéa  Uc  rcsiguação , 


que  cortava  os  fios  da  alma )  e  acompanhada  d'um 
volver  d'olhos  azues ,  cm  que  se  pintava  uma  sup- 
plica  de  piedade.  Mas  o  inglez  aguçado  carregou  o 
sobrolho ,  e  mettendo  a  mão  no  seio  póz-se  a  pro- 
curar o  que  quer  que  era  na  algibeira  interior  de 
uma  das  quatro  sobrecasacas  que  tinha  vestidas. 
Eu  observava  esta  scena  ;  sabia  o  que  pôde  o  splecn, 
e  o  receio  de  algum  anglicidio  ,  me  passou  pela 
mente  ,  ao  contemplar  o  aspecto  torvo  de  um  ,  e  o 
gesto  confrangido  e  timido  de  outro.  O  vento  sibi- 
lava violento  ,  as  aguas  começavam  a  tingir-se  de 
negro  ,  e  o  céu  estava  completamente  toldado  :  era 
meio  poema  britannico.  Um  tiro  de  pistola  ,  e  um 
cadáver  baldeando  no  mar  completariam  uma  cpo- 
pca.  Nas  feições  do  inglez  esgrouviado  parecia-me 
ler  duas  palavras — Spleen  —  e  Poeta  ;  c  por  isso 
os  meus  temores  não  eram  tão  infundados ,  como  , 
no  primeiro  momento  ,  talvez  os  tenha  julgado  o 
leitor. 

E  o  mais  é  que  eu  acertara  farejando  emMr.Gra- 
ham  Sénior  [eram  os  dous  inglezes  irmãos ,  segun- 
do depois  soubemos]  um  fazedor  das  regrinhas,  que 
na  lingiia  ingleza  correspondem  ao  que  nas  linguas 
do  ineio-dia  c  e  se  chama  versos.  O  honrado  Mr. 
(iraham  não  procurava  na  algibeira  o  âmago  e  su- 
bstancia da  idealidade  e  poesia  britannica  —  a  pis- 
tola suicida.  Não  I  —  Era  cousa  mais  atrozmente  as- 
sassina—  era  um  caderno  grosso  de  letra  micros- 
cópica em  que  provavelmente  se  continham  as  suas 
inspirações  inéditas!  Estava  explicada  a  longa  ta- 
citurnidade dos  dous.  O  perverso  meditava  aquelle 
fratricídio  inlclleclual  desde  a  partida  de  Saint-Hé- 
lier,  e  os  quatro  grunhidos  abafados  que  lhe  ouví- 
ramos tinham  sido  quatro  tentativas  para  predispor 
a  viclima.  De  feito  quando  elle  sacou  o  alentado 
canhenho,  Mr.  Ciraham  Júnior  parecia  inteiramente 
resignado. 

Aquelle  alanazador  das  orelhas  do  próximo  co- 
meçou a  sua  leitura  pela  primeira  pagina.  Era  um 
algoz  de  Cunseiencia  ,  e  j,í  se  podia  prever  que  li- 
nha a  boa  tenção  de  alormentar-nos  cm  quanto  du- 
rasse o  dia  ,  que  felizmente  se  inclinava  a  seu  ter- 
mo. Como  me  foi  possível  percebi  aos  trinta  ou  qua- 
renta versos  que  era  um  poeta  da  eschola  de  Pope, 
ou  ,  como  quem  o  dissesse  enlre  nós  ,  um  poeta  da 
Arcádia.  Cá  teria  fallado  em  Jovc,  Marte,  e  Neptu- 
no ,  nas  St  usas ,  nos  Zagaes ,  nas  Niraphas ,  na  tu- 
ba de  Calliope  ,  ou  na  sanfona  não  sei  de  que  Deu- 
sa :  lá,  nas  inspirações  de  Mr.  Graham  ,  eram  as 
paixões,  os  vicios,  os  alTectos  personalisados  quem 
fazia  o  serviço  dos  seus  poemas  :  aqui  a  Esperança, 
alli  o  Desalento:  ora  a  Temperança  ,  logo  a  Desen- 
voltura. Aquella  poesia  frigidissima  fazia-me  lem- 
brar do  Olympo ,  do  Pindo  ,  e  da  Castalia ,  dos 
nossos  árcades,  e  de  algum  modo  me  consolava  das 
misérias  domesticas,  ao  ver  que  a  poesia  cadavéri- 
ca das  formas  e  convenções  não  vivia  unicamente 
entre  nós,  mas  ainda  ousava  no  canal  da  Mancha 
misturar  as  suas  semsaborías  académicas  com  o  bra- 
mido terrível  do  vento  ,  e  com  o  ferver  cslrepiloso 
das  vagas,  que  entoavam  acordes  a  sublime  invo- 
cação da  procella. 

O  poeta  esguio  declamava  as  suas  regrinhas  len- 
tamente e  cora  todos  os  requebros  da  melopea  in- 
gleza ,  género  de  canto  semelhante  ao  gemer  rabu- 
gento de  uma  creança  na  primeira  dentição.  O  po- 
bre diabo,  postoque  provavelmente  accredilasse  que 
nenhum  de  nós  o  entendia  ,  pensava  por  certo  ,  que 
nova  espécie  de  Orpheu  bastavam  os  sons  das  suas 
palavras  harmoniosas  para  iios  arrcLularcm  e  exta- 


o  PANORAMA. 


133 


siarcm  a  nós  selvagens  da  Europa  ,  como  com  tan- 
ta grara  e  verdade  denominam  os  escrevinhadores 
de  John  Buli  os  haliitantes  da  Península  '.  1'eiisava 
assim,  de  certo;  porque  de  quando  em  quando  vol- 
via para  nós  os  olhos  com  a(]uclle  sorriso  de  com- 
placência estúpida  que  é  peculiar  na  cara  de  um 
inglc/.  vaidoso  ,  e  conlenle  de  si. 

Um  dos  exemplos  mais  lamentáveis  da  cegueira 
do  cspirito-humano  ,  é  a  persuasão  em  que  os  es- 
criplores  d'Inglaterra  estão  de  que  possuem  uma 
língua  lilteraria  fallada  ,  isto  é  que  os  sons  quasi 
inarliculados  do  seu  chilrear  e  grunhir  correspon- 
dem sufíicientemcnte  aos  grupos  de  caracteres  al- 
phabeticos  de  que  se  elles  servem  para  representa- 
rem os  próprios  pensamentos.  Todavia  a  língua  cs- 
cripta  d'lngla(erra  nada  tem  que  ver  com  a  lingua- 
gem em  que  a  nação  se  exprime  :  são  dous  typos 
<liversissiraos  que  dão  forma  sensível  ao  pensamen- 
to. Abri  um  li\ro  cscriplo  cm  qualquer  outro  idio- 
ma da  Europa,  e  fazei  ler  por  cllc  um  estrangeiro 
completamente  ignorante  desse  idioma  ;  c  o  natural 
■do  respectivo  paiz,  aquelle  que  o  fallou  desde  a  in- 
fância entenderá  tudo  ou  quasi  tudo,  sn  escutar  es- 
sa leitura.  Fazei  a  mesma  experiência  com  um  li- 
vro inglez ;  o  natural  d'lnglaterra  não  entenderá 
provavelmente  uma  única  palavra,  t  que  na  reali- 
dade neste  povo,  em  tudo  singular,  os  signaes  cha- 
mados letras  não  tem  um  valor  constante  e  deter- 
minado ,  e  por  isso  não  podem  corresponder  rigoro- 
samente a  um  som. 

.\  Inglaterra  ha  visto  nascer  no  seu  grémio  gran- 
des poetas.  Shakespeare  e  Byron  ba.-.tariam  para 
lhe  dar  uma  celebridade  immensa.  Mas  a  sua  poe- 
sia reside  toda  no  pensamento  ,  na  essência  da  ar- 
te.—  As  formas  externas  são  rudes ,  barbaras,  ou 
lluctuantes.  Shakespeare  e  Byron  foram  dous  selva- 
gens ,  um  porque  estava  alem  da  civilisarão  .  outro 
porque  estava  áquem  delia  :  mas  foram  talvez  as 
duas  almas  mais  sublimemente  poéticas  da  Europa. 
Porque  pois  não  souberam  elles  ajuntar  a  melodia 
material  ás  harmonias  intimas  das  suas  idéas?  Foi 
porque  não  podiam  converter  em  palavras  humanas 
o  intolerável  grasnido  dos  seus  compatriotas. 

lima  cousa  que  sempre  me  acontece  em  ouvindo 
lallar  um  inglez  é  o  notar  as  mysteriosas  analogias 
que  ha  constantemente  entre  a  língua  de  qualquer 
povo  e  os  seus  hábitos  de  moralidade.  Considerai 
por  exemplo  a  litigua  allcmaã  :  é  um  idioma  per- 
feitamente accentuado :  os  vocábulos  escriptos  cor- 
respondem rigorosamente  aos  fa liados  :  não  ha  ahi 
luxo  inútil  de  letras  :  todas  se  proferem  ;  todas  re- 
presentam um  som  ou  uma  articulação.  Os  caracte- 
res do  alphabelo  germânico  nunca  serviram  para 
enganar  o  estrangeiro.  Não  achais  nisto  umi  ex- 
pressão do  animo  leal ,  franco  e  singelo  daquelle 
povo?  X  Deutsche  Trcue,  a  fc  germânica,  não  se  re- 
flecte como  em  um  espelho  na  língua  desse  paiz? 
Agora  escutai  ura  inglez  :  dous  terços  de  cada  pa- 
lavra, como  a  representam  os  signaes  alphabelicos, 
não  se  proferem  :  devora-os  o  leitor  :  são  uma  ar- 
madilha para  obrigar  os  lábios  peregrinos  a  darem 
syllabadas:  o  inglez  pronuncia  com  os  dentes  cer- 
rados como  se  temesse  que  essas  palavras-ouriços 
lhe  fizessem,  ao  perpassarem,  os  lábios  em  sangue. 
Não  achais  nisto  uni  typo  de  cubica  e  avareza?  — 
Um  pensamento  enganoso? — o  algodão  tecido  á  sor- 
relfa com  a  laã  ?  Não  descubris  lá  o  pensamento  do 
tractado  de  Methuen  ,  ou  do  desembarque  de  Qui- 
beron.  Não  se  revela  no  coaxar  das  raãs  de  Words- 


worlh    c  dos  poetas  dos   lameiros   o   lintúh   /n(c- 
rest  ? 

Tacs  eram  as  reflexões  cm  que  eu  estava  embe- 
bido em  quanto  o  poeta  mastaréu  accreditava  ter- 
nos enleiados  a  todos  com  as  ni('llilluas  toadas  do 
seu  poético  lavor.  A  noite  entretanto  tombando  de 
castello  em  castello  de  nuvens  ,  lançava  sobre  o 
dorso  do  mar  revolto  o  seu  manto  d'escuridade.  O 
sectário  de  1'ope  cedeu  então  ás  trevas  :  fechou  o 
ranhenho  ,  c  resguardou-o  outra  vez  dos  olhos  pro- 
fanos debaixo  da  meia  fabrica  de  Leeds  ,  que  fora 
absorvida  na  mole  immensa  dos  seus  quatro  casa- 
cões. 

Mr.  Graham  .lunior  ,   apenas  seu   respeitável  ir- 
mão cessou  de  ler,  volveu  para  elle  o  rosto  melan- 
cholico  ,  c  murmurou  depois  de  ura  suspiro  : 
Aije  !  —  y'eiy  goud  '. 

Com  os  três  Yes  precedentes,  fazia  a  conta  de 
seis  palavras ,  ou  grasnos  ,  que  despendera  naquel- 
le  dia  Slr.  (jraham  Júnior. 

Dous  inglezes  ridículos  são  incontestavelmente  as 
duas  cousas  mais  ridículas  deste  mundo. 

1,   •■  ,.       (Conctuir-se-haJ. 

;  I        (A.  Uerculanu.J 


saoiTcicii!.  ?c 


•^-^T  •rriT'^ 


dà. 


Considerações  sobre  o  Curso  d'  Economia  1'vlitica.  pu- 
blicado em  París^  em  1842  pelo  Sr.  Miguel  Cheva- 
lier. 

I. 

X  PKOviNCiv  das  sciencias  sociaes  vai-se  alargando 
de  dia  a  dia,   e  d'ellas  ura  ramo  muito  importante 

—  a  Economia  Politica  —  vai  crescendo  e  avultando 
á  proporção  do  progresso  material  das  nações.  As 
(]ue  vão  atrazadas  ,  e  ainda  vagarosas  na  carreira 
da  riqueza  ,  que  são  as  que  não  lera  empregado  se- 
não em  mui  limitada  escala  os  poderosos  instrumen- 
tos da  producção  e  da  industria  moderna  ,  pedem  á 
Economia  Politica  lhes  ensine  o  melhor  methodo  de 
aproveitar  esses  instrumentos.  As  outras  que  lendo 
pela  applicação  mais  extensa  delles  chegado  a  uma 
altura  considerável  de  prosperidade  relativa  ,  se 
achara  de  repente  atacadas  no  próprio  âmago  da 
sua  existência  ,  inquietas  com  o  mal  occulto  que  as 
devora  inquirem  ,  profundamente  sollicítas  ,  a  ori- 
gem d'elle  ,    indo  buscar  aos  princípios  económicos 

—  o  único  LSidipo  capaz  de  decifrar  o  enigma  da 
sua  situação  —  a  chave  d'esse  mesmo  enigma.    l'ns 

—  os  que  são  pobres  —  para  enriquecer  ,  pergun- 
tam como  hãode  obter  ou  empregar  as  machinas  , 
os  capitães,  as  instituições  de  credito,  e  o  commer- 
cio,  o  qual  não  cor.íistindo,  em  ultima  analyse,  se- 
não no  mudar  os  productos  de  um  logar  para  outro, 
vem  quasi  a  resolver-se  nas  vias  de  communicação 
maritímas  e  terrestres.  Outros  paizes  ,  já  completa- 
mente armados  d'estas  forças  e  instrumentos  ,  que- 
rem saber  donde  nasce  a  consumpçâo  que  os  defi- 
nha, o  desequilíbrio  que  experimentam  na  sua  eco- 
nomia, o  tremor  que  abala  o  seu  edificio  social,  as- 
sentado, segundojulgavara,  em  alicerces  tão  sólidos. 
Todos  se  chegam,  supplicantes  ,  ao  altar  da  scien- 
cia  ,  e  a  sciencia  adquire  d'aqui  duplicada  impor- 
tância. Tentam-se  ensaios:  tirani-se  iuforraaçõcs  e 
inquéritos  índustriaes :  cscrevem-sc  livros.  E  nesta 
hora  Inglaterra,  pátria  dos  bancos,  das  machinas, 
dos  capitães ,  do  commcrcio ,  dos  caiiaes  e  das  es- 


134 


O  PANORA3IA. 


tradas,  geme  e  revolve-se  na  agonia  de  uma  crise, 
causada  por  um  solTriraenlo  que  resume  todos  os 
soffrimenlos  da  industria  —  a  estagnarão  dos  produ- 
ctos  :  e  rcsiimc-os  todos,  porque  é  sempre  acompa- 
nhado de  parilisia  nos  instrumentos  da  producrão  e 
no  trahalho  dos  productores ,  de  qualquer  classe 
que  sejnm.  Outros  paizes  ,  e  nós  n'csse  numero, 
solTrera  de  outras  causas  —  da  falta  ou  insuílicien- 
cia  ,  nu  frouxidão  ou  desacertado  emprego  dos  ins- 
trumentos produclivos,  directos  e  indirectos.  Quan- 
do pois  sahe  da  estampa  uma  obra  destinada  a  re- 
mediar este  duplicado  mal  ,  o  nosso  que  ó  conheci- 
do, e  o  alheio  ainda  escondido  nas  sombras  do  mys- 
terio  ou  da  duvida  ,  e  a  obra  vem  recommendada 
com  o  nome  de  um  escriptor  lãoabalisado  comoMi- 
chcl  Chevalier,  seria  indesculpável  deixar  de  lan- 
çar-lhe  os  olhos ,  e  de  confrontar  cora  as  idéas  do 
auclor  o  estado  económico  do  nosso  paiz. 

Tratando  do  methodo  seguido  pelos  dois  econo- 
mistas ,  Ricardo  e  Malthus  ,  na  exposição  das  suas 
doutrinas ,  diz  o  coronel  Torrens  ,  talvez  com  bom 
fundamento  ,  que  o  primeiro  generalisa  muito  e  o 
segundo  mui  pouco  ;  que  nas  mãos  de  um  tem  a 
sciencia  uma  simplicidade  que  não  é  natural,  e  que 
se  torna  um  verdadeiro  cahos  nas  mãos  do  outro. 
Tendo  por  exacta  ,  ate  certo  ponto  ,  esta  observa- 
ção ,  longe  estamos  de  imputar  a  Michcl  Chevalier 
o  defeito  notado  a  Malthus  :  desejáramos  comtudo 
que  elle  entrasse  com  o  seu  facho  na  escuridade  , 
que  ainda  hoje  o  é,  das  questões  sobre  a  origem  da 
riqueza  e  rigorosa  delinição  do  valor,  eque  ahi  der- 
ramasse a  claridade  da  sua  intclligencia  ,  visto  que 
sobre  essas  questões  e  acaso  alguma  outra  ,  ainda 
não  está  dita  a  ultima  palavra,  nem  apprescntada  , 
mesmo  depois  da  obra  de  Rossi  ,  solução  que  satis- 
faça ,  a  nosso  entender  pelo  menos.  Bem  pôde  ser 
que  o  auclor  obediente  ao  artigo  —  preceito  —  da 
sua  philosophia  social  que  em  economia  e  no  mais 
subordina  e  submelte  as  theorias  abstractas  ás  tra- 
dições, ás  tendências,  aos  instinctos  e  aos  votos  das 
sociedades  e  dos  indivíduos,  intente  na  ulterior  pu- 
blicação do  seu  curso ,  examinar  aquclles  e  ou- 
tros pontos  duvidosos,  separados  não,  unidos  com 
alguma  questão  prática  de  interesse  material  e  pal- 
pável. E  se  esse  foi  o  seu  intento  ,  lique  retractado 
o  nosso  reparo  ,  o  qual  ,  «linda  assim  ,  não  significa 
senão  uma  homenagem  aos  talentos  do  auctor  ,  e 
um  excesso,  se  quizerem  ,  de  zelo  nosso  c  de  amor 
que  votámos  á  sciencia. 

O  auctor  começa,  e  bem,  tombando  c  demarcan- 
do as  províncias  alheias  á  Economia  l'(ditica  ;  e  di- 
zendo a  esta  :  alli  está  o  princípio  da  família  ;  aco- 
lá o  da  propriedade  ,  cuja  origem  se  confunde  com 
a  dos  séculos;  além  o  principio  da  igualdade  legal 
que  classifica  os  homens  segundo  os  talentos  e  os 
serviços  de  cada  um  ;  mais  adiante  o  da  ordem,  que 
quer  dizer  que  o  progresso  material ,  successivo  e 
contínuo  como  hade  ser  ,  se  deve  realisar  sem  vio- 
lência ;  e  por  elle  o  pensamento  religioso  da  frater- 
nidade universal.  Estes  princípios  elementares  e 
eternos  respcítaí-os  :  nem  discuti-los  vos  é  permit- 
lido.  Agora  o  vosso  domínio  ei-lo  aqui  —  os  interes- 
ses materiaes. 

Vasto  e  importante  domínio  I  Esses  interesses  são, 
na  opinião  do  auctor  ,  apoio  indispensável  e  condi- 
ção essencial  da  liberdade;  c  porque  o  são?  Por- 
que a  liberdade  consiste,  segundo  elle  ,  no  assegu- 
rar a  cada  um  os  meios  de  desenvolver  as  suas  fa- 
culdades,  c  de  as  exercer,  depois,  do  modo  mais 


vantajoso  a  si  e  aos  seus  similhantes.  E  como  o  ho- 
mem que  tem  fome  não  é  livre  ,  porque  não  pódc 
dispor  das  suas  faculdades ,  nem  desenvolve-las , 
nem  exerce-las  ;  moralmente  ,  embrutece-se  ;  in- 
telleclualmcnte  ,  cahe  em  torpor  ;  fisicamente  ,  fal- 
lece-lbe  até  a  força  bruta. —  É  mister  que  a  indus- 
tria, que  os  interesses  materiaes  venham  tira-lo  d'es- 
se  estado,  e  levantar-lhe  esse  interdicto.  Elles  com- 
tudo não  bastam  á  liberdade ,  personagem  do  mun- 
do moral  :  mais  alguma  cousa  é  preciso  a  esta  :  as- 
sim o  entende  o  auctor ,  e  nós ,  também ,  o  enten- 
demos. 

Continuando  sempre  o  fio  do  sen  pensamento ,  o 
escriptor  mostra  com  a  historia  na  mão  como  aos 
interesses  materiaes  se  prendem  os  destinos  da  ci- 
vilisação  inteira  ;  como  a  liberdade  e  a  industria 
são  solidarias  ;  como  os  progressos  da  primeira  se 
ligão  aos  da  segunda  ;  e  como  se  engrandece  o  al- 
vediio,  a  liberdade  do  homem  ,  estendendo  as  con- 
quistas da  humanidade  sobre  o  mundo  material.  O 
auctor  quer  chegar  e  chega  ao  facto  da  producção 
e  do  seu  augmento,  á  cultura  do  trigo  —  passo  im- 
portante do  selvanismo  primitivo  para  a  policia  das 
sociedades  modernas  ;  —  á  descoberta  e  applicação 
do  ferro  —  adiantamento  mais  considerável  ainda  ; — 
ao  desenvolvimento  da  potencia  productiva  ;  á  in- 
venção dos  instrumentos  da  industria  ,  órgãos  sup- 
plementares  que  o  homem  acrescenta  aos  seus  ór- 
gãos naturaes.  Olhando  então  para  as  sociedades  an- 
tigas, vè-as  miseráveis  ;  e  porque?  porque  a  sua  pro- 
ducção e  os  seus  instrumentos  productivos  eram  mes- 
quinhos. Contemplando  as  sociedades  modernas,  cn-  | 
contra-as  cm  muito  maior  auge  de  prosperidade  com-  i 
parativa  ;  e porque?  porque  o  seu  poder  productivo 
é  extraordinário  em  relação  ao  das  outras  —  de  seus  i 
antepassados.  I 

Assim  conclue  o  auctor  que  o  verdadeiro  remé- 
dio  aos  males  que   se  sentem  na  economia  das  na-         i 
ções,  é  o  augmento  da  producção:  —  produzir  mui- 
to ;  produzir  mais  ;  produzir  melhor  ;  produzir  com 
mais  brevidade  :    o  que  só  com   as  machinas ,   com         i 
os  instrumentos  aperfeiçoados    se  ha-de   conseguir.         ; 
.Alas  esses,  observa  o  auctor,    não  se  adquirem  se-         I 
não  com  a  economia,  resto  sobejo  dos  productos  do         | 
trabalho  anterior.  Sobre  a  economia,  que  é  —  seja-         | 
nos  licito  assim  qualificá-la  —  a  primeira  forma,   o         \ 
estado  primitivo  (los  capitães,  é  demasiadamente  omis- 
so :   e  não  o  devia  ser  n'este  ponto  gravíssimo  da 
sciencia,  o  qual,  apesar  de  se  ter  escripto  bastante         j 
acerca  d'elle.  não  reputámos  inteiramente  explorado.         ' 
Sem  embargo  d'esta  falta  nota  que  o  governo  fran- 
cez  poupa  todos  os  annos,  vai  em  7  ou  8,  cem  mi- 
lhões de   francos  para  melhoramento  das  vias  de 
communicação,  e  que  para  o  mesmo  fim  poupara  os 
departamentos  e  as  communas  (>0  milhões  de  fran- 
cos cm  cada  anno.   E  nota  também  o  peso  excessi- 
vo cora  que  grava  a  Europa  a  enormidade  dos  seus 
exércitos,  e  as  sommas  que,  segumdo-sc  outro  sys- 
tema,  ecouomisadas  n'este  ramo  se  podciiam  appli- 
car   a  uso  mais  productivo.   De  ambas   estas  consi- 
derações podemos  nós  ,    creio  cu  ,   tirar  no  que  nos 
são  appropriaveis  ,  algum  ensino  c  proveito. 

No  empcidio  de  augmentar  a  producção,  neste 
que  o  auctor  reputa  o  grande  c  serio  negocio  do  nos- 
so tempo,  prosegue.  buscando,  alem  das  machinas, 
outros  meios  mais  geraes  de  o  conseguir  ,  e  esses 
divide-os  em  trcs  :  vias  de  communicação,  institui- 
ções de  credito  —  e  educação  professional.  —  E  um 
pensar  systemaíico,  naaccepção  mais  plausível  d'cs- 


o   PANORAMA. 


13S 


ta  palavra,  fi  um  espirito  superior  que  havendo  des- 
coberto, nomeio  de  suas  meditarues,  uma  i  d  ('a  fun- 
damental, delia  seapodera,  enão  alarga  emqiian- 
to  a  não  tem  considerado  por  todas  as  suas  laces  , 
cm  quanto  não  vè  estendidos  as  raizcs  e  os  ramos 
d'essa  idéa  até  onde  o  comporta  o  objecto  onde  a 
emprega.  Convencido  de  que  as  classes  mais  nume- 
rosas da  sociedade  se  lia\iam  de  regenerar  e  felici- 
tar á  sombra  do  trabalho  e  da  industria  compoz  a 
sua  obra  —  Dos  interesses  materiaes  na  França — c 
n"essa  obra  tratou  cspecialmcnlc  dns  vias  de  com- 
municaião,  qnc  era  a  primeira  parle  do  seu  pensa- 
mento ;  promellcndo  expor  em  publicações  succes- 
sivas  a  sua  doutrina  sobre  instituições  de  credito  e 
educação  professional ,  cora  que  julgava  completar 
esse  mesmo  pensamento.  Agora  vai ,  da  cadeira  do 
magistério,  p(ír  o  remate  á  promessa  que  havia  fei- 
to. N'este  primeiro  anno  do  seu  curso  reconsiderou, 
c  magistralmente,  desde  a  10. ""  até  á  15."  lição  que 
é  a  ultima  ,  o  assumpto  das  estradas  ,  rios ,  e  ca- 
naes  ,  e  nos  seguintes  ha-de  examinar,  como  a  pri- 
meira, as  outras  duas  questões  ,  e  com  ellas  fechar 
o  seu  círculo  económico. 

Tratando  da  balança  do  commercio  e  da  theoria 
da  moeda  metallica  em  duas  lições  cheias  de  notí- 
cias interessantes  e  observações  engenhosas,  refere 
o  auctor  uma  indagação  curiosa  que  ha-dc  ,  se  lõr 
coroada  de  successos,  causar  uma  grande  revolução 
no  syslema  monetário.  Um  membro  doinstilulo,  M. 
Becquerel,  trabalha  ha  muitos  annos  para  achar 
meio  de  applicar  a  pilha  galvânica  ao  tratamento 
dos  mineraes  de  ouro  c  prata  :  se  o  chegar  a  con- 
seguir [e  al!irma-se  que  está  a  ponto d'isso]  empre- 
gado esse  agente  processo,  que  ha-de  ser  rauilomais 
expedito  que  o  azougue,  na  exploração  dasinexbau- 
riveis  minas  do  México,  renovar-se-ha  em  nossos 
dias  a  abundância,  e  a  depreciação  ao  mesmo  tem- 
po ,  do  dinheiro  que  se  presenciou  ha  obra  de  três 
séculos,  e  os  estados  que  maiores  soramas  possuí- 
rem experimentarão  uma  perda  considerável.  Isto 
receia  o  auctor  :  nós  accrcscentâmos  que  não  só  o 
numerário,  também  as  jóias  e  peças  de  ouro  e  pra- 
ta hão-de  soffrer  baixa  sensível  no  seu  valor  ,  se  o 
problema  que  occupa  a  attenção  do  cbimico  fran- 
cez  se  resolver.  Na  presença  de  um  tal  receio  os 
próprios  partidários  da  balança  do  commercio,  c 
ainda  os  mais  tenazes,  abjurarão  a  sua  errónea  cren- 
ça ,  e  desejarão  afastada  ,  não  atrahida  ;  escondida 
para  sempre  no  seio  da  terra  ,  não  lançada  na  cir- 
culação commercial  ;  essa  massa  prodigiosa  de  me- 
lacs  preciosos  qnc  ameaça  lançar  u'ella  o  preconi- 
sado  substituto  do  mercúrio. 

Depois  das  vias  de  communicação  este  assumpto 
da  moeda  metallica  é  o  mais  bem  desenvolvido  pe- 
lo auctor.  Mas  o  primeiro  é  o  seu  predilecto,  o  the- 
ma  dos  seus  estudos  especiacs.  Dá-Ihe  uma  prefe- 
rencia decidida  :  chama  primordial  á  industria  dos 
transportes  ,  porque  todas  as  outras  dependem  d'el- 
la  ;  e  se  tão  atrasada  ou  tão  susceptível  de  melho- 
ramento e  progresso  a  suppõe  ainda  em  França,  que 
diria  se  lançasse  os  olhos  sobre  a  de  Portugal? 

(Continuar-se-ha.) 
A.  d' O.  Marreca. 


AITTI^ITIDAS: 

Medalhas  achadas  em  Fcrmcdo  :  para  melhor  averi- 
guação do  que  chamam  —  cidade  rcsuscitada. 

JoKTo  a  Fermedo  estão  apparecendo  vestígios  de  an- 


tiga povoação.  Mas  qual  fosse  olla  c  em  que  tempo 
ó  o  que  resta  avcrigi--r.  Mais  de  um  edilicio  roma- 
no tem  o  nosso  Portugal  ;  c  se  o  castello  da  Feir.i 
SC  presume  ser  um  delles  ,  se  ainda  existem  nas 
nossas  províncias  do  norte  algumas  lapides  millia- 
rias,  nenhuma  dilliculdade  ha  para  conjecturarmos 
que  esses  edifícios  soterrados  ,  que  agora  vão  appa- 
recendo sejam  romanos  e  de  remota  antiguidade. 
Felizmente  o  abbadc  de  Homariz  encontrou  naqucl- 
les  mesmos  sitios  uma  quantidade  de  medalhas  ro- 
manas ,  que  existem  hoje  no  real  Archivo  da  Torre 
do  lombo,  as  quaes  ainda  que  poucas,  talvez  mui- 
to e  muito  interessem  para  o  nosso  assumpto.  N.t 
verdade,  .se  essas  medalhas  ,  cujo  uso  iirimitivo  foi 
o  de  moedas,  existiam  em  poder  de  seus  últimos 
possuidores  com  o  mesmo  uso  primitivo  ,  e  não  co- 
mo um  deposito  de  curiosidade  ,  como  hoje  as  tem 
os  nossos  medalheiros,  dão  toda  a  rasão  plausível  a 
accreditar  que  esses  edilicios  ,  sens  companheiros 
de  fortuna  ,  tem  a  mesma  antiguidade  que  as  mes- 
mas medalhas. 

Vejamos  por  tanto  quaes  são  estas  medalhas  pre- 
cursoras de  um  achado  tão  precioso  para  os  ama- 
dores de  antiguidades  [sendo  a  daquelles  edificios 
que  se  vão  descobrindo,  como  presumimos,  supe- 
rior ádas  duas  cidades,  que  as  lavas  do  Vesúvio  ou- 
trora submergiram].  Porem  dêmos  primeiro  uma  no- 
ção geral  aos  índoutos  da  classificação  que  os  liu- 
misTualicos  fazem  das  moedas  ou  medalhas  romanas. 
Di\idcm  elles  as  mesmas  moedas  ou  medalhas  em 
consulares  e  imperiaes.  Ordenam  as  segundas  chro- 
nologicamente  com  referencia  ao  governo  de  cada 
imperador:  em  quanto  ás  consulares  ,  porem  ,  não 
tendo  ellas  caracter  algum  certo  que  dislinguam  os 
consulados  as  classificam  pelas  famílias  dos  magis- 
trados ,  que  tinham  a  inspecção  da  moeda. 

Dada  esta  noção  passemos  a  fallar  das  medalha* 
em  questão.  São  todas  consulares,  e  todas  ou  qua- 
si  todas  denarios  ;  e  confrontadas  com  a  magnifica 
obra  =  Thesaurus  Morellianus  =  se  vè  pertencerem 
ás  seguintes  famílias:  — 

1  á  família  vElia  —  1  á  /Emília  —  1  áAtilia — 1 
a'Ca;cilia  —  2  áCalpurnia  —  1  á  Claudia  —  1  á  Clou- 
lia  ou  Clwlia  —  3  á  Cornélia  —  1  á  Cossutia  —  2  á 
Crepusia  —  1  á  Cupienna  —  1  á  Egnalia  —  2  á  Fa- 
bia — 1  á  Fannia  —  1  á  Farruleia  —  2  á  Flaminia 
3  á  Fúria  —  1  á  Herennia — 1  á  Junia  —  1  á  Lu- 
cretia  —  lá  Lutatia  —  1  á  Manilia  —  2  á  Maniia  — 
2  á  Mareia — 1  á  Maria  —  2  á  Minutia  —  1  á  Ncr- 
bana  —  2  á  Porcia  —  1  á  Uubria  —  1  á  Rutilia  — 
—  1  á  Satriena  —  1  á  Saufeia  —  1  á  Sentia  —  4  á 
Sergia  —  lá  Thoria  —  2  á  Titia  —  lá  Tituria  —  1 
á  Valeria  —  1  áVargunteia  —  7  ãVibia  —  1  á  Vol- 
teia.—  Sonima  63  ;  8  incertas;  1  do  mesmo  tama- 
nho, propriamente  hispânica  com  caracteres  desco- 
nhecidos. Total  das  medalhas  remettidas  ao  Arcbi- 
vo  72. 

Se  pois  estas  medalhas  ficaram  enterradas  no  mes- 
mo tempo  que  os  edificios,  e  se  ellas  então  tinham 
o  uso  de  moeda  corrente  ,  está  bem  provado  que  a 
desgraça  commum  desses  objectos  foi  pelo  menos 
nos  últimos  tempos  da  republica  romana  ,  isto  é  , 
há  já  decorridos  li>  séculos  completos. 

,..   _  ,^ M.  J.  U. 

Vantajosa  separação  das  duas  ameeicas. 

Em  sessão  de  26  de  dezembro  de  1842  annunciou 
o  Sr.  barão  de  Humboldt  á  Academia  de  Sciencias 
encorporada  no  Instituto  de  França  que  os  trabalhos 


136 


O  PANORAMA. 


preparatórios  para  o  córlc  do  isthmo  de  Panamá 
proggridem  rapidamente.  Empreza  c  esta  mais  gi- 
gante que  a  do  cgypcio  Scsostris  que  iutentára  cor- 
tar u  istliino  de  Suez  ;  e  por  um  canal  al)erto  nessa 
lingua  de  terra  ,  que  prende  a  Africa  á  Ásia,  sepa- 
rar os  dois  continentes. 

A  coHimissão,  auclorisada  pelo  governo  da  ísova- 
dranada  [lara  construir  um  canal  entre  o  oceano  pa- 
cífico e  o  golpho  do  México,  terminou  o  reconheci- 
mento dos  terrenos  ,  e  obteve  um  resultado  tão  fe- 
liz como  inesperado.  O  encadeamento  das  cordilhei- 
ras não  se  prolonga  ,  como  se  cria  ,  atravez  do  is- 
thmo, e  ao  contrario  reconhcceu-se  a  existência  de 
um  valle  mui  adequado  á  tentativa  ;  a  disposição 
uatural  das  aguas  é  igualmente  mui  vantajosa.  Jun- 
tar-sc-hão  ao  canal  três  rios  fáceis  de  encaminhar; 
aquelle  lerá  49  milhas  hispânicas  d'extensão,  135 
pés  castelhanos  de  largo  ao  nivel  d"agua  ,  e  55  no 
fundo,  tendo  de  profundidade  20  pés;  por  onde  po- 
derão navegar  embarcações  de  mil  a  l.iOd  tonela- 
das. Das  plantas  e  orçamentos  do  ingenheiro  fran- 
cez.  Morei,  resulta  que  o  cosleamento  total,  incluí- 
da a  compra  de  dois  barcos  movidos  por  vapor,  não 
excederá  a  56  milhões  de  reales. 

Se  vier  a  realisar-so  tão  grande  projecto  causará, 
como  outrora  a  passagem  á  índia  pelo  Cabo  delioa- 
Esperança  ,  revolução  completa  no  commercio  ma- 
rítimo ,  fazendo  que  se  abandone  a  navegação  pelo 
r.abo  de  Horn  ,  e  encurtando  três  mil  léguas  marí- 
timas as  viagens  que  procederem  do  mar  do  Sul  ;  e 
o  estabelecimenlo  que  osfrancezes  ha  pouco  fizeram 
nas  ilhas  Marquezas  chegará  a  ser  de  alta  impor- 
tância ,  c  Colónia  mui  llorenle. 

O  isthmo  de  Panamá  propriamente  dito  é  a  mais 
oriental  e  a  mais  estreita  porção  da  grande  facha  de 
terra  pela  qual  estão  unidas  as  duas  Américas  ;  nie- 
dindo-se  pela  curva  que  descreve  achar-se-ha  que 
tem  de  extensão  de  leste  a  oeste  perto  de  500  mi- 
lhas náuticas  inglezas  [150  léguas  portug.  de  18  ao 
grau] ;  porem  a  sua  largura  varia  de  30  a  100  mi- 
lhas [9  a  30  das  ditas  léguas]. 

1'ostoque  a  largura  do  isthmo  ,  comparativamente 
pequena,  fosse  descoberta  cedo,  e  patentes  as  gran- 
des vantagens  que  podia  oflerecer  de  prompla  e  fá- 
cil communicação  entre  o  Atlântico  e  o  Pacifico  , 
por  tresentos  annos  depois  do  descobrimento  perma- 
neceram desconhecidos  os  caracteres  natnraes  deste 
terreno  ;  até  que  o  inglez  LIoyd  em  o  nosso  século 
o  visitou  e  examinou  no  sitio  mais  oriental  e  es- 
treito ;  e  mostrou  que  bem  longe  de  agreste  e  ári- 
do ,  como  alguns  suppunham  ,  é  feraz  e  cultivável  ; 
só  de  arvores  ,  de  úteis  madeiras  ,  reconheceu  90  ; 
e  algumas  delias  dão  fructos  bons  para  comer.  O 
isthmo  constituo  um  departamento  da  republica  da 
Nova-Granada  ,  dividido  em  2  províncias:  mas  tal- 
vez que  mais  de  um  terço  do  território  ainda  este- 
ja occupado  pelas  tribus  aborígenes, 


6ibli0ôvaj)ljia. 

f  —  Compendiei  dn  Geometria  prarlira  applicada  ás 
operações  de  Desenho.  Lisboa  1839. —  // —  No- 
ções theoricas  de  Architectura  civil .  Ibi.  Idem.  — 
IH  —  FAemrntos  de  Perspectiva  Thcorica  c.  Pra- 
fílica.    Ih.  18Í2. 

KsT\8  trcs  obras  publicadas  succcssívamcnte  pelo 
.Sur.  J.  da  C.  .Sequeira,  Professor  e  Secretario  da 


.\cademia  de  Bellas-Artes ,  e  por  elle  destinadas 
principalmente  ,  segundo  se  colhe  das  suas  mesmas 
palavras,  para  ouso  dos  discípulos  da  .-Vcademia 
das  líellas-Artes  de  Lísbua  ,  são  um  grande  e  im- 
portante serviço  feito  pelo  Sur.  Sequeira  ao  seu 
paíz.  íi  por  isso  que,  attcntos  sempre  a  tornar  ge- 
ralmente conhecido  tudo  aquillo  de  que  pode  resul- 
tar utilidade  ou  gloria  para  esta  pobre  terra  de  Por- 
tugal ,  julgámos  dever  nosso  dar  noticia  destes  es- 
críptos  que  preenchem,  não  um  só,  mas  ambos 
aquelles  fins. 

A  arte  é  una  :  as  suas  formulas  são  varias.  Quan- 
do ella  toma  a  linguagem  humana  por  expressão  , 
precisa  d'acceitar  as  condições  positivas  da  lingua 
que  o  artista  escolheu  para  traduzir  os  seus  pensa- 
mentos; se  a  utilidade  dos  preceitos  arbitrários  das 
doutrinas  litterarias  é  mais  que  duvidosa  ,  a  da 
grammalica  é  incontestável  :  assim  nas  formas  plás- 
ticas da  arte,  em  que  a  matéria  e  a  extensão  cons- 
tituem o  domínio  do  artista  ,  e  portanto  é  seu  mis- 
ter fallar  aos  olhos  ,  elle  forçosamente  ha-de  accei- 
tar  as  condições  absolutas  dos  corpos  e  da  visuali- 
dade. É  o  conhecimento  indispensável  dessas  con- 
dições que  o  Snr.  Sequeira  qniz  facilitar  aos  discí- 
pulos da  Academia,  e  aquelles  artistas  que  porven- 
tura as  ignorarem.  Cultor  especial  da  Architectura 
dedicou,  porem,  a  esta  arte  um  trabalho  particular, 
compilado  em  resumo  do  que  melhor  havia  sobre  a 
matéria  ,  e  que  o  digno  Professor  completou  com  a 
traducção  do  Tractado  sobre  as  cinco  ordens,  com- 
posto pelo  celebre  Vignola. 

O  Sfir.  Sequeira  entendeu  perfeitamente  o  que 
acima  dissemos  sobre  as  condições  absolutas  das 
artes  plásticas  ;  entendeu  uma  grande  verdade,  que 
alguns  artistas  parecem  menoscabar  —  a  necessida- 
de de  se  instruírem  nos  princípios  scíentiDcos,  que 
sem  estudo  nunca  o  maior  e  mais  alto  engenho  po- 
derá supprír.  Crccm  elles  que  os  artistas  da  edade 
media  eram  homens  de  menos  génio,  de  mais  li- 
mitada inspiração  ,  que  os  dos  tempos  posteriores 
ao  renascimento?  Não  o  eram  por  certo:  porventu- 
ra a  sua  fé  na  arte  foi  mais  viva  e  pura  que  a  dos 
modernos  ;  porque  a  arte  se  estribava  então  na  cren- 
ça religiosa.  Porque,  pois,  são  geralmente  as  suas 
obras  inferiores  ás  que  appareccram  depois?  Por- 
que elles  eram  incomparavelmente  mais  ignorantes 
das  condições  physicas  do  mundo,  das  leis  que  pre- 
sidem ao  modo  de  ser  dos  corpos.  D'aqui  nasce  a 
precisão  do  estudo  positivo,  sem  o  qual  nenhum  ar- 
tista, sejam  quaes  forem  os  seus  dotes  intellcctuaes, 
chegará  a  ser  verdadeiramente  grande. 

O  que  nas  publicações  do  Snr.  Sequeira  contri- 
buc  notavelmente  para  a  gloria  das  artes  portugue- 
zas  é  a  execução  das  numerosas  estampas ,  que 
acompanham  os  Elementos  de  Perspectiva  e  as  No- 
ções d'iArchilectura  ,  desenhadas  pelo  illustre  pro- 
fessor ,  e  gravadas  pelos  Shrs.  Almeida  ,  Monteiro  . 
Santos  ,  e  Uibciro.  Estas  (/raruras  são  ,  como  obser- 
vou já  outro  jornal,  d'uma  clareza,  exacção,  e  até 
elegância  ,  que  nada  teem  para  invejar  ás  estran- 
geiras neste  género  ,  obtendo  assim  o  Snr.  Sequei- 
ra o  que  nem  sempre  cm  semelhantes  trabalhos  se 
alcança  —  excelleutes  interpretes  dos  seus  excellen- 
tes  desenhos. 

(A.  Herculano.] 


Dkspreza  os  hypocritas.  ou  da-lhes  o  que  anhelam, 
verás  logo  desenrugadas  as  carrancas  do  seu  embu.s- 
le,  que  quasL  sempre  inclina  á  avareza  e  ambição. 


71 


o  PATSORA^IA. 


137 


. -  t,-    ■ 


»Au£.£S. 


Nobre  e  grandemente  nacional  foi  o  pensamento  da 
erecção  de  uni  monumento  á  memoria  do  infante 
D.Henrique,  no  próprio  logar  que  elle  havia  esco- 
lhido para  estabelecer  a  famosa  eschola  de  mathe- 
maticas  e  navegarão,  donde  sahiram  os  nossos  pri- 
meiros navegadores  ,  e  que  por  consequência  foi  a 
origem  dos  pasmosos  descobrimentos  que  devassa- 
ram á  Europa  os  mares  ,  portos  e  preciosidades  do 
Oriente.  —  Sagres,  que  o  infante  fundou  á  volta  de 
Ceuta  ,  c  onde  residiu  por  muito  tempo  e  veio  a 
findar  seus  dias ,  hoje  sitio  quasi  ermo  ,  reduzido  a 
uma  praça  marítima  de  diminuta  guarnição  ,  é  um 
nome  tradicional  e  histórico  ,  que  percorre  o  mun- 
do por  beneficio  da  impressão  :  mas  os  olhos  dos 
que  a  visitaram  até  ISiO  não  descobriram  uma  pe- 
dra ,  nma  inscripção  ,  que  lhes  avivasse  a  recorda- 
ção, exarando  a  gloria  do  illustre  D.  Henrique.  Es- 
ta oodoa  de  negligente  esquecimento  ,  de  que  para 
com  tantos  varões  beneméritos  da  pátria  somos  cul- 
pados,  foi  apagada  no  anno  apontado  ,  assentandq- 
se  o  monumento  ,  com  as  inscripções  que  diremos 
adiante  ,  a  pag.  1  íO. 

A  ponta  ,  ou  promontório  de  Sagres  ,  na  costa  do 
Algarve  ,  obra  de  uma  légua  a  leste  do  Cabo  de  S. 
Vicente  (1)  ,  forma  uma  península  de  450  braças 
d'extensão,  desde  o  meio  da  garganta  do  islhrao  ou 
lingueta  que  a  prende  á  terra  até  a  ponta  que  mais 
entra  pelo  mar  e  na  direcção  de  nordeste  a  sudoes- 
te ,  com  200  braças  na  maior  largura  ,  que  é  quasi 
ao  meio  desta  superficie  (2).  O  solo  é  um  rochedo 
escalvado  ,  que  apenas  em  algumas  fendas  entupi- 
das d'areóla  mantém  a  enfezada  vegetação  de  mat- 
to  rasteiro ,  que  não  cresce  mais  de  ura  palmo  aci- 
ma do  chão  :  parece  que  esta  assentado  em  aboba- 
da feita  pela  natureza  e  o  correr  dos  annos,  o  que 
se  confirma  pelas  concavidades  na  raiz  banhada  pe- 
las ondas,  e  mais  ainda  pelas  aberturas  do  nivcl  su- 
perior ,   que  são  outros  tantos  respiradouros ,   por 


(1)  Vid.  estampa  e  nolícia  a  paf.  117  do  vol-  antece- 
dente. 

(4)  Exiractátnos  esla  informação  do  relatório  circums- 
taDciado  qiie  o  Sr.  Ix)ureDçc  Germack  Possollo  appreseDtou 
ao  Governo. 

M.UO  6—1843. 


onde  resfolga  impetuosamente  o  vento  ,  e  jorra  o 
mar  a  grande  altura  espalhando  a  larga  distancia  a 
salsugcm  ,  que  esterilisa  os  campos  contíguos  ao 
promontório. 

X  fortificação  desta  paragem  [com  toda  a  proba- 
bilidade] deveu  sua  origem  ao  infante  D.  Henrique  ; 
em  tempo  de  Filippe  3.°,  pelos  annos  de  i(i31  ,  a 
repararam  ;  e  foi  reformada  muito  posteriormente  , 
em  1793  :  por  isso  é  de  crer  que  ,  tomando  nós  de 
um  a/6ií»i  antigo  o  desenho  ,  que  copiámos  ,  algu- 
mas differenças  possam  notar-se  :  quanto  ás  casas 
ou  paços  onde  morou  o  infante  e  tivera  as  escholas, 
não  se  encontram  vestígios  certos  ,  apesar  das  pou- 
cas tradições  locaes  que  se  conservaram  ;  nem  as 
conjecturas  podem  tomar  bases  seguras,  porque  fo- 
ram destruídos  os  documentos  e  livros  da  camará 
de  Sagres  ,  quando  o  seu  mui  limitado  concelho  foi 
annexado  ao  de  Villa  do  Bispo.  A  fortificação  exis- 
tente quadra  o  termo  próprio  de  tenalha  .  sem  fos- 
so, nem  estrada  coberta,  servindo-lhe  d'esplanada 
o  terreno  com  a  sua  inclinação  natural  para  o  lado 
da  campanha,  que  é  plana  e  se  descobre  na  distan- 
cia de  mais  de  duas  léguas;  e  quasi  até  o  alcance 
da  artilheria  ,  principiando  da  raiz  da  muralha  ,  é 
incapaz  de  admittir  os  trabalhos  de  apro.rcs ,  por 
ser  rocha  da  mesma  natureza  da  península,  com  al- 
gumas pequenas  ondulações.  Dos  extremos  dos  meios 
baluartes  corre  a  muralha  pelas  extremidades  da 
rocha  ,  fechando  assim  de  ambos  os  lados  os  ba- 
luartes ,  e  nestes  raraaes  de  muralha  estão  forma- 
das duas  baterias  para  guardar  as  bahias.  Contigua 
á  cortina  e  quasi  no  meio  delia  para  o  interior  da 
praça  ,  existe  uma  torre  quadrangular  ,  de  50  pal- 
mos d'altura  ,  com  12,  14,  o  1!S  de  espessura  no 
pé  das  muralhas  que  a  compõem.  A  entrada  prin- 
cipal da  praça  ,  no  exterior  ao  moio  da  cortina  por 
um  corredor  que  atravessa  o  seu  reparo  ,  é  conti- 
nuada por  baixo  da  abobada  da  torre  ,  onde  forma 
uma  porta  para  o  interior  da  praça,  junto  da  qual 
e  encostada  á  torre  está  a  entrada  para  o  corpo  da 
guarda.  O  alto  da  torre  ou  a  sua  plataforma  c  guar- 
necida de  parapeitos  ,  formando  um  pentágono  re- 
gular com  o  vértice  para  a  campanha  ,  com  canho- 

2.'  Serie.  —  Voi,.  II. 


138 


O   PANORAMA. 


neiras  rasgadas,  ficando  a  cavalleiro  da  recinto  ma- 
gistral, iv  esta  torre  o  único  edifício  existente ,  que 
indica  mais  remota  antiguidade  ,  e  por  ser  o  mais 
nobre  da  praça  foi  escolhido  pelo  hábil  otficial,  en- 
carregado da  coUocação  do  monumenlo,  oSúr.  ?os- 
sollo ,  que  o  fez  assentar  na  parede  por  cima  da 
porta.  —  Quanto  aos  quartéis  ,  feitos  em  1793  sao 
edifícios  acconimodados  ao  intento  ,  mas  pequenos  , 
nem  tem  cousa  que  mereça  especial  menção.  IVo  ex- 
tremo da  peninsula  ha  duas  pequenas  baterias  ,  a 
leste  e  a  oeste,  que  entre  si  distam  cento  e  trinta  e 
cinco  braças. 


SaOlTOlCIii  PSLITICA- 

Considerações  sobre  o  Curso  d' Economia  Poliiica,  pu- 
blicado em  Paris  cm  1842  pelo  Sr.  Miguel  Clieva- 
licr. 

II. 

£  FACTO  verdadeiramente  singular  na  historia  das 
nações  este  da  nossa  ,  que  tendo  nós  descoberto  e 
dobrado  o  cabo  de  Boa-Esperança  ,  doando  assim  á 
custa  de  muito  sangue  e  cabedal  nosso  aos  povos 
de  ambos  os  hcmispherios  uma  estrada  magnifica  , 
muito  mais  facil  e  barata  que  a  antiga  para  o  car- 
reto dos  seus  productos,  despresassemos  as  commu- 
nicações  do  nosso  solo  natal  ao  ponto  que  todos  ve- 
mos!  Bastava  que  das  riquezas,  que  grangearam  no 
commercio  das  colónias,  consagrassem  os  nossos  an- 
tepassados uma  parceila  cenlesimal  ;ís  estradas  c  ao 
aperfeiçoanienlo  dos  nossos  rios  para  que  hoje  fos- 
semos o  que  não  somos  por  nus  faltar  este  titulo  de 
civilisação  —  uma  nação  curopea.  Não  o  fizeram. 
Absolve-los  do  seu  descuido  ,  emendando-os  ,  era  o 
que  nos  cumpria.  Mas  não  só  absolvidos,  justifica- 
dos estão  por  nosso  desleixo. 

E  comtudo  não  ha  nada  mais  fatal  do  que  este 
desleixo  á  prosjieridade  do  reino.  As  más  eslr.idns 
ou  a  falta  delias  podem  dobrar  e  até  quadruplicar 
o  preço  dos  géneros  ,  sem  que  o  produclor  utilise 
esse  excesso  que  é  prejudicial  ao  consumidor  —  o 
preço  do  trabalho,  sem  que  o  trabalhador  utilise  es- 
se excesso,  que  ó  cm  damno  do  proprietário  —  e  o 
lireco  do  transporte ,  sem  que  ninguém  utilise  es- 
se excesso,  que  é  todo  em  detrimento  do  produclor 
c  do  consumidor  juntamente.  É  uma  perda  gera! 
para  toda  a  sociedade. 

Esta  perda  é  incalculável  no  estado  ,  para  deplo- 
rar ,  das  nossas  estradas,  e  navegação  interna.  Ha 
porções  consideráveis  de  terreno  que  carecera  abso- 
lutamente de  caminhos  transitáveis ;  ha  rios  e  cor- 
rentes que  não  prestam  nenhum  serviço  <á  conduc- 
ção  ,  porque  não  tem  sido  aproveitados  ,  canalisa- 
dos,  ou,  emfim,  meltidos  no  grémio  dos  instrumen- 
tos productivos  por  meio  de  obras  convenientes.  O 
principal  damno  que  resulta  deste  abandono,  é  a 
impossibilidade  ou  a  carestia  do  carreto:  o  outro, 
lambem  assaz  grave,  é  causado  á  saudc  publica  e  à 
cultura  :  á  saúde  publica  pela  estagnação  das  aguas 
c  deposito  que  fazem  de  resíduos  animacs  e  vege- 
taes  expostos  ao  ardor  do  sol  ;  donde  nascem  inter- 
mitlontcs  no  nosso  Kiba-Téjo,  em  Silves  e  suas  im- 
niediações  no  Algarve,  e  em  outras  partes  do  reino: 
;í  cultura  pela  inundação,  e  repreza  das  aguas  cm 
terras  aráveis  ,  causada  da  sinuosidiídc  e  direcção 
irregular  das  correntes.  Quem  esmar  ,  não  digo  já 
calcular  ,  por  um  lado  os  terrenos  que  assim  são 
perdidos  para  a  lavoura  ,  e  por  outro  os  indivíduos  I 


que  a  morte  dizima  ,  ou  a  doença  inutilisa  tempo- 
rariamente por  esto  motivo  ,  ha-de  affligir-se .  c  la- 
mentar o  descuido  com  que  tem  sido  entre  nós  tra- 
tado este  ramo  do  serviço  publico. 

Mas  não  olhemos  esta  face  do  objecto  ,  o  nem 
mesmo  o  ciamno  negativo  que  está  sofTrendo  a  cul- 
tura cm  algumas  partes  do  nosso  solo  por  falta  de 
irrigações  :  contemplemos  somente  o  transporte.  O 
transporte  onde  elle  é  possível  —  que  cm  muitas  lo- 
calidades não  é  —  está-nos  custando,  pelo  menos, 
duas  vezes  mais  do  que  devia  custar-nos  ,  se  as 
nossas  communicações  ,  terrestres  e  Duviacs  ,  csli- 
vesscm  em  lermos  ,  não  quero  que  de  perfeição  ,  de 
mediania.  E  digo  de  mediania,  porque  tomáramos 
nós  alcança-la  em  nossos  dias.  Suppondo  —  c  sim- 
[)lcs  supposição  ,  raas  não  pecca  por  excesso  —  que 
actualmente  íe  dispenda  no  transporte  de  homens  c 
mercadorias  dois  terços  sobre  o  esforço  que  devia 
ser-nos  necessário  n'um  estado  regular  de  commu- 
nicações internas ,  é  evidente  que  esse  accrescimo 
de  esforço  que  podia  ser  empregado  n'outros  traba- 
lhos industriaes ,  fica  absorvido  nos  d>  carreto.  Se 
estimarmos  em  5000  rs.  a  renda  anuual  de  cada 
portuguez  da  Europa  ,  distribuída  por  uma  popula- 
ção de  3:300:000  habitantes,  a  totalidade  d'essa 
renda  será  ICo  mil  contos.  E  se  calcularmos  o  cus- 
to dos  transportes  no  vigésimo  d'ella  ,  a  totalidade 
d'esse  custo  serão  8:230  contos  ,  cujos  dois  terços  , 
que  é  o  que  perdemos,  por  supposição  ,  [não  exag- 
gerada]  annualmenle  no  carreto  ,  montam  á  somma 
enorme  de  7500  coutos  I  Eis-aqui  o  que  desperdi- 
çámos annualmeulc,  só  nntocantc  adcspeza  dctrans- 
portes  ,  por  não  allendermos  á  viação  das  estradas 
e  rios.  Desperdiçámos  uma  quantia  que  excede  ao 
triplo  do  juro  anuii.il  da  divida  estrangeira  ,  a  dois 
terços  da  nossa  reccila  ,  c  é  igual  á  subsistência  de 
75000  pessoas,  orçada  cm  100000  rs.  annuaes  por 
cada  uma. 

Sem  melhoramento  n'este  ramo  não  podemos  dar 
um  passo  em  nenhum  outro  :  e  a  nossa  agricultura, 
em  que  lemos  obtido  muitas  vantagens  desde  as  me- 
didas económicas  da  restauração,  ha-de  parar  no  seu 
adiantamento  e  até  retroceder  em  chegando  a  certo 
ponto  ,  se  lhe  não  facilitarem  a  locomoção  ;  porque 
não  basta  tè-la  desassombrado  dosobslaculos  moraes 
que  se  oppiuiham  á  sua  circulação  ,  é  indispensável 
libcrla-la  de  outros,  que  são  os  fisicos  ,  oficrccidos 
pelas  distancias,  e  a  natureza  do  terreno. 

Um  dos  iiiciinvenienlcs  que  appresenta  esta  con- 
dição, verdadeiramente  africana  ,  das  nossas  com- 
municações, a  que  bem  pouca,  se  alguma,  atlenção 
seda,  consiste  na  impossibilidade  em([ue  nos  põem 
de  orçar  o  quantijm  de  impostos  que,  sem  risco  da 
sua  \ilali(ladc,  podem  supportar  as  nossas  forças 
productivas.  Os  cálculos  que  se  fazem,  comparando 
a  prrn  I!a  pecuniária  de  tributos  que  em  Portugal 
foca  a  cada  individuo  cora  a  quota  análoga  em  ou- 
tros paizes  ,  para  se  concluir  que  os  nossos  contri- 
buintes estão  mais  aliviados  que  os  de  algumas  na- 
ções, são  completamente  defectivos  ;  porque  ainda 
que  oito  vinténs  sejam  ígnaes  a  um  franco,  na  rela- 
ção mondaria  ,  esta  mesma  quantia  tem  diirercntc 
valor  permutável  segundo  os  diUcrentes  paizes,  c  o 
imposto  de  um  franco  pago  na  Bélgica  não  equiva- 
le a  um  imposto  de  oito  vinténs  pago  em  Portugal. 
Mas  ,  sobre  tudo  ,  a  importância  das  coiilrihniçõcs 
que  uma  nação  pôde  [lagar  não  se  regnl.i  peio  que 
|)ag,im  ou  podem  pagar  as  outras  :  regula-sc  pela 
facilidade,  maior  ou  menor,  da  producção  nacional 
de  cada  povo.  O  povo  onde  a  producção  c  facíl  pó- 


o  PANORA^IA. 


139 


de  ser  mais  tributado  do  que  outro  onde  c  dillieil ; 
e  as  dilliculdadcs  que  ella  cncoiilra  são  outros  tan- 
tos impostos  ,  negativos  para  o  estado  que  os  não 
recebe  ,  onerosos  para  os  particulares  que  os  sup-  | 
portam  em  pura  perda.  Ora  d'estes  um  dos  mais 
pesados  que  a  nós  nos  gravam,  cque  ninguém  nict- 
te  em  conta  ,  é  a  falta  de  comnuiiiicaçõcs.  Tributo 
d'esta  cs(>ecic,  tão  avultado  como  o  que  nos  oppri- 
me  ,  não  opprimc  a  nenhum  paiz  da  Europa  ,  exce- 
ptuando a  Rússia.  Por  isso  aflirmci  eu  que  o  esta- 
do dos  nossos  caminhos  e  na\egnção  interna  nos 
conslilnia  na  impossibilidade  do  avaliar  ale  onde 
podia  subir,  sem  damno  das  fatuldndes  producti- 
vas  do  reino  ,  o  algarismo  dos  nossos  tributos. 

Uma  das  maiores  vantagens  dasconducçõcs  fáceis  e 
expeditas  é  a  l)arateza  dos  géneros;  e  abaratezados 
géneros,  sobre  tudo  d'alguns  dos  de  mais  geral  consu- 
mo, é  um  dos  indicios  mais  infalliveis  da  prosperida- 
de de  ura  paiz.  Esta  barateza  proiiorciona  melhor  aos 
cidadãos,  quando  consomem  ,  a  satisfação  das  suas 
necessidades ,  e  até  assegura  mais  aos  que  produ- 
zem a  extracção  dos  seus  productos.  Aos  producto- 
res ,  certamente  ,  conviria  mais  a  elevação  dos  pre- 
ços ,  se  a  fortuna  do  grande  numero  que  consome 
podessc  com  estes  :  mas  não  podendo  ,  o  resultado 
dos  preços  altos  será  sempre  uma  diminuição  pro- 
porcional na  extracção  das  mercadorias  ,  que  nin- 
guém ha-de  allirmar  seja  favorável  aos  interesses 
dos  que  as  produzem.  Não  é  dos  géneros  raros  em 
rasão  de  monopólio  natural,  nem  de  alguns  artigos 
agricoias,  indispensáveis,  mas  de  produccão,  limi- 
tada pela  natureza  das  cousas,  que  trato,  que  os  pri- 
meiros não  podem  chegar  ás  classes  mais  numerosas 
da  sociedade,  e  por  isso  mesmo  ou  o  seu  preço  ha- 
de  forçosamente  ser  subido,  ou  o  seu  fabrico  aban- 
donado ;  e  a  depreciação  extrema  dos  segundos  não 
pôde  ser  argumento  da  fortuna  nacional  :  fallo  dos 
procurados  por  essas  classes ,  e  necessários  á  sua 
subsistência  :  e  reduzo  a  questão  á  ultima  simplici- 
dade dizendo  :  que  a  prosperidade  não  pôde  conce- 
ber-se  sem  a  abundância  ,  e  que  a  abundância  não 
pôde  casar-se  permanentemente  com  os  allus  preços 
dos  productos  cm  muitos  casos  ,  c  da  produccão  em 
todos.  Que  se  por  outro  lado  se  considerar,  que  ha 
productos  no  nosso  paiz,  os  quaes  não  podem  sahir 
do  berço  onde  nascem  ,  ou  passar  alem  de  um  raio 
mui  limitado  de  consumo  ,  por  carestia  ou  impossi- 
hilidade  de  transporte,  q\iem  se  atreverá  a  duvidar 
de  que  este  mal  está  reclamando  remédio,  e  prom- 
pto? 

Províncias  e  pontos  ha  no  reino  mais  distantes  de 
outros  pontos  do  reino  do  que  de  alguns  paizes  da 
Europa  ;  mais  distantes  ,  pelas  léguas  não  ,  pelos 
maus  caminhos.  Esta  casta  de  distancia  obrigava 
Lisboa  a  importar  trigo  de  Odcssa  :  e  ainda  hoje  a 
obrigaria  ,  como  ha  bem  poucos  annos  ,  se  o  au- 
gmcnlo  dos  cereaes  no  Riba-téjo  e  n"outras  partes 
a  não  bastecesse  d'elles.  A  experiência  de  lodos  os 
dias  ,  e  o  simples  instincto  estão  ensinando  que  as 
fabricas  e  as  terras  de  lavoura  quanto  mais  próxi- 
mas ás  grandes  povoações  c  cidades  ,  tanto  mais 
augmentam  em  lucro  e  em  valor  :  e  que  tanto  mais 
diminuem  em  ambos,  quanto  mais  se  aflastara  d'es- 
tes  grandes  focos  de  consumo.  Figuremos  um  trian- 
gulo :  os  productos  estejam  no  vértice  :  os  consu- 
midores na  base  :  os  dois  lados  sejam  as  estra- 
das terrestres  ou  Duviaes,  por  onde  se  hão-de  con- 
duzir os  productos  ao  centro  do  consumo.  Quanto 
mais  próximos   estes  se  acharem  da  base  ,   melhor 


consumidores.  Mas  se  não  poderem  nascer  senão 
no  vértice  ,  quanto  mais  facil  e  rápido  fòr  o  mo- 
vimento com  que  desçam  para  a  base  ,  tanto  me- 
lhor. Sc  o  género  se  achar  distante  do  consumidor 
dez  léguas  que  se  possam  vencer  era  5  horas  ,  es- 
tará na  realidade  mais  próximo  do  que  achando-se 
na  distancia  somente  de  oito  léguas,  as  quaes  com- 
tudo  ,  pela  inferioridade  dos  caminhos  ,  apenas  pos- 
sam vencer-se  em  (>  horas.  Assim  é  que  Odessa  es- 
tá mais  perto  de  Lisboa  do  que  o  Alenitejo,  pela 
economia  Trapidez  c  barateza]  dos  transportes,  não 
pela  medida  linear  das  distancias. 

Andai  para  diante  —  prourrssn  ,  progresso!  nos 
clamam  de  toda  a  parle.  —  Também  o  queremos  ; 
mas  como  andar  para  diante,  se  nós  não  lemos  es- 
tradas! E  como  as  escusaremos  se  ellas  significam 
tudo  isto  —  na  ordem  económica  ,  barateza,  abun- 
dância e  eommercio  —  na  ordem  civil  ,  segurança  — 
na  ordem  politica  ,  nacionalidade  —  na  ordem  mo- 
ral ,  civilisação?  Era  quanto  as  mercadorias ,  os  ho- 
mens ,  as  idéas  ,  os  costumes  ,  e  as  alTeições  nacio- 
naes  não  circularem  facilmente  por  lodos  os  angules 
do  reino  ,  eommercio  interno  ,  segurança  ,  naciona- 
lidade, civilisação  serão  vozes  para  nós,  vozes  vsns 
sem  significado  real  que  lhes  corresponda  :  Lisboa 
e  Porto  serão  cidades  porlnguezas  de  Europa  :  mas 
as  nossas  aldèas  sertanejas  serão  terras  calaras  de 
Africa.  É  preciso  estabelecer  estas  correntes  eléctri- 
cas que  communiquem  o  mesmo  movimento  aos 
membros  desatados  e  dispersos  d'este  corpo  ,  e  que 
amanheça  para  nós  o  dia  da  vida  activa  e  social  da 
nossa  epocha.  Olhai  para  todas  ou  quasi  todas  as 
nossas  povoações  raariliraas  ,  vereis  demonstrada  a 
poderosa  iniluencia  da  facilidade  dos  transportes 
sobre  o  incremento  da  riqueza  na  vantagem,  que  em 
eommercio  e  prosperidade  levam  ás  do  interior  es- 
sas mesmas  povoações,  ou  situadas  á  beira-mar,  ou 
banhadas  de  grandes  rios  navegáveis  ,  ou  visinhas 
das  suas  margens.  Estas  são,  não  outras,  as  verda- 
deiras palhetas  de  ouro  que  rola  o  Tejo  :  e  o  maior 
cabedal  quo  os  nossos  rios  encerram  em  sua  urna 
opulenta  é  a  potencia  locomotiva. 

(Continua.) 
A.  d' O.  Marreca. 


Manani-iacs  sulphureos  em  summo  grau.  —  Na  pro- 
vinda russiana  de  Orenburgo ,  nas  margens  do 
Sourgout  [como  os  francezcs  escrevera]  brotam  den- 
tro do  limite  de  seis  a  sete  léguas  mais  de  uma  dú- 
zia de  fontes ,  cujas  aguas  são  por  tal  modo  impre- 
gnadas de  enxofre  que  depositam  um  sedimento  , 
que  os  povos  visinhos  ajuntara  c  vendem  como  se 
fora  aqiiellc  mineral  puro  ;  e  é  esta  colheita  obje- 
cto lucrativo  :  apesar  do  rigor  da  temperatura  nun- 
ca gelam  ,  nem  quando  as  aguas  daqiielles  arredo- 
res estão  coalhadas  pela  intensidade  do  frio.  —  Ha 
outra  nascente  com  a  mesma  propriedade  e  igual- 
mente pcrenne  .  que  está  distante  uma  légua  da  al- 
deã de  íchtulkina  ;  chamam-lhe  tanque  de  enxofre , 
e  as  suas  aguas  claras  deixam  ver  no  fundo  o  leito 
sulpliureo  com  toda  a  natural  cor  de  aniarello  es- 
verdeado ;  ha  porem  a  notável  circumstancia  de 
que  n"um  raio  de  meia  légua  o  circuito  da  nascen- 
te exhala  um  fétido  insupportavel.  O  ribeiro  que 
deriva  desse  Ianque  leva  umas  aguas  turvas  e  bran- 
cacentas  :  os  aldeãos  rnssianos  ,  que  por  alli  mo- 
ram perto ,  para  as  designarem  como  á  vista  se  ap- 


presenlam  pouco  mais  ou  menos ,    pozcram-Ihe   o 
será  a  condição  tanto  dos  productores ,   como  dos  |  nome  de  «Ribeiro  de  leite.» 


■TH' 


ilÒ 


O   PANORAMA. 


I.ado  esquerdo. 

AETERN.    SACRrM. 
BOC.  LOCO.      &.C, 


Lado  direito. 

monum.  consagrado 
á  eternidade.    &c. 


MONUMENTO  AO  ZNFANT£  D.  HEXAIQU£  NA  PRAÇA  OE  SACHES. 


Consiste  esta  memoria  n'uma  lapida  de  mármore, 
que  faz  um  corpo  de  10 "^  palmos  de  altura  ,  c  5M 
ditos  de  largura  ,  cmlnitida  na  parede  sobre  a  por- 
ta interior  da  entrada  principal  da  fortaleza  de  Sa- 
gres :  é  o  mesmo  corpo  dividido  em  dois  planos, 
contendo  o  superior  ,  em  meio  relevo  ,  o  escudo  de 
armas  do  Infante,  cora  uma  esphera  armillar  á  di- 
reita ,  e  da  parto  esquerda  um  navio  á  vela  ;  o  pla- 
no inferior  consta  do  duas  almofadas,  na  do  lado 
esquerdo  ha  esculpida  uuia  inscriprão  lalina,  e  na 
do  direilu  lè-sc  a  versão  em  portuguez  ;  somente  a 
qual  damos  aqui  aos  leitores.  Na  estampa  acima 
vè-se  o  contorno  geral  c  a  disposição  da  memoria  , 
c  indicados  os  logares  dos  respectivos  letreiros.  Da 
collocação  lavrou  auto  aos  24  de  julho  de  1840  o 
secretario  da  camará  municipal  da  visinha  villa  do 
Hispo,  e  o  assiguaram  o  governador  da  praça,  o  ca- 
pcllão,  osodiciaes  da  guarnição,  os  membros  da  ca- 
mará, e  ocapilão  de  mar  e  guerra  L.  G.  Possollo, 
que  os  convidara  para  este  acto,  a  que  presidiu. 

Inscriprão  rin  porliif/ucz. 

monum.  consagrado  á  eternidade,  o  grande 

infante  d.  henri(|uc  (illio  de  clrci  de  portugal 

d.  João  I.,  tendo  cnq)rehendidu  descobrir  as  regiões, 


ale  então  desconhecidas  ,  de  africa  Occidental , 
e  abrir  assim  caminho  para  se  chegar  por  meio 
da  circumnavegação  africana  até  as  partes  mais 
remotas  do  oriente,  fundou  nestes  lugares  á  sua 
cusla  o  palácio  da  sua  habitação  ,  a  famosa 

escola  de  cosmografia  ,  o  observatório 

astronómico  ,  c  as  ollicinas  de  conslrucrão 

naval  ,  conservando  ,  promovendo  e  augmentando 

tudo  isto  até  ao  termo  da  sua  vida  com 

admirável  esforço  c  constância  ,   e  com 

grandíssima  utilidade  do  reino,   das  letras, 

da  religião,  e  de  lodo  o  género  humano,   falleceo 

este  grande  príncipe  depois  de  ter  chegado 

com. suas  navegações  alé  o  8.°  gr.  de  latitude 

septentr. ,  c  de  ter  descoberto  c  povoado  de 

gente  porlugueza  muitas  ilhas  do  atlântico 

aos  XIII.  dias  do  novembro  de  14tíO.  d.  maria  II. 

rainha  de  portugal  e  dos  algarves  mandou 

levantar  este  monumenlo  á  memoria  do 

illustre  príncipe  seu  cdusauguineo  aos  379 

aunos  depois  do  seu  fallecimento  ,  sendo 

minislro  dos  negócios  da  mariídia  e 

ultramar  o  visconde  de  s.i  da  bandeira.  (•) 

183!). 


(•)     Viisulámos  fiara  mais  fácil  leiuii 


o  PANORAMA. 


141 


O  Bono. 

iV2S. 

XI. 

O  subterrâneo. 

Depois  de  acabado  o  banquclc  quando  os  cavallci- 
ros  comoravam  a  derramar-SL-  pelas  salas  esplendi- 
damente adornadas  dos  paços  ile  Guimarães  ,  c  a 
descer  aos  patcos  onde  os  cavalleriços  os  esperavam 
(  i)m  os  cavallos  ,  dellos  c  dos  seus  acostados  c  pa- 
sens  ;  Vr.  Hilarião  receoso  de  um  novo  encontro  de 
Gonçalo  Mcndcz  com  Veremudo  Percz  ,  o  (jual  teria 
provavelmente  consequências  que  naquella  melin- 
drosa conjuncção  era  necessário  evitar,  com  tal  ar- 
te soul)c  reter  o  violento  rico-homcm  na  sala  d'ar- 
mas,  que  ao  descer  ao  terreiro  interior,  este  começa- 
va a  estar  deserto,  porque  mais  de  uma  hora  tinha 
passado.  .Vhi  mesmo  ainda  o  ahbadc  procurava,  pa- 
rando, demorar  a  sabida  do  cavalleiro  com  inter- 
mináveis reflexões  e  perguntas  sobre  os  receios  e 
esperanças  que  agitavam  todos  os  ânimos.  No  meio, 
porem,  da  manhosa  conversarão  do  velho  monge  um 
caso  inesperado  veio  inlerrompe-Ia. 

O  vasto  pateo  que  precedia  o  palácio  estava  ape- 
nas alumiado  pela  luz  aftastada  de  uma  almcnara 
collocada  no  eirado  da  agigantada  torre  alvarran  , 
c  pelo  ténue  reflexo  de  dois  fogaréus  que  ardiam  aos 
lados  da  ponte  levadiça.  A  claridade  dos  dois  fachos, 
atravessando  por  baixo  du  portal  soturno  ,  ia  bater 
somente  no  átrio  da  escadaria  que  dava  communi- 
cação  para  a  sala  d'armas.  De  um  e  d'outro  lado 
do  terreiro  as  trevas  pareciam  profundas  aos  que 
seguiam  da  escada  ao  portal  por  aquella  espécie  de 
estrada  de  luz,  mas  por  isso  mesmo  estes  eram  per- 
feitamente vistos  por  quem  quer  que  estivesse  de 
uma  ou  da  outra  parte. 

Xo  momento  em  que  parou,  Gonçalo Mendez  viu 
ao  pé  de  si  um  individuo  ,  que  elle  suppunha  já 
bem  longe  de  Guimarães. 

«Como  assim,  Odorio  Fromarigucz?  ' — Ha  mais 
de  uma  hora  que  devíeis  ter  partido  para  a  terra 
da  Maia.  —  Os  annos  ,  meu  amo,  teem-vos  tornado 
os  pés  tardos. » 

A  pessoa  aquém  o  Lidador  dirigia  estas  palavras 
era  um  velho  ,  pequeno  de  corpo,  magro,  olhos  co- 
mo duas  ervilhacas  ,  e  tez  simillnnte  a  um  perga- 
minho de  sete  séculos  amarrotado.  Trazia  vestido 
um  lorigão  negro  ,  e  na  cabeça  um  camalho ,  que , 
eubrindo-lhe  o  pescoço  até  os  hombros  ,  c  circura- 
dando-lhe  o  rosto  como  a  toalha  d'uma  freira,  ape- 
nas lhe  deixava  este  visivel.  Aquelle  trajo  militar 
era  o  de  um  simples  homem  d'armas ,  ou  acostado 
de  rico-homem  ;  porque  o  arnez  de  solhas  c  o  elmo 
ou  capello  de  ferro  brunido  ,  ainda  eram  armadura 
demasiado  custosa  para  os  que  ,  pelo  monos  ,  não 
pertenciam  ;i  classe  dos  simples  cavalleiros. 

A  resposta  do  velho  ás  palavras  de  Gonçalo  Men- 
dez ,  nas  quaes,  posto  que  proferidas  em  tom  sub- 
misso, transluzia  o  despeito,  foi  pôr  o  dedo  na  bo- 
ca, fazer-lhe  signal  que  o  seguisse,  e  encarainlinr-se 
para  um  dos  recantos  do  pateo  ,  onde  a  escuridade 
parecia  mais  profunda. 

Odorio  Fromarigucz  era  ovillico  dosolar  da  Maia. 
O  villico  do  século  1-2.°,  quer  o  fosse  do  rei ,  con- 
de, ou  senhor  supremo,  quer  de  um  vassallo  pode- 
roso ,  correspondia  não  só  ao  moderno  administra- 
dor ou  mordomo  de  rico  fidalgo  ,  mas  lambera  re- 
presentava a  auctoridade  administrativa  e  ainda , 
em  certos  casos  ,  a  judicial  ,  dentro  dos  limites  da 
honra,  préstamo ,  ou  senhorio  respectivo.   Era  elle 


quem  por  via  de  regra  fazia  calardo  ,  e  muitas  ve- 
zes capitaneava  na  guerra  os  peões  ,  besteiros  ,  fre- 
cheiros e  fundeiros,  e  na  ausência  do  senhor  fazia 
as  suas  vezes  cm  todos  os  logares  ,  salvo  nos  cas- 
tellos  on  castrou,  onde  ao  alcaide  ou  tenente  toca- 
vam em  grande  parte  as  attribuiçõcs  do  villico. 
Conforíne  a  promessa  que  fizera  ao  homem  do  zo- 
rame,  Gonçalo  Alendez  ao  subir  para  a  sala  do  ban- 
quete encontrando  ahi  entre  os  seus  acostados  Odo- 
rio Fromarigucz  ,  que  nessa  occasião  se  achava  na 
corte  ,  lhe  ordenara  partisse  immediatamcnte  a  to- 
do o  correr  do  cavallo  para  aterra  da  Maia,  e  con- 
vocando oitenta  acobertados  e  sessenta  peões  os  ti- 
vesse a  ponto  com  caldeira  e  pendão,  para  cumprir 
as  ordens  que  brevemente  lhe  havia  de  communi- 
car.  Ucceando  que  o  villico  comraettesse  alguma 
imprudência  ,  nada  mais  lhe  fizera  saber,  resolvido 
a  enviar  no  dia  seguinte  um  cavalleiro  que  devia 
acompanhar  aquella  mesnada  ,  ou  força  ,  como  ho- 
je diríamos  ,  até  o  arraial  do  infante. 

Tanto  o  Lidador  como  o  abbade  baviam  seguido 
o  villico  para  o  sitio  ,  que  elle  parecia  buscar  com 
toda  a  precaução.  Chegados  a  um  canto  escuro  en- 
tre a  sacada  interior  de  uma  torre  e  a  escada  que 
subia  para  o  adarve  da  quadrella  contigua  ,  o  villi- 
co parou  ,  voltaudo-se  para  os  dois. 

iil'orque  não  partiste?  —  perguntou  o  cafalleiro. 
—  Que  mysteríos  são  estes?» 

«Não  pude:  —  respondeu  o  velho.  —  Os  vigias, 
roídas  ,  e  sobre-roldas  tem  as  mais  estreitas  ordens 
para  não  deixarem  passar  alem  das  barbacans  do 
burgo  ninguém  ;  seja  quem  fór:  o  prop-^io  runde  de 
Trava  não  é  exceptuado.  Entre  os  homens  d'armas 
correra  varias  noticias.  Se  accreditarmos  o  que  se 
diz....»  Aqui  o  villico  hesitou  e  eallou-se. 

«Que  é  o  que  se  diz? — acodiu  o  Lidador  depois 
de  alguns  momentos ,  impaciente  com  o  silencio  de 
Odorio  Fromarigucz. 

«Que  —  proseguiu  o  velho  ainda  hesitando  —  ha 
conjurados  contra  a  rainha  dentro  de  Guimarães; 
e  ousara  pronunciar  o  nome  de  ura  dos  mais  illus- 
tres  e  leaes  rícos-homens  de  Portugal  como  o  do 
cabeça  e  movedor  da  conjuração."  — 

«E  cujo  é  esse  nome?  —  insistiu  com  voz  firme 
o  Lidador. 

«È  ..  —  tornou  o  villico  em  tom  quasi  imperce- 
ptível :  —  é  o  vosso ! » 

«Oh,  entendo,  entendo!  Murmurou  com  uma 
cólera  reconcentrada  Gonçalo  Mendez.  Medem-mc 
por  si  os  miseráveis  !  Porem  ,  não  !  Elles  bem  sa- 
bem que  lealmente  cu  diria  á  rainha  :  —  Senhora  , 
não  será  para  estrangeiros  meu  preito  :  que  o  devo 
a  vosso  filho.  —  liem  sabem  que  á  luz  do  meio-dia 
eu  movera  os  meus  pendões  para  a  hoste  deAffonso 
Henriquez.  Conspiradores  covardes  são  elles  ;  por- 
que querem  colher  ás  mãos  indefensos  os  que  te- 
mem encontrar  nas  lides.  Esqueccis-vos  ,  meus  no- 
bres senhores,  que  tenho  comigo  vinte  acostados, 
e  que  vinte  acostados  meus  são  sobejos  para  ,  máu 
grado  vosso  ,  romper  larga  sabida  por  essas  tão  vi- 
giadas barreiras?  —  Villico  —  proseguiu  elle  vol- 
tando-se  para  Odorio  F^romariguez  —  vai-te  ao  meu 
bairro:  previne  já  os  nossos  cavalleiros  que  vistam 
ímmediatameníe  as  armas;  e  que  juntos  na  minha 
pousada  vigiem  das  ameias  as  ruas  em  roda  ,  por- 
que nos  ameaça  uma  negra  traição  :  eu  breve  serei 
com  elles. 

O  tom  com  que  o  esforçado  rico-homem  proferira 
estas  palavras  não  admittia  observações  :  o  villic>) 
obedeceu. 


142 


O  PANORAflIA. 


Apenas  ellc  parlíra  ,  Gonçalo  Mendes  dirigiu-se 
a  Fr.  HilariSo. 

«Abbadc  rio  Mosteiro  de  D.AÍuma,  vós  me  acom- 
panhareis. A  vossa  ainisadc  para  comigo  pôde  ser- 
vos fatal  :  o  ronde  de  Trava  não  ó  homem  que  res- 
peite a  santidade  do  sacerdócio  ;  c  a  vida  ,  ou  pelo 
menos  a  litierdadc  ,  vos  correria  griio  risco  ,  se  nas 
prevenç("ies  desta  noite  se  esconde  ,  como  suspeito , 
um  pensamento  atroz.  » 

«Deixai  o  obscuro  monge  ,  —  respondeu  o  frade 
—  e  salvai  o  illuslre  guerreiro.  Que  importa  a  li- 
berdade ou  a  vida  de  quem  como  eu  j;i  demais 
tarda  ao  sepulchro?  A  morte,  posto  que  mo  aterre, 
achar-mc-ha  resignado.  JJas  o  que  mais  temo  é  o 
vosso  próprio  esforço.  Com  vinte  homens  d'armas 
que  podeis  fazer  cm  Guimarães  ,  onde  Fernão  Pe- 
rez  conta  mais  de  mil  lanças  dos  seus  parciaes?» 

«Ao  romper  d'alva  —  replicou  ocavallciro  —  por 
meio  desses  vigias  c  roídas  a  minha  acha  d'armas 
abrirá  franca  passagem  aus  vinte  cavallciros  do  so- 
lar da  Maia.  Os  que  então  se  opposerem  á  sua  sa- 
bida—  proseguiu  com  um  sorriso  amargo  —  não  te- 
rão ,  juro-vo-lo  cu,  largo  alento  para  dizer  ao  con- 
de dcTrava: — (ionçalo  Mcndcz,  ei-lo  que  vai  jun- 
tar-se  com  os  seus  á  hoste  do  infante  de  Portugal. 
Ao  menos  terei  ao  partir  sellado  para  sem[irc  alguns 
lábios  desses  que  ousaram  proferir  o  meu  nome  de 
involia  com  o  titulo  de  desleal.» 

«A  ousadia  —  tornou  o  abbade  —  vos  faz  parecer 
fácil  tão  dilhcultosa  empreza  :  mas  o  perigo  é  im- 
menso.  Se  no  primeiro  impelo  não  poderdes  salvar 
as  barreiras,  estais  perdido;  c  esta  tentativa  deses- 
perada dará  cor  de  verdade  ás  accusações  dos  nos- 
sos inimigos. » 

«  IJ  necessário  sahir  desta  situação  violenta  —  in- 
terrompeu o  Lidador.  —  Sei  o  que  significa  tão  re- 
pentino converter  do  burgo  de  Guimarães  cm  vasta 
prisão  de  homens  livres.  Quando  ahi  se  arrisque  a 
vida,  que  importa?  Estes  pulsos  não  foram  feitos 
para  os  ferros  do  scidior  de  Irava...» 

«Mas  se  houvesse  um  meio  —  replicou  Fr.  Hila- 
rião  —  mais  seguro  de  vos  pordes  cm  salvo  cora  os 
cavallciros  de  vossa  honra...» 

«Há  !»  —  disse  uma  voz  que  parecia  soar  do  chão 
junto  aos  pés  do  monge.  Gonçalo  Mendcz  recuou  mct- 
tendo  mão  á  espada  ;  c  ambos  procuraram  no  meio 
da  escuridão  descobrir  donde  partira  aquella  palavra. 

«Quem  é  que  nos  escuta? — bradou  ocavallciro. 

«Eu!»  —  disse  a  mesma  voz,  acompanhando  es- 
ta palavra  com  uma  grande  risada. 

«í:;  a  voz  e  o  rir  de  D.  líibasl  —  exclamou  o  ab- 
Lade  ainda  sobrcsallado.  —  Agora  me  recordo  de 
que  fica  [lara  eslc  lado  a  sua  humilde  pousada.» 

O  monge,  o  cavalleiro  ,  c  todos  os  habitantes  dos 
paços  de  Guimarães  haviam-se  completa  e  profun- 
damente esquecido  do  Iruão  —  como  porventura  te- 
rá acontecido  a  mais  de  um  dos  nossos  leitores. 

Neste  momento  a  luz  de  uma  lanterna  de  furta- 
fogo  deu  de  chapa  nos  vultos  do  Lidador  e  de  Fr. 
Hilarião.  Atenue  claridade  que  nos  próprios  corpos 
se  refrangia,  elles  viram  um  braço,  que  segurava  a 
lanterna  no  vão  de  unia  porta  baixa  meia-cerrada , 
que  mais  parecia  o  adito  da  pocilga  de  um  mastim 
que  de  habitação  de  homens.  Ao  meio  do  vão  escu- 
ro luziam  dois  olhos,  e  alvejavam  os  dentes  de  boca 
escancarada  por  um  rir  que  devia  ser  feroz. 

«Que  fazes  aqui,  Iriião?  —  perguntou  o  cavallei- 
ro colérico. 

«Escutava:  —  tornou  Iranquillanicnle  o  bobo  es- 
tendendo a  cabeça  [lara  os  dois. 


"Foi  desgraça  tua!  —  porque  me  é  necessário  o 
leu  silencio  :  —  murmurou  o  Lidador  ,  largando  a 
espada  na  bainha,  travando  do  braço  de  D.Bibas, 
e  levando  a  mão  ao  punhal  que  linha  no  cinto. 
.  O  bobo  não  deu  o  menor  signal  de  susto  ,  e  ven- 
do esle  movimento  do  cavalleiro ,  que  porventura 
só  pertendia  alerra-Io  ;  —  com  umtora  d'amargo  es- 
carnco  replicou  ao  ouvir  aquellas  palavras  ameaça- 
doras :  — 

i\ão  gasteis  comigo,  nobre  senhor,  a  nnica  moe- 
da com  que  vós  outros  os  poderosos  comprais  não 
só  o  silencio,  mas  tudoaquillo  de  que  careceis  para 
satisfazer  paixões  brulacs.  Se  eu  quizesse  delatar  o 
que  vos  ouvi ,  não  fora  tão  louco  que  vos  fallasse. 

«Respondo  por  D.  Bibas  —  acudiu  o  abbade. — 
Nào  é  elle  capaz  de  trahir-nos.  Quiz  exercitar  seu 
mister,  e  bera  sabeis  que  seu  mister  é  gracejar.» 

<'  Fr.  Hilarião  1  —  interrompeu  o  bobo  ;  —  entre  a 
vida  que  foi ,  e  a  que  é  e  ha-dc  ser  ,  ha  para  mim 
um  abysmo.  Cavaram-no  os  estrangeiros  ^  mas  eu 
os  despenharei  ahi  !  E  depois  D.  Bibas  ,  o  folião  ,  o 
bobo  assentar-se-ha  na  borda  deile  para  lhes  ale- 
grar a  queda  ;  para  rir  e  zombar.  Á  pergunta  que 
fizestes  se  haveria  modo  de  sahir  de  Guimarães  es- 
te nobre  cavalleiro — que  intenta  manchar  seu  rico 
bulhão  no  sangue  vil  de  um  jogral,  —  e  os  homens 
d'armas  da  .Maia,  respondi  eu  que  havia.  Juro  que 
não  menti.  Tenho  para  isso  meio  fácil.  Podeis  apro- 
veitar-vos  delle ,  se  é  que  o  beneficio  de  um  bufão 
não  deshonra  um  rico-homem  d'illustre  linhagem.» 

«D.  Bibas  !  —  replicou  o  abbade,  fitando  nelle 
os  olhos  como  quem  buscava  ler  na  sua  alma  :  — 
é  impossível  que  queiras  escarnecer  de  um  nobre 
cavalleiro  que  nunca  te  maltratou  e  d'uni  pobre  ve- 
lho que  sempre  achaste  indulgente,  em  quanto  os 
outros  monges  te  repelliam  como  a  um  réprobo,  des- 
de o  dia  em  que  despiste  o  nosso  santo  habito  para 
te  atirares  aos  deleites  do  mundo  e,  di-lo-hci ,  á 
devassidão  da  vida  de  um  jogral.  É  impossível,  re- 
pito ,  que  as  tuas  palavras  sejam  apenas  uma  cruel 
zombaria.  Mas  como  hei-de  accredítar-le?  Que  au- 
xilio nos  podes  prestar  ,  tu  humilhado  e  fraco ? 

Bem  sei  que  sou  fraco  !  Oh  bem  o  sei  !  —  inter- 
rompeu o  bobo  com  um  acccnto  cm  que  se  mistu- 
rava a  desesperação  e  a  dôr.  Essa  terrível  verilade 
está  escripta  cora  sangue  no  meu  corpo  pelas  mãos 
dos  cavalleríços  de  Fernão  Perez  ;  e  com  fogo  nos 
seios  da  minha  alma  pelo  dedo  da  amargura  .... 
Sou  fraco!  ..  porque  não  embraço  um  escudo,  nem 
meneio  uma  acha  d'armas '.  Sou  um  homem  condem- 
nado  ao  mais  atroz  dos  tormentos  ;  a  chamar  o  riso 
aos  lábios  c  a  alegria  ao  gesto  quando  o  coração  es- 
tá em  noite.  Sou  fraco... ;  porem  não  sou  vil !  Mais 
fraca  ó  a  víbora....  c  lambem  o  homem  que  é  for- 
te ,  a  calca  e  passa  avante: — mas  pisada,  ella  al- 
ça o  collo  ,  vibra  a  língua  farpada...  e  passado  um 
dia,  por  cima  do  cadáver  do  forte  —  do  homem, — 
o  ente  fraco  —  a  víbora  —  pôde  arrastar-se  ,  rolar, 
sem  que  elle  alevanle  o  pé  para  a  esmagar  de  no- 
vo !  ..» 

O  cavalleiro  e  o  monge  ,  cujos  olhos  se  haviam 
afleilo  á  luz  escaca  da  lanterna  do  bobo  ,  estavam 
pasmados  ouvindo  aquellas  palavras,  c  vendo  aquel- 
le  gesto  trnanesco  ,  em  que  se  pinlavam  o  ódio,  a 
raiva  ,  a  desesperação.  Atlonitos ,  cuslava-lhes  a 
crer  o  que  presenciavam  ,  ignorando  o  que  se  pas- 
sara no  jardim  pênsil.  O  Lidador  largara  o  braço 
de  1).  Bibas;  e  a  muito  custo  podcram  <is  dois  per- 
ceber dos  seus  discursos  truncados  o  motivo  do  fu- 
ror do  chocarrciro. 


o  PANORAMA. 


143 


«Fico  Iranquillol — disse  por  fim  Gonralo  Men- 
dez.  —  A  injuria  cruel  que  recehcslc  ,  e  essa  sede 
de  vingança  são  os  teus  fiadores.  Agora  afTaslemo- 
nos  d'aqui  —  accrescentou  cUc  dirigindo-se  ao  ab- 
bade.  —  Não  devo  demorar-mc  por  raais  tempo. 
Cumpre  ler  tudo  disposto  para  sahirmos  ao  romper 
d'alva.  .\  \irgem  c  Santiago  sejam  comnosco. 

la  a  aPfastar-se.  D.  Bibas,  porem,  o  reteve,  se- 
gurando-lhe  com  força  a  orla  do  saio. 

«Não  sabireis  sem  me  ouvirdes  1 — exclamou  o 
bufão. — Quando  os  sisudos  traçam,  como  vós,  im- 
possíveis, importa  que  os  loucos  tenbam  juizo  por 
elles.  Os  vossos  inteutos  são  vãos  ;  porque  antes  da 
madrugada  vinte  homens  d'armas  da  terra  da  Maia 
terão  sido  arrastados  aos  calabouços  desse  castello  , 
c  talvez  a  cabeça  de  ilUislre  rico-homem  tenba  ro- 
lado aos  pés  do  algoz.  Certo  cavalleiro,  que  ha  pou- 
co trajava  um  zoramc  ,  deve ,  se  cahir  uas  mãos  do 
conde  de  Trava  ,  acompanhar  o  nobre  senhor  nesse 
trance  que  o  aguarda.  O  cavalleiro  do  zorame  cl\a- 
raa-sc  Egas  Moniz  ,  c  o  rico-homem  chama-se  Gon- 
çalo Mendcz  da  Maia.» 

O  abbade  íicára  estupefacto  ouvindo  as  palavras 
do  bobo  :  porem  no  animo  do  Lidador ,  o  perigo 
iminente  que  este  lhe  annunciava  só  despertou  raais 
violenta  indignação  misturada  de  curiosidade.  Como 
soubera  D.  Bibas  da  vinda  de  Egas  Moniz?  Corao 
advinhára  ellc  os  intentos  do  conde  de  Trava?  Qual 
era  esse  meio  que  se  gabava  de  ter  para  os  salvar? 
Havia  nisto  tudo  um  enigma  ,  cuja  explicação  era 
necessário  encontrar.  O  chocarreiro  porem  lhe  ras- 
gou o  véu  do  mysterio. 

Apenas  ,  lacerado  dos  açoutes  ,  e  manando  san- 
gue das  costas ,  escapara  das  mãos  dos  cavalleriços 
e  pagens,  1).  Bibas  fora  esconder  na  espécie  de  co- 
vil ,  em  que  vivia  ,  a  sua  dor;  c  vergonha.  Era  um 
pesadello,  um  delírio  aquillo  por  que  passara  :  era 
monstruoso  e  incrível! — Posto  ás  varas  como  um 
servo  ,  elle  homem  livre  ;  elle  tão  mimoso  de  seu 
bom  senhor  D.  Henrique  !  As  lagrvmas  correram 
abundantes  por  essas  faces  habituadas  de  longos  an- 
nos  unicamente  ás  contracções  das  visagens  trua- 
ncscas.  .\s  Ingrymas  ,  porem  ,  nem  o  consolaram  , 
nem  bastavam  á  sua  desesperação.  Depois  de  se  ro- 
lar pelo  chão  mordendo  os  punhos  cerrados,  o  bufão 
assentou-se  a  um  canto,  como  o  lobo  cerval  colhido 
no  fojo,  cansado  de  lidar  em  vão  por  salvar-se.  To- 
do o  fel  que  o  rir  forçado  de  tanto  tempo  lhe  fize- 
ra por  assim  dizer  absorver  e  calcar  no  coração  , 
achou  emfim  \ira  resfolgadnuro  no  ódio  implacável 
que  a  dolorosa  e  terrível  alTronta  recebida  lhe  ge- 
rara lá  dentro.  O  pensamento  da  vingança  alcança- 
ra o  que  não  haviam  obtido  as  lagrvmas:  —  D.  Bi- 
bas sentia  agora  que  ainda  havia  para  elle  consola- 
rão e  esperança. 

íías  como  vingar-se?  Ignorava-o.  Juraria  comtu- 
do  que  Belzebulh  lhe  dizia  ao  ouvido  :  —  Pensa 
bem ;  que  has-de  atinar  com  o  caminho  que  bus- 
cas. Quem  deixou  de  achar  meios  neste  mundo  pa- 
ra satisfazer  paixões  más? 

Slacbinalmenle  D.  Bibas  despira  as  roupas  varie- 
gadas de  folião  ,  e  vestindo  um  simples  trajo  d'es- 
cudeiro  galgara  as  escadas  do  paço.  Na  confusão 
que  reinava  na  salla  do  banquete  ninguém  o  conhe- 
ceu. Girando  de  uma  para  outra  [larle  elle  cogitava 
no  modo  por  que  poderia  obedecer  ao  pensamento 
irresistível  que  o  agitava.  A  esperança  de  que  a 
festa  terminasse  segundo  o  costume  por  completa 
embriaguez  em  que  o  sangue  corresse  ,  e  que  tal- 
vez no  meio  da  desordem  alcançasse  approiimar-se 


do  conde  ,  lhe  sorriu  um  momento.  Então  pensava 
lá  comsigo  como  uma  boa  punhalada  pagaria  a  di- 
vida do  truão  ao  nobre  senhor!  Mas  arriscava-sc  a 
errar  o  golpe,  e  elle  precisava  da  vida  alé  obter 
completa  vingança.  Também  pela  cabeça  desvaira- 
da do  chocarreiro  passou  a  idéa  de  envenenar  a  ta- 
ça ou  copo  por  onde  Fernão  Perez  havia  de  beber. 
.Mas  fora  impossivel  sequer  o  tenta-lo  sem  ser  dcs- 
cubcrto.  Fluctuando  assim  a  sua  imaginação  desre- 
grada de  pensamento  em  pcnsarflento  ,  D.  Bibas  se 
conservara  na  sala  do  banquete  alé  o  fim  :  vira  en- 
trar Garcia  Bcrmudez  ;  e  os  signaes  de  accordo  que 
houvera  entre  ellc  e  o  conde.  Ao  relirar-se  a  rai- 
nha ,  o  bobo  se  aproveitara  do  tumulto  dos  caval- 
Iciros  que  sabiam,  para  renovar  uma  das  suas  usuaes 
haliilidados  ,  com  o  intento  de  observar  alé  o  fim  o 
que  se  passava.  Os  sergenlcs  e  pagens  appreSfavam- 
se  a  lançar  mão  dos  restos  do  banquete  ,  e  por  en- 
tre elles  D.  Bibas  pode  sumir-sc  debaixo  dos  ricos 
pannos,  que,  segundo  o  costume  do  tempo,  cobriam, 
alé  rojar  pelo  chão,  aquella  v;.sta  mesa.  Alli,  ora 
escutando ,  ora  coando  pela  memoria  um  a  um  os 
açoutes  que  recebera  e  as  chufas  e  apupos  dos  ca- 
valleriços e  servos,  elle  despertava  na  própria  phan- 
lasia  um  tropel  de  vinganças  imaginarias  ,  a  qual 
delias  mais  absurda  e  inexequível.  O  louco  por  ar- 
te desde  que  deixara  de  rir  tocava  quasi  us  raias 
da  verdadeira  loucura. 

Daquelle  escondrijo  o  bobo  ouvira  perfeitamente 
o  que  se  passara  entre  o  conde  de  Trava,  o  alferes- 
mór  c  o  filho  de  Veremudo  Perez.  As  revelações 
deste ,  as  ameaças  do  conde  ,  c  a  commissão  mys- 
leriosa  de  que  Garcia  Bermudez  encarregara  o  pa- 
gem, nada  escapou  a  D.  Bibas.  Para  os  seus  inten- 
tos esta  conversação  fora  um  raio  de  luz.  Fernão 
Perez  rcceava-se  de  uma  traição  de  senhores  e  ca- 
valleiros  illustres  ,  e  era  elle  villão  humilde,  ellc 
jogral,  elle  verme  desprezível  que  o  mui  nobre  con- 
de crera  esmagar  n'um  momento  de  cólera  ,  quem 
podia  entregar  Guimarães  ao  infante,  c  despedaçar 
nas  mãos  do  ambicioso  e  altivo  barão  não  to  o  po- 
der mas  a  vida.  D.  Bibas  esteve  a  ponto  de  soltar 
ura  rugido  de  coníenlamento  ao  occorrer-lhe  essa 
idéa  ,  e  um  clarão  de  damnada  esperança  allumiou 
as  trevas  da  sua  alma. 

Desde  a  morte  de  D.  Henrique,  o  seu  bobo  que- 
rido cahíra  da  grande  altura  do  valimento  ao  nível 
dos  animaes  domésticos  ;  o  seu  fado  fora  o  dos  pri- 
vados de  príncipe  que  desceu  ao  tumulo  ;  e ,  como 
succcde  a  estes  frequentemenle  ,  se  não  o  expulsa- 
ram do  importante  cargo  que  exercitava  ,  foi  quo 
ninguém  havia  ahi  que  o  substituísse.  Lançatam- 
no  ,  porem,  para  aquelle  aposento  baixo,  triste  e 
húmido,  cm  que  D.  Bibas  desde  enlão  habitava, 
consolando-se  do  desprezo  com  essas  horas  de  glo- 
ria e  triumpho  em  que  imperava,  rei  das  festas  no- 
cturnas .  nos  saraus  esplendidos  e  nos  banquetes 
sumptuosos,  a  que  elle  dava  vida  e  còr  com  as  suas 
agudezas  e  chascos. 

Nesta  espécie  de  caverna  .  para  onde  fora  dester- 
rado o  bom  do  truão  ,  curlíra  muitas  hora?  de  té- 
dio :  a  solidão  para  qualquer  alma  sem  affectos  é 
um  tormento  real.  e  a  alma  de  D.  Bibas  era  por 
esse  lado  uma  verdadeira  Thebaída.  Certo  dia  em 
que  deitado  no  seu  almadraque  tinha  os  olhos  filos 
'  n'uraa  rcsiea  de  sol  que  dava  de  chapa  na  parede 
fronteira  ,  pareceu-lhe  divisar  nesta  os  vestígios  de 
uma  poria  eníaipada.  A  curiosid.Tde  o  incitou  a  fa- 
zer mais  altenta  averiguação.  ,\ão  se  enganara.  A 
força  de  tempo  e  diligencias  pôde  abrir  suffiGÍent(; 


lU 


o   PANORAMA. 


passagem  para  o  escoiidrijo  que  achara.  Era  este 
ura  daqiielles  caiiiiiihos  siilílcrraneos  ,  coiiiuiuns  em 
quasi  ti  ;lo.s  os  caslellos  da  cdade  media  ,  [lur  onde 
nas  ulliiiias  cstrcilezas  os  defensores  dos  logares 
forlific.idos  alcançavam  sahar-se  qnando  a  resistên- 
cia se  tornava  inipossivel.  Este  caminiio,  qne  pare- 
cia pertencer  á  íundaçãu  primitiva  do  castcllu  de 
D.  Munia  ,  fora  provavelmente  condemnado  como 
inútil  qpiando  o  genro  de  AlTonso  6.°  lançara  em 
roda  dos  seus  paços  soberbos  uma  cinta  de  muros 
e  torres  inexpugnáveis. 

Nunca  D.  Bibas  revelara  o  descobrimento  casual 
que  fizera.  Este  homem  ,  que  nada  possnia  ,  quizc- 
ra  ao  menos  possuir  um  segredo.  E  na  presente  oc- 
casião  aqnella  innocente  avareza  lhe  punha  nas  mãos 
um  rico  thesouro  —  o  cumprimento  dos  seus  vin- 
gativos desejos.  A  entrada  do  subterrâneo  era  lon- 
ge ,  c  o  bobo  atravessando-a  algumas  vezes  tivera 
o  cuidado  de  tornar  ainda  mais  cerradas  as  balsas, 
carças  e  troncos  que  a  encobriam.  A  idéa  que  lhe 
occorrèra  ao  ouvir  a  conversação  do  conde  e  do  al- 
feres-mór  fora  a  de  fazer  servir  este  caminho  des- 
conhecido ao  ódio  que  o  devorava.  O  infante  diri- 
gia-se  a  Guimarães,  e  na  primeira  noite  elle  lhe 
podia  dar  nas  mãos  aquelle  in^encivel  castello.  As- 
sim apenas  vira  deserta  a  sala  do  banquete  ,  sahíra 
e  viera  fechar-se  na  sua  pocilga  ,  para  cogitar  no 
modo  de  executar  seus  intentos.  Deitado  nu  roto  e 
immundo  almadraque  estava  embebido  em  refle- 
-xões  ,  quando  ouviu  fallar  o  cavalleiro  e  o  monge. 
Pôz-se  a  escuta-los,  e  do  seu  dialogo  conheceu  os 
receios  que  os  agitavam,  receios  que  elle  sabia  se- 
rem bem  fundados.  Deus  ou  o  demónio  lhe  trouxe- 
ra alli  os  instrumentos  da  vingança.  Dando  sabida 
ao  Lidador  e  aos  seus  cavalleiros  ;  o  esforçado  se- 
nhor da  Maia  ficaria  sabendo  o  meio  de  saltear  es- 
te vasto  e  solido  castello,  que  aliás  parecia  incon- 
quistavel. 

Tal  foi  em  substancia  a  narração  de  D.  Bibas  , 
que  fechando  a  porta  conduzira  o  monge  e  o  rico- 
horaera  ao  lado  do  aposento  onde  elle  abrira  entra- 
da para  o  subterrâneo.  —  «Por  aqui  —  dizia  o  bo- 
bo com  um  rir  diabólico  —  c  o  caminho  da  salva- 
ção para  vós,  e  para  mim  o  de  ver  realisado  o  que 
será  d'ora  avante  o  único  pensamento  da  minha 
vida. » 

O  Lidador  ficou  por  algum  tempo  em  silencio ,  c 
por  fim  exclamou  : 

«Mas  quem  ha-dc  salvar  os  meus  bons  e  leaes 
íavalleiros  ,  que  me  aguardam? 

«Eu: — acudiu  o  bobo.  —  As  portas  do  castello 
ficam  abertas,  porque  os  vigias  e  roídas  correm  pe- 
las barbaeans.  Sabi  vós  outros  ,  e  esperae-os  á  bo- 
ca do  subterrâneo.  Dentro  de  poucas  horas  todos 
estarão  comvosco.  iíasta  qne  me  deis  um  signal  com 
que  eu  possa  fazer  que  elles  me  obedeçam.» 

O  Lidador  pareceu  assentir  á  proposição  de  D. 
íibas  ;  porque  tirando  da  escarcella  uma  taboasi- 
nha  cuberla  de  cera  ,  com  um  anel  que  tinha  no 
dedo  estampou  nella  o  seu  sello  de  camafeu,  c  cn- 
tregando-a  ao  bobo  ,  lhe  disse  : 

«Vai  —  appresenta  isto  ao  meu  villico  —  e  serás 
obedecido  cm  tudo. » 

"Falta  ainda  uma  cousa! — continuou  D.  líibas. 
Revercndc)  abbade  ,  vesti  esse  trajo  de  escudeiro 
que  .alli  vedes,  c  dcixai-me  vossa  coguUa.  Não  sei 
o  que  me  diz  o  coração.  .  .  Talvez  me  seja  necessá- 
ria. Será  esta  a  primeira  recompensa  do  serviço 
que  ora  vos  faço.» 

Fr.  Ililarião  hesitou ;   mas  o  terror  das  ameaças 


que  o  Iruão  ouvira  ao  conde  só  lhe  dava  logar  a 
uma  idéa  —  a  de  saliir  do  Guimarães  sem  risco. 
Depois  de  cincocnta  annos  de  vida  monástica  ,  pela 
primeira  vez  o  monge  trocava  por  trajos  profanos  o 
seu  santo  habito. 

D.  Bibas  entregou  a  lanterna  de  furta  fogo  aos 
dons  amigos,  que  se  internaram  no  subterrâneo. 
Tanto  que  desappareceram  ,  elle  abriu  ás  apalpa- 
dellas  a  porta  exterior  da  sua  pocilga  ,  e  cosendo- 
se  com  oníuro  do  paleo,  atravessou  a  ponte  levadi- 
ça  e  encaminbou-se  para  o  bairro  do  senhor  da  Maia. 

(A.  ilerculano). 


O  manná  purynlivo.  —  Wellsled  ,  que  peregrinou 
a  Arábia   e  outras  regiões  d'oriente  ha  poucos  an- 
nos, diz  que  a  notável  substancia,  dita  manná,  pur- 
gante  dos  mais   brandos   e  muito  usual  ,    é  colhida 
de  varias  plantas  em  vários  paizes  d'.Asia.  lia  sitios 
na  1'ersia  onde  altribuem  sua  origem  á  secreção  de 
certos  insectos,   e  apanham-a   n'uns  arbustos,   que 
nomoam  gavan,   de  dois  a  três  palmos  d'aUo,  e  pa- 
recidos com  a  giesteira.  —  No  território  de  Luris- 
tan  ,  Mesopotâmia  ,  viu  que  o  tiravam  de  umas  ar- 
vores da  ordem  das  amentilhosas ,   espécie  de  car- 
valho anão;   c  que  para   o  obter  faziam  assim:    es- 
tendiam  á  noite  lençóes  debaixo  das  ramas,    e  an- 
tcmanhaã  o  recolhiam  na  forma  de  gotas  cristalinas 
de  orvalho  ,  quaes  nas  madrugadas  observámos  nas 
plantas   do   nosso   continente.  —  A  propósito  citare- 
mos o  infatigável  Burckbardt  que  examinou  em  Er- 
zerum  ,   Pérsia,   uma  substancia   que   similbava   o 
manná  em  gosto  e  consistência  ,   e  o  produzia  certa 
arvore  que  dava  galhas,   e  os  habitantes  a  usavam 
por  alimento. — Talvez  porem  que  sejam  estas  ma- 
trrias  ditrcrentcs   do  manná   da  Sicilia   c  Calábria, 
empregado  nas  boticas,    e  que   só  temos  aqui  pro- 
vindo da  Itália  ;  os  botânicos  o  tem  por  gomma  ve- 
getal ,   ex^udação  da  arvore  ,  parenta  do  freixo  ,  o 
que   so  chama   fraxinus  ornus ,  ou   rotundifolia ;   a 
qual   escorre   naturalmente   das  folhas ,   no   estio   e 
por  tempo  sereno,   do  meio  dia  até  anoitecer,  na 
forma  de  um  licor  claro,  que  depois  se  condensa. 


Castigos  ejctravagantcs.  —  No  reinado  do  impera- 
dor dooccidente,  Otton  o  grande,  que  decorreu  en- 
tre os  annos  936  e  973,  filho  mais  velho  de  Henri- 
que o  passaritiheiro  [assim  chamado,  porque,  quan- 
do os  deputados  foram  annunciar-lhe  a  sua  eleição 
á  coroa,  foi  encontrado  a  caçar  pássaros]  iníligiara-se 
penas  sobremaneira  singulares  ,  segundo  a  diversi- 
dade d'estados.  O  harnescar  era  a  punição  da  alta 
nobreza  ;  consistia  em  levar  um  cão  aos  hombros  na 
distancia  d'uma  ouduas  léguas.  .V nobreza  mais  in- 
ferior era  condemnada  a  carregar  uma  sella  de  ca- 
vallo  :  o  clérigo  um  grande  missal :  e  os  burguezes 
uma  charrua  ou  arado.  .    . 


É  nMA  máxima  hoje  assaz  bem  reconhecida  ,  que  a 
agricultura,  sendo  animada,  é  o  verdadeiro  funda- 
mento da  povoação  e  força  dos  impérios  ;  o  solido 
esteio  cm  que  se  sustem  as  manufacturas  ,  as  artes 
c  commercio  ;  a  fonte  ,  de  que  emana  a  sua  firme 
prosperidade  ;  o  thesouro  e  verdadeiras  minas  de 
qualquer  estado;  ounicomcio  d'euriquecer  de  con- 
líntui  tanto  o  súbdito  como  o  soberano;  e  cmfira  o 
melhor  regresso  para  poder  pagar  as  dividas  publi- 
cas c  não  coDtrabir  outras.  —  liroiero, 


72 


o  PANORAMA. 


14a 


te!i.i;ij:jiiiiMHii!iiiiiyiiiiiiiiiiiiiiiyiiiiii!jyiji^ 


PȐvixciA  DE  S.  Peduo  du  Rio-Gka>de  do  Sol. 

I. 

Das  províncias  em  que  o  vasto  império  do  Brazil  se 
reparte  ,  a  do  Rio-Grande  do  Sul ,  denominada  ho- 
je de  S.  Pedro  ,  é  a  que  em  geral  menus  conhece- 
mos ;  porque  o  trato  e  negocio  mais  frequente  e  di- 
recto ,  que  mantemos  com  esse  estado  coirmão,  an- 
da d'ordinario  encarreirado  para  as  províncias  mais 
ao  norte  ,  que  por  numero  avultado  de  portuguezes 
são  annualmente  visitadas,  fi  comtudo  assaz  irapor- 
lÍAio  13—1843. 


tanle  esta  porção  extensa  do  território  hrazilciro  pe- 
la situação  e  fertilidade,  e  nada  menos  o  é  pelo  mo- 
vimento commercial  de  Porlo-Alegre,  q"C  ésua  ca- 
beça.—  Estampando  o  aspecto  desta  cidade  (1)  to- 
mado do  fundeadouro  ,  inverteremos  a  ordem  mais 
natural  da  descripção  que  intentámos  .  começando 
agora  por  darmos  breve  idéa  da  capital,  e  concluin- 
do no  próximo  numero  com  a  noticia  da  província. 


(1)  Reduziíi-se  <-s(a  vista  ile  uma  que  ocoinpaiilia  a  per- 
feila  planta  de  Porlo-Alejre ,  que  nos  foi  rerjpllida  pelo 
Doss)  correiponOente  alli .  A-  M.  do  Amaral  Rilieiro. 

2.°  Serie.  —  Yoi..  li. 


146 


O   PANORAMA. 


Porlo-Alcgre  não  foi  sempre  a  capital  deUio-Gran- 
dc  do  Sul  ;  iiaverá  40  aniios,  pouco  mais  ou  menos, 
que  lhe  foi  dndo  este  titulo  que  anlcriorinente  per- 
tencia á  villa  do  Hio-Gnindc.  É  cidade  formosa,  edi- 
ficada em  lóriíia  d'ampliitlieatro  n'um  isllimo  mon- 
tanhoso, á  lieira  oriental  da  lagoa  de  Viam.io  (2) 
quasi  defrontei  da  foz  do  rioGuaiha  oujaruí.  Opaiz 
que  a  circumda,  a  bella  vista  que  oITcrece,  n,To  des- 
mentem o  acertado  nome  ,  que  lhe  impuzeram  ,  do 
Porto-Alegrc  :  eis  como  a  descreve  um  viajante  que 
publicou  a  sua  relação  em  1835  (3).  «Cinco  rios, 
Tindo  alli  pagar  o  tributo  de  suas  aguas  fecundas, 
e  junlando-se  para  formarem  o  Rio  Grande  do  Sul  , 
appresentani  na  frente  da  cidade  uma  caldeira  vas- 
ta, semeada  de  grão  numero  de  ilhas  mui  selvosas, 
povoadas  de  habitações  campestres.  Da  banda  de  lá 
da  cidade,  ou  da  eminência,  a  distancia  de  légua, 
uma  fieira  de  morros ,  d'aitura  de  noventa  braças 
pouco  mais  nu  menos,  vai  descrevendo  um  meio  cír- 
culo ,  encaminhada  ao  sul  e  orlando  desigualmente 
e  rio  por  oito  a  nove  léguas.  —  Entre  a  cadeia  de 
alturas  e  a  povoação  dilata-se  uma  baixa,  nivelada, 
e  cora  três  a  quatro  léguas  de  circuito,  encravada 
pelos  montes  ao  sul,  pelos  cabeços  de  nascente  e 
norte  ,  e  da  parte  de  poente  pelo  Rio-Grande  ,  que 
soberbo  do  cabedal  de  suas  aguas  corre  magestosa- 
mente  para  sul  atravez  de  rochedos  de  conglome- 
rações  ,  e  vai  formar,  na  sua  corrente,  a  Lagoa  dos 
Patos. 

Para  fallar  exacto,  a  situação  de  Porto-Alegre  fi- 
ca entre  duas  bahias ,  separadas  pela  colima  em 
que  tem  seu  assento  :  uma  ,  septentrional  ,  ancora- 
douro e  porto  ;  outra  ,  merid:onal  ,  que  as  aguas 
em  parte  deixaram  ,  e  que  ao  presente  já  constilue 
uma  espécie  de  cidade  baixa,  enfeitada  de  jardins, 
veigas,  casas  de  forjas  &c.  Vè-se  que  seria  laciili- 
mo  ilhar  Porto-Alegre,  cortando  a  eminência  a  les- 
te, e  abrindo  o  canal  de  juncção  com  o  ribeiro  que 
serpèa  na  planicie. 

Quereis  desfructar  ura  spectaculo  sccnico?.  .. 
Chegai  ao  mais  alto  da  coUina  ,  na  praça  princi- 
pal, e  vereis  por  ahi  abaixo,  para  o  norte  [que  co- 
mo sabeis  é  o  sul  do  hcmispherio  austral]  a  cidade 
que  se  estende  cm  pendor  ou  ladeira  ,  a  enseada 
cheia  de  navios,  as  ilhas  e  o  curso  tortuoso  dos 
sinco  rios,  qne  se  dilatam  exactamente  como  os  de- 
dos de  mão  aberta  afastados  uns  dos  outros;  depois 
as  casas  de  recreio  que  guarnecem  semi-circular- 
mente  a  praia,  cuberta  de  sombras,  da  bahia  ;  os 
valles  forrados  de  maltas,  que  se  prolongara  em  li- 
nhas parallelas  aos  outeiros  do  nordeste  ;  a  várzea, 
posterior  á  povoação,  com  suas  hortas,  pomares  de 
laranja,  bananeiras,  coqueiros,  cochonilheiras  ,  era 
cercas  de  tapumes  de  mimosas  amarellas  ,  verme- 
lhas ,  violetes,  ou  brancas,  quasi  sempre  carrega- 
das de  llores  ;  c  alera  disto  ,  para  lá  dessa  campi- 
na repousará  aprazivelmente  a  vista  nas  lindas  chá- 
caras ,  quintas  ou  fazendas,  bem  preparadas,  e  pi- 
cturescamente  postas  no  declive  dos  cabeços. 

Suppondo  que  escolhestes  para  gozar  este  painel 
delicioso  um  desses  dias  tão  eommuns  naquella  zo- 
\u\  ,  por  horas  de  sesta  e  tempo  bonança  ,  occasião 
(jue  transmitle  á  caldeiía  das  aguas  e   ao  rio   a  ap- 

(2)  IC"  o  extremo  seplei.trional  lía  Lagoa  ilos  Paios ; 
Irazeiíi-llie  o  riuiiu-  Ji'slas  |ialanas  :  I  !  a  mão,  pi-rque  cin- 
co rins  alli  vem  parar,  como  os  cinco  ilcilos  disliiictos  e 
afastados  ila  inào  Iiiimana  Item  aherla. 

(.))  Via;;cin  a  IJiienos-Ai  res ,  &.c.  impressa  no  Havre, 
ciluda  pelo  Sr.  í' .  Ueuis  a  paj.  161  do  seu  livro  sobre  o 
Brasil. 


parencia  de  ura  espelho  immenso  ;  lereis  iim  admi- 
rável panorama.  Tudo  que  virdes  se  dobrará  refle- 
ctindo-se;  as  ilhas  cora  seus  gados,  as  rasas  e  os 
contíguos  plantios  da  zona  tórrida  ,  as  embarcações 
á  vela  ,  c  unia  infinidade  de  elegantes  barcas  sera- 
piulidas  de  diversas  cores,  que  sulcam  os  sinco 
coniluenles.  Finalmente,  encaminhando  a  vista  pa- 
ra o  norte,  descnbrireis  [não  sendo  myope]  ,  lá  no 
horisonte  ,  a  (Quinze  léguas  distante  a  cordilheira 
da  Serra  Grande  encuberta  em  parle  pela  cerração 
de  vapores. 

Nem  só  agradáveis  vistas  se  gozam  era  Porto-Ale- 
gre ;  lambera  se  desfructa  boa  sande  :  não  ha  cli- 
ma mais  adequado  aos  temperamentos  europeus : 
nada  dos  calores  ardentes  do  Rio  de  Janeiro;  nem 
das  polvaderas  e  nniles  frias  de  Buenos-Ayres  :  o  ar 
é  temperado,  balsâmico,  puro  e  salubre;  por  isso 
os  facultativos  não  grangeiam  aqui  fortuna  ,  e  as 
boticas  convertem-se  em  lojas  de  perfumes.» 


E301TC1CIA  FCLI^ISA. 

Considerações  snbtc  o  Curso  d' Economia  Politica,  pu- 
blicado cm  Paris  cm  1842  pelo  Sr.  Miguel  Chcva- 
lier. 

III. 

Supérfluas  não  estimamos  quaesqner  observações 
sobre  a  importância  das  vias  de  communicação  , 
nós  que  quasi  de  lodo  as  carecemos,  quando  em 
paizes  muito  melhorados  n'este  ramo  ainda  hoje  se 
eslão  esirevcndo  obras  com  o  fim  especial  de  de- 
moi;sIrar  as  vantagens  das  estradas  de  Ioda  a  casta 
de  terra  eagua.  Pelo  contrário,  julgámos  que  o  pri- 
meiro passo  para  oblc-lasé  illustrar  os  entendimentos, 
e  irazc-los  a  uma  convicção  unanime  sobre  a  neces- 
sidade que  temos  d'ellas.  íi  mister  que  esta  convic- 
ção penetri  a  todos,  não  só  aos  que  votam  c  aos 
que  administram  e  dispendem  os  tributos,  aos  que 
os  pagam  principalmente  :  porque  quando  os  con- 
tribuintes tiverem  uma  só  opinião  sobre  este  ponto, 
está  conseguido  o  mais  dilficil ;  o  grande  impulso 
está  dado. 

Limito-me  á  questão  da  necessidade  e  deixo  as 
outras  —  a  dos  fundos,  e  do  modo  de  os  haver  — 
c  a  do  plano  de  communicações  mais  apropriado  tan- 
to á  configuração  do  solo  ,  e  hydrographia  do  paiz  , 
como  aos  seus  recursos.  Mas  não  devo  omittir  que 
me  parece  oiTerecer  muitas  vantagens  o  meio  de 
conslrucção  de  estradas  que  fòr  menos  demorado  , 
sem  por  isso  prejudicar  á  perfeição  d'ellas;  para 
que  esta  geração  possa  começar  a  gozar  do  benefi- 
cio, c  gozando-o  resignar-se  de  melhor  vontade  aos 
sacrilicios  que  elle  impõe. 

De  pouco,  comtudo,  serviriam  os  transportes  fá- 
ceis, se  os  productos  a  transportar  fossem  escaços 
pelas  dilliiculdades  da  producção.  E  uma  das  maio- 
res (lifliculdades  que  entre  nós  entorpece  a  produc- 
ção é  a  taxa  demasiado  alta  do  juro  dos  capitães  ou 
avanços  qne  o  lavrador  precisa  tomar  de  emprésti- 
mo para  a  cultura  de  suas  terras.  O  rédito  qne  el- 
le paga  d'esles  avanços  comparado  com  a  renda  lí- 
quida <|ue  percebe  da  sua  propriedade  rural  mostra 
uma  desproporção  assustadora  ;  porque  em  quanto 
pede  enqnestailo  desde  12  até  24  por  rento  e  mais, 
só  lira  da  terra  um  lucro  ,  livre  de  despezas  ,  de 
S^j  e  4  por  cento.  Calculando  os  avanços  em  cinco 
mil  contos,  c  o  juro  d'elles  a  18  por  cento,  vem 
este  juro  a  importar  em  900  contos.    Se  em  vez  de 


o  PAINORAMA. 


147 


18  fosse  a  C  por  cento ,  importaria  em  300  contos , 
c  a  dilTorcnça  entre  300  c  '.lOO  que  são  600  contos, 
seria  o  que   anuualnicnlc   se   havia   de   poupar   em 
proveito   da   agricultura.    Ou  este    excesso   de  000 
Coutos  nos  gastos  da  producção  agricola  se  conside- 
re lesivo  ao  agricultor,  empol)recendo-o,  e  obrigan- 
do-o  a  abandonar  a  cultura  das  terras   ou  inipossi- 
biiitando-o  de  as  melhorar;   ou  ao  consumidor  ra- 
reando os  cereaes  e  lodos  os  outros   pruductos  do 
solo  em  consequência    do  abandono   de  uma  porção 
d'elle  ou  da  incúria  do  cultivador;  ou  a  outras  in- 
dustrias ,  causando  em  delrinienlo  d'ellas  uma  ele- 
vação exorbitante  e  artilicial   na  taxa  do  juro  ;    cm 
qualquer  das  sutiposições  é  um  grande  mal  que  con- 
vém remediar.    E  aiuda  que  esta  elevação   da  taxa 
do  juro  possa  nascer,  em  grande  parle,  de  uma  má 
administração  de  justiça,  e  de  umniáu  systema  hy- 
pothecario,    m.iu  por  oITereccr   pouca  segurança  de 
reembolço  aos  que  emprestam  ;  no  caso  especial  de 
que  trato  ,    procede  ella  ,    principalmente,   de    um 
monopólio   de  ea|)itaes,    o  qual  monopólio   só  pôde 
cessar  ,    aproveilando-se  ,  como  convém  ,  o  elemen- 
to do  credito.   O  credito  ,    comtudo  ,    na   hyputhese 
que  figurámos   não   será  empregado   em  crear  valo- 
res de  pura  convenção  ,    emprego  contra   o  qual    se 
levantam   maiores    objecções   e  que  inspira   alguns 
receios :    o  seu   serviço   ha-de   consistir   em  tornar 
valores  preexistentes   disponíveis  para   a  producção 
de  valores  futuros.  Os  valores  preexistentes  não  nos 
faltam  a  nós,    porque   lemos  terras   de  semeadura, 
cellciros  cheios  e  abundantes  para  a  semente  ,    ani- 
maes  para  a  lavoura,  comestiveis  de  toda  a  espécie, 
e  armazéns  de  fazenda  para  o  vestuário  ,     e  com  as 
matérias   primas    e  os   instrumentos   necessários    á 
agricultura    e   os  comestíveis   e   vestuário   precisos 
aos  trabalhadores  ,  temos  os  trabalhadores  indispen- 
sáveis ao  fabrico  rural.   O  que  falta    pois   para  que 
se  possam  pór  em  acção  todos  estes  meios ,  sem  cu- 
jo concurso  se  não  consegue   a  lavoura  das  terras? 
Falta    ao  proprietário   ou   ao  rendeiro  que  o  repre- 
senta o  instrumento  das  trocas  que  é  a  moeda  ou  o 
seu  substituto  ,    porque   sem    esse  instrumento   não 
podem  circular   todos  aqiielles  objectos,   e  não  po- 
dem  circular   e  servir   ã  agricultura  ,    porque   não 
podem  trocar-se  uns  pelos  outros.  Não  é  ,  portanto  , 
necessário,    para  sahir  d'este  embaraço,    crear  va- 
lores meramente  con\encionaes   ou  fictícios,    basta 
crear  uma  moeda  que  tenha  fundamento  e  hypolhe- 
ca  no  valor   da  terra   e  até  numa  ^asoavel  reserva 
metallica,    e  que  representando,   d'cste  modo,  um 
valor  real  ,   possa   permutar-se   por  todos  os  outros 
valores  ,   productos  ,   serviços  ,  ou  instrumentos  de 
que    carece    o    lavrador    até    realisar   a    producção 
agrícola.    Aquella  moeda  será  emittida  por  estabe- 
lecimento de  credito :   o    estabelecimento  adianta- 
rá d'ella   ao  lavrador,    por  um  juro   mui  módico, 
as  quantias  de  que  este  carecer  :  e  o  lavrador  obte- 
rá com  a  mesma  moeda  ,    p<iis  representa  um  valor 
incontestável  ,   todos  os  serviços   e  objectos   de  que 
precisar  para  o  amanho  da  sua  propriedade.    E  co- 
mo o  credito  não   é  cousa  que  se  crie  e  se  adquira 
á  vontade  ,  seria  para  desejar  que  a  instituição,  fa- 
vorável á  agricultura  ,  fundada  e  organisada  d'esta 
maneira,    se  prendesse  a  alguma  outra  instituição, 
também  de  credito,  já  estabelecida  e  arreigada,  ou, 
pelo  menos,  a  alguma  companhia  que  já  o  tivesse; 
pela  rasão  ,  mui  obvia  e  simples  que  os  capitães ,  á 
similhança  das  povoações  ,  e  das  tropas  ,  e  das  for- 
ças de  toda   a  espécie,    valem  mais,   muito  mais, 
condensados  que  disseminados.    ,.  -,,u  . 


Tma  tnneda  papel  assim  fundada  ,  oITereceria  to- 
da a  segurança  que  presta  odinheiro,  pela  circums- 
tancia  de  exprimir  valores  determinados  e  reconhe- 
cidos :  inteiramente  dilferente  do  papel  itiocda  que 
sendo  ,  não  numerário  verdadeiro  com  a  forma  de 
papel  como  a  moeda  de  que  acabo  de  fallar  ;  mas 
papel  ,  sem  valor  real  ,  com  a  máscara  de  numerá- 
rio ,  se  estriba  c  aiictorisa  unicamente  na  vontade 
do  imperante  ou  na  lei  ;  lei  de  que  o  mercado  zom- 
ba porque  obedece  a  outras  ,  c  se  regula  por  ou- 
tros principiíis. 

Ue  se  não  ter  applicado  o  instrumento  do  credi- 
to aos  avanços  ou  empréstimos  de  que  a  nossa  agri- 
cultura precisa  resulta,  como  acabámos  de  vêr,  estar 
a  producção  nacional  privada  de  um  beneficio  ,  ou 
antes  sugeila  a  um  encargo  equivalente  pelo  menos 
a  600  contos  annuacs.  (Juanlos  tem  lido  a  obra  do 
marqucz  de  AudilTrct  sobre  as  rendas  publicas  de 
Trança  sabem  que  a  propriedade  de  r/iiz  está  alli 
gravada  em  dividas  que  montam  a  mais  de  11  bil- 
lióes  e  233  milhões  de  francos  ,  que  é  uma  somma 
superior  a  cinco  annos  e  meio  da  renda  liquida  dos 
proprietários  ruraes  ,'  se  avaliarmos  esta  em  2  bil- 
liões  de  francos  por  anno  segundo  o  calculo  de  Du- 
pin  em  1831.  Não  sei  se  sobre  os  nossos  campos 
pesa  ura  ónus  proporcional  áquelle  ;  mas  posso  af- 
firmar  sem  escrúpulo,  creio  eu,  que  a  industria 
agrícola  está  mais  aperfeiçoada  em  França  do  que 
em  Portugal.  Se  apesar  de  robusta,  lá  tem  um  can- 
cro para  devorar-lhe  as  forças,  a  nossa  que  ainda 
é  débil  como  ha-de  supporlar  parasitas  tão  dani- 
nhos como  são  os  usurários?  É  mister  expulsar  es- 
tes e  outros  inimigos  que  ainda  a  perseguem  e  anão 
deixam  medrar,  policia-la  ,  e  dota-la  com  os  aper- 
feiçoamentos modernos.  Duvidaes  da  ellicacia  des- 
tes aperfeiçoamentos?  Consultai  o  seguinte  quadro 
comparativo  dos  productos  da  agricultura  ingleza  o 
franceza  era  1833. 


Designação. 


A  (r lã- Bretanha  so- 
bre 13  milhões  d' he- 
ctares c  cnm  oní/.rí- 
/io  de  0,209010  rra- 
balhadores,  produz : 


A  Franca  sobre  40 
milltões  d'hectarcs, 
e  enm  oainilio  de 
22  a  24  milhões  de 
trabalh.  ,  produz: 


Hcct.  o6,000J000 

170',i>000 

1,2.10^^000 

10,200jiOOO 


133,000^000 

40^000 

800^000 

3.200^000 


Este  mappa  que  foi  appresentado  á  consideração 
dos  agricultores  francezes,  ofTereçu  agora  á  dos  nos- 
sos para  que  vejara  n'este  exemplo  que  é  possível 
com  menor  extensão  de  terreno  e  menor  numero  de 
braços  obter  maiorquanlidade  relativa  de  productos 
ruraes.  É  phenomcno  que  se  explica  pela  superiori- 
dade das  vias  de  commuuicação,  das  machinas,das 
instituições  de  credito  que  proporcionam  avanços  ba- 
ratos ao  agricultor,  c  pela  excelleiícia  dos  mètho- 
dos — em  Inglaterra.  E  em  França  o  phenomcno  op- 
posto,  que  essa  oflcrece,  de  muito  mcnur  |Moducção 
rural,  ou  comparativa  ou  absoluta  ,  com  mais  vasta 
extensão  de  terras  de  lavoura  e  muito  maior  nume- 
ro de  trabalhadores  efToctivos  ,  explica-se  ,  ao  con- 
trario, pela  inferioridade  que  lá  manifestain  os  mes- 
mos instrumentos  productivos  ,  que  deixo  enumera- 
dos ,  quando  se  confrontara  com  os  <ie  Inglaterra. 

(Continua.) 
A.  d' O.  Marreca. 


1Í8 


o   PANORAMA. 


l;í,.j.i-.i'   .'       .Moral  r.NlTEnsAL.  i'\  '•',•'     /,i 

.SV  o  limnerii   fosse  dotado  da  presciência  do  futuro  , 

seria  etle  mais  feliz  nu  mais  infeliz   do  ijuc 

o  c  actualmente? 

Esta  queslão  íoi  venlilada  ultimamente  com  muita 
erudição  ,  e  desenvolvida  cora  muita  sagacidade  e 
eloquência  por  um  grande  numero  de  jovens  ora- 
dores e  por  um  dos  mais  antigos  e  distinclos  pro- 
fessores desta  còrle  ,  na  illustre  Academia  Lisbo- 
nense das  Sciencias  e  das  Lettras.  Fechada  a  dis- 
cusíão  ,  eis-aqui  ,  como  o  presidente  resumiu  os  de- 
ijales  alim  de  appresentar  ,  debaixo  d'ura  ponto  de 
■vista  claro  e  desembaraçado  de  todo  o  equivoco,  o 
estado  da  questão  ,  que  ia  por  a  votos. 
* 

Senhores:  Quando,  enunciada  uraathése,  pessoas 
dotadas  de  saber  e  de  boa  fé  se  pronunciam  deci- 
iliilamenle  em  sentidos  inteiramente  oppostos  ;  é  for- 
çoso concluir  ou  que  a  queslão  foi  mal  posta  ou  que 
os  contendores  tomam  as  expressões  ,  de  que  cons- 
ta a  thése  ,  em  sentidos  absolutamente  diversos  uns 
dos  outros.  As  vezes  a  divergência  das  opiniões  de- 
riva d'ambas  estas  causas. 

Fazendo  applicação  deste  principio  de  dialéctica 
ii  queslão  que  tão  erudita  e  eloquentemente  tenho 
ouvido  debater  neste  recinto  ,  direi :  que  a  diver- 
gência d'opiniões,  manifestada  pelos  illustres  ora- 
dores ,  me  parece  provir  ,  principalmente  ,  de  que 
a  queslão  ,  com  eITeito  não  foi  bem  posta.  Eis-aqui 
como  eu  entendo  que  ella  deveria  ser  concebida  : 
Seria  o  homem  mais  feliz  ou  irais  infeliz  se  previssc 
os  futuros? 

Como  é  que  os  homens  prevêem  os  futuros?  Me- 
diante a  analogia  das  cousas  que  lhes  indica  a  con- 
formidade dos  effeitos.  Se  a  analogia  c  perfeita  e 
constante  ,  a  jirevisão  c  acompanhada  de  certeza  : 
isto  verifica-se  raras  vezes.  Se  as  analogias  são  fra- 
cas e  as  observações  variáveis  ,  a  previsão  é  duvi- 
dosa ou  mais  ou  menos  provável ;  mas  não  certa  : 
isto  é  o  que  acontece  á  maior  parte  das  previsões 
humanas.  Mas  as  mais  das  vezes  nada  podemos  pre- 
ver ,  nem  presumir.  Estas  são  todas  as  phases  de 
presciência  humana.  Portanto  perguntar:  se  o  ho- 
mem seria  mais  feliz  ou  mais  infeliz  se  previsse  to- 
dos os  futuros,  vai  o  mesmo  que  perguntar:  se  o 
homem  seria  mais  feliz  ou  mais  infeliz,  se  não  fos- 
se homem  ;  porque  o  ente  que  conhecesse  todos  os 
futuros,  seria  d'uma  natureza  inteiramente  diversa 
daquella  que  só  pôde  conhecer  alguns  poucos  com 
certeza  ;  mais  alguns  com  duvida  ;  não  lhe  sendo 
dado,  em  quanto  fòr  o  que  é  ,  conhecer  todos  os 
futuros. 

Ora  como  ninguém  discutiria  seriamente  a  ques- 
tão :  Se  o  homem  seria  mais  feliz  se  não  fosse  ho- 
mem ;  também  se  não  podo  discutir  seriamente  a 
questão  proposta  do  modo  como  ella  foi  enunciada. 

Para  cila  ser  uma  questão  seria  e  susceptível  de 
se  tratar  com  utilidade  pratica  ,  deveria  ser  conce- 
bida nestes  termos  :  Era  igualdade  de  circumstan- 
cias  ,  qual  é  mais  feliz  cio  homem  que  prevê  um 
maior  numero  d'acontecimentos  futuros,  ou  aquelle 
que  só  prevê  um  pcíiucno  numero?  Depois  de  as- 
sim posta  a  questão,  debaixo  do  seu  verdadeiro 
ponto  de  vista  ,  segue-se  ponderar  até  que  ponlo  a 
sim[des  previ^-ão  dos  acontecimentos  futuros  entra  , 
como  elcuienlo  de  felicidade  do  homem  ;  pois  éevi- 
denle  que  esta  depende  de  muitas  outras  condi- 
ções ;    sendo  certo  que  a  desgraça  prevista  pelo  lio- 


mem  de  bem  o  alTecta  mui  differentemente  do  que 
jior  aquelle  que  não  acha  na  sua  consciência  cor- 
rompida e  aviltada,  nem  resignação,  nem  coragem. 
Alem  disso  ,  os  futuros  podem  ser  mais  ou  menos 
prováveis,  mais  ou  menos  fáceis  de  prevenir,  quan- 
do elles  são  contingentes  :  c  nesses  casos  também  a 
previsão  ,  por  si  só  ,  não  basta  para  fazer  o  homem 
que  delia  é  dotado,  nem  feliz,  nem  desgraçado.  Se 
é  [irudente,  essa  previsão  lhe  proporcitmará  os  meios 
de  evitar  ou  de  minorar  as  funestas  consequências 
com  que  o  futuro  o  ameaça.  Se  lhe  falta  a  prudên- 
cia ,  essa  previsão  augmcniará  a  sua  infelicidade. 

Assim  o  conhecimento  do  futuro  ,  sendo  todas  as 
outras  circumstancias  iguaes  ,  nada  influe  sobre  a 
felicidade  humana.  Se  suppozermos  dois  homens 
igualmente  circumspectos  ,  e  probos  ,  mas  um  mais 
hnbil  do  que  o  outro  em  prever  o  futuro  ,  esta  pre- 
visão contribuirá  a  diminuir-lhe  a  somma  de  ma- 
les ,  sem  por  isso  o  fazer  mais  feliz  :  porque  o  ou- 
tro achará  na  sua  consciência  motivos  para  viver 
satisfeito  cora  a  sorte  que  lhe  houver  deparado  a 
Providencia. 

Dos  perversos  é  que  se  pódc  dizer  que  a  previ- 
são do  futuro  os  tornará  mais  desgraçados;  porque 
lhes  oflerecerá  mais  meios  de  seguirem  os  impulsos 
da  sua  perversidade ,  tornando-os  mais  dissolutos 
ou  desesperados. 

Não  é  sem  grande  satisfação  que  no  decurso  des- 
te interessante  debate  ,  observei ,  que  todos  os  il- 
lustres oradores  concordaram  em  que  a  felicidade 
do  homem  consiste  no  gozo  de  pureza  da  alma  e  de 
saúde  do  corpo  ou ,  como  se  exprimia  o  philosopho 
romano:  Mens  sana  incorpore  sano:  duas  condi- 
ções que  se  podem  realisar  no  mesmo  grau  era  pes- 
soas dotadas  do  talento  da  previsão  dos  futuros  em 
graus  muito  diversos.  N'uns  essa  previsão  pôde  tor- 
nar mais  diUicil  a  conservação  da  pureza  da  alma 
e  da  saudc  do  corpo;  n'outros  torna-la-ha  mais  fá- 
cil ;  mas  como  aquellas  duas  condições  da  felicida- 
de são  resultados  d'uma  boa  constituição  physica  e 
moral,  recebida  da  natureza,  c  da  educação  (obra 
da  arte  humana  exercida  sobre  o  homem  desde  a 
sua  nascença]  ;  já  se  vè  que  o  seu  adimplemento 
precede  a  esta  previsão  dos  futuros ,  cujo  grau  de 
perspicácia  não  gera  ,  nem  inllue  d'um  modo  inva- 
riável sobre  aquellas  condições. 

Portanto  a  thése  ventilada  não  só  foi  mal  posla  , 
porque  tomou  a  palavra  presciência  n'ura  sentido 
que  ,  a  verificar-se  ,  o  homem  não  seria  homem  ; 
mas  lambem  porque  encerra  a  palavra  felicidade, 
cuja  existência  é  independente  do  maior  ou  menor 
grau  de  previdência  do  futuro,  quanto  ii  sua  exis- 
tência :  c  só  a  sua  conservação  é  que  n'uns  seria 
mais  dillicil  ,  n'outros  mais  fácil  ;  porem  não  já  em 
rasão  do  grau  da  previdência  de  que  cada  um  é 
dotado  ,  mas  do  grán  de  energia  moral  e  de  força 
physica  com  que  cada  um  é  conslituido  pela  natu- 
reza e  aperfeiçoado  pela  arte  da  educação. 

Donde  resulta  :  que  devemos  fazer  uma  segunda 
modificação  á  thése  ,  enunciando-a  deste  modo  :  A 
previdência  do  futuro  contribiic  a  augmcniar  ou  a 
diminuir  o  numero  de  males  a  que  é  sujeita  a  es- 
pécie humana  ? 

Assim  appresenlada  a  questão,  fica  muito  mais 
obvia  a  resposta  ;  porque  logo  occorre  cpu' ,  segun- 
do cada  um  fòr  dotado  de  mais  ou  menos  jiruden- 
cia  ,  de  mais  ou  menos  energia  de  caracter  ,  nuiior 
será  o  parlido  que  elle  tirará  dessa  previsão.  I.ogo 
occorre  :  que  o  homem  frouxo  ou  co\arde,  o  homem 
dominado  pelas  suas  paixões ,   não  pódc  deixar   de 


o   PA?SORAaiA. 


149 


aterrar-se  cora  .i  certeza  dos  males  inevitáveis,  que 
o  esperam  cm  (Ictcrminatla  epocha  ;  liem  como  com 
os  que  ,  sendo  contingentes  por  sua  natureza  ou 
porque  dependem  da  vontade  de  nutrem  ,  o  trarão 
cm  continuo  sobresalto ,  e  o  reduzirão  á  horrivcl 
qualidade  do  misantliropo.  Pelo  contrario  o  homem 
prudente  c  avisado,  tomando  conselho  das  circums- 
lancias,  procurará  e  conseguirá  muitas  vezes  ate- 
nuar os  males  que  não  pôde  evitar ,  e  mesmo  se 
forrará  a  muitos  que  não  teria  declinado  se  os  não 
tivesse  previsto.  Virtuoso  c  confiado  na  sabedoria 
do  Creador  ,  esperará  com  animo  lirme  c  resignado 
os  males  que  prevc  não  estar  na  sua  mão  o  evitar  : 
c.  longe  de  considera-los  como  um  verdadeiro  mal, 
rcllectirá  :  que  ,  se  o"homcm  vulgar  os  appelida 
males  ,  porque  lhe  causara  incoraniodo  ,  o  philoso- 
pho,  emais  ainda  ochristão,  não  vêem  nesses  acon- 
lecimcntus  senão  um  decreto  emanado  da  infinita 
sabedoria  ,  da  infinita  bondade  de  um  Deus ,  que 
não  pôde  querer  nem  ordenar  senão  o  que  é  bora  e 
acertado,  o  que  é  mais  conforme  aos  fins  imper- 
scrutáveis ,  mas  infallivcimcntc  uleis  e  justos  da 
crcação. 

Com  efTcito,  diz  o  philosopho,  recorramos  ao  úni- 
co meio  de  chegar  ao  descobrimento  da  verdade  , 
isto  é  á  definição  :  e  examinemos  o  que  se  entende 
por  mal. 

Todas  as  vezes  que  ,  refleclindí>  nós  sobre  o  en- 
cadeamento d'uraa  serie  de  causas  e  cffeitos,  obser- 
vámos quo  algum  acontecimento  superveniente  des- 
arranja esse  systcma  ,  dizemos  que  esse  aconteci- 
mento foi  um  mal  para  aqnellc  systcma  ;  mas  uma 
segunda  rcQexão  nos  faz  descobrir  que  sem  o  des- 
arranjo daquclle  systcma  [isto  é  sem  o  que  é  máu 
para  elle]  não  poderiam  funccionar  muitos  outros: 
o  que  seria  maior  mal.  Certo:  as  doenças  que,  a 
final ,  causam  a  morte  dos  entes  organisados ,  são 
males  para  esses  entes ;  mas  na  ordem  da  crcação 
devem-se  chamar,  c  são  na  opinião  de  todos  verda- 
deiros bens.  Quando  se  diz,  e  diz-se  com  verdade, 
que  não  ha  males  sem  compensação,  quer-se  dizer  : 
que  a  experiência  mostra,  não  acontecer  jamais  cou- 
sa que,  sendo  má,  debaixo  de  certo  ponto  de  vista, 
não  seja  um  bem  considerada  a  outros  respeitos. 

Se  o  mundo  é  um  todo  maravilhosamente  ordena- 
do como  não  ha  ninguém  que  o  desconheça  ;  e  essa 
admirável  ordem  resulta  do  complexo  dos  aconteci- 
mentos que  nelle  se  passam  ;  isto  6  ,  tanto  dos  que 
nós  chamámos  bens  porque  nos  causam  prazer  ,  co- 
mo dos  que  chamámos  males  porque  nos  incommo- 
dam ;  segue-se  que  relativamente  ao  grande  fim  da 
ereação,  esses  que  nós  appellidàmos  males,  são  ver- 
dadeiros bens. 

Voltando  pois  á  questão  que  tem  feito  objecto  das 
nossas  discussões,  a  saber:  se  a  presciência  dos  fu- 
turos fazia  o  homem  mais  feliz  ou  mais  desgraçado 
concluiremos  que  não  se  Irata  de  saber  o  que  o  ho- 
mem seria  se  prevesse  todos  os  acontecimentos  fu- 
turos ;  porque  para  poder  prevè-los  seria  preciso  que 
o  homem  fosse  constiluido  d'oulro  modo;  isto  é: 
que  o  homem  não  fosse  homem  ;  e  então  já  vedes 
que  a  questão  se  reduzia  a  perguntar  :  se  o  homem 
seria  mais  feliz  se  não  fosse  homem  :  e  propor  tal 
questão  seria  uma  inépcia. 

Mas  se,  reduzindo-a  aos  seus  verdadeiros  termos, 
perguntarmos  :  se  é  mais  conducente  para  a  felici- 
dade do  homem  conhecer  elle  os  futuros,  que  hu- 
manamente se  podem  conhecer:  occorre  logo  que 
dessa  previsão  umas  vezes  hade  resuUnr  maior  bem, 
outras  vezes  menor ,   segundo  o  uso  que   a  pessoa 


souber  fazer  delia  :  c  logo.  o  ser  feliz  ou  desgraça- 
do, depois  da  presciência  daquelles  futuros  aconte- 
cimentos ,  não  provém  dessa  presciência,  mas  das 
qualidades  moraes  do  individuo  cm  que  ella  se  ve- 
rifica. 

Klucidada  assim  a  nossa  questão  porei  iirimoirn- 
nientc  a  votos:  se  ella  é  susccpti\cl  de  ser  decidi- 
da pela  votação  cathcgorica  de  sim  ou  não.  E  se  se 
vencer  que  o  é  ,  procedcr-sc-ha  á  votação  sobre  a 
Ihcsc ,  tal  como  cila  foi  [irimciramcnte  concebida. 
Silvestre  Pinheiro  l'crreii-a. 


DlSClBSO  ■     '    ' 

Em  que  Alexandre  de  Gusmão  mostra  o.i  interesses 
f/ue  resultam  a  S.  M.  F.  e  a  seus  rassallos  da  e.Te- 
cueão  do  tractado  de  limites  da  colónia  do  Sacra- 
mento ,  ajustado  com  S.  M.  CaUwlica  {•]. 

Pdblicar  trabalhos  alheios,  quasi  mortos  por  escon- 
didos ,  é  de  certo  mais  por  desejos  de  ser  útil  do 
que  por  ambição  de  adquirir  honra  ou  gloria.  O 
Sr.  J.  M.  T.  de  C.  çollecionou  c  publicou  no  Por- 
to era  18Í1  ,  vários  escriptos  políticos  e  litterarios 
do  celebre  americano,  Alexandre  de  Gusmão,  con- 
selheiro de  capa  e  espada  do  conselho  ultramarino, 
cconfidcnte  e  secretario  privado  dVlrei  D.  João5.°: 
—  é  serviço  para  agradecer-se.  Também  desejoso 
de  ser  útil  de  algum  modo  á  nossa  historia  politi- 
ca ,  e  á  nossa  litteralura  ,  julgo  dever  publicar  um 
manuscripto  do  mesmo  auctor  ,  que  não  achei  na 
collecção  do  Sr.  J.  M.  T.  de  C.  ,  nem  nas  Jlemo- 
rias  da  Academia  llcal  de  Historia  Portugueza,  nem 
na  Bibliotheea  de  Barljoza  ilachado ,  nem  cmfim 
nos  diflerentcs  jornaes  litterarios,  onde  se  hão  publi- 
cado differenles  escriptos  de  A.  de  Gusmão. 

A  10  de  janeiro  de  17S0  ajuslou-se  entre  a  cor- 
te de  Lisboa  e  a  de  Madrid  um  tratado  de  limites, 
relativo  á  colónia  do  Sacramento  ,  situada  na  mar- 
gem septentrional  do  rio  da  Prata  :  —  foi  este  tra- 
tado vivamente  impugnado  ,  logo  depois  da  morte 
do  Sr.  D.  João  o.°,  em  um  papel  escripto  pelo  bri- 
gadeiro. António  Pedro  de  Vasconccllos  ,  que  linha 
sido  governador  da  colónia.  A  resposta  que  Alexan- 
dre de  Gusmão  deu  a  este  escripto  ó  curiosa  e  ins- 
tructiva  ,  pelas  idéas  politicas  e  económicas,  que  o 
auctor  expende ,  e  pela  vastíssima  scicncia  topo- 
graphica  que  nella  se  acha:  —  está  publicada  na 
collecção  do  Sr.  J.  M.  T.  de  C. 

O  manuscripto  ,  de  que  hoje  trato  ,  é  acerca  da  ' 
mesma  negociação;  —  foi  escripto  quando  A.  de 
Gusmão,  cm  consequência  da  demora  da  execução 
do  tratado  ,  começou  a  sentir  vivos  receios  ,  que  se 
lhe  não  desse  cfltilo  :  —  c  um  complemento  do  pri- 
meiro manuscripto;  que  deverá  ser  inserido  cm  uma 
segunda  edição  da  Collecção  do  Porto  ,  e  que  no 
entanto  parece  acertado  tirar  á  luz  publica. 

*  J.  P. 

O  estado  cm  que  o  rei  defunclo  ,  nosso  .\iigus- 
tissimo  Alonnrclia  de  eterna  memoria  ,  havia  deixa- 
do a  ncgiiriação,  que  na  còrtc  de  Madrid  se  mane- 
java sobre  a  colónia  do  Sacramento ,  situada  na 
margem  septentrional  do  rio  da  ]'rata  ,  nos  tinha 
cheio  de  esperanças  de  ver  fiualisada  por  um  meio 
amigável  a  antiga  controvérsia  das  duas  cortes  de 
Portugal  c  Castella,  a  respeito  dos  limites  da  Amc- 


(•)  Refere  se  ii  A.  em  piírle  ilo  sen  ilisciirso  á  Provín- 
cia de  S.  Pe.lro  ,  cuja  capital  é  Purlo-Alegre ;  viJ.  gravu- 
ra anteposta  a  esle  n.*  ' 


150 


O   PANORA3IA. 


TÍca  :  porem  havendo-se  demorado  a  execnrão  des- 
te plano,  entramos  a  dar  algum  assenso  ao  que  ou- 
Tinios,  de  que  as  representações  feitas  ao  nosso  mi- 
nistro [cm  que  se  mostra  que  as  vantagens  ofíereci- 
das  nos  paizes  commutados  não  recompensam  de 
algum  modo  os  interesses  com  que  nos  contribue 
aqiiella  prara]  tem  causado  movimentos  contrários 
ao  que  se  havia  regulado  :  — somos  obrigados  a  en- 
trar nesta  pequena  dissertação  sem  espirito  de  par- 
cialidade ,  antes  bem  desejosos  de  que  se  nos  dêem 
melhores  rasões  ,  do  que  as  que  nos  illustram  ,  pa- 
ra abraçarmos  dilTerentes  sentimentos  dos  que  se- 
guimos. 

A  guerra  passada,  a  que  pòz  termo  o  tratado  de- 
finitivo ,  concluido  no  congresso  de  Aqiiisgran  no 
mez  de  outubro  de  1748,  mostrou  á  Hcspanha  as 
grandes  sommas  de  prata  ,  que  se  extrahiam  dos 
seus  domínios  pela  colónia  do  Sacramento  ,  e  quan- 
to inúteis  eram  as  providencias  dos  seus  governado- 
res a  remover  o  contraliando.  Da  mesma  sorte  leni 
sido  reconhecidas  inlVuctuosas  todas  as  diligencias 
a  fim  de  impedir  a  inlroducção  nos  seus  portos  e 
povoações  dos  géneros  que  transportânios  para  o  Bra- 
sil ;  cujas  informações  ,  longe  de  chegarem  diminu- 
tas ,  são  referidas  com  toda  a  afTeclação  imaginá- 
vel, pelos  ofliciaes  a  quem  toca  evitar  os  ditos  con- 
trabandos, na  intenção  de  que  se  lhes  não  imputem 
ommissões. 

A  mesma  còrle  de  Madrid  fez  publico  os  desca- 
minhos da  prata  de  suas  minas  pelo  canal  da  coló- 
nia ,  tendo  em  Lisboa  emissários  para  tomar  noticia 
dos  hespaidioes  ,  que  iam  nas  nossas  frotas,  e  par- 
tecipar-lhes  os  cabedaes  que  levavam,  o  que  se  na- 
quellc  tempo  pareceu  meio  de  segurar  os  importan- 
tes direitos  que  dclles  lhe  toca,  algum  dia  desco- 
brirá que  para  esta  averiguação  concorreu  outro  oI>- 
jecto  ! 

Nada  prova  mais  quanto  somos  capazes  de  enga- 
nar-nos  nas  nossas  coMsas,  como  entender  que  Hcs- 
panha dorme  tão  descuidada  dos  seus  interesses , 
que  podendo  fcchar-nos  a  porta  do  rio  da  Prata  , 
permitte  nelle  o  trafico  que  com  os  seus  vassallos 
entretemos.  Ninguém  ignora  quanto  os  príncipes  são 
zelosos  de  que  dos  seus  reinos  se  não  extraiam  as 
riquezas  que  nelles  ha  ,  ou  entram  ;  sacrificando-se 
por  e^ita  conservação,  em  muitas  occasiões,  [quando 
se  illudem  outros  recursos]  aos  males  de  uma  guer- 
ra. 

Acaba  de  apparecer  a  em  que  a  mesma  Hcspa- 
nha entrou  com  Inglaterra  no  anno  de  173'J  ,  não 
tenilo  mais  causa  que  impedir  o  comniercio  clan- 
destino :  — nada  contra[iesaram  o  rompiniento  as  con- 
siderações de  que  os  bons  successos  das  armas  são 
contingentes,  e  os  daninos  indofinivcis  ,  maiormen- 
tc  com  um  tal  contrario  ,  que  motiva  terror  á  Eu- 
ropa : —  nenhuma  inclinação  fizeram  á  balança  pa- 
ra a  mover  á  dissimulação. 

Neste  supposto  ,  que  podemos  esperar  se  ofiereça 
tão  natural  ,  como  uma  infracção  entre  portuguczes 
e  caslellianos  ,  aos  quacs  sempre  será  vantajosa  to- 
da a  acção  obrada  no  rio  da  Prata  ,  por  serem  se- 
nhores de  seus  portos  e  das  campanhas  de  uma  c 
outra  parte?  Na  deleza  ,  que  fizemos  ha  quinze  an- 
nos  na  colónia  ,  se  nos  pòz  á  vista  esta  superiorida- 
de. I^^stavamos  nella  empenhados  com  todo  o  nosso 
poder  ,  c  apenas  mostramos  uma  (lasmosa  constân- 
cia em  sollrcr  trabalhos,  ao  passo  que  os  hcspa- 
nhoes ,  sendo  recolhidas  as  suas  naus  nas  muitas 
enseadas  (la(|u('lles  rios,  desfructavam  as  commodi- 
d^ades  do  seu  paiz,  sendo  testemunhas  da  nossa  mi- 


séria e  consternação,   e  de  que  ainda  se  não  extin- 
guiram as  cicatrizes. 

Tudo  corria  de  nossa  parte  a  um  êxito  lamentá- 
vel; —  já  a  esquadra  que  foi  mandada  cm  soccorro 
da  mesma  colónia  ,  em  que  estava  toda  a  nossa  re- 
putação ,  havia  sido  obrigada  ,  por  falta  de  amarra- 
ções ,  a  abandonar  aquellas  costas  ,  e  o  que  então 
eram  forças,  principiaram  a  ser  exforços.  Finalmen- 
te [por  dizer  de  uma  vez  o  que  occorre]  teríamos 
tocado  o  ponto  da  ultima  miséria  a  não  estar  no 
Rio  de  Janeiro  o  ardente  espirito  do  general  Go- 
mes Freire  de  Andrade  ,  a  quem  se  não  poderá  ne- 
gar toda  a  gloria  ,  que  adquiriram  nesta  occasião 
as  nossas  armas. 

A  vista  disto,  em  que  parece  não  pode  haver 
contestação  ,  será  conforme  ás  máximas  de  algum 
politico  votar  contra  a  cessão  [e  é  aggravo,  pôr  em 
questão  a  equidade  do  convencionado  por  uns  reis 
de  quem  a  posteridade  não  ouvirá  fallar  sem  admi- 
ração] de  um  domínio  que  por  deposito  tem  a  Hes- 
panba  nas  nossas  mãos,  com  o  título  d'einphytcu- 
lico  para  o  haver  todas  as  vezes  que  quizer?!  Ao 
zelo  de  algumas  pessoas  que  chegaram  a  proferir, 
que  a  corte  de  Londres,  tendo  opportunídade  ,  pro- 
curaria arvorar  sua  bandeira  naquella  paite  donde 
retirávamos  a  nossa  [nad<i  se  tem  poupado  que  pos- 
sa servir  a  incntir-nos  as  idcas  de  que  este  é  um 
phenomeno  sem  exemplo]  ,  se  responde  ,  que  se  os 
inglezes  interessassem  cm  possuir  alguma  feitoria 
no  rio  da  Prata  se  teriam  lançado  sobre  Maldona- 
do ou  Monte-Video  ,  cujos  portos  [que  não  são  me- 
nos commodos  para  o  contrabando]  tem  mais  capa- 
cidade que  o  da  colónia  ,  aonde  não  ha  o  necessá- 
rio fundo  para  a  ancoragem  dos  navios  grandes  ,  e 
para  as  suas  esquadras  que  forem  montar  o  cabo 
de  llorn.  Mas  esta  nação  sabe  [e  qualquer  outra 
na  liuropa]  que  não  é  o  mesmo  conservar  nas  An- 
tilhas Jamaica  ,  Barbada  ,  Coraçau  e  Martinica  , 
que  uma  colónia  no  quinto  clima  do  continente  da 
America  Meridional  '. 

Com  isto  estava  também  satisfeito  o  panto,  e  eva- 
dido o  receio  de  introduzirem  suas  manufacturas 
nas  nossas  conquistas  ;  porem  como  esta  matéria  é 
tão  delicada  ,  que  ainda  assim  se  não  vencerão  âni- 
mos capazes  de  vagas  impressões  ,  deler-nos-hemos 
sobre  algumas  reflexões,  que  rodavam  sobre  o  mes- 
mo ponto  ;  porque  também  se  nos  faz  temer  que  os 
hespanhoes  conduzam  os  seus  géneros  ao  centro  das 
nossas  minas:  piojccto  espantoso,  c  que  em  qual- 
quer medíocre  discurso  passará  por  allucinação. 
Quem  não  soubesse  os  dilatadíssimos  sertões  de 
([uasi  SOO  léguas,  que  se  entrepoem  ;  as  asperida- 
des  do  caminho  por  onde  se  havia  de  fazer  o  tran- 
sito por  causa  de  umas  elevadas  serranias,  facil- 
mente daria  assenso  a  quanto  se  nos  propõe  para 
acautelar  o  defraude  do  nosso  ouro  :  —  porem  os 
que  estão  verdadeiramente  informados  destas  insu- 
jicraveis  diliícnldades  ,  de  necessidade  se  bãode  rir 
de  similbantes  proposições  :  maiormente  consideran- 
<lo-se  os  módicos  preços  por  que  correm  entre  nós 
[ainda  nos  mais  remotos  jogares]  toda  a  qualidade 
de  mercadorias  transportadas  nas  nossas  frotas  ,  po- 
dendo os  que  do  rio  da  Prata  intentarem  este  trafi- 
co conduzi-las  ás  vastíssimas  províncias  de  Chercas, 
Potosi  ,  Chili  ,  c  ao  resto  do  Peru  ,  aonde  as  repu- 
tariam com  avanços  de  duzentos  por  cento  mais  do 
que  lhe  produziriam   nas  nossas  povoações. 

Se  achamos  lucro  em  vender  os  nossos  efTeitos 
aos  hesfiaidioes  ,  que  as  vem  buscar  á  colónia,  ain- 
da maior  que  leva-los  ás  nossas  mesmas  minas,  que 


o   PANORAMA. 


151 


interesse  tirariam  os  estrangeiros  que  procurassem 
eslc  trato  com  ellns?  Sem  pnom<'rar  os  coiiimissos 
a  que  se  cvpiioliam  os  Ir^ms^Mcssores  das  leis  para 
esle  lim  cslahclccidas  ,  qiic  despczas  não  fa/iam? 

Quem  oii\e  dizer  que  de  lodos  aqoellos  pxcogita- 
dos  incon\(Miicnles  nos  põe  a  cobiTto  a  dila  colónia 
comprchcnde  ,  que  ella  é  o  sagrado  palladiura  ,  em 
que  csla  posla  a  sorte  do  nosso  destino;  que  no  rio 
da  Prata  não  ha  mais  purlo  que  o  seu  ,  para  o  que 
esporam  oiilras  potencias  o  praso  de  que  o  largue- 
mos ,  para  nellc  se  fuuilarem  ,  c  que  é  algum  ba- 
luarte ou  haircira,  que  impede  o  passo  ás  nossas 
terras;  porem  os  que  tem  in^lrucção  mediana  dos 
primeiros  elementos  de  geographia  ,  alcançam  que 
o  mesmo  clTeito  faria  o  forte  de  S.  Filippc  cm  Ca- 
dix  a  um  exercito,  que  qiiizcsse  por  Portugal  pe- 
netrar o  seio  de  flcspanha  ,  ou  os  Dardancllos  nu 
estreito  de  Gallipolli ,  e  o  golpho  de  Pairas  no  1-e- 
panto  contra  uma  irrupção  pela  Ungria  no  império 
ottomano  ,  do  que  as  muralhas  daquella  praça  aos 
que  achassem  commodidade  em  commcrciar  com- 
nosco  pelo  caminho  de  Curilaba.  Pelo  que  toca  a 
transferirmos  com  ella  o  direito  que  temos  a  uma 
grande  extensão  de  paiz  ,  que  nos  pertence  ,  e  de 
que  estão  de  posse  os  hespanhoes  [ainda  que  não 
entramos  na  discussão  desta  matéria  ,  porque  esta- 
mos certos  ,  que  por  mais  volumes  que  se  publi- 
cassem a  este  respeito  seriamos  respondidos  de  ou- 
tros tantos  da  parte  dos  nossos  limitrophcs  ,  nem 
esta  empreza  é  igual  ;is  nossas  forças,  pois  para  ou- 
tros engenhos  de  mais  profundos  pensamentos  está 
reservada  ,  contenlai>do-nos  de  mostrar  aos  que  es- 
tão mais  abaixo  dos  nossos  alcances,  que  segundo 
a  consistência  presente  do  nosso  reino,  por  todos  os 
princípios  nos  é  muito  conveniente  a  cessãoj  per- 
guntámos que  poder  tomos  para  o  cobrar?  A  que 
guerras  se  não  exporá  a  monarchia  ,  e  que  tempos 
se  não  gastarão  nesta  guerra? 

Quando  só  a  defeza  da  colónia  nos  custou  snmmas 
consideráveis,  e  de  que  em  muitos  annos  nos  não  re- 
sarcimos '.  ou  se  os  bollandezes,  que  nos  despojaram 
das  melhores  províncias  da  índia  ,  tivessem  a  bon- 
dade de  nos  deixar  um  pequeno  terreno  na  ilha  de 
Java  ,  e  comliido  temos  bom  direito  a  todas  aqucl- 
las  conquistas '.  O  equivalente  que  se  nos  dá  é  mui- 
to mais  im()ortante  do  que  conhecemos.  As  dilata- 
díssimas campanhas  que  se  comprehendem  dentro 
da  demarcação,  que  nos  fica,  são  capazes  de  susten- 
tar muitas  mil  pessoas:  na  creação  das  vacarias  , 
bestas  muares  e  cavallares  ,  se  farão  opulentos  os 
que  tomarem  este  modo  de  vida,  navegando  os  seus 
couros  e  carnes  para  os  portos  do  Brasil,  e  os  mais 
animaes  leriam  uma  grande  sabida  para  o  serviço 
das  povoações  aonde  teem  delles  necessidade.  Não 
seria  menor  o  negocio,  que  se  entreteria  com  os 
hespanhoes  de  Buenos-Ayres  ,  Santa  Fé  ,  Paraguay  , 
aos  quacs  sempre  faria  conta  o  ir  buscar  os  nossos 
géneros  para  os  provimentos  de  suas  casas  ,  e  para 
os  irem  vender  a  outras  províncias. 

Fazem-nos  porem  cargo  de  que  pelo  Rio  Grande 
nos  não  chegariam  em  forma  que  fizesse  conveniência 
o  repula-los  pelo  mesmo  que  na  colónia  ,  podemos 
responder  que  nas  perdas  que  temos  experimentado 
de  navios  desde  o  anno  de  1740,  em  que  se  tem 
diminuído  uma  grande  parte  da  importância  na- 
quelle  ramo  do  novo  commercio  pelo  rio  da  Prata  , 
ha  bem  donde  compensar  6  ou  8  por  ccnio  ,  que 
mais  importarão  de  custo  os  transportes  pelo  mes- 
mo Río-Grande,  em  cuja  navegação  não  havemos 
experimentado  prejuízo  considerável. 


O  excessivo  numero  de  mulas  e  machos ,  que 
aqucUes  paizcs  produzem  ,  onde  de  ordinário  valem 
;!  (Ui  i  pesos ,  e  o  grande  numero  de  rios  navegá- 
veis, que  descarregam  suas  aguas  na  lagoa  IVIerim, 
facilitaria  muilo  as  conducçôcs,  principalmente  sen- 
do lodo  o  mais  caminho  por  campanhas  rasas  e 
abundantes  de  ribeiros  e  casas  ,  c(un  que  se  faz  Ji 
jornada  commodamcnle  ,  devendo-sc  advertir  ,  que 
não  se  atigmentaría  mais  caminho,  que  o  de  fiO  lé- 
guas que  ha  de  diirercnça  da  colónia  a  ("astilhas, 
as  quaes  ruariam  na  metade  fazendo-se  transito  por 
Monle-^'ideo. 

A  ponderação  dos  que  dizem  ,  que  com  a  (roca 
não'e\ilàmos  que  os  hespanhoes  nos  venham  iiiquie- 
lar  nas  nossas  colónias  se  satisfaz  allirmando-se,  (]ue 
não  só  nos  seguramos  melhor  das  suas  hostilidades, 
c  incursões  dos  índios  ,  tendo  unidas  as  nossas  for- 
ças ,  tanto  para  conservar  o  que  está  adqiiiiido  no 
Kiú  grande  de  S.  Pedro  ,  d'onde  leremos  com  que 
encher  os  nossos  armazéns  e  manter  sutllcienles  tro- 
pas, mas  lambem  podemos  intentar  desde  alli  algu- 
mas conquistas  nos  vísinhos,  quando  nos  dêem  mo- 
tivo para  a  justa  represália.  Que  vantagens  não  ti- 
raremos da  Capitania  de  Malto-grossoscndo-noscom- 
mum  a  navegação  dos  rios  que  desaguão  no  das 
Amazonas!  por  onde  se  tem  aberto  comnionícação 
entre  o  Maranhão  e  a  dita  capitania  ,  á  qual  neces- 
sariamente se  opporão  os  hespanhoes  por  estarem 
senhores  das  suas  margens  ,  não  tendo  eITeilo  o  re- 
ferido tratado  !  Que  utilidades  se  não  sacariam  do 
commercio  por  aquella  parte,  podendo-se  livremen- 
te alfirmar  chegariam  as  fazendas  por  Santa  Cruz  de 
la  Sierra  a  Potozi  e  a  todas  as  mais  cidades  que 
lhe  ficam  visínbas  ,  menos  cento  por  cento  do  que 
lhe  podem  entrar  dos  dois  portos  de  Buenos-Ayres 
eLíma,  de  cujas  costas  somente  se  podem  fornecer, 
pela  distancia  de  mais  de  600  léguas  que  delles 
dista  :  alem  de  segurarmos  aquelles  rios  descober- 
tos ,  pois  os  hespanhoes  lêem  feito  publicar  cm  vá- 
rios impressos,  que  o  Cuyabá  está  dentro  dos  seus 
domínios  I 

Deus  queira  que  o  diffcrir-se  a  execução  do  tra- 
tado dos  limites  não  seja  causa  de  que  a  corte  de 
Madrid  ,  informando-se  com  o  tempo  do  muilo  que 
a  nosso  favor  se  acha  feita  a  transacção  e  permuta- 
ção ,  admitia  ideas  menos  conciliosas  das  que  nos 
lem  mostrado,  e  que  valcndo-sc  de  outros  recursos 
reclame  o  ajustado  ,  deixando-nos  depois  de  uma 
tão  laboriosa  negociação  sem  uma  nem  outra  cousa. 
^  Disse.  = 


Os  AKTiGOS  germanos  denegavam  os  direitos  de  che- 
fe de  família  áquelles  que  não  provassem  haver 
plantado  em  suas  herdades  certo  numero  d'ar\<)res. 
Os  gaulczes  deram  ás  llorestas  a  maior  consideração 
que  podiam  conferir-lhes  ,  consagrando-as  aos  bcus 
(leuscs  :  os  romanos  lambem  divinisaram  os  bosques 
quando  os  dedicaram  ao  culto  d'algumas  de  suas 
divindades  ;  d'ahi  veio  o  lucus  snccr  ,  que  a  cada 
passo  encontrámos  nos  escriplores  latinos  ;  costume 
que  passou  á  Lusitânia  ,  e  do  que  ainda  lemos  ves- 
tígios nos  logares  chamados  =  logo  de  Deus=  que 
ó  a  versão  lilteral  de  lucus  Dei.  A  utilidade  c  van- 
tagens das  arvores  ,   dos  bosques   e  llorestas  foram 


152 


O  PANORAMA. 


assim  proclamadas  ,  c  asseguradas  pela  sabedoria 
dos  legisladores  antigos  por  meio  do  cunho  religio- 
so que  mais  poderusamcnlc  inlluc  na  imaginarão 
dos  homens. 

Nossos  soberanos  ,  apenas  dcscaneados  da  fadiga 
das  armas  pela  total  expulsão  dos  mouros  do  solo 
portugucz  ,  se  não  esqueceram  daquella  tareia  be- 
néfica, tão  proveitosa  nos  usos  domésticos  e  sociaes 
quanto  preciosa  (lara  a  salubridade  dos  ares.  Elrci 
D.  Diniz  ,  o  mais  sábio  e  providcnle  monarcba  do 
seu  tempo,  saliiu  clle  mesmo  de  IJsboa,  sua  córle, 
com  a  rainha  St."  Isabel,  sua  mulher,  c  foi  estabe- 
lecer-se  nas  charnecas  Ínvias  c  eáfaras  entre  Leiria 
e  o  Oceano,  fazendo  arrotear  e  plantar  esse  famo- 
so c  gigante  pinhal  da  Marinha  Grande  ,  que  ain- 
da hoje  ,  apesar  de  grandes  desastres  ,  c  um  dos 
maiores  thesouros  do  estado.  O  logar  chamado  Mu)i~ 
te  real ,  ahi  visinho  ,  de  que  clrei  fez  presente  á 
rainha  por  essa  mesma  occasião,  está  ainda  hoje  at- 
testando  com  o  seu  nome  a  residência  que  alli  fize- 
ram os  dois  Ínclitos  soberanos.  EIrei  D.  Pedro  1.° 
fez  igualmente  romiier  c  ])ovoar  d'arvores  e  searas 
uma  parle  da  charneca  entre  Óbidos  e  Alouguia  ;  e 
no  meio  delia,  para  animar  esses  trabalhos,  levan- 
tou paços  e  eastcllo,  cujos  muros  ainda  se  avistam 
direitos  no  logar  chamado  Serra  d'clrci. 

A  solicitude  dos  legisladores,  e  a  sancção  penal 
seguiu  mais  tarde  aquelles  bons  exemplos.  João  Pe- 
dro Ribeiro  na  sua  Dissertação  22,  no  tom.  S.°  del- 
ias, apontou  um  alvará  d'elrei  D.  Manuel ,  datado 
em  13  de  dezembro  de  1499,  relevando  por  aquella 
vez  das  penas  em  que  haviam  incorrido  os  moradores 
do  reino  por  não  terem  plantado  arvores:  boa  prova 
de  que  antecedentemente  havia  legislação  precepti- 
va a  tal  respeito.  O  auctor  do  Elucidário  na  palavra 
«outeiro,  refcrindo-se  a  documentos  que  encontrou 
no  archivo  da  camará  de  Coimbra  nos  deu  a  conhe- 
cer que  já  desde  o  tempo  d'elreiD.  Afl'onso5.°,  por 
alvará  régio  de  146i  ,  se  inhibiu  debaixo  de  seve- 
ra punição  que  alguém  fizesse  queimadas  junto  ao 
Mondego  a  fim  de  imo  prejudicar  us  matlas  e  arvo- 
redos nas  encostas  e  vertentes  ao  mesmo  rio.  EIrei 
D.  Manuel  renovou  a  prohibieão  em  1504  ;  e  o  al- 
vará novíssimo  de  28  de  março  de  1791  para  o  en- 
canamento do  Mondego  não  foi  omraisso  nesta  pro- 
videncia, antes  prescreveu  expressamente  a  conser- 
vação dos  antigos  ,  e  plantação  de  novos  arvoredos, 
os  quaes  hoje  alegram  os  viajantes  que  por  terra  ou 
agua  atravessam  aquelles  deliciosos  cincciraes  des- 
de Coimbra  até  Montemor  velho. 

Tudo  altesta  o  cuidado  e  sabedoria  passadas,  o 
nosso  desleixo  e  barbaridade  actual  neste  rclevan- 
tissimo  olijecto  !  Se  nos  não  dermos  pressa  cm  acu- 
dir ao  pendor  e  licenciosiilade  presente,  brevemen- 
te liciírá  o  reino  convertido  em  escalvada  serrania  e 
estéreis  abrasados  plainos.  D'um  lado  o  furor  com 
que  para  plantar  bacellos  se  arrancam  olivaes,  mal- 
tas ,  pinhaes  e  mais  arvoredos,  c  do  outro  a  devas- 
tação progressiva  e  ascendente  dos  sobreíraes,  azi- 
nhos e  carvalhos  p.ira  os  reduzir  a  carvão,  tem  fei- 
lo  já  desapparccer  immonsas  florestas.  E  se  ao  me- 
nos estas  contínuas  subtracções  fossem  substituídas 
por  o  plantio  de  outros  arvoredos,  alguma  compen- 
sação haveria  ;  porem  não  acontece  assim  :  á  exce- 
pção de  Lisboa  e  Porto,  e  poucas  mais  terras  gran- 
des onde  sevècm,  e  se  goza  já,  com  grande  gosto  c 
eouimodidade ,  da  sombra  e  oxigénio  das  arvores 
novamente  plantadas,  tudo  o  mais  existe  em  deplo- 
rável abandono  ;  e  nem  os  particulares  em  suas  her- 
dades, nem  os  concelhos  c  municipalidades,  apesar 


do  dever  de  seus  regimentos,  se  lembram  de  pôr 
uma  só  arvore  ,  cobrindo  e  abrigando  da  acção  do 
sol  as  fontes  jmblicas,  os  rocios,  as  sabidas  da  po- 
voação, ou  ainda  mesmo  os  pântanos  insalubres  que 
todos  os  annos  dizimam  a  população  contagiada.  Nós 
damos  rebate  com  este  artigo  aquelles  aquém  cum- 
pre precaver  e  remediar  tão  graves  absurdos  :  c  in- 
dispensável fazer  executar  as  leis  antigas  ,  e  esta- 
belecer uma  norma  regular  c  systematica  d'alguma 
legislação  fioreslal.  Uma  liberdade  illimílada  neste 
objecto  é  insustentável  ;  o  capricho  e  a  inexperiên- 
cia d'alguns,  a  incúria  e  perguiça  de  outros  recla- 
mam a  acção  da  auctoridade.  Todas  as  nações  o 
tem  reconhecido  ,  sigamos  seus  passos  com  discri- 
ção ,  e  envergonhemu-nos  de  sermos  menos  indus- 
triosos que  nossos  passados. 

Não  nos  pertence  dar  a  norma  dos  preceitos  le- 
gislativos para  pór  um  dique  á  permissão  indellini- 
da  e  arbitraria  dos  pro[irietarios  a  respeito  do  cor- 
te e  arrancamento  das  maltas  e  florestas  ,  nem  pa- 
ra tornar  ellectivas  e  sjndicadas  as  obrigações  dos 
membros  do  município  a  quem  incumbe  essa  im- 
portante tarefa.  Persuadimo-nos  porem  quedeis  pon- 
tos principaes  são  de  tão  evidente  e  clara  regulação 
que  podemos  abalançar-nos  a  os  fixar  aqui  :  1.°  pro- 
hibir  absolutamente  o  corte  e  arrancamento  das  ar- 
vores,  maltas  e  florestas  nas  collinas  ,  encostas  e 
areaes.  2.°  defender  de  cortar  ou  arrancar  em  mais 
d'um  decimo  annualraenle  as  que  estiverem  plan- 
tadas em  valles  ou  planícies  ;  menos  que  não  pre- 
ceda inspecção  e  accordo  do  conselho  do  dislricto , 
que  poderá  permillir  em  casos  graves  e  excepcio- 
naes  exceder  aquella  quota  ,  substiluindo-a  devida- 
mente. Istoquanto  á  ingerência  prohibiliva  daacção 
legislativa  :  quanto  ás  exhorlações  e  preceitos  in- 
dustriacs  e  domésticos,  diremos  no  artigo  seguinte. 
Nós  não  ignorámos  o  axioma  tão  encarecido  dos  eco- 
nomistas modernos  ,  de  que  o  auxilio  ás  artes  e  á 
industria  consiste  na  liberdade  que  se  lhes  deixa  , 
e  na  benevolência  e  favor  que  se  lhes  distribue. 
Assim  o  cremos  lambem  ;  mas  accrescenlàmos  que 
favor  e  protecção  é  lambem  livra-las  da  irreflexão  , 
da  inexperiência ,  do  desleixo  e  da  insensata  phan- 
tasia. 

(J.  da  C.  N.  C.) 


Exemplos  di  cobiça  de  sabbr. 

Sócrates  appreudeu  a  tocar  instrumentos  sendo  ve- 
lho. 

Catão  na  idade  de  oitenta  annos  apprendeu  a  lín- 
gua grega. 

Plutarco  achava-se  avançado  em  annos  quando 
quiz  apprender  o  latim. 

João  Gcllida  ,  de  Valência  ,  tiidia  quarenta  annos 
quando  se  entregou  ao  estudo  das  líellas-letlras. 

Henrique  Spelman  lornou-se  a  applicar  ao  estudo 
das  sciencias,  e  com  grande  aproveitamento,  conta- 
va então  cincoenta  aunos  de  idade. 

Fairfax,  depois  de  ler  commandado  como  gene- 
ral as  Iropas  do  parlamento  inglez  ,  quiz  receber  o 
grau  de  doutor  na  universidade  de  Oxford. 

Colbert  ,  quasi  sexagenário  ,  recomeçou  os  estu- 
dos de  direito  e  do  latim. 

LeTellier,  sendo  chanccller  de  França,  |)edia  lhe 
repetissem  lições  de  lógica,  para  fazer  perguntas  a 
seus  netos. 

Voltaire  dizia  ,  pouco  antes  da  sua  morto  .  que 
lodos  05  dias  apprundia. 


<•■«■» 

éó 


o  PANORAMA. 


153 


Piure  o  feroz  leàn  .  dura  monarcha  . 
Que  funda  no  lerror  seu  sceptro  e  tbrono- 


Mas  li  nolire  e  mainaninio  mil  vtzes  , 
K'  symíjolo  d'heroes  .  deixa  n  vencido  , 
F.  jó  no  que  resiste  cmpreja  a  sanha. 

P.'  MicEno.  Mediluc-  Cant.  °. 


Nvo  obstante  ser  animal  rarniceiro,   c  para  assim 
'iizer-mos  um  enorme  gato  ,  a  cuja  Iribu  pertence  , 
I-  reputado   o  leão  o  rei   dos  aniraaes.   Esta  supre- 
Maio  20— is '(.3. 


macia  dala  dos  tempos  .  cm  cjue  a  forra  ,  o  animo  . 
c  a  faculdade  de  disseminar  assombro  e  espanto, 
eram  consideradas  as  qualidades  mais  excelleníes 
no  individuo;  e  similhante  persuasão  tradicional- 
mente transmitlida,  de  mistura  com  fabulas  enxer- 
tadas ás  vezes  em  factos,  mantiveram  o  titulo  áquel- 
le  raammifero  carnívoro,  classe  em  que  por  seus 
hábitos  o  arrumaram  os  naturalistas.  Se  a  prcferer- 
cia,  coroo  devera  ser,  fora  dada  d  brandura  sent 
fraqueza,  e  ao  instincto  que  dá  visos  de  raciocínio, 
3  soberaiua  das  selvas  fiíra  de  duvida  pcrtcncêri 
2.'  Serie.  —  Voi..  11. 


154 


O  PANORAMA. 


»o  clcphantc  ,  que  até  leni  physicamcnte  a  seu  fa- 
vor a  desmedida  corpulência  :  pelo  lado  da  utilida- 
de para  o  homem,  ingrato  seria  este  se  lh'a  dispu- 
tasse. Mas  nem  sequer  em  cathegorias  de  hrutos 
animaes  leva  a  palma  o  que  mais  a  merece.  Toda- 
via ,  SC  meramente  attcndermos  aos  carnívoros  ,  de 
direito  será  d'entre  elles  o  leão  o  imperante,  pela 
robustez  e  porte  ,  c  porque  é  sóbrio  ,  ás  vezes  ge- 
neroso ,  c  n'alguns  casos  tem  provado  affeição ,  c 
conhecimento  de  benefícios.  Veja-se  o  que  em  o  n.° 
61  da  serie  presente  dissemos,  comparando-o  ao 
tigre  sanguinoso. 

1'  originário  dos  tisnados  desertos  d'Africa  e  da 
Ásia ;  os  africanos  são  maiores.  Ha-os  de  nove  a 
doze  palmos  de  comprido  ;  mas  a  sua  mais  com- 
jnum  estatura  não  passa  de  metade  desia  medida  : 
é  vividouro,  alguns  tem  chegado  a  70  annos ,  ape- 
sar de  muitos  de  capliveiro.  r^ão  é  só  forte  ;  tam- 
])era  muito  ágil.  Tem  a  espaçosa  cabeça  adornada 
de  uma  juba  ,  ou  clina  basta  ,  de  que  a  leoa  c  des- 
provida ;  scintillam-llic  ferozmente  os  olhos ,  que 
nas  trevas  reluzem  como  de  gato  ou  raposo  ;  tem  a 
lingua  armada  de  bicos  aspérrimos  :  o  pello  da  par- 
te posterior  do  corpo  é  curto  e  sedcúdo  ;  termina 
a  cauda  em  borla  :  a  côr  é  de  ordinário  fouvcira  : 
medonha  c  a  sua  voz  e  quando  ruge  embrenhado 
em  serras  parece  ouvir-sc  o  echo  de  trovoada  re- 
jnota.  Exceptuados  o  clcphantc,  o  rhinoceroto ,  o 
tigre,  c  o  cavallo  marinho,  nenhum  animal  prova 
com  clle  valentias.  —  A  Icôa  é  menor  uma  quarta 
parte  em  todas  as  dimensões  ;  postoqiio  mais  fraca 
excede  o  macho  em  ferocidade  quando  no  covil  é 
assaltada,  ou  llie  perseguem  os  filhos  ;  anda  pre- 
nhe cinco  mezes,  c  pare  cm  sítios  intratáveis,  usan- 
do da  astúcia  de  varrer  o  chão  com  a  cauda  para 
apagar  as  pegadas  :  se  qualquer  perigo  instante  so- 
brevem ,  logo  muda  de  cova.  Pela  prole  combate 
desesperadamente  até  a  morte  ,  donde  veio  a  phra- 
se  proverbial  de  leoa  embravecida.  Ficaremos  aqui 
porque  assaz  tratámos  desta  casta  de  feras  a  pag. 
í>7  e  13o  desta  publicação. 


Dií  Jersev  a  Gi;anviile. 


H, 


(Conlinuado  de  paij.  133. J 

O  TKMPoiiAi,  que  se  preparara  diiraníe  a  tarde  des- 
fechou em  cinia  de  nós  com  o  cerrar  da  noite.  O 
vento  saltara  inteiramente  ao  sul,  de  modo  que  nos 
licava  ponteiro.  As  vagas  accumulavam-se  ení*ser- 
ras,  que  alçando-se  e  topando  cm  cheio,  se  enlaça- 
vam e  confundiam  como  dois  lucladorcs  furiosos. 
Depois  a  mais  possante,  sumindo  debaixo  de  si  o 
grande  vulto  da  sua  contrária,  erguia  o  topo  esguio, 
<|ue  vacillava  um  instante,  c  cahia  desfeito  em  cata- 
dupas do  escuma  nos  valles  profinidos  cavados  mo- 
ineutaneamcnte  em  volta  delia.  O  embate  daquellcs 
vagalhõesgigantes,  empe  sobre  oabysnio  dasaguas, 
estrcitando-se  e  despedaçando-se  como  as  hyenas  e 
tigres  n'um  circo  romano  ,  visto  ao  lusco-fusco  sob 
um  céu  achatado  c  cinzento  ,  era  uma  sublime  pe- 
leja I  Todos  os  espectáculos  da  terra  — dos  homens 
ou  da  natureza —  que  são,  ou  que  valem,  com|)a- 
rados  com  a  cólera  da  procella  que  passa  no  ocea- 
no'.' Menos  que  farça  esttipida  de  tilcres  compara- 
da com  o  Ilamlet  ou  com  o  Otbelo  representados 
jior  Dclterton  ou  porGarrick.  O  mysterio  dos  mares 


é  de  todas  as  obras  da  creação  aquella  em  que  mais 
profundamente  o  Senhor  estampou  o  seu  verbo  ;  a 
inscripção  indelével  c  incontestável,  que  narrará  per- 
petuamente ao  género  humano   o  seu  infinito  poder. 

O  chasse-marée  se  havia  posto  ácapa.  O  vento  não 
consentia  já  que  surdíssemos  avante  ,  e  o  arraes  , 
depois  de  uma  breve  conferencia  á  proa  com  o  seu 
companheiro  ,  veio  declarar-nos  que  seria  impossí- 
vel seguir  o  rumo  deSaint-Maló  ; — que  era  neces- 
sário pôr  a  proa  nas  costas  da  Normandia  ,  e  dirí- 
girmo-nos  aGranville  ;  —  e  finalmente,  que  só  aqui 
poderíamos  tocar  em  terra  namanhaã  seguinte.  Re- 
cebemos esta  desagradável  nova  cora  mais  heróica 
resignação,  se  c  possível,  que  a  de  Mr.  Graham  jú- 
nior ao  levar  a  sova  poética  das  inspirações  frater- 
nas. E  que  não  nos  resignássemos  !  A  immulabili- 
dade  do  nosso  destino  proclamavam-na  os  silvos  do 
vento  ,  c  o  que  mais  era  ,  a  declaração  do  arraes. 
Um  ca[)itão  de  qualquer  baixel  é  o  absolutismo  in- 
carnado :  as  suas  decisões  equivalem  a  fatalidade 
moslemíca.  Em  muitos  sermões  políticos  ,  que  é  a 
espécie  mais  importíneníe  do  género  litterario  — 
sermão  —  tenho  lido  comparações  fulminantes  con- 
tra os  tyrannos  ,  buscadas  no  despotismo  asiático. 
Se  eu  canísse  na  miséria  de  fazer  eloquência  polí- 
tica, não  ia  tão  longe  busca-las.  —  Saltava  no  pri- 
meiro hiate,  chasse-marée,  ou  Sloop,  e  travando  do 
arraes  dizia  ao  mundo  :  — ecce  homo; —  eis-aquí  a 
flor,  a  maravilha,  o  ideal  de  todos  os  despotismos 
possíveis.  Os  que  andam  incommodandoAttila,  Kou- 
lilsan,  ou  Timur  ,  para  aíTerir  por  elles  os  tyranuè- 
tes  quasí-ridiculos  da  Europa  moderna  ,  são  dísser- 
tadores  d'agua-doce  ,  que  [para  me  servir  d'uma 
phrase  do  auctor  de  Micer  llarold]  nunca  poseram 
a  mão  sobre  a  juba  crespa  do  oceano.  Tyrannia  e 
arraes  são  synonimos :  — digam  o  que  quizerem  os 
extirpadores  implacáveis  das  synonimias. 

Maitre  Jean  Legris  ,  era  um  verdadeiro  arraes 
normando  :  duro  ,  carrancudo  ,  e  inexorável  como 
os  piratas  do  século  12.°  seus  antepasssados,  de  que 
Ião  pavorosas  memorias  restam  nas  costas  de  Portu- 
gal e  de  Galliza.  Ouvimo-lo  com  magoa  ,  mas  com 
respeilo,  porque  não  havia  replicar.  O  chasse-marée 
obedecia  ao  leme  ,  o  leme  ao  marinheiro  ,  o  mari- 
nheiro ao  capitão,  e  o  capitão  pactuando  com  o 
vento,  resolvera  empalmar-nos  Saint-Maló  e  a  Bre- 
tanha, para  nos  dar  cm  troco  Granville  e  a  Norman- 
dia. Por  isso  antes  de  nos  communícar  as  suas  in- 
tenções ,  mestre  João  tinha  dado  a  popa  á  tempes- 
tade e  tomado  o  rumo  de  leste.  Contava  d'antcmão 
com  a  obediência  ,  que  não  lhe  podíamos  refusar. 

Emfim  anoitecera  :  a  única  luz  que  víamos  nas 
campinas  do  céu  e  das  aguas  era  aquella  espécie 
de  branquejar  phantastíco  e  transitório  da  escuma  , 
que  é  para  o  luar  o  que  um  retrato  de  morte-cór 
para  um  vulto  original  —  n}enos  que  frouxíssima 
claridade  e  mais  que  o  crepúsculo  esbranquiçado  c 
indeciso  de  um  corpo  alvo  e  que  mal  se  divisa  no 
meio  das  trevas.  O  chasse-marée  galgando  por  cima 
das  ontlas  ,  no  meio  do  reflexo  delias,  devia  pare- 
cer, visto  de  longe,  um  baixel  myslerioso  e  infer- 
nal perseguido  por  espectros  que  surgiam  successi- 
vamente  dos  abysmos  ,  e  em  roda  dellc  dançavam 
danças  maldictas  ,    iiivoltos  em  seus  alvos  sudários. 

iiem  importavam  a  Mr.  Graham,  o  fratricida  psy- 
chologico,  aquellas  solernnes  tristezas  de  uma  noite 
procellosa  !  Tirou  uni  frasquinho  de  aguardente  que 
trazia  a  tiracollo,  bebeu  um  largo  trago,  e  alevan- 
lou-se  dirígindo-sc  á  escotilha  da  espécie  de  camará 
que  nos  ficava  debaixo  do  tombadíllio.   Era  um  pi- 


o   PANORAMA. 


lliB 


nhciro  !  Quando  o  vi  em  pé  receei  que  o  sul  o  par- 
tisse ;  mas  iiciu  sequer  rangeu.  Se  me  não  men- 
te ura  calculo  rápido  ,  Air.  (iraliam  era  ,  ao  menos 
physicamonte  ,  um  poeta  da  Torra  de  oitenta  cavai- 
los,  medida  hritannica  :  era  um  poeta  de  alta  pres- 
são :  era  um  poeta  ivarrantcd ,  para  me  exprimir 
como  os  lacónicos  letreiros  de  todas  as  peças  de  fa- 
zendas inglezas  falsificadas.  Mr.  (irnhani  júnior  se- 
guiu Mr.  Graham  sénior,  non  pas.silnis  arguis,  como 
mais  curlo  que  era.  Ouvimos  lá  cmliaixo  ainda  dois 
ou  três  regougos  :  depois  tudo  cahiu  de  novo  em 
silencio. 

O  velho  que  se  me  encostara  sobre  osjoellios  ape- 
nas viu  os  seus  dois  compatriotas  buscarem  acolhei- 
la  para  a  noite,  ergueu-sc ,  e  cambaleando  chegou 
á  Íngreme  escada  que  conduzia  á  estreita  camará. 
Poz  um  pé  no  primeiro  degrau;  poz  o  outro  no  se- 
gundo ;  tornou  a  pòr  aquclle  no  ar  ,  c  disse  com  o 
corpo  no  fundo  —  pan  I 

Era  o  som  d'um  casl;  de  cerveja  cahindo  de  vin- 
te pés  d'altura.  Ouviu-sc-lhc  um  grito routo  e  mais 
dois  grunhidos  dos  seus  respeitáveis  patrícios.  Ti- 
nha arrebentado  o  saxonio  ,  ou  espalmado  o  poeta? 
Talvez  ambas  as  cousas.  Corremos  a  acudir-lhes  le- 
vados pelo  primeiro  impulso  de  humanidade.  Os 
primeiros  impulsos  nestes  cases  não  prestam  nem 
para  Deus  ,  nem  para  o  diabo  ,  porque  são  estupi- 
damente involuntários.  Seja  isto  dito  ,  cora  paz  do 
leitor  ,  como  desculpa  da  nossa  caridade  e  como 
descargo  do  consciência  nacional. 

Para  clareza  desta  importante  narrarão  é  de  sa- 
ber que  apenas  Viráramos  de  rumo  o  marinheiro 
substituíra  o  grumete  no  governo  do  leme  ,  como 
ministro  responsável  de  mestre  João ,  e  o  grumete 
fora  assentar-so  á  proa  no  logar  que  deixara  o  seu 
successor ,  exactamente  como  um  ministro  diraitti- 
do  que  vai  tomar  assento  nos  bancos  da  opposição. 
D'alli  olhava  para  o  tombadilho  ,  fazendo  a  segun- 
da com  um  assobiar  monótono  ao  bramido  do  vento. 

Chegámos  dois   ou  três   á  escotilha   onde  soara  o 

baque   do  velho.    Íamos   a  descer,    a  risco   de   nos 

despenharmos  também  ,   quando  a   cabeça   de  Mr. 

Graham  sénior  começou  a  surgir  como   uma  visão 

de  Manfredo : 

« 

What  dost  tlíoii  see?  — 


I  see  a  dusk  and  airful  figure  risc. 

A  luz  da  bilacola  ,  que  envia\a  um  raio  frouxo 
ao  rosto  do  grumete  ,  o  poeta  acenou-lhc  que  se 
approximasse  ,  sem  se  dignar  sequer  de  olhar  para 
nós  humildes  creaturas  ,  que  havíamos  parado  em 
roda  de  Sua  Grandeza. 

O  rapaz  chcgou-se  a  Sfr.  Graham. 

'tíirandyl  [«) — rosnou  este  com  o  aspecto  teme- 
rosamente carrancudo  e  imperativo  de  ura  Nelson 
dando  a  ordem  de  accommettcr  na  batalha  de  Tra- 
falgar. — 'Dizendo  e  fazendo,  mostrava  o  seu  frasco 
de  aguardente  virado  de  boca  para  baixo.  O  rapaz 
poz-se  de  novo  a  assobiar. 

iVós  então  ousámos  perguntar  a  Sua  Extensão  se 
porventura  succedéra  algum  fracasso  aos  seus  com- 
patrícios. Elle  lançou-nos  um  olhar  obliquo  ,  e  em 
voz  mais  alta  bradou  ao  grumete  : 

«  Rhum ! » 

«Não  ha  :  —  respondeu  o  rapaz  entre  dois  asso- 
bios. » 

«  Brirtg  rhum  ,  boy !  —  insistiu  o  cantor  da  Tcm- 
perança  ,  já  colérico,  e  fazendo-se  desentendido.  » 

i,«)     Aguardente- 


(ViiVn  d'anglais ,  não  percebes?  ....  exclamou  o 
grumete  na  sua  lingua  nativa  ,  cora  um  gesto  de 
impaciência  ;  —  e  accrescentou  voltando-se  para  nós  : 
—  Que  diz  este  diabo? 

(iQue  lhe  ponhas  para  alli  cachaça:  —  ia  eu  a  di- 
zer ,  paraphraseando  em  Irancez  os  Ires  monosylla- 
lios  brilannicos  ,  quando  fui  interrompido  por  um 
mugido  ,  súbito  ,  incisivo  ,  retumbante  ,  que  sobre- 
levou o  rugir  da  tempestade.  Soltára-o  Air.  Graham, 
que,  cerrando  os  punhos  com  todos  os  aílcmanes  de 
ura  professor  de  sòcco,  crescia  já  para  o  pobre  gru- 
mete ,  o  qual  avaliara  erradamente  a  linguistica  do 
poeta.  Elle  percebera  ás  mil  maravilhas  as  duas 
person?lidades  de  cão  e  diabo,  que  ousara  dirigir- 
Ihe  o  imberbe  e  enfarruscado  normando. 

Felizmente  para  este  uma  onda,  galgando  exacta- 
mente nesse  momento  a  popa,  veio  lavar  o  tombadi- 
lho ,  c  um  forte  balanço,  fazendo  perder  o  equilí- 
brio ao  filho  da  Grau-Breianha,  o  estendeu  ao  com- 
prido na  agua  que  passava  em  demanda  da  proa  , 
(•oní  grave  perigo  do  precioso  manuscriplo  do  casa- 
cão.  Estirado  sobre  a  tilhá  do  chasse-marée  ,  e  Go- 
leando e  bufando  para  se  alevantar  ,  JMr.  Graham 
representava  sotTrivelmentc  o  papel  de  um  congro 
tirado  naquellc  instante  do  mar.  Quando  elle  ,  em- 
fim  ,  pôde  concluir  o  plagiato  que  fizera  ao  tombo 
do  seu  velho  compatriota  ,  o  grumete  se  havia  já 
retirado  ao  anterior  posto,  sobre  osescovens,  e  con- 
tinuava o  seu  acompanhamento  de  assobio  ao  estre- 
pitar  do  vento. 

Mr.  Graham  meditou  um  momento.  Parece  que  o 
abalo  da  queda  e  a  frescura  da  agua  lhe  modifica- 
ram poderosamente  o  órgão  da  combatividade  :  — 
porque  sem  dizer  palavra  desceu  outra  vez  para  a 
limitada  camará  da  frágil  embarcação. 

Este  incidente,  que  passara  com  grande  rapidez, 
podia  ter  dado  motivo  a  uma  seria  desavença  entre 
o  arraes  e  o  poeta ,  porque  mestre  João  moslra- 
va-se  demasiado  cioso  da  própria  auctoridade  para 
consentir  que  ura  dos  seus  súbditos  fosse  punido  por 
haver  recusado  uma  cousa  que  talvez  não  houvess<' 
realmente  a  bordo  ,  c  por  ter  dito  duas  verdades 
duras  a  um  conterrâneo  dos  nevoeiros  e  dos  beefs- 
teaks.  Mas  porque  não  se  exprimiu  Mr.  Graham  de 
modo  que  o  grumete  o  entendesse?  Como  imaginou 
elle  que  o  pobre  rapaz  podesso  perceber  os  seus 
três  monosyllabicos  grunhidos?  E  que  o  orgulho  e 
o  patriotismo  britamiico  andam  aninhados  em  tudo. 
O  que  nos  outros  paizes  se  olha  como  um  primor 
d'cducação  ,  em  Inglaterra  é  uma  indecencia.  Lm 
inglcz  parece  cnvergonhar-se  de  saber  algum  idio- 
ma estranho  ,  e  muito  mais  o  francez  ,  que  nos  pai- 
zes continentaes  não  épermittido  ignorar  aqualquei- 
individuo  medianamente  instruído. 

A  lingua  franccza  ,  pela  sua  simplicidade,  regu- 
lar sintaxe  ,  determinada  prosódia  ,  e  mais  circum- 
stancias  que  a  tornam  faeil  para  os  estrangeiros  , 
tem  obtido  uma  certa  universalidade,  que  a  vai 
convertendo,  por  assim  dizer,  em  lingua  geral,  prin- 
cipalmente na  Europa.  Este  predomínio  da  língua 
franccza  deve  ter  talvez  n'um  remoto  futuro  graves 
consequências  politicas.  E  por  essa  rasão ,  que  aos 
inglezes  doe  excessivamente  tal  predomínio.  Primei- 
ra nação  do  mundo  como  potencia  material ;  repre- 
sentando nos  tempos  modernos  uma  imagem  da  an- 
tiga Uoma  ,  a  Inglaterra  solTro  de  m.iu-grado  o  ser 
inlcllcctualmente  inferior  á  Alemanha  e  á  França. 
A  iniluencia  moral  que  pelos  seus  livros  esta  ulti- 
ma exercita  na  Europa  ,  nomeadamente  nos  paizes 
occidenlaes ,  tende  a  augmentar  ahi  a  sua  influen- 


i:íg 


O   PANORAMA. 


tia  social  ,  na  r.isão  direcla  do  progresso  de  civili- 
sarão  desses  pai/cs.  A  França  actua  pelas  idéas  , 
em  quanto  a  Inglaterra  o  faz  pelas  esíiiiadras  :  mas 
a  acção  das  idéas  cria  a  siinilhança  de  crenças  , 
de  cuslnmcs,  c  de  alTectos  ,  em  quanto  o  temor  das 
esquadras  ,  o  apparato  do  poder  ,  as  insolências  do 
(orle  contra  o  fraco  só  geram  ódios  fundos  ,  que  se 
vão  legando  de  pães  a  lillios  ;  que  se  vão  accumu- 
lando  no  thesouro  corumum  das  gerações  que  vera 
surgindo.  Estes  ódios  são  um  incêndio  que  lavra  , 
lí  que  pôde  alnazar  a  Inglaterra  num  desses  dias 
aziagos,  que  anianhcceni  para  as  nações  como  para 
as  famílias.  Uma  crise  basta  para  perder  o  Reino- 
t.nido  ,  e  esta  crise  é  fácil  n'um  corpo  moral  cuja 
phisioiogia  é  monstruosa  e  autinomica.  AGran-Bre- 
taniia  deve  saber  que  os  ccchos  do  continente  repe- 
tem de  contínuo  a  grande  voz  dopuvo,  que  em  mais 
de  um  paiz  murmura  aquelle  terrível  verso  do  poe- 
ta italiano  : 

Siam'serii ,  si :  —  tua  servi  oíjnor  fretitenti ! 

Xinguem  como  os  inglezes  tem  o  instincto  da  vi- 
lia  politica.  N'uns  este  instincto  é  ajudado  pelo  ra- 
ciociíiio,  n'outros  pelo  orgulho  nacional.  A  Ingla- 
terra desejara  tirar  á  França  as  iulluencias  intelle- 
ctnaes  :  para  isto  fora  necessário  generalisar  a  pró- 
pria lingua.  Abi  é  que  bate  o  impossível.  Eulrelan- 
lu  o  ínglez  vai  fallando  íuglez  na  terra  e  nos  mares, 
quer  o  entendam  ,  quer  não,  e  só  em  casos  deses- 
perados recorre  a  algum  idioma  estranho  ,  não  sem 
o  torcer  ,  estafar  e  mutilar  ,  com  toda  a  barbarida- 
de de  um  verdadeiro  Kimhri.  K  uma  teima  i>erpe- 
lua  entre  a  Europa  e  a  Gran-Bretanha  : 

«O  mundo  a  porfiar  que  os  bretões  grunhem  ; 
I' K  os  bretões  a  teimar  que  o  mundo  mente. 

Aquelle  caso  de  JIr.  Graham  fora  mais  um  capi- 
tulo desta  polemica  eterna. 

Nós  os  portnguczes  pensámos  enlão  em  buscar 
uma  guarida  para  passarmos  a  noite  ,  porque  al- 
gumas pingas  grossas  de  chuva  nos  anunciavam  um 
aguaceiro  ímminenlc.  i)irigimo-nos  a  mestre  João, 
que  nos  declarou  calliegoricamente  ser  impossível 
dar-nos  entrada  na  toca  miserável  a  que  elle  tivera  a 
ousadia  de  pòr  o  nome  de  camará  ;  e  isto  [lela  rasão 
composta  de  que  os  três  inglezes  a  occupavain  in- 
teiramente, c  não  podiam  serd"alli  expulsos,  tendo 
pago  trinta  shellins  por  cabeça,  em  quanto  nós  pa- 
gáramos só  vinte.  O  argumento  era  de  uma  solidez 
irreprehensivcl.  I'edimos-lhe  todavia  humildemente 
nosdeclarasse  emque  sitio  nos  poderíamos  resguar- 
dar da  agua  do  mar  c  do  céu  ;  porque  se  houvés- 
semos pertondido  passar  a  nado  dcJorsey  para  Fran- 
ça escusáramos  ter-lhe  pago  a  malaventurada  capi- 
tação d'uma  libra  esterlina,  que  nos  fazia  descer  na 
<íscala  social  dez  shelfings  ou  dez  furos  abaixo  dos 
trcs  inglezes. 

Us  selvagens  teeni  mais  que  os  homens  civílisa- 
dos  a  eloquência  do  gesto  ,  e  o  bom  do  normando  , 
forçoso  é  coníessa-Io,  dava  todos  os  indícios  de  ver- 
dadeiro botocudo.  Tomando  a  postura  sublime  de 
um  sccliocniij  ,  o  rei  do  mar,  dos  antigos  sagas  da 
Islândia,  c  com  um  —  lá! — que  jiodia  fazer  ainda 
nuii  decente  papel  ao  lado  do  — quil  mountl  —  de 
Corneille;  o  arraes  ,  espécie  de  Cuonaparte  junto 
ás  l'yramidcs  ,  nos  apontava  para  a  escotilha  d'a- 
vante  — a  escotilha  da  boca  do  iiorão —  e  parecia 
dizer-nos  no  seu  gesto  mu<lo  : — Ahí  quarenta  dores 
rhcumaticas  vos  esperam  I  —  Melhor  era  isso,  com- 
ludo  ,  que  amanhecer  inteiriçados  sobre  a  lolda ;  e 


assim,  dando-no!  por  avisados ,  arremellemos  eona 
o  abjsniO. 

Escada  não  a  havia  ;  e  as  trevas  interiores  não 
eram  menos  densas  que  as  trevas  exteriores,  de  que 
resa  a  Uiblia  ,  onde  ha  o  choro  e  o  ranger  de  den- 
tes. A  altura,  porem,  não  devia  ser  grande.  Como 
os  cavalleíros  do  Palmeirim  d' Inglaterra  cada  um 
de  nós  se  cncommendou  ádarna  dos  seus  pensamen- 
tos, e  do  modo  que  pôde  desceu  aquella  espécie  de 
botf/ia  dantcsca. 

O  chasse-raaréc  destinado  a  transportar  gado  de 
França  para  as  ilhas  do  (".anal  ,  ia  cm  lastro  ,  e  o 
lastro  crad'areia.  Se  não  fossem  os  terríveis  balan- 
ços da  embarcação  ,  a  pocilga  em  que  nos  acháva- 
mos podia  passar  ao  tacto  ,  único  sentido  de  utili- 
dade uaqnella  situação,  por  uma  praia  deserta.  De- 
pois de  ajuilparmos  por  largo  tempo  em  volta  de  nós 
achámos  por  lim  uma  vella,  e  alguns  cabos,  lança- 
dos para  unia  extremidade  do  areal  fluctuaute.  Ao 
menos  linliamos  um  leito  ,  se  não  mais  macio  ,  ao 
menos  mais  enxuto  que  esse  com  que  já  contávamos. 
Fma  pouca  d'areia  húmida  por  pavimento,  algumas 
braças  de  lona  por  leito,  e  por  agasalho  c  cobertu- 
ra a  tolda  d'ura  miserável  barco  eram,  com  as  tre- 
vas que  nos  rodeavam  nesse  momento,  toda  a  nossa 
consolação  e  abrigo. 

Sc  este  capitulo  de  um  pobre  livro  de  recorda- 
ções, tão  humildes  e  obscuras  como  seuauctor,  pas- 
sar ante  os  olhos  do  major  C.  í»)  elle  ha-de  por 
certo  !embrar-se  de  que  essa  noite  foi  uma  das  Lera 
dolorosas  e  tristes  da  sua  larga  vida  de  solTrimento 
c  abr;egação  —  da  sua  vida  de  honesto  c  valente 
soldado.  Padecimentos  antigos  haviam  crescido  com 
os  trabalhos  e  estroitczas  do  desterro,  c  posto  que 
o  seu  animo  de  ferro  lhe  não  consentisse  o  soltar 
um  só  queixume  ,  o  incêndio  lavrava  lá  dentro  ,  e 
a  dòr  que  não  podia  subjugar-lhe  o  espirito,  ás  ve- 
zes se  lhe  revelava  no  gesto  confrangido.  O  seu  es- 
tado gerava  em  nós,  que  sinceramente  o  amávamos, 
sérios  receios.  Mas  como  o  padecer  se  não  (raduzia 
em  gemidos ,  no  meio  da  escuridão ,  e  entretidos 
com  a  sccna  ridícula  do  poeta  da  temperança  o  da 
aguardente  ,  havíamo-nos  persuadido  de  que  esse 
padecimento  diminuíra  consideravelmente. 

Deitados  em  cima  da  vella  convertida  em  colchão, 
os  meus  companheiros  breve  adormeceram.  Quando 
a  consciência  está  Iranquilla  a  mocidade  encontra 
facilmente  o  repouso  ainda  no  mais  duro  leito.  Só 
cu  velei ;  porque  lhes  levava  nina  vantagerri  • — ■  tal- 
vez antes  desvantagem  —  uma  imaginação  mais  ar- 
dente. O  major  G.  também  parecia  dormir. 

Achava-me  finalmente  só! 

Havia  muito  que  para  mim  não  existia  ávida  ín- 
tima senão  no  silencio  da  noite.  O  dia.  esse  passa- 
va-o  como  embriagado  na  agitação  tumultuosa  de 
peregrino  ,  vendo  fugir  por  ante  os  olhos  ,  na  terra 
e  nos  mares,  os  quadros  e  as  scenas  de  nma  natu- 
reza e  de  uma  .sociedade diversas  daquellas  que  me 
tinham  cercado  na  infância  e  na  primeira  juventu- 
de. Era  de  noite  que  a  imagem  da  pátria  ,  lerribi- 
lissima  de  saudades  ,  se  me  assentava  como  um  pc- 
sadello  sobre  o  coração  ,  e  mo  expremia  delle  bem 
amargas  lagrymas  !  Aos  vinte  ânuos  a  nossa  alma 
viçosa  e  virgem  tem  alTcctos  para  derramar  com 
mão  larga  por  tudo  o  que  nasceu  c  cresceu  junto 
de  nós;  por  todos  aquelles  que  nos  ensinaram  a 
balbuciar  as  primeiras  palavras,  c  nos  guiaram  os 
|irimeíros  passos  no  caminho  da  vida.  Para  achar 
deleite   cm  vaguear  fora   do  nosso  ninho  paterno   é 

(, •)     Ãctimlmcnle  (1843)  brigadcíra  C.  S^ 


o   FAINOllAMA. 


157 


pieciso  haver  passado  a  idade  das  csperanras ;  é 
pieciso  ler  já  calcado  aos  pés.  iiileiíaincnlc  siiirado, 
u  pomo  das  illusões,  c  assistir  ao  drdma  da  cxisleií- 
cia  ,  não  como  aclur  possuido  do  seu  papel  ,  mas 
como  espectador  iiidiírcrciile,  que  sabe  ser  esse  dra- 
ma um  embuste  algumas  vezes  attraclivo,  mas  scm- 
sabor  as  mais  delias;  —  r  jireciso  ser  liomem  ;  c  eu 
não  linha  então  vinte  ainios.  Por  isso  oslc  errar  en- 
tre estranhos  teria  para  mim  demasiado  tédio  e  tris- 
teza ,  quando  se  lhe  não  ajuntassem  outras  magu.is 
e  privações  de  muitos  géneros. 

O  desterro  é  uma  das  mais  profundas  misérias 
humanas  :  mas  a  pobreza  no  desterrado  é  o  lormen- 
lo  mais  intolerável  do  espirito  ,  porque  é  um  com- 
poslo  monstruoso  de  saudade  ,  di:  humilharão  ,  de 
abanilono,  de  desesperança,  que  vos  lembra  cada 
dia,  cada  hora,  cada  instante,  a  vossa  situação  des- 
graçada ;  que  vos  recorda  sem  cessar  que  sois  uma 
espécie  deAshavero,  de  judeu  errante,  que  a  mal- 
dição de  Deus  guia  ,  em  meio  do  despreso  dos  ho- 
mens, dos  vitupérios,  dos  trabalhos,  por  uma  pcri- 
grinação  sem  termo,  c  sem  horisonte.  Tendes  de 
experimentar  a  alTronta  c  callar  ,  os  maus  tralos  e 
soffrer  ,  a  fome ,  e  a  nudez  e  não  ousar  pedir  uiua 
esmola  ,  porque  o  pobre  estrangeiro  é  ura  ente  mé- 
dio entre  o  homem  e  o  animal ,  a  saa  linguagem 
inintelligivel  e  ridícula  ,  a  sua  dòr  e  sentimento 
quasi  um  impossível ,  o  nome  do  seu  paiz  a  fabula 
c  cscarneo  das  gentes  ,  sobre  tudo  se  este  paiz  é 
fraco,  limilado  e  obscuro.  Então  vem  o  comparar  tu- 
do isto  com  oscommodos  e  gasaihado  do  lar  domes- 
tico ,  cora  o  amor  c  amisade  que  >os  cercavam  de 
suavidade  o  viver  de  outro  tempo  ,  e  a  comparação 
vos  converte  em  fel  e  lagrymas  o  sangue  mais  puro 
das  veias.  Tombastes  de  pedra  cm  pedra  no  fundo 
de  um  abysnio  :  lá  acharam  os  vossos  membros  pi- 
sados c  feridos  ura  leito  de  çarças;  e  d'ahi  medis 
de  continuo  a  altura  da  queda,  porque  vos  luz  lá  em 
cima  o  céu  da  pátria,  e  a  saudade  vos  conta  palmo 
a  palmo  a  distancia  que  vai  do  despenhado  a  essa 
imagem  querida. 

Que  todos  aquclles  que  nunca  sahíram  de  sob  o 
tecto  da  sua  infância  ;  que  nunca  buscaram  de  bal- 
de o  sol  esplendido  do  occidente  para  o  saudar  na 
manhaã  de  primavera;  que  nos  remansos  do  seu 
rio  nalal  não  imaginara  o  eunove)ar-se  e  bramir  das 
vagas  do  oceano  ;  que  nunca  viram  o  céu  chato  do 
norte  pesar  sobre  a  campina  ,  estendida  como  um 
radavcr  ,  e  cuberta  do  seu  sudário  de  neve  ;  que 
esses  alguma  vez  se  recordem  c  compadeçam  do 
pobre  foragido  ,  a  quem  as  intolerâncias  insensatas 
c  ferinas  de  paixões  politicas  arremessaram  para  es- 
tranhas regiões.  Seja  qual  for  a  vossa  crença  ,  a 
vossa  parcialidade  ,  doei-vos  delle  porque  as  dou- 
trinas podem  ser  erros;  mas  não  são  crimes.  E  de- 
mais quem  vos  diz  que  essa  opinião,  que  vos  parece 
verdadeira  ,  e  sauta  ,  vos  não  parecerá  cora  o  tem- 
po absurda  e  má,    se  de  sincero  coração  a  seguis? 

Engolfado  nestas  idéas  ,  postoque  bem  ilesperlo , 
conservava-me  callado  no  meio  dos  meus  compa- 
nheiros ,  que  dormiam  placidamente  ao  murmurar 
da  agua  no  costado  do  chasse-marée  ,  que  rompia 
pelas  vagas  agitadas.  De  vez  em  quando  os  mastros 
rangiam  cora  os  turbilhões  de  vento,  e  senlia-se  um 
golpe  soturno  e  cmbaçado  sobre  a  tolda.  Era  algu- 
ma onda  que  salvava  por  cima  do  baixel ,  como  a 
que  viera  acalmar  a  cólera  do  esgrouviadoMr.  Gra- 
ham.  Depois  ouvia-so  a  voz  do  arraes,  que  proferia 
algumas  palavras  ininlelligivcis  :  depois  outra  vez 
só  o  silvar  da  procclla.  ,.        .     , 


O  major  C.  revolvia-se  entretanto  perlo  de  mim  , 
ao  (]ue  parecia  gramlemenle  inquieto.  A  persuasão 
talvez  de  que  ninguém  o  escutava  ,  c  a  intensidade 
da  dòr  lhe  arrancaram  ,  enilim  ,  um  gemido.  A  sua 
energia  moral  succumbíra.  O  veterano,  depois  de 
largo  combate  de  muitas  horas,  declarou-se  vencido. 

Fallei-lhe  em  voz  bai.\a  :  na  tristeza  da  uoilc  o 
padecimento  physico  parece  achar  consolo  no  som  da 
voz  humana.  Era  o  único  soccorro  que  na  situação 
em  que  nos  achávamos  lhe  podia  ministrar. 

A  nossa  cimversação  durou  por  algum  lempõ  : 
nesta  conversação  havia  para  mira  o  refrigério  do 
espirito  ,  porque  nos  recordávamos  da  pátria  ;  elle 
buscava  assim  um  allivio  para  dous  géneros  de  an- 
gustias, as  do  espirito  e  as  do  corpo.  Era  mais  in- 
feliz do  que  eu '. 

1'or  este  modo  passou  graude  parte  da  noite.  V 
tempestade  crescia  progressivamente  ,  c  o  balanço 
do  chasse-marée  era  já  intolerável.  Começámos  cn- 
tíio  a  ouvir  por  cima  das  cabeças  os  passos  apres- 
sados dos  marinheiros  ,  c  um  som  estranho  como 
de  mar  quebrando  ao  longe  em  agra  penedia.  Este 
som,  semelhante  ao  disparar  de  artilharia  por  sota- 
vento ,  approximava-sc  gradualmente. 

D'ahi  a  pouco  percebemos  correr  rapidaVnentc  a 
amarra  pelos  escouvens.  Era  incrível  que  tivésse- 
mos chegado  tão  depressa  ao  termo  da  nossa  via- 
gem. As  seguintes  palavras  de  mestre  João ,  prece- 
didas de  uma  praga,  r.ão  nos  deram  vagar  do  fazer 
sobre  isso  largas  conjecturas  : 

<c  Vcjitre-Saint-Gris  ...  a  amarra  .  .  .  vamos  a  pi- 
que I  »  (•) 

Foi  o  que  podemos  perceber.  E  era  sobejo. 

O  major  C.  ficou  immovel.  Quanto  a  mim  o  pri- 
meiro pensamento  que  me  scintillou  no  espirito  foi 
o  de  despertar  os  nossos  companheiros.  Mas  porque 
não  haviam  de  morrer  tranquillos?  Deixei-os. 

O  brado  do  arraes  fOra  seguido  de  um  momento 
de  tremendo  silencio  :  depois  senti  que  o  chasse- 
marée  fazia  um  singular  movimento,  como  galgando 
pelo  dorso  de  enorme  vaga  ;  apoz  isto  pareccu-me 
que  subiíametite  parara  ,  c  ouvi  de  novo  fallar  )ia 
tolda.  Era  a  voz  de  lír.  Grahara  ,  o  poeta  agourei- 
ro e  esguio. 

Este  momento  de  incerteza  foi  horrível.  Então 
conheci  bem  a  verdade  de  uma  phrase  de  ililtou 
«a  r.tcundão  visivcl ;  »  Nas  trevas  profundíssimas  cm 
que  estava  via  o  reluzir  do  mar  ao  redor  da  vela 
branca  em  que  jazíamos;  e  os  olhos  da  rainha  ima- 
ginação enxergavam  atravez  da  agua  os  rochedos 
de  sorvedouros  submarinhos,  onde  os  nossos  cadá- 
veres deviam  dcutro  em  pouco  achar  uma  sepultura 
desconhecida. 

Não  sei  o  como  ,  mas  a  verdade  é  que  no  ni!.;o 
do  terror  de  morte  affiiciiva  e  demorada  ,  me  veio 
á  cabeça  uma  idéa  ridiculamente  consoladora,  foi 
esta  a  imagem  de  Jír.  Grabam  sumindu-se  nas  goel- 
las  de  um  tubarão  com  a  sua  fabrica  inteira  de 
versos  ,  e  a  meia  fabrica  de  Lecds  ,  que  trazia  dis- 
tribuída pelos  seus  quatro  casacões  incommcusn- 
raveis. 

Passou  um  minuto  :    passaram  dous  :   passou  ter- 
ceiro ;   e   a  nossa  vela  enxuta  ,   e  o  baixel  perfeita- 
,  mente  tranquillo.   A  morte ,   se  tinha  de  vir,   era 
I  tão  lenta  e  derreada  como  a  melopia  da  dcclama- 
,  cão  ingleza. 

j      Porventura   havíamos   encalhado   n'algura   banco 
d'arcia  ,    porque  o  chassc-raaréc  evidentemente  não 
abrira  ;  aliás  o  mar  devia  ter-nos  já  sorvido. 
I      (.)    Teilual.  '■ 


158 


O   PANORAMA. 


Lembrei-mc  de  subir  á  tolda.  Mas  como?  O  Jo- 
gar em  que  nos  achávamos  rcpresenlava  uma  ver- 
dadeira masmorra  de  castello-fcudal  :  o  cscotilhão 
por  onde  descêramos  era  mais  alto  que  um  homem  ; 
alem  disso  o  estrado  da  boca  linha  sido  ahi  collo- 
cado  como  a  campa  sobre  um  tumulo  ,  c  em  cima 
do  estrado  sentiramos  lançar  uma  lona  breada  pa- 
ra impedir  a  invasão  das  ondas  que  galgavam  pelo 
tombadilho. 

Esperei  pois  que  amanhecesse  ,  e  que  então  ob- 
tivéssemos a  luz,  c  a  liberdade,  da  munificência  de 
Micer  Jean  l.egris.  Entretanto  o  major  parecia  mais 
tranquillo  :  a  quietarão  do  chasse-marée  ,  e  a  som- 
nolencia  da  anle-manhaã  eram  apparenteraentc  a 
causa  disto. 

A  alvorada  assomou  enifiui  no  oriente  :  alevan- 
tou-se  o  estrado  ,  e  a  luz  branda  do  romper  do  dia 
>eio  allumiar  o  nosso  calabouço  marinho  cora  uma 
claridade  frouxa  e  suave.  Não  esperara  debalde 
em  mestre  João  :  o  seekucnig  concedia-nos  o  favor 
de  aspirarmos  um  ambiente  puro  e  livre. 

Sulii  á  tolda.  O  sol  surgia  como  ura  grande  or- 
be vermelho  íluctuando  sobre  as  ondas  levemente 
crespas.  No  sudoesie  uma  nuvem  negra  e  ampla 
parecia  firmar-se  cm  pé  no  horisonte  ,  prolongando 
os  cimos  dentados  pelas  alturas  do  céu  :  era  a  pro- 
cella  que  fugia  varrida  pelo  nordeste.  A  superlicic 
enrugada  do  oceano  tiuha  não  sei  que,  similbante  a 
iim  gesto  humano  que  sorri.  Eu  contemplava  uma 
dessas  raras  alvoradas  do  navegante ,  cm  que  no 
aspecto  do  mar  se  lè  o  nome  de  Deus,  e  no  sussur- 
rar da  brisa  se  escuta  o  hymno  da  creação. 

Onde  estávamos  nós?  No  recife  do  um  ilhéu,  vi- 
sinho  das  costas  de  Normandia  ,  cujo  nome  se  me 
varreu  da  memoria.  A  caldeira  cm  que  nos  achá- 
vamos teria  Ires  vezes  o  comprimento  do  chasse- 
marée  e  ainda  menor  largura.  Olhei  para  a  entra- 
da, e  os  cabellos  se  rac  eriçaram  ao  vè-la.  Custava 
a  perceber  como  o  nosso  baixel  a  atravessara  sem 
se  fazer  om  pedaços  ;  era  um  labyrintho  de  roche- 
dos agudos  quasi  indelineavcl. 

Mestre  João  Legris  ,  não  sei  por  qual  rasão  náu- 
tica, pcrtcndòra  fundear  junto  aos  penedos  que  de- 
lendem  a  boca  daquclla  abra  ,  alé  (jue  chegasse  a 
nianhaã.  .\o  lançar  ancora  a  amarra  se  partira  ro- 
çando pelas  rochas.  Este  successo  desastrado  arran- 
cara da  boca  do  arraes  a  enérgica  exclamarão,  que 
Ião  tcrrivel  fora  ferir-me  os  ouvidos  no  meio  das 
minhas  dolorosas  cogitações.  Felizmente  uma  vaga 
monstruosa  erguendo  o  chasse-marée  sobre  o  dorso 
o  arrojou  por  entre  os  parcois  ,  —  talvez  por  cima 
dellcs  —  c  nos  salvou  da  morte,  que  aliás  seria  ine- 
vitável. 

A  sabida  do  recife  deu  mais  trabalho  aos  nossos 
marinheiros  do  que  lhe  dera  a  entrada.  O  sol  ia  já 
mui  alto  quando  abrimos  todas  as  vellas  ao  vento. 
Ksle  era  de  feição  ;  e  dentro  em  poucas  horas  apor- 
támos a  Granville. 

(Ã.  Herculano.) 


'kMM^^smít, 


Para  sermos  entendidos  de  toda  a  espécie  de  leito- 
res cumpre  antes  de  entrar  cm  matéria  dar  aqui 
algumas  noções  cm  frase  corrente  c  purtugucza,  af- 


fastando-nos  quanto  possível  for  da  nomenclatura 
clássica  e  scientifica. 

Todos  os  vegetaes  considerados  no  ponto  de  vis- 
ta florestal  se  podem  arranjar  em  trcs  classes:  plan- 
tas d'hervagem  oulunas,  plantas  áematto,  e  plan- 
tas d'arvore(ío.  Nós  tratámos,  principalmente,  aqui 
da  3.°  classe. 

Arvoredo  dizemos  nós  dos  vegetaes,  cujos  troncos 
robustos  são  consideráveis  em  dureza  e  tamanho. 
Estes  vegetaes  dividem-se  em  arvores  e  arbustos. 

Florestas  chamámos  ás  arvores  e  arbustos  silves- 
tres e  bravios,  ou  sejam  de  folha  ordinária  espal- 
mada, ou  de  folha  ponteaguda  e  estreita,  a  que  cha- 
mam agulha.  Arvores  são  asquctem  umtroucosim- 
ples  ou  tigc  alta  ,  mais  ou  menos  ramosa  ,  d'ondo 
brotam  olhos,  botões  c  lançamentos.  Arbustos,  pro- 
priamente taes,  não  tem  tronco  ou  tige  simples,  co- 
mo as  arvores ,  porem  muitas  vergonleas  ou  varas 
sabidas  d'uma  só  raiz:  sua  grandeza  e  grossura  ra- 
ras vezes  chega  á  das  arvores  pequenas.  Duram  mais 
que  o  matto  ,   e  morrem  mais  cedo  que  as  arvores. 

Ordinariamente  chama-se  alamedas  ás  filas  d'ar- 
vores  silvestres,  simples  ou  dobradas,  dispostas  em 
linha,  e  que  os  fraucezes  denominam  atlee ;  e  mattos 
os  arvoredos  compostos  d'arvores  ,  arbustos  ,  e  de 
malto  mesmo,  que  foi  originariamente  o  que  lhe  deu 
o  nome.  Nós  conservaremos  esta  nomenclatura  vul- 
gar c  nacional  ,  com  significação  perceptível  de  lo- 
dos. 

Os  proveitos  e  utilidades  das  maltas  e  arvoredos 
são  muitos  e  diversos  ,  e  bem  se  conhecem  pelos 
seus  contrários.  A  diminuição  das  mattas  e  arvore- 
dos lira  a  humidade  necessária  ao  terreno  ,  c  torna 
o  solo  árido  enú.  Diminuídos  os  orvalhos  e  chuvei- 
ros ,  diminuem  lambem  as  nascentes  das  fontes  c 
dos  rios  :  o  soão  abrazador  c  o  sècco  nordeste  do 
estio  varre  sem  defeza  os  campos  e  os  esterilisa. 
A  ;;lectricidade  felizmente  entretida  ,  e  derramada 
pelos  díffercntcs  conduclores  das  arvores  ,  se  con- 
densa ,  e  faz  de  tempos  a  tempos  saltos  e  explosões 
ou  funestas  ou  ruinosas  nos  locaes  escalvados.  As 
febres  malignas  c  intermittenles  ,  que  dizimam  lo- 
dos os  aimos  a  população  de  lugares  pantanosos,  pro- 
cedera da  falta  de  bosques  e  arvoredos  ,  os  quacs 
absorvendo  o  carbónico,  e  expellindo  o  oxigénio,  pu- 
rificam o  ar.  Do  entretenimento  das  maltas  c  arvo- 
redos cm  logares  que  não  servem  á  cultura  resul- 
ta ,  alem  daqucllas  vantagens  de  salubridade,  —  a 
caça  ,  que  augmenta  os  productos  do  consumo  ;  — 
os  estrumes  pelos  depósitos  das  folhas  ,  da  limpesa 
dos  ramos ,  e  das  ervas  e  mattos ,  que  ahi  se  criam 
espontaneamente;  —  a  filtração  das  aguas  e  enxur- 
radas que  passando  atravez  dos  arvoredos  c  balsas 
nas  encostas  e  assomadas  ,  trazem  eomsigo  partícu- 
las nutrientes  que  fecundam  os  vallcs  c  os  campos 
cullivaveis.  As  vantagens  politicas  não  são  menores 
do  que  as  naturaes  e  ruraes.  O  estado  adquirirá  no- 
vas riquezas  no  plantio  dos  bosques  e  arvoredos  , 
que,  jiassados  sete  annos,  começam  a  produzir  ren- 
dimento útil  ,  crescendo  sempre  na  proporção  pro- 
gressiva dos  tempos.  Os  arsenaes  c  estaleiros  terão 
sortimeulo  de  madeiras  ;  —  as  fabricas  c  laboração 
das  minas  ,  a  navegarão  interior  e  outros  estabele- 
cimentos lerão  madeiras  de  coustrucção  c  lenhas 
para  combustível.  Um  dos  nossos  mais  doutos  na- 
turalistas (•)  disse  :  =  «Sc  os  canaes  de  rega  c  na- 
«vcgação  aviventam  o  commercio  e  lavoura  ,  não 
«pôde  have-los  sem  rios;    não  pôde  haver  rios  sem 

t»)  O  Dr.  João  Buuifacio  d' Andrade  n'niua  de  suas  me- 
morias académicas. 


o  PANORAMA. 


ISÍT 


«fontes  ;  não  ha  fontes  sem  chuvas  c  orvalhos;  não 
«ha  cluivas  c  orvalhos  sem  aivorciios.»=^0  mesmo 
naturalista  ealcnUui  em  3(t  libras  dngua  a  liumida- 
(Ic  que  (listilla  uma  arvore  de  dez  annos  ,  c  concluo 
que  um  chão  desabrigado  de  3'á  pés  quadrados  per- 
de diariamente  ;tO  onças  d'agua.  De  que  utilidade, 
de  que  necessidade  não  é  então  cobrir  d'arv(iredos 
essas  campinas  ardentes  do  Alemtéjo  e  da  Kstrema- 
dura ,  e  os  arcaes  c  charnecas  que  avisinham  nossa 
costa !  ■       -    . 

Da  sementeira  e  plantio  das  arvores  silvestres. 

Seis  requisitos  c  preciso  ter  cm  vista  na  semen- 
teira silvestre.  —  i."  as  espécies  d'arvores;  2.°  a 
bondade  da  semente ;  3."  a  quantidade  da  mesma  ; 
4.°  a  escolha  e  preparação  do  terreno  ;  o.°  o  tempo 
o  sasão  própria;  (i."  a  semeadura. 

Quanto  ao  1." — A  escolha  das  arvores  e  arbustos 
deve  ser  adaptada  ás  circumstancias  da  localidade 
e  do  paiz  ;  devem  preferir-se  as  mais  utcis  e  de 
maior  interesse  ao  consumo. 

Quanto  ao  2.°  —  A  bondade  da  semente  depende 
de  estar  bem  formada,  saã  e  haver  chegado  ao  grau 
de  perfeita  maturação  ;  deve  ser  apanhada  sêcca  ,  e 
bem  guardada  em  sitio  enxuto ,  quando  se  não  lan- 
ça logo  á  terra. 

Quanto  ao  3.° — A  quantidade  da  semente  deve  ser 
proporcionada  á  força  e  bondade  do  terreno,  e  á  na- 
tureza das  arvores  ou  arbustos  ;  porque  alguns  exi- 
gem estar  bastos  para  se  apoiarem  uus  aos  outros , 
e  outros  raros  e  compassados. 

Quanto  ao  4.°  —  Da  escolha  c  preparação  do  ter- 
reno depende  sobremaneira  o  bom  exilo  da  semen- 
íeira  ;  aliás  é  caminhar  ás  cegas.  Se  o  terreno  ó  solto 
e  leve  basta  um  lavor  comaraveça  ;  se  é  mais  forte 
e  compacto  ,  porem  livre  de  pedras,  de  raigotas  ou 
raizes  ,  deve  ser  lavrado  fundo  ao  arado  ;  mas  se 
pelo  contrario  é  empeçado  ,  forçoso  será  surriba-lo. 

Quanto  no  S."  —  O  tempo  próprio  da  sementeira  é 
quando  as  sementes  formadas  c  amadurecidas  caem 
per  si  mesmas,  porque  então  grelam  promptamente. 
Isto  porem  não  pôde  ter  logar  senão  nas  pequenas 
sementeiras :  em  todo  o  caso  convém  que  a  semen- 
te seja  nova. 

Quanto  ao  6."  —  A  semente  não  deve  ficar  enter- 
rada muito  funda  ,  nem  tão  alta  que  se  seque  ou 
esterilise  na  superfície.  Cumpre  nesta  parle  imitar 
a  natureza  ,  que  ordinariamente  a  faz  germinar  e 
brotar  coberta  apenas  de  apodrecida  folhagem.  .\os 
sitios  porem  descobertos,  desabrigados,  c  maiormcn- 
te  sendo  as  sementes  aladas  ou  nicmbranaceas,  que 
as  leva  o  vento,  ou  leves  e  miúdas,  cumpre  cubri- 
las  de  terra  ou  areia  de  meia  polegada  d'espessura. 

Isto  pelo  que  pertence  aos  princípios  geraes,  que 
regulam  sempre  :  as  regras  e  jireccitos  particulares, 
relativos  a  cada  um  dos  seis  indicados  requisitos , 
expenderemos  em  artigos  especiaes. 

J.  da  C.  X.  C. 


Delrei  d.  João  2.°  e  do  cahdeal  d'Alpedrinha. 

Eji  historia  assim  como  na  conversarão  .  e  no  de- 
mais tracto  da  vida  social  ha  certas  phrases  que  fa- 
zem fortuna  ;  agradam  e  seduzem  pela  graça  e  es- 
pirito conceituoso  cora  que  são  arranjadas ;  e  o  vul- 
gar, naturalmente  leviano  ou  indolente,  se  compraz 
em  repeti-las ,  e  sem  indagar  nem  examinar  suas 
provas,  atira-as  como  axiomas,  explica  por  ellas  os 
acontecimentos  a  que  as  mesmas  se  referem  ;  e  com 


este  modo  de  proceder  e  d'ajuizar  se  vai  muitas 
vezes  transtornando  e  desfigurando  a  verdade  histó- 
rica. Poderíamos  apontar  muitos  exemplos  deslc 
máu  resultado  ;  por  agora  alteiulam  os  leitores  ao 
seguinte  : 

È  niuilo  conhecida  na  historia  de  nossos  reis  aquel- 
!a  conversa  que  se  diz  tiveram  nas  praias  da  Jun- 
queira ou  de  lielem  o  príncipe  I).  João  [depois  rei 
2.°  deste  nome]  com  o  duque  de  Bragança,  D.  Fer- 
nando ,  e  o  arcebispo  de  Lislioa  ,  D.  Jorge  da  Cos- 
ta ,  mais  nomeado  com  o  titulo  de  cardeal  d'Alpe- 
drinha.  Foi  o  caso,  que  havendo  elrci  I).  AfTonso 
5.°  colhido  na  corte  de  França  o  desengano  de  que 
nenhum  soberano  pôde  confiar  demasiado  no  auxi- 
lio dos  estranhos  para  o  arranjo  c  melhoramento  de 
seus  negócios ;  obrigado  pela  força  e  politica  ma- 
chiavelica  de  Luiz  11.°  a  voltar  ao  reino  e  á  coroa, 
de  cujos  pungentes  espinhos  havia  resolvido  fugir  ; 
chegando  na  frota  franccza  ,  que  o  conduzia  ,  á  en- 
seada de  Cascacs  ,  mandou  adiante  um  mensageiro 
prevenir  o  príncipe  seu  filho  daquclla  estranha  no- 
vidade. Este  ,  que  nada  menos  esperava  do  que  a 
volta  de  seu  pai  ,  que  pur  sua  ordem  ,  c  de  suas 
instancias  havia  tomado  o  sceplro  por  formal  abdi- 
cação daquelle,  ficou  confuso  e  embaraçado,  e  per- 
guntou aos  dois  :  =  como  6  que  hei-de  receber  meu 
pai ,  que  está  chegando  ?  =  O  cardeal ,  mais  preca- 
tado e  astuto ,  calou  ,  postoqne  nisso  mesmo  se  de- 
clarava assaz  ;  mas  o  duque  ,  vivo  e  prompto  ,  res- 
pondeu =  como  recebè-lo ,  principe?  Como  vosso 
pai  e  como  vosso  rei.  =  Seguidamcnte  o  principe 
sem  contestar  pegou  d'uns  seixinhos  daquelles  que 
costuma  haver  nas  praias ,  e  começou  a  joga-los 
disfarçando  o  negocio  ,  e  alirando-os  pela  lona  d'a- 
gua  os  fazia  ir  saltando  e  fazendo  pulos.  O  cardeal, 
percebendo  com  isto  que  o  conselho  fura  recebido 
de  má  mente  ,  disse  para  o  duque  ,  mansinho  :  = 
aqnella  pedra  me  não  hade  dar  na  cabeça  ;  =e  pas- 
sados dias,  aforrado  largou  o  reino  e  se  foi  a  Ro- 
ma, donde  não  voltou  mais.  Aii  aqui  c  a  relação 
commum  e  popular  ,  que  pouco  imporia  seja  falsa 
ou  verdadeira  em  si  mesma.  O  caso  porem  é  que 
delia  se  lira  uma  illação  injusta  e  depressora  do 
grande  caracter  do  soberano  a  quem  a  historia  cha- 
mou principe  perfeito.  Tem  passado  .  como  cousa 
sem  replica  ,  que  deste  fraquíssimo  principio,  des- 
te supposto  conselho,  que  aliás  faria  muita  honra 
aos  seus  auctores,  que  de  nenhuma  serie  era  obri- 
gatório ,  e  que  devia  merecer  louvor  e  estimação  , 
mesmo  d'um  homem  tão  atilado  e  tão  bom  aprecia- 
dor das  acções  briosas  ;  desle  successo  ,  diremos  , 
deduzem  a  má  vontade  que  D.  João  2.°  mostrou 
sempre  ao  cardeal  ,  e  que  mais  tarde  levara  o  du- 
que ao  cadafalso  em  Évora  ,  postoque  acompanhada 
ou  mascarada  com  a  resistência  ás  correições  da 
coroa  em  suas  terras.  Ora  isto  não  é  assim  :  a  des- 
graça destas  duas  personagens  teve  principies  mais 
altos  ,  e  é  Fernão  Lopes ,  o  mais  antigo ,  o  mais  si- 
sudo, c  o  mais  verídico  de  nossos  chronistas.  quem 
os  indica  ;  e  foram  estes  :  quando  o  malaventurado 
rei  de  Castella  ,  Henrique  4.°,  se  lembrou  de  pro- 
ver á  successão  da  coroa  ,  ofTereceu  a  Portugal  o 
seguinte  convénio  :  casar  o  próprio  rei  D.  AiTonSD 
5."  com  a  infanta  D.  Isabel  sua  jrmaã  ,  jurada  já 
naquella  corte  princeza  hábil  para  succeder  ;  e  o 
principe  D.  João  com  sua  iilha  única  e  herdeira  ,  a 
princeza  II.  Joanna  ,  chamada  depois  a  exeellente 
senhora.  Desle  modo  fica>a  a  successão  da  dynaslia 
portugueza  á  coroa  de  Castella  segura  pelos  dois 
lados.   A  princeza  Isabel   e  seu  partido  ficariam  li- 


160 


O  PANORAMA. 


songeados  de  a  verem  rainha  de  tantas  coroas,  c  as- 
scfturada  a  preponderância  e  valimento  dos  grandes 
d'Hespanlia  ,  que  por  seus  particulares  inlcrcsses 
lançavam  somliras  ignominiosas  sobre  a  legitimida- 
de (la  lillia  do  rei ;  e  esta,  sctido  casada  com  o  her- 
deiro nuico  o  legitimo  de  Portugal,  empunliaria  o 
sceplro  i)em  depressa,  salvos  assim  os  princípios 
das  leis  de  successão  em  ambas  as  coroas  ;  cessa- 
vam os  escândalos  ,  e  se  punha  um  freio  ás  ambi- 
ções ,  parcialidades  e  maledicências.  Esta  alliança  , 
estas  disposições  aggradavam  muito  ao  príncipe,  co- 
mo é  natural  ;  mas  achou  poderosos  contradiclores 
no  cardeal  e  no  duque  que  a  desapprovavam ,  ex- 
])ondo  ao  bondoso  c  indeciso  Aflonso  o.°  que  seria 
isto  metter-se  c  ao  reino  em  camisa  de  onze  varas  ; 
que  seria  empenhar  n'uma  guerra  terrível  sem  ap- 
]iarencia  de  bom  snccesso  ,  porque  nem  a  princcza 
Isabel  era  de  molde  n  renunciar  ao  throno  d'Kes- 
jianba  que  lhe  promellia  seu  grande  c  formidável 
partido  ,  ncni  os  grandes  d'Hcspanha  ,  feros  e  or- 
gulhosos ,  sofTreriam  jamais  soberano  estrangeiro  , 
lanto  mais  quanto  Fernando,  rei  de  Aragão,  que- 
ria o  b'>lo  para  si  ,  c  atiçava  os  dissidentes.  D.  Af- 
fonso  resignou-se  ;  e  todos  sabem  qual  foi  o  de- 
plorável resultado  da  sua  politica  :  c  D.  João  2." , 
que  era  a  alma  da  política  contrária  ,  sempre  de- 
pois lançou  na  cara  dos  dois  as  conseq^uencias  do 
ruim  conselho.  Isto  quanto  á  má  vontade  ,  porque 
quanto  á  jnsliça  ,  boas  rasões  lho  não  faltaram. 

J.  da  C.  N.  C. 


' .       ■   Bútãnkã.     ' 

SoijRE  a  cAPiiinciCÃo  dos  figos  (>). 

A  cAPr.iFicAçÃf)  é  conhecida  ,  e  praticada  no  Algar- 
ve talvez  ha  muitos  séculos  ,  e  desde  o  nosso  anti- 
go commcrcio  com  os  carthaginezes  ;  pois  qnc  este 
modo  de  fertilisação  artificial  c  antiquíssimo  n'.\- 
frica,  Grécia,  e  em  todo  o  Levante.  Delia  faz  men- 
ção Aristóteles  c  seu  discípulo  Theophraslo  ,  Plínio 
e  muitos  outros  auctorcs antigos,  gregos  c romanos: 
entre  os  modernos  Tonrnefort,  Pontedera,  Línneo  e 
Bernard  de  Marselha  são  os  que  mais  se  occnparam 
de  a  indagar  ;  isso  não  obstante  ,  ainda  restam  al- 
gumas observações  que  fazer ,  para  perfeitamente  a 
í Iluminar  na  sua  cansa  e  effeitos. 

Consislia  antigamente,  1.°  cm  plantar  figueiras 
bravas  defronte  dos  figueiraes  cultivados  da  banda 
donde  o  vento  soprava  mais  ordinariamente  nos  fins 
da  primavera  ,  para  que  ccrlos  mosquitos  ,  que  en- 
tão costumam  sahir  dos  figos  bravos,  fossem  mais 
farilmenle  pela  direcção  do  vento  conduzidos  aos  fi- 
gos das  figueiras  domesticas,  ncllas  entrassem,  c  os 
impedissem  de  cahir,  accelerando  ao  mesmo  tempo 
a  sua  túmida  e  doce  madureza  :  os  gregos  chama- 
vam a  esta  casta  de  figueira  brava  crinos  ,  os  roma- 
nos raprilicus .  e  os  porluguezes  lhe  dão  o  nome  do 
itaforr.ira  ou  fif/urira  de  tocar.  2.°  Consistia  era  pen- 
durar ramos  ou  enfiadas  de  figos  bravos  nas  figuei- 
ras domesticas  para  o  mencionado  fim.  Esta  segun- 
da prática  está  ainda  boje  em  uso  nos  mesmos  pai- 
zcs  ,  cm  que  antigamente  se  usava  ,  e  lhe  chamam 
raprificação.  No  Algarve  enfiam  era  tiras  de  folhas 

(•)  Estas  notas,  escriplas  pelo  nosso  insigne  naturalista, 
FelÍ!(d"Avellar  Rrotero.  foram  impressas  na  Irailucção,  pou- 
co conhecida  ,  ila  obra  do  Blanchard  ,  pulo  beneUciad»  M. 
.1.  da  Costa  ,  tom    2." 


de  palmeiras  os  figos  da  figueira  de  locar ,  e  pen- 
durara cslas  enfiadas  nos  ramos  de  algumas  figuei- 
ras domesticas,  ou  de  certas  variedades  serodeas  , 
cujos  figos,  ainda  que  de  boa  casta  ,  cahem  coratu- 
do  sem  amadurecer,  se  não  são  capriticados. 

O  insecto,  que  contribue  para  a  capríficação  ,  foi 
antigamente  conhecido  dos  gregos  ,  com  o  nome  ds 
psni ,  c  os  cntomologicos  modernos  lhe  chamam  r;/- 
nips  })scHcs :  é  do  comprimento  de  um  grão  de  sal- 
sa com  pouca  dilfereuça,  e  todo  negro  ;  as  suas  an- 
tennas  são  quasi  do  comprimento  do  seu  corpo,  e 
compostas  de  doze  nós  ou  articulações  ;  tem  quatro 
azas  membranosas  sem  malhas,  c  as  de  cima  maio- 
res :  o  individuo  feminino  tem  de  mais  disso  na 
extremidade  do  ventre  um  ferrão  escondido  entre 
duas  laminas.  Este  insecto,  ou  mosquito,  dizem  que 
gosta  mais  dos  figos  bravos  do  que  dos  mansos  ou 
domésticos:  nellcs  põem  seus  ovos,  e  as  suas  lar.vas 
nclles  se  criam  até  delles  sabírem  transformadas  cm 
mosquitos  ;  pois  não  é  destes  figos  podres  que  se 
gerara,  como  os  antigos  philosoplios  gregos  e  roma- 
mos  pensavam  ,  porque  a  podridão  destroe ,  desor- 
ganisa  ,  e  não  pódc  gerar  ente  algum  orgânico  ,  os 
qnacs  todos  nascem  de  ovos  ,  ou  germes  formados 
pelos  pais  da  sua  espécie,  segundo  as  luzes  da  pbí- 
losophia  moderna.  Quando  os  mosquitos  não  acham 
figos  bravos,  introduzem-se  nos  mansos  ou  domés- 
ticos, que  acham  logo  visiuhos ,  e  mesmo  na  falia 
de  uns  e  outros ,  dizem  que  se  introduzem  nas  se- 
mentes tenrinhas  dos  fiosculos  da  cangarinha  (sco- 
h/niiif;  Itispatiiciis)  e  de  algumas  outras  plantas.  Ao 
Archipélago  estes  insectos  dão-se  nasbaforeiras,  que 
produzem  três  castas  ou  camadas  de  figos  successi- 
vamenle  no  mesmo  anno ;  em  maio,  agosto,  c  fim 
de  setembro  ;  não  são  bons  para  comer,  mas  só  pa- 
ra caprificar,  porque  cm  todos  se  dão  mosquitos; 
os  da  camada  de  maio  comtuiio  ,  chamados  ornos . 
são  os  que  empregam  os  gregos  |)ara  a  capríficação 
em  junho  e  julho  :  os  fiosculos  em  todos  elles  pro- 
vavelmente são  raonoicos  ;  nos  da  camada  de  setem- 
bro os  ovos  dos  insectos  ficam  depositados  até  a  pri- 
mavera do  anno  seguinte,  em  que  as  suas  larvas  sa- 
bem dos  ovos,  nutrem-se  das  milharás  do  figo,  e 
transformados  sahem  a  iulroduzir-se  cm  outros  figos. 
Em  todos  os  figos  das  figueiras  bravas  até  agora 
observados  em  Portugal  se  te;n  achado  sempre  fios- 
culos dos  dois  sexos  ,  e  mesmo  entre  elles  alguns 
hermaphroditos  ;  as  baforeíras  do  Algarve  são  aná- 
logas ás  que  dão  os  figos  lampos. 

Os  mosquitos  ,  que  sabem  dos  figos  bravos  pen- 
durados nas  figueiras  mansas  ,  tem  immcdiatamente 
cópula  entre  si;  depois  disto  as  fêmeas  cuidam  lo- 
go de  pôr  e  aninhar  os  seus  ovos  de  tal  maneira  , 
que  a  sua  prole  ache  no  próprio  ninho  o  seu  conve- 
niente alimento,  sem  mais  trabalho  algum  materno; 
romi)em  pouco  a  pouco  o  olho  dos  figos  verdes  do- 
mésticos,  penetram  no  seu  interior,  picam  as  mi- 
lharás com  o  seu  ferrão,  e  em  cada  um  destes  grãos- 
inlios  põem  um  ovo  :  neste  ovo  ,  com  o  calor  com- 
petente, descnvolve-se  uma  larva,  ou  lagarlinlia  mí- 
nima, cnjo  corpo  é  composto  de  doze  anncis,  bran- 
co e  sem  pés;  nulre-sc  do  miolo  das  milharás,  sem 
comtudo  evacuar  excremento  algum  ,  até  se  trans- 
formar em  nympba  e  perfeito  mosquito  ;  rompe  en- 
tão a  casca  da  milhará,  c  sabe  delia  c  do  figo,  vóa, 
e  cuida  em  propagar  a  sua  prole  especílica  do  mes- 
mo modo  que  seus  pais  lhe  deram  a  sua  existência 
indi\idual.  Um  mcz  basta  para  que  as  larvas  che- 
guem á  sua  ultima  metaraorphose. 

l  Continuar-$e-ha ) . 


74 


o  PANORAJIA. 


161 


UMA    VISTA   DO   FAIAI.. 


Se  os  nossos  leitores  quizercm  consultar  os  índices 
dos  primeiros  volumes  deste  semanário  ,  por  elles 
irão  buscar  muitas  noticias  do  importante  archipe- 
lago  dos  Açores,  jóia  engastada  na  coroa  porlugueza. 
De  obra  estrangeira  tomámos  a  precedente  estampa. 
em  que  a  imperfeiçiio  do  desenho  c  gravura  ,  mos- 
tra ao  longe  mal  designada  a  ilha  do  Pico  ,  que  é 
para  assim  dizer  o  jardim  ou  a  quinta  do  Faial.  — 
O  Sr.  Júlio  de  Lastcyrie  diz  assim  :  —  «A  ilha  do 
Faial  forma  uma  vasta  meia  lua,  no  recesso  da  qual 
está  posta  a  cidade  d'Horta  :  as  ruas  parallelas  ao 
mar  sobem  successivamente  com  as  latadas  de  ro- 
meiras e  outras  arvores  pelo  declive  de  uma  escar- 
pada eminência.  Casas  e  flores  fazem  um  composto 
engraçado  ,  donde  á  vontade  se  pôde  admirar  o  es- 
plendor do  painel  ,  que  ante  os  olhos  se  estende. 
Em  face  está  a  ilha  do  Pico  ,  e  a  sua  extremidade 
peneira  na  bahia  do  Faial  ,  que  sombrèa  com  seu 
magcstoso  cume.  Na  falda  da  montanha,  visinha  ao 
mar  ,  crescem  as  larangeiras  e  as  plantas  dos  tró- 
picos ;  á  proporção  que  o  terreno  altèa  distinguem- 
se  as  oliveiras  ,  e  as  cepas  da  vinha  ;  mais  alem  as 
arvores  do  septenlrião  da  Europa  ,  e  em  lodo  o  ci- 
mo as  neves  perpetuas.  A  esquerda  prolonga-se  a 
ponta  de  S.  Jorge  ,  e  se  entreve  o  canal  estreito  e 
comprido  ,  que  separa  esta  terceira  ilha  da  outra 
do  Pico  :  por  entre  estas  terras  tão  próximas  desdo- 
bram-se  ,  sob  esplendida  atmosphera  ,  as  vagas  tu- 
multuosas do  oceano  atlântico.  Activa  navegação  dá 
vida  a  esta  enseada  magnifica.  Sendo  o  Faial  o  pon- 
to dos  Açores  onde  os  navios  podem  sem  perigo  dei- 
tar ferro,  acodem  estes  alli  em  grande  quantidade  : 
os  baleeiros  americanos  vem  renovar  aparelhos  e 
fornecer-se  de  mantimenlos  :  embarcações  do  Mara- 
nhão ,  que  o  vento  obriga  a  tio  larga  Tolta  para 
Maio  27—1843. 


irem  ao  Rio  de  Janeiro  ,  arribam  á  cidade  de  Hor- 
ta ;  e  outras  inglezas  carregam-se  do  vinho  do  Pi- 
co ,  que  ajudado  de  alguma  aguardente  semelha  o 
da  Madeira.  O  movimento  commcrcial  influe  nos 
costumes  e  hábitos  dos  moradores,  e  dá  á  popula- 
ção d'IIorta  uma  physionomia  europea  ,  que  não  sr; 
encontra  tão  distincla  em  qualquer  outra  terra  dos 
Açores.  »  — 

«Para  ir  do  Faial  á  Terceira  dobra-sc  a  ponta  oe- 
cidental  da  bahia  d'Horta  ,  cntrando-se  pelo  canal, 
que  ao  occidente  é  apertado  pela  ilha  de  S.  Jorge  . 
e  a  leste  pela  do  Pico passagem  perigosa  de  na- 
vegar ,  onde  o  mar  quebra  com  igual  violência  nas 
duas  margens  :  as  correntes  são  arrebatadas  ,  e  os 
navios  que  a  tempestade  tomar  de  súbito  nesta  pa- 
ragem ,  varrida  pelo  vento  ,  não  tem  refugio,  a  que 
se  acolham.  —  A  pouco  e  pouco  a  ilha  do  Pico  ,  de 
figura  oval  ,  afasta-se  de  S.  Jorge  ;  em  curto  espa- 
ço transpõe-se  a  extremidade  desta  :  descobre-se 
então  a  Graciosa,  pequena  e  rotunda,  que  sahe  das 
aguas  como  um  açafate  de  flores;  e  na  frente  ve- 
mos a  Terceira  com  suas  penedias  escalvadas  ,  e 
montanhas  nevoentas.  » 

riz-se  que  o  nome  de  Faial  proviera  das  muitas 
faias  ,  que  os  descobridores  lhe  encontraram  :  ven- 
tilar questões  d'etjmologias  ,  sobre  desnecessária 
ociosidade,  é  cousa  fora  da  moda.  Chania-se  aspira, 
c  não'  ha  vozes  que  desmintam  nomes  que  o  povo 
diz,  que  os  livros  geographicos  consagram,  porque 
não  podem  deixar  defazè-Io.  Esta  ilha  tem  de  com- 
primento cinco  léguas  ,  e  de  largura  quatro  ;  pode 
quasi  chamar-se  redonda  :  orça-se  em  vinte  e  qua- 
tro mil  habitantes  a  sua  população  .  divididos  pela 
capital,  [que  foi  elevada  á  calhegoria  de  cidade  por 
D.Pedro  deBrasanca,  de  Saudosíssima  Memoria]  c 
2.'  Serie.  — VoL.  II. 


162 


O   PANORAMA. 


por  nove  aldeãs  c  outras  povoações  de  pouca  mon- 
ta. O  vinho  que  produz  c  de  inferior  qualidade  ;  o 
que  embarca  provem-lhc  do  Pico  ;  dá  ccreacs  para 
Consumo  pro|)rio  e  da  ilha  visinha  ;  produz  Iialalas 
c  inhames ;  mas  o  género  de  cultura  ,  que  lhe  ó 
mais  vantajoso  é  a  laranja,  de  que  exporta  uns  ân- 
uos por  outros  carregação  para  doze  e  qualorze  na- 
vios :  assim  mesmo  nutre  bastante  gado.  A  indus- 
tria limita-se  ao  fabrico  de  manteiga,  pannos  de  li- 
aho  ,  c  loiça  ordinária  de  barro. 


O  DIELLO  DAS  DAMAS. 
1." 


O  vAiLE  dc  Carriedo  é  dos  sitios  mais  românticos 
da  vertente  septentrional  das  Astúrias  :  parece  que 
nelle  se  reuniram  todas  as  naturaes  bellczas  para 
simullaneamentc  realisarera  o  ideal  do  poeta  e  do 
pintor."  Vegetação  vigorosa  e  aromática  ,  florestas 
virgens ,  ordenadas  sobre  amphithealro  de  rochas 
variegadas  ;  espumosas  torrentes  ,  que  desde  o  ci- 
jno  das  montanhas  se  precipitam  como  artificiaes 
cascatas  ;  jardins  que  a  natureza  criou  espontâneos, 
|)cnsís  c  fora  do  alcance  da  mão  dos  homens  ;  ca- 
minhos de  fantasiosas  formas  ,  que  remedara  esca- 
das assestadas  para  as  nuvens  ,  frequentadas  só  pe- 
la corça  selvática,  ou  pelo  contrabandista  que  con- 
jeguiu  ser  o  seu  intrépido  companheiro  :  nada  falta 
áqiicUa  paizagcm,  verdadeiramente  meridional,  pa- 
ra fazer  um  dos  quadros  mais  grandiosos  que  i)o- 
dcm  imaginar-sc.  —  J\o  centro  deste  espectáculo 
admirável  dão  os  olhos  com  a  villa  da  Vega  ,  gra- 
ciosamente collocada  no  meio  do  painel  que  a  cir- 
cumda  ,  ostentando  ainda  hoje  sob  aquellc  ameno 
clima  as  amêas  do  castello  ,  cnnobrecido  pelos  que 
em  o  século  1(5.°  o  habitaram. 

IVuma  serena  tarde  do  mez  de  fevereiro  de  1302, 
divisava-se  um  cavalleiro  que  a  passo  raiudo  subia 
pela  escarpada  ladeira  ,  que  findava  no  relvoso  ro- 
cio,  sobre  o  qual  o  campanário  de  uma  ermida 
campeava  :  era  esta  consagrada  a  Nossa  S."  de  la 
A'ega  ,  padroeira  de  muita  veneração ;  c  a  sua  fes- 
tividade annual  tinha  nesse  dia  concluido ,  como 
aimunciavara  os  repiques  dos  sinos  ,  e  os  magotes 
de  gente  rústica  ,  que  se  recolhiam  ás  pousadas  , 
cantando  seguidilhas  ao  divino.  O  homem  que  su- 
l)ia  o  serro  era  D.  Félix  de  Vega  ,  senhor  e  dona- 
tário do  solar  e  casaes  dessa  villa,  que  com  seu 
appellido  era  honrada  :  morador  naquelle  torrão  des- 
de que  nascera ,  no  sitio  que  para  assim  dizermos 
seu  pai  fundara  ,  tinha  crescido  ,  e  prosperado  ,  e 
vivido  ,  sem  conhecer  um  instante  de  desgraça  ou 
melancholia  ;  e  a  donzella  asturiana ,  que  puzera 
remate  á  ventura  delle  ,  porventura  que  não  teria 
jias  llesp.ndias  rival  na  belleza  ,  como  na  graça  ,  e 
ternura  d'esp()sa.  Havia  porem  quinze  dias  que  pe- 
la vez  jirimeira  ,  depois  de  sinco  annos  dc  matri- 
monio ,  a  formosa  Francisca  Fernandez  se  achava 
ausente  dc  seu  nobre  esposo. 

No  momento  em  que  D.  Félix  chegava  á  coroa 
do  cabeço  altrahiraui-lhe  a  attenção  os  clamores 
que  sabiam  da  ermida  ,  c  viu  um  troço  dc  campo- 
nios  encolerisados  ,  c  no  meio  delles  agitada  e  li- 
vrando-so  uma  mulher  bastante  moça  com  uma  crean- 
ça  nos  braços. 

«  Fora  ,  fora  a  cigana  .  .  .  não  está  aberta  a  igre- 
ja para  lacs  cxcommungados»  —  bradava  a  chusma 
empuxando  a  mísera  para  fora  da  capella. 


«Não  sou  cigana  ,  nem  excommungada  ,  meus  ir- 
mãos ,  .  .  .»  —  contestava  a  rapariga  com  ademanes 
de  supplicante.  —  «Se  o  é  meu  marido,  nem  por 
isso  deixo  de  ser  hespanhola  c  calholica  ,  como  vós 
sois ;  e  não  podeis  empeecr-me  que  venha  requerer 
para  meu  fdho  o  baptismo  ,  que  merece  tanto  como 
vc')s  merecestes.  .  .  »  — 

«Não  ha  baptismo  para  os  malditos. ..  » —  Re- 
plicavam sem  caridade  os  fanáticos.  «Vai  para  a 
cova  dos  feiticeiros ;  Satanaz  que  te  benza  o  fi- 
lho. »  — 

A  desventurada  mãi  tinha  de  ceder  á  força,  c 
retrocedia  já  banhando  com  lagrimas  a  crcança  , 
que  via  réproba;  neste  passo,  um  sacerdote  ancião, 
como  pelas  muitas  caãs  demonstrava  ,  apparcceu 
revestido  de  sobrepelliz  no  batente  da  porta,  cha- 
mado alli  pelo  alarido  dos  rústicos:  a  mãi  expulsa 
correu  a  elle  aniznada  d'esperança.  D.  Félix,  sus- 
tido por  este  incidente  que  complicava  a  scena,  re- 
primiu o  seu  primeiro  impulso  ,  que  o  levava  a 
aquietar  o  tumulto  ;  e  chegou-se  ao  logar  da  alga- 
zarra para  melhor  indagar  a  causa  e  presenciar  o 
desenlace.  Um  minuto  de  attenção  pôz  o  ecclesias- 
tico  pastor  ao  corrente  do  qne  se  passava,  e  conhe- 
cendo sua  obrigação  melhor  que  o  tropel  de  amoti- 
nados, rcprehcndeu-os  de  sua  dureza  para  com  a  in- 
feliz mulher.  Restabelecido  o  silencio  ,  pôde  inter- 
rogar a  mãi  ,  que  para  seu  filho  re(|ueria  baptismo. 
«Quem  es?.  .  E  donde  vens,  minha  filha?.  .  .» 
—  lhe  perguntou  com  voz  meiga. 

«Sou  Joanna  Valdês,  mulher  d'um  cigano,  que 
vaguea  nesta  comarca  :  meu  marido  não  c  calhuli- 
co ;  mus  eu  não  deixei  dc  sè-lo  ,  e  venho  otTerecer 
a  Deus  este  fructo  que  dei  á  luz  quinze  dias  ha.» 
«Ainda  que  christaã  não  fosses,  teu  filho  linha 
jus  a  sè-Io  ,  já  que  assim  o  pedes ;  porque  as  fon- 
tes sacrosantas  do  baptismo  estão  patentes  a  todas 
as  humanas  creaturas.»  — 

Em  seguida  ,  tendo  admoestado  de  novo  os  cam- 
ponezes  ,  expiíz-lhes  que  o  meio  de  expiarem  seu 
erro  e  cegueira  era  abençoarem  elles  próprios  o 
menino  ,  que  acabavam  de  amaldiçoar. 

«Escolhei  do  meio  de  vós  [proscguiu]  padrinho 
6  madrinha.  .  .  »  — 

Apenas  o  ministro  do  Evangelho  pronunciara  es- 
tas palavras  ,  teve  de  interromper  com  dòr  o  seu 
discurso  conciliador  ,  vendo  que  os  aldeãos  ,  reco- 
brando deshumanos  sentimentos,  lhe  davam  as  cos- 
tas, todos  a  um  tempo,  ao  retirarem-se  murmuran- 
do outras  pragas  contra  a  presupposla  cigana. 

«Que  é  isto?  [bradou  indignado  o  sacerdote]  to- 
dos abalam  ?  . .  .  Nem  um  ficará  para  envergonhar 
os  mais?.  .  .  Não  haverá  uma  mulher,  uma  mãi, 
qne  se  apiade  de  sua  irmaã  em  Jesus-Christo?))  — 
E  no  instante  em  qne  este  caritativo  chamamento 
era  pronunciado,  som  proiluzir  o  elTcito  de  que  uma 
só  cabeça  para  aiiuella  banda  se  voltasse,  chegava 
uma  senhora  pela  parte  opposta  a  essa  por  onde  vie- 
ra I).  Félix  :  presto  descavalgou  ante  o  pastor  ,  di- 
zendo :  —  Serei  eu  a  madrinha  desse  menino. 

—  <' E  eu  o  [ladrinho. ))  —  acudiu  D.  Félix  imitan- 
do a  desconhecida. 

Fora  de  duvida  que  teve  muita  parte  a  humani- 
dade no  rápido  impulso  da  vontade  do  Sr.  de  la  Ve- 
ga, que  apenas  por  nnnutos  foi  prevenido  pela  pro- 
posição de  sua  futura  comadre  :  porem  outro  senti- 
mento mui  humano  também  o  fizera  approximar  á 
lórmosadama,  pois  que  vira  entre  as  pregas  da  man- 
tilha elegante  brilharem  dois  pretos  olhos,  como  es- 
trcllas  veladas  por  nurcm  rara. 


o  rANORA3IA. 


163 


Entraram  loiío  na  capella  ;  soaram  os  sinos  ,  e  o 
mcninn  Fclix  Paulo  ^"aldcs  foi  dcviJa  c  solemnc- 
mente  ba|)lisado  ,  inscripto  seu  nome  no  registo  pa- 
rochial  de  N/  Sr/  de  la  V(>!;a  ,  a  par  dos  do  nobre 
fidalgo  D.  1'elix  ,  e  da  senliora  Paula  de  los  .Mon- 
tes. Nada  mais  pódealcanrar  o  nosso  cavalheiro  na- 
quella  occasião  a  respeito  de  sua  linda  equasimys- 
leriosa  comadre,  e  se  quiz  obter  permissão  de  visi- 
ta-la teve  de  usar  do  seguinte  estratagema.  —  Ao 
descer  pressurosamente  da  eminência,  acompanhan- 
do a  senhora  e  a  cigana  ,  encontrou  os  magotes  do 
povo  que  se  recolhia,  o  lembrando-se  de  por  á  pró- 
Ta  o  rigorismo  dellcs  ,  convidou-os  para  no  dia  se- 
guinte assistirem  ao  banquete  pelo  baptismo  do  no- 
vo afilhado  :  tão  gololões  como  lanaticos,  sem  repa- 
ro de  se  contradizerem,  acccitarara  promptos  o  gra- 
to offerccimento  ;  e  depois  de  por  entre  dentes  sol- 
tar ura  cpitheto  que  caractei-isava  a  turba  ,  D.  Fé- 
lix passou  a  convidar  a  juvenil  madrinha  ,  que  não 
pôde  recusar-se  a  uma  festa,  dada  em  obsequio  delia. 

Separaram-se,  nolificando-se  a  reunião  para  o  dia 
iraraedialo  no  easlello  de  la  Vega  ,  e  D.  Félix  veio 
á  sua  pousada.  —  Ainle  c  quatro  horas  depois  teve 
logar  o  banquete;  a  linda  madrinha  fora  obsequia- 
da com  honras  quasi  reaes  no  castello  de  la  Vega  , 
e  I).  Félix  fizera  dois  descobrimentos  que  consigna- 
remos neste  logar  : —  o  primeiro,  concernente  ámar- 
queza  de  la  Puebla  de  los  Montes,  da  qual  soubera 
quanto  cubiçíira  saber  :  era  uma  senhora  da  princi- 
pal nobreza  do  Madrid,  e  viuva  :  o  segundo  desco- 
brimento dizia  immediatamente  respeito  ao  próprio 
B.  Félix  ;  advertira  que  se  achava  perdido  de  amo- 
res por  I).  Paula. 


Longe  dos  olhos,  longe  do  coração;  diz  o  adagio. 
Tanto  mais  conhecera  este  axioma  a  bella  Francisca 
Fernandez  ,  quanto  os  zelos  haviam  tomado  assento 
em  seu  coração  desde  o  momento  em  que  de  seu 
esposo  se  apartara.  Sabendo  que  D.  Félix  tão  fraco 
era  d'anectos  quanto  fácil  de  apaixonar-se  ,  emprc- 
hendêra  com  bastante  custo  uma  jornada  indispen- 
sável para  negócios  de  familia  :  e  ao  mesmo  tempo 
que  fazia  todo  o  possível  por  abbreviar  sua  ausên- 
cia ,  fingia  prolonga-la  para  dar  a  seu  marido  ou  o 
prazer,  ou  a  licção  de  uma  sorpreza.  ISo mesmo  dia 
em  que  emprehcndeu  voltar  a  Vega,  escreveu  a  D. 
Félix  que  sn  ao  cabo  d'um  mez  poderia  ter  o  gos- 
to da  sua  vista.  Porem  ao  chegar  ao  castello  foi  el- 
la  a  sorprehendida  em  vez  daquelle  que  pertendia 
tomar  de  sobresalto. —  D.  Félix  no  dia  antecedente 
partira  sem  dizer  para  onde,  nem  quando  tornaria, 
e  sem  abraçar  seus  filhos  que  entregara  a  mãos  mer- 
cenárias: não  contara  com  a  hospeda,  e  fácil  c  ima- 
giuar-se  que  suspeitas  entrariam  no  animo  de  D. 
Francisca  :  perguntando  a  quantos  encontrava  com 
a  sagacidade  própria  do  ciúme  exaltado,  não  tardou 
que  soubesse  a  aventura  da  capella,  eeste  fio  a  con- 
duziu á  morada  da  cigana.  Interrogada  esta,  inno- 
«entemente  relatou  a  historia  de  seus  accidentaes 
bemfeitorcs;  e  que  por  vezes  a  visitaram,  distri- 
buindo-Ihc  dádivas  até  que  a  marqueza  annunciára 
sua  partida  para  a  corte. —  «E  comeffeito  partiu.... 
perguntou  a  esposa  de  D.  Félix  sobrcsaltada. » — 
"Antes  d'hontcra  :  respondeu  a  mulher  :  e  sem  per- 
ceber o  efTeito  de  sua  declaração  ajuntou  —  «O  Sr. 
Vle  la  Vega  veio  de  tarde  fazer-me  a  mesma  per- 
gunta ;  creio  que  lambem  partiria ,  porque  não  tor- 
íiei  a  vê-lo. —  Não  inquiriu  Francisca  mais  noticias  ; 


comprehendcu  o  enigma  ;  fez  esmola  á  cigana  ;  e 
sem  resfolgar  oamirdiando  direita  ao  castello  ,  bra- 
dou .i  entrada  a  seus  criados: — Já,  cavallos  apa- 
relhados, cavallos  promptos ;  carruagem  a  caminho, 
quero  sahir  já  ;  que  seum  pai  noaccesso  de  paixão 
desordenada  pôde  csquecer-se  de  seus  filhos,  a  mãi 
também  só  pôde  esqucce-los  no  desesperado  auge 
do  ciúme. 

.     ■  ,••  .    .  3.'  ■•     ■ 

Á  entrada  de  uma  rua  estreita  de  Madrid  ,  con- 
tigua á  porta  de  Guadalajara,  uma  lanterna  pendu- 
rada defr(]ntc  do  nicho  de  S.Fernando  despedia  va- 
cillante  luz  e  soturna:  ao  clarão  débil  e  intercaden- 
tc  via-se  ura  cavalheiro  ,  de  estatura  baixa ,  com 
sombreiro  carregado  sobre  os  olhos ,  mascarado  ,  e 
de  esi)ada  á  cinta;  passeava  lentamente,  parando  a 
intervallos,  para  advertir  se  era  observado.  Tão  so- 
cegada  c  silenciosa  estava  aquella  rua  ,  como  agi- 
tadas as  demais  da  tumultuosa  capital  :  o  embuçado 
já  começava  a  inquictar-se  porque  só  trevas  descu- 
bria  e  tudo  era  mudo  ;  eis  que  outro  cavalheiro  , 
mascarado  também,  de  figura  e  aspecto  cm  tudo  si- 
railhantes  ,  approxima-se  deliberadamente  ,  e  met- 
tendo  mão  aos  copos  da  espada ,  diz  com  voz  temie 
mas  resoluta. 

«Que  fazeis  aqui,  senhor?» 

«Faço  o  que  não  tenho  tenção  de  explicar.»  — 
replicou  o  passeante  com  mais  soberba  que  firmeza. 

<t Sc  não  tendes  tenção  de  o  declarar,  necessito 
eu  sabè-lo.  »  E  o  tom  da  voz  era  já  ameaçador. 

O  primeiro  fez  um  movimento  d'espanto  ,  acom- 
panhado de  gestos  d'indignação,  c  indiciava  reunir 
todo  o  seu  valor  para  pedir  ao  inesperado  interlo- 
cutor que  se  retirasse.»  —  «Era  o  mesmo  que  iape- 
dir-vos  ,  cavalheiro  ,  [replicou  o  segundo]  necessito 
de  aqui  estar  só,  onde  espero  outra  pessoa.»  — 

—  «Também  cu  espero;  e  se  o  não  levais  a  iiial 
aguardaremos  ambos.»  — 

—  «Digo-vos  que  não  pôde  ser...  Segui  vosso  ca- 
minho por  vontade  ;   que  senão  o  fareis  por  força.» 

Esta  ameaça  proferida  insultuosamente  fez  sem 
duvida  subir  ao  rosto  do  primeiro  passeante  todo  o 
calor  do  sangue  hispano  que  lhe  corria  nas  veias  ; 
porquanto  sem  consultar  se  as  próprias  forças  Ihi! 
permittiriam  arrostar  com  o  provocador,  metteu  tre- 
mulo de  raiva  mão  a  espada  :  o  outro  o  imitou  lo- 
go ,  como  desejoso  de  levar  as  cousas  ao  peor  ex- 
tremo ;  c  ambos  se  acharam  em  guarda  ,  frente  u 
frente,  cubiçosos  de  vingança,  como  doisrivaes  que 
sem  conhecer-se  presumem  que  o  são  ,  e  reccau)  , 
não  obstante ,  desfechar  o  primeiro  golpe ,  quacs 
meninos  que  se  espantam  do  sangue  derramado.  As- 
sim os  dois  reciprocamente  se  esforçavam  porcncu- 
brir  a  turvação  de  espirito  sob  as  apparcncias  da 
cólera.  Novo  e  pungente  insulto  da  parte  do  provo- 
cador poz  termo  á  indecisão  :  alçaram-se  os  braços, 
e  os  ferros  se  cruzaram. —  Apenas  durou  um  minu- 
to oduello;  ao  cabo  delle  o  primeiro  cavalheiro  me- 
diu o  chão  ,  soltando  ura  grito  ,  que  fez  estremecer 
o  outro  :  accudiu  o  vencedor  a  eertificar-se  de  (jue 
o  seu  adversário  tão  somente  n'uma  das  mãos  fora 
ferido  ,  e  inclinando-se  lhe  disse  ao  ouvido  :  — 

—  «Marqueza  de  la  Puebla  de  los  Jlontcs,  have- 
mos desempenhado  o  nosso  papel  tão  bem  ou  me- 
lhor que  homens.  Lembrai-vos  que  vos  feriu  na  mão 
aquella  a  quem  feristes  no  coração.»  — 

Neste  relance  apparcceu  nova  personagem  na  rua 
de  S.  Fernando:  Francisca,  que  reconheceu  D.  Fé- 
lix, correu  a  ellc,  Irarou-lbe  do  braço,  e  mostrou- 


164 


O  PANORAMA. 


lhe  a  marqucza  dcsiDaiada ,  que  ^>or  ordem  sua  era 
)(;vadu  por  dois  creados. 

■  — uUnia  hora  mais  tarde,  a  mataria,  disse  a  cio- 
sa hespaulioia)  —  Vós,  scnhur,  ainda  |)odcis  ser  di- 
j;no  do  mira  :  vinde  pcdir-iiie  perdão  ,  e  ver  nossos 
lilhos.  » 

Ahalido  pelo  sobrcsallo  e  conliisão  .  D.  Félix  se 
deixou  guiar  por  sua  consorte,  como  o  menino  por 
sua  mãi.  .\arn)u-lhe  elfa  o  como  soubera  da  sua 
partida  da  ^'e.í;a  em  seguimento  da  niarqueza  ;  co- 
mo os  descubrira  e  espiara  cm  Madrid  nas  funcrões 
do  carnaval  ,  e  os  colhera  na  primeira  entrevista  , 
designada  para  a  rua  de  S.  Fernando  ;  c  a  liual  co- 
mo havia  consummado  sua  vingança  ,  prevenindo  a 
deshonra.  —  L>.  F'el!X  ,  mais  leviano  do  que  culpá- 
vel ,  mereceu  iuimediatamentc  o  seu  perdão.  Pas- 
sados nove  raezes  depois  desta  reconciliação  intei- 
ramente hespanhola  nasceu  I).  Lope  de  Vega  Car- 
piu ,  o  primeiro  poeta  dramático  do  seu  século. 

Este  homem  insigne  comprazia-se  em  repetir  ás 
vezes  que  por  pouco  cbtivcra  o  não  ser  fillio  de  sua 
iiiãi ;  e  accrcsccntava  qne  o  lilho  da  cigana  de  Car- 
riedo  era  o  celchre  Félix  Paulo  Valdês  :  o  melhor 
interprete  de  suas  obras,  e  primeiro  trágico  d'J!es- 
panha. 

Quanto  á  marqucza  de  la  Puchla  de  los  Montes  , 
aproveitando  a  seu  raodo  a  terrível  licção  de  Fran- 
cisca, rccoHicu-se  a  um  mosteiro  de  freiras  em  Ma- 
drid, onde  chegou  á  dignidade  d'abhadeça  ;  c  ainda 
ha  poucos  annos  nelle  mostravam  o  seu  retrato,  lacil 
de  reconhecer  pela  funda  cicatriz. na  mão  direita. 


MAFOMA. 


PoK  certo  que  não  seria  desprovido  de  natural  ta- 
lento e  sobeja  andacia  ,  apesar  da  falta  d'educação 
de  sua  mocidade  ,  nm  lumiem  que  crcou  ,  e  impoz 
a  muitos  milhiics  dlionicns,  uma  religião  nova.  Te- 
nacidade na  pro.Hcução  <las  enqjrezas  ,  actividade 
c-  [icrspicacia  .  fi.ram  sem  duvida  os  dotes  do  falso 
pr<ipheta  ,  Maíoira  ,  roinn  lhe  chamámos  .  ou  Abul 
Kasem  Ibn  .Mídaljab Muhan;nicd,  como  c  o  seu  ver- 
dadeiro nume.  Nasceu  este  individuo  extraordinário 


em  Meca  ;  segundo  alguns,  aos  10  de  novembro  de 
o70 ,  c  conforme  outras  ancíoridades  .  aos  21  d'a- 
bril  de  iui.  Foi  filho  único,  e  seu  pai  pertencia  á 
familia  llasbem  ,  ramo  mui  distincto  da  nobre  tri- 
bu  de  ICo-.cish  ,  que  presumia  descender  directa- 
mente de  Ismael,  reputado  progenitor  da  casta  ará- 
bica ;  e  que  tinha  adquirido  dclerminado  predomí- 
nio sobre  as  tribus  circuravisinhas.  tanto  pela  opu- 
lência que  lhe  facilitava  o  grosso  cummercio  que 
faziam  ,  como  porque  eram  os  guardiões  hereditá- 
rios do  culto  arábico.  Osanctorcsraahomctanos  não 
deixaram  de  inventar  prodígios  annunciadores  do 
nascimento  de  Maforaa  ,  assim  como  fabulados  mi- 
lagres que  em  vida  lhe  altribuiram  ;  o  que  de  boa- 
mente largámos  á  credulidade  de  seus  cnlhusiasma- 
dos  sectários. 

Logo  na  meninice  Jíaloma  licou  orphão  de  pai  c 
mãi  ,  e  o  tomou  para  si  seu  idoso  avô  ,  principal 
ministro  da  Kaaba  ,  a  quem  succedeu  no  cargo  ,  c 
tutoria  da  crcança  ,  Abu  Taleb  ,  lio  desta.  Mafoma 
fez  com  seu  lio  algumas  jornadas  ás  grandes  feiras 
da  Syria,  e  correu  vários  passos  da  vida  de  contra- 
bandista ,  em  que  a  sua  astúcia  se  desenvolveu  : 
aos  vinte  annos  entrou  n'uma  expedirão  contra  as 
tribus  predatórias  que  roubavam  as  caravanas  de 
Meca  :  aos  24  casou  cora  uma  rica  viuva  desta  ci- 
cade  ,  alliança  que  o  melteu  de  posse  de  muita  có- 
pia de  cabedaes.  Nas  viagens  á  Syria  cultivara  seu 
talento  ;  porem  do  tudo  o  que  maior  impressão  lhe 
fez  foi  observar  a  adoração  que  assim  os  christãos 
como  os  judeus  tributam  a  Deus  uno  e  indivisível  , 
ao  passo  que  os  seus  patrícios  d'Arahia  tinham  as 
paredes  da  Kaaba  cobertas  de  idolos  :  traçou  desde 
então  mudar  a  lei  do  jiovo  em  qne  nascera.  Tendo 
ou\ido  com  admiração  muitas  passagens  da  santa 
ISililia  ,  dotado  de  viva  imaginação  ,  fez  uma  niis- 
cellanea  das  verdades  e  factos  da  Historia  sagrada 
com  os  delírios  de  sua  cabeça,  e  as  tradições,  con- 
tos, e  visões  orienlacs,  que  abundavam  no  seu  paiz 
natal  ;  c  assim  compilou  o  disparatado  livro  ,  dito 
Al-Koran  ,  onde  todavia  se  encontram  preceitos  de 
saã  moral,  e  em  meio  de  absurdos  algumas  allego- 
rias  engenhosas.  Querem  auctores  que  neste  traba- 
lho fosse  ajudado  por  nm  monge  grego  ,  fugido  de 
Constantinopola  por  seguir  a  heresia  de  Nestorio. 
Verdade  c  que  muitos  dizem  que  não  sabia  lèr  , 
nem  escrever;  mas  querem  outros  que  lingia  esta 
ignorância  para  melhor  representar  o  papel  de  ins- 
pirado ,  e  que  o  tal  monge  era  o  seu  amanuense. 
Seja  como  fór  ,  por  audácia  ,  enthusiasmo  visioná- 
rio, força  de  riquezas,  c  auxilio  do  poderosa  paren- 
tela, fez-se  conquistador,  legislador,  e  porlim  ou- 
sou inciilcar-se  prophcta  e  em  iado  de  Deus,  tiran- 
do até  partido  da  moléstia  de  c|)ile|isia,  de  que  era 
por  vezes  assaltado,  capacitando  os  crédulos  que 
os  accidentes  eram  cxtascs  em  que  recebia  revela- 
ções divinas  por  mensagem  do  anjo  S.  Gabriel.  Pe- 
lo terror  das  armas  propagou  depois  a  religião  mixta 
que  fundara  ;  no  que  etlicazmente  foi  auxiliado  por 
seu  sogro,  c  seus  parentes;  distingnindo-se  Ali  e 
Ornar,  cabeças  das  duas  prineipaes  seitas,  em  que 
se  subdivide  boje  o  islamismo  ,  seguindo  os  persas 
o  rito  do  primeiro,  e  os  turcos  as  práticas  altrilnii- 
das  ao  segundo. 

Não  obstante  tamanhos  recursos ,  experimentou 
Mafoma  ao  principio  contrariedades  ,  c  até  perse- 
guições ;  da  sua  fugida  de  Mera  (hégira]  fizeram 
os  árabes  uma  nova  era  .  donde  computam  o  tem- 
po. Porem  se  o  embusteiro  sahiu  de  Meca  expulso, 
entrou  eui  Medina  triuropbanlc  ,   c  desde  então  da- 


o   FANORAÍIA. 


16S 


iam  as  suns  façnnhns  friicrrcir.is  :  tal  influencia  ob- 
lovo  ,  que  l)a.vlar;i  dizer  que  daiido-liio  a  mania  de 
Msilar  a  Kaalia  ,  pouco  tempo  antes  da  sua  moitc  , 
"  acompanharam  nesta  pcrciirinação  mais  de  cem 
mil  pessoas.  Era  homem  de  costumes  devassos  ,  a 
que  dava  falsas  cores  cxcogilando  pretextos  para 
enganar  acerca  de  suas  más  qualidades  a  nniUidão, 
que  o  acreditava  :  com  os  des[)ojos  de  rápidas  e  ex- 
traordinárias conquistas  enriqueceu  os  seus  prose- 
lyios.  Morreu  cercado  das  honras  de  seu  bárbaro 
povo  aos  8  de  junho  de  (iáá  ,  dizem  que  cm  resul- 
tado de  veneno  que  uma  judia  para  vingar  a  mor- 
te de  seu  irtiião  lhe  ministrara ,  prepaiando-lhe 
umas  costeletas  do  carneiro. 

Dos  ritos  ,  festas ,  vários  pontos  de  crença  ,  o  iia- 
liitos  dos  scqua/es  de  Mafoma  ,  temos  escriplo  em 
diversos  n.""  deste  Jornal. 


Cunsideracões  sobre  o  Curso  d' Economia  Politica,  pu- 
blicado em  Parit  em  1842  pelo  Sr.  Miguel  Cheva- 
lier. 

IV. 

Torno  a  atar  o  fio  das  minhas  ideas  ,  roslringindo- 
nie  ás  instiluirõe?;  de  credito  ,  e  digo  que  não  só  á 
agricultura  ,  a  outros  ramos  da  economia  nacional 
devem  estender  o  seu  inlluxo.  Insistindo  n'esta  ge- 
neralisação  do  principio  do  credito  ,  o  meu  fito  c 
não  deixar  immoveis  nem  ini[)roduclivos  nenhuns 
dos  capitães  que  existem  no  reino  ,  grandes  ou  pe- 
quenos ,  e  não  só  os  capitães  que  estão  em  forma 
de  moeda  ,  que  são  os  menores,  todos  os  outros  de 
differente  espécie  que  são  os  mais  consideráveis  ,  e 
iinportantes  pelo  seu  valor  total  :  porque  tomando-os 
eomo  unidade  ,  o  dinheiro  capilalisado  equivale  a 
uma  fracção  decimal  muito  afastada  d'essa  unidade. 

Partindo  d'este  pensamento,  e  applicando-o,  pri- 
meiro, aos  capitães  pecuniários  ,  acho  seria  de  pro- 
Treito  incalculável  que  essas  mesmas  somraas,  assaz 
avultadas,  que  os  negociantes  e  pessoas  ricas,  c 
também  as  estações,  e  estabelecimentos  particulares 
costumam  ter  de  reserva  cm  seus  cofres  sem  dar- 
Ihe  destino  [iroductivo  ,  se  depositassem  n'um  ban- 
co o  qual  segurando  o  deposito  de  todo  o  risco  e 
accidcnte  se  encarregasse  de  fazer  quaesquer  paga- 
mentos auctorisados  á  ordem  escripta  dos  deponen- 
tes até  á  importância  das  quantias  depositadas  ;  e 
em  uma  palavra  ,  servisse  de  seu  caixeiro  ,  rece- 
besse e  pagasse  por  conta  d'elles  sem  exigir  cora- 
missão.  Para  indemnisar  o  banco  tanto  do  seu  tra- 
balho como  dos  riscos  e  perdas  a  que  se  aventura- 
ria ,  serviria  aquella  parte  das  quantias  depositadas 
que  os  deponentes  não  reclamassem,  a  qual  poderia 
ser  empregada  em  descontar  leiras,  ou  cm  qualquer 
outra  operação  mercantil  em  proveito  e  sob  a  res- 
ponsabilidade do  mesmo  banco. 

K  verdade  que  o  banco  de  Lisboa  está  usando 
esla  prática  lUilissima  ,  mas  com  muito  menos  be- 
neficio geral  do  que  deveria  ser;  t)orque  nem  a 
maior  parte  das  reservas  dos  particulares  ,  nem  dos 
cofres  perlencentes  a  eslabelecimentos  públicos  ou 
outros  .  lá  eslão  concentrados  ,  como  foca  para  de- 
sejar. Talvez  não  fosse  desacertado  que  para  outros 
pontos  commerciaes  do  reino  ,  onde  a  níTluencia 
do  numerário  desempregado  pedisse  este  expedien- 
te .  depulasseni  cada  um  dos  dois  bancos  de  Lisboa 
c  Porto  caixas  Cliaes  ,  no  ÍQlui'.o  de  recolher  e  tor- 


nar fecundas  as  reservas  mctallicas  que  por  hi  an- 
dassem dispersas:  c  senão  agora,  de  futuro,  pelo 
menos  ,  não  se  deve  ,  me  parece  ,  abrir  mão  d'esle 
alvitre.  A.  creação  ,  para  este  fira,  de  outros  esta- 
belecimentos, alem  dos  que  lemos,  não  aconselho, 
nãc  só  porque  o  giro  das  transacções  do  paiz  é  li- 
mitado como  cllc  ;  mas,  principalmculc  ,  porque  o 
credito,  base  essencial  das  instituições  de  que  me. 
estou  occupando  ,  não  se  conquista  de  assalto  ,  ins- 
pira-se  com  o  decurso  do  tempo ,  cora  a  permanên- 
cia, com  o  bom  desempenho  e  o  bom  succcsso  r  cir- 
cuiiistancias  que  só  se  reúnem  em  estabelecimentos 
fundados  de  longos  annos. 

b'csle  expediente  que  acabo  de  suggerir  que  não 
é  senão  a  inulação  do  que  se  pratica  em  Inglaterra 
com  tanta  utilidade,  c  o  desenvolvimento  da  nossa 
prática  própria  ,  resultaria  ,  alem  de  outras  vanta- 
gens que  não  enumero  ,  esta  que  a|)prcsento  isolada 
para  melhor  sobresahir  ;  c  vem  a  ser  —  lançar  na 
circulação  commcrcial  capitães  que  o  não  eram,  por- 
que estavam  inactivos ,  c  contribuir  por  cllcs  jwcíi  o 
profiresso  da  riqueza  publica  e  particular. 

Como  estas  reservas  de  negociantes  ,  pessoas  ri- 
cas ,  e  estabelecimentos  públicos  e  particulares  ha 
otitras  reservas  oti  antes  parcellas  pecuniárias  tenuís- 
simas e  impotentes  na  isolação  em  que  se  acham  , 
mas  que  cliaínadas  a  uni  ou  mais  centros  ,  e  mclti- 
das  no  movimento  productivo,  constituiriam,  por 
serem  muitas  era  numero  ,  um  capital  de  grande 
importaucia.  São  as  economias  que  formam  as  clas- 
ses pobres  ,  os  operários  e  trabaliiadores  de  ambos 
os  sexos  que  espalhadas  por  tantos  milhares  de  mãos 
não  podem  convertcr-se  cm  instrumento  de  (iroduc- 
eão  para  seus  donos,  nem  prestar  á  industria  do 
paiz  os  avanços  de  que  eila  carece  a  cada  momento. 
E  essas  economias  poderiam  concen'rar-se  e  utili- 
sar-se  pela  fundação  de  caixas  cconoiuicas.  Do  mo- 
do de  orgauisar  as  ultimas  nada  accresccnlarei  a 
um  trabalho  meu  que,  ha  alguns  annos,  foi  publi- 
cado, e  só  direi  que  de  todos  os  paizes  da  Europa, 
com  excepção  talvez  da  Rússia,  onde  ignoro  se  exis- 
tem estabelecimentos  d'esta  natureza  ,  Portugal  é  o 
único  que  ainda  os  não  possue.  E  não  os  possiic 
porque  liic  faltem  elementos  para  isso,  ou  porque 
seja  complicado  e  dillicil  de  coniprchender  o  me- 
chanismo  dos  mesmos  estabelecimentos:  pelo  con- 
trario sobram-lhe  os  elementos  ,  e  cousa  mais  fácil 
do  que  o  mcchanismo  das  caixas  não  é  possível  ha- 
ver. Bastava  boa  vontade  n'uma  dúzia  de  indivíduos 
ricos ,  inUueutes  e  respeitáveis  das  duas  cidades 
priucipaes  do  reino  ,  ou  ainda  mesmo  n'um  ou  dois 
chefes  de  estabelecimentos  iiidustriaes,  para  as  cai- 
xas se  fundarem  em  Lisboa  e  Porto.  Fundadas  nes- 
tes dois  pontos,  lavraria  bem  depressa  n'outros  o 
exemplo  ,  mesmo  sem  intervenção  e  auxilio  de  lei 
que  seria  conveniente,  mas  não  é  indispensável,  e 
então  cederia  Portugal  do  privilegio  que  ainda  con- 
serva, sem  que  lho  inveje  ,  supponho  eu  ,  nenhuma 
nação  ,  de  estar  mais  atrazado  n'csta  matéria  do 
que  a  Jioruega  ,  a  Hespardia  e  o  Brazil. 

Cora  a  adopção  do  systema  dos  depósitos  avulta- 
dos no  banco,  e  dos  depósitos  diminutos  nas  caixas 
económicas,  poucas  reservas  ou  valores  pecuniários 
das  classes  abastadas,  ou  das  que  o  não  são,  ficariam 
por  capitalisar. 

Restara,   paralyticos  como  já  adverti,   alem  dos 

pecuniários,  outros  valores,  de  dilTcrente  es|)ecie,  e 

I  de  muito  maior  monta  ,    aos  quacs   deveria  também 

i  imprrmir-se   o   movimento   da  rotação   commcrcial. 

i  O  modo  de  o  conseguir  vou  explicas  com  o  excin- 


166 


O  PANORAMA. 


pio  de  Inglaterra  apontado  no  Diccionario  do  Com- 
mercio,  artigo  =DocLs=,  donde  o  tirei.  Em  In- 
glaterra logo  que  entra  nos  armazéns  d'estcs  por- 
tos íiclicios  [não  lhe  chamo  tercenas,  porque  comeste 
Tocabulo  daria  unia  idca  imperfeita  doqueellcs  são] 
uma  carregação  completa  ,  ou  uma  porção  de  mer- 
cadorias, assucar,  chá,  café,  algodão,  bebidas  espi- 
rituosas &c. ,  a  administração  entrega  ao  deponente 
um  certificado  (warrantj  em  que  attesta  a  nature- 
za, a  qualidade,  c  aquanlidade  ou  o  peso  das  mer- 
cadorias c  a  sua  procedência.  O  proprietário  d'este 
titulo  pôde  negocia-lo  por  endosse  ,  troca-lo  a  di- 
nheiro ,  consigna-lo  cm  penhor  de  um  empréstimo  , 
c  com  cHe  emprehender  quaesquer  operações  com- 
Dierciaes,  sem  ter  que  pagar  direitos  de  alfandegas 
nem  despezas  do  transporte  ,  e  sem  se  aventurar  a 
Tendas  precipitadas  ,  a  baixas  e  aos  accidentes  va- 
riadíssimos dos  preços  ,  e  um  valor  que  sem  este 
recurso  do  credito  seria  morto  e  improduclivo  por 
algum  tempo  ,  com  elle  circula  desde  logo  com  a 
rapidez  de  uma  letra  de  cambio  em  beneQcio  de 
seu  dono,  e  do  commercio  nacional. 

O  expediente  que  acabo  de  referir  poderia  ,  até 
certo  ponto  ,  ser  praticado  em  Portugal ,  e  amplia- 
do talvez  a  muitos  casos  cm  que  os  géneros  c  mer- 
cadorias se  acham  ,  por  alguma  circumstancia  ,  se- 
questrados da  circulação.  E  meio  ,  engenhoso  cer- 
tamente ,  de  as  mobilisar.  Mas  se  é  util  este  me- 
Ihodo  de  mobilisar  as  mercadorias,  porque  não  será 
[dir-me-hão]  igualmente  proveitoso  algum  outro  aná- 
logo de  mobilisar  os  bens  de  raiz?  Emthcse,  não  ha 
duvida,  se  alíigura  de  vantagem  incalculável  repre- 
sentar estes  bens  por  um  papel  que  girasse  com  a 
mesma  presteza  que  as  letras  de  cambio  ou  as  notas 
de  banco:  ditTerentes  projectos,  mais  ou  menos  es- 
peciosos ,  tem  apparecido  com  este  pensamento  e 
intuito  :  nem  agora  me  deterei  eu  a  reproduzi-los. 
1'óde  ser  que  da  sua  execução  pendam  os  brilhan- 
tes destinos  que  estão  reservados  ,  ou  promettidos  , 
ás  sociedades  futuras.  Síasque  outros  tentem  a  aven- 
turosa experiência  :  nós  devemos  ficar  de  observa- 
ção ,  á  espera  do  resultado,  para  nos  guiarmos  por 
elle.  Promova-se  a  circulação  da  propriedade  rural 
ou  dos  seus  productos  ,  abrindo  estradas,  e  canaos. 
r>epresente-se  o  mobilise-se  aquclla  parte  da  mes- 
ma propriedade,  com  que  se  hão-de  pagar  os  avan- 
ços feitos  á  cultura  ,  por  uma  moeda  papel  como 
propozemos.  Mas  não  ensaiemos  uma  mobilisação 
completa  c  absoluta  ,  com  receio  ,  como  exprimiu 
I>egerando,  de  que  a  escrava  ha  pouco  emancipada 
das  cadèas  feudaes  —  a  terra  —  não  vá,  como  o  li- 
berto licencioso  ,  embriagar-sc  nas  orgias  da  agio- 
tagem ,  ou  perecer  nu  abysmo  das  lotcrias  ! 

Similhanle  á  que  se  usa  com  as  mercadorias  na 
Inglaterra  ,  ha  entre  nos  uma  mobilisação  ,  que 
é  a  dos  ordenados  vencidos  dos  empregados  ])ubli- 
Gos  ,  c  se  realisa  por  muio  de  um  titulo  que  se 
lhes  entrega  c  elles  podem  negociar.  5!as  em  ri- 
gor não  são  ordenados  que  assim  se  mobilisani  :  o 
<(ue  de  leito ,  postoqiie  indíreclamentc ,  se  mette 
em  giro  é  aquella  parte  da  propriedade  rústica  e 
urbana  ,  e  do  trabalho  donde  sabem  os  impostos  , 
com  os  quaes  se  hão-do  pagar  os  vencimentos  do 
servidor  do  estado.  Esta  mobilisação,  parcial  c  in- 
directa ,  é  util  ao  credor  ,  sem  ser  damnosa  á  ri- 
(|ueza  publica.  Outra  ha  porem  ,  cujos  resultados 
desastrosos  nos  devem  precaver  contra  a  latitude 
demasiada  e  o  abuso  deste  recurso:  —  a  mobilisa- 
ção do  trabalho,  dos  capitães,  da  propriedade  de 
íiossos  filhos   c  netos  operada   por  empréstimos  rui- 


nosos. Mobilisa-se  assim  ,  na  verdade  ,  completa- 
mente, e  representa-se  com  papeis  de  credito  a  for- 
tuna antecipada  das  gerações  futuras  :  mas  alienam- 
se,  vendem-se,  sujeitam-se  a  uma  escravatura  hor- 
rorosa ,  por  este  meio  iniquo,  quando  é  desordena- 
do ,  essas  gerações.  Este  exemplo  c  um  aviso  per- 
manente contra  os  perigos  de  abraçarmos,  sem  dis- 
crição ,  tão  arriscado  recurso. 

(Continunr-sf-ha) . 
'1.:  •  '  A.  d'0.  Marreca. 


&útãn\cã. 

SOBBE   a   CAPRIFICAÇÂO  DOS  FIGOS. 

fConclusãn.) 

Os  FIGOS  caprificados  engrossam  c amadurecem  den- 
tro de  poucas  semanas  ;  os  cultivadores  tem  cuida- 
do de  os  colher  logo  ,  de  os  seccar  ao  sol  e  depois 
no  forno  ,  não  só  para  os  fazer  durar,  mas  também 
para  lhes  matar  os  germes  dos  insectos  nos  ovos , 
que  sem  isso  não  deixariam  de  dar  bichos  no  inte- 
rior dos  figos  :  maduros  ,  e  comidos  no  seu  estado 
fresco  não  deixam  de  ser  agradáveis  ,  mas  com  o 
calor  do  forno  perdem  muito  da  sua  delicadeza  e 
bom  gosto  ;  por  isso,  e  pela  sua  constrangida  ama- 
duração  geralmente  são  menos  estimados  do  que  os 
figos  não  caprificados  e  somente  passados  ao  sol. 

A  causa  porque  os  figos  caprificados  não  cahem 
e  amadurecera  mais  depressa  ,  tem  sido  variamente 
explicada.  Segundo  a  theoria  dos  antigos  philoso- 
phos ,  que  Plínio  nos  transmittiu  ,  dependia  da  di- 
minuição dos  suecos  lácteos  do  figo  verde  ,  que  o 
insecto  chupava  ,  auxiliada  pelo  ar  fertilisante  ,  e 
luL  do  sol  ,  que  entravam  pelo  olho  do  figo  aberto 
pelo  insecto  :  clles  pensavam  que  os  ditos  suecos 
eram  demasiados  ,  que  faziam  o  pé  do  figo  muito 
tenro  ,  que  pesavam  demasiadamente  sobre  elle  ,  e 
o  faziam  frágil  e  cahidiço  ;  mas  que  sendo  o  figo  , 
pelo  assim  dizer,  desmammado  na  sua  infância  mui- 
to cedo,  enrijava  no  seu  pé  mais  cedo  e  não  cabia: 
accrcscenlavam  ,  que  a  força  deseccativa  da  poeira 
das  estradas ,  c  do  vento  norte  ,  como  também  a 
magreza  dos  terrenos,  faziam  o  mesmo  que  os  inse- 
ctos ,  e  que  por  isso  as  figueiras  plantadas  em  laes 
situações  não  precisavam  de  ser  caprificadas.  Esta 
theoria  foi  seguida  por  muitos  botânicos  até  estes 
últimos  séculos,  c  ainda  por  J.  Uauhino  na  sua  eru- 
ditíssima Historia  dosvegetaes;  mas  ella  parece  in- 
compatível com  a  ordem  phvsica  da  vegetação  ;  por- 
que a  diminuição  dos  suecos  alimentares  deve  fazer 
emmagreccr  e  não  engrossar  ,  c  a  força  deseccativa 
deve  fazer  cahir  os  fructos  em  vez  de  os  suster  : 
pelo  contrário  ,  o  que  faz  acudir  mais  suecos  aos 
figos,  e  nelles  estabelecer  uma  fermentação  saccha- 
rina  ,  como  fazem  as  picadas  dos  insectos  ,  parece 
antes  ser  a  principal  c;iMsa  dos  figos  não  cahirem  , 
de  engrossarem  ,  c  de  am:iilureccrem  mais  depres- 
sa. Quando  os  figos,  tanto  bravos  como  domésticos, 
são  muito  numerosos,  de  modo  que  a  arvore  mater- 
na lhes  não  pódc  subministrar  a  porção  sullieiente 
de  suecos  ,  que  clles  exigem  para  se  nutrirem  ,  fi- 
cam pequenos  ,  enfezados  ,  e  muitos  delles  cahem 
pecos;  isto  mesmo  succede  ás  vezes,  ainda  não  sen- 
do muito  numerosos,  se  sobrevent  tempos  muito  sec- 
cos  ;  ou  quando  a  arvore  se  acha  doente  e  as  suas 
folhas  enferrujadas  ou  atacadas  domorilhão;  emlim 


o  PANORAMA. 


u: 


quando  as  folhas  siio  duras ,  velhas  e  caducas  ,  que 
já  não  podem  absorver  da  alniosphcra  fluidos,  nem 
bem  elabora-los  para  nutrir  os  ligos  ,  os  quaes  en- 
tão cahem  ou  apodrecem  ,  como  seralmeate  succe- 
dc  aos  do  outono. 

O  grainie  e  célebre  Liuneo  rellectindo  que  os  len- 
rinhos  germes  dos  fructos  ,  que  por  causa  das  chu- 
▼as  ,  geadas  c  outros  contrários  incidentes,  ou  por 
falta  de  pollen  dasantheras  dcflosculos  masculinos, 
não  são  fecundados,  ordinariamente  cabiam,  pensa- 
va que  o  mesmo  succedia  a  alguns  figos  domésti- 
cos ,  persuadido  de  que  estes  constavam  somente 
de  llosculos  femininos  ,  cujos  germes  dos  pistillos 
não  eram  fecvnidados  por  lhes  não  poder  de  fora  en- 
trar pollen  algum  ,  o  seu  olho  ou  orifício  achando- 
sc  na  florescência  nimiamente  fechado  :  pelo  con- 
trário ,  pensava  que  elles  não  cabiam  quando  eram 
caprilicados ,  isto  é  ,  quando  nos  ditos  pislillos  os 
mosquitos  espargiam  o  pollen  das  antberas  dosDos- 
culos  dos  figos  bravos  que  apegado  a  si  traziam  , 
fiosculos  que  elle  julgava  serem  todos  masculinos. 
.Cajtacitado  de  que  isto  assim  era  na  realidade  cha- 
mava ao  mosquito  ,  conductor  do  pollen  ,  o  cupido 
da  caprificarão,  eallcgava  este  facto  como  uma  pro- 
va mais  de  haver  sexos  e  geração  nos  vcgelaes ,  no 
que  foi  seguido  por  toda  a  sua  eschola.  Aias  boje 
alguns  botânicos  pensam  que  este  facto  ,  bem  longe 
de  ser  convincente,  é  muito  duvidoso,  e  mesmo  fal- 
so, como  se  pôde  reconhecer  pelas  rasões  seguintes. 
O  figo  bravo  [em  qualquer  estado  que  se  consi- 
dere, quando  delle  sabe  o  insecto]  deve  sempre  sup- 
por-se  ser  composto  de  sementes  férteis,  quer  o  in- 
secto nelle  se  tivesse  criado  até  á  sua  transformarão 
e  sabida  ,  quer  nelle  de  fresco  tivesse  entrado  para 
picar  as  tcnrinhas  sementes,  e  depois  disso  logi>  sa- 
hir  carregado  de  pollen  para  ir  picar  outras  em  ou- 
tros figos  ;  por  conseguinte  em  ambos  estes  casos  o 
figo  bravo  não  c  puramente  masculino  ;  no  primei- 
ro caso  o  insecto  criou-se  nas  sementes  ,  no  segun- 
do picou-as,  e  sahio  com  pollen  capaz  de  fecundar, 
isto  indica  um  figo  perfeitamente  monoico  ,  e  faz 
crer  que  igualmente  o  fosse  o  do  primeiro  caso. 

Quanto  ás  variedades  de  figos  domésticos,  que  se 
caprificam  ,  não  lia  prova  alguma  certa  que  nellas 
hajam  iudividuos  puramente  femininos  ;  antes  é  pro- 
vável que  lodos  são  monoicos ,  isto  c  ,  que  os  seus 
figos  contem  fiosculos  masculinos  e  femininos;  to- 
dos os  que  até  agora  se  tem  observado  em  Portugal 
assim  são  ;  ora  sendo  neste  paiz  ,  e  outros  de  tem- 
peratura similhante  ,  o  pollen  dos  outros  figos  mo- 
noicos suliicieiíle  ,  e  de  perfeita  qualidade  para  po- 
der fecundar  os  llosculos  femininos,  porque  não  se- 
rá assim  o  pollen  dos  fiosculos  dos  figos  caprilica- 
dos ,  ficando  superDuo  o  que  uelles  introduzem  os 
insectos?  Ha  toda  a  probabilidade  que  assim  succe- 
da  ;  e  se  isso  não  obstante  ,  cahem  quando  não  são 
caprificados  ,  a  causa  deve  attribuir-se  á  falta  sufiTi- 
ciente  de  suecos,  como  por  ella  succede  a  muitos 
outros  fructos  posto  que  bem  fecundados  ;  falia  que 
é  prevenida  com  as  picadas  dos  insectos,  que  fazem 
acudir  uma  allluencia  de  seiva  sulíiciente  para  bem 
nutri-los  e  suste-los.  Com  eiTeito  ,  as  picadas  com 
que  os  mosquitos  estragam  os  vasos  do  orilicio  do 
figo  e  do  germe  do  pistillo,  devem  na  verdade  occa- 
sionar  uma  grande  estravasação  dos  suecos,  que  en- 
tão em  grande  parte  devem  refluir  para  a  polpa  do 
figo  ,  e  faze-lo  engrossar  ;  o  ovo,  e  larva  do  insecto 
dentro  das  sementes  são  um  estimulo  continuado  , 
que  faz  entreter  a  afluência  seivosa  ,  como  observá- 
mos suçceder  na  formação   de  toda  a  sorte   de  i;a- 


Ihas  ,  ou  bugalhos  ;  o  ar  ,  luz  ,  c  calrtr  introduzido 
pelo  olho  do  figo  contribuem  ao  principio  para  que. 
se  não  cicatrizem  as  feridas,  paraoccasionar  inUam- 
mação,  e  por  fim  para  se  estabelecer  uma  certa  fer- 
mentação saccharina  ,  com  que  os  fructos  se  ado- 
çam ,  e  SC  aecelera  a  madureza  do  figo  ,  da  mesma 
sorte  que  succede  ás  peras,  maeaãs  c  outros  fructos 
picados  pelos  insectos  ,  e  succede  aos  mesmos  figos 
ainda  verdes,  quando  ferimos  e  alargámos  o  seu 
olho  com  um  alfinete,  palito,  ou  palha. 

Do  que  fica  exposto  se  deduz,  que  não  ó  a  fecun- 
dação dos  flosculos  dos  ligos,  quaesquer  que  sejam, 
feita  por  meio  do  pollen  dasantheras,  nem  é  o  con- 
terem clles  sementes  com  miolo,  a  verdadeira  cau- 
sa porque  deixam  de  cabir  e  vingam  bem,  mas  sim 
a  afluência  dos  suecos  necessários  para  a  sua  devi- 
da vegetação,  quer  estes  sejam  com  abundância  na- 
turalmente subministrados,  quer  artificialmente,  aju- 
dando-se,  ou  constrangendo-sc  a  natureza  a  subini- 
nistra-los,  quando  ella  quer  ser  mesquinha.  Em  In- 
glaterra, IloUanda,  Alemanha,  cem  todos  os  paizes 
frios  do  norte  da  Europa,  aonde  o  pollen  dasanthe- 
ras dos  figos  monoicos  se  não  pôde  bem  aperfeiçoar, 
as  sementes  são  estéreis  e  chochas,  mas  os  figos  me- 
dram o  vingam  muito  bem  ,  porque  a  natureza  alii 
lhes  dá  os  suecos  necessários  para  o  seu  pleno  cres- 
cimento c  madureza  ;  vemos  suçceder  isso  mesmo  a 
muitos  fructos  bastardos  ,  isto  é  ,  a  muitos  receptá- 
culos ,  pericarpos  ,  cálices  ,  e  outras  partes  acces- 
sivas  dos  órgãos  sexuacs,  e  das  sementes,  os  quaes 
pelos  suecos  competentes ,  e  forças  vitaes  podem 
crescer  e  vingar  bem  ,  sem  conterem  em  si  semen- 
tes férteis,  e  ás  vezes  mesmo  nem  vestígios  delias, 
como  as  bananas,  alguns  morangos,  algumas  laran- 
jas, peras,  uvas,  e  muitos  outros  fructos  denomina- 
dos sem  pevides. 


•, .:  DaPOTASSA..      ,,  ■    ,.       ,.r  ',( 

A  poTASSA  é  um  sal  alkali  fixo  ,  que  se  extrahe  das 
cinzas  das  madcirasqueimadas.  Fabrica-se  em  abun- 
dância na  Suécia  ,  l'olonia  ,  Dinamarca  ,  &c.  e  em 
todas  as  florestas  de  Allemanha. 

A  boa  potassa  oblcm-se  deixando  queimar  as  ma- 
deiras ao  ar  livre  ,  afim  de  que  a  sua  parte  gurda 
e  oleosa  se  dissipe ;  separnm-se  então  das  cinzas 
tanto  quanto  é  possível  os  carvões  que  vão  mistura- 
dos ;  e  a  agua  fria  que  serviu  a  lavar  estas  cinzas  , 
estando  suliicienlemente  carregada  deste  sal ,  filtra- 
se  e  cvapora-se  até  a  seccura  ;  e  logo  que  o  sal  es- 
tiver bem  secco  ,  aquece-se  em  uni  forno,  onde  se 
tem  algum  tempo  neste  estado  ,  sem  lhe  pcrmittir 
que  entre  em  fusão.  Esta  calcinação  lepete-se  taulo 
quanto  é  necessário  ,  o  que  fornece  por  este  meio 
um  sal  alkali  fixo,  livre  de  todo  o  phlogistico. 

Na  fabricação  do  salitre  ,  a  polassa  é  preferível 
ás  cinzas  ordinárias  de  que  vulgarmente  se  servem, 
por  diversas  rasões.  1.^  As  cinzas,  sendo  a  maior 
parte  o  refugo  das  outras  artes,  contém  muito  pou- 
co ou  nenhum  alkali  fixo.  2.^  A  cinza  occupa  um 
terço  da  capacidade  das  covas  na  qual  se  faz  a  le- 
xivia  ;  a  quantidade  de  terra  salilrosa  é  tanto  me- 
nor ,  e  delia  resulta  uma  diminuição  proporciona- 
da na  quantidade  de  salitre  que  se  oblem  ;  jior  ou- 
tra parte  ,  a  cinza  ,  que  é  um  corpo  jioroso  ,  releni 
em  pura  perda  uma  dissolução  de  salitre  proporcio- 
nada á  quantidade  de  agua  que  esta  cinza  é  susce- 
ptível de  absorver.  3.^  As  cinzas,  commummente 
impregnadas  de  muitas  partículas  gordurentas,   c 


168 


O  PANORAMA. 


estraclivas  de  matérias  que  só  podem  prejudicar  á 
qualidade  du  salilrc,  cmpatam-no  e  impedem-no  de 
bem  se  rrislalisar. 

È  pois  necessário  para  a  fabricarão  do  salitre  , 
não  por  no  fundo  das  covas  senão  uma  mui  pequena 
porção  de  cinza  para  servir  de  filtro ,  e  suíiitituir 
cresto  por  uma  addicão  de  polassa  ;  isto,  é  que  de- 
pois de  liaver  enchido  as  covas  de  terra,  põe-se  em 
cinza  na  abertura  destinada  a  levar  a  agua  a  quan- 
tidade de  potassa  que  se  quer  empregar,  depois  do 
que  se  faz  a  Icxivia  da  maneira  coslumnda  ,  c  en- 
tão a  agua  dissolve  a  potassa  ,  a  qual  ,  fillrando-sc 
atravcz  da  terra  ,  encontra  o  nitro  na  base  terrosa  , 
e  decorapondo-o  Iranslorma-o  cm  salitre  ;  em  pon- 
to ,  que,  se  a  quantidade  do  potassa  fui  bem  pro- 
porciunada  ,  a  Icxivia  que  correr  não  tem  agua 
amargosa. 

Só  as  terras  novas  é  que  se  tratam  por  meio  da 
potassa  ,  porque  sendo  lavadas  successivamente  por 
trcs  dillercntes  aguas  ,  nenhuma  potassa  restará  so- 
bre a  terra  que  por  ella  foi  tratada. 

G.  ....» 


MeTHODO   de  dar   a   cor    BRONZEAOi   AOS  CANOS 
DE    ESPI.\C,AIiDA. 

Os  ingredienips  que  entram  para  a  composição  que 
hade  produzir  esta  còr  são  os  seguintes: 

Acido  nilrico   ^  onça. 

Espirito  de  nitro  doce  ...  J^  onça. 

Espirito  de  vinho  1  onça. 

Vitriolo  azul  2  ditas. 

Tintura  de  aço  ou  ferro  ..  1  dita. 

Tendo  antecipadamente  dissolvido  o  vitriolo  era 
uma  sullicieule  quantidade  d'agua  ,  de  sorte  que  a 
totalidade  da  mistura  faça  2S  quartilhos,  mistu- 
ram-se  os  outros  ingredientes  ,  c  teremos  a  compo- 
sição com  a  qual.devemos  operar  para  se  obter  a 
eôr  bronzeada,  e  a  applicaremos  do  modo  seguinte. 

Primeiramente  limpar-se-ha  o  cano  da  espingar- 
da muito  bem  ,  de  qualquer  cousa  oleosa  ou  suja  , 
c  pondo-lhe  na  boca  uma  cavilha,  ou  rolha  do  páu, 
de  modo  que  o  vento  fique  bem  tapado,  se  lhe  da- 
rá a  sobredita  composição  com  uma  esponja  limpa  , 
havendo  cuidado  em  a  distribuir  cora  igualdade  pe- 
lo comprimento  do  cano,  depois  do  qual  se  deixará 
exposto  ao  ar  por  espaço  de  -li  horas,  passadas  as 
quaes  se  esfregará  hera  o  dilo  cano  cora  uma  esco- 
ra áspera  ,  e  com  ura  trapo  ,  para  que  a  superficie 
llquc  livre  do  oxido. 

Este  processo  será  repetido  segunda  ,  c  terceira 
Tez  [sendo  necessário]  e  assim  ficará  o  cano  com 
uma  perfeita  còr  abronzeada  ,  e  depois  de  bem  es- 
fregado cora  a  escova  ,  e  liem  lirapo  ,  metle-sc  era 
agua  a  ferver  ,  na  qual  previam;-'nle  se  terá  lançado 
uma  pequena  quantidade  de  matéria  alkalina  ,  afim 
de  destruir  a  acção  do  acidn  sobre  o  cano,  e  a  im- 
pregnação da  agua  polo  acido  neulralisado.  Quando 
o  cano  da  espingarda  se  tira  d'agi!a  ,  e  está  intei- 
ramente enxuto  ,  aliza-se  com  um  brunidor  de  páu, 
feito  de  madeira  bem  rija,  e  dá-se  ao  cano  um  grau 
de  calor  quasi  igual  ao  da  agua  a  ferver,  para  ficar 
prompto  a  receber  o  verniz  composto  dos  seguintes 
ingredientes  : 

Espirito  de  vinho  2Z  quartilhos. 

Sangue  de  drago  3      oitavas. 

Laca  de  conxa  moida..   1     onça. 

Dado  oTcruiz,  c quando  estiver  inteiramente  sue- 


co, esfrcga-sc  com  o  brunidor  para  lhe  dar  poli- 
mento e  lustro  fixo. 

O  uso  desta  composição  nos  canos  das  espingar- 
das dá  a  vantagem  de  os  conservar  por  mais  tem- 
po ,  livres  da  ferrugem  ,  e  dos  damnos  e  trabalho 
resultante  da  assídua  limpeza,  etorna-os  menos  ca- 
ptivos  e  de  mais  duração  :  hoje  é  quasi  geral  o  uso 
que  delle  se  faz  na  Europa  ,  e  até  se  pódc  applicar 
ás  peças  de  arlilheria  de  pequeno  calibre. 

Modo  de  restituir  e  conservar  a  sobredita  cír. 

Quando  o  cano  da  espingarda  está  muito  roçado 
em  consequência  do  uso  que  delle  se  tem  feito,  dá- 
se-lhe  um  pouco  de  acido  vitriolico  ,  e  praíica-sc  o 
que  deixámos  dito  no  processo  para  a  primeira  còr 
bronzeada  ,  tendo  precisamente  tido  o  cuidado  de 
enfraquecer  a  acção  do  acido  por  meio  dagua  fer- 
vendo. 

Aos  canos  bronzeados  que  tiverem  continuo  us<i 
pôde  conservar-se  constantemente  a  mesma  còr,  pon- 
do-lhe vinagre  que  se  deixará  na  sua  superficie  por 
espaço  de  ura  dia  ,  e  lavando-o  depois  muito  bem 
com  agua  a  ferver. 

Este  processo  sendo  repetido  mensalmente  con- 
serva a  còr  de  que  temos  fallado  ,  por  espaço  de 
muitos  annos. 

.  (r-,  ***^* 

Pais  barhnros. —  Kolff  na  viagem  doDourga  diz  : 
—  «Alguns  naluraes  da  >ova-Guiné  {•)  dignos  de 
credito  me  aliirmaram  que  se  ura  papua  da  costa 
cubica  alguns  dos  géneros  levados  pelos  negocian- 
tes estrangeiros  ,  e  não  tera  outros  da  terra  que  dè 
era  troca  ,  não  hesita  em  pegar  de  um  ou  dois  de 
seus  filhos  e  permuta-los  pela  fazenda  que  deseja  : 
e  se  acaso  os  íilhos  não  estão  alli  á  mão  no  acto  do 
ajuste,  pede  os  rapazes  emprestados  a  qualquer  vi- 
sinuo ,  promettendo  dar-lhe  outras  tantas  cabeças 
logo  que  os  seus  lhe  appareçam  ;  e  este  empréstimo 
nunca  é  recusado.  Parecia-me  isto  quasi  iucrivel  : 
porem  os  naturacs,  já  policiados,  e  merecedores  de 
fé,  unanimes  confirmam  o  facto  :  c  eu  conheci  pais, 
que  venderam  seus  filhos,  quando  acharam  que  lhes 
era  mui  pesado  sustenta-los ,  sem  lhes  importar  se 
os  tornariam  mais  a  vèr  ,  nem  o  que  seria  feito 
delles.»  

Um  individuo  que  se  prezava  de  ser  fidalgo,  porem 
mal  procedido  ,  lançava  em  rosto  a  Iphicrates  a  vi- 
leza de  ser  filho  de  um  çapateiro.  O  general  Athe- 
niense  sem  se  estomagar  olhando  com  desprezo  pa- 
ra o  devasso  nobre  lhe  respondeu:  —  Amigo,  a  mi- 
nha geração  principia  cm  mim  ,  mas  atua  acaba 
em  ti. 

Tendo  noticia  elrei  D.  João  •2°.  que  corto  eorrípc- 
dor  da  corte  era  pouco  limpo  de  mãos  ,  e  mui  re- 
misso para  as  partes,  lhe  disse  um  dia,  em  que  em 
audiência  este  lho  ia  beijar  a  mão: — Corregedor, 
olhai  por  vós,  c  da  maneira  que  viveis,  porque  me 
dizem  que  tendes  as  portas  cerradas  e  as  mãos  aber- 
tas 1 

A  resistência  enfraquece,  a  resignação  fortalece. 


(«)  Graiule  ilh;i  n  lesle  ila-f  Mohicas ;  cliamuii  Itie  aniai 
Alvaru  Saavcdr.n  (]uaii(lii  a  ilescobriíi ,  pela  preliilSo  du  còr 
c  carapijilia  revulla  dos  liabílanies;  lamlieni  é  dita  un  ter- 
ra dijs  papilas.  "  Hnr  |í'nip  s  se  creu  que  era  pejada  h  No- 
va-Hollanda  :  tcpara-«í  porem  g  eslreilo  de  Turre*. 


75 


o  PANORAMA. 


169 


CASCATAS  DO  CJaYDB. 


É  DOS  sitios  mais  formosos  da  Escócia  o  valle  por 
onde  corre  o  Clyde  :  niiiilas  sceií.is  póz  o  graíide 
pintor  de  costumes  e  paizes  ,  Walter  Scott ,  toma- 
das deste  districto,  em  suas  novellas  nacioaaes;  ac- 
cresceutando  aos  allraclivos  próprios  da  localidade 
recordações  de  suas  interessantes,  bem  escolhidas, 
e  sempre  bem  retratadas  personagens.  Alem  disto 
Giasgow  com  seu  porto  tão  frequentado  ,  assentada 
nessas  margens  ,  e  Paislcy  ,  que  não  demora  longe  , 
dão  ao  rio  alta  importância,  commercialniente  con- 
siderado. —  Xasce  elle  nas  empinadas  montanhas 
da  provincia  de  Larnak  ,  onde  tem  igualmente  ori- 
gem outros,  o  Tweed  e  o  Annan:  os  três  vão  de- 
sembocar a  mares  dillerentes.  Muitas  superstições 
andara  arraigadas  no  povo  cscocez  ,  relativas  a  es- 
tas paragens  ,  querendo  até  explicar  sobrenatural- 
mente obras  d'arlc,  cujos  auetores  são  conhecidos  : 
mas  nem  similhantes  contos  ,  por  vulgares  ,  nem  as 
descripções,  por  desconhecidas,  interessam  o  ieitor 
portuguez.  Daremos  o  que  mais  convém  saber. — 
O  Glengouar  é  ura  dos  afluentes  do  Clyde;  acha- 
ram-se  palhetas  d'ouro  em  suas  areias,  mas  a  apa- 
nha não  pagava  o  trabalho,  nem  se  descobriu  pro- 
veito em  minerar  os  arredores.  Bom  é  que  também 
a  frigida  Caledónia  possa  gabar-se  de  um  rio  que 
merece  as  duas  vozes  esdrúxulas  —  aurífero  e  in- 
fructiferii.  Nas  visinhanças  de  outro  ribeiro  afluen- 
te ha  cousa  mais  importante,  as  minas  de  chumbo, 
pertencentes  ao  conde  de  Ilopetown ,  exploradas 
por  uma   companhia  ,  que  paga   ao  proprietário  o 

Ji.\Ho  3—1843. 


sexto  dos  reditos,  e  produzem  annualmente  mais 
de  tresentos  mil  quintaes  de  metal. 

Próximas  á  cidade  de  Lanark  «stão  as  catadupas 
ou  quedas  da  corrente  do  Clyde;  até  alli  o  rio  vai 
niiinando  tão  sereno  ,  que  não  dá  indícios  de  haver 
depressão  no  seu  aheo  ;  mas  logo  era  Bonningtori 
Linn  faz  um  salto  perpendicular  de  obra  de  40  pal- 
mos, e  dahi  proscgue  arrebatado  :  meia  milha  mais 
adiante  é  Corra  Linn  ,  a  mais  formosa  cascata  do 
Clyde  ,  appresentada  na  gravura  supra-estampada  : 
reparle-se  cm  duas  ,  cahindo  impetuosas  de  80  pcs 
d'altura  ecomsolerane  estampido  cm  fundos  pegos, 
cobertos  de  borbotões  d'espuma:  rodeam-na  silves- 
tres arvoredos ;  e  descortinam-se  na  próxima  emi- 
nência os  residuos  melancholicos  de  um  castello 
dos  SommerviUe,  familia  notável  nos  annaes  da  Es- 
cócia. 

O  Bobo. 

112S. 

XII. 

'  Á  mensagem. 

Algiks  instantes  mais  que  o  trovador  se  houvera 
demorado  no  jardim  pênsil ,  lhe  tornariam  impossí- 
vel o  sabir  de  Guimarães.  Abul-Hassan  linha  lido 
a  prevenção  de  communiear  ao  mestre  dos  enge- 
nhos,  —  a  seu  irmão,  o  tornadiço  ,  como  elle  lhe 
chamava  na  ausência  , —  o  logar  onde  o  devia  en- 
2."  Serie.  —  Yol.  II. 


170 


O  PANORAMA. 


i'ontrar  no  caso  deoccorrer  algum  succcsso  inespera- 
do. Oarabc-christão  ouvira  a  ordem  do  alferes-mór 
para  se  dobrarem  as  vigias  e  roídas,  lançar-se  uma 
quadrilha  ao  campo,  c  prohihir-se  a  sabida  do  bur- 
go a  todos  ,  apenas  se  fizesse  o  signal  de  acabar  o 
banquete.  Então  o  tornadiço  correra  ao  arco  escuro 
(lo  jardim  pênsil,  e  relatara  tudo  isto  aAbul-Iíassan. 
O  silvo  do  árabe ,  que  tão  cedo  soara  para  Dulce , 
procedera  desta  causa,  e  por  isso  o  cavalleiro  tivera 
de  atravessar ,  correndo  á  rcdea  solta  ,  o  recinto  do 
castello  e  do  burgo.  Passando  a  carcova  das  barrei- 
ras, ainda  vira  dobrar  o  numero  dos  atalaias  noctur- 
nos ,  c  sentira  o  tropear  dos  cavallos  rodeando  os 
andaimos  das  barbacans.  Para  se  não  tornar  suspei- 
toso, depois  de  sahir  junto  ao  cubello  da  couraça, 
caminhara  lentamente  cm  volta  da  povoação ,  e  fa- 
zendo um  largo  rodeio  viera  outra  vez  meller-se  no 
caminho ,  que  levava  á  margem  do  Avicella  ,  onde 
o  esperava  o  seu  pagem. 

Ainda  ellc  galgava  no  valente  ginete  uma  senda 
;igra  e  tortuosa  na  selva  contigua  aováu  doMadroa, 
quando  sentiu  a  pouca  distancia  ,  do  lado  opposto 
do  rio,  um  estrupido  de  cavallos,  os  quaes  pareciam 
caminhar  por  entre  os  choupos  e  salgueiros  que  po- 
voavam tanto  uma  como  outra  margem.  Pelo  ruido 
que  faziam  facilmente  se  conhecia  que  era  uma  nu- 
merosa cavalgada.  Fatiavam  era  voz  alta  ,  e  pare- 
ciam seguir  um  caminho  contrário  ao  seu  ,  appro- 
ximando-sc  do  váu ,  em  quanto  o  cavalleiro  se  af- 
fastava  dclle.  Talvez  o  perseguiam.  Este  pensamen- 
to, que  lhe  oceorreu,  o  fez  parar  subitamente.  Ape- 
sar de  conhecer  que  mal  poderia  resistir  áquelle 
tropel  d'homens  d'armas  ,  não  receiava  um  comba- 
te nocturno  ,  mas  era-lhe  necessário  evitar  toda  a 
<5emora  em  voltar  ao  arraial  do  infante  ,  a  fim  de 
poder  cumprir  o  que  promeltêra  a  Dulce.  Assim 
descavalgando  do  ginete,  e  levando-o  de  redca  man- 
so e  manso,  approximou-se  da  ribeira  junto  daqual 
o  arvoredo  e  matlo  eram  mais  frondosos  e  bastos , 
aílastando-se  da  senda  por  onde  forçosamente  os  al- 
mogávares,  haviam  de  passar  no  caso  de  transpo- 
rem o  váu. 

No  momento  em  que  o  trovador  guerreiro  chegou 
a  uma  balsa,  na  qual  era  quasi  impossível  ser  des- 
cuberto  ,  á  luz  scintillante  das  estrellas  as  armas 
dos  que  vinham  ladeando  o  rio  reluziram  na  mar- 
gem fronteira.  Pareciam  altercar  entre  si ,  e  como 
.1  corrente  era  estreita,  Egas  que  se  conservava  cal- 
iado  e  quedo  ,  pôde  facilmente  escuta-los. 

Aqueiie  tropel  de  homens  d'armas  era  uma  qua- 
drilha ,  ou  piquete  ,  como  hoje  diríamos ,  que  Gar- 
cia Bcrmudcz  enviara  para  rodear  exteriormente  as 
barreiras  e  obstar  á  fuga  dos  que  podesscm  esqui- 
var-se  á  vigilância  dos  atalaias  e  roídas.  A  disputa 
que  o  trovador  ouvira  linha-se  alevantado  entre  o 
coudel  dos  besteiros  de  cavallo,  c  um  cavalleiro 
seguido  de  dez  lanças ,  o  qual  acaudelava  toda  a 
quadrilha. 

«A-la-fó,  dom  coudel  —  bradava  o  cavalleiro  — 
que  não  deveis  passar  o  váu.  Já  vo-lo  disse  :  a  or- 
dem do  alferes-mór  ó  que  rodeemos  o  burgo  c  o 
castello  a  dois  tiros  de  besta  das  barreiras.  Segui- 
me  ,  cnde  ,  se  vos  praz. » 

«Não  praz  ,  por  Santiago  !  — replicava  o  coudel. 
icnho  andado  cm  mais  de  vinte  arrancadas  ,  tanto 
cm  hoste  como  cm  cavalgada :  tenho  sabido  trinta 
vezos  de  castros  e  burgos,  era  appelido  contra  mou- 
ros e  leonezes  :  nunca  vi  lançar  osculcas  para  vigia- 
rem sagas  do  mosnada  ou  barbacans  de  castello. 
Que  Satanaz?  I  — O  infante  não  vem  ,  creio  eu  ,  de 


Guimarães ,  mas  para  lá  se  encaminha  :  ao  menos 
assim  no-lo  dizem.  E  não  havemos  de  atalaiar  bos- 
ques e  pacigos  alem  Madroa?» 

«Fu  ,  fu  ,  perro  e  villão  que  és  !  —  murmurou 
o  cavalleiro. —  Vedes  vós  —  proseguiu  elle  fatian- 
do com  os  seus  homens  d'armas  —  como  vai  ancha 
c  crescida  a  ousadia  de  peões?  Culpa  tem  quem  fia 
delles  cavallo  ,  saio ,  e  cervilheira  como  a  uma  no- 
bre lança.  Ai,  meu  mano  —  accrescentou  dirigin- 
do-se  de  novo  ao  coudel  —  digo-vos  eu,  que  não 
passareis  o  váu.» 

«Somos  homens  de  rua  : — retrucou  o  coudel  en- 
colerisado  —  burguezes  por  nossa  carta  de  privile- 
gio e  bom  foro  :  e  a  nenhum  de  nós  pôde  ser  dito 
fu ,  f u  ,  perro  e  villão  («)  sem  villa  e  aífronta  de 
vinte  soldos  depena.  Aqui  está  Pedro  Amarello , 
mestre  armeiro  ;  Ruderico  Spassandiz  ,  mestre  fer- 
reiro ;  Sandamiro  Eiriz ,  mercador ,  e  eu  Gavino 
Paez  que  valho  por  qualquer  delles.  Tende  tento  , 
senhor  xavalleiro ,  com  vossas  falias  ,  que  podeis 
ámanhaã  ouvi-las  mais  pesadas  da  boca  dos  alvazis.  » 

«Estaes  bravo  ,  dom  coudel !  —  acodiu  o  caval- 
leiro ,  que  porventura  não  achara  inteiramente  in- 
fundada a  advertência  do  besteiro. —  Foi  por  chan- 
ça que  o  disse.  Deus  me  livre  de  doestar  tão  hon- 
rados burguezes  !  Mas  dir-vos-hei  agora  porque  não 
passaremos  a  váu.  Sabeis  o  que  vai  de  novo? 

A  esta  pergunta  ninguém  respondeu  :  mas  homens 
d'armas  e  besteiros  pararam  ,  apinhando-se  á  roda 
do  que  fallava. 

«Vai,  que  entre  os  ricos-homens  da  corte  ha  quem 
pense  em  fazer  deslealdade  á  nossa  mui  cxccllente 
rainha,  e  o  nobre  conde  de  Portugal  e  Coimbra  quer 
talvez  colhe-los  ás  mãos.  » 

«Mas  porque  credes  vós  isso?' — interrompeu  o 
coudel. 

«Porque  o  alferes-mór  me  jurou  que  cu  expunha 
a  cabeça  se  alguém  passasse  por  nós  viudo  do  bur- 
go ,  que  não  fosse  logo  tomado  ,  ou  se  me  affastasse 
alem  das  barreiras  um  tiro  de  balista.  Que  signifi- 
cam similhantes  disposições,  senão  o  intento  de  co- 
lher ás  mãos  os  dcslcaes?» 

«Isso  agora  é  outro  fallar  ; — rosnou  o  coudel  — 
em  tal  caso é  claro » 

A  quadrilha  havia  seguido  de  novo  sua  roída  ,  e 
o  trovador  só  pode  perceber  mais  essas  poucas  pa- 
lavras truncadas. 

Encostado  a  uma  arvore  com  a  rcdea  do  ginete 
no  braço  ,  o  cavalleiro  ficou  embebido  em  cogita- 
ções. Um  acaso  lhe  dera  a  conhecer  a  impossibili- 
dade de  pôr  por  obra  os  seus  intentos  ,  se  ainda  na 
seguinte  noite  durassem  as  precauções  de  que  ou- 
vira fallar.  Mas  donde  haviam  nascido  as  suspeitas 
que  despertaram  a  tal  ponto  os  receios  do  conde  de 
Trava?  Te-lo-hiam  reconhecido  atravez  do  seu  dis- 
farce? Fora  acaso  ouvida  a  conversação  que  tivera 
com  o  Lidador?  Pcrdia-se  n'um  mar  de  conjectu- 
ras ,  e  successivamonle  imaginava  e  desfazia  rai! 
alvitres  para  salvar  Dulce  ,  para  cumprir  sua  pro- 
messa e  xcT  coroado  seu  amor  ,  mas  no  meio  da  agi- 
tação cm  que  o  lançara  a  nova  que  escutara,  bara- 
Ihavam-se-lhe  cada  vez  mais  os  pensamentos  tumul- 
tuosos. Lemhrou-se  de  voltar  a  Guimarães,  mas  nem 
já  ,   provavelmente  ,   a  entrada  era  fácil ,   nem  clle 

(•)  Fu,/u.'  —  era  um  dos  doestos  daquelle  lempo,  con- 
tra o  qual  alguns  foraes  põem  muletas  pesadas.  Ignorámos 
em  que  consistia  o  aflrontoso  destas  duas  syllabas ,  salvo  se 
era  uma  abbreviação  de  outra  injuria  de  que  resam  também 
os  foraes,  e  que  a  decência  nos  i\r»o  permilíe  transcrever 
aqui. 


o  PANORA3IA. 


171 


podia  deixar  de  se  dirigir  ao  arraial  do  infanle  a 
dar  couta  da  missão  de  que  se  encarregara.  Assim, 
posto  que  vivameutc  inquieto  ,  cavalgou  de  novo  ,  e 
breve  se  achou  túra  da  extensa  selva  que  naquella 
epocha  se  estendia  ao  norte  de  Guimarães. 

Em  quanto  neste  famoso  castcllo  e  no  seu  burgo 
se  passavam  os  acontecimentos  cuja  narrarão  pro- 
curámos fazer  ao  leitor  nos  antecedentes  capítulos , 
o  fogo  da  revolta  estendia-sc  largamente  por  quasi 
todos  os  districtos  do  condado  de  Portugal.  O  cam- 
po de  Affonso  llenriquez  augmentava  diariamente 
com  as  bandeiras  das  behetrias  e  concelhos,  com  os 
homens  d'armas  dos  coutos  e  honras  dos  mais  illus- 
tres  ricos-homens,  e  com  muitos  alcaides  dccastcl- 
los  do  próprio  infantalico  ou  regalcngo  de  D.  The- 
resa.  Assim,  ao  passo  que  o  conde  Fernão  Peres  cha- 
mava os  cavalleiros  de  Galliza  e  das  outras  provín- 
cias d'Hespanha  para  se  defender,  a  guerra  ia  mu- 
dando o  seu  caracter  de  lucta  civil  em  lucta  de  in- 
dependência, e  fazendo  que  o  espirito  de  individua- 
lidade nacional  se  desinvolvesse  e  fortificasse. 

A  pouco  mais  de  ires  léguas  de  Guimarães  Egas 
encontrou  os  esculcas  e  almogávares  de  D.  Affonso. 
O  arraial  alvejava  sobre  os  visos  de  uma  serra  com 
os  arreboes  da  manhaã  ,  e  as  armas  polidas  scínlíl- 
laram  em  breve  aos  primeiros  raios  do  sol  oriental. 
O  cavalleíro  tendo-se  dado  a  conhecer  ,  atravessou 
por  entre  as  tendas ,  e  chegou  ao  pavilhão  do  moço 
príncipe  ,  que  já  se  achava  em  conselho  com  o  ar- 
cebispo de  Braga  e  com  outros  prelados  e  barões. 
Ahi  deu  conta  do  que  podéra  alcançar  das  disposi- 
ções tomadas  pelo  conde  de  Trava  para  a  defcza  , 
do  grande  numero  de  lanças  estrangeiras  juntas  em 
Guimarães  ,  e  das  fortiCcações  ,  accrescentadas  ás 
já  tão  formidáveis  do  castello,  e  alevantadas  de  no- 
vo em  roda  do  burgo.  —  «Mas  essas  torres  e  enge- 
nhos—  dizia  elle  —  não  creio  tenhamos  de  as  com- 
bater; porque  se  diz  que  Fernão  Perez  pertende  vir 
comnosco  a  lide  em  campo  ;  e  a  avultada  somma  de 
cavalleiros  que  se  acham  em  Guimarães,  e  o  peque- 
no numero  de  peões  e  besteiros  são  disso  evidente 
signal. » 

«  E  Gonçalo  Mendez  da  Maia  ?  —  interrompeu  o  ve- 
lho aio  Egas  Moniz.  —  Porque  se  conserva  um  dos 
mais  esforçados  e  poderosos  Clhos-d'algo  do  Portu- 
gal entre  os  inimigos  do  infante?  —  Viste-o?  —  Al- 
cançaste acaso  saber  quaes  eram  seus  intentos?»  — 

n  Os  seus  intentos  foram  o  impedir  a  guerra  entre 
homens  da  mesma  fé  e  da  mesma  linhagem :  hoje 
a  sua  lança  será  a  primeira  que  se  enriste  nessas 
lides  que  Deus  quiz  fossem  inevitáveis. » 

Estas  palavras  proferia-as  um  cavalleíro  queaffas- 
lára  o  reposteiro  da  entrada  da  tenda ,  e  cruzando 
os  braços  ahi  ficara  parado. 

Era  o  senhor  da  Maia. 

O  sohresalto  foi  geral.  O  trovador  correu  para  el- 
le, e  depois  de  o  abraçar,  tomando-o  pela  mão  o  fez 
approximar  do  infante. 

«Eis-aqui  —  disse  —  um  dos  vossos  maisleaes  ri- 
cos-homens. No  momento  do  perigo  elle  não  podia 
faltar-vos. » 

«.\o  menos  não  foi  por  culpa  do  filho  de  Pedro 
Froylaz  —  interrompeu  o  Lidador  sorrindo. —  Se  por 
inesperado  meio  a  Virgem  me  não  salvara  ,  a  estas 
horas  a  minha  morada  seria  a  masmorra  do  castel- 
lo de  Guimarães ,  c  a  minha  esperança  de  liberda- 
de a  tumba  que  dentro  em  pouco  me  lavaria  o  ca- 
dáver asotlerrar  nagalílé  do  mosteiro  de  D.  Muma.» 

O  súbito  apparecimento  de  Gonçalo  Mendez  ,  e 
ainda  mais  as  suas  palavras ,  até  certo  ponto  inin- 


tclligíveis,   excitaram  vivamente  a  curiosidade  do 
infante   e  dos  seus  prelados  c  cavalleiros.  O  nobre 
barão  satisfez  essa  curiosidade  ,    narrando  não  só  o 
que  su  passara  no  ajuntamento  da  cúria  ,  mas  tudo 
o  que  depois  succedéra,  e  como  o  bobo  o  salvara  e 
a  Fr.  Hilarião.  «  O  pobre  D.  Bibas  — concluía  cUe — 
cumpriu  á  risca  o  que  prometleu.  O  villico  da  hon- 
ra tí  solar  da  Maia  e  os  vinte  cavalleiros  meus  acos- 
tados vieram  succcssivamente  ajunlar-sc  comnosco 
á  sabida  do  subterrâneo.   O  bobo  lhes  deu  passa- 
gem pouco  a  pouco,  e  até  vi  com  espanto  que  o  ul- 
timo me  conduzia  a  destro  o  meu  cavallo  de  bata- 
lha.  Deixando  os  homens  d'armas  acompanhando  o 
virtuoso  monge,  adianlcí-me  á  rédea  solta  em  bus- 
ca do  arraial  de  meu  senhor  o  infante,  para  lhe  di- 
zer;  «Guimarães  será  vosso   logo  que  vos  approu- 
ver  !  )>  Sabia  que  vos  encamiub.aveis  por  esta  par- 
te ,  posto  que  mais  longe  vos  suppunhn.  «Agora  — 
accresceutou  voltando-se  para  o  arcebispo — ■reve- 
rendíssimo padre,  por  mercê  mandai  um  de  vossos 
palafrens  ou  mulas  de  corpo ,    em  que  possa  caval- 
gar o  mui  honrado  abbade  do  mosteiro  de  D.  Mu- 
ma ,  que  ,  velho  e  trôpego  ,  mal  vencera  até  aqui 
a  pé ,  os  montes  e  valles,  algares  e  serranias.» 

«  Não  terá  de  vir  tão  longe  :  —  respondeu  o  se- 
nhor de  Crcsconhe  —  com  o  favor  de  Deus  ,  espero  • 
que  nós  todos  vamos  bem  depressa  encontra-lo. » 

O  bom  do  aio  era  de  opinião  que  sem  tardança 
se  accommettesse  Guimarães ,  c  a  preponderância 
de  que  gozava  no  conselho  fazia-lhc  tomar  muitas 
vezes  o  seu  parecer  singular  por  uma  resolução  com- 
mum  e  definitiva. 

«Por  essas  palavras  —  replicou  o  Lidador  —  vejo 
que  a  vossa  intenção  é  fazer  encurvar  brevemente 
ao  redor  das  altas  muralhas  de  Guimarães  as  bes- 
tas e  arcos ,  e  as  manganellas  arrojarem  contra  os 
eirados  de  suas  torres  as  pedras  e  as  setas  de  fogo. 
se,  o  que  não  creio,  o  lobo  cerval  de  Galliza  deixar 
que  o  cerquem  no  covil  em  que  veio  aninhar-se  nes- 
te nosso  Portugal.  Mas  se  quizerdes  ouvir-mc  —  » 

«  Sabemos  ,  sabemos  o  que  nos  ides  dizer  —  ata- 
lhou o  arcebispo  de  Braga  D.  Paio,  que  ,  emulo  do 
velho  Egas  Moniz  de  Riba-de-Douro,  não  perdia  oc- 
casião  de  mostrar  a  sua  influencia ,  c  a  capacidade 
politica  e  militar  de  que  era  dotado.  —  Com  cem 
homens  d'armas  e  no  silencio  da  noite  abrir-nos- 
heis,  sem  combate,  senão  as  barreiras  e  portas  do 
real  castello,  ao  menos  o  caminho  delle.» 

Alludindo  á  passagem  subterrânea  por  onde  o  Li- 
dador se  tinha  salvado,  o  guerreiro  prelado  pronun- 
ciara com  emphase  particular  a  palavra  caminho. 

«Perdoai-me,  reverendíssimo  padre,  (*)  outro  era 
o  meu  pensamento.  Na  escala  arvorada  aos  muros , 
sob  a  vínea  ou  gato  rolando  para  elles  ,  nas  trevas 
nocturnas  salteando  d'improviso  pelo  subterrâneo  os 
cavalleiros  do  conde  de  Trava,  ou  finalmente  em  re- 
contro de  lide  campal,  estou  prestos  para  combater 
a  todo  o  trance.  Mas  é  em  nome  da  paz  que  ainda 
fallarei  uma  vez....» 

O  infante,  que  até  então  estivera  callado,  ouvin- 
do os  seus  optimates ,  poz-se  em  pé,  e  com  as  faces 
abrazadas  ,  apertou  o  punho  da  espada  ,  e  bradou  ; 

«  A  paz  1  ?  —  Oh  ,  isso  nunca  !  » 

«  A  paz  —  insistiu  o  Lidador  com  firmeza  —  como 
eu  a  pedi  mil  vezes  na  cúria  de  vossa  mãi.  Que  o 
conde  vos  ceda  a  herança  de  meu  senhor  D.  Henri- 
que ;   que  D.  Theresa  ceda   a  seu  nobre  filho  o  se- 


(•)  Pattr  reverendissime  é  c  tratamenlodado  aos  bispif 
e  arcebispos  na  Historia  compostellana  e  nas  mais  memoriai 
daquelle  tempo.  . 


172 


O  PANORAMA. 


nhorio  desta  (erra  de  cavalleiros  !...  Qae  um  mensa- 
geiro vá  em  nome  do  infante  e  dos  filhos-d'alf;o  de 
Portugal  propor  estas  condifões,  antes  de  as  otrere- 
cermos  nas  pontas  das  lanças.  Ainda  uma  vez  o  re- 
queiro,  era  que  pese  aos  (fue  ousarem  accusar-me 
de  desleal,  porque  guardo  o  esforço  para  o  momen- 
to das  obras  ,  e  dcspréso  o  que  se  revela  cm  feros 
e  ameaças  antes  do  conilialer.  » 

O  rico-homem  olhou  cm  roda  com  nr  altivo.  Al- 
guns dos  barões  do  conselho  cravaram  a  vista  no 
chão. 

«  Mas  lerabrai-vos  —  atalhou  Affonso  Henriqiiez, — 
de  que  a  memoria  de  muitos  nnnos  de  opprobrio  , 
só  pôde  derisca-la  o  sangue  correndo  abundante  em 
campo  de  lide.  » 

«E  vós,  senhor,  não  vos  esqueçais  de  que  tam- 
bém nessa  primeira  batalha  o  sangue  que  ha-de  cor- 
rer será  dos  vassallos  e  dos  peões  ,  cujo  principo 
sois,  —  o  sangue  de  christãos,  e  não  de  agarenos  e 
ismaelitas.» 

O  infante  ficou  por  algum  tempo  mudo:  depois 
fitou  os  olhos  no  seu  velho  aio ,  que  lhe  fez  um  le- 
ve signal  de  assenso. 

«Seja,  pois,  como  pertendeis  ,  —  disse  elle  por 
íim  —  ainda  que  tenho  por  certo  será  uma  bem  inu- 
lil  mensagem.  Ao  menus  meu  primo  clrei  de  Leão, 
que  tão  contrario  se  nos  mostra  ,  saberá  que  procu- 
rei evitar  a  guerra.» 

«E  quem  ha-de  ser  o  mensageiro?  —  perguntou  o 
arcebispo  de  Uraga  D.  1'aio,  que  no  gesto  carran- 
cudo dava  signaes  de  estar  mais  longe  do  espirito 
do  evangelho  que  o  duro  c  impetuoso  Gonçalo  Men- 
dez. 

A  narração  que  fizera  o  Lidador  convertera  cm 
certeza  as  desconfianças  que  o  trovador  concebe- 
ra de  alguém  o  haver  conhecido  na  corte,  apesar 
de  seu  disfarce.  O  coração  palpitava-lhc  ao  lein- 
brar-se  da  promessa  que  fizera  a  Dulce,  e  de  que, 
amda  quando  lhe  restasse  esperança  de  poder  vol- 
tar a  Guimarães  sem  cahir  nas  mãos  do  feroz  conde 
de  Trava,  nenhuma  podia  ter  de  salvar  a  sua  aman- 
te: a  proposição  do  Lidador  lhe  reanimou,  porem, 
as  quasi  mortas  esperanças.  Adiantando-se  ,  pois  , 
disse  : 

«Se  ao  illuslre  infante  approuvcr,  serei  eu  quem 
vá  a  Guimarães  com  essa  mensagem.  Pouparei  ao 
conde  de  Trava  o  trabalho  de  por  mais  temi>o  me 
procurar  debalde.  » 

«Bem  dito,  meu  collaço  I  —  bradou  o  infanlo. — 
K  d'esforçado  eavalleiro  iralírontar  o  inimigo  entre 
os  seus  homens  d'armas;  mas  não  consinto  (jue  vos 
arrisqueis  de  novo  á  cólera  dos  estrangeiros.  Outrem 
irá  agora  era  vosso  logar.» 

O  trovador  apiinjximon-se  cnião  de  AUbnso  Ilen- 
riquez  ,  e  vollando-se  para  os  prelados  e  barões: 

«Depois  de  três  annos  de  ausência  —  disse  com 
visivel  agitação  —  voltei  a  I'ortugal  para  servir  na 
]iaz  ou  defender  na  guerra  o  filho  de  meu  senhor. 
Como  o  ceifeiro  (|ue  abandonasse  a  seara  ,  quando 
as  es|)igas  se  lhe  olíereciam  mais  bastas  c  formosas, 
assim  eu  abandonei  as  pelejas  daTerra-santa  quan- 
do mais  douradas  esperanças  me  prometliam  larga 
colheita  de  gloria.  Fi-lo  por  ser  leal  a  meu  preilo 
e  á  fraternidade  das  armas.  Dizei  vós  se  o  infante 
de  Portugal  me  deve  por  isso  algum  premio?» 

AlTonso  Henriquez  fez  signal  de  silencio  estenden- 
do a  niãii  p:ira  o  senhor  de  C.resconlie  ,  que  ia  tal- 
vez repreheiuier  seu  primo  desta  inteuipesliva  [)er- 
tcnção  ,  c  respondeu  : 

«ÍSão  prccisaes  de  requerer  aos  filhos  dos  bem- 


nascidos  que  julguem  vossa  demanda  ,  como  é  foro 
d'Hes|ianha.  Confesso  o  direito  que  tendes,  e  juro 
que  a  recompensa  será  qual  vós  a  pedirdes.» 

«Ouvistes,  senhores  prelados  e  barões? —  inter- 
rompeu Egas  cora  viveza.  É  um  juramento  d'infante. 
O  galardão  que  peço  c  que  me  deixeis  seguir  esía 
aventura  da  embaixada.  Não  podeis  já  refusar-mo.  » 
«Seja  assim  pois, — replicou  o  infante  —  c  a  mãi 
de  Deus  e  o  santo  apostolo  das  llespanhas  vos  guar- 
dem do  perigo,  qne  voluntariamente  buscaes  ,  racu 
bom  eavalleiro.  » 

IVeste  momento  um  pagem  veio  annunciar  a  che- 
gada ao  arraial  de  cem  villões  da  behelria  de  Bri- 
tiande  ,  oitenta  frecheiros  e  vinie  besteiros  ,  cujos 
brados  selvagens  de  guerra  começavam  a  soar  ao 
longe  como  um  trovão  rebombando  no  valle.  O  in- 
fante correu  a  vè-los  em  quanto  os  do  conselho  ins- 
truíam o  trovador  da  forma  em  que  devia  propor 
sua  mensagem.  Ao  perpassar,  Aflonso  Henriquez  aper- 
tou com  força  a  mão  de  Egas  ,  e  disse-lhe  em  voz 
baixa  :  «Egas,  eu  não  quero  perder-te !  lerabra-le 
do  teu  irmão  d'armas.>> 

D'ahi   a  pouco  tempo ,   o  eavalleiro  voltava  para 
Guiniarães ,   montado  em  mula  robusta,    e  seguido 
de  um  pequeno  pagem,  que  cavalgava  o  seu  ginete 
de  batalha  ,    e  de  seis  acobertados  trajando  saios  e 
cervilheiras,  tudo  segundo  o  costume  daquella  epo- 
eha.  (Jual  seria  o  tumulto  de  alíectos  que  passavam 
pela  alma  do  mancebo,  facilmente  supporá  o  leitor. 
Todos  eiles   se  resumiam   n'um  só,    o   de  tornar   a 
vèr Dulce:  era  este  o  único  ponto  que  descobria  no 
horisonle  do  seu  futuro  ,  c  era  este  unicamente  que 
elle  queria  descortinar.  O  resto  pertencia  aventura. 
Entretanto   nos  paços   de  Guimarães   o  conde   de 
Trava  rugia    de  fúria    e  pesar.    Pelo  quarto  de  mo- 
dorra fizera  accommetter  por  cem  cavalleiros  a  pou- 
sada do  Lidador  e  de  alguns  outros  Ulhos-d'algo  de 
P:jrtugal ,   que  suppunha  addiclos    ao  iifiço  AUbnso 
Henriquez.    A  morada  ,  porem  ,  do  .'íeniior  da  Maia 
estava  deserta.    Sabendo   tal  nova   eile  próprio  cor- 
rera ao  mosteiro  de  S.  Salvador,  ou  de  D.  Muma  , 
resohido  a  arrancar  c<im  tormentos  da  boca  do  ve- 
lho abhade  a  revelação  do  logar  onde  o  rico-homem 
se  escondera.    Era  impossi\el   que  Gonçalo  Mendez 
houvesse  escapado  com  os  seus  por  meio  dos  vigias 
e  roídas,    e  porventura  Fr.  Hilarião    lhe  dera   aco- 
lheita. Com  admiração  dos  monges  e  dobrado  furor 
do  conde  a  cella  do  reverendo  abbade  eslava  deser- 
ta.  Fernão  Perez   corria   com  olhos  cbamejanles  as 
vielas  estreitas   e  tortuosas   do  burgo.    Na  desespe- 
ração que  o  ralava,  o  seu  primeiro  Ímpeto  fora  man- 
dar decepar  as  cabeças  a  alguns  simples  cavalleiros 
que  haviahi  sido  presos,  e  a  muito  custo  o  genero- 
so alferes-niiir  impedira    este  acto   de  inútil   barba- 
ridade, liiirlado  até  na  esperança  de  colher  ás  mãos 
o  audaz  primo  do  senhor  de  Crescouhe  ,  Egas  ,  que 
elle  suppunha  em  Guimarães,    e  para  achar  o  qual 
liiiham  sido  vaãs  as  mais  severas  pcsciuizas,   a  rai- 
va do  nobre  conde  de  Portugal  e  Coimbra  subira  a 
indizível  grau  de  violência. 

O  desleixo  do  drama,  qne  se  preparava  havia  lau- 
to tempo,  estava  próximo  :  —  a  tempestade  acastcl- 
lada  no  horisonle  ia  estourar  emlim.  l'ela  madru- 
gada daiinella  mesma  noite  alguns  espias  chegaram 
trazendo  a  nova  da  a|i|)ioximação  da  hoste  inimiga. 
Segundo  clles  diziam  a  sua  força  era  principalmen- 
le  de  peões:  os  concelhos  tinham  armado  os  homens 
livres  e  os  de  creação  ou  servos  (|iie  habitavam  nos 
po\(iados  |iriucipaes  e  nosallozes  (ju  aldeolas  comar- 
cans.  Os  senhores  de  coutos  e  honras  haviam  na  ver- 


o  PANORAMA. 


173 


dade  Irarido  alguns  bésleiros  de  rarallo  e  de  pé  : 
mas  as  peoadas  concclheiras  formavam  o  grosso  da 
mesnada,  e  entre  ricos-homons,  iufatioõcs,  escudei- 
ros, cavallciros  de  soldo  ou  acostados,  e  almogáva- 
res  ,  os  homens  d'arraas  eram  muito  menos  nume- 
rosos no  arraial  do  infante  que  dentro  dos  muros  e 
barreiras  do  castelio  e  Imrgo  de  (iuimarães. 

Fora  sobre  este  resultado  da  revolta  que  Garcia 
Bermudoz  e  Fernão  l'erez  tinham  alevantado  desde 
o  principio  a  machina  das  suas  traças  guerreiras. 
Longe  de  esperarem  o  ser  accommettidos  atraz  de 
mnros  e  barbacans,  onde  se  lhes  tornava  inútil  a  su- 
perioridade da  cavallaria,  convinha-lhes  accommet- 
ter  os  contrários  em  cnmpo  aberto.  Alii  a  vicloria 
parecia  segura.  Xaquelle  tempo  os  peões,  ou  infan- 
leria  ,  chusma  indómita  ,  rude  ,  e  mal  armada  ,  era 
tida  em  nenhuma  conta,  e  nos  arrolamentos  dos  exér- 
citos quasi  que  não  se  contava  senão  com  o  numero 
das  lanras. 

A  certeza  obtida  emfim  daqnellas  circumstancias, 
que  podiam  produzir  para  o  infante  a  deshonra  e  a 
morte  no  momento  em  que  chegava  ás  cercanias  de 
Guimarães  no  meio  de  sonhos  d'ambi(;ão  e  de  es- 
peranças de  gloria,  mitigou  algum  tanto  o  furor  do 
eondc  de  Trava.  Posto  que  ainda  carrancudo,  pas- 
seando na  sala  d'armas  rodeado  dos  seus  cavallei- 
ros  ,  elle  dispunha  tudo  para  sahir  a  campo.  Pelas 
escadas  dos  paços  viam-se  descer  e  subir  os  pagens 
levando  peças  de  armaduras  lisas  e  pulidas  ,  outros 
arrastando  os  pesados  saios  e  cervilheiras  de  cama- 
Iho,  tecidos  de  grossa  malha  de  ferro,  para  se  dis- 
tribuírem pelos  homens  d'armas  de  soldo  e  pelos  ca- 
Talleiros  peões.  A  signa  real  da  bella  infanta  se  plan- 
tara diante  das  barreiras  ;  os  balsões  variegados  dos 
cavalleiros  de  solar  e  linhagem  enfileiravam-sc  já 
apoz  essa  bandeira  pnra  um  e  para  outro  lado  ,  e 
os  atambores  ou  timbales  mouriscos,  adoptados  en- 
tre os  christãos,  começavam  a  soar  pelo  burgo  con- 
vocando a  gente  de  guerra  em  volta  de  seus  pen- 
dões. Os  rostos  dos  duros  homens  d'armas  de  Gal- 
liza  ,  Aragão  e  Castella  ,  ferozmente  alegres  ,  sor- 
riam com  a  esperança  da  festa  de  sangue  que  nes- 
se mesmo  dia  porventura  os  aguardava. 

No  meio  ,  porem  ,  do  nitrir  dos  cavallos ,  do  re- 
demoinhar do  pó ,  do  lampejar  dos  capellos  ou  el- 
mos brunidos,  do  vozear  dos  cabos  das  quadrilhas, 
um  som  agudo  c  prolongado  de  buzina  sobrelevou 
por  cima  de  todo  esse  ruido.  Vinha  da  orla  do  bos- 
que visinho  do  vau  do  Jladroa  ,  e  tirava-o  um  ca- 
valleiro,  seguido  d'uni  pagem  e  seis  lanças,  o  qual 
se  dirigia  evidentemente  a  Guimarães,  e  com  aquel- 
las  toadas  parecia  annunciar  intenções  de  paz.  Dois 
almogávares  sahiram  a  reconhece-io  ;  e  depois  de 
fallarem  com  elle  poucos  instantes,  voltaram  dizendo 
ser  o  recera-vindo  um  rilho-d'algo  que  da  parte  do 
infante  trazia  mensagem  á  mui  excellente  rainha  e 
ao  nobre  conde  de  Trava. 

Era  Egas.  Atravessando  rápido  a  distancia  que 
mediava  entre  o  castelio  e  o  arraial  ,  elle  chegara  , 
muito  antes  que  o  sol  subisse  ao  zenith  ,  ao  ter- 
mo da  sua  viagem.  O  coração  balia-lhe  com  for- 
ça. Ainda  talvez  visse  Dulce  !  — ■  Eis  o  pensamento 
ao  que  se  limitavam  já  suas  esperanças,  porque  a 
missão  de  que  se  encarregara  era  terrivelmente  ar- 
riscada. Durante  o  caminho  fora  que  elle  medira  a 
extensão  dos  perigcjs  a  que  se  expozera  ;  mas  a  ima- 
gem de  Dulce  varria-lhe  da  alma  o  temor.  Jurara 
a  seus  pés  voltar  nesse  dia  :  e  para  não  ser  perju- 
ro, que  lh'imporiava  affrontar  a  cólera  do  senhor  de 
Trava  ,   e  o  ódio  profundo  que  devia  devorar  o  co- 


ração de  Garcia  IJermudez?  E  todavia  a  mensagem 
que  trazia,  mais  de  guerra  que  de  paz,  forçosamen- 
te havia  de  despertar  aquclla  cólera  ,  c  a  sua  pre- 
sença este  ódio.  a  ponto,  que  não  era  fácil  prever 
q\ial  seria  o  modo  porque  sahiria  do  passo  estreito 
em  que  se  aventurara. 

Ainda  estas  cogitações  o  agitavam,  quando  ao  lo- 
gar  onde  esperava  ,  lura  das  barreiras  ,  a  licença 
para  se  appresenlar  perante  a  rainha  e  o  conde  , 
chegou  o  pagem  Tructezindo  ,  que  o  leitor  já  co- 
nhece .  c  fallou  com  os  homens  d"armas  que  rodea- 
vam a  cavalgada  dos  recem-vindos.  A  entrada  do 
burgo  e  castelio  lhes  era  franqueada,  c  Fernão  I'e- 
rez  esperava  o  trovador  para  ouvir  sua  embaixada. 
O  cavalleiro  allravessou  então  ,  seguido  dos  seus  . 
a  ponte  levadiça  da  carcova  .  e  passando  alem  da 
da  grossa  cinta  dos  muros  e  torres  do  castelio,  en- 
caniiuhou-se  para  a  sala  d'armas  dos  paços  da  bel- 
la iiífanta  de  Portugal. 

(Continuar-se-ha.J 
(A.  Herculano}, 


O  BIUEZaiN  NA  TOr.RE  DA  MESOUITii. 


Todas  as  religiões  falsas,  posteriores  ao  paganismo, 
imitaram  este  na  creação  de  um  sacerdócio  ;  pelo 
que'  também  arremedaram  a  verdadeira  :  nenhuma 
deixou  de  levantar  uma  corporação  do  ministros  , 
ou  empregados  do  culto,  aquém  mais  especialmen- 
te era  confiada  a  mantença  ,  a  explicação  gcnuina 
de  seus  pontos   de  fé ,   e  que  tinha  a  incumbência 


174 


O  PANORAMA. 


das  ceremonias  c  actos  religiosos.  Admira  portanto 
que  Mafoma  ,  conhecedor  do  sacerdócio  judaico  se- 
gundo a  lei  do  Lcvitico ;  scicnte,  pelas  suas  viagens 
íi  Syria  ,  da  organisação  do  clero  do  christianismo , 
não  instituisse  clerezia  a  seu  modo ,  e  que  ao  con- 
trario deixasse  a  cada  um  seguir  o  rito  novo,  sem 
que  alguém  o  presidisse  ,  e  sem  distincção  de  je- 
rarchia  ;  porque  tal  não  pôde  dizcr-sc  a  que  era 
jiuramente  militar  entre  os  seus  adeptos.  Os  douto- 
res da  lei  mosleraica,  os  derviches  ambulantes,  são 
do  data  muito  posterior  á  fundação  do  islamismo. 
Adoptando  a  crença  de  Deus  único  e  indivisível , 
deixou  á  piedade  dos  falsos  crentes  a  erecção  dos 
templos ;  e  as  mesquitas  foram  em  geral  edificadas 
á  custa  de  príncipes  ou  por  doações  de  particula- 
res ;  mas  não  apparece  a  obrigação  de  erigirem  igre- 
ja :  com  o  andar  dos  tempos ,  c  a  inevitável  preci- 
são de  conservar  estas  casas  ,  deram-lhes  guardas  , 
e  outros  custodes  e  administradores  dos  rendimen- 
tos ,  e  por  consequência  empregados  que  velassem 
pelo  culto  ,  Ião  simples  no  templo  ,  quanto  oneroso 
flos  que  o  praticam  em  seus  domicílios.  Digamos 
de  passagem  que  o  mahometanismo  tem  muitos  re- 
negados ao  disfarce  ,  que  assim  como  se  indcmni- 
sam  a  occultas  do  rigor  da  prohibição  de  viuhos  e 
carnes  gordas ,  também  se  esquecem  de  resas  c  ge- 
nuflexões ;  tão  somente  o  habito  e  o-  clima  os  obri- 
ga aos  repetidos  lavatórios ,  sem  que  isso  prive  de 
haver  muito  musulmano  ,  irremissivelmente  porco, 
que  de  tal  preceito  não  cura.  Onde  a  lei  é  á  risca 
mais  seguida  ,  segundo  o  testemunho  dos  modernos 
"viajantes,  é  cm  Constantinopola  e  suas  visinhanças , 
na  Ásia  Menor,  e  varias  cidades  da  Pérsia:  em  todos 
os  mais  logares  ,  notavelmente  na  Africa  ,  ha  des- 
manchos ,  que  indicam  a  vaciilante  crença  no  Al- 
Koran ,  ou  o  desejo  de  corameltcr  peccados  por  ne- 
gligencia !  (») 

Seja  o  que  for ,  é  comtudo  verdade  que  os  mu- 
sulmanos  não  poderam  dispensar  padres  a  seu  gei- 
to.  Formaram  nações  ,  ou  lhes  incutiram  o  culto ; 
chegaram  a  ricos  ;  fundaram  mesquitas  sumptuosas  ; 
mas  o  seu  sacerdócio  é  simples.  Se  a  casa  d'oração, 
como  elles  lhe  chamam ,  é  ampla  e  muito  frequen- 
tada tem  dois  imans ;  um  prega  ,  e  recita  as  ora- 
ções á  sexta  feira  [que  6  o  seu  domingo] ;  o  segun- 
do reza  em  publico  as  cinco  orações  diárias  na  mes- 
quita ás  horas  estabelecidas  :  nas  mesquitas  meno- 
res um  só  preenche  os  dois  encargos.  Também  ha 
em  cada  uma  destas  casas  um  ou  mais  mitezzins  , 
liomens  ,  que  substituem  as  vezes  dos  sineiros ;  so- 
licm  a  horas  certas  ás  varandas  dos  coruchéus  das 
mesquitas,  e  dalli  bradam  chamando  o  povo  á  ora- 
ção nas  marcadas  estações  do  dia ;  nas  grandes  ci- 
ílades  empregam  nisto  de  ordinário  os  cegos  para 
não  devassarem  os  recintos  c  jardins  dos  serralhos. 
Como  os  sectários  do  Al-Koran  aborrecem  os  sinos, 
e  não  os  usam ,  este  é  o  meio  de  que  se  lembram 
para  supprirem  o  solcmne  som  do  instrumento  mc- 
tallico ,  que  por  tão  singelas  percussões ,  espalha 
nos  paizes  catholicos  a  muita  distancia  a  recorda- 
ção de  Deus.  Imprópria  e  deficiente  c  a  substitui- 
<;ão  ;  e  todos  podem  ajuizar  como  alcançará  a  voz 
humana  chegar  de  grandes  alturas  a  ouvidos  alor- 

(•)  O  P."  Manuel  Godinho  falla-iius  do  rcmedan  ou 
«luaiesma  liirca  e  viu  como  pra  cumprida  em  Alcpo  da  Sy- 
ria :  — íiOs  mais  observantes  não  comem  lojo  que  se  põe  o 
íol ,  senão  depois  que  apparece  al^,'nma  estreita.  Não  assini 
os  araliios  da  Deserta  que  eu  via  comer  a  toda  a  hora  nes- 
ta sua  quaresma.  "  —  Vide  a  curiosa  Relação  deste  viajante 
jjortugnex  a  \y,ií;.  213  da  moderna  edição  publicada  por  es- 
ta Sociedade  Proiiagadora  dos  Couliecimenlos  Uleis. 


doados  pelo  bulicio  e  algazarras  de  uma  terra  po- 
pulosa.—  Mas  como  o  culto  era  novo,  e  tratava-se 
de  o  diffcrençar  especialmente  do  christianismo , 
Mafoma  e  os  seus  adoptaram  mais  este  modo  ridí- 
culo de  seggregação.  —  Consolemo-nos  que  se  por 
cá  não  acodem  todos  á  pancada  retumbante  dos  si- 
nos ;  ha  por  lá  maioria  que  se  faz  surda  ao  clamor 
do  muezzin  :  consolação  não  será  ,  mas  cada  reli- 
gião tem  seus  tibios  e  remissos. 

Na  estampa  vê-se  o  gosto  de  architectura  que 
predomina  na  construcção  dos  minareis ,  eoruchéus 
das  mesquitas,  pináculos  desses  edificios ,  que  em- 
parelham de  algum  modo  com  as  nossas  cúpulas  ou 
zimbórios:  lá  se  divisa  n'um  bem  alto  o  muezzin, 
tapando  com  as  mãos  os  ouvidos ,  e  bradando  aos 
crentes  que  venham  cumprir  seus  religiosos  deve- 
res. ;.  .  ...  ...        ,,   , 


Da  lavodra  em  campo  aberto  ou  lavrada  : 
e  da  sementeira. 

Dissemos  n'um  artigo  [a  pag.  333  do  1.°  vol.  desta 
2.^  Serie]  em  que  consistia  o  lavor  da  terra  a  que 
chamámos  lavrar,  o  fim  ou  utilidade  desta  operação, 
os  instrumentos  e  os  auimaes  indispensáveis  para  el- 
la.  Continuando  agora  a  mesma  matéria  diremos  o 
que  nos  parece  mais  essencial :  1.°  sobre  o  modo  de 
lavrar ,  isto  é  ,  sobre  a  direcção  e  profundidade  do 
rego ;  2.°  sobre  o  tempo  próprio  de  o  fazer.  E  ain- 
da que  acontece  alguma  vez  pela  ligação  das  idéas 
que  caíamos  em  alguma  repetição,  não  seja  isto  oc- 
casião  de  reparo,  porquanto  em  objecto  de  tão  gran- 
de utilidade  nunca  os  preceitos  de  reconhecida  evi- 
dencia e  vantagem  se  repetem  assaz.  Com  efleito 
ben  lavrar  e  bem  estrumar  são  os  dois  pontos  em 
que  repousa  todo  o  segredo  da  agricultura  :  tudo  o 
mais  são  accessorios  e  consequências  dclles.  Recor- 
dem-se  os  leitores  daquelle  celebre  processo  de  que 
nos  deu  noticia  Tito  Lívio  :=  Um  lavrador  da  cam- 
pina romana  foi  accusado  perante  os  magistrados 
de  praticar  sortilégios  por  meio  dos  quaes,  ao  mes- 
mo tempo  que  seus  visinhos ,  igualmente  agriculto- 
res ,  só  recolhiam  de  seus  suores  uma  colheita  fra- 
ca c  mesquinha  ,  elle  pelo  contrario  tinha  sempre 
as  melhores  searas,  e  a  mais  copiosa  c  abundante 
producção.  O  accusado  ,  para  descarregar-se  desta 
imputação  ,  compareceu  no  furnm  romano  acompa- 
nhado de  seus  criados  fortes,  calejados,  robustos  ; 
de  seus  bois  gordos,  reforçados  e  optimamente  tra- 
ctados ;  e  de  seus  instrumentos  de  lavoura  bem 
construídos  ,  limpos  ,  c  admiravelmente  proporcio- 
nados ;  feito  o  que  disse  para  os  juizes:  eis-aqui 
cia  que  consistem  meus  sortilégios  e  encantamen- 
tos ;  bons  trabalhadores  ,  instrumentos  adequados  , 
e  as  grandes  serras  d'estrume  que  tenho  promptas 
para  o  meu  campo ,  são  todo  o  mysterio  de  minha 
agricultura  ;  que  meus  visinhos  façam  outro  tanto , 
terão  igual  resultado.  = 

Profundidade  e  direcção  do  rego  do  arado. 

A  profundidade  do  lavor  depende  da  qualidade 
do  solo  :  se  a  torra  é  boa ,  e  a  camada  vegetal  ci- 
meira é  larga  c  rica ,  deve  lavrar-se  profundamen- 
te ;  porque  quanto  mais  volvida  fòr  a  terra  boa , 
melhor  arreigará  c  prosperará  a  planta  ;  da  mesma 
sorte  se  fará  quando  a  camada  inferior  ou  sob  solo 
fór  de  qualidade  superior  á  primeira  ;  porque  nesse 


o  PANORAMA. 


175 


caso  convém  Iraze-la  á  superfície.  Nas  terras  mais 
leves  ou  fracas  a  profundidade  deve  ser  menor, 
porque  quanto  mais  se  volve  o  solo ,  mais  se  au- 
gmentam  aquelles  defeitos ,  c  mais  facilmente  chu- 
pam a  humidade ,  c  evaporara  os  gazes  nutritivos. 
Os  regos  devem  praticar-^c  guardando,  quanto  pos- 
sivel  for  ,  uma  linha  recta  ,  descrcvcndo-a  longitu- 
dinalmente de  norte  a  sul,  afim  de  que  a  seara  ten- 
do a  mesma  exposição  amadureça  ao  mesmo  tem- 
po. Nas  collinas  porem,  nas  encostas,  e  em  geral 
nos  terrenos  montuosos  deve  lavrar-se  horisontal- 
menle,  e  não  d'alto  abaixo,  afim  de  que  com  as 
enxurradas  se  não  arraste  ou  deslave  a  terra. 

Do  tempo  próprio  para  lavrar. 

Em  geral  deve  escolher-se  para  lavrar  um  estado 
da  terra  entre  humidade  e  seccura :  o  caso  c  que 
a  terra  se  esboroe  facilmente  pela  lavoura  que  é  a 
significação  do  testo  latino  :  =aut  puire  solum  ,  hoc 
cnim  insistamur  arando.  = 

Nas  terras  seccas  e  ligeiras  é  bom  esperar  tem- 
po húmido  ,  mas  não  frio  ;  nas  húmidas  lavrar  em 
estação  secca  e  enxuta.  O  lavrador  experimentado 
apalpando  a  terra  entre  os  dedos  facilmente  verá 
se  está  ou  não  em  estado  de  poder  lavrar-se.  Algu- 
mas vezes  acontece  que  o  tempo  continuadamente 
secco  estorva  a  lavoura  no  tempo  adequado ,  e  en- 
tão aquelles  que  tem  posses  para  isso ,  costumara 
metter-lha  agua  por  igual  afim  de  refrescar  o  cam- 
po ,  e  lavram  depois. 

La  sementeira. 

Depois  da  terra  lavrada  segue-se  ordinariamente 
nos  cereaes  a  sementeira.  Deve  escolher-se  para  se- 
mente o  grão  mais  grado  e  perfeito ;  e  melhor  será 
se  fòr  nascido  e  criado  em  outro  terreno  :  as  plan- 
tas amam  também  até  certo  ponto  a  variedade.  Co- 
mo por  um  lado  seria  perdido  o  grão  partido ,  ou 
furado  do  bicho ,  ou  cariado  ,  que  se  lançasse  na 
terra ;  e  por  outro  lado  de  má  semente  se  não  pôde 
esperar  boa  planta  ,  convirá  experimentar  primeiro 
o  grão.  Para  isso  se  lança  em  agua  bastante  a  fa- 
zer vir  á  superfície  o  que  estiver  deteriorado  ;  e  es- 
te se  tira  para  fora  destinando-o  a  outros  usos.  Es- 
ta immersão  n'agua  por  algumas  horas  [o  ou  6] , 
dispõe  o  grão  a  fermentar  e  a  nascer  mais  rápido. 
Os  francezes  preferem  lava-lo  remexendo-o  muitas 
vezes  n'um  banho  d'agua  de  cal  ligeiramente  colo- 
rada, em  consistência  a  que  chamam  —  leite  decai. 
—  Depois  se  enxuga  posto  ao  ar,  e  secco  se  seraèa. 

O  methodo  de  semear  cnlre  nós  é  qnasi  geral- 
mente o  que  chamámos  semear  á  mão.  O  semeador 
trazendo  o  grão  D'uma  cesta  pendente  do  braço  es- 
querdo ,  ou  n'um  sacco  aberto  pendurado  ao  pes- 
coço ,  vai  espalhando  a  semente  com  a  igualdade 
approximadamenle  calculada  por  toda  a  terra  ,  re- 
gulando o  braço  pelo  movimento  do  pé  nas  passa- 
das que  vai  descrevendo.  Este  methodo  requer  um 
grande  habito  :  é  o  mais  expedito,  mas  é  igualmen- 
te o  mais  sujeito  a  contingências  desagradáveis ; 
um  leve  descuido ,  xim  esquecimento  momentâneo 
do  semeador  pôde  causar  graves  inconvenientes ; 
pôde  repetir  a  sementeira  no  mesmo  local ,  ou  pas- 
sar em  claro  alguma  porção  de  terreno  :  em  todo  o 
caso  desperdiça-se  semente. 

Nos  paizes  onde  a  agricultura  está  em  progresso 
tem-se  inventado  grande  numero  de  semeadores , 
ou  machinas  mais  ou  menos  úteis  para  bem  semear 
e  poupar  semente.  Algumas  destas  desempenham 
bem  sua  destinação,  mas  infelizmente  por  sua  com- 


plicada estructura,  e  por  seu  preço,  não  podem  con- 
vir a  pequenos  cultivadores  ,  ou  nos  paizes  onde  a 
agricultura  está  em  atrazo.  Tm  dos  últimos  inven- 
tos desta  natureza  que  tem  tido  grande  voga  cm 
França  é  o  semeador  de  Mr.  Hugucs,  o  qual  serve 
para  todo  o  género  de  sementes  ,  e  dizem  que  cco- 
nomisa  muito  grão.  É  uma  machina  que  semèa  e 
grada  a  terra  ao  mesmo  tempo  ;  isto  c  ,  depõe  a 
semente  n'um  pequeno  rego  traçado  por  uma  re- 
lha ,  e  depois  a  cobre  immcdialamente  ,  e  a  enter- 
ra n'uma  profundidade  regulada.  Consiste  esta  ma- 
china semeadora  em  um  ou  dois  taboleiros ,  com» 
aquelles  que  contém  o  grão  que  vai  raoer-se  nos 
moinhos  ou  azenhas  :  destes  taboleiros  vai  descen- 
do a  tubos  que  são  ordinariamente  de  três  a  sete  , 
e  pelo  bocal  destes  tubos  vai  cahindo  o  grão  cm  li- 
nhas rectas  parallelas.  Á  proporção  que  esta  machi- 
na vai  passando ,  puxada  por  um  ou  dois  animaes  , 
se  vai  operando  a  sementeira  d'uma  larga  banda 
de  terreno  ,  e  a  grade  ,  ahi  pegada  posteriormente  , 
vai  logo  cobrindo  o  grão.  Este  instrumento  vem  de- 
senhado no  Jornal  dos  Conhecimentos  Úteis ,  no  n." 
de  março  de  1840.  Mas  os  redactores  tiveram  logi 
o  cuidado  de  advertir  que  este  e  outros  instrumen- 
tos aperfeiçoados  só  poderão  adoptar-se  quando  mui- 
tos cultivadores  se  concertem  entre  si  para  os  terem 
em  commum. 

Outro  instrumento  semeador  mais  simples ,  me- 
nos dispendioso  e  complicado  ,  c  que  nos  parece 
encher  a  indicação  ,  é  o  de  Mr.  Bareau  :  compõe- 
se  de  2  partes ;  1."  a  caixa  que  contém  a  semente, 
e  um  cylindro  escova  que  rolando  dentro ,  tocado 
por  uma  manivela  pela  mão  direita  do  portador  , 
vai  despejando  o  grão  nos  orifícios  dos  tubos ;  2.' 
deste  mesmo  tubos  [3  ou  5]  suspendidos  no  ar  pe- 
lo diâmetro  d'uma  pequena  roda  preza  ao  tubo  do 
meio.  Estes  tubos  latcraes  estão  presos  á  caixa  de 
maneira  que  o  portador  desta  machina ,  pendente 
dos  hombros,  pôde  aparta-los  ou  approxima-los  con- 
forme a  necessidade  da  sementeira  ,  e  as  desigual- 
dades da  lavoura.  Esta  caixa  pôde  conter  uma  quan- 
tidade de  sementes  para  occupar  até  três  quartos 
d'hora.  Eila  é  presa  por  uma  corrêa  que  pende  dos 
hombros,  como  dissemos  ;  e  o  portador,  com  a  mão 
esquerda  levemente  apoiada  sobre  a  caixa  ,  a  con- 
serva fixa  e  immovel.  Com  a  mão  direita  toma  a 
manivela ,  e  esta  faz  rodar  o  cylindro ,  o  qual  pos- 
to em  movimento  agita  os  grãos  e  os  faz  cahir  nos 
orifícios  mais  ou  menos  bastos,  segundo  a  maior  ou 
menor  velocidade  que  o  homem  dá  volteando  a  ma- 
nivela. Em  alguns  departamentos  da  Erança  empre- 
gam mulheres  neste  mister  ,  e  calculam  que  uma 
delias  com  um  semeador  de  três  tubos  pôde  semear 
um  hectar  e  meio  de  terreno  [vide  o  Jornal  supra 
indicado]. 

Nas  terras  mui  ligeiras  ou  areentas,  onde  se  não 
pôde  esperar  que  a  vegetação  prospere  ,  sempre  na 
raiz  da  planta  esteja  o  estrume  em  posta  :  depois 
da  terra  lavrada  c  gradada,  e  limpa  das  herdas  e 
raizes  costumara  fazer  regos  com  uma  relha ,  e  ahi 
d'espaço  a  espaço  deitam  um  punhado  d'es[rume  e 
um  ,  dois ,  ou  três  grãos  de  semente  ,  cubrinuo-os 
logo  com  o  mão  ,  ou  com  o  pé.  Outras  vezes  fazem 
isso  á  enxada,  praticando  buracos  ou  covas  em  que 
depõem  o  estrume  e  a  semente.  Tudo  isto  porem 
depende  de  consideração  ,  attendendo  aos  costumes 
práticos  do  paiz,  e  á  natureza  e  qualidade  do  so- 
lo. Nas  sementeiras  porem  em  grande  ,  ó  certo  que 
se  não  pôde  adoptar  senão  a  sementeira  á  mão  ,  ou 
pelo  methodo  Barreau.  —  J-  <hi  C.  A.  C. 


176 


O  PANORAMA. 


Os  ARVOREDOS  fructifcros  produzem  mais  que  os  grãos 
semeados,  porque  sua  superfície  é  muito  maior  que 
o  terreno  que  a  arvore  occupa.  Na  cultura  deste 
género  de  riqueza  agrícola  a  |)rinicira  regra  ó  a  es- 
colha dos  silios  priiprios  para  a  |ihiiitação. 

Assim  que  ,  nos  terrenos  montuosos  ,  e  em  suas 
encostas  ao  nascente  e  meio-dia  ,  se  plantarão  cora 
vantagem  oliveiras  ,  e  se  semearão  pinheiros. 

Nas  terras  leves  se  plantem  cerejeiras,  nesperas  , 
o  til  ,  e  outras  espécies  semelhantes. 

Nas  terras  fortes  ,  macieiras  ,  pereiras  ,  noguei- 
ras ,  amoreiras,  carvalhos,  olmeiros,  faias,  casta- 
nheiros. 

No  solo  pedregoso  ,  as  amendoeiras  ,  romeiras  ,  o 
bordo,  aveleiras,  e  outras. 

Nas  terras  húmidas  ,  ou  nas  margens  dos  rins  , 
ou  riheiros,  as  plantas  que  amam  frescura,  como 
salgueiro,  amieiro,  chorão,  vimeiro. 

Quanto  á  sna  cultura  cm  particxdar. 
Amoreiras.  —  As  q\ie  são  destinadas  para  a  cria- 
ção dos  bichos  da  seda  ,  vem  de  muitos  modos:  de 
semente,  d'estaca,  d'al|)orque  ,  e  de  planta  com 
raiz.  Para  semear  grainlia  da  amoreira  é  preciso 
uma  terra  solta  e  preparada  quatro  mezcs  antes: 
semea-se  em  abril ,  cobre-se  com  uma  camada  de 
terra  de  quatro  linhas,  c  melhor  se  for  tcrriço  ou 
esterco  vegetal  muito  fino  e  apodrecido  de  longo 
tempo.  Quando  se  plantam  de  raiz  refresca-se  esta 
com  agua  ,  c  se  lhe  corta  o  pirot  ou  espigão  :  plan- 
tam-se  cora  dois  pés  de  distancia  umas  das  outras  , 
sendo  para  transplantar;  porque  se  forem  dispostas 
para  ficar  devem  dispòr-se  em  covas  de  quatro  pés 
de  l.irgo  e  ires  de  profundidade,  abertas  dois  me- 
res  autes.  As  estacas  piantam-se  no  meado  d'outu- 
bro  ,  á  sombra  ,  e  defendidas  com  apoio  de  madei- 
ra :  fende-se-lhe  embaixo  a  lige  ,  e  se  lhe  mettem 
nas  fendas  grãos  de  cevada.  As  amoreiras  em  geral 
gostam  de  estrume  e  de  lavouras  no  terreno  que 
occupara  ;  e  convém  limpa-las  do  musgo  que  as 
persegue  ,  dos  paus  e  ramos  seccos  ,  ou  inúteis. 

Cerejeiras  e  gincjciras.  —  Querem  terra  solta  ,  le- 
Tc  ,  porem  sècca  ;  semeam-se  de  caroço  nos  fins  de 
fevereiro  ,  fazendo-os  primeiro  fermentar  e  grelar 
em  saibro  ;  enxerlara-sc  nos  primeiros  dias  de  se- 
tembro no  mesmo  anno.  Estas  arvores  são  muito 
vivazes;  renovam-se  facilmente  por  meio  da  enxer- 
tia a  ponto  que  depois  de  grandes  e  frondosas  se 
podem  tirar  ,  e  enxertar  com  qiiasi  certeza  de  bom 
resultado.  Não  gostara  d'eslrume  nem  de  lavouras 
que  lhes  mordam  a  raiz  ;  devem  antes  ser  cavadas 
á  enxada  ;  e  limparem-se  do  musgo  e  dos  ramos 
seccos.  Apressa-se-lhes  a  maturação  do  fructo  pon- 
do-lhescal  ao  pc  ,  c  regando-as  com  agua  aquecida. 
Sòrvciras ;  amam  logares  frescos,  húmidos,  e  su- 
hstanciaes  :  se  se  pertcnde  have-las  de  semente  ha 
um  meio  fácil  :  toma-se  uma  corda  de  linho  ,  ou 
d 'esparto  velha  c  sem  outra  serventia  ;  passa-se  es- 
ta pelo  fructo  esfregando-a  ;  e  quando  pela  adhe- 
rencia  a  graã  está  pegada  á  corda  ,  cstcnde-se  esta 
rrum  rego  feito  em  terra  preparada,  o  ligeiramen- 
te coberta,  enterrada  no  mez  de  oulubro.  Nascidas 
rcgam-sc  ,  sacham-se  ,  e  se  transplantam  cm  covas 
de  quatro  pés  em  quadro  e  três  de  profundidade. 
As  sorvas  gostam  de  terra  lavrada  e  cultivada,  (luar- 
de-se  o  fructo  em  vasos  de  barro  bem  tapados  ,  c 
barrados  ,  metlidos  em  terra  sccca  a  um  palmo  de 
profundidade  ,  em  sitio  soalheiro. 


Nespereiras ;  tem  a  mesma  cultura  que  as  sorvas. 
Oliveiras:  —  amam  terra  grossa,  mas  sècca  c 
quente ,  exposta  ao  meio-dia  ou  ao  nascente  ,  mais 
nos  altos  que  nos  baixos.  Propagam  ou  dos  reben- 
tões que  deitam  do  pé  ,  e  que  se  deixam  crescer  e 
engrossar  alé  terem  duas  polegadas,  ou  das  estacas 
que  se  lhe  tiram  dos  ramos  ociosos  ,  ou  de  raiz  a 
que  chamam  de  cabeça.  Este  ultimo  modo  é  o  qoe 
produz  mais  depressa.  Devem  escolber-se  os  reben- 
tões e  estacas  fortes  ,  direitas  ,  e  sem  mazellas  ou 
esfoladuras  ;  tira-se-lhes  a  casca  no  pé,  deixando  só 
a  verde  ou  entrecasco  ;  plantam-se  em  novembro  nos 
paizes  quentes,  em  fevereiro  e  março  nos  climas 
temperados,  era  covas  de  quatro  pés  de  largo  etrcs 
de  fundo  ,  abertas  dois  mezes  antes,  misturando  na 
terra  da  raiz  esterco  e  cinza  ;  bale-se  bera  a  terra, 
deixando  alguma  debaixo  do  toro  ou  raiz  da  plan- 
ta :  depois  devem  regar-se  e  sachar-se.  Transplan- 
lam-se  no  fim  de  cinco  annos  [se  foram  nascidas  e 
ciiadas  em  viveiro],  e  se  devem  cultivar,  sachar 
c  estercar,  podendo  ser,  todos  os  annos.  Não  se 
talham  nem  podam  nos  dois  primeiros  annos;  no 
terceiro  se  lhes  deixam  duas  vergonteas  :  no  quarto 
anno  a  mais  fraca  das  duas  se  corta  e  se  planta  pa- 
ra ser  transplantada  noquinto.  A  transplantação  de- 
ve ser  feita  levando  a  terra  pegada  ás  raizes,  quan- 
to poder  ser.  Todos  os  práticos  sabem  já  que  as  oli- 
veiras devem  ser  limpas  amiudadas  vezes  ,  e  que 
convém  abri-las  de  modo  que  o  ar  e  o  vento  as  pe- 
netre ;  e  se  costuma  dizer  por  isso  que  devem  ap- 
presentar  a  forma  d'um  sino  de  boca  para  o  ar.  A 
limpeza  não  deve  demorar-se  mais  de  seis  ou  oito 
aiuios  ,  por  um  Icrapo  sécco  e  soalhoso  ;  no  fim  do 
inverno  será  bom  cobrir  a  chaga  ou  córtc  com  bor- 
ras d'azeile. 

Enxertam-sc  em  maio  de  borbulha  ;  um  anno  de- 
pois se  cortam  rente  do  enxerto.  Quando  a  oliveira 
esiá  velha  e  se  quer  cortar  ou  arrancar ,  tira-se  em 
cada  ramo  principal  um  anncl  de  casca  circular , 
que  se  cobre  com  o  aparelho  dos  enxertos :  esta 
operação  serve  para  fazer  dar  naquelle  anno  tudo 
quanto  pôde  dar  de  fruto. 

Nogueiras;  gostam  de  terra  gorda,  como  terra  de 
trigo  ;  dão-se  nos  quiutaes  e  nos  caminhos  ,  ainda 
em  chão  duro.  Semeam-se  as  nozes  em  fevereiro,  e 
pJanlam-se  dois  annos  depois  cm  viveiros  no  mez 
d'outuhro.  Não  se  plantam  muito  grossas  ;  e  preci- 
zara  ser  sachadas  :  (jorta-se-lhes  o  espigão  quando  se 
transplantam  ;  dispõem-se  distante  umas  das  outras. 
Enxertadas  dão  melhor  fructo,  e  dobrado  cm  quan- 
tidade. 

Amendoeira;  ama  terreno  rude  c  pedregoso,  séc- 
co e  quente  :  o  melhor  modo  de  cultiva-las  é  o  plan- 
ta-las logo  no  solo  em  que  devem  ficar.  São  muito 
\ivazcs,  e  boas  até  para  tapumes. 

Alfarrobeira:  —  plantam-se  os  rebentões  em  no- 
vembro ou  fevereiro  em  covas  profundas ,  terreno 
sécco,  e  com  boa  exposição  ao  meio-dia.  Enxer- 
lam-sc  na  ameixieira  brava  ou  na  amendoeira  :  rc- 
gara-se  a  miúdo. 

Castanheiro:  —  dá-se  em  todo  o  terreno  nos  cli- 
mas de  teni|)cratura  que  lhe  convenha  ;  nas  encos- 
tas e  altos  princi|)almente.  Semeam-se  as  castanhas 
nos  ouriços  mesmo  ;  formam  viveiros  ,  e  transplan- 
lam-se  aos  seis  annos.  Os  enxertados  dão  melhor 
castanha,  em  maiorquantidade,  e  fazem  larga  copa. 
Esta  arvore  é  jireciosa  na  provincia  do  Minho,  por- 
<]ue  serve  d'encosto  ás  videiras  que  dão  uvas;  o  cas- 
tanheiro lança  vcrgontea  que  no  alto  dá  castanhas,  c 
passados  annos  bella  madeira. — J.  <í«  C.  N,  C. 


76 


o  PANORAMA. 


177 


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Ikaiando  agora  da  capital  ila  Franra  ,  nSo  recopi- 
laremos as  noticias  ,  que  vamos  dar,  de  escriptores 
daquelle  paiz.  ou  iiialczes,  mas  d'um  viajante  lies- 
panhol,  ameno  e  judicioso,  que  costuma  as6ignar-se 
—  cl  curioso  parlante. —  i») 

(•)     Imprimiu  as  suas  recordacjòes  em  1811. 

JiNuo  10—1843. 


Todo  o  mundo  sabe  que  a  antiga  lulecia  dasGal- 
lias  reduzia-se  em  sua  primeira  epoclia  a  uma  ilho- 
ta formaria  pelo  rio  Sena  ,  e  que  subsiste  hoje  e  <■ 
conhecida  pelo  nome  de  laCile:  aggregaram-se-lhe 
successivamente  outras  duas ,  pequenas;  a  de  S. 
Luiz  e  a  deLouvois.  Andando  os  tempos,  e  não  ca- 

%'  Sebie,  —  Voi..  II. 


178 


O   PANORAMA. 


bendo  já  a  povoarSo  de  Lutccia  em  tão  estreitos  li- 
mites, alargou-sc  por  ambas  as  margens  do  rio,  tras- 
bordando prodigiosamenlo  cm  cada  século  alem  das 
iiarreiras  ,  de  forma  que  pôde  dizer-se  hoje  que  o 
principal  berro  d'aquella  metrópole  apenas  se  divi- 
sa enlrc  a  immensa  extensãi)  das  outras  duas  povoa- 
ções ;i  direita  e  esquerda  do  Sena. —  Este  rio,  pois, 
encerrado  no  meio  ,  e  atravessando  aiiualmente  a 
cidade  cm  toda  a  sua  extensão,  é  a  artéria  princi- 
pal ,  a  linha  de  demarcarão  ,  entre  as  três  princi- 
l)acs  divisões,  c  a  separação  que  ella  estaheicce  não 
bó  é  perceptível  na  phisionomia  material  das  cons- 
Irucções,  mas  também  na  social  e  politica  da  popu- 
lação :  assim  vemos  que  a  parte  septentrional  ,  is- 
to ó  as  Tolherias  c  a  Chaussée  d'Antin,  é  mais  ha- 
bitada pela  corte  e  membros  de  coramercio  ;  a  me- 
ridional,  a  saber,  os  quartéis  de  S.  Germain  e  a 
tJniversidade  ,  é  património  da  antiga  aristocracia  e 
das  escholas ;  e  o  centro  correspondente  ás  ilhas  , 
e  onde  se  acham  situadas  a  cathedral  c  o  edifício  do 
Iribonal  de  justiça  ,  é  mais  especialmente  habitado 
l)eIo  clero  c  a  cúria. 

Reunidas  ,  pois  ,  estas  três  divisões  ,  compõem  o 
lodo  assomhroso  de  quasi  sete  léguas  de  circumfe- 
rencia  ,  coberto  de  46  mil  cdificios,  cortado  por 
1:200  ruas,  e  povoado  por  perto  d'nm  milhão  de 
habitantes.  Singela  muralha  (: :)  rodèa  este  recin- 
to ,  interrupta  por  5S  entradas  ou  barreiras ,  ás 
quaes  vem  convergir  as  estradas  principaes  do  rei- 
no. Vinte  e  duas  pontes  sobre  o  rio  estabelecera  as 
communicações  entre  bairros  tão  apartados  ,  e  en- 
tre ellas  sobresahem  algumas  de  primeira  ordem 
pela  sua  solidez  e  elegante  fábrica.  —  A  nossa  gra- 
vura mostra  a  ponte  nova  na  parte  Occidental ,  com 
os  edifícios  adjacentes,  a  qual  passa  sobre  o  pontal 
da  cidade;  foi  começada  em  1578,  e  acabada  em 
160Í.;  tem  de  comprimento  1:020  pés  franc.  sobre 
78  de  largura  :  aforraosea-se  com  a  estatua  eques- 
tre do  rei,  pai  da  pátria,  o  clarissimo  Henrique  i.°, 
inaugurada  em  1G14;  os  revolucionários  a  derriba- 
ram em  1792  ;  como  diz  o  nosso  poeta  ,  P."  Fran- 
cisco Manuel  do  Nascimento  , 

Ruins  te  derribaram  ,  que  não  visses 

Os  dolos  ,  os  llagicios  , 
Que  haviam  commettcr  &«. — 

Foi  porem  restabelecida  em  sua  base,  em  24  d'a- 
gosto  dèl818,  mediante  subscripção  voluntária  dos 
parisienses  para  as  despezas. —  A  ponte  tem  14  pés 
d'altura. 

O  terreno  sobre  que' está  situada  a  cidade  é  ge- 
ralmente plano,  á  excepção  d'algumas  ladeiras  nos 
extremos  para  a  parte  do  Pantheon  ,  e  a  porta  de 
S.  Dionísio. 

Afora  a  divisão  central,  marcada  pelo  rio,  ha  ou- 
tra na  banda  septentrional  ,  c  que  é  formada  pelos 
formosíssimos  passeios ,  conhecidos  pelo  nome  de 
baluartes  ,  ou  couraças  (bonlcvards)  ,  e  abertos  so- 
bre o  pavimento  por  onde  outrora  corria  a  cerca  da 
cidade  ;  os  quaes,  descrevendo  em  sua  extensão  de 
obra  d'oito  mil  passos  uma  curvatura  immensa  des- 
de a  praça  da  SIagdalena  até  a  da  Bastilha,  subdi- 
videm a  parte  mais  vital  c  magestosa  de  Paris  [que 
é  a  comprehcndida  á  direita  do  Sena]  em  duas  gran- 
des porções,  que  podem  appellidar-se  nnva  c  velha: 
cain|>èa  n'aquclla  a  moderna  aristocracia  mercantil 
com  toda  sua  magnificência  ;  ostenta  na  outra  a  in- 
dustria e  o  rnminercio  a  retalho  a  sua  inexplicável 

(::)  'ruiKis  sal.ein  (pelo"  Joinaes  puliiicus)  (jual  a  exte- 
rior furlificaçãu  que  se  etlú  fubricaadu. 


actividade. —  As  ruas  principaes  ou  seguem  paral- 
lelas  as  duas  máximas  linhas  do  rio,  e  osboulcvards, 
em  prodigiosa  extensão  ;  ou  se  communicara  entre 
si  desde  um  a  outro  extremo  da  cidade  ,  estabele- 
cendo assim  uma  planta  bastante  uniforme  ,  e  não 
diliicil  de  compreliender  ao  forasteiro. 

Quem  chega  a  Paris,  vindo  d'Arcueil,  não  tem 
qne  felicitar-se  muito  da  primeira  impressão  que 
lhe  causa  esta  capital  ;  pois  atravessando  por  largo 
tempo  muitas  ruas  estreitas  ,  sujas  e  escuras  ,  ain- 
da que  d'extensão  desanimadora  ,  contemplando  a 
triste  c  sombria  fábrica  das  casas  ,  pela  mór  parte 
velhas  e  denegridas  pelo  tempo  e  a  humidade  do 
clima,  e  observando-as  habitadas  por  gente,  que  se 
bem  que  activa  e  industriosa  parece  revelar  o  rigor 
da  miséria  ,  achar-se-ha  de  prompto  desmaginado 
do  suas  ilUisões,  julgará  que  falharam  suas  brilhan- 
tes esperanças  ,  e  vingar-se-ha  em  silencio  das  en- 
comiásticas relações  dos  viajantes  ,  uialdiçoando  de 
todo  o  coração  tão  bondosa  credulidade. —  Mas  aguar- 
de o  recem-chegado  com  paciência  ;  siga  com  a  ima- 
ginação e  com  a  vista  o  curso  de  sua  carruagem  ; 
saia  enTfim  do  embrulhado  cabos  do  paiz  latino  [bair- 
ro da  Universidade]  ;  dè  vista  ao  rio  ;  atravesse  a 
poidf-^iova  ;  e  se  tiver  a  fortuna  de  que  a  innume- 
lavel  multidão  de  carruagens  que  de  todos  os  tama- 
nhos a  certas  horas  cruzam  nessa  paragem  obrigue  a 
deter-se  a  sua  por  alguns  minutos,  deite  a  cabeça  pc- 
bis  portinholas,  alargue  a  vista  para  um  e  outro  la- 
do ,  e  seguindo  os  braços  gigantes  da  cidade,  con- 
temple [se  poder]  diante  de  si  o  romântico  palácio 
das  Tolherias  e  seus  bellos  jardins,  a  magnifica  fa- 
chada do  Louvrc  e  sua  elegante  columnada  ,  a  in- 
terminável serie  de  formosas  casas  que  orlam  os 
fortes  diques  do  rio  ;  a  linda  perspectiva  das  pon- 
tes, o  antigo  lloíel  do  Vilíe  [casa  do  município]  e  a 
torre  de  Santiago  limitando  o  painel  á  sua  direita  ; 
o  (/belisco  egypcio  ,  e  o  arco  trinmphal  da  Estrclla 
á  sua  esquerda.  Pelo  opposlo  lado  do  rio  ,  poderá 
abarcar  a  sua  vista  os  palácios  do  Instituto  ,  e  da 
Caso  da  Moeda,  os  do  Conselho  d'Eslado,  e  da  Ca- 
mará dos  Deputados,  os  elegantes  zimbórios  do  Hos- 
pital dos  Inválidos  e  o  sumptuoso  Pantheon;  e  no 
meio  do  rio  a  ilha  engraçada  ,  que  parece  uma  ci- 
dade lluctuante,  que  derivando  da  ponte  e  sitio,  em 
que  suppomos  o  espectador,  vai  lindar  ostentando 
entre  as  nuvens  as  torres  sombrias  e  magestosas  da 
sé  parisiense  ( Nolre  DaineJ. 

Ignorámos  se  o  viajante  sedará  por  satisfeito  com 
esta  primeira  inspecção  ;  porem  nos  persuadimos  de 
que  não  será  assim  ;  antes  nos  capacitámos  de  que 
não  largando  as  suas  visões  [pelo  que  ouvira]  que 
nunca  semelham  a  realidade  ,  e  sendo-lhe  irapossi- 
vel  qualificar  de  uma  só  vista  espectáculo  tão  va- 
riado c  magnifico  ,  cederá  por  instantes  ao  atordoa- 
mento dos  sentidos  ,  do  que  não  saberá  dar  conta  , 
mas  que  lhe  empecerá  gozar  do  painel  magestoso  , 
que  o  rodea.  —  Mais  adiante  e  depois  de  acalmada 
a  primeira  e  indefinível  sensação  ,  só  poderá  dizer 
que  tem  achado  o  que  procurava  ,  Paris  niagnilico, 
Paris  cheio  de  movimento  c  d'induslria  ,  tal  como 
lh'o  debuxava  a  fantasia,  quando,  dirigido  por  guia 
inlelligenle,  tiver  percorrido  em  sua  largura  immen- 
sa as  regias  ruas  de  Rivoli  ,  Casliglionc  ,  c  da  Paz  : 
as  mui  frequentadas  de  Montmarire  ,  S.  Dinis ,  e 
S.  Martinho  ,  as  elegantes  e  industriosas  de  Riche- 
lieu  ,  Vivienno  ,  e  Si. °  Honorato  ,  as  opulentas  e 
aristocráticas  da  calçada  d'Anlin  e  <le  S.  (Herma- 
no ;  quando  levado  á  soberba  praça  da  Concórdia 
vir  ao  redor  de  si  a  ostentação  dos  principaes  pala- 


o   rANORA3IA. 


179 


cios,  jardins,  pnsseios  e  monumentos  piiblicos  de  1 
Paris  moderna  ;  quando  tiver  corrido  as  duas  or-  | 
dens  dt  diques  que  guarnecem  o  rio,  animadas  por  ! 
numerosa   e  activa  população  ;    quando  tiver  segui- 

I       do   a  linha  interminável  dos  boulcrards  desde  a  re-  . 

I  cente  colnmna  das  victimas  da  rcvoluvão  de  julho 
até  o  maçrnillco  templo  da  Magdalciia  ,  construido 
no  cslylo  grego  ,  e  por  toda  essa  extensão  tiver  oh-  [ 
servado  o  espectáculo  (]ue  alli  se  olTcrecc  uuico  cm 
seu  género  pelo  movimento  c  sumptuosidade  ;  quan- 
do do  lado  opposto  do  rio  houver  admirado  o  so- 
berbo Panthcon  ,  o  quartel  dos  Inválidos,  o  paro  e 
jardins  de  Luxemburgo  ,  o  delicioso  jardim  botâni- 
co ,  a  catbedral  de  >'ossa  Sr.' ,  e  o  palácio  do  Tri- 
bunal de  Justiça  ,  na  ilha  central  ;  c  os  das  Tulhc- 
rias  e  do  I.ouvre  ,  a  columna  de  Napoleão  ,  a  Casa 
municipal  ,  a  bolsa  ,  o  arco  da  Eslrella  ,  e  outros 
mil  monumentos  de  primeira  ordem  ,  na  margem 
direita  do  Sena  ;  quando  tiver  contemplado  ;i  noite 
esto  dilatado  painel  illuminado  por  infinidade  de 
lampiões  ,  e  tiver  transposto  as  encantadoras  gale- 
rias [passagtsj  de  ^'ivienne  ,  Colbert ,  Saumon  , 
Choiseul ,  Panoramas  ,  Verododal  ,  &c.  ;  finalmen- 
te ,  quando  houver  examinado  as  bellissimas  arca- 
das que  rodeiam  o  jardim  do  palácio  real  d'Or- 
léans  ,  e  encontrado  nellas  o  bazar  mais  magnifico, 
a  mais  rica  exposição  de  géneros  d'industria  ,  que 
-  existe  na  Europa.  Então  ficara  estupefacto  o  obser- 
Tador  ;  e  aconselhàmos-lhe  que  não  pertenda  quali- 
ficar de  prompto  tantos  e  tão  variaiios  objectos ; 
que  não  ceda  ao  enthusiasmo  nem  á  fadiga  que  es- 
ta vista  poderá  causar-lhe  ,  mas  que  liraitando-se  , 
quanto  fòr  possível ,  á  observação  meramente  pas- 
siva, aguarde  que  o  tempo  venha  colloca-lo  na  ver- 
dadeira posição,  donde  deve  examinar  este  compos- 
to grandioso. 

Sem  nos  apartarmos  da  rápida  inspecção  mate- 
rial da  cidade  diremos  que  não  pôde  aflirmar-se  que 
Paris,  tomada  emconjuncto,  seja  uma  povoação 
bella  ,  uma  perspectiva  mui  aprazível  :  isto  por  va- 
rias rasões.  —  A  considerável  extensão  de  seu  re- 
cinto ,  povoado  e  augmentado  em  differcntes  epo- 
chas  e  sob  o  influxo  de  civilisações  diversas  ,  reve- 
la o  sello  de  cada  uma  em  seus  vários  bairros.  Se 
penetrámos  ,  por  exemplo  ,  nos  bairros  centraes  de 
Paris  antiga  ,  achámos  um  inextricável  labyrintho 
.  de  ruas  estreitas  e  tortuosas  ,  de  casas  altíssimas  e 
informes,  onde  nunca  entrou  a  luz  do  sol,  cujas 
fachadas  e  ogivas  maltratadas  pelo  tempo  offerecem 
um  desgraçado  prospecto  daquella  cpocha  tão  ga- 
bada em  nossos  dias  por  novellistas  e  poetas.  .  .  To- 
davia, Paris  de  Luiz  11.°  e  d'Henrique  4.°  vai  de- 
sapparecendo  rapidamente  ante  as  poderosas  exi- 
gências da  moderna  civilisação  ;  e  hoje  só  conserva 
como  documentos  da  antiga  ,  alguns  bairros  tortuo- 
sos ,  algumas  ruas  sombrias  ,  e  alguns  edificios  pú- 
blicos, por  sua  importância  e  ancianidade  respeitá- 
veis :  estendendo  seus  limites  até  onde  nunca  o  so- 
nhariam seus  primeiros  fundadores  ,  levanta  sobre 
as  margens  do  Sena  infinidade  de  ruas  ,  direitas , 
uniformes,  amplíssimas,  cheias  de  prédios  d'ele- 
gante  forma  ,  calçadas  de  cantos  quadrangulares  , 
que  offerecem  ás  carruagens  superfície  unida  e  so- 
lida ,  com  passeios  laleraes  para  comraodidade  dos 
viandantes. 

Muitos  destes  melhoramentos  se  tem  feito  de  pou- 
cos annos  a  esta  parte  ,  porque  ainda  não  ha  bem 
quinze  eram  as  ruas,  em  geral,  porcas,  destituídas 
pela  maior  parte  de  passeios  lageados,  e  os  que  ha- 
>ia  eram  acanhados:   a  illuminação ,  hoje  de  gaz 


nos  sitios  principaes,  era  feita  com  azeite  em  toda  a 
parte,  e  os  lampiíies  estavam  pendentes  de  cordas 
atravessadas  nas  ruas  de  banda  a  banda.  Certos  in- 
convenientes e  em  certas  partes  não  se  tem  removi- 
do ,  porque  Paris,  como  os  seus  projirios  escripto- 
res  lhe  chamam  ,  é  por  antonomásia  buuibcuse  ,  isto 
é  ,  lamacenta. 

Daremos  mais  outra  rasão  jiorque  aos  habitantes 
lio  sul  da  Europa  não  pôde  parecer  bella  no  seu 
todo  a  capital  da  França.  —  Primeiro  que  tudo,  os 
nossos  olhos  acostumados  a  uma  almosphera  pura  , 
ao  Sol  resplandecente  ,  buscam  no  compacto  d'uma 
povoação  esta  transparência  do  ambiente  ,  c  a  har- 
monia das  cores ,  que  só  achámos  em  nosso  clima  : 
embellccidos  os  objectos  mais  somenos,  e  appro- 
ximadas  remotas  distancias,  adquirem  pelo  refle- 
xo do  nosso  claro  sol  um  loque  gradual  de  colori- 
do, uma  harmonia  na  aggregação  dos  objectos,  que 
debalde  buscaremos  onde  as  nuvens  e  brumas  tem 
qnasi  constante  império  e  imprimem  naquelles  um 
aspecto  antecipado  de  velhice.  De  mudo  que  con- 
tcm[dada  de  grande  altura  Paris  só  oITerece  uma 
immensa  mole  de  sombras  cinzentas  ,  um  apinha- 
do de  coruchéus  pardos  ou  negros  ,  uma  montanha 
de  lousas  ,  em  cujo  horisonte  deslavado  e  sombrio 
vão  apagar-se  os  raios  fracos  do  sol  ;  das  ruas,  ain- 
da as  mais  largas  e  maiores  ,  também  se  não  goza 
a  inteira  extensão  ,  pela  opacidade  da  atraosphera 
na  maior  parte  do  anno  ;  e  os  objectos  mais  salien- 
tes e  remotos  ,  torres  e  arcos  triumphaes  ,  appare- 
cem  como  que  encubertos  com  véu  de  gaza  mais 
ou  menos  espesso,  que  por  outro  lado  não  deixa  de 
prestar-lhes  certo  realce  e  mysteriosa  formosura. — 
Resultado  da  permanente  humidade  é  a  sombria 
cór  que  adquirem  prestes  os  edificios  ,  em  termos 
de  chegarem  a  denegrir-se  completamente  os  de 
cantaria  ,  e  darem  logar  nos  interstícios  das  pedras 
a  certo  musgo  verdeiiegro  que  os  desfigura  ,  se  não 
são  limpos.  Assim,  por  exemplo,  a  fachada  da  ca- 
tbedral ,  a  columnada  do  Louvre  ,  e  outros  edificios 
não  produzem  sobre  nós  o  effeilo  ,  que  nos  arreba- 
tava quando  os  contemplávamos  em  estampas ;  e 
por  isso  a  Bolsa  ,  a  igreja  da  Magdalena  ,  o  arco 
d'É!oile  ,  mais  modernos  e  que  tem  resistido  á  ac- 
ção da  atmosphera  ,  nos  agradam  e  seduzem  mais. 

O  pavimento  calçado  das  ruas  de  Paris  é  solido 
e  compacto  :  formando  uma  leve  curva  com  a  ele- 
vação no  centro,  é  por  extremo  próprio  para  o  tran- 
sito do  carruagens ,  ainda  que  as  regueiras  que  fi- 
cam dos  lados  e  as  escoanies  junto  ás  casas  não 
deixam  de  causar  incommodo  á  gente  de  pé,  apesar 
da  multidão  de  sargentas  e  canos,  que  impedem  o 
ajunlamento  das  aguas  :  mas  este  inconveniente  se 
tem  ido  remediando  por  um  novo  syslema,  que  era 
1841  já  estava  praticado  nas  ruas  Vivicnne  e  Mon- 
tesquieu  ,  o  qual  consiste  em  fazer  passar  as  ditas 
regueiras  por  baixo  das  lages  alteadas  ,  com  o  que 
não  se  verá  nas  ruas  corrente  d'agua  ainda  na  oc- 
casião  de  maiores  chuvas.  As  ditas  escoantes  são 
de  conveniente  largura  segundo  a  da  rua  ,  e  de  la- 
ges ou  d'aspbalto,  e  ofTerecem,  por  serem  um  pou- 
co alteadas  .  abrigo  contra  os  perigos  ,  que  de  con- 
trario acarretaria  o  contínuo  transito  das  tarrua- 
gens.  —  A  limpeza  das  ruas  se  eflectúa  com  admi- 
rável expedição  se  attendermos  ao  vastíssimo  re- 
cinto ;  e  só  quando  sobrevem  as  grandes  chuvas  ou 
neves  do  inverno  é  que  realmente  e  por  algumas 
horas  se  põem  intransitáveis..  Já  fica  dito  que  a  il- 
luminação é  feita  por  meio  de  gaz  no  principal  da 
cidade  ,  e  alem  disso  é  poderosamente  reforçada 


180 


O  PANORAMA. 


com  a  profusão  de  luzes  da  infír.idc-idc  de  lojas : 
l)oreni  as  ruas  mais  apartadas  do  trafico  mercantil 
ainda  permanecem  pouco  menos  que  ás  escuras  com 
os  pallidos  revérberos  pendurados  ao  meio  das  ruas 
e  seguros  por  cordas  passadas  de  uma  a  outra  par- 
le.—  A  numeração  das  portas  é  fácil  c  commoda 
pelo  mclhodo  geral  dos  números  pares  á  direita  e 
os  impares  do  lado  esquerdo  ,  e  crescendo  ou  de- 
crescendo segundo  a  jiroximidade  do  rio.  —  Final- 
mente ,  a  policia  urbana  c  numerosa  ,  vigilante  c 
activa  ,  empregando  as  mais  das  vezes  persuasões 
e  meios  conciliatórios. 

Taes  são  as  Icições  gcraes  do  nomeada  Paris  :  — 
não  caberia  em  longa  serie  de  artigos  a  miúda  enu- 
meração de  todas  as  suas  particularidades:  —  to- 
davia d'alguns  de  seus  priuci[iaes  monumentos  já 
lemos  faltado  ,  e  porventura  trataremos  de  outros 
quando  se  nos  offereçam  desenhos ,  que  os  repre- 
sentem. 


■       ■  '•■  O   CAVALLEIRO  .\EGRO. 

,,.:.     i  ,.  .  Episodio  histórico. 

■.:-■.;;•:...,,      :■.■  1  .<■  ■  ,  ,      , 

D.  João  o  Torto. 

Mancebo  ainda  ,  porem  valente  e  generoso  ,  era  o 
filho  de  D.  Fernando,  o  cmprazado  (•)  quando  to- 
mou as  rédeas  do  governo.  Nunca  os  revezes  des- 
truíam suas  esperanças  ,  antes  o  alentavam  ,  tendo 
em  mais  conta  vencer  os  maiores  obstáculos  a  pró 
de  seu  povo  que  desfructar  regalados  festejos:  mas 
nem  por  isso  deixava  de  ser  afeiçoado  a  divertimen- 
tos e  ao  fausto,  e  participar  dos  públicos  regozijos, 
ataviando-se  com  ricos  vestidos  bordados  de  ouro  e 
pérolas,  e  que  faziam  realçar  seu  porte  nobre  e  ma- 
neiras engraçadas.  Quando  a  guerra  contra  os  mou- 
ros o  não  apertava  ,  ardia  em  desejos  de  mostrar  a 
lorça  de  seu  braço  ;  voava  aos  torneios  coberto  d'ar- 
raas  luzidas,  e  por  mais  de  uma  vez  obrigou  a  bei- 
jarem a  arena  esforçados  paladinos. 

Entre  os  principaes  senhores  que  concorreram  pa- 
ra as  revoltas  internas,  que  alborotaram  o  reino  du- 
rante a  menoridade  d'.\nonso  11.°,  eram  os  mais 
temidos  e  influentes  D.  João  Manuel,  senhor  de  Vi- 
lhena e  pai  da  rainha  D.  Constança,  c  o  famoso  in- 
fante D.  João  ,  o  torto.  A  arrogância  e  menospreço 
lom  que  este  tratava  até  os  nobres  da  mais  elevada 
jerarchia,  o  constituíam  uma  casta  delyranno,  abor- 
recido de  todos,  mas  a  quem  todos  temiam  por  seu 
desmedido  poder,  pois  como  divido  de  Atlonso  obti- 
nha parte  da  privança  deste,  e  a  Biscaia  o  reconhe- 
cia por  senhor.  Tempo  havia  que  no  coração  abri- 
gava ódio  mortal  contra  o  rei ,  e  seu  génio  altivo  e 
turbulento  só  esperava  propicia  conjunctura  de  ar- 
Tancar  abertamente  a  mascara  de  lealdade  cora  que 
se  enculiria  ,  introduzindo-se  no  entanto  cora  raa- 
nha  na  confiança  de  D.  João  Manuel  ,  o  qual  olha- 
va a  amizade  do  infante,  como  um  recurso  não  des- 
inciendo  para  chegar  a  mandar  tudo.  Os  enredos 
occultos  destes  cortezãos  não  escapavam  á  penetran- 
te sagacidade  do  rei,  que  justamente  desconfiado  do 
infante  começava  a  deixar  de  o  tomar  por  confiden- 
te ,  sem  comtudo  o  apartar  de  seu  lado,  porque  re- 
ceava dar-lhe  occasiãopara  novos  distúrbios,  quan- 
do era  tão  necessária  a  paz  interna ,  e  voltar  todos 
os  esforços  contra  os  mouriscos  d'.\ndaluzia. 

(•)  Lcaibraifos  estariío  os  leitores  ifa  lastimosa  liisloria 
iloB  irmãos  Carvajales  ,  narrada  no  1."  vol.  e  romanceada 
aos  íol.  perlencrjiles  noi  annos  de  1841  e  1813. 


Achava-se  a  curte  cmValhadolid  ;  e  á  mesma  ho- 
ra que  D.  Alfonso  recebia  na  sala  regia  do  paço  as 
vassallngens  da  nobreza  passeava  D.  João  Jlanucl , 
de  semblante  carregado  ,  pelo  corredor  immediato  , 
era  cujo  remate  ficava  uma  espaçosa  escada  de  pe- 
dra ,  serventia  dos  quartos  inferiores:  —  não  tardou 
a  apparecer  no  cimo  delia  o  senhor  de  Biscaia,  que 
reparando  quão  estomagado  estava  o  seu  amigo,  lhe 
disse  :  — 

«Que  novo  cuidado  vos  molesta  ,  senhor  de  Vi- 
lhena ?  ... » 

«  Bagatella  !.  —  tornou  este  era  voz  baixa.  —  Que 
havemos  de  fazer  agora  ? ...  Ignorais  que  o  rei  já  se 
vai  pòr  a  caminho?  ...  » 

"Que  diabo  dizeis!  ..   E  para  onde  vai  elle?...)i 

«1'ara  Victoria  com  toda  a  corte.» 

«E  isso  vos  contrista?...  Em  Victoria  faremos  o 
que  estava  talhado  para  A  alhadolid. « 

«Sias  é  o  caso  que  tenho  ordem  para  sahir  hoje 
mesmo  para  as  fronteiras  da  Andaluzia.» 

II  l'elo  olho  que  me  falta  !  que  não  parece  senão 
que  o  rei  adivinha  nossas  tenções. — 

«  E  preciso  buscar-mos  refugio.  » 

«Bom  é  de  dizer  buscar  refugio...   mas  como?» 

n  llecolhcndo-nos  a  \ilhena.» 

"  E  se  o  rei  vos  mandasse  prender  dentro  de  Vi- 
lhena ,  e  degolar  como  vassallo  rebelde?..  Que  me 
diríeis  sendo  levado  a  passo  grave  pelas  ruas  ,  ma- 
nietado entre. luzido  acompanhamento  de  guardas  , 
escutando  as  santas  admoestações  do  compassivo  con- 
fessor ?  E  dahí  a  pouco,  ao  divisar  o  patíbulo  bem 
empinado,  e  em  círaa  o  alentado  carrasco  preparan- 
do a  ferramenta » 

«.41to  ahí  ,  senhor  infante  ;  que  não  hei  trepado 
tão  alto  que  tenha  de  soffrer  Ião  desatinados  pro- 
gnósticos :  tomai  tento  não  se  verifiquem  na  vossa 
pessoa.» 

"  Cousa  é  essa  com  que  tarde  ou  cedo  devem  con- 
tar os  que  andam,  como  uós-outros,  remexendo  cons- 
pirações. » 

«Eu  creio  que  em  Toledo  estaremos  seguros.» 

«E  eu  dígo-vos  que  em  Toledo  lereis  o  mesmo 
desastrado  fim  que  em  Vilhena.» 

«O  demo  vos  leve  e  a  vossos  vaticínios..  Pois 
onde  é  que  iremos  parar?...» 

«.\o  Aragão. » 

«Percebo,  percebo..  Almazan  fica  na  raia  desse 
reino. » 

«E  c  logar  seguro  para  urdir  ousadas  eniprezas.» 

"Sim,  sim...  E  emquanto  o  guerreiro  afia  o  gu- 
me da  espada,  não  faltará  alguma  donzella  formosa  ... 

"Mas  sobre  tudo  rica  ,  senhor  de  Vilhena. 

« Que  ameníse  com  a  luz  de  seus  olhos  a  triste 
solidão  daquelles  bosques 

«Encantadores  se  ás  possessões  de  Almazan  se 
ajuntarem  as  fazendas  d'Alcocer. 

«Kuim  serpe  vos  morda  o  coração  !  ..  Sois  um  ho- 
mem incoraprehensivel  ..  .  disse  o  senhor  de  Vilhe- 
na ,  retirando-se, — 

«Ajuda-nie  tu  a  conseguir  a  mão  da  bella  her- 
deira d'.\lraazan,  depois  vè-lo-hemos  ...  —  disse  por 
entre  os  dentes  o  infante  quando  o  companheiro  ia 
descendo  os  degraus  da  escada.  —  IVestc  passo  o 
confuso  motim,  que  ])rovinha  dos  aposentos  interio- 
res ,  i)rendeu-lhe  a  attenção  ,  e  em  breve  appresen- 
tou-sc  na  galeria  o  rei  seguido  de  brilhante  comiti- 
va de  nobres.  Chegado  que  foi  a  curta  distancia  do 
infante ,  este  se  adiantou  e  pediu-lhe  a  mão  para 
beijar  ;  e  o  rei  lhe  perguntou  :  —  «D.  João,  quereis 
acompanhar-rae  a  Victoria?»  — 


o  PANORAMA. 


181 


—  oE  porque  não?...  A  Vicloria  e  a  Ioda  a  par- 
te, senhor  —  respondeu  com  alguma  turbarão. 

aBasta..  [ajuntou  o  rei]  tudo  a  ravallo.  Sereis 
meu  amigo,  infante,  quando  me  houverdes  provado 
fora  actos  Icaes  o  parentesco  que  comigo  tendes.  — 
Passados  poucos  minutos  toda  a  còrlc  seguia  caminho. 


O  passo  do  Zadoira. 

Não  muito  longe  da  estrada  real  que  vai  de  Vi- 
ctoria  a  Salinas  ,  c  no  sitio  onde  outrora  duas  ren- 
ques d'azinheiras  vedavam  entrada  aos  raios  do  sol, 
apeava-sc  um  guerreiro  c  entregava  o  corcel  a  seu 
creado  :  trazia  calada  a  vizeira,  c  capacete  tinto  de 
negro  ;  da  mesma  eòr  era  toda  a  armadura  :  de  cre- 
pe luctuoso  tinha  cuherto  o  mollo  do  escudo  trian- 
gular :  e  ondeavam  sobre  a  cimeira  do  elmo  plumas 
bastas  c  negras.  —  A  postura  de  tal  campeão,  que 
manifestava  intrepidez  e  animo  fogoso  ,  e  a  altencão 
com  que  olhava  para  a  próxima  ponte  de  cantaria 
indicavam  desejos  de  conimettcr  arriscadas  proezas, 
ou  de  levar  a  feliz  termo  aventuras  começadas. 

Era  ura  desses  dias  que  D.  Aflonso  de  Castella 
desejando  fazer  alarde  dos  guerreiros  ,  que  o  se- 
guiam aos  combates,  percorria  os  campus  d'Arria- 
ga.  Cora  clle  estava  a  tlòr  dos  cavalleiros  de  Viclo- 
ria e  Treviriho,  ataviados  com  a  preciosa  facha  car- 
mezira  ,  que  lhes  concedera  o  rei  em  premio  de  fa- 
çanhas obradas  contra  os  infiéis  ,  sendo  os  princi- 
paes,  D.  Gonçalo  de  Jlendoza  com  sua  cota  de  per- 
fis d'ouro  ;  o  valoroso  llendibil,  sopeando  o  mesmo 
cavallo  que  nas  margens  do  Guadalhorce  fora  ca- 
valgado pelo  possante  sarraceno  Osmin  ;  e  o  inven- 
cível D.  Lopo  de  Vendanha  ,  cujo  brio  assaz  era 
denotado  pela  letlra  de  seu  escudo  :  sempre  cartel 
ao  mais  forte.  A  cortez  amabilidade  do  principe  en- 
thusiasmava  estes  animosos  aventureiros  ,  e  ainda 
mais  a  demonstração  de  confiança  que  lhes  dava  , 
pondo-se  em  mãos  delles  ,  quando  ardia  o  reino  in- 
teiro agitado  por  enredos  de  grandes.  Mas  Affonso 
bem  conhecia  quanto  era  amado  da  maioria  da  no- 
breza ,  e  sabia  que  os  fidalgos  fieis  na  guerra  ,  que 
lhe  suscitara  seu  esforçado  competidor  ,  o  monar- 
cha  do  .iragão ,  se  oppozeram  sempre  á  entrada 
deste  no  território  das  duas  Castcllas,  c  elle  os  pre- 
miara com  a  insígnia  da  ordem  de  la  Banda  :  e  co- 
mo o  cavalleiro  que  ao  diante  etcrnisou  sua  me- 
moria nas  ribeiras  do  Salador  poderia  temer  trai- 
rão dos  que  havia  tão  pouco  o  elegeram  capitão  e 
principe  seu  ?  .  .  . 

Tomado  das  altas  esperanças  que  de  seu  glorioso 
reinado  já  lhe  presagiava  o  coração  ,  cucaminhava- 
se  á  ponte  do  Zadorra  ,  que  lava  uma  campina  tão 
aprazível  como  as  mais  jucundas  que  a  imaginação 
pôde  delinear  cm  seus  impulsos  creadores.  Alheio 
de  si,  e  embevecido  nos  desígnios  que  postoque  dif- 
ficeis,  prestes  havia  depor  em  prática,  não  reparou 
que  indo  na  dianteira  alguns  cavalleiros  ,  como  ba- 
tedores e  á  descubcrta  ,  fizeram  parar  os  ginetes  ã 
entrada  da  ponte.  D.  Lopo  de  Vendanha,  que  se 
chegou  delle,  apontou-lhe  o  cavalleiro  da  negra  ar- 
madura. 

«  A  meu  respeito  não  vos  desassocegueis  [respon- 
deu] ;  será  talvez  mensageiro  que  da  rainha  me  ve- 
nha trazer  novas.» 

E  nisto  ,  o  som  rijo  da  tuba  de  guerra  feriu  os 
ouvidos  daquella  fidalguia ,  e  todos  a  um  tempo 
cora  o  rei  á  testa  esporearam  os  cavallos. 


Ao  entestar  com  a  ponte,  perguntaram-lhc  os  ex- 
ploradores : 

"  Passaremos  ,  senhor  ?  — 

«(Juem  no-lo  estorva?»  —  replicou  Aflonso  im- 
paciente. 

<■  A  minha  lança  . .  .  n — bradou  o  cavalleiro  negro. 
«  A  tua  lança  '.  .  .  .   Barreira   débil  contra  o  meu 
braço.  .  .  .   Quantos  sarracenos  tens  derribado  com 
essa  lança  ?  .  .  »  — 

uEmpunha-a  um  nobre;  e  Deus  e  a  minha  ilama 
a  protegem. » 

«O  sol  te  é  contrario.  Se  em  realidade  és  caval- 
leiro, e  não  foragido  disfarçado,  vem  a  meu  cam- 
po; dois  reis  d'armas  nos  partirão  o  terreno.» 

«Depois  de  vcnccr-tc  .  . .  agora  cedo-te  essa  van- 
tagem. »  — 

«E  de  mim  que  farás,  arrogante  campeão,  se 
me  venceres? ...» 

«Se  ferido  cahires ,  sendo  quem  se  me  afigura, 
dar-te-hci  o  golpe  da  graça  ,  introduzindo-te  a  mi- 
sericórdia ate  o  coração  ;  depois  .  . .  arrojarei  tens 
mortaes  despojos  á  corrente  do  Zadorra."  — 

Todos  os  guerreiros  fizeram  cerco  ao  monarcha  . 
nos  olhos  do  qual  sciutillava  o  prazer  ouvindo  as 
rasõcs  do  enlutado  ;  e  vendo  que  o  de  Vendanha 
predispunha-se  a  castigar  a  insolente  arrogância  , 
inlimou-lhe  com  auctoridade  que  permanecesse  que- 
do :  deu  d'esporas  ao  ginete,  calou  a  viseira  do  el- 
mo reluzente  ,  embraçou  a  rodela  ,  pediu  a  lança  , 
e  despediu  a  galope. 

Partiu  também  a  encontra-lo  o  desconhecido  ;  <; 
iá  se  acercavam  com  furioso  impeto;  iam  talvez  ía- 
*cr-se  pedaços  no  terrível  embate  ;  eis  que  de  sú- 
bito o  corcel  do  cavalleiro  negro  desviou-se  da  pri- 
meira carreira  ,  ladeou  ,  e  quem  o  mandava  excla- 
mou aprumando-se  sobre  os  estribos  : 

«  Como  ,  Senhor !  .  .  Sois  o  Mestre  da  Ordem  do 
la  Banda!...  cavalleiros,  foi  engano...  Eu  nu- 
confesso  vencido. » 

«Abaixa  a  lança,  infame  [gritou  D.  AfTonso,  de- 
tendo o  cavallo]  .  .  quem  não  sabe  sopeza-la  ,  nem 
é  ,  nem  pode  ser  cavalleiro. » 

«  Senhor,  —  respondeu  o  outro  —  sou  nobre,  mais 
que  todos  os  vossos  nobres  ,  e  tanto  como  vós. » 

«Aqui  D.  João,  aqui  senhor  de  Biscaia  !  [bradou 
mais  alto  o  enfurecido  monarcha].  . . .  Que  castigo 
merece  este  cobarde?.  .» 

«  Cobarde  '.  .  .  Viva  Deus  ,  ó  rei  de  Castella ,  que 
homens  do  meu  prol  não  soffrem  tacs  demasias  !  . . » 

"Que  castigo  merece?.  . «  volveu  a  perguntar  n 
rei. 

«Confessor  c  verdugo  ...»  respondeu  D.  João. 

«  E  eu  digo-te  [redarguiu  logo  o  incógnito]  ,  dom 
torto  ,  dom  villão,  o  dom  traidor,  que  tu  és  o  infa- 
me que  ando  buscando.  Testemunhas  sede,  podero- 
so rei  de  Castella  ,  e  vosoulros  valentes  cavalleiros  , 
de  que  eu  ,  conhecido  pelo  nome  de  cavalleiro  ne- 
gro .  accuso  ao  infante  D.  João  de  traidor  e  insti- 
gador de  maldades  ;  e  em  prova  do  dito  o  desafio 
á  lança  e  espada,  a  pé  ou  acavallo,  e  a  todo  o  tran- 
se :  levantai  a  minha  manopla  ,  D.  João.  .  .  Rei  de 
Castella  ,  vede  ura  signal  de  minha  nobreza. .  .»  — 

E  dizendo  approsimou-se  de  Affonso,  e  moslrou- 
Ihe  um  pergaminho. 

«  Como  é  isto  I  .  .  .  Vós  por  aqui !  . . 

«De  longes  terras  venho  buscando  vossa  alteza 
para  contra  seus  inimigos  defende-lo.» 

«Que  é  feito  de  vosso  pai?  .» 

«Renunciou  todos  os  seus  direil06  em  favor  de 
vossa  alteza. »  ■  , 


182 


O   PANORAMA. 


«D.  João  [continuou  o  rei  dirigindo  a  falia  ao 
infante]  podeis  levantar  essa  prenda  :  é  nobre  este 
guerreiro.  » 

«Pois  que  o  prove.» —        "   , 

«Serei  cii  nobre,  D.  João?..»  —  inquiriu  Aflbn- 
so  com  atroadora  voz. 

«Senhor  ,  sim  ;  c  o  primeiro  d'cntre  os  d'ambas 
as  Castcllas.  » 

«Pois  então  dign-o  eu  e  basta.» 

«E  basta»  —  repetiu  á  uma  a  chusma  dos  caval- 
leiros. 

D.  João  o  torto  recolheu  a  luva  seu  m.iu  grado  : 
c  o  rei  levando  ao  lado  o  das  armas  negras,  c  se- 
guido pelos  demais ,  retrocedeu  para  a  cidade. 

3." 

A  proposta. 
Erguem-se  para  o  lado  das  montanhas  d'Aragão, 
a  pouca  distancia  da  celebre  serra  d'Albarrazii),  as 
arruinadas  torres  de  um  castello  antigo  ,  que  ape- 
sar de  venerandas  servem  de  guarida  aos  innnme- 
raveis  lobos  que  nellas  se  asylam  ,  quando  o  nebu- 
]oso  Moncayo  arroja  sobre  as  florestas  suas  violentas 
enxorradas.  —  Nem  sempre  estiveram  condemiia- 
dos  ao  silencio  os  páteos  espaçosos  daquelle  edili- 
cio  ;  e  na  epocha  dos  successos,  que  vamos  referin- 
do ,  lai  magnilicencia  e  solidez  ostentava  que  com 
rasão  se  lhe  deveria  suppòr  direito  a  mais  extensa 
duração.  —  N'um  de  seus  aposentos  passava  com- 
pridos dias  e  tristes  noites  a  bellissima  Branca  ,  fi- 
lha do  infante  D.  Pedro,  que  morreu  n'uma  refie- 
ga  ante  os  muros  de  Granada.  Acompanhava-a  sua 
mãi  D.  Maria  ,  e  embalde  procurava  dissipar  coifi 
afagos  as  nuvens  sombrias  que  entenebreciam  o  co- 
ração da  donzella,  que  victimada  á  sua  paixão  com- 
prazia-sc  em  cursar  os  mais  apartados  sitios  da  for- 
taleza ,  assim  dando  pábulo  ao  desasocego  que  a 
ralava  ,  produzido  pela  ausência  do  enlutado  caval- 
leiro  ,  que  poucos  dias  antes  partira  caminho  de 
Castella  ,  comsigo  levando  a  paz  d'espirito,  e  o 
amor  da  terna  herdeira  da  casa  d'Almazan. 

Uma  manhaã  ouviram  os  moradores  do  castello  o 
soído  de  trombeta ,  c  repentina  agitação  suceedeu 
a  quietação  que  desfruclavnra ;  cruzaram  o  páteo 
em  vária  direcção  os  homens  d'armas;  e  d'unia 
das  torres  pronunciou  uma  voz  estas  palavras  :  <■ 
f/entc  de  paz .  Reslabelcceu-se  a  Iranquillidade  ,  e 
todos  ,  menos  Rodrigo  ,  o  chaveiro  da  praça  ,  se  re- 
tiraram. 

Nisto  ,  appareceu  ;í  sabida  do  bosque  um  caval- 
leiro  armado  de  ponto  em  branco  ,  fatigando  com 
seu  peso  os  ilhaes  do  brioso  corcel  :  indicava  qua- 
renta annos  ,  era  enxuto  de  carnes,  um  tanto  cur- 
vado para  diante  e  como  que  vestia  as  armas  con- 
tra vontade.  Quando  chegou  próximo  ao  fosso  ,  seu 
escudeiro  trcs  vezes  tocou  a  trombeta  ,  a  cujo  si- 
gnal  respondeu  a  atalaia  ;  e  adiantando-se  Rodrigo 
lhe  mostrou  a  entrada  para  o  páteo  ,  onde  o  caval- 
leiro  desmontou  ,  c  seu  crcado  expòz  ao  chaveiro  o 
desejo  que  seu  amo  tinha  de  tril>utar  pessoal  home- 
nagem á  bella  castellaã.  Mediu-o  Rodrigo  d'allo  a 
baixo  c  perguntou-lhc  ;  — 

«Quem  é  teu  amo;  e  qual  o  titulo  de  que  goza 
110  foro  fidalgo?» 

"K  o  cavalleiro  de  la  Torre.»  —  tornou  o  cscii- 
<leiro. 

.Vtravessou  Rodrigo  o  terreiro  e  annunciou  ás  se- 
nhoras o  recem-cliegado. 

«Não  me  consta  que  haja  cavalleiro  aragoncz  , 
que  assim  se  appellidc»  —  disse  D.  Alaria. 


«Será  talvez  castelhano  ou  algum  dos  cavalleiros 
da  ordem  de  la  Banda»  —  lembrou  I).  Branca. 

«Seja  quem  for  —  accrescenlou  a  mãi  —  aqui  en- 
conlrará  hospi  alidade.  Que  entre  o  cavalleiro  de 
la  Torre ,  e  bemvindo  seja  aos  domínios  da  casa 
d'Almazan.  » 

Admiltido  o  hospede  ,  Branca  cuidou  morrer  de 
espanto  ,  ao  reconhecer  D.  João  o  torto  :  porem  D. 
Maria  manteve  tanta  serenidade  que  lhe  oíTereceu 
que  descançasse. 

« iVão  largarei  minhas  armas,  nem  ao  repouso 
entregarei  meu  corpo  ,  em  quanto  me  não  escutar- 
des sobre  assumpto  que  a  todos  nos  interessa  ,  e  no 
qual  hade  decidir  minha  formosa  prima.» 

"Dizei  o  que  vos  apraz  explicar»  —  acudiu  logo 
a  mãi. 

«Muito  me  exaltaram  a  lindeza  de  Branca  os  pa- 
ladinos, que  passaram  por  estes  sitios,  mas  confes- 
so que  foram  diminutos  em  demasia,  pois  que  a 
formosura  da  prima  eclipsa >  — 

«Tinhcis  dito  que  o  negocio,  que  vos  trazia,  res- 
peitava interesse  meu.  .» 

c(  E  assim  é  ,  senhora.  .  .  Sabei  que  o  rei  de  Cas- 
tella dispõe-se  para  despojar-vos  de  Almazan  e  de 
Alcocer.  .  . » 

«Não  o  acredito,  D.  João:  porem  se  tal  fosse, 
valor  e  armas  tenho  para  defender-me.  » 

«E  que  hãode  fazer  duas  fracas  senhoras  contra 
o  poderio  do  pérfido  Affonso  e  o  aviltado  esquadrão 
dos  cavalleiros  de  la  Banda.» 

«Infamais  esses  guerreiros  —  disse  Branca  —  :  sa- 
bei pois  que  são  valentes  e  generosos  ;  e  cavalleiro 
ha  entre  elles  que  sem  embargo  de  ainda  não  tra- 
zer a  tiiacollo  a  honrosa  fita  romperá  em  rainha  de- 
feza  a  melhor  lança  .  .»  — 

«Será  por  acaso  o  de  Vendanha  !  .  .  Não  ;  que  já 
pertence  á  ordem  detestável  .  .  Branca  ,  quem  é  es- 
se afortunado  campeão?.  Diga-o  ,  diga-o  já.» 

«  D.  João  ,  —  interrompeu  D.  Maria  —  não  vos 
olvideis  que  estais  na  presença  das  caslcUaãs  de 
Almazan. »  — 

«Como  é  preciso  que  eu  salte  o  vallo  ,  declaro- 
vos  sem  rodeios  que  venho  sollicitar  a  mão  de  Bran- 
ca. Se  acquicsceis  a  meus  desejos,  levantarei  exer- 
cito nesta  fronteira,  e  me  farei  forte  nestes  muros 
contra  o  poder  de  Allbnso  e  até  contra  o  inferno. 
O  senhorio  de  Biscaia  reunido  aos  vossos  estados 
accrescentará  nossos  domínios  ,  e » 

«Nunca  vos  cri  tão  atrevido  ,  \^.  João  —  respon- 
deu com  altivez  a  senhora  do  castello  —  pedis  a 
mão  de  minha  filha  ,  como  se  fora  vassalla  vossa  , 
e  esqueceis-vos  de  que  o  alvedrio  de  unia  dama 
tem  força  que  baste  a  desprezar  descorlezes  ollere- 
cimentos  e  rejeitar  allianças  desiguacs.  » 

«Desigiiaes  !  .  .  E  a  minha  nobreza  !...»• 

"Não  lia  nobreza  sem  virtude.» 

«Isto  já  é  demais.  .  meu  orgulho  não  so  abaixa 
a  supplicar.  .  Por  ultima  voz  ,  minha  prima  .  .  .  ac- 
ceitais  ou  repudiais  minha  mão?..  .» 

«Não  acccilo,  D.  João.  .  »  —  respondeu  a  donzel- 
la resolutamente. 

]\lordeu  exasperado  o  infante  a  manopla  d'aço  , 
exhalou  a  raiva  n'uma  praga  horrível  ,  c  descendo 
a  Ioda  a  pressa  ao  páteo  do  castello ,  tornou  a  ca- 
valgar ,  e  correu  a  toda  a  brida. 


Desfecho  d'um  banquete  real. 
Dois   mezes   depois   da    entrevista    de   D.  João   o 
torto  com  as  nobres  scuhoras  d'.Vlmazan,  celebrou- 


o   PA1NORA3IA. 


183 


se  o  famoso  torneio  de  Yalhadolid  ,  no  qual  o  ca- 
valleiro  negro  salvou  a  vidn  ao  rei :  alguns  traido- 
res disfarrados  entre  os  contendores  que  justavam 
accommelteram  na  lira  o  rei,  c  esle  deveu  a  salva- 
rão aos  certeiros  botes  do  desconhecido  ,  ajudado 
dos  cavalleiros  de  la  Banda.  Grato  a  tão  assignala- 
do  serviço  ,  ordenou  o  numarcha  um  lianquete  a 
que  foram  couvidaiias  as  principaes  damas  da  cor- 
to e  também  os  nobres  que  haviam  assistido  ás  jus- 
tas ,  numero  em  que  entrava  D.  João  o  torto. 

Grandes  preparativos  se  haviam  feito  para  a  fes- 
ta,  cora  régio  c  liberal  apparato  :  iliuininaram-sc 
as  amplas  salas  do  paço  ;  revestiram-se  de  colga- 
duras  mui  ricas  os  balcões,  entradas,  c  paredes: 
e  as  cadeiras  primorosas  ,  mesas  c  aparadores  ma- 
gnificamente ornados ,  os  serventes  trajados  rica- 
mente ,  as  bandas  de  musica  repartidas  em  locaes 
convenientes  .  davam  bem  a  entender  que  nunca 
em  Castella  se  vira  tão  fastoso  recreio. 

Occupava  a  cabeceira  da  meza  ,  sentada  sob  um 
docel  d'azul  e  graã  ,  a  bclla  herdeira  de  Alniazan  , 
como  rainha  que  fora  do  torneio;  tinha  a  seu  lado 
esquerdo  a  infanta  I).  Maria  ,  sua  mãi ,  e  á  direita 
clrei  D.  Afibnso  :  seguiam-se  damas  e  cavalleiros 
alternadamente,  distinguindo-se  alli  nomes  illus- 
Ires  ,  afamadas  reputações  de  guerreiros  ,  c  formo- 
suras estremadas  ;  e  todos  em  repetidos  brindes  ce- 
lebravam a  grandeza  de  Affonso  ,  e  a  boa  sorte  de 
suas  emprezas. 

Concluido  o  convivio  ,  ergueu-sc  elrei  com  uma 
taça  de  d'ouro  na  mão;  todos  o  imitaram  guardan- 
do silencio. 

«Damas  gentis,  cavalleiros  valorosos,  brindai  co- 
migo ,ís  faustas  núpcias  da  rainha  do  torneio  com 
o  paladino  da  negra  armadura.» 

«Vivai  viva',  [se  ouvia  de  toda  a  parte]  :  saiba- 
se-llie  o  nome  .  .  viva  I  » 

"Também  meu  rival!»  —  disse  em  voz  baixa  D. 
João  o  torto. 

«Hei  de  Castella,  tempo  é  de  descubrir-me,  pois 
que  meus  votos  estão  cumpridos  :  vossa  alteza  j<á 
não  tem  inimigos  ;  e  eu  chego  a  alcançar  o  único 
premio  a  que  o  meu  coração  aspirava.  .  .  » 

«  Sou  eu  a  quem  toca  deseobrir-vos  e  premiar- 
vos.  Nada  por  ora  em  beneficio  vosso  tenho  feito  ; 
e,  por  Deus,  que  é  tempo  de  não  parecer  ingrato!  .  . 
D.  Luiz  de  La  Cerda  ,  primogénito  de  D.  Afionso 
de  La  Cerda  o  deshcrdado ,  que  mercê  pedis  ao  rei 
de  Castella  ?  .  .  »  — 

«V  de  morrer  no  sen  serviço.»  —  E  um  clamor 
de  admiração  havia  sabido  de  todas  as  boccas  ao 
ouvirem  pronunciar  o  nome  do  incógnito. 

Aqui  não  pôde  conter-se  D.  João,  e  vendo  que  a 
mãi  de  Branca  faltava  complacentemente  ao  cam- 
peão .  adianiou-se  para  ella  e  disse  : 

«Olhai,  senhora,  que  ha  um  ducllo  pendente  en- 
tre esse  cavalleiro  e  a  minha  pessoa  :  todavia  não  é 
ainda  esposo  de  minha  gentil  prima.  .  .  .» — 

«Que  estais  dizendo,  D.  João.'.  .»  —  perguntou 
clrei  indignado. 

«  Peço  que  vossa  alteza  revogue  essa  alliança  que 
nsarpa  os  meus  direitos.» 

«Teus  direitos  ,  traidor!...  —  bradou-lhe  o  de 
La  Cerda  —  Vem,  vera  discuti-los,  e  devolver-me 
minha  luva  :  a  que  te  arrojei  na  ponte  doZadorra.  » 

«  .\gora  mesmo..»  —  liespondeu  furioso  o  infan- 
te ,  e  d'espada  núa  arremetteu  para  D.  Luiz  ,  que 
declinando  o  primeiro  golpe  ,  e  no  meio  da  confu- 
são e  alarido  ,  que  tal  e  tão  inesperado  incidente 
gerara  ,   investiu  com  o  adversário  tão  briosamente 


que  o  levou  recuando  até  a  porta  da  sala,  onde  pô- 
de alcança-lo  ;  e  jogando-lhe  uma  estocada  ,  disse- 
Ihe  :  «morre  em  paz.»  Cahiu  D.  João,  e  no  baque 
resoou  sua  armadura  sobre  o  pavimento. 

Foi  este  o  fim  trágico  de  D.  João  o  torto:  e  a 
sua  morte  assegurcu  por  muitos  ânuos  a  tranquilli- 
dade  de  Castella.  Poucos  dias  depois  deste  succes- 
so  celcbraram-se  com  pompa  extraordinária  as  võ- 
das  de  D.  Branca  de  .\lmazan  com  o  primogénito  , 
herdeiro  dos  La-Cerdas. 


Jo 


Dos    TAPIJIKS  ,    01     DEFENSAS    DOS    CAMPOS. 

Os  TERRE.Nos  abcrtos  valem  menos  que  os  terrenos 
murados  ,  ou  fechados  :  mais  sujeitos  do  que  estes 
ás  avarias  dos  animaes  domésticos,  ás  depredações 
e  latrocínios  dos  passageiros,  e  aos  atravessadonros 
dos  viandantes,  tem  de  mais  a  desvantagem  de  não 
guardarem  os  gados  em  seus  pastios  ,  e  de  serem 
deslavados  ou  cortados  pelas  enxurradas  nas  gran- 
des chuvas  por  falta  d'um  dique  ou  embaraço  ás 
aguas.  Nas  províncias  do  norte  onde  a  pedra  c  vul- 
gar, e  a  povoação  e  industria  dos  habitantes  ruraes 
maior ,  quasi  todos  os  campos  cultivados  são  fecha- 
dos por  muros  ou  paredes  :  na  província  do  Minho 
as  mesmas  bouças  ou  tomadias,  que  apenas  produ- 
zem matlo  ou  tojo,  são  defendidas  por  paredes  de 
pedra  ensoça  :  para  ahi  mettcm  seus  gados  sem  pas- 
tor ,  e  os  recolhem  á  noite  para  o  curral.  Nas  pro- 
víncias ao  sul,  grande  parte  dos  terrenos  cultivados 
estão  abertos  ,  principalmente  nas  terras  transtaga- 
nas  ,  onde  não  ha  pedra  ,  e  a  povoação  é  enorme- 
mente desigual,  k  propriedade  ,  destituída  de  li- 
mite apparcnte  e  fixo  ,  soffre  deteriorações  no  gozo 
e  fruição  exclusiva  ,  c  o  seu  valor  é  despreciado. 
Os  tapumes  são  portanto  um  dos  meios  d'augmtn- 
tação  de  riqueza  agrícola  ;  e  os  camponezes  e  pro- 
prietários deveriam  empregar  nisto  muito  maior  so- 
licitude. 

Os  tapumes  ou  defensas  dos  campos  podem  ser 
de  três  maneiras:  parede,  valado,  sebe.  Todos  el- 
les  tem  suas  vantagens  ,  e  inconvenientes  que  lhes 
são  próprios.  A  parede  é  o  mais  simples  e  indepen- 
dente ,  porque  não  exige  cuidado  ou  trabalho  an- 
nual  ,  e  dá  menos  abrigo  aos  insectos  e  reptis  que 
se  costumam  alojar  nas  balsas  c  arbustos;  mas  c 
também  o  mais  dispendioso,  e  não  dá  abrigo  ás  ter- 
ras contra  osvendavaes  e  ventanias.  Valados  despro- 
vidos d 'arbustos  são  pouco  duradouros  :  as  chuvas  os 
desconjuntam  ,  os  animaes  bravios  os  furam  e  atra- 
vessam facilmente,  os  gados  os  esbarrondam  :  reque- 
rera portanto  conlinuos  reparos;  e  demais,  sendo 
construídos  de  terra  ou  torrão  privam  esta  de  ser 
productiva.  A  sebe  é  o  melhor  dos  tapumes,  se  fór 
bem  feita,  e  d'arbustos  discretamente  escolhidos ; 
porque  muitos  ha  que  dão  fructo  e  Dores  que  au- 
gmentam  o  rendimento  do  cultivador  ,  c  defendem 
ao  mesmo  tempo  a  propriedade  ,  quer  seja  das  ava- 
rias dos  homens  e  dos  gados  ,  quer  dos  temporaes. 
Deste  género  pois  c  que  vamos  tratar  com  prcleren- 
cia  .  até  porque  é  praticável  em  quasi  todas  as  lo- 
calidades. 

As  sebes  ou  balsedos ,  simplesmente  taes  ,  não 
formara  tapume  sutlicienlc  nos  primeiros  annos  de 
sua  plantação,  porque  em  quauto  os  arbustos  são 
novos  e  tenros  não  fazem  obstáculo.  Indispensável  é 


184 


O  PANORAMA. 


porlanlo  ou  misturnr  na  plantação  os  dois  methodos 
levantando  valado  sol)rc  o  qual  se  firmom  as  plan- 
tas e  sementeiras  ,  ou  deíeiídcndo  cstis  com  barro- 
ca ou  garganta  de  fosso  largo  e  profundo.  Arraiga- 
das porem  as  plantas  ,  e  fcilo  balsedo  ,  preciso  não 
é  já  o  trabalho  da  conservarão  e  repararão  do  va- 
lado c  barroca. 

A  escolha  das  arvores  ou  arbustos  para  as  sebes 
será  determinada  pelo  clima  e  pela  natureza  dn  so- 
lo :  os  cultivadores  porem  não  necessitam  fazer  gran- 
des observações  e  raciocínios  para  isto;  basta  atten- 
dcr  para  aquellas  que  mais  facilmente  crescem  e 
|iros[ierani  espontaneamente  na  localidade,  e  prefe- 
rir estas.  Convém  entretanto  em  todo  o  caso  mistu- 
rar neste  género  de  plantações  arvores  e  arbustos  , 
ou  estes  com  as  hervas  e  plantas  que  se  emniara- 
idiam  c  se  prendem  naturalmente  áqucUes  ,  porque 
somente  assim  se  consegue  ura  tapume  impenetrá- 
vel. Assim  que  ,  o  espinheiro  ,  o  azevinho  ,  o  pilri- 
tciro  ,  a  silva  ,  o  junco  bravo  ,  o  tojo  ,  e  a  figueira 
do  inferno  ,  e  outras  plantas  espinhosas  e  ponleagu- 
das  serão  convenientemente  intermeadas  com  os  de- 
mais arbustos  ou  arvores.  Em  geral  eis  a  resenha 
das  plantas  que  mais  se  costumam  adaptar  aos  dif- 
fcrcntcs  climas. 


Áo  mcin-ãia. 

Homãscira  [grcnadier]. 
Açofeifcira  [jujubierl. 
Zimbro  [gencvrier]. 
Sabugueiro  [sureau]. 
Carrapateiro  [ricin  ,   ou 

pignon  de  1'lndc]. 
Abrunheiro  [nerprun]. 
Esteva  [lada].     _,   ■;, 


Ao  iwrtc  c  no  centro. 

Loureiro  [laurier]. 
Canna  [roseau]. 
Pilriteiro  [aubepine]. 
Alfenciro  [Iroène]. 
(irozelheira  [groseillcrl. 
Azevinho  [houxl. 
Marnrelleiro  [cognassier], 
Sanguinho  [cornouiller]. 
Amexieirabr.  [prunelier] 
Acácia  [acácia]. 


Com  quaesqucr  destas  espécies  se  deverá  plantar, 
segundo  as  circumstancias  e  as  localidades,  o  jun- 
co ,  a  silva  ,  a  carça  ,  o  tojo  ,  e  muitas  outras  que 
ajudam  a  formar  o  balsedo.  i\os  campos  desabriga- 
dos ,  e  mais  sujeitos  ás  impressões  do  vento  ,  con- 
virá preferir  as  plantas  que  formam  maior  altura  , 
como  a  canna  ,  o  loureiro  ,  o  carrapateiro  ,  e  ovitros 
que  prestam  melhor  abrigo.  Nas  localidades  cm  que 
houver  melhor  industria  ,  e  consummo  productivo  , 
convirá  preferir  o  marmeleiro  ,  a  romeira  ,  o  sabu- 
gueiro ,  a  silva  fêmea  que  produz  amoras  ,  a  amei- 
xieira brava  ,  e  outras  que  fructificam.  O  espinhei- 
ro alvar ,  ou  pilriteiro  [aubepine] ,  alem  de  ser  um 
arbusto  formoso  que  alegra  ,  regala  o  olfato  com 
suas  flores  odoríferas  :  a  esteva  ,  que  não  regeita  o 
terreno  mais  ingrato  ,  e  que  resiste  á  sequidão  e 
temperatura  abrazadora  do  Alemtejo  ,  embalsama  o 
ar  na  primavera  ,  c  no  estio  com  suas  llorcs  c  fo- 
lhagem aromática. 

l'ma  rccommenilação  porem  devemos  aqui  consi- 
gnar ,  «til  aos  cultivadores  e  proprietários  que  se 
servirem  desta  espécie  de  tapumes ;  e  c  que  clles 
tem  também  seu  género  próprio  de  cultura  ,  c  não 
[jodem  ser  abandonados  ao  desleixo ,  muilo  com- 
mum  na  nossa  terra.  O  que  or(iinariamcnte  se  vè  é 
deixar  crescer  e  estender  á  vontade  as  arvores  c 
arbustos  das  sebes  c  valados,  o  que  produz  muitos 
inconvenientes,  como  são  ,  comer  demasiado  a  su- 
bstancia do  solo  alargando  suas  raizes .  assombrar 
as  searas  e  os  fruetos  da  terra,  prestar  asylo  c  cria- 
ção aos  pássaros ,   bichos ,  e  auiraacs  damninhos , 


alem  da  deformidade  desagradável  de  um  balsedo 
informe  e  desigual.  Indispensável  é  portanto  que  os 
cultivadores  se  provam  d'uma  tizoura  de  jardineiro 
para  irem  aparando  e  dispondo  os  arbustos,  em 
quanto  tenros  ,  a  formarem  fda  direita  c  aprumada. 
Devem  igualmente  revestir  e  encher  os  vasios  ou 
laciuias  cora  a  nova  plantação  ,  tapar  os  bociros  ou 
foramines  que  lhes  fazem  os  bichos ,  e  puxar  a  ter- 
ra para  a  raiz  das  plantas.  Estas  precauções  se  to- 
mam na  estação  morta,  isto  é  ,  no  inverno,  quan- 
do os  trabalhos  do  campo  cessam. 

J.  da  C.  iV.  C. 


Receita  para  fazer  tinta  verde  d' escrever.  —  Dei- 
tem n'uma  panella  pequena,  ou  tacho,  de  barro 
vidrado  ,  meio  quartilho  d'agua  com  duas  onças  de 
vcrdete  moído  :  façam  ferver  o  mixto  por  espaço  de 
meia  hora,  mexendo-o  sempre  com  um  cavaco,  de- 
pois juntcm-lhe  uma  onça  de  cremor  de  tártaro  ,  e 
cilem  o  liquido  .  que  porão  novamente  ao  lume  ate 
íicar  em  duas  terças  partes.  Esta  tinta  serve  per- 
feitamente para  escrever,  como  as  vulgares,  preta 
ou  encarnada. 


Áynas  comhustiveis.  —  Citam-se  muitas  fontes  que 
tem  a  singular  propriedade  de  lhes  pegar  fogo  nas 
aguas  ,  como  se  fossem  materiaes  combustíveis  ;  c 
a  verdade  é  que  ardera  como  os  licores  alcoólicos  , 
ou  os  óleos.  Presurac-se  que  algumas  contém  gazes 
de  sua  natureza  ínflanimavcis,  emanados  de  minas 
de  ferro  ,  de  cobre  ,  de  zinco  c  de  estanho  ,  dissol- 
vidos pelos  ácidos  muriatico  e  sulphurico  ;  e  que 
outras  se  achara  impregnadas  de  bitumcs  ,  princi- 
palmente de  naphta  e  petróleo  {•)  ,  matérias  que 
fluctuam  acima  d'agua,  c  ardem  no  meio  delia,  co- 
mo o  pez  e  o  alcatrão. 

Á  primeira  classe  pertence  o  lago  ardente  da  Is- 
lândia ,  que  6  provável  se  tenha  muitas  vezes  in- 
tlammado  espontaneamente,  queremos  dizer  sem  in- 
tervenção externa  ,  e  por  combustão  produzida  pela 
combinação  e  eíTervcscencia  dos  materiaes,  que  ncl- 
le  supcrabundam.  —  lia  pouco  ,  descobriu-se  na 
Carolina  [União  Americana]  uma  fonte  que  fornece 
gaz  sufficiente  para  allumiar  uma  povoação  ;  para  o 
que  é  bastante  encaminhar  tubos  ou  canos  deriva- 
dos do  manancial  para  as  casas  particulares.   (::) 

Tva  segunda  classe  estão  as  fontes  bituminosas.  A 
mais  celebre  é  a  de  lialaghan  ,  na  Ásia  ;  pois  que 
fornece  diariamente  500  libras  de  naphta.  A  pouca 
distancia  das  margens  do  famoso  Tigris  acha-se  o 
bitume  em  tal  abundância  ,  que  apesar  de  recolhe- 
rem muito  ,  vai  parte  dellc  para  o  rio  ,  onde  voga 
á  tona  d'agua  ;  quem  por  ahi  navega  faz  ás  vezes 
seus  fogos  de  S.  João  ,  pondo  fogo  a  essas  parcel- 
las,  quando  tem  vento  e  corrente  de  feição  que  som 
perigo  o  possam  fazer  ,  porque  a  tão  larga  extensão 
se  pode  comraunicar  que  appreseiila  aos  cspoctadu- 
res  a  vista  de  um  rio  incendiado. 


1'Aiii  não  offendermos  cm  nossos  escriptos  a  opi- 
nião publica  dos  contemporâneos  expomo-nos  a  fi- 
gurar de  tolos  c  ignorantes  na  posteridade. 


{')  Vide  solire  eslas  duas  substancias  a  pag. 
vol.  1.°  da  1.'  Serie. 

(::)  E'Fredonia.  na  Nova-Yorck  ;  vid.  pjg 
Tol.  5.°  da  Serie  l-" 


23  n   d<. 


280- 


77 


o  PAI\ORA3IA. 


18j 


TEII1PI.O   I>£  S.   GONÇALO  S  ANASANTE. 


S.  Go.vçAio  d'Aniarante  ,  tão  venerado  nas  provín- 
cias do  norle  como  Santo  António  em  todo  o  reino, 
leve  o  berço  na  limitada  aldèa  de  Arriconlia  á  bei- 
ra do  pequeno  rio  Vizella  ,  termo  de  Guimarães: 
poucas  memorias  ha  de  sua  meninice  .  rans  sabe-se 
que  nascera  da  nobre  familia  dos  Pereiras :  cres- 
cendo em  virtudes,  destinou-se  ao  estado  ccclesias- 
lico ,  para  o  que  se  preparou,  e  seguiu  os  estudos, 
no  paço  do  arcebispo  de  Braga  cora  tal  aproveita- 
mento e  exemplar  vida  ,  que  o  prelado  o  pro>eu 
sendo  ainda  sacerdote  moço  na  igreja  de  San-Pajo 
de  riba  de  Vizella  com  o  titulo  d'abbade:  foi  cum- 
pridor fiel  dos  seus  deveres  ,  e  zelosíssimo  do  bem 
do  rebanho  que  lhe  haviam  commettido  ;  e  só  o  dei- 
xou para  levar  a  cabo  a  peregrinação  ,  que  intenta- 
ra a  Roma  e  a  Terra-Sania  :  tornou  á  pátria  depois 
de  dilatada  ausência  de  quatorze  annos  ,  mas  achou 
jsurpada  a  igreja  pelo  eucommendado  que  nella 
deixara  ,  o  que  o  poz  em  muito  apuro  de  pobreza  : 
ieu-se  então  a  fazer  missões  por  todo  Entre  Douro 
e  Minho  com  verdadeiro  zelo  evangélico,  a  cujo 
respeito  diz  o  elegante  chronista  dominicano.  — 
'Era  o  tempo  miserável  era  desconcerto  de  vidas, 
3  cegueira  nas  cousas  da  fé.  Foi  sua  pregação  tocha 
para  as  ignorâncias  ,  norte  e  guia  para  desviar  dos 
perigos  da  culpa  e  encaminhar  os  peccadores  para 
)  céu.  Ensinava  e  allumiava  ,  como  pai  zeloso  a  fi- 
lhos amados.  Xo  meio  destes  cuidados  tomava  co- 
mo ferias  alguns  dias  para  si.  Buscava  logares  soli- 
tários em  que  desse  pasto  ao  espirito  de  divinas  con- 
templações. Era  naquella  idade  verdadeiro  deserto 
todo  o  sitio  e  comarca  ,  onde  hoje  é  a  villa  d'Ama- 
rante  ,  sitio  não  só  ermo,  por  apartado  da  genle  e 
povoado,  mas  temeroso  por  altura  de  montes,  pro- 
fundeza de  valles,  aspereza  de  penedias  e  mattas 
sspessas  ,  e  sobre  tudo  pela  corrente  impetuosa  e 
;scura  ,  com  que  profundamente  lhe  lava  as  raizes 
3  rio  Tâmega  ,  entalado  aqui  cora  outras  montanhas 

JcjiHO  17—1843. 


da  parte  confraria,  igualmente  dependuradas  c  a- 
gras,  e  que  fazem  crer  a  quem  eslá  sobre  ellas  que 
não  pôde  haver  divisão,  nem  corrente  daguas  em 
meio.  Accrescenla  horror  a  vista  da  empinada  ser- 
ra do  Marão  ,  que  coberta  de  neve  ,  grande  parle 
doanno,  parece  ficar  pendente  sobre  as  cabeças. 
Xeste  posto  se  escondia  ,  e  achava  sua  alma  tanla 
consolação  [devia  ser  com  a  lembrança  de  outros 
similhantes  que  vira  nos  desertos  de  Palestina  e  ri- 
beiras do  Jordão]  que  veio  a  edificar  nelle  uma  pe- 
quena ermida,  que  dedicou  á  Virgem  Mãi  de  Deus, 
para  o  lograr  mais  de  assento,  quando  podesse.u 

.indados  tempos  entrou  na  ordem  religiosa  de  S. 
Domingos,  na  casa  de  Guimarães,  admiltido  por 
outro  varão  porluguez ,  de  quem  reza  também  a 
Igreja  ,  S.  Pedro  Gonçalves  Telmo  ,  sanlo  a  que  os 
navegantes  professam  grande  devoção.  Julga-se  que 
tomara  o  habito  no  anno  de  12ol.  Disputaram  os 
monges  benedictinos  aos  frades  dominicanos  .i  glo- 
ria de  lerem  por  confrade  a  .S.  Gonçalo,  sobre  o 
que  houve  porfioso  litigio  ,  e  se  deu  sentença  em 
Roma  ,  no  anno  de  1615,  a  favor  da  Ordem  de  S. 
Domingos. 

Religioso  professo,  continuou  Gonçalo  a  luzir  em 
santidade,  empregando-se  no  ministério  da  divina 
palavra  :  e  entre  as  suas  mui  dignas  emprezas  é 
sem  duvida  memoranda  a  edificação  da  ponte  d'A- 
marante ;  obra  [segundo  as  expressões  do  citado 
chronista]  que  para  muitos  povos  juntos  f<)ra  de 
grande  carga  ,  e  para  um  rei  parecera  muito  custo- 
sa ,  quanto  mais  para  um  pobre  frade  que  de  seu 
não  tinha  mais  que  o  breviário  em  que  resava  !•  . 
Cheio  de  zelo  fervoroso,  sollicilando  esmolas,  con- 
vidando a  gente  das  visinhanças,  e  dirigindo  os  tra- 
balhos ,  sabiu  com  seu  intento  levantando  a  obra 
pro\eilosa.  Xarram  os  historiadores  de  sua  vida  por 
essa  occasião  vários  milagres. 


(•)     3.*  Parte  Ja  Historia  do  S.  Dumingos 

2.°  Serie.  —  Voi..  II. 


186 


O   PANORAMA. 


Na  ermida  c  local  da  sepultura  do  santo  [que 
ainda  se  venera]  se  erigiu  o  mosteiro  ,  de  que  fize- 
mos menção  a  pag.  34  deste  vol.  ,  e  que  se  vè  re- 
presentado em  nossa  gravura ,  tal  como  se  achava 
no  século  passado.  A  pedido  davilla  de  Guimarães, 
(;  por  persuasão  dos  frades  de  S.  Domingos,  elrei 
1).  João  3.°,  grande  amigo  e  patrono  destes,  man- 
dou metter  mãos  á  obra,  que  teve  começo  emlS43, 
tratando-se  de  a  cfTectuar  desde  1340. 

Para  que  a  capcUa-raór  ficasse  no  sitio  da  sepul- 
tura de  S.Gonçalo  foi  mister  empregar  grandes  di- 
ligencias c  não  menos  despezas  :  pendendo  sobre  es- 
se logar  um  monte  alio  e  fragoso,  tiveram  de  o  des- 
fazer a  picão  «  mas,  [para  nos  servir-mos  outra  vez 
dos  termos  de  Fr.  Luiz  de  Sousa]  tudo  vence  um 
trabalho  aturado.  E  se  for  bafejado  do  céu,  que 
cousa  lhe  poderá  resistir  I  Ficou  o  monte  talhado  a 
prumo  ,  tanto  até  as  entranhas  e  centro  delle  ,  que 
(orre  toda  a  igreja  a  clivei  com  a  sepultura  do  san- 
to; e  alem  de  todo  o  comprimento  delia,  que  é 
grande  ,  faz  no  mesmo  andar  uma  boa  rua,  entre  a 
jiorta  principal  e  a  rocha  ,  que  dá  serventia  para  a 
portaria  do  convento.  Mas  aqui  se  mostra  e  é  de 
vêr  o  muito  que  se  alcançou  com  a  força  e  mãos 
di)S  homens  :  porque  sobe  a  rocha  talhada  e  direita 
para  o  céu  ,  como  se  fora  um  muro  de  uma  só  pe- 
dra; e  em  tanta  altura  que  senhoreia  todo  o  con- 
vento e  o  mais  alto  ponto  do  telhado  da  igreja.  Fi- 
cou o  convento  com  dois  claustros  ,  e  suas  fontes ; 
obra  bem  feita ,  mas  moderada  na  grandeza  ,  como 
convinha  para  em  (erra  fria  ,  e  pela  baixeza  do  si- 
tio ser  sujeita  a  grandes  nevoeiros  ehumidados:  os 
dormitórios,  ao  mesmo  respeito  ,  de  bom  gasalhado 
mais  que  fausto  e  sumptuosidade  ;  cerca  grande  de 
horta  ,  e  frescura  de  arvoredos  ,  ao  longo  do  rio , 
de  propriedades  que  depois  se  foram  comprando.» 


ECOITOMIA  POLITICA.     ■'   ■  -''■ 

Considerações  sobre  o  Curso  d' Economia  Politica  do 
Sr.  Miguel  Ckcvalier. 


Depois  de  ter  discorrido  sobre  dois  dos  pontos  que 
escolhêramos  —  vias  de  communicação  ,  e  institui- 
ções de  credito  —  resta-nos  o  terceiro  que  é  a  edu- 
cação industrial  ,  sobre  o  qual  nos  limitámos  a  no- 
lar  que  não  contestando  ninguém  a  necessidade  del- 
ia, nem  sendo,  no  geral,  resistida  pelos  prcjuizos, 
o  que  já  não  é  pequeno  passo  ,  comtudo  o  desen- 
volvimento de  que  carece  está  mais  dependente  do 
que  se  cuida  de  certos  commodos  sociaes  que  hão- 
(le  ir  nascendo  do  incremento  da  riqueza  publica  ; 
porque  a  marcha  ([uc  cila  segue  c  sempre  esta  — 
\\r  depois  daqnclles  commodos  e  melhoramentos  ; 
imitando,  neste  caso,  as  sociedades  c  os  estadus 
aquillo  mesmo  que  usam  ,  com  bem  raras  exce- 
pções ,  os  particulares  ,  que  é  não  curarem  do  seu 
aperfeiçoamento  sem  terem  adquirido  a  segurança 
da  subsistência  ,  e  de  certas  fruições  que  tornam 
agradável  a  vida. 

Accusando  o  nosso  atrasamento  em  todos  es- 
tes ramos  ,  não  devemos  occuUar  que  se  obser- 
vam symptomas  de  melhoria  conq)araiiva  em  al- 
guns, i;  um  artigo  da  nossa  fé  que  os  esforços  do 
interesse  |)articular  são  mais  cllicazes  para  o  bera 
da  sociedade  do  que  a  desvigilancia  ,  os  erros  i  e 
as  dissi|)ações  dus  governos  o  são  para  o  detrimen- 
to delia.  Consoladora  como  esta  crença  é,  ainda  te- 


mos penhor  mais  seguro  de  que  não  somos  exem- 
plo contrario  ao  principio  regulador  do  progresso 
económico  das  nações.  Descobrem-se ,  entre  nós , 
signaes  que  nunca  mentiram  de  crescimento  indus- 
trial. Antes  de  os  apontar  ,  vejamos  quaes  contam 
nessa  classe  economistas  de  celebridade  nas  quatro 
escholas  em  que  se  divide  a  siencia  ,  e  nas  cinco 
principaes  nações  da  Europa. 

Segundo  Smith  (1)  é  um  destes  signaes  a  elevação 
no  preço  da  caça  ,  porque  a  caça  multiplicando-se 
e  barateando  na  proporção  das  terras  incultas  ,  di- 
minuo c  encarece  á  medida  que  estas  se  vão  culti- 
vando —  isto  é  —  á  medida  que  a  riqueza  nacio- 
nal augmenta.  Outro  signal  é  a  elevação  no  pre- 
ço do  gado,  o  qual  diminuo  c  encarece  á  medida 
que  os  terrenos  de  pastagem  se  vão  convertendo  cm 
terras  de  lavoura.  E  a  elevação  no  preço  dos  ce- 
reaes  que  denota  a  necessidade  de  explorar  ,  ou  o 
facto  da  exploração  de  terras  de  inferior  qualidade 
em  consequência  deaugmento  no  consumo,  augmcn- 
to  que  resulta  sempre  de  um  acréscimo  na  produc- 
ção.  O  ultimo  signal  é  abaixa  no  preço  real  dos  pro- 
ductos  fabris ,  que  é  sempre  nascida  de  melhor  di- 
visão de  trabalho  ,  de  aperfeiçoamento  na  industria 
e  nas  machinas ,  e  de  abundância  de  capitães  ;  Ires 
demonstradores  infallivcis  de  que  um  paiz  vae  pros- 
perando. 

Say  repete  ,  por  outras  palavras  ,  a  mesma  dou- 
trina no  que  toca  a  productos  da  agricultura , 
guardando  silencio  sobre  os  cereaes ,  talvez  porque 
sobre  a  renda  agricola  segue  iheoria  differenle  da 
ingleza.  Mas  é  a  excepção,  pois  a  regra  geral,  o 
verdadeiro  thermometro  de  que  se  auxilia  para  me- 
dir a  prosperidade  de  uma  nação  c  o  grau  de  ba- 
rateza  dos  productos ,  os  qiiaes  o  são  tanto  mais 
quanto  menos  custaram  a  produzir;  e  o  valor  da 
fortuna  ou  renda  dos  particulares  tanto  maior  quan- 
to mais  forem  os  productos  que  possam  obter  com 
ella. 

Storch  adopla  ,  geralmente  ,  a  opinão  de  Smith 
(Í2)  :  mas  o  seu  meio  particular  do  avaliar  a  condi- 
ção económica  das  nações  c  este  :  divide-as  nas  que 
emprestam  ,  e  nas  que  pedem  emprestado  :  ás  pri- 
meiras considera  —  ricas,  ás  segundas  —  pobres  (3). 

Kau  (4)  ,  assentando  ser  mais  fácil  formar  idéa 
clara  da  riqueza  de  uma  nação  comparando-a  a  ou- 
tras ,  do  que  comparando  entre  si  as  fortunas  dos 
seus  naturaes  ,  olha  como  indícios  de  que  um  po- 
vo é  mais  rico  do  que  outro,  os  seguintes  —  modo 
de  viver  das  classes  de  operários ,  ou  gozo  que  lhe 
permitte  o  seu  rendimento  —  natureza  e  importân- 
cia das  emprezas  em  que  se  interessam  os  cidadãos 
—  grandeza  das  despezas  governativas  ,  feitas  com 
fins  de  utilidade  publica  ,  quando  a  nação  as  sup- 
porla  sem  ruina  e  sem  empobrecimento  —  emprés- 
timos tomados  ou  feitos  ao  estrangeiro  —  c  distri- 
buição das  fortunas  pelo  maior  numero. 

Schmaiz  (5)  contempla  como  signal  de  que  uma 
nação  prospera  ganharem  as  ultimas  classes  ,  pela 
sua  industria  ,  alem  do  necessário  ;  eslender-se  o 
huo  [palavra  cora  que  elle  designa   a  satisfação   do 


(t)  Recherchcs  ,  S,c.  —  Iradiicçuo  de  Ganiier  tom.  2.° 
pag.  139  e  st-suinii-s Paris  U:OSi. 

(2)  Coiirs  d'Ecoii.  J'ol.  lum.  2."  pai;.  JUl  alú  lOj  — 
Paris  1I!2;!.  ,,i.       .  ; 

(■A)      Tuni.   I.°  pag.  22C  até  228.  ^       • 

(4)  Triiili'  cVEcon-  Pot.  Trailuci;r>o  de  Kemmeler  pag. 
66  e  67  vS^  ao  e  81  —Paris  1840. 

(.5)  Econ.  Pvl. — traducção  —  tora.  l."paj.  10  —  Pa- 
ris 11)26. 


o  PANORA31A. 


187 


todas  as  precisões  creadas  pela  civilisarão]  pouco  a 
(Kiuco  ;  augtneiitando-se  nas  classes  superiores  era 
gradação  lai  que  os  seus  gozos  não  contrastem  com 
as  pri\ações  das  outras.. 

Verri  (6)  descobre  na  multiplicação  da  popula- 
ção o  annuncio  iofallivel  do  crescimento  produ- 
ctivo. 

Sismondi  (7)  objecta  a  cada  ura  dos  symplonias 
<[i-  prosperidade,  quando  isolados,  poderem  indu- 
zir em  erro  :  em  seu  conceito  um  acréscimo  de  po- 
pulação ,  ou  de  producção  ,  ou  de  exportação  ,  ou 
de  numerário  não  prova  que  o  paiz  onde  acontece 
seja  feliz,  nem  mesmo  que  se  enriqueça:  mas  a 
proporção,  ajusta  relação  entre  estes  progressos , 
conservando  a  todos  o  commodo  ,  essas  provam. 

Ferrier  (8)  assc^ora  que  uma  nação  é  tanto  mais 
rica  quanto  mais  artigos  de  consumo  produz  an- 
nualmcntc. 

Flores  Estrada  (9)  julga  que  a  única  medida 
exacta  por  onde  se  pódc  apreciar  a  prosperidade 
de  um  paiz  é  a  elevação  dos  lucros  que  dá  o  seu 
capital ,  porque  essa  elevação  provém  necessaria- 
mente ou  da  sua  industria  ser  mais  productiva  ,  ou 
da  faculdade  de  accumular  e  augmentar  a  riqueza 
e  a  população  ser  maior ;  em  quanto  ao  contrario  , 
a  diminuição  dos  reditos  procede  necessariamente 
da  industria  ser  menos  productiva  ,  de  ter  diminuí- 
do a  faculdade  de  accumular  a  riqueza  ,  e  emfim 
de  terem  augmentado  os  obstáculos  que  estorvam 
o  progresso  da  população. 

Maltbus  1 10;  affirma  que  o  trigo  tende  natural- 
mente a  subir  de  preço  a  medida  do  adiantamento 
da  sociedade,  o  qual,  augmentando  o  consumo, 
obriga  a  recorrer  a  terrenos  menos  ferieis  e  de 
mais  dispendiosa  cultura  ;  e  que  por  uma  rasão  in- 
teiramente opposta  —  a  diminuição  nas  despezas  do 
fabrico  nascida  do  aperfeiçoamento  successivo  da 
industria  e  das  machiuas  —  o  preço  dos  artefactos 
tende  a  baixar  á  medida  que  se  amplia  a  rique- 
za nacional.  Reputa  ,  pois  ,  por  característico  deste 
desenvolvimento  a  alta  no  preço  do  trigo  ,  e  a  bai- 
xa no  dos  productos  fabris. 

Por  differentes  ou  encontradas  que  sejam  as  opi- 
niões destes  auctores  na  questão  do  que  se  trata , 
lia  comtudo  um  testemunho  de  adiantamento  eco- 
nómico que  nenhum  delles  recusa  ,  confessando-o 
uns,  e  outros  admittindo-o  implicitamente,  em  suas 
obras.  Esse  testemunho  de  progresso  que  todos  ac- 
ceitam  é  o  acréscimo  na  cultura  e  producção  dos 
cereaes.  Estará  estampado  em  nossos  campos  este 
documento  de  prosperidade"?  Sem  duvida  !  A  abun- 
dância mora  hoje  em  districtos  agrícolas  onde  a  es- 
cacez  e  a  pobreza  reinavam  ha  dez  annos.  Povoa- 
ções apoquentadas  estão  convertidas  em  terras  flo- 
reccntes.  Xumerosos  trabalhadores  se  alcvantam  á 
cathegoría  de  pequenos  proprietários.  E  quantos , 
pequenos  proprietários  antes  da  reforma ,  depois 
que  meia  dúzia  de  leis  lançaram  sua  benção  ao  so- 
lo, não  estão  deitando  á  terra  mais  charruas  do  que. 
em  tempo  anterior  ,  deitava  o  mais  poderoso  dos 
seus   visinhos?  Não  importámos  de  fora   um   bago 


(6)  Econ.  Pol.  —  traducção  —  pai.  108  e  109  —  Paris 
1799. 

(7)  Etudes,    Sf-c.  tom.  2.°   paj.  168   e  169  — Briixel- 
las  1838. 

(8)  Du  gouvernement  líans   ses  rapporls  arec   le  com- 
mcrce  paj.  6 — Paris  1833. 

(9)  Cours .    í"<"-  — tradiiccão   de  Galiberl  —  tom.  ].'' 
pag.  194  e  195  — Paris  1833.  ' 

(10)  Príncipes,  í\-c.  lraducq*io  —  tom.  1.°  pa:.  278  — 
Paris  1820. 


de  trigo  ,  nós  que  ainda  ha  pouco  veríamos  morrer 
de  fome  a  l(iO  mil  dos  nossos  compatriotas  se  não 
comprássemos  a  paizes  estrangeiros  o  pão  para  ali- 
menta-los. Os  ceroaes  que  importávamos  pelo  ter- 
reiro e  outros  porlos  seccos  o  molhados  ,  tomando 
um  termo  médio  entre  os  annos  decorridos  desde 
1790  até  1819,  montavam  annualmentc  a  100:000 
moios,  ou  pouco  mais;  e  tomando  outro  termo  mé- 
dio entre  os  annos  decorridos  desde  177!l  ate  1831, 
chegavam  a  89:1)00  moios  poranno.  Quanto  dispen- 
diamos  na  compra  destes 89:600  moios?  :>:oOO  con- 
tos, reputando  o  trigo  a  tiOO  r.' o  alqueire,  eaSOOr." 
os  outros  cereaes.  Produzindo  nós  agora  o  género 
que  comprávamos,  que  somraa  acrescentámos  áquel- 
la  que  representa  a  renda  bruta  do  paiz?  1:07o  con- 
tos, estimando  a  áOO  r.'  o  alqueire  de  trigo,  e  das 
outras  espécies;  estimação  a  que  ninguém  chama- 
rá exorbitante.  Se  considerarmos  o  que  deixámos 
de  dispender  com  cereaes  estrangeiros,  são  2:500 
contos.  Mas  se  attendermos  á  verdadeira  vantagem 
que  alcançámos,  a  renda  addiccional  que  havemos 
de  lançar  em  receita  são  1:073  contos,  os  quaes  se 
distribuem  em  cinco  partes  —  uma  em  salários  pe- 
lo trabalhador  —  outra  em  rendas  pelo  proprietário 

—  outra  em  lucros  pelo  rendeiro  —  outra  em  juros 
pelo  capitalista  que  empresta  e  adianta  ao  lavrador 

—  outra  em  impostos  que  recebe  o  estado.  Se,  con- 
templando somente  o  principio  da  riqueza  ,  despre- 
sarmos  o  elemento  da  felicidade  ,  e  contarmos  co- 
mo quantidades  negativas  a  vida  ,  a  subsistência  , 
a  receita  do  trabalhador  ,  do  rendeiro  ,  do  capita- 
lista ,  e  do  estado  ,  supprimindo  ,  eliminando  como 
verli.TS  de  despeza  as  verbas  que  a  estes  tocara  nos 
1:07.5  contos,  para  deduzir,  em  ultimo  resultado. 
a  renda  do  proprietário  liquida  de  todo  o  gasto ,  e 
offerecer  o  fructo  da  arvore  sem  avaliar  nem  o  tra- 
balho do  tronco  ,  nem  o  dos  ramos  ,  nem  o  das  fo- 
lhas ,  nem  o  de  quantos  agentes  externos  coopera- 
ram para  fecunda-la  —  ainda  assim,  o  valor  desse 
fructo,  dessa  renda  liquida  —  esqueleto  descarna- 
do ,  mas  riqueza  na  mais  escrupulosa  accepção  do 
termo  —  será  um  valor  considerável,  seja  este 
valor  ou  renda  liquida  30  contos  que  é  menos  de 
3  por  cento  da  renda  total  :  estes  30  contos  corres- 
pondem a  um  capital  de  1:000  contos  incontesta- 
velmente acrescentado  aos  capitães  da  nação.  E  não 
só  esse  ,  senão  também  outros  em  bemfeitorias  .  em 
gados,  em  utensílios  ruraes  que  se  hãode  ter  amon- 
toado, porque  sem  elles  não  seria  crivei  ura  au- 
gmento  de  cultura  como  temos  visto. 

Haverá  ,  alem  deste ,  outros  indícios  de  melho- 
ramento? Xão  posso  duvidar  de  que  os  ha  ,  porque 
os  encontro  no  cresciraento  de  alguns  ramos  da  re- 
ceita publica.  Para  demonstrar  este  crescimento  es- 
tabelecerei um  ponto  de  partida  e  um  termo  de 
comparação.  Seja  a  epocha  de  1820.  A  confronta- 
ção de  certos  rendimentos  públicos  dessa  epocha 
cora  os  seus  análogos  na  actual  demonstram  au- 
gmento  attcndivel  nos  últimos.  Tenho  diante  dos 
olhos  um  mappa  dos  rendimentos  da  mesma  epo- 
cha, e  o  orçamento  de  1843  a  1844,  e  comparando 
um  com  outro  não  affirmarei  quanto  o  producto  do 
correio  —  da  decima  —  do  real  d'agua  —  do  subsi- 
dio litterario  tem  augmentado  ;  e  o  rendimento  das 
alfandegas  mostrado-se  igual  aos  tempos  mais  prós- 
peros do  nosso  commercio.  —  E  não  o  affirmarei  , 
não  só  porque  orçamento  e  receita  deGnitiva  não  são 
a  mesma  cousa;  mas  ainda  porque  os  dados,  existen- 
tes, de  receita  definitiva  não  poderiam  entrar  no  meu 
calculo  sem  os  sujeitar  a  alguns  descontos,  cuja  jus- 


J88 


O  PANORAMA. 


tificação  spria  prolixa  e  minuciosa  demais  para  um 
artigo  de  jornal,  e  sobretudo  enfadonha  piíra  osqiie 
o  lêem.  Mas  assevero,  sem  lemor  de  errar,  que 
aqnella.s  einco  fontes  de  receita  que  apontei  ,  tem 
in(/ross(iil()  ,  alg;nmas  notavelmente.  E  para  mim 
teniio  que  ura  .lugmenlo  no  rendimento  do  eorreio 
se  em  parte  pódc  indicar  melhor  arranjo  e  systema. 


que  não  disputo  ,  neste  estabelecimento  ,  na  maior 
parle  indica  maior  numero  de  transações  commer- 
ciaes  ,  e  até,  diria  eu  ,  que  maior  numero  de  pes- 
soas com  noções  de  leitura  e  escripta,  se  assim  co- 
mo me  proponho  averiguar  symptomas  de  progres- 
so na  riqueza  ,  fosse  meu  intento  buscar  indícios 
delle  na  civilisação. — (Conlhwa).  A.  d' O.  Marreca. 


A   CAVERNA   DE   DIONYSIO. 


As  CAVERNAS  ftindas  appresenfam  muitas  vezes  a 
geral  estrnctnra  do  orf;ãii  do  ouvido,  aec  mmoda- 
da  para  receber  e  reflectir  o  som.  Ha  uma  na  Si 
cilia  ,  em  que  se  nota  ailificio  humano  ;  c  combi- 
nada esta  circumslancia  com  algumas  ruinas,  e  cer- 
tas disquisiçõcs  de  antiquários:  parece  qi-e  ahi  fo- 
ra o  decantado  cárcere  do  tyranno  da  Sii  Ília  ,  que 
[dizem  os  antigos  fabuladores]  o  mandara  construir 
sob  as  abobadas  de  ura  seu  palácio  ,  com  tal  estru- 
ctura  que  havia  um  conducto  encaminhado  a  uma 
camará  ,  secreta  ,  onde  quem  applicasse  o  ouvido 
podia  escutar  quanto  na  prisão  se  dizia;  c  era  essa 
a  prisão  dos  criminosos  contra  o  estado,  isto  é,  da- 
quelles  de  quem  se  arreceiava  a  tyrannia  de  Dio- 
nysio.  —  É  necessário  saber  que  em  Syracusa  hou- 
ve desse  nome  dois  tyrannos  ,  como  enião  chama- 
vam aos  que  regiam  os  estados  com  poder  quasi  ab- 
soluto ,  ou  usurpavam  o  mando  supremo,  posloque 
se  conservassem  certas  convocações  de  assembleas 
populares  cm  tempos  incertos  ,  e  oulras  formulas 
das  republicas  gregas,  donde  a  Sicília  tomou  em 
muita  parle  leis,  costumes,  c  industria.  Esses  dois 
homens  ,  Dinnysio  o  velho  ,  e  seu  filho  do  mesmo 
nome,  apiiellidado  o  moço,  viveram  e  dominaram 
entre  os  aunos  MO  e  344  antes  da  era  de  Chrislo. 
O  primeiro  sobresahiu  nas  discórdias  civis  da  sua 
pátria  ,  quando  dividida  nos  bandoí  de  Diocles  e 
llcrmocrates  e  prestes  a  cahir  nas  mãos  dos  car- 
Ihaginczes ,  que  invadiam  toda  a  ilha  ,  tendo-se  já 
apossado  de  Aggrigcnto.  Coni  o  favor  popular  ,  e  o 
prestigio  dos  serviços  políticos  c  militares  para  li- 
bertar Syracusa  do  jugo  dos  estranhos  africanos  , 
medrou  e  conquistou  o  primeiro  lugar  da  republi- 
ca ,  promovendo  a  accusação  e  a  queda  dos  outros 
gcncracs  e  magistrados  ;  e  por  fim  fcz-se  o  que  dia- 
mavam  tjranuo,  dominador  do  estado.  Foi  homem 


hábil ,  que  senhoreou  meia  Sicília  ,  e  ganhou  pos- 
sessões no  continente  italiano  ,  teve  allianças  com 
iis  republicas  gregas,  rodeou  a  sua  corte  dos  sá- 
bios do  seu  tempo,  cultivou  as  leltras  e  prote- 
geu-as  ;  porem  ao  mesmo  tempo  era  fero  ,  e  ciu- 
mento ,  vingativo  ,  e  inclinado  á  rapina  ,  tanto  que 
espoliou  os  templos  e  a  este  respeito  conta  Cícero 
anccd'itas  engraçadas.  Commelleu  atrocidades,  con- 
dcmnou  cidadãos  justos  ;  mas  quanto  ao  modo  de 
exercitar  as  crueldades  contaram  alguns  escriptores 
cousas,  que  hoje  ningucm  acredita  :  tal  é  a  histo- 
ria do  touro  de  metal  onde  as  viclimas  eram  encer- 
radas para  que  o  fogo  as  assasse  lentamente  ,  sa- 
hindo  pelas  ventas  do  louro  os  clamores  dos  mise- 
ráveis por  tal  forma  modificado  que  imitava  os  ber- 
ros c  bramidos  do  animal  que  representava.  A  fa- 
brica da  prisão  especial  e  o  conducto  auscultatorío 
no  palácio  de  Dionysio  é  provavelmente  outra  pa- 
trnnha.  —  Alguns  attribucm  ao  filho  as  crueldades 
do  pai  ;  verdade  é  ,  segundo  os  mais  acreditados 
historiadores,  que  este  sem  possuir  os  talentos  do 
progenitor  não  degenerou  antes  requintou  em  malí- 
cia.—  O  fim  que  (ivernm  foi  este:  o  pai  morreu 
d"cmbriaguez  e  enfartação  de  comidas  n'nm  ban- 
quete ,  no  atuio  307  antes  de  Chrislo  ,  contando  de 
idade  63  annos  ,  e  de  gt^verno  3S.  —  O  filho,  ex- 
pulso de  Syracusa  ,  pela  expedição  de  gregos  sabi- 
dos de  C<irintho  ,  capitaneados  |)elo  famoso  Timo- 
leon  ,  c  requeridos  pelos  súbditos  que  não  podiam 
su])p(irtar  o  tyranno,  veio  a  acabar  na  (írecia,  na 
ridiíde  de  Ciirinlho  ,  para  onde  o  mandaram  ;  ahí 
ensinou  meninos,  c  confundiu-se  com  as  mais  or- 
dinárias classes  da  povoação;  o  que  elle  fazia  de 
propíisito  ,  para  ser  esquecido  ,  se  é  verdade  o  que 
rebita  Justino  no  liv.  21.°  cap.  6."  de  suas  his- 
torias. 


o  PANORAMA. 


18'» 


DCAS    EPOCHAS   E  DOIS  MONTMKNTOS  ,   OD   A   GRANJA 
BEAL   DE  AIaFRA. 

HoivK  entre  nós  um  rei  nnscido  com  urna  indole 
fíenerosa  e  mngiiifica  :  foi  I).  João  5."  Favoreceu  a 
fortuna  a  grandiosidade  do  seu  animo.  Durante  o 
reinado  desle  princi|)e  as  entranhas  da  America  pa- 
reciajn  converter-se  em  ouro,  e  a  terra  brotar  dia- 
mantes para  enriquecerem  o  tliesouro  portuguez  — 
c  o  nosso  primeiro  rei  do  século  IS.°  pode  emular 
Luiz  14.°  cm  fasto  e  magnificência.  Il.i,  porem,  dil- 
ferenças  entre  os  dois  mooarclias:  l,uiz  li.°.  niai-. 
gucrreador  (|ue  guerreiro,  malliaratou  o  sangue  de 
seus  súbditos  em  conquistas  otereis ;  1).  Joiio  .'5.° 
mais  pacífico  que  tímido,  comprou  sempre,  sem 
olhar  ao  preço  ,  a  paz  externa  dos  seus  naturaes. 
Luiz  11."  levou  a  altíssimo  grau  d'esplendor  as  let- 
tras  c  as  sciencias  :  D.  João  o.°  tcntou-o  ;  mas  fi- 
cou muito  áquem  do  príncipe  francez.  Devemos  to- 
davia lembrar-nos  de  qae  Luiz  14."  era  senhor  de 
uma  vasta  monarchia  ,  e  D.  João  5.°  rei  de  uma 
nação  pequena.  Uma  litteratura  extensa  e  ao  mes- 
mo tempo  vigorosa  só  apparece  onde  ha  muitos  ho- 
mens. É  como  a  grande  cultura,  que  só  pôde  fazer- 
se  em  opulentas  propriedades,  e  dilatados  terrenos. 

D.  João  5."  teve  como  Luiz  14.°  o  seu  Louvre; 
mas  um  Louvre  em  harmonia  com  o  caracter,  não 
tanto  religioso  como  beato  e  hypocrita,  do  seu  paiz 
naquella  epocha.  Jlafra  ficou  duvidosa  no  desenho, 
entre  o  mosteiro  e  o  palácio.  As  duas  entida<les  ar- 
chitectonicas  compenetram-se  ahi  d*um  modo  inex- 
tricável. A  purpura  está  lá  remendada  de  burel  ;  o 
burel  alindado  com  purpura,  e  o  sceptro  de  rei  en- 
laça-se  cora  a  corda  d'esparto  ,  ao  passo  que  a  al- 
pargata  franciscana  ousa  pisar  os  degraus  do  thro- 
no.  Os  que  sabem  quão  corrompidos  foram  os  cos- 
tumes em  Portugal  no  princípio  do  século  passado  , 
e  quão  esplendido  e  ostentoso  foi  o  culto  divino  ; 
quão  brilhante  foi  a  corte  porlugueza  nesse  tempo,  e 
por  quão  frouxas  mãos  andou  o  leme  doestado,  não 
precisam  vèrMafra.  Mafra  é  a  imagem  de  tudo  isso. 

Um  grande  edificio,  fosse  qual  fosse  o  destino 
que  seu  fundador  lhe  quizesse  dar.  é  sempre  e  de 
muitos  modos  um  livro  d'hisloria.  Osquenelle  bus- 
cam só  um  typo  por  onde  aíTerir  o  progresso  ou  de- 
cadência das  artes  na  e|iocha  da  sua  edificação  , 
Icem  apenas  um  capítulo  desse  livro.  Os  castellos  , 
os  templos,  e  os  palácios, — triplice  género  de  mo- 
numentos que  encerra  em  si  toda  a  architectura  da 
Europa  moderna  —  formam  umachronica  immensa, 
em  que  ha  mais  historia  que  nos  escriptos  dos  his- 
toriadores. Os  architectos  não  suspeitavam  que  vi- 
ria tempo  em  que  os  homens  soubessem  decifrar 
nas  moles  de  pedras  afTeiçoadas  e  accumuladas  a 
■vida  da  sociedade  que  as  ajuntou  ,  e  deixavam-se 
ir  ao  som  das  suas  inspirações  ,  que  eram  determi- 
nadas pelo  viver  e  crer  e  sentir  da  geração  que 
passava.  Elles  não  sabiam  ,  como  os  historiadores  , 
que  no  seu  livro  de  pedra  ,  também  como  nos  da- 
quelles,  se  podia  mentir  á  posteridade.  Por  tal  mo- 
tivo foi  a  architectura  sincera. 

Sfafra  é  um  monumento  rico,  mas  sem  poesia  ,  e 
por  isso  sem  verdadeira  grandeza  :  é  o  monumento 
de  uma  nação  que  dormita  apoz  um  banquete  co- 
mo os  de  Lucullo  :  é  o  toucador  de  uma  Laes  ou 
Phrine  assentado  dentro  do  templo  do  Deus  dos 
christãos,  e  sob  outro  aspecto,  é  a  beataria  d'uma 
velha  tonta  ,  affeclando  a  linguagem  da  fé  ardente 
e  profunda  d'Origenes  ou  de  Tertulliano. 

Sem  contestação  —  Jlafra  é  uma  bagatella  mara- 


vilhosa ,  o  dixe  de  um  rei  liberal ,  abastado  ,  e 
magnifico;  é  pouco  mais  ou  menos  o  que  foi  Por- 
tugal na  primeira  melado  do  século  18.° 

(lollocai  pela  imaginação  .Mafra  ao  pé  da  Batalha, 
e  podereis  entender  quanto  c  clara  e  precisa  a  lin- 
guagem destas  cbronicas,  lidas  de  poucos,  em  que 
as  gerações  escrevem  mysteriosamcntc  a  historia  do 
seu  viver.  A  Batalha  é  grave  como  o  vulto  homéri- 
co de  D.  João  1.",  poética  e  altiva  como  os  caval- 
leiros  da  ala  de  Mem  Itodriguez  ,  religiosa  ,  Irau- 
quilla  ,  santa  como  D.  Philippa  rodeada  dos  seus 
cinco  lilhos.  As  mãos  que  edificaram  St.''  Maria  da 
Victoria  ,  meneando  as  armas  em  Aljubarrota  ,  de- 
viam ser  vencedoras.  A  Batalha  representa  uma  ge- 
ração enérgica  ,  moral  ,  crente  :  Mafra  uma  geração 
afeminada,  que  se  finge  forte  e  grande.  A  Batalha  é 
um  poema  de  pedra  :  SIafra  é  uma  semsahoria  de 
mármore.  Ambas,  ecclios  pcrennes  que  repercutem 
nos  séculos  que  vão  passando  a  expressão  complexa, 
e  todavia  clara  e  exacta,  de  duas  epocbas  históricas 
do  mesmo  povo,  sua  juventude  viçosa  e  robusta,  e 
sua  velhice  cachetica. 

O  caracter  de  um  monumento  do  tempo  presente 
não  pôde  ser  por  certo  um  edificio  gigante,  um 
templo,  ou  ura  palácio.  Onde  as  crenças  religiosas 
vacillam  como  a  luz  que  se  apaga  ,  o  templo  seria 
uma  pngina  d'hisloria  fabulosa  :  onde  a  pobreza  ex- 
trema substitue  a  riqueza,  um  tanto  estúpida  e  fas- 
tosa  com  mau  gosto  ,  o  palácio  esplendido  seria  um 
capitulo  anachronico.  O  monumento  deve  resumir  a 
sociedade  ,  e  em  nenhum  desses  géneros  de  memn- 
randiím  se  acharia  representado  o  actual  existir. 

Que  somos  nós  hoje?  Uma  nação  que  tende  a  re- 
generar-se  :  diremos  mais:  que  se  regenera.  Re- 
genera-se,  porque  se  reprehende  a  si  própria  ;  por- 
que se  resolve  no  lodaçal  onde  dormia  tranquilla  ; 
porque  se  irrita  da  sua  decadência  ,  e  já  não  sorri 
sem  vergonha  ao  insultar  d'estranhos ;  porque  prin- 
cipia, emfim,  a  reconhecer  que  o  trabalho  não  des- 
honra  ,  e  vai  esquecendo  as  visaicns  senhoris  de  fi- 
dalga. Deixai  passar  essas  paixões  pequenas  c  más 
que  combatem  na  arena  politica  ,  deixai  flucluar  á 
luz  do  sol  na  superficie  da  sociedade  esses  cora- 
ções cancerosos  que  ahi  vedes  ;  deixai  crguerem-se, 
tombar,  despedaçarera-se  essas  vagas  encontradas  e 
confusas  das  opiniões  I —  Tudo  isto  acontece  quan- 
do se  agita  o  oceano  ;  —  e  o  mar  do  povo  agita-se 
debaixo  da  sua  superficie.  O  sargaço  immnndo  ,  a 
escuma  fétida  e  turva  hão-de  desapparccer.  Um  dia 
o  oceano  popular  será  grandioso,  puro  e  sereno  co- 
mo sahiu  das  mãos  de  Deus.  A  tempestade  é  a  per- 
cursora da  bonança.  O  lago  asphaltite  —  o  Mar- 
Morto  —  esse  é  que  não  tem  procellas. 

O  nosso  estrebuxar,  muitas  vezes  colérico  ,  mui- 
tas mais  menlecaplo  e  ridículo,  prova  que  a  Euro- 
|)a  se  enganava  quando  cria  que  esta  nobre  terra  do 
ultimo  occidente  era  o  cemitério  de  uma  nação  ca- 
dáver. Vivemos :  e  ainda  que  siniilhante  viver  seja 
o  delírio  febril  de  moribundo,  esta  situação  violen- 
ta ,  aos  olhos  dos  que  sabem  ver  .  é  uma  crise  de 
salvação,  posto  que  dolorosa,  e  lenta.  Confiemos  e 
esperemos:  o  nome  portuguez  não  foi  riscado  do  li- 
vro dos  eternos  destinos. 

Um  dos  signaes  evidentes  da  restauração  social 
do  paiz,  e  ao  mesmo  tempo  o  caracter  mais  notável 
que  distingue  esta  epocha  é  o  seu  movimento  in- 
dustrial —  industrial  na  mais  extensa  significação 
da  palavra.  —  Primeira  entre  as  diffcrentes  indus- 
trias é  a  agricultura,  e  a  .Tgricultura  tem  incon!'-^- 
tayelmente  sido  o  uosso  principal  progresso. 


li)(l 


o  PAINORAMA. 


Qual  será  portanto  o  monumento  que  melhor  re- 
suma este  período  de  regeneração?  —  Será  o  aspe- 
cto do  solo,  o  viro  dos  campos,  a  abundância  substi- 
tuída á  escaccza  na  morada  do  homem  laborioso. 
Arroteai  algumas  geiras  de  terra  :  em  um  marco 
esculpi  a  data  dessa  transformação  :  cobri  a  super- 
fície de  Portugal  destes  marcos.  Eis  ahí ,  não  um  , 
porem  mil  monumentos  que  significarão  o  espirito 
«lo  presente. 

Plantai  o  bosque  na  serrania  escalvada  :  que  elle 
braceje  virente  para  o  céu  ,  e  enrede  as  suas  raízes 
nas  rachas  da  penedia.  Agitada  pelo  vento,  a  sel- 
va com  o  seu  rugir  irá  contando  a  cada  século 
que  nascer  as  tendências  laboriosas  do  nosso  ,  que 
já  começam  a  appareccr.  Os  cimos  das  montanhas  são 
as  verdadeiras  aras  de  Deus  :  é  lá  que  oravam  as 
uações  virgens.  Santificai  a  vossa  religião  de  patrio- 
tismo pelo  culto  universal  e  primitivo  :  o  bosque 
murmurando  com  o  espirar  da  aragem  é  um  hymno 
ao  Ancião  dos  Dias  :  que  este  hymno  nos  consagre 
a  memoria  ao  amor  e  gratidão  de  nossos  filhos ! 

Ao  lado  dos  paços  monásticos  de  Mafra  ,  monu- 
mento de  uma  era  de  vaãs  grandezas,  vai-se  hoje 
alevantando  sem  ruído  o  monumento  modesto  ,  mas 
eloquente  e  santo,  da  idéa  progressiva  da  actualida- 
de. Ao  lado  dessas  pedras  amontoadas  ,  desses  tor- 
reões gigantes,  macíssos,  e  pesadamente  estúpidos, 
serpeam  já  os  prados  virentes  por  veigas  e  valles  , 
cobertos  ainda  ha  pouco  de  abrolhos  e  urzes.  Con- 
trastando com  os  lanços  de  muralhas  caiadas  da 
ochre  ,  que  amarelleja  bestialmente  ,  como  um  cor- 
dão de  ouropel  enfiado  em  diamantes ,  por  entre 
a  còr  severa  dos  mármores  tisnados  pelo  tempo , 
vèem-se  ao  longo  verdejar  os  pinheirinhos,  que  co- 
roam as  alturas  ao  norte  e  oriente  daquelle  edificio 
monstruoso,  hybrido,  e  extravagante  como  u.ma  com- 
posição pseudo-poetica  da  Phenix-Pienascída.  As  fo- 
lhas do  terra  cultivada  dílatam-se  pelas  chapadas 
ií  encostas  ,  várias  na  còr  segundo  a  altura  das  sea- 
ras ,  ou  conforme  a  qualidade  do  solo  ,  nos  sítios 
onde  ainda  as  sementeiras  não  surgem  no  começo 
do  germinar.  É  como  um  xadrez  enorme,  cujas  ca- 
.sas  se  houvessem  repartido  ao  acaso  n'um  tabolei- 
ro  irregular  e  immenso. 

A  vontade  real  fez  appareccr  o  edificio  :  outras 
Vontades  Reaes  fizeram  nascer  agranja-modelo.  Pa- 
ra a  primeira  requcría-se  ouro  e  força  ;  pnra  a  se- 
gunda intelligencía  e  amor  do  paiz.  O  sceptro  foi 
robusto  c  potente  quando  amontoou  aquella  penedia 
lavrada  e  esculpida  :  o  sceptro  é  o  symbolo  da  paz 
e  da  beneficência  quando  em  vez  de  converter  pão 
em  pedras,  converte  gandra  bravia  e  estéril  em  um 
nobre  exemplo  que  mostre  ao  povo  onde  está  a  sua 
«Icrradeíra  esperança  —  o  progresso  da  industriai  e 
o  amor  do  trabalho. 

Para  a  maravilhosa  inutilidade  de  D.  João  3." 
gastaram-se  por  largos  aimos  os  milhões  que  de 
contínuo  nos  entregava  a  America  :  o  lidar  accu- 
mulado  de  cincoenta  mil  homens  consumiu-se  em 
<lesl)astar  e  polir  essas  pedras  hoje  esquecidas , 
([lie  apenas  servem  para  alimentar  por  algumas 
horas  a  curiosidade  dos  que  passam.  È  uma  ver- 
dade cem  vezes  repetida  ,  que  o  preço  de  Mafra 
leria  coberto  Portugal  das  melhores  estradas  da 
linropa  ;  mas  nem  por  ser  trivial  essa  verdade  dei- 
xa de  ser  dolorosa.  E  todavia  tal  preço  era  o  me- 
nos '.  —  As  maldições  submissas  dos  que  foram  ar- 
rastados de  todos  os  ângulos  da  monarchia  para  es- 
ta grande  anuduva  nacional,  e  aslagrymas  das  suas 
famílias,  não  as  pòdc  suífocar  a  adulação  cortezaã  ; 


transsudarara  até  nós  nas  paginas  da  historia,  e  ca- 
hindo  sobre  o  ataúde  dourado  do  príncipe  que  as 
fez  verter,  deixaram  ainscripção  do  seu  nome  man- 
chada de  uma  nódoa  que  o  tempo  não  gastará. 

A  vasta  e  risonha  granja  que  veceja  ao  lado  do 
negro  e  carrancudo  edificio  não  custou  uma  só  mea- 
lha dos  dinheiros  públicos ;  não  arrancou  uma  la- 
gryma.  Não  são  maldições  o  seu  fructo  :  são  bên- 
çãos dos  que  vivem  :  serão  no  futuro  bênçãos  da 
posteridade. 

O  convento-palacio ,  nascido  sob  manto  de  pur- 
pura ,  alegre  na  sua  juventude  e  habituado  a  pom- 
pas de  longos  annos,  ahi  está,  illustre  mendigo,  as- 
sentado hoje  n'um  como  ermo  ,  onde  a  vida  robus- 
ta de  séculos  ,  que  lhe  fadara  o  fundador  ,  se  vai 
convertendo  em  antecipada  deerepidez.  Inutilmente 
com  a  sua  grande  voz  de  bronze  elle  pede  que  o 
abriguem  das  injurias  das  estações.  As  aguas  do 
céu,  filtrando-lhe  por  entre  os  membros,  lá  os  vão 
lentamente  desconjuntando,  o  sol  cresta-lhe  a  fron- 
te e  faz  prosperar  os  musgos,  que  lhe  arrugam  a  ri- 
ja epiderme  :  o  vento  redemoinha  atravez  das  suas 
janellas  mal  seguras,  e  bramindo  naquellas  solidões 
do  seu  recinto,  atira  ao  rosto  das  estatuas,  aosacan- 
thos  dos  capiteis ,  á  face  polida  das  paredes  de 
mármore  ,  o  pó  que  tomou  nas  azas  passando  pelas 
serranias.  No  meio  doestrepitar  do  mundo  ninguém 
escuta  o  gemer  do  gigante  de  pedra  ;  ninguém  se 
lembra  de  tirar  do  pecúlio  do  estado  a  mais  pe- 
quena somma  para  elle.  E  porque?  Porque  a  sua 
miséria  não  falia  aos  corações  nem  aos  entendimen- 
tos. Memorias  gloriosas?  Não  as  ha  lá.  Utilidade? 
Para  que  serve  essa  pedreira  immensa. 

A  Granja  ,  porem  ,  de  Mafra  nem  teme  as  aguas 
do  céu  ,  nem  os  raios  creadores  do  sol :  povoa  os 
seus  agros  outeiros  de  pinhaes ,  a  cujo  abrigo  zom- 
bará em  breve  da  fúria  dos  ventos.  Não  vae  pedir 
soccorros  á  munificência  publica  :  —  útil  já  aos  pe- 
quenos e  humildes ,  sè-lo-ha  também  algum  dia  a 
Quem  a  fez  nascer  —  útil  cm  proveitos  matcriaes  , 
e  ,  o  que  mais  vale  ,  em  fructos  de  verdadeira  glo- 
ria. 

Ha  quatro  annos  apenas  ,  que  os  muros  da  cerca 
ou  tapada  de  Mafra,  estirando-se  como  serpe  mons- 
truosa por  três  léguas ,  alravez  de  valles  e  outei- 
ros, encerravam  um  vasto  maninho  cuberto  de  çar- 
ças  rasteiras,  onde  raro  se  via  alevantar  uma  arvo- 
re solitária  ,  curva  e  pendida  pelo  açoutar  contínuo 
das  ventanias,  ou  algum  pequeno  e  enfezado  pinhal 
perdido  no  meio  daquelles  maltos  inúteis.  Era  um 
symbolo  de  barbaria  ao  pé  d' um  symbolo  de  opu- 
lência. O  edificio  e  o  parque  pareciam  significar  no 
seu  conjuncto  —  o  orgulho  tendo  por  fundamento 
o  nada. 

lia  três  annos  ordenaram  SS.  MM.  se  começas- 
sem a  desbravar  esses  terrenos  incultos.  O  actual 
intendente  das  cavalheriças  reaes  ,  o  Snr.  A.  Seve- 
rino Alves  ,  foi  encarregado  de  administrar  as  can- 
delárias alli  estabelecidas  ,  e  da  direcção  daquelle 
arroteamento.  Obra  de  uma  sexta  parte  da  tapada 
mais  próxima  do  edificio  dcstinou-se  immediata- 
nicnte  para  a  cultura  ,  e  os  trabalhos  principiaram. 
O  estado  em  que  estes  se  acham  ,  comparado  com 
as  despczas  ,  proporcionalmente  diminutas  ,  que  se 
tem  feito  ,  provam  que  talvez  houvesse  quem  fosse 
tão  digno  de  ser  encarregado  de  rcalisar  o  pensa- 
mento generoso ,  nobre ,  c  civilisador  dos  nossos 
I'rincipcs,  mas  que  ninguém  por  certo  o  seria  mais 
que  o  Snr.  A.  Severino  Alves. 

O  que  vamos  dizer  não  é  completo ;  não  é  a  his- 


o  PANORAMA. 


191 


toria  particulnrisada  de  tudo  o  que  c\aminámos 
com  os  próprios  olhos  ;  porque  não  queremos  ser 
Iirolixos.  O  nosso  intento  c  ver  se  contribuímos  pa- 
ra o  verdadeiro  progresso  da  terra  em  que  nasce- 
mos. Sc  os  grandes  ou  pequenos  |)roprietarios  que 
abandonam  os  seus  campos  c  herdades,  ou  que  des- 
prcsam  os  meios  de  as  tornar  mais  produclivas ,  se 
mostrara  surdos  ao  bradar  da  imprensa  e  de  lodos 
(IS  homens  sisudos  ,  revocando  esta  malavcnturada 
nação  á  actividade  e  ao  trabalho  ,  que  se  envergo- 
nhem ao  menos  com  exemplo  que  lhes  dá  o  throno. 
Em  quanto  os  governos  c  os  parlamentos  ponderam 
a  conveniência  ,  a  necessidade  do  estabelecimento 
das  quintas  d'estudo  ,  em  Mafra  ,  sem  ruido  ,  sem 
verbosos  relatórios  e  discursos  ,  se  vae  estabelecen- 
do e  aperfeiçoando  uma  granja  modelo,  que  esperá- 
mos faça  sentir  dentro  de  pouco  á  agricultura  por- 
lugueza  o  seu  benellco  iniluxo.  Certos  de  que  SS. 
MM.  SC  collocarão  <á  frente  do  movimento  agricola 
do  paiz  ,  porque  o  augmento  da  agricultura  deve 
trazer  a  prosperidade  aos  seus  súbditos  ,  neste  jor- 
nal, que  se  derrama  por  todos  os  ângulos  de  Portu- 
gal, daremos  noticia  das  experiências  que  se  forem 
fazendo  ,  dos  melhoramentos  que  se  forem  introdu- 
zindo nas  propriedades  do  apanágio  da  Coroa.  A 
nossa  situação  especial  nos  habilita  para  obter  a  es- 
te respeito  exactas  informações.  A  utilidade  que  da- 
hi  possa  resultar  aos  agricultores ,  retribuam-na  el- 
les  em  gratidão  aos  Principes  que  souberam  ser  di- 
gnos do  amor  dos  porluguezes  ,  e  entenderam  ple- 
namente o  grave  e  progressivo  pensamcnlo  deste 
século. 

Escolhida  a  porção  de  terreno  na  tapada  de  Ma- 
fra ,  que  se  devia  destinar  á  cultura  ,  dividiu-se 
aquella  parte  em  oito  grandes  tractos  ou  folhas, 
cujo  arroteamento  se  tem  seguido  succcsiivamenle 
e  sem  interrupção  até  hoje. 

O  systema  adoptado  para  este  fim  foi  o  melhor 
que  era  possível  imaginar.  Alem  da  cultura  feita  á 
custa  da  Casa  Real ,  vão-se  distribuindo  aos  habi- 
tantes da  villa  de  Mafra  os  terrenos  que  elies  que- 
rem desbravar.  O  inteiro  uso-fructo  destes  terrenos 
fica  pertencendo  por  três  annos  a  quem  os  converte 
de  maninhos  que  eram  em  terras  aráveis ,  e  ainda 
que  o  solo  da  tapada  me  pareça  de  inferior  quali- 
dade, e  se  achasse  muito  deteriorado  pelas  plantas 
ruins  de  que  estava  cuberto ,  todavia  essa  cultura 
tem  dado  excellentes  resultados.  A  producção  da 
batata  ,  planta  tão  conveniente  para  terrenos  arro- 
teados de  novo.  ha  sido  tal.  que  no  anuo  passado  se 
alevanlarara  na  tapada  1.800  carradas  deste  utii 
solano  ,  cuja  introducção  na  Europa  tornou  im|)os- 
siveis  as  fomes  espantosas,  que  d'annos  a  annos  lhe 
desbastavam  a  povoação.  Nessas  encostas  e  veigas 
onde  ,  tão  pouco  tempo  ha  ,  os  olhos  esmoreciam 
alongando-se  pelos  çarçaes  ,  vèem-se  estendidas  as 
searas  ,:  os  campos  de  milho  e  os  íjatataes,  e  nos 
rostos  dos  habitantes  da  villa  e  dos  districtos  cir- 
cumvisinhos,  e  nos  seus  trajos  e  porte,  vè-se  que  se 
o  amor  da  taberna  tem  diminuído  ,  os  hábitos  do 
trabalho  ,  e  por  isso  a  abastança  tem  augmentado. 

Mais  de  vinte  egoas,  mais  e  filhas,  e  de  quaren- 
ta poldros,  constituem  já  uma  candelária  que  vai 
adquirindo  rápido  crescimento.  Cincoenta  vaccas 
entre  as  de  casta  vulgar  ,  torinas  e  de  uma  excel- 
lente  raça  asiática,  ahi  são  tratadas  com  esmero  tal- 
vez não  inferior  ao  que  se  emprega  na  começada 
candelária.  Os  estábulos  e  curraes  ,  ordenados  pe- 
los melhores  methodos  modernos,  e  com  atlenção 
a  importantes  considerações  hygienicas  ,  seriam  um 


bom  modelo  para  aquellcs  que  pensam  reduzir-se  o 
tractamento  dos  gados  unicamente  a  dar-lhes  muito 
de  comer,  não  imporia  se  bom  ou  máu. 

Ainda  que  na  granja  de  Mafra  os  animaes  sejam 
alimentados,  por  via  de  regra,  á  manjadoura.  syste- 
ma boje  aconselhado  nos  paizes  mais  adiantados  co- 
mo preferível  Jior  graves  mcjtivos,  nem  por  isso  dei- 
xa de  haver  neste  estabelecimento  agricola  muitos, 
prados  ])astaveis  ,  compostos  ,  alem  da  azevém  ,  de 
uma  mistura  de  certo  numero  daqucllas  plantas  de 
que  separadamente  se  compõe  os  arlificiaes.  Estes  , 
porem  ,  merecem  com  rasão  os  espcciaes  cuidados 
do  Sfir.  Severino  .\lves. 

As  plantas  que  constituem  estes  prados ,  tanto 
regados  como  scccos ,  são  a  luzerna  ,  os  trevos  , 
branco  c  encarnado,  o  onobrychis  [sainfoin],  a  ana- 
fa ,  a  cenoura  ,  e  a  ervilhara.  .\  cultura  d'algumas 
destas  forragens  ainda  se  limita  a  diminutas  expe- 
riências ,  mas  a  de  outras  já  tem  adquirido  bastan- 
te extensão. — .Vdmirámos  sobretudo  um  luzernal  , 
onde  o  mcthodo  da  transplantação  produziu  magní- 
ficos resultados.  Cada  pé  de  luzerna  lançando  em 
roda  os  seus  muitos  rebentões  ou  filhos,  forma  uma 
espécie  de  mouta  robusta  ,  que  produz  em  cada 
corte  muito  maior  porção  de  pasto  do  que  produzi- 
ria uma  superficie  egual  á  que  occupa,  semeada  de 
luzerna  que  não  fosse  transplantada. 

O  incremento  que  estes  prados  podem  ter  naqucl- 
les  ,  d'antes  tão  pobres  e  tristes  ,  hoje  tão  ricos  e 
risonhos  terrenos ,  é  d'extrema  importância.  Duas 
enormes  lagoas  ,  uma  das  quaes  é  constantemente 
refrescada  e  suprida  por  uma  pequena  veia  d'agua 
pcrcnne  ,  foram  limpas  e  vedadas ,  construindo-se 
canos  subterrâneos  por  onde  se  hajam  de  sangrar 
convenientemente.  Estas  lagoas,  collocadas  em  cer- 
ta altura  ,  podem  regar  um  valle  extensíssimo  ,  óp- 
timo para  o  augmento  de  prados. 

A  silvicultura  ,  essa  parte  tão  interessante  e  tão 
bella  da  sciencia  de  agricultar  .  tem  em  Mafra  um 
terrivel  inimigo  —  o  noroeste.  Este  vento  sopra  ahi 
com  violência  extraordinária.  Alguma  arvore  sil- 
vestre, que  vivia  solitária  no  meio  daquelles  mai- 
los  rasteiros,  vergada  para  sueste  na  altura  das  ar- 
rancas ,  estende  rachytica  os  seus  ramos  açoutados 
pelas  ventanias  quasi  parallclos  cora  a  terra.  Esta- 
bcleccu-se  porem  um  systema  d'abrigos  ,  que  deve 
dentro  d'alguns  annos  tornar  não  só  possível  ,  mas 
até  fácil ,  a  propagação  de  arvores  de  floresta  e  de 
fructo.  Os  pinheirinhús  bravos  [pimis  marilima  1  co- 
brem já  os  cabeços  escalvados  que  se  alevantam 
por  meio  das  chapadas  ,  encostas  ,  e  valles  ,  e  os 
castanheiros,  carvalhos,  e  azinheiros  bordam  os  ca- 
minhos :  estes  bosques  ,  quando  crescidos  ,  annula- 
rão  em  grande  parte  a  violência  dos  ventos ,  e  en- 
tão será  possível  o  plantio  de  outras  arvores  silves- 
tres e  fructiferas  ,  principalmente  das  oliveiras  ,  de 
que  já  se  ^ão  preparando  extensos  e  bem  ordenados 
viveiros. 

Uma  consideração  que  occorre  naturalmente  ao 
imaginar  semelhante  extensão  de  cultura  ,  é  a  dos 
adubos,  c  a  do  modo  de  os  fazer  progressivamente 
augmenlar.  Acerca  deste  ponto  capitalissimo,  dare- 
mos brevemente  curiosas  e  interessantes  noticias 
em  um  artigo  especial.  Então  tiremos  occasião  de 
fallar  dos  differentes  methodos  de  amanhar  as  lei- 
ras ,  que  progressi\amente  se  vão  introduzindo  na 
granja  de  Mafra. 

Os  instrumentos  aratorios  e  mais  macbinas  do 
serviço  agricola  são  construídos  no  mesmo  estabe- 
lecimento em  ofllcina  para  isso  priccinalmeule  de- 


192 


O   PANORAMA. 


putada.  Ahi  se  enconlra  a  charrua  inglcza  ,  a  ara- 
vera  grande  de  uma  aiveca  ,  a  pequena  de  duas  , 
o  semeador  ,  as  grades  triangulares  e  de  diversos 
Icitios  ,  o  trilho  de  debulhar,  o  engenho  de  traçar 
cevada,  carros  inglezes  ,  &c.  alem  dos  inslrumen- 
tus  próprios  do  paiz  construídos  com  perlVição. 

Tal  é  o  rajjido  quadro  da  transformação  que  ap- 
presenta  uma  parte  desses  maninhos  inuleis  da  ta- 
pada de  Mafra.  Importante  em  si,  semelhante  trans- 
formação muito  mais  o  tem  sido  pela  iniluencia 
que  o  exemplo  produz  naquelles  arredores:,  o  agri- 
cultor, que  por  assim  dizer  palpa  as  >anlagei;s  que 
resultam  de  um  sysLema  illustr.ido  de  agricultar  , 
vae  abandonando  as  suas  grosseiras  usanças  ,  que 
lodos  os  discursos  dos  livros  não  alcançariam  ex- 
tirpar. Mafra  está  sendo  um  foco  de  luz,  uma  fon- 
te de  progresso  agrícola.  Entre  os  benefícios  que 
tem  produzido  este  é  porventura  o  maior.  Aquella 
Vasta  granja,  se  proporciona  a  muitos  a  abastança, 
o  alimento  para  o  corpo  ,  otíerece  a  muitos  mais  as 
revelações  da  sciencia  —  o  alimento  para  o  espi- 
rito. 

O  edifício  ahi  está  mendigo,  abandonado,  cance- 
roso já  ,  e  inulil  ,  ao  lado  da  granja  cheia  de  viço  , 
rica,  generosa,  e  abençoada  d'esperanças.  São  dons 
monumentos  de  dous  séculos  diversos,  ambos  obras 
de  Reis.  Que  a  philosophia  julgue  um  e  outro  ,  e 
julgue  lambera  as  vontades  e  as  intelligencias  que 
lizeram  surgir  um  c  outro. 

(A.  Herculano.) 


botânica  JHíííira. 

N.  B.  Tendo  recebido  a  seguinte  memoria  ,  não 
hesitámos  em  dar-lhe  publicidade  para  que  as  au- 
ctoridades  e  os  facultativos ,  que  exercitarem  seus 
cargos  na  Africa  oriental,  verifiquem  as  propricila- 
des  dos  vegetaes  aqui  mencionados  ;  e  lambem  nos 
lembra  que  alguns  pharmaceuticos  poderão  mandar 
buscar  specimens,  por  onde  se  reconheça  a  sua  uti- 
lidade e  applicação. 

Desrripção  de  varias  arvores,  arbustos,  hervas  e  plan- 
tas mcdicinaes  que  existem  na  villa  de  Tcte  ,  e  da 
appliearão  que  delias  fazem  os  naluraes  do  paiz 
ans  usos  mcrlianicos  da  vida,  e  nas  doenças  de  que 
são  allacados. 

A  VILLA  deTéte  está  situada  a  60  léguas  ao  noroes- 
te da  villa  de  Senna  ,  a  qual  dista  também  outras 
CO  léguas  da  villa  de  Qiiilimane  que  está  situada 
5  graus  ao  sul  de  Moçambique. 

Arvores. 

Muxetécf)  ,  nu  raiz  de  Santo  Agostinho  .  como  lhe 
chamam  cm  Moçambique.  —  A  llòr  desta  arvore  [que 
floresce  nos  mezes  de  novembro  e  dezembro]  é  pe- 
quena ,  araarella  e  cheirosa  :  dá  umas  vages  cor  de 
quina  ,  do  comprimento  de  mais  de  dois  palmos,  e 
feijão  do  tamanho  de  caroços  de  tamarindo  :  as  va- 
ges depois  de  sèccas,  servem  de  archotes  para  cora 
oUes  entrarem  nas  concavidades  onde  se  refugia  o 
porco-cspinho  ,  para  o  apanharem. 

A  infusão  da  casca  da  arvore  ,  e  da  raiz  ,  appii- 
ca-sc  a  indigestões,  dores  de  dentes,  cólicas,  vó- 
mitos, c  a  lavar  feridas,  para  as  fazer  sarar:  lam- 
bem provoca  a  menstruação. 

Mucorongo. —  Esta  arvore  é  a  que  em  Inhambano 


chamara  Jambolão  ,  do  fructo  da  qual  fazem  vinho 
e  vinagre  ;  a  llór  é  branca  ,  redonda  e  similhante  á 
da  mangueira  ou  sabugueiro  ;  o  fructo  que  dá  ,  o 
qual  se  come,  é  como  as  azeitonas  d'Elvas  ,  c  cm 
maduras  tomara  a  cor  do  vinho  tinto  e  deitam  çu- 
mo  da  mesma  còr  :  o  cosimcnto  da  raiz,  tomado  em 
banhos  semicupios,  faz  recolher  as  bcmorroid..se  sus- 
pender a  [lurgação  ,  e  a  raiz  cortada  em  bocados  c 
enliados  cm  cordel  a  modo  de  contas  e  trazidos  ao 
pescoço,  é  remédio  para  quem  padece  inllammação 
de  olhos  ou  ophtalmía. 

Jilíitarára. —  A  llòr  é  muito  miúda  e  da  còr  das 
fobias;  o  fructo  c  do  tamanho  de  ginja,  e  de  còr 
amarelln,  quando  está  maduro  é  capaz  decomer  ;  a 
pelle  nuiilo  rija  ,  o  caroço  redondo  e  còr  de  vinho 
linlo:  o  cosimento  da  raiz  applica-se  em  bochechos 
para  a  dòr  de  dentes.  Como  as  asteas  ,  pela  maior 
parte  ,  são  direitas  e  llexivcis  ,  é  delias  que  os  ne- 
gros fazem  os  arcos  a  que  chamara  uta.  Esta  arvo- 
re quasi  sempre  nasce  cm  morros  de  Muxem. 

Mupanda-panda.  —  O  cosimento  das  raizes  dest<i 
arvore,  reduzido  a  papas  ou  a  amendoada  ,  appli- 
ca-se aos  que  padecem  do  peito. 

Chinissa.  —  A  Uòr  é  amarella,  e  similhante  á  ca- 
sula cheirosa,  o  fructo  é  como  o  caroço  da  macaã  : 
o  cosimento  da  casca  pisada  applica-se  em  banhos 
semicuijios  aos  que  padecem  puxos,  c  a  lavar  cha- 
gas para  as  fazer  seccar.  As  folhas  machucadas  c 
aquecidas  fazem  transpirar  muito,  e  destruir  a  fe- 
bre ,  esfregando  o  corpo  com  ellas. 

Mutacha.  —  A  flor  é  miúda  e  còr  de  rosa  secca  , 
o  fructo  6  muito  doce,  e  do  tamanho  de  azeitona 
miúda  ,  e  quando  maduro  toma  a  còr  araarella  ;  é 
então  capaz  de  comer  ;  depois  de  sccco  é  pilado 
para  lhe  tirarem  a  casca  ,  que  reduzera  a  farinha , 
de  que  IV.zem  papas  raisturando-lhe  farinha  de  mi- 
lho: a  infusão  da  casca  tomada  em  bochechos,  é 
remédio  para  dores  de  dentes;  e  bebida  cura  a 
hemorragia  das  vias  menores  ;  assim  como  bebendo 
o  cosimento  das  cascas  e  raizes  da  mesma  arvore 
se  curam  hérnias. 

l'ussi,  era  lingua  asiática  «curo.»  —  O  fructo  des- 
ta arvore  são  umas  vages  mui  delgadas  que  dentro 
dão  uma  espécie  de  algodão:  os  naluraes  do  paiz, 
e  os  asiáticos  attribuem-lhe  os  mesmos  efleitos  c 
virtudes  da  quina,  e  por  isso  dão  a  beber,  aos  que 
tem  febre ,  o  cosimento  da  casca  ,  e  lambera  com 
elle  lavam  as  chagas  para  as  fazer  sarar. 

Mupumpua.' — As  raizes  desta  arvore  applicam-so 
ao  curativo  das  boubas  e  dagonorrhéa,  deitando-as 
de  mídho  e  bebendo  a  agua. 

fldóo.  —  A  flor  é  raiuda  e  araarella  ;  o  fructo  é 
do  tamanho  de  um  grão  ,  e  em  cachos  que  se  con- 
servam na  arvore.  Os  negros  servem-se  deste  fru- 
cto para  verificar  a  certeza  da  arguição  de  feiti- 
ceiros de  que  alguns  são  accusados  ;  para  este  fim 
pisam  a  casca  ,  e  deitando-a  era  agua  fria  a  côam 
depois  de  tomar  uma  tintura  carregada,  c  lhe  mis- 
turam uma  porção  de  agua  a  ferver  ,  tal  que  fique 
cm  termos  de  se  poder  beber ,  e  dão  ao  arguida 
de  feiticeiro  duas,  três,  até  cinco  garaellas  desta 
agua  para  beber  ;  se  resulta  evacuar  por  baixo,  sus- 
tenta-se  a  arguição  ,  e  é  punido  como  feiticeiro  ;  e 
ao  contrario  se  evacua  por  ciraa  é  absolvido. 

A  esta  prova  judicial  chamam  os  negros  e  cafres 
—  wmarí  ,  ou  iucasse. 

Citámos  esta  substancia  ,  não  pela  superstição  ; 
mas  porque  pódc  ter  virtudes  purgativas  ou  vomi- 

livas. 

(Continuar-se-ha.) 


78 


o  PANORAMA. 


193 


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tffi;iiia,íijA;tHiiiiaiisL:::'^iii:ii>UiiÍliJl^ 


A  MORTE  do  íTcneral  Wclfa  prendeu-se  cora  um  suc- 
cesso,  que  infiiiiu  muilo  na  conservação  e  extensão 
das  possessões  hritannicas  na  Araerica  ;  foi  este  q 
cerco  e  tomada  de  Quebec  no  Canadá.  Relataremos 
l)reyemente  as  circumstancias  geradoras  desse  acon- 
tecimento. 

O  Canadá  chegou  a  ser  conhecido  das  nações  ou- 
ropeas  no  começo  do  século  16.° ;  e  a  França  foi  a 
primeira  que  tratou  de  colher  vantagens  commer- 
ciacs  daqiiella  região.  Em  loií  Francisco  1."  man- 
dou quatro  navios  a  explora-la  ;  parece  porem  que 
não  foram  favoráveis  e  lucrativos  os  resultados  da 
expedição.  Dahi  a  dez  annos  demandou-a  Cartier  , 
levando  só  dois  navios  pequenos,  e  velejando  ao 
longo  das  costas  da  Terra-Xova  debalde  procurou 
achar  caminho  occidenlal  para  a  China  :  voltou  por 
conseguinte  quasi  desanimado.  Mas  no  anno  se- 
guinte, 153.D  ,  empregou  melhor  as  suas  diligen- 
cias ,  proseguiu  pelo  grande  rio  de  S.  Lourenço  a 
novecentas   milhas   da  foz  ,   e  tias  margens  edificou 

JiMio  24—1843. 


um  forte.  Receberam  os  fraucczcs  acolliimcnlo  be- 
nigno da  parte  dos  naturaes  ,  mas  sendo  acommet- 
tidos  do  escorbuto  ,  logo  em  1536  ,  Cartier  ,  e  seus 
companheiros  que  haviam  escapado  á  moléstia  e 
aos  perigos  do  mar,  recolheram-sc  a  França.  Pas- 
sado pouco  tempo  ,  outro  francez  qniz  alli  formar 
colónia  ,  porem  sahiram  iiifriicluosas  as  suas  tenta- 
tivas ;  até  que  em  1.598  o  marqucz  do  la  Roche  foi 
nomeado  commandanle  da  colonisação  ,  que  sob  a 
bandeira  franccza  ,  quizeram  estabelecer  naquellc 
solo  americano  :  malfadada  foi  também  esta  nova 
expedição.  Todavia  em  1600  um  conniiercianlc  es- 
peculador comiiictteu  a  mesma  viagem  ,  e  teve  a 
fortuna  de  trazer  uma  carregação  de  pclles  ,  que 
cobria  sufRcicnlemente  as  dcspezns  :  o  facto  outra 
vez  suscituu  a  attenção  do  publico  c  do  governo  ; 
mandaram  gente  com  os  necessários  recursos  e  em 
1608  estava  fundada  Quebec,  que  ficou  sendo  a  ca- 
beça da  colónia  :  fortaleceu-se  e  cresce»  o  estabe- 
lecimento gradualmente,  e  os  francezes  alcançaram 
2.°  Serie.  —  Yol.  11. 


194 


O   PANORAMA. 


conviver,    c  fazer  pazes   e  negocio  com   os  indíge- 
nas. 

Convém  trazer  ;i  memoria  que  a  região  próxima, 
a  qne  chamámos  agora  a  União  americana  ,  mais 
vnlgarmentc,  Estados-Unidos  da  America  do  norte, 
era  então  sujeita  ao  dominio  inglez  ,  como  o  Brazil 
»  Portugal  ,  e  o  México  c  Peru  a  Hes|)anha.  Nas- 
ceu desta  visinhança  inquietação  ao  gmerno  Ijritan- 
nico  ,  que  não  via  de  liom  grado  o  incremento  de 
potencia  estranha  tão  perlo  das  possessões,  que  do- 
minava ;  e  muito  mais  porque  os  francezcs  tinham 
ganho  a  confiança  dos  naturaes.  Deste  eiunie  se 
originaram  guerras  purfiosas :  em  1629  Quehcc  foi 
tomada  pelo  almirante  inglez  Keit  ,  restituída  po- 
rem no  subsequente  tratado  de  paz.  Em  1G!)0  os 
habitantes  da  iVova-Inglaterra  [colónia  britatmica] 
premedilaram  subjugar  o  Canadá,  mas  sem  elfeito  : 
nova  tentativa  einprehenderam  ,  e  com  despezas 
mui  pesadas  no  armamenlo.  em  1711  ;  tamliem  sa- 
liiu  frustrada.  Teimaram  posteriormente  c  lof^raram 
o  intento  em  17SÍ),  redn/indo  Qiiebec  e  pnuco  de- 
pois toda  a  Cfdiinia  á  obediência  da  coroa  d 'Ingla- 
terra :  nesta  facção  deu-se  o  nutavel  caso  de  perde- 
rem as  vidas  dois  olliciacs  ,  guerreiros  dislinctos  , 
que  capitaneavam  as  tropas  de  ambas  as  nações  , 
-Montcalm  o  general  francez  ,  e  o  inglez  Wolfe. 

Wolfe  era  (ilho  d'nm  militar;   nascera  cm  Kent 
cm  1726  :  rva  juventude  mostrara  sobresalientes  qua- 
lidades de  esforço  c  entendimento,  e  os  irmãos  d'ar- 
mas  o  apontavam  como  possuidor  dos  doles  que  ca- 
raclerisam  o  valente  scddado  ,    capaz  de  mandar  os 
outros  no  campo  da  peleja  ;  fora  experimentado  nas 
cauqianhas  (iessc  tempo,  e  obtendo  o  commando  de 
lim  regimento  ,    fez-se  este  notável  pela  ujanobra   e 
disciplina.    Lord  Chatam  ,   que  lhe  conheceu  o  me- 
reciínr:nlo  .    aproveilou-o   em  algumas  occasines  ;    e 
jiorfim  deslinou-o  á  empreza  sobre  Quebcc.  Era  es- 
ta   de  considerável    dilficuldade  ,    e   de  perigos   de 
grande   monta.    A  cidade    tem  assento   nas  ribeiras 
do  S.  Lourenço  ,    muilo  acima   da  foz  ;    é  fíjrte  por 
arte  e  posição  ;    e  então  a  sustentava  boa  guarnição 
de   francezes  ,    canadienses  ,   e   Índios  ,    preparados 
para  repellirem   qualquer   accommetlimenlo   c  tan- 
to que  se  acampavam    ao  longo  da  praia  ,    tendo    a 
(lefeza  interna  bem  apercebida.  —  Wolfe  desembar- 
cando na  ilha  de  Orleaus  assentou  que  era  absolu- 
tamente  necessário  furtifica-la  ,    e  alem  disso  cons- 
truir obras  para  se  encetar  o  bombardeamento  da  ci- 
dade;   mas  os  ailversarius  trabalhavam  por  iin[iedir 
a  traça    do   inglez  ,    e   a  esse   Jim    passavam   o  rio  , 
que  foi  theatro  de  lucta  cucarniça<la.  Wolfe  adver- 
tiu depois   que    por  esle  meio  nada  conseguiria  ,    e 
conseguintemente  deliberou-se  a  fazer  o  attaquo  [)e- 
lo  lado  da  terra  ;    quiz  desembarcar   as  suas  tropas 
abaixo  de  Quebcc  algumas  milhas  ,  próximo  ás  ca- 
taractas   de   Aionímorenci ,    mas   foi    repellido   com 
(lerda.    Falhando   este  desígnio  resolveu-se   ao  feito 
arrojailo  de  sahir  a  terra  ,    fazendo  que  os  soldados 
trepassem   os   despenhadeiros   alcantilados,    a   que 
cm  geral    clnunaru   as  alturas   ou  píncaros   d'Âbra- 
liam  ,    e   que  (icaiu  na  margem  su|n'ríor   :i  cidade: 
íi  tropa  teve  d'eni;alín!iar  como  os  anímaes  bravios, 
ajndando-se  dos  troncos  da  matla  silvestre,  que  au- 
tapiza  aquellas  ribas  alias  e  íngremes;    o  as  espín- 
garilas   e   onlros   petrechos    foram    içados    mediante 
cabos  e  moitoes  seguros  no  arvoredo  de  cima.  Des- 
de essa  [laragem  começa  um  chão  plano  até  as  mu- 
ralhas  lia  cidade,    cujos  defensores  não  esperavam 
<)ue  |ior  allí  podessem  sor  investidos,    allenta  a  in- 
lialavel   escabrosidade   da  ribanceira  ,   que  era  an- 


temural  da  planície.  Tiveram  de  sahir  a  campo;  e 
os  inglezes  venceram  ,  custando-lhe  a  victoria  a 
morle  de  seu  capitão.  Quando  mais  acceso  andava 
o  combate  ,  recebeu  Wolle  uma  baia  n'um  braço  , 
mas  não  descontinuou  de  mandar;  pouco  depois 
atravessado  por  outra  ao  meio  do  curpo  ,  foi  pelos 
Seus  retirado  do  campo,  mas  a  tempo  que  os  adver- 
sários estavam  desbaratados ;  ainda  ouviu  a  noticia 
do  ganho  completo  da  batalha,  e  logo  expirou. — 
A  nossa  gravura  ,  copia  de  um  famoso  quadro  de 
Benjamin  West ,  relcre-se  á  occasíão  em  que  6 
transmíllida  ao  general  moribundo  a  participação 
da  victoria. 


izijcjcii:  ?cli:?:c;a. 


Considerações  sobre  o  Ctirsn  (V  Ecnmmúa  Politica   do 
.    .  Sr.  Mi(jncl  Clievulicr. 

VI. 

o  ArcRi;sciMO  no  producto  da  decima  manifesta  an- 
tes uma    tendência   do  que   addição  real  ;    mas  essa 
tendência  denuncia  augmento  ou  do  valor  da  renda 
das  propriedades  que  pagam  aquelle  tributo,  ou  do 
numero  d'essas  propriedades,  ou  de  ambas  as  cou- 
sas juntamente.    O  do  subsidio   litterario   manifesta 
que  se  tem  estendido   a  cultura   das  vinhas.    O  dos 
direitos   das  alfandegas,   com   ser  em  não  pequena 
parle  devido   á  nova  reforma  d'cllas,   mostra  com- 
tudo  uma  direcção   no  commercio   tanto  mais  favo- 
rável quanto  é  certo  que  a  base  do  rendimento  das 
mesmas  alfandegas  foi  atacada  de  dois  modos  —  pe- 
la  separação   do  Brazil   que   era    o  manancial  mais 
fecundo  dos  nossos  lucros  ,  e  o  fulcro  principal  das 
nossas  operações  commerciaes  ;  primeiro.  Edepois, 
pela  cxtincção   do  direito   do  peixe   que  alli  se  co- 
brava ,  c  de  outros  impostos  como  avenças ,  sisa  do 
pellonrinho,    adellas   &c.   que  figuravam   muilo  na 
sua  receita.  E  ultimamente  por  augmento  de  direi- 
tos sobre  certos  artigos  ,  que  tolhe  absolutamente  a 
sua  importação.   Não  devo  comtudo  dissimular  que 
na  epocha  que  me  serve  de  baliza,  já  os  lucros  com- 
merciaes que  tirávamos  do  Brazil  se  achavam  mui- 
to atlenuados  ,   porque  ,  francos  os  portos  d'aquelle 
império   ás  mercadorias   de  todas  as  nações  ,    eram 
ellas  que  lá  as  levavam,  e  que  ao  mesmo  passo  ex- 
portavam os  géneros  do  Brazil  ,    reccdhendo  os  ])ro- 
veilos  que  nos  perlenceram  exclusiv.imcnic  em  quan- 
to fomos    únicos   carreteiros   d'a()uelle   commercio. 
Juntavani-se  a  esta  causa  de  depressão  por  um  lado 
o  ()agari;m    menores  direitos   no  Brazil    do  que   cm 
Portuj;al    grande    parte   das   fazendas   estrangeiras  ; 
por  outro    os   cxorbilantes   de  sabida    impostos   em 
lodos   os   produclos   da   industria   portugueza ,   que 
se  exportavam  para    o  Brazil  ,    exceptuando  somen- 
te  os  das  fabricas  privilegiadas  ;    direitos   que  im- 
portavam   nm  verdadeiro  tributo   sobre   o  consumi- 
dor   brazileiro    quando    clle    era   obrigado   a    com- 
prar as  nossas  mercadorias  ;    mas  que  ,    depois   que 
lhe  foi  licito  preferir  as  estranhas  ,  se  tornaram  ura 
vexame  fatal  ás  fabricas  da  melropolo.    E  não  só  os 
produclos  fabris  ,  lambem  os  agrícolas,  o  sal,  o  vi- 
nho ,  o  vinagre,  o  azeite,  c  as  carnes,   eram  tribu- 
tados na  sua  sabida  para  a  America  de  maneira  (]uc 
ao  entrarem  alli  ,  não  podiam  compelir  com  iguaes 
[)rodnilos  estrangeiros.  Alem  da  vanlagem  denavios 
manobrados  com  simplicidade,  eeijuipados  com  par- 
cimonia,    vinha   o  commercio  estrangeiro  nu  Brazil 
a  ter  sobre   o  portuguez    um  favor  de  S  [)or  cculo  ! 


o  PANORA31A. 


195 


Istotronxe  ou  pnra  concluir  que  o  nosso  [o  externo] 
já  anlcs  de  18:20  estava  rauilo  abatido  do  que  lora  ; 
não  duvidando  coniliido  reconhecer  que  a  sua  de- 
cadência (■  hojo  maior  do  que  então  era  ;  mas  ao 
mesmo  tempo  notando  que  apesar  dos  gcilfies  que 
elle  leni  solTrido  .  o  rendimento  médio  das  alfaniie- 
gas  nos  annos  anteridres  a  1S20  comparado  com  o 
actual  patenteia,  pelo  menos,  que  o  consumo  dos 
géneros  importados  é  maior  no  reino  doquc  no  tem- 
po em  que  os  mais  delles  eram  trazidos  para  ser 
vendidos  a  outras  nações;  eque  sendo  maior  aclu.il- 
Diente  o  consumo  interno,  deve,  na  mesma  escala, 
ter  augmcntado  a  prudncçâo  interna. 

D'augmento  no  producto  dos  direitos  solire  a  car- 
ne que  se  consome  em  Lislioa  ,  não  perteudo  ti- 
rar inducção  mais  —  que  na  capital  tem  crescido 
consideravelmente  este  consumo.  Somente  adverti- 
rei que  este  augmenio  n'uma  cidade  que  contém 
um  decimo-quinlo  da  população  total  do  continente 
portuguez  significa  alguma  cousa.  —  Peln  menos 
mostra  que  a  renda  tem  angmentado  ,  porque  um 
accrescimo  no  consumo  da  carne  e  prova  de  que  se 
prefere  ao  peixe  um  alimento  mais  caro.  Tanibera 
SC  tem  observado  que  o  humera  que  consome  mais 
carne  do  que  outro  ,  se  pertence  á  classe  dos  ope- 
rários ,  presta  trabalho  mais  luzido  e  melhor:  por- 
isso  ,  de  um  angmento  de  consumo  n'este  artigo  se 
revela  uma  vantagem  na  productividade  do  paiz  em 
que  elle  apparece  ,  que,  pela  sua  imporlaucia  ,  não 
pode  ser  demasiadamente  apreciada. 

Suspeito,  não  assevero,  que  igual  augraento  no 
consumo  da  carne  ao  que  ha  em  Lisboa  ,  ha  no  ge- 
ral do  reino,  e  nas  cidades  e  villas  mais  abastadas 
talvez  maior,  por  não  estarem  sujeitas  a  direitos  co- 
mo os  das  sete  casas.  E  se  me  disserem  que  isto  de- 
nota crescimento  na  população,  não  na  renda,  ou  na 
riqueza  que  é  o  mesmo  —  responderei  que  pelo  cres- 
cimento da  população  sem  ser  acompanhado  ou  pre- 
cedido do  crescimento  da  renda  ,  não  pôde  expli- 
car-se  o  do  consumo  ;  porque  se  a  população  au- 
graenta  ,  sem  as  subsistências  aogmentarem  ,  cila 
perece  :  se  as  subsistências  crescem  também,  man- 
tem-se.  e  o  consumo  augraenla  :  mas  esse  augmen- 
to  não  existiria  ainda  que  a  população  crescesse  , 
se  a  renda  ou  a  producção  ficasse  estacionaria  ;  de 
maneira  que  não  bastando  ,  para  elle  se  verificar  , 
que  cresça  o  numero  dos  consumidores,  vem  a  ser 
preciso  que  cresçam  também  os  meios  de  consumir, 
que  são  as  riquezas.  E,  por  isso,  que  ellas  tem  cres- 
cido com  rasão  o  infiro  eu  ,  ou  posso  inferir ,  da 
maior  extracção  de  carne  no  reino. 

Regra  geral.  Todas  as  vezes  que  aqiiolles  impos- 
tos, directos  ou  indirectos,  que  abrangem  ás  peque- 
nas fortunas  e  ás  classes  industriosas ,  sobem  em 
rendimento ,  quaudo  não  c  devido  exclusivamente 
a  melhor  syslema  ou  melhodo  no  lançar  e  arreca- 
dar ,  essa  mudança  é  annuncio  seguro  de  progres- 
so económico  ,  de  movimento  ascendente  na  rique- 
za ,  absolutamente  considerada  ,  sem  referencia  ao 
modo,  mais  ou  menos  justo,  por  que  está  distribui- 
da  ;  e  lambem  de  distribuição  ,  mais  justa  e  mais 
igual,  da  mesma  riqueza  pelas  mais  numerosas  clas- 
ses da  sociedade;  pois  são  as  pequenas  collectas  pa- 
gas pelos  indivíduos  d'essas  classes  as  que  mais 
avultam  na  verba  total  dos  tributos.  Singular  desti- 
no do  pobre  !  Dos  seus  ceitis  é  que  se  forma  o  the- 
souro  do  Estado.  Das  suas  pequenas  rendas  c  que 
se  custeiam  as  esquadras  e  os  exércitos.  Do  seu 
suor  e  trabalho  é  que  se  IcNantam  e  edificam  as 
grandes  emprezas  publicas.  E  pelo  vulto,  maior  ou 


menor,  que  suas  ténues  quotas  fazem  na  somma  to- 
tal dos  tributos  ,  é  que  se  pode  rectamente  decidir 
até  onde  o  rendimento  progressivo  d'ellcs  é  Ihcrmo- 
metro  da  marcha  da  riqueza  e  da  renda. 

Os  resultados  que  me  ministra  o  augniento  na  ex- 
tracção das  carnes  ad(]iiireni  tanto  mais  pezo  ,  isto 
é  ,  provam  t.intu  mais  o  crescimento  da  producção  , 
quanto  é  certo  que  contemporâneo  áqucllc  augmen- 
io nasceu  e  existe  iima  procura  de  gados  maior  do 
que  era  anteriormente  ,  e  proporcional  ao  serviço 
que  d'elles  reclama  o  progresso  da  cultura  das  ter- 
ras :  de  sorte  que  se  o  primeiro  phenomeno  accusa 
melhoramento  até  certo  grau  ,  o  segundo  cunfir- 
nia-o  ,  e  em  grau  ainda  mais  subido. 

Alem  d 'estas  considerações  alguns  dados  vou  ap- 
presentar  ,  que  não  podendo,  pela  sua  isolaçâo  ,  e 
por  diminutos,  servir  de  base  suUiciente  a  proposi- 
ções e  corollarios  geraes,  não  são  comludo  destituí- 
dos de  importância,  e  oílerecem  thema  a  serias  me- 
ditações. 

Como  exemplo  ,  destacado  sim  ,  mas  de  momen- 
to na  circulação  dos  valores  de  credito,  e  nas  van- 
tagens económicas  d'este  ,  apontarei  o  numero  e 
importância  das  letras  de  cambio  descontadas  no 
anuo  findo  tanto  pelo  banco  de  Lisboa  como  pela 
caixa  filial  que  elle  tem  no  I'orto  ,  que  foram  39(tl> 
letras  na  primeira  e  :2íOO  na  segunda  cidade;  e 
quantias  descontadas  3880  contos  pelo  banco,  e 
:2790  contos  pela  sua  delegação  ;  vindo  a  ser  o  to- 
tal das  letras  6300,  e  a  quantia,  que,  pelo  descon- 
to d'enas,  se  poz  em  circulação  6670  contos.  E  se 
exceptuarmos  o  desconto  de  algumas  letras  do  the- 
Souro,  esta  quantia,  pode  crer-se,  foi  toda  ou  quasi 
toda  empregada  em  operações  productivas  ,  porque 
a  prudência  do  banco  não  lhe  consente  negociar  senão 
com  boas  firmas  [posto  possa,  uma  vez  ou  outra,  re- 
cusar alguma  que  o  não  mereça]  ;  c  as  boas  firmas 
não  costum.im  dissipar  os  recursos,  que  lhes  ministra 
a  confiança  que  ellas  inspiram,  em  gaslosestereis.  ou 
afiançar  sob  o  seu  nome  valores curamerciaes  aquém 
os  mal  use.  E  digo  isto  porque  o  banco  emprestan- 
do sobre  letras,  ou  desconlando-as  que  é  o  mesmo, 
aufere  um  lucro  do  dinheiro  que  adiantou  ou  do 
seu  equivalente  :  mas  se  o  portador  das  letras  des- 
barata a  somma  que  por  ellas  recebeu  ,  essa  somma 
é  um  capital  perdido,  e  ainda  que  o  banco  seja 
reembolçado  d'ella  no  praso  do  vencimento  já  o 
ha-de  ser  com  uma  outra  somma  ,  visto  que  a  ori- 
ginaria está  destruída  ,  c  a  riqueza  social  dirai- 
nuiila  e  privada  d'esse  valor.  O  empréstimo  de  uni 
ca[iital  prova  ,  quando  muito,  que  o  capitalista  tem 
direito  a  um  rédito:  somente  o  uso  que  do  mes- 
mo capital  faz  aquelle  para  cujas  mãos  passa  ,  dá  a 
conhecer  se  elle  foi  aproveitado  ou  estragado  ,  se 
convertido  em  instrumento  de  industria  e  reprodu- 
cção  ,  SC  gasto  em  profusões  e  consumos  sem  resar- 
cimento  do  valor  primitivo. 

Como  facto  ,  desligado  e  não  próprio  a  determi- 
nar per  si  só  qual  é  entre  nós  a  taxa  dos  lucros  do 
capital,  uias  nem  por  isso  insignificante,  notarei 
que  foi  de  17  por  cento  o  dividendo  do  anuo  passa- 
do que  se  repartiu  pelos  accionistas  da  comjianhia 
e  fabrica  de  tecidos  de  algodão  estabelecida  a  Xa- 
bregas, e  de  16  por  cento  o  da  outra  fabrica,  da 
mesma  espécie ,  estabelecida  no  Campo  Pequeno. 
E  reputo  esta  circumstancia  não  insignificante,  pri- 
meiramente porque  mostra  que  em  Portugal  os  ca- 
pitães empregados  nos  ramos  de  industria  cujos  pro- 
ductos  se  accommodam  á  fortuna  e  as  necessidades 
das  ciasses  numerosas,  abonam  mais  certo  e  maior 


1Í)G 


O  PANORAMA. 


ganho.  E  depois  porque  vendo  em  documentos  offi- 
ciacs  que  o  algodão  de  iiinnufaeliira  estrangeira  en- 
trado na  alfandega  de  Lisboa  no  1."  semestre,  so- 
mente ,  do  anno  de  18'(1  produziu  de  direitos  í 47 
contos,  e  o  entrado  no  Porlo  no  anno  económico  de 
18Í0  a  18Í1  produziu  254  contos,  entendo,  ain- 
da que  se  não  consuma  no  reino  uma  pai  te  d'esta 
mercadoria,  que  sendo  liio  considerável  a  exlracção 
d'c!la  como  indica  a  importância  dos  direitos,  este 
ramo  fabril,  se  o  deixarem  medrar,  ó  capaz  de  ex- 
tensão muito  maior  que  a  que  tem,  c  promcttc  gran- 
des benefícios  aos  fabricantes,  e  capitalistas,  que  o 
cultivarem. 

Lançando  um  golpe  de  visla  sobre  o  complexo 
d'estes  dados,  observa-se  que  o  melboramenlo  na 
agricultura  porliigueza  é  real  c  indubitável  ,  e  que 
na  industria  labril  ha,  pelo  menos,  uma  disposição, 
talvez  mnis  pronunciada  do  (|ueniinca  houve,  a  mc- 
Jhoramento.  E  boje  que  estão  ,  api)roxiniadamente  , 
.yOOOO  pessoas  ou  occupadas  ou  interessadas  na  mes- 
ma industria  ,  eomprehendcndo  fabricas  regulares  , 
e  outras  ,  que  o  não  são  ,  já  não  é  permiltido  olha- 
la  com  desattcnção  ou  pelo  lado  económico  ou  por 
qualquer  outro. 

Posto  se  deva  contar  precária  a  existência  das  fa- 
Lricas  em  quanto  os  seus  productos  não  chegarem 
a  rivalisar  com  o  preço  dos  estrangeiros  no  merca- 
do portuguez,  aquellas  que  com  o  decurso  do  tem- 
po e  o  zelo  do  Iraballio  puderem  consegui-lo  ,  ain- 
da que  seja  com  algum  sacrilicio  do  consumidor, 
são  manifestamente  úteis  ao  reino  por  uma  rasão  , 
para  a  qual  poucos  atlcnlam  ,  c  que  por  ser  lunda- 
jiicntal  me  escusa  deallegar  outras,  c  é  —  por  cha- 
marem dos  bancos  estrangeiros  capitães  portuguezcs 
que  lá  estavam  depositados  —  ou  desterrados  que  é 
mais  expressivo.  O  desenvolvimento  da  agricultura 
o  das  fabricas  leni  ,  ninguém  o  ignora  ,  restituido  á 
pátria  muitos  d'estes  capitães  que  cst.ivam  alimen- 
tando a  agricultura  e  as  fabricas  alheias.  Nem  me 
opponbam  que  é  indifferente  o  logar  do  seu  domici- 
lio com  lanto  que  ellcs  prestem  um  rédito ,   e  esse 


rédito  venha  para  Portugal  —  porque  me  obrigam 
a  perguntar  se  Inglaterra  julgaria  indifferente  trans- 
porlar-se  o  seu  numerário  (lara  o  banco  de  Lisboa 
com  tanto  que  desse  um  lucro  ,  e  esse  lucro  fosse 
emprcgar-se  n'aquelle  paiz?  Qual  conviria  mais  a 
Portugal  que  um  inglez,  aqui  residente,  proprietá- 
rio de  terras  na  (iraã-Bretanha  gastasse  entre  nós  o 
rendimento  d'ellas  ,  ou  que  essas  terras  ou  o  seu 
valor  capital  se  transplantassem  para  o  nosso  solo, 
fixando-se  n'cllc  e  accrescentando  a  sua  riqueza? 
Não  é  dillicil  de  resolver.  Capitães  ou  valores,  de 
qualquer  espécie,  é  bom  que  circulem;  mas  que 
não  possam  fugir,  e  que  lenham  a  raiz  sempre  ua 
terra  natal  ,  particularmente  os  das  nações  pobres, 
ou  pouco  industriosas  e  desenvolvidas  em  relação  a 
outras,  como  acontece  á  nossa.  Se  é  proveitoso  ao 
capitalista  nacional  receber  um  juro  de  seus  fundos 
meltidos  em  bancos  estrangeiros  ,  mais  proveitoso  é 
á  nação  que  esses  fundos  regressem  a  ella  ,  e  er- 
guendo fabricas  e  arroteando  campos,  sobre  o  juro 
que  prestavam  a  seu  dono  plantados  cm  terra  alheia, 
prestem  também  voltando  á  própria  ao  trabalhador 
salários,  ao  emprezario  e  ao  retideiro  lucros,  ao  Es- 
tado tributos — salários,  lucros,  tributos  derivados 
do  emprego  do  seu  valor  total,  osquaes  não  |)odiam 
dar  á  pátria  longe  d'cl!a.  A  nação  pobre  que  pelo 
abandono  da  agricultura  e  da  industria  força  as  ac- 
cumulações  dos  seus  habitantes  a  emigrar  para  ou- 
tros paizes,  faz,  de  facto,  empréstimos,  não  os  po- 
dendo fazer,  porque  não  tem  sobejo,  a  esses  paizes. 
A  que  não  tem  sobejo  caminha  loucamente  para  a 
sua  ruina  ,  se  não  procura  emprego  vantajoso  aos 
fructos  do  trabalho  anterior  ,  e  os  obriga  a  ir  bus- 
car esse  emprego  lora  do  seu  território  :  assim  offe- 
recc  ella  a  outras  aquillo  de  que  carece  ,  e  repre- 
senta o  papel  ridículo  do  mendigo  dando  esmola  ao 
miilionario '.  Prudente  e  precavida  é  aquellaque  se- 
gue dilTerente  rota,  retendo  com  a  es|ierança  do  ga- 
nho os  capitães  próprios,  e  com  a  mesma  fazendo 
convite  aos  alheios.  ■    .         (Conlimuir-se-liaj. 

A.  d' O.  Marreca. 


ABA  £GT?CIA. 


Assim  os  judeus  como  os  egj|)cio3  faziam  de  ordi- 
nário de  forma  cubica  os  altares  do  sacrifício  san- 
guinolento ,  em  que  havia  aspersão  do  sangue  da 
victima  ;  vpja-se  a  este  respeito  o  Êxodo  cap.  29 
V.  21.  —  No  mesmo  livro  bíblico   determina  Moy- 


sés  cora  toda  a  individuação  o  como  deve  ser  cons- 
truído  o  altar  em   que  se  queimavam   as  oblações  , 
c   que   acompanhava   o  tabernáculo  :    vid.    cap.   27 
V.  1—8. 
A  gravura  representa  ura  altar  egypcio  ,    onde 


o  PANORA3IA. 


197 


qDeiraaTam  incenso  c  oíTcrtavnm  dadivas  a  falsas  di- 
vindades. Tamlicm  o  aliar  do  incenso  difieria  dos 
outros  ,  que  apontámos  ,  na  ley  nioysaiea  ;  fazer  ar- 
der esta  aromática  substancia  em  honra  de  Deus 
era  uma  das  cspeciaes  prerogalivas  do  ministério 
sacerdotal  :  para  o  que  roparc-sc  na  punição  de  Co- 
ro, Dalan  c  Aliiron,  por  intentarem  usurpa-la  [Nu- 
mcr.  cap.  10. "J.  A  passagem  do  livro  dos  Números 
c  reforçada  pelo  psalmo  106.  —  E  nem  só  o  offer- 
torio  do  incenso  era  reservado  á  posteridade  de 
Aarão,  mas  também  estavam  determinadas  a  espécie 
e  as  porções  ;  só  devia  accendcr-se  com  o  fogo  sa- 
grado do  altar,  c  a  perdição  de  Nadali  e  .Vbiu  foi 
usarem  de  fogo  propliano.  De  tal  importância  era 
esta  oblação  e  seu  methodo,  que  o  propbeta  Isaias  , 
querendo  exprimir  a  indignarão  de  Deus  contra  os 
pcccados  do  povo  ,  imagina  que  diz  o  Omnipotente 
«e  cu  abominarei  o  incenso,» 

Entre  as  nações  pagaãs  não  era  ,  geralmente ,  re- 
servado a  seus  sacerdotes  o  otlcrccimento  do  incen- 
so ,  mas  sempre  o  consideravam  como  o  acto  mais 
solemne  de  homenagem  tributada  á  divindade.  Da- 
hi  vem  que  nas  primeiras  perseguições  contra  os 
christãos,  a  primeira  prova  a  que  os  sujeitavam  era 
ordenar-lhes  que  na  presença  dos  ídolos  queimas- 
sem alguns  grãos  de  incenso,  do  mesmo  modo  que 
tinham  obrado  os  reis  do  tronco  dos  Seleucidas 
para  constrangerem  os  hebreus  á  idolatria  em  tem- 
po dos  Macchahèus.  Mas  os  martyrcs  gloriosos , 
era  testemunho  da  fé  verdadeira,  sellaram  com  seu 
sangue  a  crença  viva  qnc  possuíam  ,  mais  queren- 
do com  sobrenatural  fortaleza  expirar  em  tormen- 
tos do  que  render-se  i  adoração  dos  falsos  numes. 


*<* 


í: 


Catão,  Collumella,  c  Yarrão  nos  deram  testemunho 
de  que  os  romanos  faziam  servir  a  folhagem  d'arvo- 
res  sylveslres  de  pasto  aos  gados;  sccea  d'inverno, 
verde  no  verão.  Os  choupos,  carvalhos,  o  freixo, 
a  hera  e  outras  lhes  forneciam  alimento  saudável. 
Kossos  camponezes  conhecem  bem  quanto  os  gados 
são  gulosos  das  folhas  e  ramos  tenros  d'algumas  das 
arvores,  principíilmente  na  primavera  quando  os  no- 
vos rebentões  lhes  appresentam  manjar  doce  e  ten- 
ro:  nós  temos  visto  algumas  vezes  dar  aos  bois  e 
vacas  até  os  ramos  tenros  dos  sobreiros  ,  e  come- 
rem-nos  cora  extraordinária  avidez.  Isto  porem  não 
é  entre  nós  senão  como  excepção  ,  é  uma  espécie 
de  regalo  ,  ou  accepípe ,  que  nada  inOue  ua  eco- 
nomia rural.  Entre  tanto  é  indubitável  que  esta 
é  uma  outra  vantagem  que  se  pude  tirar  da  cultura 
das  maítas  e  arvoredos  ,  aliás  já  recoramendaveis 
pela  salubridade  que  produzem  ,  pelo  abrigo  aos 
campos  ,  pela  humidade  que  conservam  ,  c  pelas 
madeiras  que  fornecem. 

As  matlas  entre  nós  são  ordinariamente  povoadas 
na  sua  quasi  totalidade  de  pinheiros,  de  carvalhos, 
de  castanheiros.  —  Não  incluímos  aqui  azinheiros 
c  sobreiros  que  pertencem  melhor  á  arboricultura 
ou  cultura  de  arvores  fructiferas  ;  e  ainda  que  os 
castanheiros  lambem  o  sejam,  não  faltaremos  aqui 
dos  castanheiros  ,  arvores  formadas  na  sua  perfei- 
ção ,  mas  sim  daquelles  que  eslão  sujeitos  aos  cor- 
tes regulares  d'annos  em  annos  ,  e  que  se  cultivam 
somente  como  madeira  sem  produzirem  fructo. 


A  arvore  mais  ulil  para  as  maltas  é  o  pinheiro, 
porque  não  da  trabalho  algum  depois  da  sementei- 
ra ,  e  porque  começa  desde  os  primeiros  annos  a 
produzir  a  paga  do  cuidado  e  serviço  do  cultivador 
nas  lenhas  dos  seus  desbastes  c  alimpa.  Demais,  cl- 
le  se  dá  bem  nos  peiores  terrenos  .  nos  pedrcgaes  , 
nas  encostas  áridas  e  sèccas ,  c  alé  nas  arèas  sá- 
fias  e  cegas  da  beira-mar  ,  em  que  nenhum  outro 
vegetal  pôde  viver.  Trataremos  porlanlo  neste  arti- 
go da  sua  cultura  em  particular. 

O  pinheiro  pertence  á  família  das  arvores  conífe- 
ras ,  c  segundo  o  syslcma  sexual  de  l.ianeu  á  or- 
dem da  monnecia  monadelphia  ;  o  seu  género  é  jii- 
nus.  Entre  nós  as  duas  espécies  bem  caracterisadas 
deste  género  é  o  piínis  pinça  ,  pinheiro  manso  ,  'e  o 
pinus  marilima  ,  pinheiro  bravo.  O  pinus  marilima  , 
ou  dito  vulgarmente  pinheiro  bravo,  é  o  que  fará 
objecto  principal  deste  escríplo  por  ser  omaiseom- 
muni ,  por  ser  o  mais  próprio  das  terras  más,  cres- 
cer rapidamente  ,  ser  muito  resinoso  ,  c  dar  cxcel- 
leule  madeira  de  cerne  quando  tem  a  idade  con- 
veniente. Escusado  c  dcscrevè-lo  porque  lodos  o 
conhecem.  (•) 

Da  sementeira  dos  pinheiros. 

O  preparo  c  lavor  do  chão  depende  da  qualidade 
do  terreno  :  se  é  arèa  fina  e  sália  hasta  gradá-lo  ; 
se  esta  mesma  é  empeçada  de  hervas  ,  juncos,  ou 
matto  pequeno,  indispensável  será  o  mcttcr-lhe  ara- 
veça  ;  mas  se  é  terreno  mais  forte  ou  compacto  é 
preciso  lavrar  fundo  ,  e  depois  dar-lhe  ura  segundo 
lavor  mais  ligeiro  para  eslorroar.  Se  o  terreno  fòr 
de  charneca  dura  e  encruada  ,  ou  coberta  d'arbus- 
los  e  matto  forte  ,  exige  ser  surribado  á  enxada  e 
alvião  ,  e  depois  lavrá-lo. 

Promplo  o  terreno  lança-se  o  pinhão  á  terra  sc- 
meando-se  ú  mão  como  o  trigo,  calculando-se  d'al- 
queire  e  meio  alé  dois  alqueires  por  cada  geira  de 
terra.  Semeado ,  alisa-se  o  chão  com  uma  grade 
sem  puas  se  o  terreno  é  areento  ou  pulverulento  ; 
se  é  mais  forte  gradr.-se  primeiro  com  grade  denta- 
da ,  e  depois  se  alisa  com  ella  deitada.  A  semente 
não  deve  ficar  funda.  A  semente  deve  estar  d'antc 
mão  preparada:  o  pinhão  deve  ser  com  preferencia 
do  mesmo  anno ,  apanhado  no  oulono  e  semeado  na 
primavera  ;  e  estar  maduro  e  perfeito  ;  a  natureza 
raesr(]o  jjarece  indicar  a  sazão  da  colheita  .  porque 
as  pinhas  começam  a  abrir  em  abril  e  maio,  e  é 
então  o  tempo  próprio  de  preparar  a  semente  ,  to- 
mando as. pinhas  bem  formadtis  e  ainda  não  de  to- 
do abertas ,  pondo-as  a  seccar  em  pannos  ao  sol  ou 
na  eira  ;  sèccas  raalham-se  ,  limpa-se  o  pinhão  es- 
fregando-o  e  privando-o  das  azas  mcmbranaceas,  ou 
padejando-o  como  o  trigo. 

Ordinariamente  semea-se  o  pinhão  misturado  com 
outras  sementes  ,  proporcionadas  estas  ao  local  :  se 
a  sementeira  é  em  arêa  convém  mistura-lo  com  se- 
menlílbas  de  plantas  arenosas;  na  terra  vegetal  jun- 
tam-lhe  semente  de  centeio,  ou  aveia.  Esta  pratica 
tem  por  lim  abrigar  os  pinheirinhos  dos  calores,  da 
iulempcrio,  dos  ventos,  e  prestar-lhcs  apoio  na  sua 
primeira  infância  :   alem  disto  cortados  os  cercaes 

(•)  Riícommendàmos  sobreluilo  aos  pruprielarios  de  pi- 
nbaes  ,  e  a  loilos  us  inleressados  neste  raim»  florestal  o  ex- 
cellenie  opiiscido  ,  reclieado  de  dculrinas  e  faclus  avericua- 
dos ,  e  ao  mesmo  lempo  perceptirel  a  todas  as  inlelli<;encias 
que  se  intiliila  —  Manual  df  inslriieQÔfS  praticas  sabre  a  se- 
menteira dos  pinheiros  ,Vc- ,  por  F-  L.  G.  de  Varnliagen. — 
Pu.licoii-o  a  Academia  das  Sciencias :  custa  160  rs. 

Os  UR. 


198 


O  PANORAMA. 


altos  depois  de  maduros  deixam  na  terra  nm  prin- 
cípio de  estrumada  que  ajuda  a  vegetarão  dos  pi- 
nheiros. Se  é  era  arèa  maiormente  na  costa  do 
mar  ,  as  plantas  arenosas  defendera  os  pinheirinlios 
dos  ventos  e  curso  das  arèas  ,  e  lhes  fornecera  es- 
peques ,  sem  os  quacs  seriam  mais  facilmente  aba- 
lados. 

Os  pinheiros  devem  semear-se  econservar-sc  bas- 
tos, aliás  distrahera  a  seiva  para  os  ramos  lateraes, 
c  estes  se  formam  era  figura  de  candelabro  ;  cres- 
cem menos,  e  em  prejuízo  da  hastea  ou  tige  se  en- 
iioselham  ,  e  perdem  a  belleza  e  utilidade  de  seus 
destinos  futuros.  Nós  temos  visto  nas  ladeiras  que 
avisinham  as  margens  dos  rios  na  província  do  Mi- 
nho pinhaes  de  poucos  annos  ,  tão  bastos  que  um 
homem  os  não  pódc  penetrar  sem  dilliciild.ide  ,  tão 
altos  e  direitos  como  uma  vara  arredondada  ao  tor- 
no. Quando  a  idade  os  vai  engrossando,  desbastam- 
se  graiiual  e  discretamente,  dando  logar  a  que  se 
Ibrniem  arvcues  ,  aproveitando-se  os  que  se  tiram 
jiara  mil  misteres,  o  que  produz  rendimento  útil 
aos  cullivadorcs. 

O  pinheiro  é  verdadeiramente,  apesar  do  desprè- 
-so  cominum,  uma  arvore  preciosa:  a  pluma  serve 
para  o  lume  c  para  as  eslrumeiras  ;  a  ramada  ou 
alimpas  para  os  fornos  ,  para  as  sebes  e  tapumes 
<iue  defendem  as  arèas  ou  a  approximação  dos  ga- 
dos damninhos;  a  casca  pode  suprir  a  do  carvalho 
nos  cortumes ;  as  varas  servem  para  a  empa  das  vi- 
nhas, estacas,  e  para  outros  misteres;  cortados  de 
talhadia  dos  lo  até  20  annos  d'idade  dão  exccllen- 
te  lenha  ;  de  2o  aos  30  começam  a  dar  rezina  pe- 
los talhos  ou  incisões  no  tronco,  que  avivadas  c  re- 
vesadas  a  produzem  por  espaço  de  30  annos.  linlão 
se  cortam  e  dão  madeira  de  carpinteria  :  quando 
chegam  a  ser  arvores  de  perfeito  crescimento  dão 
mastros,  vigas,  taboado,  e  outras  madeiras  decons- 
Irucção  :  as  achas  de  seus  lòcos  e  rechegas  ,  os  nós 
e  raizes  dão  alcatrão;  o  pinhão  dá  óleo;  o  cerne  , 
cmPim  ,  velho  ,  dividido  em  estilhas  ,  faz  caiidèas  ; 
c  as  pir^has  espertam  o  lume  e  aquecem  o  lavrador 
cançado  do  trabalho  do  dia,  c  recolhido  á  sua  chou- 
pana nos  serões  d'inverno  ,  posto  á  fogueira  ,  em 
quanto  as  mulheres  ao  clarão  de  um  lume  radioso 
e  claro  fiam  nas  rocas  c  preparam  a  collação  no- 
cturna. /.  da  C.  N.  C. 


Do   S.VNGIE. 

Composição. —  O  sangue  compõe-se  d'aliiumina, 
agua,  fihrina  ,  uma  substancia  animal  curada  ,  uma 
pequena  quaniidade  de  matéria  gorda  e  dedifTcren- 
tes  sáes  ;  a  saber  :  iiydro-chloratos  de  potassa  e  de 
soda  ;  sub-phosphalo  de  cal  ;  subcarbonatos  do  so- 
da, de  cal  e  de  magncsia  ;  oxido  de  ferro,  e  segun- 
do M.  lierseliiis,  de  lactato  de  soda  junto  com  uma 
matéria  animal. 

Praprirdail (■■■<.  —  Suas  propriedades  physicas  são 
geralmente  conhecidas,  lille  está  sempre  no  estado 
liijuido  na  economia  animal;  sua  còr  é  vermelha 
nas  artérias,  e  d'um  vermelho  escuro  nas  veias; 
cheiro  insípido,  sabor  ligeiramente  salgado,  seu 
peso  específico  varia  ,  porem  é  mais  pesado  do  que 
a  agua. 

Submcttido  á  temperatura  d'agua  fervendo ,  o 
sangue  se  coagula  em  consequência  d'albumina  que 
contém.  A  matéria  coagulada  é  d'um  azul  escuro, 
c  resulta  ,  [lela  calcinação ,  um  carvão  voluminoso, 
ídilíicil  de  incinerar. 


Quando  se  expõe  á  temperatura  faz-se  n'uma  mas- 
sa que  se  divide  em  duas  partes  :  uma  líquida,  trans- 
parente amarcllada  que  se  chama  serum  ,  [soro  de 
sangue]  a  outra  molle  ,  opaca  ,  d'um  avermelhado 
escuro  chamado  grumo  [posta  de  sangue].  O  serum 
não  c  senão  agua  conservando  em  dissolução  muita 
albumina  e  sáes.  O  grumo  contem  toda  a  fibrina  , 
matéria  corada,  uma  pequena  quaniidade  de  serum, 
e  certa  porção  de  sáes.  Ora,  pelo  repouso,  a  fibri- 
na e  a  matéria  corada  se  separam  inteiramente  :  é 
preciso  concluir  que  ellas  não  estão  ,  por  assim  di- 
zer, senão  suspensas  no  sangue.  Outros  phenomenos 
se  appresentam  quando  ao  sahir  da  veia  o  agitámos 
em  logar  de  o  abandonar  ,  então  não  se  torna  mas- 
sa ;  conserva-se  no  estado  líquido,  esepara-se  d'el- 
le  somente  uma  certa  quaniidade  de  fibrina,  debai- 
xo da  forma  de  longos  lilamenlos  que  e  fácil  torna-lo 
branco  pela  agua  :  algumas  vezes  agita-se  o  san- 
gue á  medida  que  seextrahe  para  poder  convertè-lo 
em  coalho.  l)esenvolve-se  provavelmente  calor  du- 
rante a  coagulação  espontânea  do  sangue;  porem 
segundo  as  experiências  de  M.  .lohn  Davy  ,  c  tão 
insensível  que  se  lhe  não  acha  dilVerença  no  ther- 
mometro. 

Posto  era  contacto  com  os  gazes  ,  e  agitado  nes- 
tes ,  o  sangue  se  mistura  diversamente  :  é  o  que  se 
observará  na  tabeliã  seguinte. 


Sangue  ve.xoso. 


Gaz 


Oviíeiíio 

\r  alin  >plierico  .... 

AmiiHini.iCd 

li:  i  o\i(l(i  liecarbune. 
Deiil-iixulo  d'azule.  . . 
Hyclriigenio  carbonado 

Gaz  azule 

Gaz  carbónico 

Gaz  hydrcgeiíio. ,  .... 
l^rot-oxiilu  d"azo;e  .  .  . 

Hydrojenioarsenicado 
Hydrugt'níosiiI])tiiirado 

Gaz  hydro-cldorico. 
Gaz  sulphiiroso. .  . . 
Cliloro 


Cures. 


Encarnado  rosado. . . . 

Iilem. 

Encarnado  carregado- 

D."  um  (luuco  azulado. 

Idem. 

Iilem. 

Encarnado  escuro. 

Idem. 

Idem. 

Idem. 

Roxo  escuro ,  pas- 
sando pouco  a  puii* 
co  a  um  esverdiulia- 
do  escuro. 

Roxo  escuro 

Pardo  escuro  

Negro,  passando  pou- 
co a  pouco  a  um  ania- 
rello  eshranqiiu;atl( 


Observações. 


Eslesansueli- 
nha  sido  ba- 
lido ,  e  por 
consei.'uinle 
privado  de 
librina. 


Estes  3  ga- 
zes coagu- 
lam au  mes- 
mo tempo  o 
san-ue. 


Traduzido  por  l.  J.  Gonçalves. 


6oíanica  illcbica. 

Descriprão  de  varias  arvores,  arbustos,  herras  e  plan- 
tas meilicinacs  que  existem  na  villa  de  Téle  ,  e  da 
applicação  que  delias  fazem  os  naturaes  do  paiz 
aos  usos  meclianicos  da  vida,  e  nas  doenças  de  que 
são  atlacados, 

(Continuação  de  paq.  192.^ 

Mutõa.  —  \  casca  desta  arvore  [que  cresce  ale  a 
altura  da  laranjeira]  asscmelha-se  á  cortiça  na  cór 
c  grossura  ;  as  folhas  são  longas  ;  c  extrahe-se  lei- 
te do  tronco  e  ramos,  por  meio  de  qualquer  golpe 
que  se  lhe  faça  ;  applicam  o  cosimento  da  raiz  ao 
curativo  da  tosse.  A  madeira  é  muito  oleosa  .  e  o 


o  PANORAMA. 


191) 


rasembe  e  os  régulos  maravcs  usam  delia  cm  pc- 
. laços  cortados  como  as  vellas  ,  c  licUes  se  servem 
para  se  alhimiarem. 

\liamuru-Hcúii.  —  As  cascas  desta  arvore  ,    redu- 
zidas a  pó  ,    e  cheirando  esle  ,    são  remédio  clliiaz 
j)ara    as  vertigens  .    e  o  mesmo  se  consegue  tonian 
do  suadouros  á  cabeça,  feitos  com  o  cosiuiento  das 
folhas. 

Musequrssc.  —  A  folha  desta  arvore  é  simillinnte 
á  de  vide,  ou  parreira;  a  grande  applica-se  para 
feridas,  e  da  pequena  faz-se  chá  que  se  appliea 
aos  doentes  de  peito;  a  casca  é  grossa  e  muito  ra- 
chada ,  parecida  cora  a  do  goôu  ,  a  (|ual  depois  de 
fervida  ,  bebcndo-a  ,  suspende  os  elTeitos  que  pro- 
duz o  gomi  preparado  para  o  í/mai'c,-  isto  é  para  a 
prova  que  j;i  dissemos. 

Muddmii.  —  k  de  cor  branca,  folhas  grandes,  ás- 
peras c  inllexiveis  ;  osucco  das  folhas  misturado  em 
agua  fria,  e  bebido,  é  remédio  edicaz  para  as  diar- 
rheas  de  que  alli  são  accommettidos  os  europeus. 

Miipiibuzo. —  As  ramas  c  o  corpo  desta  arvore, 
são  cobertos  de  picos  grandes  c  rijos:  os  negros 
servem-se  da  raiz  para  tingirem  de  vermelho  a  li- 
nha ,  cordas,  e  palha  com  que  entrançam  o  cabello 
para  o  enfeitar. 

Miiaiqiiizi.  —  É  a  que  em  Inhanibane  chamam 
vxafurreira.  e  ao  fructo  rnafurra.  Esta  arvore  é  mui 
copada  ,  sombria,  e  fraca,  tem  as  folhas  estreitas  e 
compridas  ,  a  Qòr  branca  e  miúda  similhante  á  da 
mangueira  ou  do  sabugueiro,  ofrueto  é  em  cachos  e 
do  tamanho  de  figo  miúdo,  cora  a  casca  rija,  e  pe- 
nugem ,  estando  maduro  racha  por  si  mesmo,  g  ex- 
pelle  um  caroço  preto  com  olho  vermelho  ,  do  qual 
extrahcm  azeite  e  sebo  ;  a  casca  esmagada  era  agua 
fria  ,  ou  quente  ,  toma  a  cor  do  leite  ,  c  é  com  esta 
agua  que  os  negros  adubam  os  seus  comeres  ,  e  fa- 
zem papas:  o  sebo  é  bom  para  curar  a  erisipela  un- 
tando com  clle  a  parte  doente. 

Mucuiu. —  È  a  que  na  historia  santa  se  chama  sij- 
cnnwro.  Esta  arvore  ésimilhanle  á  figueira  mansa,  e 
dá  como  ella  o  fructo  em  troncos,  e  dilTere  em  ser 
miúdo  e  indigesto.  A  raiz  sendo  deitada  de  molho, 
e  bebendo  desta  agua  cura  as  cólicas  e  palpitações 
decoração;  lambera  se  applica  para  o  mesmo  effei- 
to  o  pó  da  raiz  sécca  ao  sol  misturado  em  qualquer 
liquido. 

Cantinca-utarc. —  As  raizes  são  da  cor  da  laran- 
ja ,  e  tem  a  propried.ide  de  aíTugeutar  a  cobra  pela 
actividade  do  seu  cheiro  ,  e  delias  se  servem  para 
este  fim. 

Mucuiiili.  —  A  (lór  é  como  a  do  limoeiro,  com  a 
differença  de  ser  comprida  ;  o  fructo  é  redondo  e 
miúdo;  a  madeira  ó  roxa  ,  e  óptima  para  obras  de 
marcineiro  ,  é  muito  cheirosa  ,  e  as  raizes  ainda 
mais. 

Fundi.  —  E  uma  palmeirinha  da  espécie  de  pias- 
sáva  ,  cujas  folhas  são  longas  e  estreitas  como  a  pa- 
lha, e  com  uns  riscos  pelo  comprimento  que  parece 
fusião  ;  servem-se  delias  para  fazer  vassouras,  e  es- 
covas para  esfregar  cestos  e  gamellas  «kc.  No  Zum- 
bo ,  os  cafres  morenges  applicam-na  a  tajiar  o  rom- 
bo das  embarcações. 

Mussniizôa.  —  O  fructo  desta  arvore  é  como  a  ga- 
lha ,  com  ditTereuça  que  esta  não  tem  picos  e  faz  o 
mesmo  eITeilo  daquella  ,  servem-se  dellc  as  mulhe- 
res dos  calTres  para  tingirem  de  preto  os  pannos 
brancos  ,  pelo  modo  seguinte  :  |)isam  muito  bem  o 
fructo,  e  gradualmente  lhe  botam  uma  qualidade 
de  terra  negra  que  elles  conhecem,  a  qual  tem  par- 
tículas de  capa-rosa  ,  e  fica  uma  perfeita  tinta  pre- 


ta muito  fixa  ;  as  papas  feitas  do  cosimento  das  rai- 
zes applicam-se  a  (|uem  padece  de  hérnias,  cora  e 
que  sara  brevemente. 

Miissio.  —  A  qualidade  desta  arvore  é  como  a  d» 
espongeira  ,  tanto  na  folha  e  picos  como  na  llòr  , 
com  a  dilTerença  de  não  ser  cheirosa  ;  produz  uns 
feijões  a  que  chamam  quissin  ,  dos  qiiaes  se  servem 
como  do  fructo  da  mussoiizáa  ,  c  por  ser  um  forte 
ailstriugente  os  deitam  de  molho  e  com  a  agua  la- 
vam as  feridas. 

(Continuar-sc-ha.) 


Pnovi.NciA  DE  S.  Pedro  ,  ou  Rio  Grande  do  Sul. 

2.0 

P\iiA  cumprir-mos  o  que  proinettemns,  tratando  da 
ca[)ilal  dc>ta  provinda,  Porto-Alegre,  cm  o  N.°  72, 
não  podemos  desempenhar  melhor  a  palavra  ,  do 
que  transcrevendo  as  noticias  dcscri()tivas  ,  inclui- 
das  no  cap.  3.°  da  obra  do  Shr.  Visconde  de  S. 
Leopoldo  ,  Ámuirs  da  Proviíicia  de  S.  Pedro  ,  com 
uma  carta,  2."  edição — livro  importante,  mas  qua- 
si  desconhecido  em  Lisboa. 

n  .\  pro\incia  de  S.Pedro,  anteriormente  governo 
doRioíjrande  de  S.Pedro  do  Sul,  demora  entre  as 
latitudes  austracs  da  America  Meridional,  contadas 
na  costa  do  mar,  desde  a  barra  do  rio  Mombiluba, 
ao  nordeste  do  presidio  das  Torres  ,  antiga  guarda 
de  S.  Jorge,  na  latitude  au-.tral  de  29°,  o'.  36i', 
até  o  arroio  Chiii ,  na  latitude  austral  de  33",  42'. 
10"M.  .\ntes  do  anno  de'  180b,  diversa  era  a  de- 
marcação ;  recuou  onze  léguas ,  mais  on  menos  , 
áqem  da  barra  do  Araranguá  ,  on  mais  etimológico 
Ararenguay.  onde  se  acha  ainda  hoje  postada  a  ul- 
tima guarda,  que  assignala  o  limite  da  província 
de  St.''  Catliarina  ;  e  avançou  para  o  sul  até  o  refe- 
rido arroio  Chui  ,  onde  era  a  antiga  divisa  dos  do- 
mínios hcspanhoes  pelo  tratado  de  1777,  e  que  fica 
distante  da  cidade  do  Rio  Grande  quarenta  e  ires 
léguas  e  um  quarto  ,  e  do  arroio  de  Ytaym  ,  onde 
fora  collocado  o  primeiro  marco  portnguez  ,  vinte 
sete  léguas  e  meia  ;  porem  a  latitude  no  interior 
do  paiz  começa  mais  ao  norte  ura  grau  ,  cora  pou- 
ca dilVcrcnça  ,  sendo  de  27°  oO'  o  parallclo  do  rio 
de  Pelotas,  o  qual  serve  de  divisa  deste  com  a  pro- 
víncia de  S.  Paulo  :  e  entre  as  longitudes  de  321" 
2i-',  e  de  328"  44'  [contadas  da  ponta  mais  Occi- 
dental da  ilha  de  Fcrroj.  'lerá  na  sua  maior  largu- 
ra de  leste  a  oeste  cento  vinte  e  oito  léguas  era  li- 
nha recla,  das  que  entrara  vinte  em  grau  de  circu- 
lo máximo  ;  mas  no  lado  occidcnlal  não  excede  de 
sessenta  e  cinco  léguas,  contadas  na  direcção  geral 
do  Uruguay.  O  seu  littoral  computa-se  de  cem  lé- 
guas em  direitura;  de  cujas  dimensões,  e  da  ins- 
pecção do  mappa  topographico  se  lieduz  ,  que  esta 
província  tem  a  figura  de  um  trapézio  mixtilineo  . 
formado  por  dois  lados  opposlos  desiguaes  e  rectos, 
e  por  outros  dois  curvos  ,  todos  com"  suas  irregula- 
ridades ou  seios  ,  abrangendo  por  consegiiiutc  a  su- 
perficie  pouco  mais  ou  menos  de  oito  mil  trezentas 
e  vinte  léguas  quadradas. 

CouíruiUa  pelo  nascente  com  o  oceano  ;  pelo  nor- 
te com  o  rio  Momhituba  ,  Pelotas  ,  e  incultas  ser- 
ras do  L  riiguay  ;  pelo  poente  com  uma  parte  do 
mesmo  Uruguav  ,  que  a  separa  da  piovincia  d'En- 
tre  Rios;  c  pelo  sul,  com  uma  pequena  extensãi» 
do  Ibicnry  ,  que  desde  a  sua  barra  ,  corre  ás  cabe- 
ceiras dos  seus  g;ilhos  mcriílionaes  ,  atravessando  a 
serrania  descoberta  da  campanha,   e  seguindo  pc!'; 


200 


O  PANORAMA. 


seu  ultimo  galho  austral ,  que  conOue  no  denomi- 
nado Ponche  Verde,  para  daquellc  baixar  ;i  harra 
do  arroio  Piray  no  Uio  Aegro,  e  por  este  acima  alç- 
as suas  vorleiitcs  mais  oricniacs.  Finalmente  busca 
a  linha  divisória  o  rio  Jaguariio  ,  que  desagua  na 
lagi'>a  JMrrini ;  segue  parte  desta  lagoa  ,  e  i>rocura 
o  anoyo  Chui ,  até  que  se  perde  uo  mar. 

Toda  esta  grande  extensão  é  dividida  cm  duas 
partes,  quasiiguaes,  pela  serra  geral  do  Brasil , 
que  acompanhando  a  costa  do  mar  nas  [irimeiras 
\inte  e  sete  léguas  desde  o  Araranguá  até  a  latitu- 
de austral  de  29°  40',  pouco  mais  ou  menos,  vol- 
ta a  oeste  mais  oitenta  léguas  até  acabar  no  inte- 
rior desta  província.  A  parle  septentrional  ,  em  fi- 
gura de  outro  scmelhautc  trapesio  ,  é  subdividida 
cm  três  ,  conhecidas  pelas  denominações  vulgares 
de  Campos  de  cima  da  Serra  ,  dos  da  Vacaria  ,  e 
dos  das  i\!issões  orientaes  do  Uruguay.  A  parte  bai- 
xa ou  meridional,  de  Hgura  triangular,  é  talhada 
cm  duas  pelas  isoladas  serras  do  Herval  e  dos  Ta- 
pes ,  c  pelas  lagoas  dos  Patos  e  Mirim;  licando  ao 
occidenlc  destas  serras  os  campos  denominados  do 
continente,  e  ao  nascente  das  ditas  duas  lagoas  c 
da  serra  geral  os  intitulados  da  costa  do  mar. 

Os  Cam|ios  de  cima  da  Serra,  e  os  da  ^^acaria  , 
cuja  superfície  é  de  seiscentas  léguas  quadradas  , 
figurados  em  ura  quasi  triangulo  ,  são  transversal- 
mente cortados  pelo  rio  das  Antas,  que  arrebentan- 
do da  encosta  occidenlal  da  mencionada  serrania , 
a  torna  a  atravessar,  para  ser  conhecido  ao  sul  del- 
ia com  o  nome  de  Taquarí ,  derivado  do  primitivo 
de  Tibiquarí.  A  aquelles  campos  limita  jielo  sul  o 
angulo  da  serra  geral  ,  e  a  estes  pelo  norte  o  rio 
Pelotas  ,  grande  galho  das  cabeceiras  orientaes  do 
Uruguay  ,  que  ,  nascendo  como  o  das  xintas ,  e  cor- 
rendo para  o  occidcnte ,  serve  de  divisa  entre  os 
limites  septentrionacs  desta  província  ,  c  os  meri- 
dionaes  da  de  S.  Paulo  ;  e  pelo  oeste  confinam  com 
a  commarca  dos  sete  povos  orientaes  de  Missões,  e 
pela  picada  denominada  de  Santa  Victoria  e  lios- 
ques  adjacentes. 

Os  campos  de  Missões  ,  conquistados  na  guerra 
de  1801  ,  os  quacs  abrangem  os  povos  de  S.  Ange- 
lo, S.  Joiio,  S.  Miguel,  S.  Lourenço,  S.  Luiz  (Jon- 
zaga  ,  S.  Nicolau  ,  c  S.  Francisco  de  Borja  ,  lera 
uma  superfície  de  perto  de  1,400  léguas  de  cam- 
po ,  sem  comprchender  os  bosques  e  sertões ,  que 
lera  ao  norte  e  ao  nascente  ,  os  quaes  talvez  mon- 
tem a  outro  tanlo.  Pelo  occidenlc  o  Uruguay  os  di- 
vide dos  outros  povos  sujeitos  á  Hespauha  ,  e  pelo 
sul  o  rio  Ibicuy  e  a  extremidade  da  serra  geral  os 
separam  dos  campos  propriamente  ditos  do  conti- 
nente. Ksta  commarca  das  Missões  orientaes  é  re- 
gada pelos  rios  Ijuí ,  Piraliuí,  Icabaquá  ,  e  Mhu- 
luí ,  que  desaguam  no  Uruguay  cm  direcção  de  N. 
O.  .^.  O.  ;  e  pelo  Itú  ,  Taquarí  ,  Nanduí ,  Jaquarí, 
Miri  ,  Jaquari  (irande  ,  e  'foropí  ,  que  allucm  no 
Ibicuy  Guaçú  em  direcções  de  norte  a  sul;  e  em- 
fmi  das  cabeceiras  e  parte  superior  do  rio  .lacuí  , 
com  seus  galhos  mais  consideráveis  Ibirayepiró,  Ja- 
cayoibí ,  Ijuíílrande,  e  outros  menores,  que  fe- 
chando um  bos(|ue  da  figura  de  um  trapesio  irre- 
gular, e  de  superfície  de  cera  léguas,  nelle  se  ajun- 
tam lodos  ao  Jacuí  ,  que  sahc  pelo  vértice  meri- 
ilioiíal  do  dito  bosque,  para  logo  descer  atravessan- 
do a  serra  geral  ,  e  apparecer  ao  sul. 

A  parle  occidenlal  daquelles  dois  indicados  trac- 
tos inferiores,  que  anteriormente  á  conquista  de 
1801  apenas  alcançava  até  o  Albardão  grande  [que 
reparte  as  aguas  para  o  Uio  da  Praia,  c  para  o  Rio 


Grande  de  S.  Pedro]  ,  se  estende  presentemente  ao 
sul  alé  ao  rio  Jaguarão,  que  desagua  na  lagòa  Me- 
rim  ;  e  a  oeste  pela  margem  de  noroeste  das  pri- 
meiras oito  léguas  do  Uio  Negro  ,  que  segue  pelo 
território  de  Montevideo  para  o  Uruguay  ;  e  pelas 
cabeceiras  dos  Ibicuys  ,  galhos  principacs  do  Ibi- 
cuy Guaçú,  abraçando  estes  parte  da  escalvada  Ser- 
ra da  Campanha  ,  fértil  pela  undação  dos  seus  ga- 
lhos occidentaes  o  Iliicuy  Mirim,  Ibirapuilã  ,  Pai- 
passo,  e  Nandui  ;  alem  dos  quaes  regam  também 
estes  campos  as  aguas  do  Guarócai  a  oeste  do  refe- 
rido Ibirapuitã  ;  e  pelo  lado  oriental  do  mesmo  Ibi- 
cuy Guaçú  os  seus  galhos  Toropí ,  Caassiquei ,  Ina- 
tuí,  Jaguar! ,  Taquarembo  ,  e  mais  duas  vertentes 
do  mesmo  Ibicuy.  Destas  ramificações  a  mais  cen- 
tral é  conhecida  pela  denominação  de  Uio  de  St.* 
Maria  até  distancia  ,  era  que  se  confundo  com  os 
outros  Ibicuys  ,  bem  que  na  demarcação  de  limites 
de  1758  ,  teve  por  si  opiniões  de  que  era  o  prin- 
cipal ,  e  verdadeiro  Ibicuy.  Todos  estes  esgalhos 
correm  no  território  conquistado  do  semicirculo  do 
nascente  para  se  perderem  a  oeste  no  Uruguay  pe- 
lo seu  tronco  geral  o  Ibicuy  Guaçú,  e  vão  por  fim, 
juntamente  com  os  do  Rio  Negro,  inisturar-se  no 
i;io  da  Prata. 

Era  direcção  opposta  discorrem  ,  na  outra  meta- 
de oriental  desta  mesma  subdivisão  occidenlal  e  do 
dito  Albardão  principal  para  leste,  o  grande  Jacuí 
ou  Guiaba  ,  de  cuja  origem  já  acima  tratámos,  o 
caudaloso  Icabaquam  ou  Camacuam  ,  o  Piratini  do 
Sul  ,  c  finalmente  o  Jaguarão.  No  Jacuí  entram  pe- 
la banda  do  norte  o  Taquarí  ,  tão  copioso  como  o 
próprio  Jacuí  ,  o  Uio  Pardo  ,  c  o  Butucaraí  ,  alem 
d'outros  arroios  menos  notáveis;  e  pelo  sul  o  arroio 
dos  ratos  ,  o  do  Conde  ,  o  do  Francisqninho  ,  c  o 
Capivarí,  nas  direcções  do  sul  para  o  norle,  sahin- 
do  da  serra  do  Herval  ,  c  dos  seus  extremos  se- 
plentrionaes  ;  o  de  D.  Marcos,  o  de  Tabatingaí,  e 
o  rio  Pequerí  com  o  seu  galho  oriental  Iroi,  o  Cam- 
pané  ,  o  ramoso  Irapuá  ,  c  uUimamente  o  Vacacaí 
com  os  seus  ramos  meridionaes ;  o  rio  de  Santa 
Barbara  ,  o  de  S.  Sepé  ,  os  arroios  Cambai  ,  de  S. 
Jeronymo  ,  e  do  Salso,  já  immediato  ás  suas  cabe- 
ceiras ;  e  pela  banda  do  norte  o  arroio  do  Arsenal  ; 
fechando  esta  ramificação  dos  galhos  do  Jacuí  ao 
sul  da  Serra  geral  o  pequeno  Araricá  ,  conhecido 
ordinariamente  pelo  nome  de  Vacacaí  Mirim  ,  e  o 
Tupaetuá  ,  quasi  lodo  embrenhado  na  mesma  serra. 

(Continuar-sc-haJ. 


Pauild  e  mania  do.i  orientaes  nn  Iralamento  dos 
cães.  —  Digno  é  da  curiosa  altenção  do  viajante  o 
cuidado  singular  c  ao  mesmo  tempo  extravagante 
com  que  são  tratados  os  cães  do  grão-seuhor  ,  ha- 
vendo para  isso  deputados  certos  serventes  ,  como 
se  fosse  para  pensar  e  vigiar  cavallos  de  muita  es- 
limação;  conservam-os  em  aposentos  extremamente 
limpos,  c  quando  sabem  os  adereçam  com  fatos  de 
veludos  ,  e  paunos  de  cores  mimosas ,  com  borda- 
dos d'ouro.  Indo  o  sullão  á  guerra  ,  caminha  com 
lamanlio  apparato  de  comitiva  e  tal  sumptuosidade, 
que  move  a  espanto  ;  e  luiuca  deixa  de  levar  adian- 
te de  si  inuumcravel  canzoada  com  ricos  atavios  , 
por.do  nisso  lauto  luxo,  como  os  príncipes  da  Kn- 
ropa  nos  cavallos  d'cstado.  —  O  grão-mogol  não  lhe 
fica  atraz  e  porventura  é  mais  excessivo ,  alé  fez 
passear  de  palanquim  uns  lebréus  de  boa  raça  que 
lhe  mandou  de  presente  o  governo  inglez.  :■  '■ 


79 


o  PANORA3IA. 


201 


y>   . 


PONT  f  FRIDD  SOBRE  O  TAFF. 


PoxT  r  Prtdd  na  linguagem  céltica  significa  «pon- 
te formosa»  ;  e  assim  c  denominada  a  que  esU  lan- 
çada sobre  o  TafT,  dislriclo  de  Glamorgan,  no  paiz 
de  Galles.  —  Não  é  porem  cila  celebre  somente  pe- 
la bclleza  da  localidade  e  da  construição ,  como 
pelas  circumstancias  peculiares  do  architecto  que 
a  edificou. — Guilherme  Eduardo  nasceu  naqnellas 
visinhanças  no  anno  de  1719  :  foi  filho  de  ura  ca- 
seiro, e  com  seus  irmãos  mais  velhos  trabalhava  no 
amanho  da  granja  :  a  Providencia  o  dotou  de  pene- 
trante comprehensão  ,  vigor  d'alma,  e  vontade  per- 
severante ,  como  logo  veremos.  Todo  o  ensino  que 
alcançou  limitou-se  a  ler  e  escrever  a  lingua  pá- 
tria .  a  gaelica  ,  e  aos  rudimentos  de  contabilidade  , 
que  lhe  ensinou  um  visinho  :  contava  apenas  18  an- 
nos  quando  se  applicou  a  fazer  muros  de  pedra  sol- 
ta ,  que  são  geralmente  as  cercas  das  fazendas  no 
principado  de  Galles;  tal  foi  o  primeiro  ensaio  pa- 
ra o  officio  de  pedreiro  ,  em  que  não  leve  mestre  , 
vindo  a  sè-lo  depois  c  habilissimo  como  suas  obras 
mostram  :  observando  com  inteira  allenção  o  traba- 
lho de  uns  olficiaes  que  foram  chamados  a  exerci- 
tar seu  mister  naquella  comarca  aprendeu  a  servir- 
se  de  melhor  ferramenta  e  a  construir  de  pedra  e 
cal,  e  tomando  pequenas  empreitadas  aos  seus  com- 
parochianos  adestrou-se  singularmente  no  officio  que 
por  inclinação  escolhera  ,  e  quasi  por  instincto  ap- 
prendêra.  Durante  pequena  estada  em  Cardiff,  capi- 
tal da  sua  provincia,  estudou  a  lingua  ingleza  :  com 
tão  simples  noções,  como  as  que  declarámos  se  creou 
o  architecto  da  ponte  do  TalV  [sua  primeira  tentativa 
em  grande  escala]  e  depois  d'outras  muitas  pontes. 
O  TafT,  que  cursando  ao  sul  vai  desaguar  no  Sc- 
▼ern  ,  é  sujeito  a  grossas  e  frequentes  cheias,  e  na 
paragem  escolhida  para  a  ponte,  para  juntar  as  es- 
tradas das  margens  opposUs,  é  bastante  largo  :  duas 

JcLHO  1.°— 1843. 


difficuldades  estas  que  obstavam  á  conslrucção,  mas 
que  não  assombraram  Eduardo  ,  como  o  não  fize- 
ram descoroçoar  dois  desastres  consecutivos.  De 
três  arcos  levantou  a  primeira  fabrica  ,  mas  esbar- 
rando nelles  os  troncos,  pedras  e  ciscalbos,  carrea- 
dos por  enorme  alluvião  ,  represaram-se  as  aguas  , 
que  crescendo  em  volume  e  violência  levaram  a 
ponte.  Teve  d'erigir  outra,  conforme  seu  contracto, 
e  para  evitar  o  que  aconteceu  á  primeira  dispôz 
que  fosse  de  um  só  arco  :  só  faltavam  para  comple- 
tar a  obra  as  guardas  ou  parapeitos,  quando  os  bo- 
taréus  deram  de  si  com  o  crescido  peso  da  alvena- 
ria c  calçada  ,  e  tudo  veio  ao  meio  do  rio.  Não  de- 
sanimou o  emprehendedor  ,  e  reconhecendo  a  ori- 
gem do  mal  construiu  a  que  ora  permanece  ,  como 
se  vé  na  gravura  ,  e  que  foi  concluída  em  175.5  : 
notam-sc  nesta  uns  buracos  ,  ou  óculos  cylindricos  , 
Ires  por  cada  lado  do  fecho  do  arco,  que  ascendem 
com  vários  diâmetros  e  segundo  a  respectiva  cur- 
vatura do  arco  :  usou  desta  engenhosa  traça  para 
diminuir  o  peso,  e  com  eITeito  alcançou  a  estabili- 
dade, devendo  adverlir-se  que  a  abertura  ou  lar- 
gura do  arco  excede  muito  á  da  celebrada  ponte 
do  Rialto  cm  Veneza  ;  por  quanto  é  de  140  pcs  , 
medidos  de  pegão  a  pegão. 

Este  homem  ,  de  natural  talento  e  extraordinária 
perseverança  ,  morreu  em  1789  ,  estimado  dos  seus 
conterrâneos.  Construiu  elle  outras  obras  de  igual 
natureza  ,  e  o  condado  de  Glamorganshire  .  sua  pá- 
tria ,  carecia  com  effeito  de  taes  construcções  e  ou- 
tras ,  como  estradas,  &c.  que  facilitam  a  commu- 
nicação  ,  porquanto  é  o  districto  ,  no  sul  de  Galles  , 
onde  mais  se  exploram  minas  de  carvão  de  pedra 
e  de  ferro  ,  em  que  consiste  toda  a  sua  industria  : 
e  na  verdade  depois  de  Guilherme  Eduardo  ahi  se 
tem  feito  importantes  obras  deste  género. 

2."  Serie.  —  Vol.  II. 


202 


O  PANORAMA. 


■<r- 


O  Bodo. 


1128. 


XHI. 


A  boa  corda  de  cãnave  de  quatro  ramacs. 

A  SITUAÇÃO  de  D.  Thereza ,  quando  o  Trovador  en- 
trou em  Guimarães,  era  na  verdade  terrível.  A  có- 
lera que  nessa  noite  trasbordara  do  corarão  do  con- 
de ,  e  a  sede  implacável  de  sangue  e  de  vingança 
que  o  devorava  fizeram  conhecer  claramente  ;i  rai- 
nha que  para  Aflbnso  Henriquez  não  havia  esperar 
delle  nem  paz  nem  perdão.  Esta  certeza  avivara, 
emfim ,  na  sua  alma  os  sentimentos  de  mãe,  senti- 
mentos que  já  não  podiam  ser  para  1).  Thereza  se- 
não uma  nova  causa  de  desventura.  Tinha  jurado 
perante  os  cavalleiros  do  conde  sahir  com  eiles  á 
lide  ,  e  quando  ousou  fallar  de  reconciliação ,  o  se- 
nhor de  Trava  com  palavras  de  respeito  hypocrita 
e  de  verdadeiro  escarneo  lhe  recordou  a  promessa 
que  tão  recentemente  havia  feito.  Subjugado  pelo 
predomínio  infernal,  que  nelle  alcançara  Fernão  l'e- 
rez,  aquelle  pobre  coração  de  mulher,  que  cria  sen- 
tir em  si  os  brios  de  um  coração  d'horacm  ,  sabia 
apenas  des[>edaçar-se  n'uma  contínua  alternativa  de 
afFectos.  Temendo  que  as  suas  palavras  revelassem 
;io  mensageiro  do  infante  a  fraqueza  materna  ,  o  fi- 
lho de  Pedro  Froylaz  lhe  prohibíra  o  escuta-lo,  re- 
servando para  si  o  regeilar  todas  as  proposições  que 
não  fossem  as  de  completa  obediência.  Ouando,  po- 
rem, soube  quem  era  ocavalleiro  que  trazia  a  men- 
sagem, o  condo  não  pôde  deixar  de  sorrir  da  audá- 
cia insensata  do  mancebo.  Apesar  do  silencio  que  o 
generoso  Garcia  Bermudez  guardara  acerca  desamo- 
res de  Dulce  ,  o  conde  concebera  vehementes  sus- 
peitas da  existência  destes.  Avindad'Egas  a  Guima- 
rães disfarçado  podia  ter  bem  diverso  motivo:  mas 
a  indiflercnça  da  filha  de  U.  Gomez  Nunez  para  com 
a  paixão  do  alferes-múr  ,  de  um  homem  que  aliás 
olla  parecia  presar ;  a  missão  inútil  que  este  dera  a 
Truclezindo,  c  que  o  fallador  e  inquieto  pagem  não 
tardara  a  relatar  ao  seu  poderoso  parente  e  senhor ; 
o  empallídecer  de  Garcia  Bermudez  apenas  ouvira 
proferir  o  nome  de  Egas  Moniz  ;  tudo  isto  foi  para 
1'IIe  um  raio  de  luz.  Resolveu  perscrutar  o  efleito 
que  a  presença  do  cavalleiro  produziria  no  alfercs- 
mór.  Era  o  modo  de  verificar  as  suas  suspeitas  ;  e 
por  isso  lhe  ordenou  o  acompanhasse  com  outros  fi- 
lhos-d'algo  á  sala  do  conselho  ,  onde  devia  receber 
a  mensagem  do  infante. 

Tal  é  o  caracter  das  almas  vingativas,  que  se  nas 
mais  graves  situações  da  vida  se  lhes  offercce  o  en- 
sejo de  uma  vingança  mesquinha  ,  seguem  este  en- 
sejo com  o' mesmo  ardor  que  empregam  naquillo  a 
que  estão  ligados  os  seus  mais  importantes  interes- 
ses. A  idca  de  atormentar  Egas  —  o  pupillo  queri- 
do do  odioso  senhor  de  Cresconhe  —  e  de  achar  tal- 
vez na  revelação  do  amor  do  mancebo  pretexto  para 
faltar  á  IV;  que  devia  a  um  mensageiro  indefenso  , 
por  isso  mesmo  que  era  uma  idéa  vil  e  maligna,  se 
lhe  tornava  n'uma  espécie  de  deleite  c  remanso  no 
meio  da  tcn)|)esta(le  que  lhe  agitava  o  animo. 

Entrando  na  sala  ,  onde  o  conde  ,  empe  e  rodea- 
do dos  mais  illustrcs  barões  ,  o  esperava  ,  o  Trova- 
dor se  dirigiu  [)ara  elle  com  passo  seguro  c  gesto 
altivo.  Parou  ,  fazendo  uma  leve  inclinação  de  ca- 
beça ;  depois  ,  mirando  em  roda  ,  os  seus  olhos  se 
encontraram  com   os  do  alferes-mór  ,   cujo  cargo  o 


logar  que  occupava  junto  ao  conde  sufficienteraentc 
indicava  :  tanto  os  de  um  como  os  do  outro  parece- 
ram lampejar:  abaixaram-nos  ao  mesmo  tempo.  O 
rosto  de  Garcia  Bermudez  empallideceu  ;  ao  de  Egas 
subiu  a  vermelhidão  da  cólera.  —  «O  ódio  de  Gar- 
cia Bermudez  é  mais  profundo  —  pensou  Fernão  Pe- 
rez  que  os  observara.  —  E  com  rasão,  elle  é  o  des- 
presado.i)  As  suas  suspeitas  realisavam-se. 

Immovel ,  callado  ,  e  alçando  de  novo  os  olhos 
para  os  fitar  no  conde  de  Trava,  Egas  Moniz  espera- 
va que  este  o  mandasse  fallar. 

«Doe-me,  senhor  cavalleiro  —  disse  o  conde  — 
que  os  paços  de  Guimarães  vos  não  possam  receber 
como  hospede  e  amigo.  Má  demanda  vos  traz  aqui 
por  mensageiro  de  rebeldes  ,  se  não  c  que  em  no- 
me dclles  vindes  implorar  a  piedade  da  mui  excel- 
lente  rainha  de  Portugal,  que  me  ordenou  recebes- 
se vossa  mensagem.  >> 

«Ao  que  vim  dir-vo-lo-hei ,  senhor  Fernão  Perez 
de  Trava  —  respondeu  Egas.  —  Pelo  antigo  foro 
dos  nobres-homens  d'  Hespanha ,  e  pelo  foro  dos 
francos :  como  filho  de  um  barão  leouez  ,  e  como 
filho  de  um  barão  de  Borgonha  ,  —  por  uso  e  lei 
d'aquem  e  d'alcm  serras  ,  toca  a  herança  da  honra 
de  Portugal  ao  mui  illustre  infante  D.AITonso.  Não 
venho  em  nome  de  rebeldes.  Uicos-homeus  e  infan- 
ções,  burguezes  e  villões  desta  boa  terra  in'enviam 
dizer  á  mui  excellente  rainha  ,  e  a  vós,  senhor  de 
Trastamnra  ,  conde  de  Trava  ,  prestameiro  do  cas- 
tello  dePharo,  nobre-homem  deGalliza,  que  d'ora 
avante  ,  o  filho  do  conde  Henrique  é  o  senhor  do 
Portugal.  —  D.  Alibnso  offerece  a  sua  mãe  os  direi- 
tos ,  villas  e  caracteres  do  infantalico  ,  e  a  vós  li- 
vre passagem  para  o  solar  e  honras  de  vossos  ante- 
passados. Doe-me  também,  senhor  conde  —  accres- 
centou  o  cavalleiro  —  de  ser  eu  quem  vos  houvesse 
ue  trazer  Ião  desagradável  mensagem.» 

'(Acabastes?  —  interrompeu  Fernão  Perez  com  voz 
presa  e  um  leve  tremor  de  lábios. 

(1  Ainda  não  :  —  proscguiu  Egas  Moniz.  —  Devo 
também  declarar-vos  que  se  recusaes  a  paz  ,  araa- 
nhaã  diante  deste  caslcllo,  ou  sobre  os  seus  próprios 
muros,  se  pelejará  brava  lide,  lide  que  durará  até 
que  o  juizo  de  Deus  resolva  de  que  lado  está  a  jus- 
tiça ,  de  que  lado  a  iniquidade.» 

«.Mais  nada?  —  perguntou  de  novo  o  conde,  com 
um  sorriso  indizível  d'escarneo. 

«Só  uma  cousa  ,  senhor  conde  de  Trava  :  — res- 
pondeu o  cavalleiro  com  alguma  perturbação.  —  X 
vós  c  á  rainha  era  dirigida  esta  mensagem.  Vós  ten- 
de-la ouvido  :  resta  que  ella  a  ouça.  Scrme-ha  per- 
mittido  fallar-lhe?» 

«  .\nles  disso,  cavalleiro: — replicou  o  conde  em 
cujo  rosto  transparecia  a  lucla  que  linha  comsigo 
mesmo  i)ara  conter  o  furor  que  lhe  sciutillava  nos 
olhos  :  — antes  disso  cumpre  advertír-vos  uma  cousa. 
Conheço-vus  :  de  sobejo  vos  conheço  eu  !  —  Mas  não 
basta  vosso  simples  testemunho  c  vosso  ar  altivo  pa- 
ra vos  crermos  mensageiro  do  mancebo  Alibnso  Hen- 
riquez, que  se  intitula  senhor  e  infante  de  Portu- 
gal ;  mensageiro  dos  ricos-homens,  infanções  e  con- 
celhos que  dizeis  vos  enviaram.  (Juem  pódc  aflirmar 
que  um  homem  é  o  que  parece?  Muitas  vezes  mo- 
tivo occullo  obriga  o  cavalleiro  a  vestir  as  bragas 
d'almafega  e  o  zorame  de  burel  do  peão  ;  muitas 
vezes  o  villão  ousa  trajar  o  saio  escudado  de  caval- 
leiro ,  e  piir  sobre  a  cabeça  o  capello  de  ouropel. 
Para  responder  ao  que  dissestes  ,  por  mercê  raos- 
traí-me  a  vossa  carta  de  crença.» 

Estas  palavras  do  conde  foram  vibradas  com  um 


o  PANORAMA. 


203 


sorrir  Ião  desusado,  que  o  trovador  precisou  de  to- 
da a  energia  de  que  naluraliuciitc  era  dotado  para 
disfarçar  a  impressão  que  na  sua  alma  ellas  haviam 
produzido.  Eram  demasiado  ciaras  para  não  as  en- 
tender. Teria  sido  atraiçoado  por  Abul-IIassan  .'  — 
Tremeu  ao  pensar  em  Dulce.  Sem  replicar  tirou  do 
peitilho  do  saio  um  pequeno  pergaminho  dobrado  , 
c  appresentou-o  ao  conde  ,  o  qual  o  passou  ás  mãos 
do  reverendo  Kicha  iMartim  ,  que  exercitava  então 
o  officio  de  chanceller. 

«  Em  termos,  e  sera  duvida  :  —  murmurou  o  digno 
cónego  examinando  a  escriptura.  —  Kada  falta:  si- 
gnaes ,  notário,  e  testemunhas.» 

«De  quem  são  os  signaes?  —  perguntou  Fernão 
Perez  sem  tirar  os  olhos  docavalleiro  cada  vez  mais 
perturbado.» 

"De  D.  Affonso  , —  respondeu  Eicha  Marlim. — 
É  o  seu  rodado  e  a  cruz  ,  tudo  ao  que  parece  feito 
por  quem  pintou  a  carta  ,  que  diz  ser  e  me  parece 
escripta  da  mão  de  Pedro  o  chanceller  do  infan- 
te   ) 

Infante  ?  I  —  interrompeu  em  voz  baixa  o  conde 
batendo  com  força  no  punho  da  espada. 

«Item  —  proseguiu  o  cónego  —  de  D.  Paio,  que 
louva  e  confirma » 

«Do  arcebispo  de  Braga?  Vinga-se  da  prisão  em 
que  o  leve  a  rainha.  Como  sempre  ,  revoltoso  e  in- 
trigante. Continuai. 

<iE  de  Fernão  Captivo  ,  alferes-raór  de  Portugal, 
diz  a  segunda  regra  dos  que  confirmam  do  lado  di- 
reito. » 

«Mente  !  —  retorquiu  o  conde  em  tom  já  mais 
alto  e  colérico.  —  O  alferes-mór  de  Portugal  está  a 
meu  lado ,  e  não  é  um  miserável  traidor.  Lede. » 

«  E  de  Egas  Moniz  de  Cresconhe  —  mordomo  da 
cúria. » 

«Da  cúria  dos  sandeus  evisl  —  atalhou  o  conde, 
cujo  furor  conlinuava  aaugmentar. —  Velho  infame, 
movedor  principal  da  revolta'.» 

«  E  de  Gonçalo  Mendez  ,  rico-homem » 

«  Que  !  ?  —  bradou  Feruão  Perez  arrancando  o  per- 
gaminho das  mãos  de  Eicha  Martim  e  olhando  es- 
pantado para  aquelles  caracteres  ,  que  a  sua  igno- 
rância de  nobre  lhe  não  consentia  entender.  —  Elle 
no  campo  de  D.  AfFouso  '.  ?  Elle  também  mandou  es- 
crever seu  nome  nesta  carta  de  crença?'.  Não  é  pre- 
ciso lèr  mais.  Ttlensagciro,  que  vieste  afTrontar-me, 
sahe  já  de  Guimarães,  porque  te  juro  que  nãofalla- 
rás  á  rainha;  que  não  fallarás  aos  traidores  que  tal- 
vez buscavas  ;  porque  traidores  andam  no  meio  de 
nós'.  Vai  dizer  aos  villões  que  te  mandaram,  e  aos 
cavalleiros  mais  villões  do  que  clles,  que  eu  conde 
de  Portugal  e  Coimbra  os  despreso  :  que  se  ousa- 
rem approxiraar-se  de  Guimarães  os  mandarei  de- 
sarmar pelos  meus  cavalleiros  ,  e  arraucar-lhes  os 
olhos  pelos  meus  cavalleriços  e  servos.  Entendes? 
É  isto  o  que  lhe  deves  dizer ,  e  dá  graças  a  Deus  , 
de  não  começar  por  ti  o  castigo  de  desleaes. » 

Durante  a  leitura  do  reverendo  cónego  de  Lame- 
go a  perturbação  de  Egas  se  havia  asscrenado  com 
as  observações  violentas  do  filho  de  Pedro  Froylaz, 
que  pouco  a  pouco  alinham  convertido  em  indigna- 
ção. Esta  subira  de  ponto  com  as  suas  derradeiras 
palavras:  o  cavaileiro  conteve-se  todavia. 

«Senhor  conde  de  Trava,  não  creio  digno  de  um 
nobre-homem  d'IIespanha  gastar  affrontas  inúteis 
contra  os  que  não  podem  responder-vos.  Pedistcs-me 
as  provas  do  que  aífirmava.  Dei-vo-las.  O  recusar 
admittir-me  á  presença  da  rainha  podeis  faze-lo  ; 
mas  faltareis  á  lealdade  que  deveis  a  vossa  senhora.» 


«E  quem  te  deu  direito,  miserável  ,  de  me  en- 
sinar meus  deveres?  —  bradou  o  conde  furioso. — 
Quem  te  assegura,  vil  toupeira,  que  minas  no  silen- 
cio da  noite  o  chão  que  pisamos,  porque  não  ousas 
mostrar  á  luz  do  dia  a  fronlc  covarde  ,  que  sahirás 
a  salvo  de  Guimarães  sem  que  te  faça  arrancar  a 
lingua  insolente? —  Tu  que  ousas  fallar  de  lealda- 
lic,  a  que  vieste  lionlem  a  cslc  castcllo  como  um  sal- 
teador nocturno  ?  Mas  hontem  como  hoje  os  teus 
passos  foram  perdidos  '.  X  minha  resposta  aos  con- 
selhos que  me  d.is  é  esta  :  servirá  ao  mesmo  tempo 
de  resposla  aos  que  te  enviaram.» 

Ao  ouvir  as  ultimas  phrases  ,  o  trovador  sentiu 
fusligarem-lhe  as  faces  os  fragmentos  lio  pergami- 
nho ,  que  o  conde  despedaçara  entre  as  mãos. 

O  lume  fugiu  dos  olhos  a  Egas.  Era  uma  afFron- 
ta  monslruosa  a  que  recebera.  Recuou  :  os  dentes 
rangiam-lhc  como  em  accesso  febril. 

«Infame  c  covarde  és  tu,  villão  de  Galliza  1  gri- 
tou elle. —  Infame  porque  vendeste  o  teu  corpo  co- 
mo unia  mulher  perdida  :  covarde  porque  só  sabes 
injuriar  no  meio  destes  Icbreus  esfaimados  que  te 
cercam.  Salteador  és  tu  que  roubas  a  nobre  terra 
de  Portugal  a  seu  verdadeiro  senhor.  Assassino,  le- 
vanta esse  guante  se  ousas  I  » 

E  alirou  a  luva  aos  pés  de  Fernão  Perez. 

«Alevanlarei  eu  o  teu  guante  ,  cavaileiro  Egas 
Moniz  I  —  exclamou  Garcia  Bermudezadiantando-se. 

—  A  lança  e  a  espada  do  nobre  conde  de  Portugal 
e  Coimbra  não  devem  cruzar-se  com  as  tuas.  Se- 
nhor conde  ,  uma  estacada  ,  e  nomeai  os  juizes  do 
campo. » 

A  raiva  suffocava  e  tolhia  a  falia  ao  conde  de  Tra- 
va ,  cujos  olhos  banhados  de  fel  pareciam  não  lhe 
caberem  nas  orbitas  :  estendeu  apenas  a  mão  tre- 
mula e  conlrabida  fazendo  signal  que  recusava.  (► 
seu  terrível  silencio  durou  por  alguns  instantes. 
Quem  se  atreveria  a  quebra-lo  ? 

Finalmente  aquella  espécie  d'espasmo  terminou 
por  uma  risada  medonha.  Uma  escuma  ensanguen- 
tada borbolhava-lhe  dos  cantos  da  boca  ,  e  pendu- 
rava-se-lho  em  glóbulos  cor  de  rosa  na  barba  negra 
e  revolta. 

«Uma  estacada  ,  alferes-mór?  —  rugiu  elle  em- 
purrando para  traz  com  violência  Garcia  Bermudez. 

—  Estacada  e  juizes?  Uma  das  ameias  da  torre  al- 
varraã  serão  a  estacada  :  o  algoz,  oreptador  eo  juiz. 
O  cepo  e  o  cutello  são  para  ricos-homens  :  este  san- 
deu, enforquem-no  como  um  cão  ismaelita?  Homens 
d'armas  ,  lançai-mo  na  prisão  do  alcaide  no  fundo 
da  carcova  '.  » 

Egas  olhara  em  roda  :  estava  só  :  os  seis  almo- 
gaures  haviam  sido  retidos  no  paleo  exterior.  Ain- 
da íenloa  defender-se  ;  mas  opprimido  pelo  nume- 
ro ,  e  desarmado  em  breve  ,  arrastaram-no  para  fo- 
ra da  sala.  A  imagem  de  Dulce  lhe  appareceu  en- 
tão serena  e  pura  :  um  gemido  de  desesperação  lhe 
fugiu  do  peito.  Este  gemido  de  desalento  era  o  der- 
radeiro adeus  que  lhe  inviava.  Entre  elle  e  a  sua 
amante  a  morte  e  a  ignominia  se  tinham  naquelle 
momento  assentado. 

O  alferes-mór  seguiu  com  os  olhos  o  trovador,  ti- 
nha licado  immovel  era  quanto  durou  aquella  hicfa 
deshonrosa  para  Fernão  Perez  e  para  os  seus  caval- 
leiros. >o  gesto  do  generoso  Garcia  pinlavam-se  ao 
mesmo  tempo  a  vergonha,  o  ódio,  e  a  piedade.  El- 
le quizera  vingança  ;  mas  repugnava  ao  seu  coração 
uma  vingança  atroz  e  covarde. 

Apenas  Egas  sahiu  entre  os  homens  darmas  o 
conde   voltou-se   succcssivamente  para  Eicha  .Mar- 


204 


O  PANORAMA. 


lim  ,  para  o  villico  do  castcUo,  e  para  os  cnvallei- 
ros  que  o  rodeavam  :  — 

«Senhor  capellão-inór,  tende  promplo  um  monge 
de  S.  Salvador  para  esta  noite  confessar  um  liomem 
que  antes  do  romper d'alva  deve  ter  legado  seu  ca- 
dáver ás  aves  do  céu.  Senhor  villico,  lende  prom- 
tas  Ires  braças  de  boa  corda  de  cànavc  de  (|uatro 
ramaes.  Que  seja  saã  e  lorte  :  não  defraudeis  por 
mesquinha  essa  pariu  da  herança  que  hoje  receberá 
o  algoz  do  caslello.  Bem  sabeis  que  por  costume 
lhe  pertencem  acorda  da  justiça  e  as  roupas  do  jus- 
tiçado ! —  Senhores  cavallciros,  breve  nos  veremos  : 
agora  se  vos  praz  podeis  relirar-vos. » 

Logo  que  se  achou  sosinho  o  conde  atirou-se  a 
uma  cadeira  d'espaldas  ,  aperlando  a  fronle  entre 
as  mãos  :  as  artérias  pulsavam-lhe  com  violência  , 
e  o  coração  agitado  por  paixões  más  ,■  e  por  temo- 
res bern  fundados  ,  balia-lhc  apressado.  Havia  na 
serie  dos  successos  daquelle  dia  e  do  antecedente 
algumas  circumstancias  ininlelligivcis,  algumas  la- 
cunas tenebrosas  que  não  podia  aclarar.  Como  es- 
capara o  Lidador  com  os  seus  vinte  acostados  e  com 
Fr.  Ililarião?  —  Alguém  favorecera  esta  fuga.  SIas 
quem?  Vinham-lhe  á  idéa  os  desejos  que  D.  There- 
za  moslrára  de  recorniliação  ,  e  as  diligencias  que 
fizera  (;arcia  Bermudcz  para  salvar  os  cavalleiros 
presos  nessa  noite,  os  quaes  clle  no  seu  furor  qui- 
zera  metler  a  cutello.  Chegou  a  desconfiar  da  rai- 
nha c  do  alferes-mór  :  e  estas  desconfianças  eram 
um  tormento  infernal.  Trahido  por  elles  ,  quem  lhe 
restava?  Se  ao  menos  podesse  dizer-lho,  pedir-lhes 
provas  da  sua  lealdade!  —  Era  uma  idéa  insensata. 
Refugiu  delia  com  horror.  A  própria  imaginação  se 
lhe  converléra  em  verdugo  impbicavel  ,  e  a  alma 
dura  e  orgulhosa  do  filho  de  Pedro  Froy la z  debatia- 
se  no  meio  dos  seus  receios  ,  como  se  em  longo  pe- 
sadello  visse  surgir  ao  redor  de  si  todos  aquelles  a 
quem  o  prendiam  mais  estreitos  laços,  converlidos 
por  leiliçaria  diabólica  em  disfarçados  mas  impla- 
cáveis inimigos.  Estas  duvidas  terríveis  se  modifi- 
cavam ,  porem,  com  a  lembrança  das  probabilida- 
des que  tinha  de  triuniphar  do  infante.  Depois  da 
victoria  elle  obteria  facilmente  do  imperador  AlTonso 
de  Leão  os  condados  de  Portugal  e  Coimbra  como 
feudos  rcaes ,  e  então  arrancando  a  mascara  de  um 
amor  que  expirara  ,  usaria  como  senhor  do  poder 
que  muitas  vezes  se  via  constrangido  a  deixar  va- 
cillante  nas  fracas  mãos  da  infanla-rainha. 

Ivo  meio  de  similhanles  reflexões  o  conde  não  se 
esquecera  do  mensageiro  caplivo.  No  seu  ódio  con- 
tra a  família  de  Riba-de-Duuro  ,  ódio  que  naquelle 
momenlo  parecia  accunnibir-sc  lodo  sobre  a  cabeça 
do  desgraçado  mancebo,  não  lho  bastava  assassinn- 
lo  :  era  preciso  ajuntar  á  morte  a  ignominia  ;  por 
isso  o  condeninava  ao  supplicio  dos  peões  e  servos. 
O  cadáver  d'Egas,  pendurado  dos  muros  do  castel- 
lo  ,  seria  uma  prova  terrivcl  de  que  entre  o  infante 
c  a  rainha  eslava  o  senhor  de  Trava  ;  e  que  a  si- 
gnificação deste  nome  era  a  de  uma  guerra  d'ex- 
tcrminio. 

Na  serie  dos  pensan)cn(os  que  em  turbilhões  pas- 
savam pelo  cs|iirilo  de  Kcrnão  Perez,  surgiu  um  te- 
nebroso e  maldito  que  fez  sorrir  o  perverso.  Era 
um  oásis  em  que  a  sua  alma,  correndo  despcada  por 
deserto  ardente  de  temores,  incertezas,  c  agonias, 
SC  reclinava  para  repousar  volupluariamente.  O  mo- 
mento de  entregar  Dulce  nos  braços  de  (larcia  Ber- 
mudcz lifilia  finalmente  chegaiio. 

Qu.u\(lo  K^-ns  entrou  na  sala  do  conselho,  onde  já 
o  allercs-mór  se  achava,  o  conde  se  confirmara  até 


certo  ponto  nas  suas  suspeitas;  —  lèra  no  gesto  de 
um  e  d'outro  que  eram  de  feito  rivaes.  A  idéa  de 
prender  a  si  o  esforçado  aragonez  ,  fazendo-lhe  ob- 
ter a  mão  de  Dulce  ,  já  não  era  a  principal  motivo 
que  obrigava  Fernão  Pcrez  a  occupar-se  de  alheios 
amores  no  meio  dos  sérios  cuidados  que  o  cerca- 
vam. Havia  nisso  mais  graves  rasões.  Cumpria-lhe 
vencer  a  resistência  de  nma  herdeira  illustre,  e  fa- 
zer callar  a  repugnância  da  rainha  diante  da  sua 
forte  Vontade.  Naqu"lla  cpocha  um  dos  privilégios 
mais  importantes,  introduzido  na  Hcspanha  pela  in- 
fluencia feudal  dos  costumes  francos  ,  tendentes  a 
auginenlar  o  poderio  dos  príncipes  e  barões,  era  o 
direito  d'escoiher  marido  para  as  orphaãs  nobres  , 
filhas  de  feudatarios  dos  seus  estados  ou  senhorios. 
Este  direito,  conhecido  na  França  pelo  nome  de 
maritagio,  estabelecido  depois  entro  nós  debaixo  da 
-denominação  de  cartas  de  casamento  ,  vigorou  ,  cs- 
lendenilo-se  ás  mesmas  orphaãs  plcbeas ,  pelo  me- 
nos alé  o  século  13.°,  postoque  fortemente  comba- 
tido pelas  cortes  ou  parlamentos.  Fernão  Perez  con- 
sidera\a-se  já  como  senhor  dos  condados  de  Portu- 
gal e  Coimbra  ,  e  por  isso  devia  impedir  aquelle 
exemplo  de  resistência  contra  um  dos  direitos  de 
maior  valia  nos  novos  costum.es  feudaes  ,  ao  passo 
que  lhe  importava  obrigar  a  rainha  a  ceder  do  pró- 
prio alvedrio  n'um  dos  affeclos  mais  profundos  do 
seu  coração  —  o  amor  que  tinha  a  Dulce  ,  a  sua  fi- 
lha adoptiva. 

A  estas  considerações  se  ajuntava  um  prazer  mes- 
quinhamente ferino  ;  e  por  isso  no  rosto  do  conde 
deslisára  sorriso  atroz.  Sc  Egas  amava  Dulce,  elle 
poilia  accrescentar-lhe  na  morte  mais  um  marty- 
rio:  SC  Dulce  amava  o  mancebo,  ella  própria  seria 
o  instrumento  desse  martyrio  ,  crendo  salvar  o  seu 
amante.  Era  um  desígnio  bárbaro  o  que  o  senhor 
Ue  Trava  formara  ;  mns  por  isso  mesmo  deleitoso 
[lara  aquella  alma  repassada  de  maldade  e  de  fel. 

llavcnd)  saboreado  por  algum  tempo  a  requinta- 
da vingança  que  traçara  contra  o  nobre  cavalleiro  , 
que,  provocado  por  uma  acção  brutal,  tão  duramen- 
te o  afirontára  ,  o  conde  de  Trava  passeou  durante 
algum  tempo  de  um  para  outro  lado  procurando  re- 
cobrar apparentctranquillidade.  Depois  encaminhan- 
do-sc  para  uma  porta  exterior  chamou  o  seu  pagem 
valido  ,  que  poucas  vezes  se  afastava  delle.  Tructe- 
ziiuio  appareceu. 

«Dirige-le  aos  aposentos  da  rainha  ,  meu  gentil 
sobrinho:  —  disse  elle  ao  pagem,  pondo-lhe  a  mão 
familiarmente  sobre  a  cabeça.  —  Preciso  de  fallar 
com  Dulce  ,  e  importa  que  seja  breve  :  mas  é  ne- 
cessário que  não  o  saiba  D.  Thereza.» 

Tructczindo  pegou  no  braço  do  tio  ,  e  levando-o 
para  uma  janella  ,  sem  dizer  palavra  ,  apontou  pa- 
ra o  jardim  pênsil  que  d'alli  se  descobria  em  gran- 
de parle.  Dulce,  assentada  á  sombra  de  um  teixo, 
tinha  na  mão  nma  saudade,  para  a  qual  olhava  sem 
pestanejar,  absorvida  em  profunda  meditação. 

«liulrão!  —  proseguiii  o  conde  rindo  —  Dizes 
(|ue  é  melhor  aquelle  logar?  —  Não  é  assim?  — 
Para  li,  gentil  pagem,  talvez  I  —  Não  para  mim 
que  já  não  trato  de  amores  ,  como  tii  que  matas  as 
lindas  donzellas  com  mil  trovas  de  queixumes.  Mas 
repara  que  para  ser  cavalleiro  importa  mais  o  jo- 
gar pontas  e  tavolado  e  encalvagar  um  ginete  que 
o  aprender  os  cantares  dos  jograes  e  dos  trovado- 
res. » 

"Oh  não,  meu  tio  csenhori  —  replicou  o  travesso 
rapaz.  —  l'elos  ossos  de  São  Cucufate,  que  com  tão 
liuas  artes  o  sanio  arcebispo   Gelmircz  furtou  de 


o  PANORAMA. 


20t 


Braga  par.i  Icvnr  a  Composlolla  ,  vos  juro  qiio  não 
pensava  d'ainores.  Mas  como  qncricis  que  eu  po- 
dasse fallar  a  Dulce  nos  aposentos  da  rainha  ,  sem 
que  ella  me  enxergasse?.  .  Aqiiclla  porta  que  vedes 
acolá — accrescentou  maliciosamente — segue-se  um 
corrcilor  escuro,  que  vai  da  salad'arnias  ao  jardim. 
Se  eu  soubesse  quem  possuia  a  chave  iria  por  alli 
chamar  DuUe. » 

«  Aillanete '.  —  continuou  o  condo  no  mesmo  tom 
de  gracejo.  —  Kssa  chave  não  sahe  deste  cinto  se- 
não para  esta  mão.  Querias  que  a  fiasse  de  ti?  Por 
Santiago,  que  não,  meu  gentil  pagem  I  —  Atraves- 
sa os  palcos  do  caslcllo;  acharás  provavelmente 
aberta  a  poria  do  jardineiro  ,\bul-[lassan.  .  .  .  Mas 
não;  —  proseguiu  depois  de  pensar  alguns  momen- 
tos.—  Melhor  ó  que  eu  vá.  Tu  cnlretanlo  vè  se  en- 
contras Garcia  Bcrmudez  ,  e  dize-llie  que  me  espe- 
re nesta  sala.  Depois  vai-le  a  folgar.  Prestes  ,  meu 
guapo  donzel ! » 

Dizendo  isto  ,  o  conde  affaslou  brandamente  Tru- 
ctezindo  ,  e  encaminhou-se  para  a  porta  que  o  pa- 
gem lhe  indicara.  Tructezindo  fcz-lhe  uma  visagera, 
de  modo  que  clle  o  não  visse  ,  e  cm  dois  pulos  sa- 
hiu  do  aposento,  dando  um  silvo  agudo  que  restru- 
giu  pelas  abobadas,  e  que  se  confundiu  com  o  som 
da  porta,  que  Fernão  Percz  ,  cutrando  no  corredor 
escuro,   cerrara  apoz  si. 

O  senhor  de  Trava  entrou  no  jardim  :  Dulce  con- 
servava-so  ainda  no  mesmo  logar  e  na  mesma  pos- 
tura. Fernão  Percz  achava-se  já  ao  pé  delia  ha- 
via alguns  instantes,  quando  esta  alcvanlando  os 
olhos  encontrou  os  do  conde  ,  qne  em  silencio  a 
contemplava  com  ar  risonho.  A  pobre  donzella  es- 
tremeceu :  a  saudade  que  tinha  na  mão  cahiu-!he 
em  terra.  Mal  pensava  a  desgraçada  que  assim  de- 
via em  breve  cahir  para  sempre  a  sua  ultima  es- 
perança de  felicidade  I 

Dulce  ergueu-se  e  ia  partir;  mas  o  conde  a  re- 
leve ,  e  fazendo-a  de  novo  assentar ,  disse-lhe  com 
brandura  : 

«Foges  de  mim  ,  donzella? — Á  fé  que  não  t'o 
mereço  eu.  Vinha  buscar-te  para  me  queixar  de 
me  leres  escondido  um  segredo  ,  cuja  revelação  te 
houvera  poupado  amarguras,  e  a  mira  um  procedi- 
mento involuntariamente  cruel.  Quiz  ainda  ha  pou- 
co constranger-te  a  dares  a  mão  d'esposa  ao  nobre 
Garcia  Bermudez,  porque  ignorava  que  amavas  um 
cavalleiro,  que  foi  meu  inimigo,  mas  que  já  o  não 
é.  Cria  que  o  teu  refusar  nascia  de  um  capricho 
infantil;  não  de  um  amor  ardente.  Agora  sei  tudo. 
Egas  Moniz  ,  o  nobre  trovador  ,  que  ha  Ires  annos 
deixou  a  terra  em  que  tu  respiravas  para  ir  colher 
louros  santos  junto  ao  sepulchro  de  Christo  ,  voltou 
a  Portugal  ,  e  hoje  entrou  nestes  paços  como  men- 
sageiro do  illustre  infante  D.  AÍTonso.  Vinha  trazer 
palavras  de  amor  e  de  paz,  e  a  paz  e  o  amor  renas- 
ceram entro  a  rainha  e  seu  filho.  Guerra,  ódios, 
tudo  acabou.  Muitos  me  accusam  de  orgulhoso  e 
inexorável;  Egas,  porem  ,  não  os  creu.  Dcclarou- 
me  o  seu  amor,  e  D.  Thereza  por  meus  rogos  lhe 
concede  a  sua  Dulce  ,  e  o  solar  dos  Bravaes.  Dis- 
seste-me  que  não  tinhas  de  mim  prestamos:  dou-te 
o  que  vale  mais.  Vamos  ,  donzella  ,  agora  o  raneor 
fora  injusto.  Dcixa-me  beijar-le  a  mão  :  é  um  rou- 
bo que  faço  ao  nobre  Egas,  mas  elle  me  perdoará. 
O  cavalleiro  neste  momento  está  com  a  rainha  ,  e 
eu  vou  couduzir-le  aos  seus  braços.  » 

De  feito,  o  conde  beijava  afTectuosamcnte  a  mão 
de  Dulce.  O  seu  gesto  era  Ião  sereno  e  alegre :  c 
as  suas  palavras  pareciam  vir  tanlo  da  alma  ;  fatia- 


va com  tanta  certeza  do  amor  de  Egas  ,  que  a  des- 
graçada cahiu  no  laco  infame  qne  Fernão  Percz  ar- 
mara. Succcssivamente  ella  empallidecèra  e  cor,'í- 
ra  ,  e  as  lagrymas  que  lhe  rebentavam  dos  olhos 
misturavam-sc  com  o  sorrir  dos  lábios  :  o  seu  cora- 
ção abri.i-se  á  felicidade  depois  de  tanto  padecer 
devorado  em  silencio ,  como  a  fiòr  açoutada  por 
noite  de  ventania  desabrocha  ao  assercnar  da  ma- 
nhaã  com  os  primeiros  raios  do  sol. 

i'Ob  que  essas  palavras  são  suaves  ;  são  para  mim 
o  céu  :  —  exclamou  Dulce.  —  Sou  eu  que  devo  lan- 
çar-me  a  vossos  pés  ,  senhor  conde  ,  beijamlo  a  ter- 
ra que  pisaes,  e  sois  vós  que  deveis  perdoar-me,  por- 
que vos  detestei  e  amaldiçoei  quando  qucrieis  unir- 
me  a  Garcia  Bcrmudez,  a  esse  nobre  cavalleiro  que 
eu  amaria  com  todo  o  amor  que  elle  merece,  se  o 
meu  coração  fosse  livre.  Era  fazer  a  minha  ventura 
que  vós  perlendieis,  e  eu  insensata  maldizia  e  odia- 
va o  meu  anjo  da  guarda,  o  meu  segundo  pae  '.  Pu- 
nir-mc-hei  ,  fazendo  a  confissão  que  mais  custa  ao 
pudor  :  —  amo  Egas  ;  elle  linha  de  mim  o  juramen- 
to de  antes  morrer  que  trahi-!o.  Ha  um  momento 
cu  tremia  ,   porque  soubera  parte  do  que  me  dizeis 

—  soubera  que  elle  estava  em  Guimarães  como  men- 
sageiro do  infante.  Era  uma  angustia  intolerável  a 
minha  :  vós  me  arrancaes  úc  um  abysmo.  » 

«Mas  tu,  minha  Dulce,  —  continuou  o  conde  no 
meí'iio  tom — não  dizes  tudo.  Hontem  á  noite  cer- 
to cavalleiro  entrou  disfarçado  cm  Guimarães.  ...» 

«Tendes  rasão  ,  senhor  conde  —  interrompeu  a 
desgraçada.  —  Aqui  neste  horto  elle  veio  jurar-me 
de  novo  o  que  me  jurara  Ires  annos  antes  ,  que 
amava  a  sua  Dulce  com  o  mesmo  amor  ardente  e 
illimitado.  Perdoar-me-ha  minha  mãe  adoptiva  ?  .  .  >> 

«E  porque  não?  —  atalhou  Fernão  Percz  —  Não 
sabe  ella  o  que  é  o  amor  de  uma  donzella  louqui- 
nha? — Áquelles  que  favoreceram  a  arriscada  ten- 
tativa de  Egas  é  que  cu  não  sei  se  cila  perdoará  ; 
porque  foi  falta  de  lealdade.  » 

"Deilar-me-bei  aos  pés  da  minha  boa  rainha  — 
acudiu  Dulce  —  para  que  perdoe  ao  pobre  .\bul- 
Hassan.  .  . » 

"  É  verdade  ....  a  AbuI-IIassan  —  interrompeu 
de  novo  o  conde  cora  alguma  hesitação  como  quem 
começa   a  achar   o  fio  de  um  labyrintho  intrincado. 

—  A  esse  ainda  será  fácil....  Fallou-me  nelle  o 
bom  Egas.  .  .  .  Mas  cavalleiros  que  devem  preito  e 
menagem  a  D.  Thereza  I  .  .  .  Gonçalo  Mendez  que 
o  seguiu  ao  arraial  de  meu  senhor  o  infante.  .  .  Em- 
fim  tu  sabes  o  resto  :  bem  vês  que  em  taes  casos , 
apesar  de  uma  reconciliação  completa.  ..." 

•  Não  sei  mais  nada.  Desde  que  Egas  partiu  igno- 
ro tudo  .  .  .  juro-vos  que  o  ignoro.  Mas  que  impor- 
ta ? — -A  rainha.  ...» 

«Demónio  I- — bradou  o  condo  mudando  repenti- 
namente de  (om  c  de  gesto  —  Que  não  possa  achar 
a  urdidura  desta  negra  léa  I  Não  sabes  mais  nada  , 
mulher? — Pois  eu  sei  de  ti  o  que  desejava!  Mise- 
rável ,  que  apenas  os  olhos  da  águia  se  cravaram 
nos  teus  ,  sem  rubor  lhe  patenteaste  a  tua  infâmia  ! 

—  Insensata  !  Creste  que  eu  podia  ter  paz  com  re- 
beldes ,  e  ouvir  pacientemente  as  amorosas  endei- 
xas  d'um  jogral  da  vil  e  detestável  raça  dos  Gas- 
tos de  Piiba-de-Douro?  Em  tudo  o  que  te  disse  ha 
uma  verdade  só.  Egas  está  em  Guimarães:  está 
em.  meu  poder  ,  e  cu  já  lhe  preparei  o  seu  leito  dft 
noivado.  —  Uma  bem  segura  ameia  da  torre  alvar- 
ran.  c  uma  boa  corda  de  cànave  de  quatro  raraaes. 
Linda  e  innocente  donzella,  amanhaã  ao  romper  da 
aha  podes  ver  o  leu  gentil  trovador:   olha  para  lá 


206 


O  PANORAMA. 


il'aqui  nresmo  ;  ahi  o  has-de  divisar  dançando  ao 
sopro  rijo  do  vento.  Quem  cauta  deve  saber  bai- 
Jar. » 

As  primeiras  palavras  do  conde  Dulce  rahíra  ful- 
minada. Mas  as  derradeiras  a  revocarara  á  vida 
com  a  imagem  de  uma  terribilissima  realidade,  co- 
mo o  réu  ,  desfallecido  no  primeiro  trato ,  se  rea- 
nima crescendo  a  intensidade  dos  tormentos.  De 
joelhos,  com  as  mãos  erguidas,  os  dentes  batiam- 
Jhe  com  força  ,  e  não  podia  dizer  nada.  Mas  o  ter- 
ror da  sua  alma  melhor  o  exprimia  o  gesto ,  que 
outra  qualquer  expressão. 

«É  a  vida  do  teu  querido  jogral  que  me  pedes! 
^ão  é  assim  ?  Pedes  ao  leão  esfaimado  do  deserto 
que  não  devore  a  zebra  que  tem  nas  garras !  Af- 
fronlou-me  ,  c  eu  pago  a  alTronta  :  rcplou-me  ,  c  eu 
acceitei  o  repto.  Morrerá  morte  infame  de  peão  cri- 
minoso !  .  .  . »  E  depois  de  uma  breve  pausa  ,  cm 
que  Dulce  o  abraçava  pelos  joelhos ,  proseguiu  :  — 
«Nobre  neta  dos  Bravaes,  não  deshonrcs  o  sangue 
«le  teus  avós  ,  arrastando-te  aos  pés  do  desprezível 
estrangeiro  !  Por  quem  sois  :  —  nobre  dama,  alevan- 
tai-vos.  I) 

«Não  peço  piedade  para  elle  —  murmurou  Dul- 
ce.—  Bem  sei  que  fora  inútil  espera-la.  Peco  a 
morte  para  mim  antes  d'elle  morrer.» 

«De  que  me  serviria  a  tua  morte? — replicou  o 
conde  depois  de  cravar  alguns  momentos  os  olhos 
naquella  fronte  pallida  ,  onde  se  pintavam  todos  os 
extremos  do  intimo  padecer.  —  Quero  que  vivas  pa- 
ra chorares  o  galante  jogral ,  e  para  com  as  luas 
lagrymas  servires  de  pranteadeira  á  mui  illustre 
rainha  ,  ;í  tua  mãe  adoptiva  ,  que  ,  espero  em  meus 
lions  cavalleiros ,  ha-de  amanhaã  ficar  orphaã  de 
.seu  filho.  )> 

«Oh,  senhor,  lerabrae-vos  de  que  ha  um  céu, 
e  que  no  céu  ha  justiça  !  Que  mal  vos  fiz  eu  !  ■ — 
3íatae-me  ,  Malae-me  !  « 

"Sei  que  ha  céu  ,  e  que  ha  justiça;  por  isso  a 
faço  na  terra.  Sei  mais :  sei  que  o  céu  é  clemente  : 
quero  sè-lo  também.  Egas  ainda  talvez  pôde  evitar 
seu  fado  :  o  leão  ainda  péide  largar  a  presa.  » 

Um  vislumbre  d'esperança  surgiu  e  desappare- 
ceu  no  rosto  demudado  de  Dulce. 

«Meu  Deus!  —  disse  cila  ,  e  depois  deixando  ca- 
hir  a  fronte  sobre  o  peito  suspirou: — «Ai,  é  ura 
pensamento  vão  I  » 

"És  tu  que  podes  restitui-lo  á  liberdade  —  pro- 
seguiu Fernão  Pcrez.  —  Da  tua  boca  pende  a  sua 
\ida  ou  a  sua  morte.  Serei  misericordioso." 

"Que  pcrtcndeis  que  eu  diga?  —  exclamou  a 
donzella  n'uraa  espécie  de  exaltação  ou  antes  de 
phrenczi ,  e  alevantando-sc  com  a  energia  do  pere- 
grino ,  que  se  arrasta  moribundo  de  sede  por  des- 
vios pedregosos  c  áridos ,  ao  ouvir  o  súbito  mur- 
múrio de  uma  fonte. — Jurar  que  vos  entregarei 
meus  feudos?  —  que  me  sepultarei  n'um  claustro? 
—  que  nunca  mais  o  verei?  —  Juro-o  mil  vezes! 
Salvac-o  ! » 

«Não  é  a  pobreza  do  dcshcrdada  ,  c  o  captiveiro 
perpetuo  de  monja  que  cu  te  peço  em  preço  da  vi- 
<la  de  Egas.  .  .  Sou  mais  generoso.  Quero  quo  vivas 
no  meio  dos  deleites  do  mundo ,  na  grandeza  de 
iiolire  dama;  quero  que  sejas  amada  por  homem 
digno  de  ti.  .  .  . » 

'iMatae-mc,  malae-me! — exclamou  a  donzella, 
^•ahindo  de  novo  aos  pés  do  conde.  A  imagem  de 
fiarcia  Bcrmudcz  alluraiára  com  a  luz  medonha  do 
raio  as  trevas  do  seu  martyrio.  O  conde  continuou  : 

«llontem  prometti  ante  a  rainha  que  tu  serias 


mulher  de  Garcia.  Esta  promessa  ha-de  cumprir-se, 
ou  tu  serás  a  assassina  daquclle  por  quem  trocas  o 
alferes-mór  de  Portugal ,  o  mais  valente  e  gentil 
cavalleiro  de  toda  a  Hespanha.» 

n  IVfas  cu  morrerei  primeiro,  senhor  conde!  — 
Tende  dó  de  uma  desventurada.» 

«Não  t'o  aconselho.  Se  morreres,  Egas  te  segui- 
rá ao  sepulchro. » 

u  E  se  Garcia  de  novo  recusar  a  posse  da  sua  vi- 
ctima?  —  interrompeu  a  infeliz,  procurando  ainda 
segurar-se  na  borda  do  abysmo. 

u  Egas  morrerá  : — respondeu  tranquillamente  Fer- 
não Perez. 

«Vós,  homem  bárbaro,  jurastes  perder  o  desgra- 
çado. Por  violência  nunca  o  generoso  Garcia  accei- 
tará  a  minha  mão. » 

«Por  violência  ?  — interrompeu  o  conde  em  tom 
d'espanto.  • — Violento-te  cu?  —  Quero  esquccer-me 
do  meu  ódio  por  amor  de  ti  :  tu  não  queres  esque- 
cer-te  de  uma  paixão  louca  e  impossível.  Eis  a  que 
tudo  SC  reduz.  Cede,  e  Egas  será  salvo.  Direi  a 
Garcia  que  te  arrependes  dos  teus  desprezos  ;  que 
queres  ser  sua.  Se  as  tuas  palavras,  se  o  teu  gesto 
não  desmentirem  meu  dito  elle  será  feliz  ;  e  Egas 
livre  ,  e  persuadido  do  que  o  trahiste,  breve  se  es- 
quecerá de  li.  Faço  a  ventura  de  três;  é  por  isso 
que  me  chamas  bárbaro?» 

Dulce  parecia  suffocada  :  o  arquejar  do  seio  da 
infeliz  soava  como  o  de  um  moribundo.  Foi  o  som 
que  se  ouviu  por  alguns  momentos  sussurrar  nos 
seus  lábios.  Finalmente  com  a  energia  da  ultima 
desesperação,  que  simula  a  tranquilidade,  disse  em 
voz  submissa  e  lenta  ,  mas  firme  : 

<(  Serei  mulher  do  Garcia  Bcrraudez.  .  Depois  !  .  .  » 

"Depois  o  que  aprouver  a  Deus  e  á  Virgem  5la- 
ri.-í  :  —  respondeu  o  conde  alçando  os  olhos  devota- 
mente ,  e  apontando  para  o  céu. 

O  malvado  sahira  com  seu  intento.  Voltou  as 
cosias  a  Dulce,  e  desappareceu  na  escuridão  do 
longo  corredor  que  dava  para  a  sala  dó  conselho  , 
e  para  a  sala  d'armas. 

Nessa  mesma  tarde  o  muito  valente  e  gentil  ca- 
valleiro Garcia  Bermudez  linha  recebido  por  sua 
mulher  de  benção  na  capella  dos  paços  de  <iuima- 
rães  a  mui  formosa  e  rica  dama  D.  Dulce  ,  senho- 
ra do  solar  e  prestamos  dos  Bravaes.  Um  banquete 
de  voda  estava  preparado  para  festejar  os  noivos. 
O  aposento  destinado  para  a  festa  se  atulhara  de 
donas,  donzellas  e  cavalleiros.  Faltava  apenas  D. 
Thcrcza  e  o  conde.  Este  finalmente  chegou,  condu- 
zindo pela  mão  a  rainha  até  cila  se  assentar  no  es- 
trado real.  Depois  o  conde  desceu,  e  veio  tomar  o 
seu  logar.  Apenas  se  assentou  ,  chamou  o  pagem 
Tructezindo ,  que  estava  cm  pé  atraz  da  sua  cadei- 
ra d'espaldar  ,  e  disse-lhe  : 

«Corre,  e  vae  perguntar  ao  villico  do  castello  se 
está  bem  segura  a  ameia  do  angulo  do  norte  na 
torre  alvarran  ,  c  se  elle  tem  puída  e  prompta  a 
boa  corda  de  cànave  de  quatro  ramaes. » 

,       ,        .....       (Conlinuar-sc-ha). 
.    ..     -      ,  (A-  lícratlano.) 


A    COniJ.V  ALVADIA. 


AssTRiCEs,  aves  noclurnas,  formam  o  ullimo  gé- 
nero dos  Ires  em  quel.inncu  dividiu  as  aves  de  ra- 
pina, comprchcndendo  os  bufos,  as  corujas,  os  mo- 
chos ,  e  a  tuidara  do  Brasil.  A  maior  de  todas  é  o 
bufo  maior,  que  terá  o  tamanho  d'um  pcrú  ;  segue- 


o  PANORAJ>IA. 


207 


SC  o  medíocre  igual  no  volume  do  corpo  a  gralha ; 
o  bulo  mais  pequeno  regula  cm  grandeza  com  o 
mocho  ordinário  :  estes  três  constituem  a  divisão  do 
género,  distinguindo-se  por  terem  na  caberá  dois 
marlinètes ,  de  que  são  desprovidas  as  corujas  bem 
como  o  mocho  pequeno,  que  entram  na  segunda  di- 
visão. Estas  aves  tem  o  bico  encurvado  era  todo  o 
comprimento  ,  a  cabeça  achatada  verticalmente  na 
parte  anterior  e  posterior ,  olhos  grandes  e  redon- 
dos ,  e  próprios  para  ver  de  noite  ,  siniilhantes  aos 
do  gato ,  quadrúpede  com  o  qual  tem  ellas  muita 
aRinidade  pela  guerra  destruidora  que  fazem  aos 
ratos  :  são  guarnecidos  os  olhos  d'um  circulo  de 
pennas  finas  e  rijas  que  lhes  dá  um  aspecto  ex- 
traordinário, ao  passo  que  serve  para  cobrir  a  gran- 
de cavidade  da  orelha  ;  os  pés  são  cubertos  de  pen- 
nugem  ,  inclusive  os  dedos,  e  destes  podem  mover 
o  externo  á  vontade ,  quer  para  traz  ,  quer  para 
diante  :  a  muita  luz  lhes  fere  os  olhos  de  modo  que 
expostas  á  claridade  do  dia  ficam  ás  vezes  immo- 
veis  c  fazendo  Iregeitos  ridículos  :  tem  as  azas  cur- 
tas e  o  voo  fraco ;  o  grito  é  lúgubre  ,  pelo  que  em 
algumas  terras  os  simples  as  consideram  de  ruim 
agouro:  todavia  os  athenienses  as  honraram  e  até 
as  deram  por  aves  estimadas  de  Jfincrva.  Quando 
apparecem  de  dia,  Iodas  as  outras,  ainda  as  peque- 
ninas ,  em  bandos  as  investem  e  insultam  :  por  ma- 
neira que  alguns  curiosos  servem-se  delias  ou  de 
figuras  que  as  imitem  ,  como  de  negara  ,  para  at- 
trahir  e  tomar  os  passarinhos.  —  A  mais  bonita  das 


/•^.^^ 


corujas  é  a  strix  flammca  ,  ou  coruja  alvadia  das 
torres ,  cujas  formas  se  mostram  na  gravura  aci- 
ma :  6  do  comprimento  de  palmo  e  meio  ;  tem  o  bi- 
co esbranquiçado  ;  o  dorso  misturado  de  cinzento  e 
ruivo  com  pequenas  malhas  pretas ,   e  no  meio  de 


cada  uma  destas  um  salpico  branco :  o  ventre  ama- 
rellado.  Acouta-se  nos  campanários  ,  torres  e  edifí- 
cios altos  c  desamparados,  o  seu  grito  é  rijo  c  agu- 
do ,  e  goza  de  ouvido  muito  subtil ,  como  todas  as 
suas  congéneres,  .\cha-se  cm  todos  os  continentes, 
inclusive  a  America  :  os  tártaros  mugóes  e  calmu- 
cos  lhe  tributam  grande  veneração ,  porque  voga 
entre  elles  que  o  seu  grande  capitão,  Gengis-Kan  , 
fugindo  n'uma  batalha  que  perdeu  ,  se  escondera 
n'um  balsedo  ,  no  qual  veio  logo  pousar  uma  coru- 
ja ;  um  troço  de  inimigos  que  batia  matto  a  procu- 
ra-lo,  vendo  naquella  mouta  uma  ave  tão  espanta- 
diça,  suppozcram  que  não  entrara  lá  gente  e  deixa- 
ram de  a  basculhar ;  salvando  tão  ténue  incidente 
a  vida  ao  celebre  guerreiro,  que  dahi  avante  usou 
sempre  de  uma  penna  de  coruja  no  barrete  ou  no 
turbante. 


Gotãnicã  illt^ica. 

Descripíão  de  rarias arvores,  arbustos,  hervas  c  phin- 
tas  medicinaes  que  existem  na  villa  de  Téte  ,  e  da 
appliearão  que  delias  fazem  os  naturaes  do  paiz 
aos  usos  meehanicos  da  vida,  e  nas  doenças  de  que 
síio  altacados. 

(Continuação  de  pay.  199.^ 

Mutengtieni: , —  era  lingua  asiática  nimo.  —  Este 
arbusto,  que  floresce  nos  mezes  de  novembro  e  de- 
zembro ,  tem  uma  pequena  Oòr  branca  e  longa  ,  a 
qual  sendo  aberta  apprcsenta  o  fructo  denominado 
—  tengueni  —  que  é  do  tamanho  de  uma  amêndoa, 
e  toma  a  cor  vermelha  quando  está  maduro  e  capaz; 
de  se  comer,  o  qual  é  liastante  acido,  e  o  óleo  que 
delle  se  extrahe  applica-se  ao  aniaciamento  de  pel- 
les  ,  e  na  arte  de  curar  a  resolver  tumores. 

O  pó  das  folhas  pisadas,  e  misturado  com  sum- 
mo  de  limão,  cura  as  chagas  inveteradas  ;  e  o  sum- 
mo  das  folhas  bebido  raatta  as  lombrigas. 

Cangóme. —  A  flor  e  o  fructo  deste  arbusto  é  co- 
mo a  do  café  de  Móka  ,  e  serve  d'alimento  aos  ne- 
gros em  tempo  de  carestia,  dando  a  este  fructo  em 
quanto  está  verde  três  ou  quatro  fervuras  ,  e  mis- 
turando-o  na  ultima  com  cinza  para  lhe  extinguir 
o  amargo. 

O  pó  da  raiz  sècca ,  ou  a  casca  fresca  ,  servem 
para  sarar  os  golpes  deilando-o  sobre  elles,  e  a  in- 
fusão da  casca  para  lavar  chagas  antigas,  applican- 
do-lhe  também  o  pó  da  mesma  raiz  para  as  fazer 
sarar. 

Canc'mbe-mtmbe.  —  Tem  a  Hór  amarella  ,  e  assc- 
melha-se  muito  á  arvore  — muxetcco —  e  não  tem 
nenhum  aroma  ;  o  fructo  é  em  vages  do  comprimen- 
to de  meio  palmo  ,  as  quaes  se  comem  quando  es- 
tão tenras;  a  infusão  da  raiz  feita  em.panella  nova 
é  muito  diurética. 

Catutiíjurú.  —  A  flor  é  amarella  claro,  e  asseme- 
Iha-se  a  umas  borlas  de  franja  ;  o  fructo  quando  es- 
tá maduro  é  da  cór  e  tamanho  do  limão  ;  a  raiz  c 
do  feitio  da  batata,  a  qual  sendo  feita  cm  bocados, 
seccando-os  ao  sol ,  e  reduzindo-os  a  po  ,  se  appli- 
ca  ao  curativo  das  bobas,  como  também  lavando-as 
com  a  infusão  da  raiz  em  quanto  fresca  ;  as  folhas 
pisadas  applicam-se  ao  curativo  de  feridas  profun- 
das por  pancadas;  e  os  suadoiros  das  folhas  cosidas 
tomados  á  cabeça  ,  curara  as  névoas  c  cataractas 
que  existirem  nos  olhos ,   e  finalmente  a  raiz  fres- 


208 


O  PANORAMA. 


ca  ,  sendo  pisada  e  espalhada  na  alagóa  ,   mala  o 
peixe  que  nella  existir. 

Tindinliava  sensitiva.  —  A  flor  fornia  primeira- 
mente um  butâo  como  uma  pinha  do  tamanho  do 
grão  de  bico ,  que  vai  abrindo  gradualmente  ,  e 
forma  um  suspiro  de  còr  bromea  ,  sendo  a  cabeça 
dos  alfinetes  de  côr  verde  desmaiada  ;  o  fructo  é 
em  vages  chatas  do  comprimento  de  duas  pollega- 
das  ,  ou  pouco  menos  ,  còr  de  rapé  e  coberto  de 
penugem  ;  encontra-se  em  ribeiros  e  beiras  de  rios, 
e  era  lhe  tocando  nas  folhas  murcham  até  oiule  che- 
ga o  tremor  do  toque.  A  raiz  é  muito  bramia  ,  c 
atada  sobre  aparte  inllammada  a  faz  desinchar; 
os  banhos  da  casca  pisada  e  cosida  applii:ani-se  á 
erisipela. 

Mulava-nlicrere.  —  O  nome  que  este  arhuslo  tem 
de  nhcrere  denota  que  é  perseguido  de  formigas. 
A  Dor  é  amarella  similhanle  á  do  (janalinho;  o  fru- 
cto é  do  tamanho  da  beringella  ,  com  a  differenra 
de  ter  quinas,  e  nasce  aos  monlões,  isto  é  uns  pou- 
cos de  pés  juntos;  o  cosimenlo  das  raizes  applica- 
do  em  banhos  semicupios  é  remédio  para  as  diar- 
rheas  ;  as  folhas  pisadas  applicam-se  ao  plcuriz,  no 
qual  operam  como  o  cáustico. 

Miitavaii-salo.  —  A  llòr  é  similhanle  ;i  da  maciei- 
ra ,  e  o  fructo  que  dá  é  muito  pequeno  e  fica  sem- 
pre acompanhado  de  folhas  ;  a  infusão  da  raiz  to- 
mada em  bochechos  é  remédio  para  as  dores  de 
dentes;  o  sueco  das  folhas  pisadas  e  misturadas  com 
agua  ,  e  tomado  diariamente ,  cura  os  padecimen- 
tos do  baço. 

Buaze.  —  As  folhas  deste  arbusto  são  miúdas,  e 
as  flores  pequenas  e  do  feitio  das  do  gerzelim  ,  e 
cheiram  a  pimenta  da  índia;  a  semente  é  propria- 
mente linhaça  em  tamanho,  còr,  e  configuração  ; 
os  negros  aproveitam-se  do  fio  que  dá  para  forma- 
rem as  suas  redes  de  caça  ,  pescaria  ,  aboizes  &c.  , 
cm  fim  é  uma  perfeita  similhança  do  linho  que  na 
Europa  se  manufactura. 

Mudia-córo.  —  Mudia  significa  «a  que  come»  co- 
ro significa  «macaco.»  —  Tem  as  folhas  brancas  pe- 
la parte  do  avesso  ,  como  se  as  tivessem  borrifado 
de  cal  ou  cinza.  Os  negros  servem-se  da  raiz  deste 
arbusto  mascando-a,  pondo-a  de  infusão,  e  seecan- 
do-a  ao  sol,  e  reduzindo-a  a  pó  para  a  misturarem 
em  pombe  [amendoada]  no  que  produz  o  elleito  das 
cantharidas  ,  tomadas  internamcnie. 

Titifili.  —  Este  arbusto  encontra-se  era  logares 
pantanosos  ,  cm  beiras  de  rios  e  riachos  ;  a  folha 
assemelha-se  á  do  carungasuro  e  é  muilo  aromáti- 
ca ,  e  delia  e  doutras  ervas  c  plantas  se  faz  cosi- 
mento  que  se  applica  em  banhos  semicupios  aos 
que  padecem  puxos,  c  o  cosimenlo  da  folha  serve 
para  suadoiros  e  obriga  a  copiosa  transpiração  ;  a 
raiz  cortada  em  bocados  e  trazida  ao  pescoço,  á 
maneira  de  conlas  ,  é  remédio  para  a  doença  ner- 
vosa de  sobresallos  ,  devendo  lambera  para  maior 
eíficacia  defumar  o  quarto  de  dormir  cora  a  raiz 
e  folhas  do  mesmo  arbusto. 

Capande.  —  A  fiòr  é  miúda  e  tirante  a  roxo,  a 
semente  é  do  tamanho  de  ginja  e  similhanle  á  fru- 
cla  da  arvore  mnlurara.  —  Os  cafres  applicam  este 
arbusto  ao  moavi  [juramento  ou  prova  judicial  en- 
tre clles]  preparado  da  maneira  do  jjoóo  ,  que  lam- 
bera é  moavi  entre  clles  [torno  já  dissemos].  O  chá 
da  raiz  applica-se  á  febre  denominada  itáca  ,  por- 
que faz  transpirar  bastante  ,  com  o  que  declina  a 
febre  c  se  evita  o  perigo  ;  o  pó  da  raiz  sècca  ao  sol 
e  tomado  lomo  tabaco  alivia  o  maior  defluxo,  por- 
que íaz  espirrar  muito. 


Enlaça. — É  o  mesmo  que  o  capande  que  acabá- 
mos de  descrever ,  tem  as  mesmas  virtudes,  e  pro- 
duz os  mesmos  efleitos. 

Canmyasuro.  —  Esta  herva  tem  a  flor  amarella  e 
similhanle  á  da  macella  ,  o  cosimenlo  delia  appli- 
ca-se em  suadoiros  e  banhos  semicupios  aos  que  pa- 
decem puxos,  e  niisturando-o  cora  a  erva  cacici  ou 
cscnrcioncira ,  e  com  as  raizes  do  arbusto  capande, 
e  tomando  delle  um  suadoiro  melhora-se  da  febre. 

( Conlinuar-se-ha) . 


Opinião  de  Frayildin  sobre  o  duelo.  ■ —  Este  varão 
respeitável  diz  n'uma  carta  a  um  seu  amigo  que  se 
espanta  de  haver  quem  no  meio  das  misérias  e  er- 
ros humanos  conservo  tamanha  soberba  e  vaidade 
que  presuma  digna  de  morte  qualquer  offcnsa  con- 
tra o  seu  pundonor.  —  E  accrescenta  que  estes  pe- 
queninos lyrannos  não  duvidariam  dar  o  nome  de 
lyranno  ao  príncipe  que  mandasse  impor  a  pena  ca- 
pital a  alguém  por  ditos  menos  respeitosos  acerca 
de  sua  jicssoa  e  soberania  ;  ao  passo  que  por  inex- 
plicável conlradicção  não  duvidam  conslittiirera-se 
juizes  era  causa  própria  ,  condcmnnrcm  o  adversá- 
rio scra  processo  nem  jurado,  e  o  que  mais  é  que- 
rerem ser  elles  os  algozes. — 


A  consciência  é  um  monitor  que  ergue  a  voz  do 
peito  do  homem  ,  e  como  testemunha  o  aecusa  ou 
justifica  perante  o  Creador.  Tanto  o  que  se  confor- 
raa  com  este  guia  ,  como  o  que  rejeita  as  suas  ad- 
vertências ,  se  vêem  obrigados  a  reconhecer-lhe  o 
poder  :  e  quer  o  bom  se  regozije  com  a  perspectiva 
da  imraortalidade  ,  quer  a  victima  do  remorso  es- 
mrreça  sob  essa  influencia  invisível  e  se  atemoríse 
antecipadamente  da  conta  futura  ,  ambos  cedem  ao 
peso  de  uma  convicção  [tal  como  nenhum  argumen- 
to é  capaz  Je  produzir]  de  que  a  essência  principal 
do  ente  humano  é  dislincla  do  corpo  ,  e  sobrevivirá 
scra  diminuição  de  vigor  quando  o  corpo  jazer  já 
desfeito.  —  Abercromhie. 


Tempo  da  laclacuo. —  Por  dilatado  periodo  foi  cos- 
tume em  Ilespanha  ammamentar  as  creanças  dois 
annos  inteiros;  lalvcz  que  os  sarracenos  o  deixas- 
sem ,  porque  o  alcorão  ordena  ás  mães  dar  o  peito 
a  seus  filhos  durante  dois  annos  completos ,  se  por 
tanto  tempo  elles  o  quizerem  tomar.  —  O  nosso  D. 
João  3.°  só  deixou  de  mamar  aos  Ires  annos  e  meio 
de  idade,  e  foi  porque  elle  assim  quiz.  —  Também 
refere  Southey  ( Uone  otiosiorcs)  que  no  século  des- 
te raonarcha  era  uso  em  muila  parte  da  Alemanha 
desmamar  as  creanças  logo  ao  primeiro  mez  ,  ali- 
menlando-as  dahi  por  diante  a  leite  de  vacca  minis- 
trado por  um  funil  de  pau  ;  de  Ires  cm  trcs  dias  as 
banhavam  em  agua  quente. 


CORRECÇÕES. 

No  Panorama  N."  71  artigo  —  Economia  Politica 
—  pag.  138,  col.  2.',  lin.  23,  onde  se  lè  5000  rs. 
=  lèa-sc  50000  rs.  =  na  lin.  31  ,  onde  se  lè  = 
7S0O  contos  =  lèa-ser=  5500  contos  =  na  lin.  34, 
onde  se  lè  =  excede  =  lca-se  =  aproxima  =  na  lin. 
37,  onde  se  lè=:  75000  =:lca-sc  =  55000. 

N."  58.  —  Por  noticia  menos  exacta  ,  dissemos  a 
pag.  33  que  d'Aniarantc  a  Enlre-ambos-os-rios  iam 
diiaslcguas:  ura  nosso assignante  daquclla  villa  nos 
informa  que  a  distancia  é  de  cinco  léguas  estiradas. 


80 


o  PANORAJLA.. 


209 


TATIBA. 


A  CIDADE  de  Tavira  é  das  mais  agradáveis  povoa- 
ções do  Algarve  pela  belleza  da  sua  siluação  :  uma 
formosa  ponte  de  cantaria  e  de  sete  arcos  dá  com- 
municação  entre  as  duas  partes  em  que  a  divide  o 
pequeno  rio  Aceca  :  na  margem  direita  deste  liça 
uma  vistosa  praça  rectangular  ennobrccida  pelos 
paços  do  concelho  cujo  frontispicio  assenta  sobre  a 
bella  arcada  de  cantaria,  na  qual  e  na  praça  se  faz 
diariamente  abundante  mercado:  n'um  angulo  da- 
quella  existe  embutida  a  figura  da  cabeça  de  um 
homem  ,  feita  de  pedra  ,  e  que  a  tradição  diz  re- 
presentar o  esforçado  D.  Paio  Peres  Correia  ,  que 
tomou  aos  mouros  esta  cidade  ,  reinando  D.  San- 
cho 2.° 

Tavira  offerece  linda  perspectiva  a  quem  a  con- 
templa entrando  pelo  rio  :  para  qualquer  dos  lados 
se  descobrem  fazendas  de  vinhas  e  arvoredos  ,  al- 
vejando por  entre  ellas  os  casaes  branqueados  ,  e 
notando-se  os  vários  cursos  dos  regatos  .  que  lhes 
prestam  frescura  e  fertilidade  ;  vèera-se  na  margem 
as  marinhas  ,  choças  de  pescadores  ,  e  moinhos  ,  e 
áquem  e  alem  da  ponte  os  edificios  da  cidade  bem 
caiados  fazendo  contraste  com  os  seus  quintaes  es- 
paçosos cheios  de  verdura  :  fecha  o  horisonte  a  ser- 
ra coberta  de  arvores  de  folhagem  perenne  ,  como 
alfarrobeiras  ,  oliveiras  e  medronheiros  ,  a  par  das 
figueiras ,  amendoeiras  e  cepas ,  que  matizam  a 
paizagem  nas  estações  próprias,  juntamente  com  as 
searas  e  os  prados  viçosos. 

São  duas  as  freguezias ,  comprehendendo  acima 
de  cinco  mil  habitantes  :  a  de  Santa  Maria  que  fo- 
ra mesquita  de  mouros ,  benta  e  dedicada  ao  No- 
me da  Virgem  ,  logo  immediatamente  á  conquista , 
encerra  o  precioso  deposito  dos  ossos  do  conquista- 
dor ,  D.  Paio  ,  que  jazem  ao  lado  do  evangelho  do 
altar  maior,  sendo  para  ahi  transportados,  por  sua 
ultima  disposição  ,  do  convento  de  Velez  ,  cabeça 
do  mestrado  da  Ordem  de  S.  Thiaeo  ,  onde  falle- 

Jii.HO  8— 184S. 


I  cera.  Da  parte  da  epistola  do  mesmo  altar  vè-se 
uma  lapide  na  parede  cora  sete  cruzes  avermelha- 
'  das ;  indica  o  local  da  sepultura  honorifica  ,  que 
j  o  mesmo  D.  Paio  mandou  dar  aos  cavalleiros ,  que 
durante  a  trégua  pereceram  traiçoeiramente  ás  mãos 
dos  mauros ,  não  sem  venderem  caras  as  vidas  , 
quando  confiados  no  armislicio  sahiram  de  Cacella 
para  o  divertimento  da  caça.  Foi  esta  perfidia  a  cau- 
sal para  o  accommettimento  de  Tavira  ,  que  veio  a 
cahir  para  sempre  em  mãos  dos  cavalleiros  da  fé 
christaã.  O  templo  de  Santa  Maria  ,  não  obstan- 
te os  estragos  do  terremoto  de  1755  ,  ainda  na  ca- 
pella-mór ,  que  permaneceu  illesa ,  testemunha  a 
primitiva  construcção  gothica :  reconstruido  pelo 
bispo  D.  Francisco  Gomes  ,  ao  estylo  moderno  ,  é 
actualmente  uma  igreja  espaçosa  de  três  naves,  e 
que  recebe  bastante  luz.  —  Na  parochia  de  S.  Tia- 
go ha  para  notar  a  capella  do  Sacramento  em  rasuu 
das  pinturas  e  ornato.  —  .\a  capella  dos  terceiros 
do  Carmo  ,  cdificio  particular  da  ordem  ,  ha  boas 
pinturas  do  painel  do  Rasquinho.  Nas  outras  igre- 
jas não  ha  que  mencionar-se  ,  á  excepção  de  que 
110  mui  antigo  convento  de  franciscanos  os  respe- 
ctivos irmãos  terceiros  tem  sua  capella  aformoseada 
com  mármores  pretos  ,  extrahidos  do  serro  do  Ca- 
vaco ,  visinhanças  de  Tavira.  O  mosteiro  de  reli- 
giosas de  S.  Bernardo  é  situado  extramuros  e  n'uni 
vasto  rocio ,  que  facilita  aos  habitantes  da  cidade 
ameno  passeio  ,  donde  se  desfructa  a  vista  de  mar 
e  da  variada  paizagem  circumvisinba.  O  hospital  a 
que  chamam  de  S.  José  tem  de  rendimento  Ires 
contos  de  réis  ,  e  a  casa  da  Misericórdia  perto  de 
um  conto  de  réis  :  os  seus  edificios  não  offereceiu 
incentivos  á  curiosidade.  —  Esta  cidade  goza  a  mui 
apreciável  vantagem  de  possuir  abundância  d'aguas. 
Os  géneros  produzidos  pela  agricultura  do  con- 
celho de  Tavira  são  em  geral  de  boa  qualidade  : 
dá  este  território  bastante  vinho  ,   que  é  o  melhor 

2."  Serie.  — VoL.  U. 


210 


O  PANORA3IA. 


do  Algarve  ,  c  abundância  de  azeite  ,  cujo  fabrico 
muito  importa  melhorar  ,  pois  que  estú  sendo  obje- 
cto attcndivcl  d'exportação ;  nos  annos  de  boa  co- 
lheita d'azcitona  sahem  dos  27  lagares  do  concelho 
para  cima  de  setenta  mil  almudes  ,  que  não  só  se 
consomem  nos  outros  districtos  do  Algarve  e  no  bai- 
xo Alemtejo  ,  como  lambem  se  exportam  para  Gi- 
braltar ,  porto  que  também  daqui  recebe  muita  e 
boa  alfarroba  ,  a  qual  c  igualmente  procurada  por 
embarcações  de  Catalunha  e  da  Sardenha  ,  tendo 
chegado  a  vender-se  a  mil  réis  o  sacco.  Os  outros 
géneros  são  ,  amêndoa  ,  figo  ,  rezinas  ,  cera  ,  mel , 
e  feixes  de  canna  ,  que  se  exportam  para  Inglater- 
ra e  Paizes-Baixos  :  alem  destes  merece  especial 
menção  a  graã  de  carrasco,  ou  kermes  (»)  tão  pre- 
ciosa na  tinturaria  e  que  obtém  aqui  bom  preço  , 
vcndcndo-se  para  Gibraltar,  onde  a  vem  tomar  em- 
liarcações  de  Génova  ,  Liorne ,  Marselha  e  outros 
portos.  Este  producto  do  nosso  paiz,  que  não  apro- 
veitámos é  como  se  acaba  dever  tão  procurado  pe- 
los estrangeiros  :  só  no  anno  de  1836  se  despacha- 
ram, para  exportação,  na  alfandega  de  Tavira  1430 
arrobas  desta  droga  ,  havendo  quem  presuma  que 
íalvez  outro  tanto  sahisse  (irado  por  alto. 

Nos  contornos  da  cidade  ha  bellas  quintas ,  po- 
voadas de  arvoredo  fructifero  ;  e  os  pomos  são  de 
cxcellente  qualidade.  Postoque  o  terreno  crie  boas 
searas,  comludo  não  são  quantas  eram  precisas  para 
abastecer  de  cereaes  os  habitantes  do  concelho,  que 
^'ão  buscar  o  supprimcnlo  de  trigos  ao  baixo  Alem- 
tejo cm  retorno  do  azeite  da  própria  lavra ,  que 
para  essa  província  transport.im. 

As  pescarias  ,  assim  de  peixe  mindo  ,  como  de 
atum  e  outro  peixe  grosso  ,  foram  aqui  de  grande 
monta  ;  mas  progressivamente  tem  chegado  a  mui- 
ta decadência.  O  porto  admittia  outrora  navios  de 
alto  bordo  ,  e  íloreceu  em  commercio  ,  como  pode 
ajuizar-se  das  providencias  tomadas  em  cortes,  e 
das  isenções  e  regalias  concedidas  pelos  nossos  mo- 
iiarchas ,  que  vem  citadas  na  Corographia  do  Al- 
garve pag.  367  e  scgg.  —  Na  allcgação  que  pelos 
annos  de  1662  c  1GG3  fez  por  parte  dos  habitantes 
a  Comarca  de  Tavira  para  obter  feira  franca  no  1 .° 
de  outubro  [perlenção  que  os  de  Faro  impugna- 
vam] entre  os  serviços  provados  com  documentos  , 
que  se  apontavam  ,  vinham  como  principacs  os  se- 
guintes:—  ((Que  á  custa  dos  moradores  desta  ci- 
dade, então  opulenta,  foi  a  maior  parle  do  soccor- 
TO  mandado  á  praça  de  Mazagão  :  e  com  effeito  por 
occasião  do  cerco  desta  em  1576  c  do  de  Arzilla 
cm  151G  tinham  elles  feito  assignalados  serviços. 
—  Que  alli  invcrnavam  as  galés  de  Portugal,  e 
dalli  sabiam  com  gente  e  munições  a  tomar  ou  afu- 
gentar os  mouros  e  oulros  piratas  que  infestavam  a 
costa.  —  Que  soccorreram  Faro,  quando  os  ingle- 
ses lhe  pozeram  fogo  ,  e  obrigaram  estes  a  embar- 
car ,  conseguindo  que  a  cidade  não  fosse  inleira- 
menle  incendiada.  —  Que  Tavira  cm  mais  antigos 
tempos  fora  tão  rica  e  populosa  que  possuia  mais 
de  70  embarcações  ,  sem  fallar  nos  barcos  e  artes 
de  pescaria  :  gozava  então  de  feira  franca,  isenta  do 
jnuitos  direitos  d'alfandega,  em  lodos  os  trps  mezcs 
de  setembro  ,  outubro  e  novembro.»  —  Vários  e 
importantes  privilégios,  qnc  por  brevidade  omilti- 
mos,  lhes  foram  em  diflcrentes  dnlas  concedidos. — 
j\s  armas  da  cidade  constam  d'uma  ponte  com  dois 
cas^cUos  e  um  navio  á  vela  por  baixo  da  ponte. 

(•)  Viil.  .1  respeito  da  jfrari  do  c.-iirasco  o  art.°  inserto 
a  pa^'.  2;í.í  do  1,"  vol.  desle  Jornal ,  c  o  adJitamciito  a 
pag.  53  do  2." 


EOIOlTCMIii.  rOLi:?ICll.. 

Considerações  sobre  o  Cttrso  d' Economia  Politica  do 
Sr.  Miguel  Chevalicr. 

VII. 

Sendo,  na  nossa  situação  pelo  menos,  preferível  vin- 
cular os  capitães  ao  paiz  ao  deixa-los  andar  vagos 
por  estranhos ,  ou  bemfeitorisando  emprezas  que 
não  são  nossas  ,  e  sendo  o  estabelecimento  das  fa- 
bricas ura  expediente  aposto  a  recolhe-los  ao  gré- 
mio da  nação ,  facilitá-lo  é  de  bom  conselho  ,  c  da 
mais  acertada  economia  publica.  Aspirar  a  produ- 
zir tudo  é  aspirar  a  um  absurdo  :  c  querer  dispen- 
sar-nos  absolutamente  de  commcrciar  com  outras 
nações  :  e  a  certos  respeitos  é  quasi  prctenção  a 
natnralisar  por  meio  de  estufas  productos  exóticos 
e  repugnantes  ao  clima  :  é  violentar  a  natureza  , 
não  é  ajudá-la  da  arte.  Ao  mesmo  passo  que  outros 
productos,  e  outras  fabricas  se  podem  gradualmen- 
te levar  á  perfeição  dos  paizes  mais  industriosos  , 
obrigando  o  consumidor  nacional  a  um  sacrifício  tem- 
porário ou  a  um  tributo  Ião  útil,  n'este  caso,  como 
o  que  se  lhe  impõe  para  construir  uma  boa  estrada. 
Mas  este  meio  indirecto  que  tem  por  fim  arredar  da 
concurrencia  no  mercado  nacional  a  alguns  artefa- 
ctos estrangeiros  para  que  os  do  reino  possam  ter 
extracção  n'elle,  e  a  extracção  possa  contribuir  pa- 
ra o  progressivo  adiantamento  das  fabricas  portu- 
gnezas  ,  é  inefiicaz  e  não  produz  resultados  sólidos 
e  duradouros,  se  outros  meios  quacs  são  os  instru- 
mentos directos  e  os  únicos,  se  pôde  dizer,  do  aper- 
feiçoamento industrial,  o  não  acompanhara.  Não  pre- 
ciso mencioná-los  ,  porque  muitos  de  nossos  fabri- 
cantes dão  testemunho  de  que  os  conhecem  c  apre- 
ciara bera ,  lestcmunho  patente  cm  seus  estabeleci- 
mentos. 

Outros  instrumentos  ha  todavia  cuja  formação  ex- 
cede as  faculdades  dos  particulares,  e  só  cabe  ou 
nas  atlribuições  dos  poderes  políticos  do  Estado,  ou 
nos  recursos  de  que  dispõe  a  administração  central; 
e  um  d'elles  são  as  vias  de  communicação  ,  sem  as 
quaes  é  impraticável  progresso  que  valha  c  perma- 
neça cm  qualquer  ramo  do  industria;  na  agricultu- 
ra ,  por  os  seus  artigos  serem  os  mais  pesados  de 
lodos,  e  os  mais  dilTiceis  de  transporlar  ;  na  indus- 
tria fabril  ,  para  que  aquellas  de  suas  ollicinas  que 
estão  muito  alongadas  das  grandes  povoações,  se 
approximem  d'ellas  pela  execllencia  das  estradas  : 
no  commercio,  por  fim,  que  não  llorece  senão  on- 
de as  conducções  sãoexpeditissimas  ;  o  externo  i)ro- 
curando  a  orla  marítima  ;  o  outro  os  mais  rápidos 
vehiculos  do  interior. 

Na  ordem  e  successão  natural  das  industrias  ,  é 
a  primeira  aque  alimenta  o  homem:  acaça,  a  pes- 
ca, o  pastorar,  a  agricultura.  A  segunda  a  que  lhe 
ministra  commodo,  vestidos,  habitação  ,  utensílios  : 
a  industria  fabril.  E  a  terceira  ,  a  que  presuppon- 
do  maior  adianlainento  ,  e  já  salisleilas  as  necessi- 
dades mais  essenciaes  ,  procura  contentar  os  dese- 
jos c  necessidades  factícias  ,  indo  buscar  os  produ- 
ctos exóticos  em  troca  dos  indígenas  —  o  commer- 
cio externo.  .\  historia  mostra,  comtudo  ,  que  cau- 
sas estranhas  tom  invertido  ,  mais  ou  menos  ,  esta 
ordem,  c  nós  mesmos  somos  exemplo  de  símilhante 
alteração.  Mas  a|ienas  um  povo  sabe  do  estado  sel- 
vagem e  enira  no  civilisado,  c  complelamenle  ocio- 
so indagar  qual  industria  ba-dc  adoptar ,  porque 
precisa  de  todas  ,  o  de  aproveitar  a  cada  uma  cm 
maior  ou  menor  amplitude.  A  divisão  da  industria  em 


o  PANORAIUA. 


211 


três  classes  foi  dictada  pela  conveniência  do  mclho- 
do,  porque  as  operações  productivas  do  homem  so- 
bre a  maleria  limitam-se  ,  essencialmente  ,  a  duas 
únicas  que  são  —  mudar-lhe  a  fúrma ,  o  mudá-la 
de  logar  —  fabricar,  e  commerciar.  Na  realidade  a 
agricultura  não  é  senão  uma  fabrica;  e  a  industria 
não  é  senão  fabril  e  coraniercial.  fíào  se  differen- 
çando  pois  da  fabril  a  industria  agricola  pela  natu- 
reza do  trabalho  que  ambas  exigem,  que  é  absolu- 
tamente similhanle  n'uma  en'oulra,  ililTcrcncam-sc. 
comtudo,  pela  constituição  orgânica  do  homem,  que 
tendo  estômago  capaz  somente  de  certa  quantida- 
de de  alimento  ,  producto  da  industria  agricola  , 
não  tem  ao  contrario  limite  em  seus  desejos  e  ap- 
petites  ,  no  que  pertence  a  commodos  ,  a  vestuário  , 
a  raobilia,  a  adornos,  a  casas  de  habitação,  a  luxo, 
o  a  quanto  são  artigos  da  outra  industria  a  que  a 
sciencia  poz  nome  =  fabril.  Tendo  pois  um  termo 
na  saciedade  a  vontade  de  comer  ,  e  até  a  gula  de 
Vilellio  ;  o  desejo  de  possuir  e  ostentar  é  iniinito  e 
insaciável :  phenomeno  da  nossa  natureza  ,  ao  qual 
parece  quiz  amoldar-se  a  producção  agricola,  ou 
dos  alimentos  ,  sendo  muito  menos  prolífico  o  seu 
poder  que  o  das  artes ,  cujos  productos  se  multi- 
plicam sem  termo. 

Esta  diflerença  porem  ,  nascida  da  natureza  múl- 
tipla do  nosso  ser  ,  longe  de  tornar  adversos  entre 
si  os  interesses  das  duas  industrias ,  torna-os  mú- 
tuos e  estreitamente  dependentes  uns  dos  outros  ; 
porque  ao  lavrador,  á  medida  que  a  sua  cultura  pros- 
pera, sobejam  mais  productos,  que  depois  de  satis- 
feita a  necessidade  de  nutrir-se  ,  possa  destinar  ao 
coramodo,  trocando-os  por  artigos  das  artes  fabris  ; 
e  os  fabricantes,  pela  sua  parte  ,  não  podem  multi- 
plicar-se  senão  ao  passo  que  crescem  os  alimentos, 
ou  a  agricultura  que  os  gera  ;  em  quanto ,  por  ou- 
tro lado  ,  os  progressos  da  agricultura  ,  e  a  abas- 
tança da  classe  occupada  nos  trabalhos  ruraes , 
fornecendo  ,  segundo  advertimos  ,  um  sobejo  a  esta 
classe  ,  asseguram  com  elle  ás  fabricas  aquella  fre- 
guezia  e  consumo  que  estas  não  dispensara.  Dimi- 
nuindo o  consumo,  diminuem  os  lucros  que  ellas 
dão,  e  faltando  ou  diminuindo  demasiadamente,  não 
podem  as  fabricas  continuar.  E  demais  da  necessi- 
dade de  alimentos  ,  e  de  commodos  ,  a  de  matérias 
primas  ,  que  são  a  base  dos  artefactos ,  põem  em 
correspondência  c  intimidade  os  interesses  das  duas 
industrias.  ' 

Na  presença  de  verdades  tão  simples  e  elementa- 
res como  estas  ,  ainda  haverá  quem  se  atreva  a  ne- 
gar que  um  paiz  como  o  nosso  ,  cuja  principal  in- 
dustria é  a  agricultura,  precisa  de  fabricas  para  de- 
senvolvè-la?  Os  princípios  que  deixámos  registados 
não  são  theorias  cerebrinas,  são  a  historia,  o  resul- 
tado, a  expressão  ultima  dos  factos:  mas  se  a  es- 
tes unicamente  se  dá  credito,  vamos  busca-los  a  In- 
glaterra, onde  acharemos  ,  que  as  fabricas  tem  alli 
causado  um  augmento  deoO  por  cento  á  proprieda- 
de rural ,  como  confirmam  observações  repetidas  : 
tanto  esta  depende  das  fabricas.  E  virando  o  rever- 
so á  medalha  mostrar-nos-ha  aquelie  mesmo  paiz  que 
a  miséria  dos  fabricantes  ,  e  estagnação  dos  produ- 
ctos fabris  ,  é  devida  á  acanhada  área  da  cultura  , 
acanhada  para  população  tão  numerosa ,  e  circums- 
cripta  pelos  limites  do  território  :  tanto  as  fabricas 
dependera  da  agricultura.  Se  me  disserem  que  não 
é  á  pouca  extensão  do  solo  ,  mas  aos  direitos  sobre 
o  trigo  estrangeiro  que  os  inglczes  accusam  da  cri- 
se que  os  afflíge  :  respondo  que  por  serem  insufli- 
cientes  para  o  consumo  da  população  os  seus  terre- 


nos aráveis  c  que  elles  querem  abrir  a  porta  ao  gé- 
nero dos  alheios  ;  pois  se  os  próprios  lhes  bastas- 
sem os  grangeariani  sem  recorrer  aos  estranhos.  A 
sua  cultura  é  perfeita  como  nenhuma  no  continen- 
te ,  e  onde  o  céu  e  a  terra  lhe  são  irapropicios  , 
com  quanta  arlc  não  procuram  remediar  esse  des- 
favor? capitães,  amanhos,  methodos  ,  machinas  , 
tudo  empregara ,  não  lhe  escapando  expediente , 
nem  poupando  fadiga  para  tirar  o  maior  partido 
que  podem,  do  solo.  E  apesar  de  tantos  esforços 
qucixam-se  de  que  o  seu  trigo  lhes  não  chega  para 
o  consumo  interno  ,  e  de  que  sobre  ser  pouco  ,  é 
demasiado  caro!  Mas  estes  queixumes  são  uma  li- 
ção para  nós  ,  uma  profunda  lição  que  não  deve- 
mos perder  ;  porque  significam  e  demonstram  que 
nos  paizes  onde  ha  muitas  fabricas  ,  como  no  seu  , 
os  productos  agrícolas  encontram  sempre  no  mer- 
cado domestico  uma  extracção  prorapla  e  fácil  ; 
porque  significam  e  demonstram  que  se  onde  as  fa- 
bricas são  muitas,  e  a  agricultura  pouca  era  pro- 
porção delias,  as  primeiras  se  arruinara,  como  sue- 
cede  ás  inglezas,  pela  escacez  e  a  carestia  do  tri- 
go; naquelles  paizes  onde  a  industria  fabril  está 
muito  menos  desenvolvida  do  que  a  agricola  ,  e  a 
agricola  promette  ,  pela  virtude  do  solo  ,  a  bonda- 
de do  clima  ,  e  a  grande  extensão  das  terras  ainda 
incultas  ,  como  promette  a  nossa  ,  muitos  progres- 
sos ulteriores  ,  o  melhor  modo  de  os  promover  é  a 
propagação  e  aperfeiçoamento  das  fabricas  nacio- 
naes. 

Se  não  é  licito  duvidar  que  estas  concorrem  ef- 
ficazmente  para  o  adiantamento  da  agricultura  ,  não 
é  menos  certo  que  o  adiantamento  da  agricultu- 
ra contribuo  muito  para  o  progresso  das  fabricas  ; 
e  tanto  ,  que  uma  das  mais  poderosas  rasões  por- 
que ellas  nunca  chegaram  a  adquirir  certa  consis- 
tência e  perfeição  entre  nós  foi  a  escacez  de  ce- 
reaes  que  nos  obrigava  a  tira-los  em  grande  copia 
de  paizes  estrangeiros.  Este  deficit ,  e  tão  conside- 
rável como  era,  no  alimento,  obstava  á  multiplica- 
ção das  classes  fabris  ,  e  combatia  a  sua  industria 
por  dois  modos  ,  cada  um  per  si  só  bastante  a  an- 
niquila-la  ;  a  um  tempo  privando  em  parte  os  arte- 
factos nacionaes  de  ura  elemento  de  troca  no  mer- 
cado domestico  tão  importante  como  o  pão  ,  e  esta- 
belecendo á  medida  que  cllcs  se  fossem  multipli- 
cando uraa  progressão  permanente  na  baixa  do  seu 
preço,  comparado  com  o  do  trigo.  Similhante  bai- 
xa ,  que  seria  uma  vantagem  quando  originada  dos 
progressos  industriaes,  era  grave  damno,  tendo  por 
origem  a  decadência  de  uma  industria,  qual  a  agri- 
cultura. Podéra  então  ,  com  verdade  ,  dizer-se  de 
nós  —  quanto  mais  roupa  ,  menos  pão  —  porque,  de 
feito  ,  quanto  mais  crescesse  o  fabrico  delia  ,  tanto 
maior  quantidade  da  mesma  seria  preciso  dar  por 
uma  certa  medida  de  trigo.  Haveria  lavradores  mais 
bera  vestidos  ;  mas  fabricantes  esfomeados  :  e  a  mi- 
séria a  que  condemnariam  os  trabalhos  das  fabri- 
cas em  brcíe  as  deixaria  desertas. 

(Continuar-se-ha.^ 
A.  d'0.  Marreca. 


Segunda  victoria  de  Duarte  Pacheco. 

Ardendo  o  Çaraorim  em  ira  e  em  desejos  de  vingan- 
ça, veiosegunda  vez  contra  elrei  deCochim,  noannn 
de  lo()4  ,  com  poderosa  mão  por  mar  e  terra  ,  in- 
tentando passar  o  rio  que  divide  aquelie  reino  di' 
de  Calicut.  Procurou  a  passagem  por  muitas  par- 


21â 


O  PANORAMA. 


tes  ,  para  que  na  divisão  achasse  menos  íorle  a  re- 
sistência. Sahiu-lhc  Duarte  Pacheco  com  os  seus 
cento  e  cincoenta  porluguezcs,  divididos  também 
por  mar  e  terra  .  e  obrando  proezas  que  excedem 
todo  o  credito,  romperam  os  inimigos  e  os  fizeram 
nesle  dia  voltar  destroçados,  com  perda  de  mais 
de  seiscentos  e  cincoenta.  Viu-so  porem  em  gran- 
de aperto  ,  porque  os  vassallos  d'elrci  de  Cochim  , 
(jue  o  acompanhavam  iiaquella  guerra  .  o  desampa- 
raram no  maior  ardor  do  cunllicto.  K  faltando-lhe 
pólvora  o  não  soccorria  com  ella  o  principe  do  f,o- 
chim  ,  postoque  o  avisou,  tendo  a  culpa  quem  le- 
vou o  aviso  que  astuciosamente  lh'o  deixou  de  dar. 
Mas  tudo  suppriu  o  destemido  valor  e  prudente  rc- 
solnção  daquelle  insigne  e  famosissimo  heroe.  Cres- 


ceu no  (Jamorim  o  temor ,  c  nas  azas  delle  se  reti- 
rou velozmente  ao  abrigo  de  um  palmar,  aonde  cer- 
cado dos  seus  ,  os  alcançou  uma  baila  que  matou 
nove,  que  juntos  lhe  cahirani  aos  pés,  e  pouco  de- 
pois lhes  sobreveio  um  contagio  que  levou  seis  mil. 
Os  seus  feiticeiros  lhe  haviam  prognosticado  victo- 
ria  ,  e  cllo  agora  cheio  de  indignarão  ,  por  se  ter 
vencido,  os  mandava  matar.  Mas  tiveram  arte  pa- 
ra lhe  introduzirem  outra  patranha,  dizendo:  — 
que  aquclles  maus  successos  eram  eíTeito  de  indi- 
gnação dos  seus  deuses  ,  por  elle  não  haver  satis- 
feito um  voto  que  lhes  fizera  de  edificar  cm  seu 
obsequio  um  novo  pagode.  (•) 

(Ann.  Uist.) 


(•)     Vid.  Vol.  5.°  da  2.»  Serie  do  Panorama  pag.  188. 


'^vxvít*!%L^t^^i^^-ll 


os  GAMOS. 


Estes  formosos  animaes  são  e'specie  de  veação  man- 
tida em  parques  ou  tapadas ,  donde  por  vezes  e 
n'alguns  sitios  fugiram  indo  depois  propagar  em 
maltas  abertas. 

O  macho  é  armado  de  galhos  que  a  fêmea  não 
tem,  os  quaes  muda  annualmente  ;  costumara  ca- 
hir-lhe  do  nieiado  d'abril  até  principies  de  maio, 
e  já  em  setembro  estão  em  parte  regenerados  :  a  fê- 
mea pelo  commum  pare  pelos  fins  de  maio  ou  nos 
primeiros  dias  de  junho.  —  As  caçadas  de  veação, 
principal  divertimento  da  nobreza  na  idade  media, 
tem  pouco  a  pouco  passado  de  moda  ,  até  na  In- 
glaterra onde  estas  montarias  chegaram  ao  auge  de 
mania  :  os  seidiores  inglezes  com  dispêndio  não  pe- 
queno alcançaram  introduzir  nos  seus  parques  e 
por  consequência  nos  montes  do  rcino-unido  mais 
duas  variedades  destes  animaes  ;  uma  delias  man- 
dou Jayme  1.°  buscar  á  Noruega  ,  pondo-a  logo  na 
Escócia  ,  donde  se  espalhou  por  ontras  partes :  ou- 
tra bonita  casta  malhada  fui  transportada  de  Ben- 
gala. 

O  gamo  ,  de  còr  fouveira  ,  antes  pardo-arrniva- 
da  ,  na  parto  superior  do  corpo  ,  e  esbranquiçado 
na  inferior  ,  é  mais  pequeno  que  o  veado  ,  e  lam- 
bem diíferc  deste  jia  arjna<;5<J  lic  S'^\hos  espalma- 


dos ;  porera  na  forma  não  ha  quadrúpedes  mais  pa- 
recidos ,  e  comtudo  são  encarniçados  rivaes :  nun- 
ca as  duas  espécies  pastam  em  commum,  nem  cru- 
zam as  raças;  parecem  com  poucas  ditíerenças  co- 
irmãos ,  tem  os  mesmos  hábitos  ,  e  não  obstante  a 
aflinidade  natural  mantém  reciprocamente  inalterá- 
vel aversão.  Os  gamos  são  mais  frágeis  e  delicados 
que  os  veados  ,  e  cncontram-sc  menos  no  estado 
selvático,  ao  passo  que  os  primeiros  abundam  nas 
florestas  da  Europa.  Não  espanta  que  estes  animaes 
aborreçam  a  outra  espécie  mais  forte  ,  porque  as- 
sociando-se  de  ordinário  em  bandos,  estes  entre  si 
contendem  por  causa  das  pastagens  ,  e  cada  parti- 
da tem  seu  guia  e  capitão  ;  o  combate  renova-se 
em  dias  successivos  até  que  a  manada  mais  fraca 
se  retire  deixando  os  vencedores  de  posse  do  tor- 
rão disputado.  A  carne  do  gamo  é  mais  mimosa 
para  alguns  paladares  ,  supposto  que  toda  a  veação 
tenha  o  que  chamámos  sabor  ao  matto  ,  c  só  preste 
l;cm  condimentada  e  cm  pastelões  e  empadas:  o 
couro  do  veado  convenientemente  preparado  é  ma- 
cio e  muito  bom  cabedal  para  calçado. 


A  rcs|)onsabili(ladc  não  intimida  os  velhacos,  c  dis- 
suado dos  empregos  aps  homens  probos.    , 


o  PANORAMA. 


213 


.;-:v,       ,  o  Estio.     .        >.  ■     -i,". 

i^(iMP.iRADAs  com  o  Liilho  c  liilgor  do  nosso  radioso 
Eslio  todas  as  luzes  são  pnllidas  ,  todos  os  resplcn- 
Joros  mortos  ,  porque  o  estio  é  pai  dos  dias  lumi- 
nosos, o  dos  ardentes  reflexos. 

/    '  lícluz-liic  o  suor 

>ia  fronte  queimada ; 
.Na  face  tostada 
Reluz-lhe  o  suor.  .1 

È  moço  e  robusto 
Vivaz  e  fogoso  ; 
Seu  braço  pod'roso 
É  moço  e  robusto  . . . 

Moro  c  robusto  :  e  bera  o  precisa  porque  é  rude 
c  penosa  a  tarefa  a  cargo  do  nosso  amigo  lístio.  A 
Primavera  deixou  tudo  muito  alegre  e  folgado,  não 
lia  duvida  ,  mas  a  Primavera  foi  rapariga  desejosa 
de  agradar ,  que  só  tratou  de  seus  enfeites  c  ador- 
nos sem  curar  do  preciso.  Cumpre  por  tanto  que  o 
Estio  se  encarregue  do  substituir  os  tapetes  floridos 
por  boas  e  proveitosas  relvas  —  as  gallas  c  formo- 
sos vestidos  das  veigas,  dos  bosques  e  dos  pomares, 
por  úteis  e  saborosos  fruclos.  \  Primavera  é  delei- 
te que  encanta.  —  O  Estio  c  utilidade  que  aprovei- 
la.  Uma  e  outro  são  precisos  na  vida,  que  do  agra- 
dável hemos  mister  para  repouso  do  espirito  ,  e  do 
necessário  para  satisfação  do  corpo.  —  Se  a  Prima- 
vera é  de  mais  acabada  lindesa,  o  Estio  possue 
mais  preciosas  faculdades.  —  Uma  é  joven  melin- 
drosa :  outro  é  mancebo  valente  e  trabalhador  infa- 
tigável. Vède-o ,  vède-o  : 

I- 

Doirando  ampla  seara  da  campina 

Que  ondea  como  um  mar  , 
E  quando  sobe  o  sol  e  mais  se  empina 

Pela  encosta  a  trepar  , 
Porque  vá  sobre  o  dorso  pampanoso 
Grato  sueco  espremer  do  solo  annoso , 
Inunda  inteira  a  várzea  luz  ardente. 

Que  importa?  —  Xão  descança  , 
Prepara  ao  lavrador  co'a  mão  potente 

A  túmida  esperança 
Que  irá  depois  ,  em  fructos  rebentando  , 
Seu  trabalho  e  fadigas  coroando. 

E  dizei-me  —  tendes  porventura  visto  por  ahi 
cousa  de  maior  e  mais  brilhante  magnificência  do 
que  a  formosa  tarde   de  um  formoso  dia  de  verão? 

—  Depois  de  um  calor  abafadiço,  a  aragem  conso- 
ladora—  depois  dos  ardores  a  frescura  e  as  sauda- 
des do  por  do  sol  e  o  suave  aproximar  da  noite. — 
.Nadando  em  oceano  de  chammas,  desce  o  astro  ma- 
gestoso  confundindo  a  própria  face  com  os  fulguran- 
tes reflexos  que  o  rodeiam  até  mergulhar  nas  ondas 
inflammadas.  —  Roxo  véu  franjado  de  ouro  corre 
iramenso  por  todo  o  occidenle  que  se  encurva  sobre 
os  montes  d'alera,  já  meios  carregados  os  cimos  vi- 
çosos com  as  próximas  sombras.  —  A  esguia  serra 
fronteira  ,  tendo  a  base  gigantesca  enterrada  já  em 
suave  penumbra,  reflecte  ainda  no  pincaro  mais  al- 
to uui  raiosinho  extremo  do  sol,  que  nem  já  se  vé. 

—  E  as  mil  cabeças  do  basto  arvoredo  meneando-sc 
airosas  a  sussurrarem  juntas  desconhecidas  harmo- 
nias. —  E  as  despedidas  da  luz  ,  tão  encantadas  e 
amorosas,  a  hora  amena  do  crepúsculo.  —  E  o  ale- 
gre resfoUegar  de  todos  os  seres  apoz  opressivo  ca- 
lor. —  E  o  canto  misterioso  da  natureza  jnteira  que 


respira  folgadamente  sacudindo  do  manto  requei- 
mado  a  poeira  do  dia  e  aprestando-se  a  recuperar 
no  silencio  da  noite  a  galhardia  e  lustre  tão  man- 
chados ,  porque  depois  no  alvorecer  da  manhaã  de 
novo  se  mostre  ao  mundo  com  toda  a  solcmnidade 
e  pompas  de  rainha. 

Decididamente  o  moço  Estio  alem  de  ulil  traba- 
lhador é  guapo  mancebo.  Passemos-lhc  pelas  baga- 
tellas  de  abafar  tudo  com  calma  ,  de  seccar  a  gar- 
ganta e  a  paciência  ,  e  de  nos  tornar  languidos , 
molles  ,  e  frouxos  no  trabalho  ;  passemos-lhc  ainda 
pelas  constipações,  e  ardores  caniculares  ;  deixa-nos 
ainda  que  admirar  e  gozar.  São  inconvenientes  ;  •' 
certo.  Masque  ha  neste  mundo  que  os  não  tenha? — 
Ostheatros  tem  as  peças  que  fazem  somno  e  os  em- 
presários que  o  tiram.  —  .As  assembléas  tem  o  en- 
fado c  os  abrimenlos  de  boca  ,  não  fallando  u'uma 
boa  dose  de  cotoveladas  em  dias  de  enchente  e  na 
suave  penitencia  de  passar  toda  uma  noite  de  pe 
fazendo  sentinella  ,  ou  de  se  agarrar  perpetuamen- 
te á  cadeira  pilhada  uma  vez  por  felicidade  pouco 
vulgar. — O  somno  tem  os  pesadellos  ;  e  o  traba- 
lho a  fadiga.  O  prazer  tem  o  durar  pouco  ;  e  os 
pezares  o  durarem  sempre  de  mais.  Que  muito  que 
o  amigo  Estio  tenha  também  a  sua  pecbasinha  '.  In- 
commóda  pelo  calor  ,  mas  alegra  com  o  brilho  dt; 
seus  dias  —  bem  vedes  que  isto  tem  de  bom;  e 
não  só  isto  —  muitas  mais  cousas.  .  .  .  ISão  aconte- 
ce o  mesmo  com  outras  deste  mundo  que  lendo  tu- 
do máu  não  tem  nada  bom.  —  Ora  pois  façamos  pa- 
zes com  o  bom  do  mancebo ,  e  folguemos  de  i> 
vermos  tão  desvellado  a  preparar-nos  colheitas  e 
vindimas,  que  por  virem  depois  nem  por  isso  Ih»; 
são  menos  devidas. 

E  a  belleza  de  uma  de  suas  noites  tão  formosas 
e  puras  neste  nosso  abençoado  clima  que  mais  va- 
lem por  certo  que  todos  os  pallidos  dias  da  terra 
estrangeira  !  Quantas  vezes  á  margem  do  nosso  Te- 
jo ameno  tereis  vós  contemplado  a  lua  e  o  céu  da 
noite  ,  espelhando-sc  nas  vagas  buliçosas  e  que- 
brando-se  ncUas  em  mil  diffcrenles  reflexos  I  .Alem, 
a  Solitária  luz  d'um  barquinho  aíTastado ,  e  quasi 
que  perdido  na  solidão  das  aguas:  em  frente,  o  al- 
vejar suave  das  povoações  da  outra  margem  :  dis- 
tante ,  o  monótono  cantar  do  nauta  ,  que  acompa- 
nhado pelo  accorde  do  sussurrar  das  vagas  com  a 
cantiga  se  allivia  do  trabalho  :  e  aqui  e  alli  resal- 
tando  da  sombra  o  brilhar  phosiihorico  d'um  peixe 
a  pular  ao  lume  d'agua.  Que  imaginais  vós  ahi 
mais  cheio  de  doçura  e  encantos? 

E  que  longos  espaços  vos  tereis  demorado  a  con- 
templar o  suave  desta  scena  ,  deixando  escorregar 
as  horas  sem  as  sentirdes  passar ,  embevecido  na 
contemplação  do  que  vicis  e  porventura  do  que  não 
vicis  —  que  muita  vez  a  alma,  ferida  pela  belleza 
d' um  quadro  presente,  pinta  e  retrata  na  imagina- 
ção outro  bem  formoso  no  passado.  —  Sc  o  dia  traz 
fadigas  e  cançassos ;  a  noite  dar-vos-ha  consolação 
e  refrigério;  e  a  manhaã  desenrolará  diante  de  vos- 
sos olhos  absortos  o  mais  acabado  painel  que  das 
mãos  de  Deus  sahiu  :  todas  as  suavidades  da  noite 
com  todas  as  pompas  e  resplandores  do  dia.  Vereis 
as  potencias  das  trevas  e  da  luz  disputando  o  im- 
pério do  mundo.  —  Tereis  idóas  grandes  e  raages- 
tosas  ;  tè-las-heis  brandas  e  lemas.  —  Tereis. .  .  . 
Ouvi  : 

Dorme  o  outeiro  ,  dorme  o  vallc  , 
Dorme  a  selva  e  dorme  o  prado , 
Dorme  inquieto  o  rico  vil ; 
Dorme  affoito  o  pobre  honrado. 


214 


O  PANORAMA. 


Pallidos  astros  da  noite 
Tremem  sósinhos  no  céu  ; 
Cobre  a  face  do  Universo 
Das  trevas  o  denso  véu. 

Eis  que  á  banda  d'Oriente 
Alva  cinta  as  sombras  corta  : 
Mensageira  da  alvorada 
Vem  ao  dia  abrir  a  porta. 

Hymno  roystico  se  espalha 
Pelos  ares  perfumados  : 
Accordai ,  vós  que  dormis, 
Accordai ,  selvas  e  prados. 

Chega  a  Aurora  ,  a  livre  trança 
Dando  á  brisa  matutina  ; 
Chega  a  Aurora  e  corre  ao  mundo 
Ampla  ,  rosada  cortina. 

E  no  céu  negro  da  noite 
Estrcllas  já  não  scinlillam  ;  ' 
E,  fugindo  ;i  luz  que  as  vence. 
Trémulas  sombras  vacillam. 

Sorri  toda  a  creatura  , 
Abrindo  os  olhos  ao  dia  ,    ' 
Desperta  da  Natureza 
A  suave  melodia. 

E  os  cabeços  da  montanha , 
Obliquo  sol  reflectindo  , 
De  luzes  se  vão  c'roando. 
De  raios  se  vão  cingindo. 

Murmura  o  arrojo  n'arêa  , 
E  a  fonte  na  pedra  dura. 
Murmuram  no  bosque  as  ramas  , 
E  a  vida  em  tudo  murmura. 

A  vida  sim  ,  porque  todas  as  cousas  no  desperta- 
mcnto  acharão  voz  e  echo  ,  murmurarão  e  fallarão 
alto  dos  louvores  deste  bemavenlurado  Estio  ,  que 
nos  prepara  para  gozar  o  que  o  seu  infatigável  tra- 
balho foi  arrancar  das  entranhas  da  terra  e  pedir 
ao  ar  c  ao  sol.  Abençoado  pois  seja  o  nosso  Estio. 

Silva  Leal  —  Jiuiior. 


Dcscripção  de  varias  arvores,  arbustos,  hervas  e  plan- 
tas medicinaes  que  existem  na  villa  de  Téte  ,  e  da 
appUeaeãn  que  delias  fa:em  os  naturaes  do  paiz 
aos  tisos  meehaiúeos  da  vida,  e  nas  doenças  de  que 
são  attaeados. 

(Concluído  de  pag.  208.^ 

Cacivi  camuzuqiia  ,  ou  cscoreioneira.  —  Ha  duas 
qualidades  desta  herva  ,  uma  grande ,  outra  peque- 
na ;  a  llòr  é  amarella  e  miúda.  ;i  proporção  das  fo- 
lhas ,  e  parece-se  com  o  açafrão  do  reino  ;  o  fructo 
c  do  tamanho  d'Hm  grão  de  missanga  ou  conta  pe- 
quena ;  o  cosimcnlo  das  folhas  appiica-se  em  sua- 
doiros  ;i  cabeça  para  extinguir  as  dores  que  a  afle- 
clam  ;  a  casca  da  raiz  cosida  juntamente  com  a  raiz 
d'almeirão,  c  bebi<la  ,  atalha  a  lebre  que  se  enca- 
minha a  maligna  ;  o  o  cosimcnto  simples  da  raiz 
applica-sc  a  febres  terçaãs  ,  c  sendo  junto  com  a 
da  arvoro  mueorotu/o  ,  ás  gonorrhéas  comi)licadas. 

Caciei  camuzuqua  pequeno,  ou  csroreioneira  menor. 
—  Untando  o  corpo  com  o  cosimcnto  desta  raiz,  mis- 
turado com  raspas  de  marlim,  c  cascas  de  laranja  c 
folhas  pisadas  ,  destroe-se  a  febre  que  tiver  o  pa- 
ciente. 

Avenca.  —  São  bem  conhecidas  as  qualidades  e 


préstimo  desta  herva ,  entretanto  os  negros  não  se 
servem  delia  para  cousa  alguma. 

Munhaze.  —  Tem  as  folhas  oleosas  e  pegajosas; 
os  negros  servem-se  da  raiz  para  a  composição  do 
óleo  de  Fr.  Pedro  ,  que  tem  a  propriedade  de  ex- 
tinguir o  veneno  que  se  introduz  nas  feridas  feitas 
por  flechas  hervadas,  também  se  servem  da  mesma 
herva  para  extinguir  os  percevejos  pondo-a  debaixo 
das  esteiras  em  que  dormem. 

Uomhue. —  Esta  herva  tem  as  folhas  largas  como 
a  abóbora  ,  mas  longas  e  muito  felpudas  ,  cria  uma 
batata  muito  grande,  que  sendo  pisada  e  espalhada 
na  alagòa  mata  o  peixe  que  nella  existir  ;  o  emplas- 
to da  raiz  pisada  applicado  ao  picuriz  extingue  a 
dor  que  elle  produz. 

Casuzumire. —  É  uma  herva  muito  pequena,  e  co- 
mo a  hortelaã  ;  os  cosimcntos  delia  tomados  em  ba- 
nhos são  remédio  para  as  hemorrhoides  ediarrheas. 

Cácumate.  —  Esta  herva  parece-se  com  as  unhas 
do  gavião  quando  está  morto  ;  o  cosimcnto  é  appli- 
cado ás  febres  intermitentes,  e  esfalfamenlo  :  os  ne- 
gros costumam  deita-la  nos  vasos  em  que  bebe  a 
criação  ,  pela  superstição  que  tem  ,  que  por  ser  de 
folhas  encolhidas,  e  simiihantes  ás  unhas  do  gavião, 
a  criação  de  penna  ,  que  beber  esta  agua  ,  não  se- 
rá presa  do  milhafre  ,  gavião  ,  ou  de  qualquer  ave 
de  rapina. 

Mudossua  ;  figueira  do  inferno. —  A  flor  desta  plan- 
ta é  branca  ,  grande  ,  e  afunilada  ;  o  fructo  é  como 
a  papoula  do  amphião  ,  com  a  dilTerença  de  ter  pi- 
cos á  maneira  de  pepinos  de  S.  Gregório  ,  e  sem- 
pre fica  com  algumas  folhas ,  as  quaes  se  applicam 
inteiras  como  emplastos  ao  curativo  das  chagas  ,  e 
tem  a  propriedade  de  comer  toda  a  carne  corrupta  ; 
das  pevides  da  papoula  extrahe-se  olco  que  combi- 
nado com  qualquer  liquido  faz  adormecer  ;  emsum- 
ma  produz  os  mesmos  efieitos  que  o  laudano. 

liange,  é  o  canamo  de  Portugal.  —  Os  negros,  no 
tempo  em  que  esta  planta  começa  a  seccar,  colhcm- 
na  haste  por  haste  ,  c  fazem  molhos  ,  e  fumam-na 
por  gurgurís  ,  ou  caliauas  que  fabricam  ;  e  beben- 
do-se  a  agua  por  onde  passa  o  fumo  immediatamen- 
te  provoca  o  vomito.  Os  negros  sertanejos  cultivam 
esta  planta  nas  suas  povoações,  e  ha  taes,  como  os 
morenges ,  que  a  fumam  com  mistura  de  tabaco  , 
pimenta  longa  ,  c  galinhaça  ,  de  que  resulta  o  fica- 
rem mui  trémulos. 

O  fumo  das  folhas  c  semente,  recebido  nos  olhos, 
curam  a  belida  que  nclles  existir. 

Conge.  —  Esta  planta  é  a  que  no  Brasil  chamam 
=  pita.  =  Os  negros  do  muzexuro  [sertão  onde  se 
lira  ouro]  servem-se  delia  ,  isto  é  ,  dos  fios ,  para 
fazerem  pannos  cora  que  se  cobrem  ;  e  os  zimbas 
[povos  do  Zimbavé]  e  cafres,  para  fazerem  redes  de 
caça  e  pescaria. 

Inhafoncori.  —  Esta  planta  é  formada  de  talos  ou 
hastes  direitas  ,  escamosas  ,  e  de  folhas  muito  miú- 
das, e  na  consistência  parecidas  com  as  beldroe- 
gas :  ainda  que  esteja  secca  ,  pondo-a  de  infusão 
reverdece  scnijue  que  assim  se  pertencia. 

A  infusão  delia  é  applicada  aos  que  padecem  de 
peito. 

Carúeo-rueo.  —  A  fl('jr  é  de  côr  amarello-claro  ,  e 
pequena  ;  o  fructo  c  cm  pares  ,  e  similli.intc  ao  da 
pánheira  ,  depois  de  maduro  estala  ,  e  larga  uma 
penugem  amarella  que  c  uma  espécie  de  algodão  , 
('  ficam  as  duas  cascas  como  umas  colheres,  d'on- 
de  lhe  vem  o  nome  de  carúco-ruco  ,  que  significa 
colherinhas  ;  o  pó  da  raiz  sêcca  ao  sol  é  remédio 
para   chagas  venéreas   lançando-o  sobre  ellas  ,   c  o 


o  PANORAMA. 


215 


cosimcnto  da  raiz  lomado  em  bochechos  6  remédio 
para  as  dores  de  dentes. 

Combe.  —  Esta  trepadeira  dá  um  fructo  longo,  do 
tomprimeuto  de  mais  de  um  palmo  ,  e  tem  a  casca 
rija  como  a  amêndoa  ,  c  produz  em  pares  ;  o  inte- 
rior do  fructo  contém  umas  favas  pequenas ,  c  no 
intervallo  delias  tem  uns  cabcllinhos  que  juntos 
com  as  ditas  favas,  c  reduzido  tudo  a  pó,  e  mistu- 
rado com  fel  de  lagarto,  c  de  cobra  capelo,  c  ba- 
lia d'herva  babosa,  serve  para  hcrvarem  as  frechas 
o  lanças ,  com  as  quaes  ferindo  qualquer  animal , 
morre  em  menos  de  meia  hora  por  causa  da  subti- 
leza do  veneno  que  por  toda  a  parte  se  communi- 
ca  ,  deixando  negro  o  logar  da  ferida. 

Mupessa.  —  Parreira  brava,  cujas  uvas  são  ro- 
xas ,  e  com  algum  acido.  O  cosimculo  da  raiz  ap- 
plica-se  ao  curativo  do  plcuriz  ,  bebendo-o  ,  e  pon- 
do no  logar  da  dòr  a  raiz  cosida  c  molhada  em  vi- 
nagre ;  o  dito  cosimento  lambem  serve  para  resol- 
ver as  apostemas  ,  para  quedas  ,  para  expulsar  as 
jiareas  ,  para  tirar  as  dores  de  cólica  ,  e  para  a  go- 
uorrhéa. 

Miiluhzi. — A  flor  6  redonda,  c  amarclla  ;  o  fru- 
cto chato  e  com  um  feijão  só  ;  o  cosimento  da  Dór 
applica-se  a  quem  tem  pux'os,  cursos,  &c.  também 
fazem  dcUe  amendoada  ,  e  a  dão  a  beber  ao  doen- 
te ;  esta  herva  é  de  um  cheiro  iasoíTrivcl. 

Àbutua.  —  A  raiz  desta  herva  rasteira,  dissolvida 
cm  pólme,  dá-se  a  beber  aos  que  dão  quedas  gran- 
des ,  applicando  também  sobre  as  partes  inllamma- 
das  o  mesmo  pólme  quente  em  emplastos. 


PnoviNciA  DE  S.  Pedbo  ,  01"  Rio  Gbaxde  do  Sll. 


3.° 


O  RIO  Icabaquam  ,  vulgarmente  dito  Camacuam  , 
recebe  pelo  rumo  do  norte  ,  desde  a  sua  barra  na 
Lagoa  dos  Pitos  ,  vários  arroios  ,  os  quaes  bem  que 
pequenos,  são  comludo  abundantes,  e  derivados  da 
]ionta  austral  da  referida  serra  do  Herval  ;  reparti- 
do porem  na  sua  origem  cm  dons  :  destes  o  meri- 
dional, denominado  Camacuam  Chico,  ou  pequeno, 
tem  varias  vertentes  ,  alem  das  quaes  enriquecem 
o  Camacuam  uma  plebe  d'arroios,  que  nelle  en- 
tram da  banda  do  sul,  a  saber  o  das  Palmas,  o 
das  Torrinhas  ,  o  grande  de  St.°  António  ,  o  do  Ca- 
margo,  o  das  Pedras,  o  Carahá  ,  &c.  Tanto  este 
rio  ,  que  atravessa  do  poente  para  o  nascente  pela 
espaçosa  faxa  de  campo  entre  as  duas  isoladas  ser- 
ras do  Herval  e  dos  Tapes  ,  como  o  Jacuí .  são  os 
principaes  alimentadores  da  mesma  Lagoa  dos  Pa- 
ios ,  que  recebe  ainda  pela  margem  occideutal  as 
aguas  de  vários  outros,  que  borbulham  das  referi- 
das duas  serras  do  Herval  e  dos  Tapes,  até  o  rio 
de  Pelotas,  o  qual  descendo  do  interior  da  segun- 
da ,  desagua  já  dentro  da  embocadura  septcntrional 
do  sangradouro  da  lagoa  Merim  ,  appellidado  tam- 
bém rio  de  S.  Gonçalo  ;  neste  se  escoa  pelo  occi- 
denle  o  arroio  do  Pavão,  que  traz  sua  origem  do 
extremo  meridional  da  referida  serra  dos  Tapes.  Se- 
gue-se  o  rio  Piratiní ,  cujas  fontes  no  interior  da 
campanha  entestam  com  as  do  sul  do  mencionado 
Camacuam-Chico  ,  e  com  as  do  norte  do  rio  Ja- 
guarão,  ultimo  que,  perdendo-se  já  na  lagoa  Me- 
rim ,  fecha  com  o  seu  tronco  ou  galho  principal  as 
possessões  portuguezas,  mesmo  as  conquistadas  a 
oeste  da  dita  lagoa,  que  d'entre  estes  dois  rios 
Piratiní  e  Jaguarão ,   recolhe  as  aguas  dos  arroios 


da  Palma ,  do  Chasquciro  ,  do  Herva} ,  dos  Arrom- 
bados ,  dos  Arrependidos  ,  e  do  Juncal. 

O  terreno  entre  a  costa  do  mar  e  as  ditas  lagoas, 
desde  o  rio  Slombetuba  até  o  Marco  na  latitude  de 
311°  42' ,  sendo  desde  o  principio  cultivado ,  e  o 
que  está  actualmente  mais  povoado  ,  é  cortado  pe- 
los rios  Mombetuba  e  Tramandaí,  os  quaes  da  Ser- 
ra geral  se  preci(iitam  no  mar  ;  e  pelos  rios  Cahi  c 
dos  Sinos  ,  que  do  interior  da  mesma  serra  rolam 
para  a  lagoa  do  Aiamão  ,  extremo  septcntrional  da 
dos  Patos  :  naquella  entra  também  o  Garvataí ,  im- 
mediato  pelo  nascente  ao  dos  Sinos  ,  e  nesta  pela 
margem  oriental  desemboca  o  pequeno  Capivari  . 
cuja  cabeceira  é  uma  lagoa  semi-circular,  que  tor- 
nèa  a  fralda  austral  da  Serra  geral  ,  de  diâmetro 
de  mais  de  légua  ,  entre  as  freguczias  de  St."  An- 
tónio e  da  Conceição  do  Arroio. 

As  aguas  das  duas  grandes  lagoas,  Merim  e  dos 
Patos,  encontrando-se  na  latitude  austral  de  31°  o 
4"',  formam  o  lago  do  Rio  Grande  ,  o  qual  estrci- 
tando-sc  para  a  barra,  fica  somente  de  duas  miihas 
com  pouca  difTerenca  na  latitude  sul  de  32°  6'  ,  p 
na  longitude  320°  3i. 

A  lagóa  dos  Patos  ,  desde  a  de  Viamão  inclusiva 
até  a  sua  juncção  com  a  de  Merim,  tem  quarenta 
e  uma  léguas  de  comprido  na  direcção  de  IV.\.Ii. 
S.S.O.,  e  oito  na  maior  largura  :  a  de  Merim,  com 
igual  direcção  ,  tem  de  comprido  trinta  e  três  lé- 
guas e  meia  até  o  seu  desaguadouro  ou  boca  meri- 
dional do  rio  de  S.  Gonçalo,  e  sete  no  seu  maior 
bojo.  Alem  dos  rios  notados  até  o  Jaguarão,  c  cu- 
ja direcção  é  quasi  de  oeste  para  leste  ,  entra  ain- 
da na  lagoa  Merim  pela  margem  oriental ,  e  com 
similhante  curso  outro  rio  Taquarí  ,  e  seguindo  o 
rumo  de  S.O.  N.E.  o  grande  Sebollati  ,  cujos  ga- 
lhos occidentaes  são  o  Parado  ,  o  Limar  grande  e 
pequeno  ,  o  Abestruz  ,  c  o  de  Godoi  ;  e  pelo  lado 
oriental  o  Malmaragá ,  e  finalmente  o  rio  de  S. 
Luiz  ,  que  se  perde  na  mesma  lagóa  junto  a  foz  do 
Saco  de  S.  Miguel,  que  nasce  dos  serros  de  S.Mi- 
guel ,  em  cujos  fragosos  picos  se  divisa  o  desman- 
tellado  forte  da  mesma  invocação.  Todo  o  terreno 
desde  o  Jaguarão  até  as  origens  do  Sebollati,  é  dos 
questionados  entre  as  duas  nações  limiírophes  ,  c 
apesar  disso  aHespanha  os  foi  povoando  desde  178Í. 

O  extremo  austral  da  lagóa  Merim  é  o  Saco,  que 
forma  o  arroio  de  S.  Miguel  ,  o  qual  se  deriva  dos 
serros  assim  denominados.  Na  sua  margem  orien- 
tal apeníis  desembocam  o  arroio  d'Elrei,  que  ma- 
na de  uns  pântanos  ,  e  o  arroio  Itnym  ou  Tahim  , 
que  é  o  escoamento  da  estreita  lagóa  da  ^Mangueira 
ou  Saquarumbó  ,  entre  a  costa  do  mar  e  os  campos 
que  se  estendem  até  a  lagoa  Merim. 

As  abas  da  Serra  geral  desde  o  rio  IMombctuba 
até  o  Tramandaí  são  cingidas  de  pequenas  c  estrei- 
tas lagoas,  com  sangradouros  ou  canaes  de  commu- 
nicação ,  por  onde  desaguam  no  Tramandaí;  assim 
como  se  enfiam  outras  mais  pequenas  ao  correr  da 
costa  até  o  insignificante  arroio  Chui ,  que  entra  no 
mar  em  33°  42'  10' '-5,  onde  existe  postada  uma 
guarda  brasileira  desde  a  conquista  de  1801  ,  c 
dista  da  cidade  do  Rio  Grande  quarenta  e  ires  lé- 
guas para  o  sul. 

Esta  província,  por  qualquer  lado  que  se  olhe, 
é  uma  das  mais  bellas  de  todo  o  Brasil  :  seu  cli- 
ma é  geral uiente  agradável  c  tão  excellente  ,  como 
bem  se  pôde  avaliar  pela  variedade  e  exuberância 
das  suas  producções  ;  puros  ares  ,  que  dão  saúde  : 
muitos  rios  perennais,  duas  grandes  lagoas  a  hume- 
decem ;  na  parte  superior  densas  e  sombrias  Dores- 


216 


O  PANORAMA. 


tas ;  tem  larguíssimas  campinas ,  que  se  tapizam 
de  mui  graciosas  pastagens  ;  medra  cm  rebanhos  ; 
os  de  gado  armentio  já  são  fora  de  algarismo  ;  abun- 
da em  fructos ,  e  depara  deleitoso  entretimeuto  em 
pescarias  ,  veação ,  e  passarinhagcm  ;  e  para  dar 
ainda  idéa  mais  exacta  do  seu  temperamento  ,  se- 
gundo as  observações  meteorológicas  que  fiz  na  ca- 
pital ,  no  verão  o  calor  chegou  a  87"  e  a  88°  do 
thermometro  de  Fahrenheit ,  e  no  inverno ,  quando 
sopra  o  oeste  ,  tem  marcado  44°  et  40°  no  mesmo 
•  hermomelro.  Providamente  reinam  de  ordinário  com 
forra  ventos ,  que  dissipam  os  miasmas  originados 
dos  frequentes  trasbordamentos  dos  numerosos  rios, 
e  exlialação  pútrida  dos  pântanos.  Estes  ventos  do- 
minantes são  o  N.E.  e  o  S.O. ,  o  primeiro  dos 
quaes  principia  brando,  e  tornando-se  mais  forte, 
turva  a  atmosphera  ,  até  que  desata  em  trovoada  e 
chuvas  ,  e  rondando  então  pelo  \.0. ,  vem  a  cahir 
cm  O. ,  e  S.O. ,  que  alimpam  o  céu.  A  parte  se- 
plentrional  ou  superior  do  paiz  é  comparativamen- 
Ic  muito  mais  fria.  («) 

A  natureza  e  formações  do  solo  variam  conforme 
ns  situações  :  a  cordilheira  geral  do  Brasil ,  que  , 
segundo  notámos,  reparte  esta  província  em  duas 
taxas  quasi  iguaes  ;  e  lá  onde  principia  a  mcrgu- 
)har-se  no  1'ruguay  ,  é  encontrada  por  outra  sinii- 
Ihante  serrania  escalvada  ,  que  partindo  das  visi- 
iihanças  do  Salto  grande  desse  rio ,  separa  de  um 
lado  aguas  para  o  Daiman  e  Rio  Negro  ,  e  d'oulro 
para  o  Arapey  e  Quaraim  ;  estas  serras  ,  e  todo  o 
território  ao  norte  e  oeste  delias  ,  isto  é  ,  quasi  to- 
do o  districto  d'Enlre  Rios,  de  Missões,  de  S. 
Marinho  ,  da  Cruz  Alta  ,  da  Vacaria  ,  e  de  cima 
da  serra  ,  constam  inteiramente  de  terreno  basálti- 
co. A  parte  meridional  da  província  ,  subdividida 
em  oriental  e  occidental  pelas  serras  do  Herval  e 
dos  Tapes,  e  pelo  Albardão,  que  acompanha  a  mar- 
gem occidental  da  lagoa  Merim,  são  primitivas  es- 
tas montanhas  ,  e  são  de  alluvião  as  planícies  ,  ao 
nascente  das  grandes  lagoas,  e  não  parecem  ter  ou- 
tra base,  que  o  mesmo  granito,  e  grés  ou  crés  , 
de  que  aqucUas  são  compostas  :  porem  a  parte  oc- 
cidental é  de  estructura  mais  vnriada.  Ao  poente 
das  frondosas  serras  do  Herval  c  dos  Tapes,  se  en- 
contra um  território  elevado  ,  transversalmente  cor- 
tado pelo  rio  Camacuã  ,  composto  de  granito  ,  e  de 
schisto  primitivo  ,  alternando  com  micas-schisto  ,  e 
coberto  de  grés  carvoeiro  ,  entre  Santa  Barbara  , 
Encrusilhada  ,  e  Caassapava  :  depois ,  de  granito  e 
grés ,  sustentando  schisto  primitivo  com  gabbro , 
schisto  chloritico  e  talcoso  ,  serpentina  e  calcareo 
granuloso  no  grupo  de  montes  de  Caassapava  :  fi- 
nalmente de  porphyrio  de  transição  ,  grauwake  ,  e 
sranito  de  transição  ,  sobrepostos  a  schisto  talcoso  , 
e  granito  primitivo  ,  e  cobertos  de  grés  carvoeiro 
entre  Caassapava  e  S.  Gabriel :  os  logares  mais  bai- 
xos desta  subdivisão,  o  valle  de  Guaiba  ,  o  territó- 
rio banhado  pelo  Vacacay  c  pelo  Santa  Maria  ,  e  o 
valle  do  Jaguarão  ,  são  cobertos  de  uma  formarão 
secundaria  ,   composta   de  argilla  schistosa  ,   calca- 


(•)  Por  maior  t\m'  fosse  o  meu  receio  de  que  o  extenso 
ijuadro  ,  que  tenho  dcscripto  ,  parecesse  árido  e  faslidioso  , 
nSo  julguei  comtudo  dever  oinilli-lo  ás  vistas  calculadoras 
do  leitor  philoíoplio,  que  da  configuraçrio  admirável  desle 
paiz  ,  qual  [loderia  traçar  o  pr(i|>rio  génio  do  coinmercio , 
|iresentir,i  as  vantagens ,  que,  em  beneficio  da  agricultura 
e  da  industria,  proporcionam  os  innunieraveis  rios,  e  us 
duas  graniles  lagftas ,  ou  antes  dois  Mediterrâneos  ;  á  exten- 
são e  facilidade  da  navegaçiio  interior  ,  e  de  um  commercio 
domestico ,  deveu  o  Egjplo  e  a  China  o  estado  florccenle  a 
liue  chegaram. 


rco  c  grés :  e  toda  a  fralda  meridional  das  serras 
basalticas  é  occupada  por  um  grés  deformação  ter- 
ceira ,  frequentemente  interrompido ,  ora  coberto 
ora  não  ,  de  basalto. 

Tão  considerável  desenvolvimento  de  basalto  e  a 
existência  de  porphyrios  de  transição,  são  pheno- 
menos  geognosticos  os  mais  interessantes  que  offe- 
rece  esta  provinda  ,  não  constando  até  agora  que 
em  alguma  outra  parte  do  vastíssimo  Brasil  se  ha- 
ja descoberto  basalto  ,  ou  porphyrio ,  a  ponto  de 
duvidarem  celebcrrimos  geognoslas  da  existência 
destas  rochas  a  leste  das  Andes. 

(Concluir-se-há . ) 


Paute  de  PoRTrcAi  paba  a  Índia  o  primeiro  vick-rei 
D.  Francisco  d'Almeida. 

No  dia  15  de  março  de  1506  partiu  de  Lisboa  pa- 
ra a  índia  o  nobilíssimo  eavalleiro  ,  e  insigne  ca- 
pitão ,  D.  Francisco  d'Alraeida.  Assistia  então  em 
Coimbra  com  seu  lio  D.  Jorge  d'Almeida,  bispo  da 
mesma  cidade  ,  bem  fora  de  similhantes  pensamen- 
tos, quando  o  nomeou  elrei  D.  Manuel  vice-rei  da- 
quclle  estado  ,  pela  fama  notória  do  seu  valor ,  e 
disciplina  militar,  e  pelo  illustre  nome  que  alcan- 
çara nas  guerras  c  conquistas  de  Granada,  cm  ser- 
viço dos  reis  catholicos,  a  que  se  ajuntavam  outras 
muitas  prendas  e  virtudes  que  nelle  resplandeciam 
cora  singular  luzimento,  quaes  eram  prudência, 
industria  ,  constância  ,  magnanimidade  ,  resolução  , 
e  um  ardentíssimo  zelo  de  reputação  da  sua  pes- 
soa ,  da  gloria  da  nação  ,  do  serviço  do  seu  prínci- 
pe. Levou  á  sua  obediência  uma  numerosa  e  pode- 
nsa  armada  de  vinte  e  duas  velas ,  em  que  iam  , 
alem  dos  homens  do  mar ,  mil  e  quinhentos  solda- 
dos luzidissimos  ,  e  muitos  da  primeira  nobreza  , 
entre  os  quaes  sobresahia  por  seu  grande  esforço 
e  generosos  brios  D.  Lourenço  d'Almeida  ,  filho  do 
mesmo  D.  Francisco.  Foi  este  o  primeiro  vice-rei 
que  sahiu  de  Portugal  para  aquellas  conquistas. 
Não  houve  quem  não  approvasse  esta  acertada  elei- 
ção ,  e  cora  cila  se  comprovou  o  parecer  que  cor- 
reu geralmente  de  que  elrei  obrava  com  lume  su- 
perior nas  disposições  daqucUe  descobrimento.  Na 
despedida  lhe  fez  elrei  singularissimas  honras  ,  e  o 
acompanhou  até  o  logar  do  embarque  cora  toda  a 
nobreza ,  que  então  se  achava  em  Lisboa ,  e  infini- 


to povo.  (•) 


(Am.  Uist.) 


II\  na  ventura  uma  expansão  ou  dissipação  que  nos 
enerva  c  debilita,  como  na  desgraça  uma  certa  con- 
centração que  nos  alenta  e  fortalece  :  na  primeira 
pertencemos  ao  nnnido  externo  ,  na  segunda  a  nós 
mesmos  solidariamente. 

A  IDÉA  geral  c  instructiva  d'uma  vida  futura  é  ar- 
gumento irrefragavcl  de  sua  realidade  :  se  o  homem 
fosso  umanimal  ephemero  e  inteiramente  mortal,  não 
seria  capaz  de  Ião  sublime  pensamento  nem  de  es- 
peranças tão  transcendentes  :  nossa  vida  se  verifica 
porque  a  concebemos. 

O  universo  natural  e  concreto  é  obra  de  Deus ,  o 
mundo  abstracto  creação  dos  homens  c  origem  dos 
seus  maiores  erros. 

O  Sr.  MARQUEZ  DK  Mabicá.  —  Maximus. 


(•)     Vid.    a  respeito   deste  valoroso  capitão  a  pag.  18? 
do  4.°  vol.  da  Serie  1.*  ■  ■'•'■' 


81 


o  PANORAMA. 


217 


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Nas  porfiosas  guerras  ,  que  em  lodo  ou  parle  nas- 
ceram da  revolução  franccza  ,  poucas  batalhas  se 
pelejaram  Ião  importantes  como  a  do  Nilo  ,  dita 
também  de  Aboukir ,  e  não  só  considerando-a  pelo 
lado  da  arte  militar,  como  também  pelas  suas  con- 
sequências politicas. 

Depois  da  rápida  serie  de  conquistas  na  Itália 
em  1797  ,  Napoleão  voltando  a  Paris  foi  acolhido 
cora  excessivo  enthusiasrao :  aproveitando  o  fervor 
da  opinião  publica  ,  traçou  e  pót  por  obra  a  inva- 
são do  Egypto  ,  empreza  arrojada  e  ponderosa  para 
a  qual  allegava  os  seguintes  motiros:  1."  Que  es- 
tabelecida uma  colónia  franceza  nas  margens  do 
Nilo  ,  podia  abandonar-se  o  systema  da  cultura  co- 
lonial pelos  escravos,  e  tirar  dalli  os  géneros  que 
produziam  as  possessões  de  S.  Domingos  e  Anti- 
lhas. 2.°  Que  se  abririam  novos  mercados  para  as 
manufacturas  francezas  na  Africa  ,  Arábia  e  Syria  , 
obtendo  cm  retorno  as  desses  paixes.  3."  Que  t  oc- 

Jumo  lo— 1843. 


cupação  do  Egypto  era  uma  base  de  operações,  pa- 
ra depois  dahi  mandar  um  exercito  de  cincoenta 
mil  homens  ás  margens  do  Indo  e  fazer  causa  com- 
mum  com  os  maratús  c  mahometanos  contra  o  po- 
der da  Inglaterra  na  índia.  £  provavelmente  esla 
uUima  rasão  era  a  verdadeira  causal  da  tentativa. 
Preparada  a  expedição  ,  fcz-se  á  vela  de  Toulon  , 
com  Bonaparte  á  testa,  nos  19  de  maio  de  1798, 
compondo-se  de  23:000  combatentes,  13  naus  de 
linha,  6  fragatas,  e  uma  armada  de  na\ios  de 
transporte  ,  a  que  depois  se  reuniram  novas  forças 
sabidas  de  Génova  e  outras  parles;  de  caminho  con- 
quistaram Malta  no  curto  espaço  de  doze  dias  :  e 
chegaram  ao  Egypto  a  o  de  julho.  ElToctuado  o  de- 
sembarque ,  os  transportes  entraram  para  o  porto 
de  Alexandria  ,  e  as  embarcações  de  guerra  fun- 
dearam ao  longo  das  praias  da  bahia  d'Aboukir. 
Deixaremos  Bonaparte  ,  capitaneando  as  tropas  ,  in- 
ternar-se  terra  dentro  ;  por  qaanto  é  agora  o  nosso 

2.'  Serie.  —  Vol.  11. 


21S 


O  PANORAMA. 


objecto  o  que  se  passou  com  a  esquadra  que  toma- 
ra estarão  na  mencionada  bahia.  O  governo  inglez  , 
impor(ando-Ihe  muito  frustrar  os  desígnios  de  Bo- 
naparte ,  havia  mandado  uma  esquadra  ás  ordens 
tio  conde  de  S.  Vicente,  para  observar  o  armamen- 
lo  de  Toulon,  com  determinação  de  atacar  a  fran- 
ceza,  se  fosse  necessário  com  toda  a  força  naval  do 
seu  commando,  c  quando  não  com  uma  divisão  que 
devia  ser  mandada  por  Xelson  (»).  O  conde  de  S. 
Vicente  expediu  Nelson  do  porto  de  Gibraltar  com 
três  naus  de  7i  peças ,  quatro  fragatas  e  uma  cha- 
lupa :  com  estes  navios  dirigiu-se  ao  golpho  de 
l.eão  para  espiar  os  movimentos  da  frota  franceza ; 
succedeu  que  um  nevoeiro  denso  impediu  chega- 
rem á  vista  ,  e  passando  mais  algumas  léguas  ao 
mar  a  armada  de  Napoleão ,  foi  este  incidente  tal- 
vez a  salvação  dos  poucos  vasos  britannicos  que 
não  poderiam  arrostar  com  força  desmedidamente 
superior.  —  Nelson,  segundo  as  informações  que  al- 
cançou, fez  aviso  ao  commandante  superior,  e  rece- 
beu o  considerável  reforço  de  onze  naus ,  e  a  au- 
ctorisação  de  manobrar  e  seguir  a  campanha  á  sua 
discrição,  como  o  pedissem  as  circumstancias. — 
Nelson  vagueou  pelo  Mediterrâneo  ,  e  a  porção  da 
costa  d'Africa  ,  onde  presumia  encontrar  os  adver- 
sários ;  as  suas  diligencias  foram  infructuosas ,  c 
veio  acondicionar  os  navios  e  fazer  as  obras  preci- 
sas á  Sicilia  ;  daqui  escreveu  n'um  olíicio  ao  almi- 
rantado  uma  rajada,  propriamente  britannica,  mas 
que  a  sua  reputação  de  olíicial  de  mar  e  os  succes- 
sos  posteriores  justificaram  :  dizia  —  «que  os  fran- 
cczes  estão  no  Egypto  é  fura  de  duvida  ,  mas  vão 
ellcs  para  os  antípodas,  ou  seja  para  onde  fòr,  per- 
suada-se  V/  S/  que  não  perderei  momento  de  os 
procurar  e  chamar  a  combate.»  —  Da  Sicilia  de 
novo  sahiu  em  demanda  dos  contrários  ;  o  poucos 
dias  antes  do  combate  disse  aos  seus  officiaes  ;  — 
«ou  eu  ganharei  o  pariato ,  ou  uma  sepultura  ho- 
norifica no  abbadia  de  Westminster.»  —  No  encon- 
tro de  Aboukir  o  numero  de  vasos  era  igual ,  tre- 
ze navios  de  linha  por  cada  parte  ;  só  os  ingiezes 
tinham  de  mais  uma  embarcação  de  30  peças  ;  mas 
assim  mesmo  a  frota  de  Napoleão  contava  ao  lodo 
1:19G  canhões  e  11:230  homens,  e  a  britannica 
1:012  peças  d'artilharia  e  8:068  homens.  Os  na- 
vios francczes  formavam  em  curva  a  linha  de  bata- 
lha;  a  nau  almirante  tomara  posição  quasi  junto  a 
um  lianco  d'areia,  e  todos  na  disposição  em  que  se 
j)ostaram  na  vasta  bahia  estavam  para  assim  dizer 
resguardados  pela  terra  ;  Nelson  concebeu  o  atre- 
vido plano  de  os  mcttcr  entre  dois  fogos  ;  um  de 
seus  primeiros  olliciacs  sabedor  do  desígnio  disse- 
Ihc  : — «Se  nós  sahirmos  bem  o  que  dirá  o  mun- 
do!—  Tornou-lhc  o  almirante:  —  Aqui  não  se  tra- 
ta de  se:  que  sahireraos  bem  é  certo  ;  agora  quem 
iicará  para  contar  a  historia  é  caso  á  parte."  — 
Com  estes  ânimos  de  ferro  se  concluem  emprezas  , 
e  se  vencem  combates.  —  Não  copiaremos  aparte 
ofBcial  da  batalha  ,  nem  reuniremos  as  particulari- 
dades delia  ,  é  facto  contemporâneo  assaz  conheci- 
do ,  c  por  isso  nos  limitámos  á  parte  que  podemos 
chamar  anccdotica.  Fui  pelejada  de  noite  rompen- 
do o  fogo  ás  Gji  da  tarde;  pouco  antes  das  nove 
Nelson  estava  ferido  na  testa  ,  e  o  almirante  frati- 
oez  ,  Brueys  ,  morto  ;  dahi  a  poucos  minutos  pegou 
fogo  cm  a  náu  almirante  franceza ,  1'  Orient ,  de 
120  peças  ,  que  aiipresenlou  pavoroso  espectáculo  ; 
Nelson  no  calor  da  acção  deu  ordem  para  que  as 

(•)     Vid.  a  biographia  de  Nelson  a  pag.  g57  ilo   nosso 
TOl.  4.» 


lanchas  recolhessem  quantos  podessem  dos  que  Oa- 
ctuavam  nas  ondas  por  tão  desastroso  incidente ; 
salvaram-se  ainda  setenta  marujos  francezes.  De- 
pois da  explosão  recomeçou  o  combate  :  nove  dos 
navios  de  Bonaparte  foram  tomados ,  três  arderam , 
e  um  foi  a  pique.' — Extraordinárias  foram  as  hon- 
ras que  recebeu  Nelson  por  este  vencimento. 


O  BRAZEIBO. 


1. 

Era  na  tarde  de  31  de  março  de  1621  : — na  pri- 
mavera. Havia  reunião  na  camará  d'elrei  D.  Filip- 
pe  3.",  no  palácio  de  Buen-Iletiro.  O  ar  era  ainda 
frio  ,  como  de  ordinário  em  Madrid  nesta  estação. 
—  Eslava  no  meio  da  sala  um  brazeiro  de  cobre 
dourado.  Diante  deste  brazeiro  e  de  uma  janella 
que  olhava  para  os  jardins  do  palácio,  c  para  a  es- 
tatua equestre  de  Carlos  S.°,  estava  sentado  n'uma 
cadeira  d'espaldar  elrei  D.  Kilippc  3."  Conhecia-se 
pelas  Ires  condecorações  reaes  que  lhe  brilhavam 
no  peito  ,  a  de  Sant-Iago ,  de  Calalrava  e  de  Alcân- 
tara ;  pela  sua  pallidez  ,  c  pelas  cabellos  ralos  de 
uma  duvidosa  còr  loura  ;  assim  como  pela  barba 
ruiva  que  lhe  rodeava  a  parte  inferior  do  rosto  ; 
que  pertencia  á  casa  d'Auslria  ,  e  que  era  um  dos 
polidos  descendentes  do  glorioso  monarcha ,  cuja 
estatua  ornava  o  Buen-Uetiro. 

Havia  pouco  tempo  que  Filippe  se  levanta'ra  de 
uma  doença  ;  c  ou  fosse  que  a  sua  saúde  ainda  se 
não  tivesse  bastautemente  fortificado  ,  ou  fosse  que 
a  força  vital  ]á  se  lhe  ia  extinguindo  na  idade  de 
•Í3  annos,  é  certo  que  todas  as  suas  feições  mostra- 
vam uma  caducidade  prematura.  Com  a  cabeça  in- 
clinada sobre  o  peito,  couio  se  lhe  não  podessc  com 
o  peso  ;  as  faces  encovadas  ;  os  olhos  amortecidos  c 
sem  expressão  ;  as  mãos  —  as  compridas,  magras, 
ossudas  mãos  —  negligentemente  c  sem  vigor  dcs- 
cançando  nos  joelhos  ;  parecia  nesta  posição  um  mo- 
ribundo de  lucto  por  si  mesmo.  Até  o  logar  da  sce- 
na  ,  apesar  da  presença  de  muitas  pessoas,  era  ta- 
citurno e  mudo  como  a  morada  dos  mortos. 

A  esquerda  da  cadeira  d'elrei  estava  scntadon'um 
raoxo  coberto  de  velludo  o  mordomo-raór ,  que  se 
conhecia  pela  chave  de  ouro  bordada  no  vestido  : 
um  pouco  mais  afastado  ,  mas  do  mesmo  lado ,  es- 
tava o  duque  de  Medina  Cadi ,  uchão-mór  d'elrei , 
que  gozava  do  privilegio  ,  annexo  ao  seu  cargo  ,  de 
diariamente  vestir  e  despir  elrei.  Ainda  mais  afas- 
tados estavam  também  o  eslribeiro-mór ,  o  montei- 
ro-mór  ,  c  outras  grandes  dignidades.  Todos  cora 
rostos  severos  e  immovcis  ,  vestidos  de  preto  ,  man- 
gas largas  e  pendentes,  c  as  cabeças  cobertas  se- 
gundo lhes  competia. 

Do  lado  direito  d'elrei  havia  só  duas  senhoras; 
uma  velha  c  outra  moça  :  a  cara  de  uma  enrugada 
o  a  testa  cheia  de  cuidados ;  a  da  outra  rosada  e 
branca,  ornada  com  os  encantos  vencedores  e  com 
o  brilho  que  aos  vinte  annos  adorna  o  rosto  feminil. 

A  primeira  era  a  camareira-mór  ,  e  a  outra  a  jo- 
ven  [)rinceza  das  Astúrias,  nora  d'elrei,  a  amável 
Isabel  de  França  ,  que  ainda  ha  pouco  havia  troca- 
do uma  vida  cheia  de  festas  e  prazeres  ,  e  o  bello 
clima  da  sua  |iatria  ,  pela  vida  uniforme  e  claus- 
tral  das  rainhas  d'llespanha  ;  troca  que  já  cm  ou- 
Iro  tempo  lóra  Ião  funesta  a  uma  princeza  do  seu 
nome.  A  sua  cabeça  loura  e  rosto  tranquillo  ,  que 
o  sol  de  Castclla  ainda  não  tinha  tido  tempo  da 
crestar ,  estava  era  visível  contraste  com  as  physio- 


o  PANORAMA. 


219 


'  nomias  vivns  do  sul ,  mas  marcadas  com  o  sello  da 
etiqueta.  EIrei  cndircilou-sc  c  rompeu  o  silencio 
[porque  na  córtc  d'Jlcspanha  a  etiqueta  prohilio  a 
todos  o  fallar  sem  serem  perguntados  por  elrei]  ,  e 
disse  com  voz  fraca:  «Esta  audiência  que  me  vi 
obrigado  a  dar  ao  embaixador  francez  gastou-me  as 
forças.  —  Que  horas  são?»  —  «Senhor  —  respondeu 
com  vivacidade  a  princcza  das  Astúrias  —  apenas 
são  quatro. » 

A  estas  palavras  todos  os  olhos  se  voltaram  com 
espanto  para  a  princcza,  e  elrei  franziu  atesta. 
".Minha  filha,  —  disse  elle  com  severidade,  depois 
de  ter  lançado  um  olhar  terrível  —  a  camareira-mór 
devia  ter  prevenido  a  V.  A.  que  só  ao  esmoller- 
raór,  o  duque  de  Medina  Csli,  c  permittida  a  hon- 
ra de  responder ,  quando  elrei  pergunta  as  horas. 

A  princcza  corou,  c  uma  lagrima  cahiu  dos  seus 
olhos.  Filippe  3.°  pareceu  não  ver  tal  e  continuou: 
"Não  c  hoje  31  de  março?» 

Uma  voz  se  ouviu  ,  como  resposta  em  ladainha 
de  moribundos:  «Sim,  senhor.» 

«Este  dia  —  continuou  Filippe  3.°  —  era  em  tem- 
pos passados  um  bello  anniversario  na  corte  d'Hes- 
panha  :  celebrava-se  na  praça  maior  com  uma  cor- 
rida de  touros  ,  e  no  Buen-Retiro  havia  Leija-mão 
solerane  ;  porque  neste  fausto  dia  casei  com  Mar- 
garida d'Austria,  vossa  rainha.  Quem  se  lembra 
ainda  da  rainha  ?  Era-  bella  como  vós,  minha  filha  : 
mas  eu  não  sei  porque  as  rainhas  d'Hespanha  vi- 
vem tão  pouco.  Jlargarida  foi-se  na  Dor  da  sua  bel- 
leza,  e  já  me  está  esperando  ha  dez  annos  no  Escu- 

rial.  —  Isto  ó  triste  :   não  fallcmos  mais  nisto 

Aonde  está  o  príncipe  D.  Filippe?» 

iVinguem  respondeu  a  elrei ,  que  duas  vezes  com 
visivel  impaciência  repetiu  a  pergunta.  A  segunda 
vez  dirigiu-se  á  princcza ,  que  mortificada  respon- 
deu :  «Não  sei.»  Mas  elrei  sem  commiseração  com 
a  joven  esposa  ,  disse  em  tom  colérico  :  «  Enganas- 
te .  mordomo;  eu,  eu  muito  bem  sei  aonde  cslá 
D.  Filippe.  Está  com  alguma  daquellas  malditas  có- 
micas. Porque  não  se  apprescnta  elle  quando  me 
levanto,  como  é  da  sua  obrigação?» 

«  Senhor  ,  —  respondeu  timorato  o  monteiro-mor  , 
a  quem  compete  guardar  a  porta  em  quanto  elrei 
dorme  —  o  príncipe  das  Astúrias  veio  cá  esta  ma- 
nhaã  ,  mas  V.  il.  ainda  dormia  ;  por  isso  lhe  não 
p\ide  permittir  a  entrada.  A  etiqueta  prescreve  que 
os  príncipes  dllespanha  se  appresentcm  no  quarto 
d'elrei  uma  vez  de  manhaã  e  outra  á  noite,  o  ne- 
nliuma  vez  mais,  senão  forem  chamados.» — El- 
rei inclinou  a  cabeça  ,  e  depois  de  um  longo  silen- 
cio ,  disse :  <i  Chama-me  o  reverendo  Fr.  Ambró- 
sio. » 

Fr.  Ambrósio  era  um  dos  cento  c  trinta  monges 
Jerónimos  do  convento  de  S.  l^ourenço  do  Escurial , 
que  ,  como  6  sabido  ,  não  tinham  outra  obrigação 
senão  rcsar  pelas  almas  dos  reis  e  rainhas  d'Hes- 
panha.  Com  profundo  saber  em  historia  e  genealo- 
gias conhecia  as  chronicas  mais  raras,  e  elrei  o  es- 
timava sobremaneira  pela  sua  sciencia  da  etiqueta 
e  usos  antigos.  Dizia-se  que  era  de  uma  das  mais 
illustres  casas  d'Hespanha  ,  mas  que  por  humilda- 
de o  occultava.  Elrei  quando  visitava  o  Escurial 
sempre  o  havia  distinguido,  até  que  lhe  deu  um 
quarto  no  paço  para  mais  frequentes  vezes  lhe  fa- 
zer supportar  o  enfado  da  còrtc.  Dizia-se  que  era 
muito  aíTeiçoado  a  elrei ;  c  durante  a  ultima  doen- 
ça de  Filippe  3.°  se  linha  observado  que  andava 
muito  inquieto  e  agitado,  c  que  continuamente  per- 
guntava aos  médicos  o  estado  do  real  doente,  c  pe- 


dia que  o  dci.\asscm  ir  ao  pé  da  cama  d'elrei,  por- 
que morreria  se  clrei  fallecesse  sem  elle  o  ver  ain- 
da uma  vez  :  e  lambem  mostrou  singular  alegria 
quando  clrei  deu  signacs  de  melhora. 

Em  poucos  Ujinulos  foi  introduzido  Fr.  Ambró- 
sio. Era  um  aucião  bcllo  ,  ainda  forte  para  a  sua 
idade  que  parecia  de  setenta  annos.  O  seu  sem- 
blante ,  enrugado  pela  força  das  paixões ,  assimi- 
Ihava-se  ao  de  ura  leão.  Nunca  levantava  os  olhos 
do  chão  ;  mas  algumas  vezes  lhe  sabiam  chammas 
scintillanlcs  debaixo  das  fortes  sobrancelhas.  Pros- 
trou-se  quasi  diante  d'elrei ,  que  o  fez  sentar-se  ao 
seu  lado. 

«Keverendissimo  —  disse  Filippe  3.°, — perdoc- 
rae  se  o  interrompi  no  exercício  de  alguma  pratica 
de  piedade  :  mas  não  pude  resistir  ao  desejo  de  me 
illustrar  com  a  sua  opinião.  Não  me  podereis  di- 
zer ,  pois  que  tendes  tão  solido  saber  ,  se  fiz  bem 
ou  mal  nesta  occasião?  Veio  appresenlar-se  o  em- 
baixador de  França  ,  e  quando  se  retirava  no  fim 
da  audiência  ,  deí-lhc  a  mão  a  beijar  ,  c  levantei- 
mc  depois  para  o  saudar.  Fiz  bem,  ou  deveria  tcr- 
me  levantado  antes  de  lhe  dar  a  mão  a  beijar?» 

«Senhor  —  respondeu  gravemente  Fr.  Ambrósio, 

—  foi  efTeclivamente  um  erro  que  V.  M.  commet- 
leu  contra  a  etiqueta ,  e  o  embaixador  com  rasão 
se  podia  dar  por  aggravado.  A  representação  d'el- 
rei  de  França  ,  e  os  dobrados  laços  que  o  unem  a 
V.  M. ,  como  esposo  de  vossa  Ulha  ,  e  irmão  de 
vossa  nora,  exigiam  imperiosamente  que  V.  M.  se 
levantasse  primeiro  e  depois  lhe  desse  a  mão  a  bei- 
jar.» 

E  conhecendo  um  riso  imperceptível  nos  beiços 
de  Isabel  de  França,  o  monge  continuou;  uA  eti- 
queta c  uma  cousa  mais  seria  do  que  muitos  pen- 
sam ;  c  em  tempos  vindouros  será  gloria  da  casa 
d'Austria  tc-la  estabelecido  eniHcspanha  sobre  ba- 
ses solidas,  gloria  que  principalmente  hade  reca- 
hir  no  reinado  de  S.  M.  elrei  D.  Filippe  3.°,  que 
nunca  soffreu  a  menor  quebra  da  etiqueta.  Eu  da 
minha  parte  ,  se  Deus  me  der  ainda  alguns  annos 
de  vida  ,  hcide  emprega-los  em  escrever  ura  livro 
em  que  heide  dizer  ludo  o  que  sei  desta  matéria.» 

—  «Desde  já  acceito  a  dedicatória  dessa  obra»  — 
disse  elrei.  —  O  monge  inclinou-sc. 

«Reverendo  padre  —  proseguiu  Filippe  3.". — 
não  poderia  ,  para  fazer  passar  o  tempo  ,  contar-nos 
alguns  dos  acontecimentos  que  hãode  achar  logar 
nesse  livro?» 

A  estas  palavras  o  monge  não  podia  encobrir  uma 
violenta  agitação  nervosa  cm  todo  o  corpo,  mas 
cora  um  esforço  sobre-humano  a  reprimia ,  e  res- 
pondeu em  tom  inteiramente  tranquíllo  :  «Com  mui- 
to gosto,  senhor;  mas  qual  devo  preferir?»  —  «Qual 
quízerdes. » 

Fr.  Ambrozio  recolheu-se  por  alguns  instantes , 
e  depois  principiou  desta  maneira  : 

«Senhor,  quando  durante  a  sua  residência  no  Es- 
curial ,  V.  >[.  tiver  casualmente  caçado  nas  mon- 
tanhas de  Guadarrama ,  não  lerá  observado  do  cu- 
me oriental  donde  se  vè  a  torre  de  Segóvia  .  um 
castello  velho,  hoje  abandonado  e  que  cabe  cm  mi- 
nas?» 

«È  verdade  —  respondeu  elrei ; — no  outono  pas- 
sado matei  um  lobo  perto  dclle.  Não  é  o  castelio 
solar  dos  condes  de  Penacerrada  ?» —  «Sim,  meu 
senhor  ;  uma  das  mais  nobres  e  antigas  casas  de 
Castclla  estes  Penaccrradas.  »  —  «.\ssim  consta.)' 

"Lcmbra-me,  padre,  ter  na  minha  mocidade  ou- 
vido fallar   em  um   conde  desse  nome:   era  ura  va- 


220 


O   PANORAMA. 


Icule  cabo  de  guerra,  qae  ainda  militou  com  o  du-  1  Inr.n  —  «Não  leve  filhos?»  —  «Dois  filhos  teve,  se- 
iHicd'Alva.  c  que  sempre  se  distinguiu.  KIrei  meu  |  nhor.»- — ^«Ouc  foi  feito  delles?»  —  «Apraz  a  V.  M . 
}>ai  apreciava-o  muito.»  —  «Senhor,  a  memoria  de 
V.  M.   é  rauito   liei  ;   justamente    desse    ia   eu    fal- 


ouvir  a  hi>toria  delles '.'n- 
assentimento. 


Klrei  deu  «ra  signal  de 
í  Continuar-sC'haJ. 


rORTICO  E  nUIWAS  be  pansb.osio. 


Erectheion  ó  um  formoso  templo  no  cstylo  jónico  , 
situado  na  cima  occidcntal  da  Acropolis  em  Athe- 
nas  ,  e  que  nos  fins  do  século  passado  fazia  par- 
te desta  moderna  fortaleza.  Lngo  pegado  está  ou- 
tro ,  a  que  chamam  templo  dePandrosio,  ou  de 
Minerva  Polias  ,  com  um  [lequeno  pórtico  ,  que  em 
vez  de  coluninas  ou  pilastras  se  firmava  em  seis  ca- 
ryalides  ,  uma  das  quaes  existe  ao  presente  no  mu- 
seu elginense  de  Londres  ;  e  tem  como  .is  que  em- 
parelhavam cora  cila  sete  pés  d'a!tura.  Caryalides 
cm  architeclura  são  figuras  humanas,  a  que  pri- 
meiro chamaram  persianas,  porque  as  inventou  Pau- 
sanias  ,  pelos  ânuos  478  antes  de  J.  C.  ,  para  ornar 
um  monumento  cm  memoria  da  batalha  de  Platea  , 
em  que  os  persas  invasores  foram  totalmente  derro- 
tados ;  essas  figuras  representavam  os  prisioneiros 
de  guerra,  e  por  isso  as  de  vulto  de  homem  tinham 
as  mãos  atadas  atraz  das  costas  ;  pozeram-lhc  de- 
pois o  nome  de  caryatidcs  ,  por  motivo  igual  ,  em 
commemoração  do  desbarate  dos  círios,  j)ovos  d'.V- 
sia  ,  inimigos  dos  athcnienscs  :  tal  é  a  origem  des- 
ta denominação  segundo  o  grande  mestre  da  archi- 
tectura  Vitru\io;  outros  escri|itiires  porem  as  repu- 
tam de  origem  muito  mais  antiga  que  a  invasão  de 
Xerxes  ,  e  dizem  que  os  gregos  tomaram  do  Egy- 
pto  essa  moda  :  finalmente  ha  quem  supiionha  que 
as  figuras  ,  sendo  femininas  ,  symbolisam  as  virgens 
dedicadas  ao  culto  de  Diana  trazendo  á  cabeça  os 
■vasos  do  serviço  do  templo. 

Krectheion  é^  o  titulo  de  um  livro,  que  trata  es- 
pecialmente do  edificio  do  mesmo  nome;  composto 
pelo  architecto  inglcz  Inwood  ,  que  não  contente 
com  esse  trabalho  imitou  o  templo  grego  ,  c  o  seu 
adjunto  Pandrosio  no  risco  exterior  de  parte  da  no- 
■va  igreja  de  S.  Pancracio  cm  Londres. 


EaClT02<CIA  PCLIvriCA. 

Considerações  sobre  o  Curso  d' Economia  Politica  do 
Sr.  Miguel  Clicvaticr. 

VIU. 

K  CERTO  que  o  sobrecellente  dos  productos  do  la- 
vrador ,  em  geral ,  c  a  regra  e  a  baliza  do  cresci- 
mento das  classes  que  não  cultivam  a  terra.  Mas 
hoje  que  está  preenchido  o  deficit  annual  d'esse5 
productos  ,  c  que  temos  o  alimento  ,  pode  sem  in- 
conveniente, c  deve  a  par  d'elie  nascer  e  fructificar 
o  commudo  ,  apanágio  das  artes  fabris. 

Seja-nos  guia  no  futuro  a  nossa  historia  econó- 
mica que  é  esta.  Fomos  agricultores  no  berço  da 
mimarchia  como  quasi  todos  os  povos  principiantes  : 
não  exclusivamente  ,  porque  á  similhança  de  todas 
as  outras  nações  era  circumstancias  análogas,  fabri- 
cámos ao  mesmo  tempo  vestidos  grosseiros  para  nos 
cobrir  ,  e  móveis  para  nos  servirem  ao  uso  diário. 
Depois  fomos  commerciantcs  ,  d'aquella  espécie  de 
cororacrcio  a  mais  instável  que  se  conhece,  porque 
se  funda  na  ignorância  eterna  e  na  fraqueza  infini- 
ta dos  outros  povos  —  que  é  o  monopólio.  Um  tem- 
po houve  que  (juizemos  applicar  os  nossos  desvelos 
para  as  artes  fabris  ;  masfaltava-lhes  o  pão  que  não 
tirdianios  ;  as  machinas  que  não  adoptávamos  da  in- 
venção alheia  ,  ou  que  não  armávamos  da  própria  ; 
a  emulação  adormecida  com  a  certeza,  enganadora, 
do  mercado  exclusivo  das  colónias;  e  a  paixão  pro- 
gressiva ,  a  energia  das  artes ,  esse  formidável  rea- 
gente ,  inimigo  do  repouso,  que  as  esmorece,  ami- 
go do  pensamento  que  as  punge  sem  descanço  ;  c 
(lesassistidas  de  todos  estes  apoios  ,  apenas  as  desa- 
pussaram  do  mercado  exclusivo  do  lírazil ,   assalta- 


o  PANORA3IA. 


221 


das  poiífo  tlepois  cni  ISIO  pela  irnipriio  dos  aríffa- 
itos  cslrangeifos  ,  iiiglczcs,  c  de  outros  povos  ,  foin 
rapa  e  rotulo  inglez  ,  declinaram  rapidamente  até 
qiip  cm  fim  siictiiml)iram  estas  excclleiílcs  artes. 

Tamliem  pcrlendcmos  voltar  os  olhos  para  a  ter- 
ra ,   mas  que  podia   ella  dar-nos ,    posto  .não  fosse 
avara   nem   estéril  de  tiiesonros ,   se  opprimida   ao 
peso  dus  grilhões  fendaes  a  não  libertava-mos?  Ten- 
ilú  malciiidado  a  agrieiíllnra   e  asfahricas,    liados 
unicamente  no  monopólio  commercial,  quando  oper- 
ileraos ,  chegámos  a  (lonto  de  nos  vermos  obrigados 
a  subsistir  quasi  unicamente   das  accumnlações  do 
trabalho  anterior;    estado  que  durou  desde  que  foi 
transportada  para  o  Brazil  a  sede  da  inouarchia  até 
a  revolução  de  1820.   N'esse  periodo   de  i'2  ânuos 
pôde  dizer-se,  que  appresenlámos  ao  mundo  o  es- 
pectáculo ,  único  na  historia  das  nações  civilisadas  , 
de  um  povo  vivendo,  quasi  sem  crcar  renda  annual, 
dos  seus  capitães ,   esgotando  toda  a  sua  forra  ,  es- 
tancando todas  as  nascentes  da  producção  ;    vendo  , 
ao  mesmo  tempo  perecer  o  seu  commercio,  definhar 
as  suas  fabricas  ,    fechar   ao  solirecellentc   d'alguns 
prodiiclos   da  sua  agricultura   o  único  ou  o  melhor 
mercado  externo  que  tinham  ;   e  aggravando   as  vi- 
cissitudes inevitáveis   da  fortuna  com  os  erros  eco- 
nómicos cuja  imputarão  ,  toda  ,  pertence  ;i  cegueira 
c  ignorância  dos  homei.s.  Era  preciso  sahir  desta  si- 
tuação violenta,  c  eniharnçosa,  sobre  quanto  se  pos- 
sa imaginar,    á  economia   de   um  paiz  ;    e  irrisório 
intenta-lo  sem  revolução  politica.  Ed'abi  a  de  18:20. 
Depois  d'ella  ainda  que  fosse  possível  vjontinuar  a 
predilecção  para  o  anterior  systema  commercial  com 
menosprezo  da  outra  industria,  era  força  trocar  por 
outros  os  regulamentos,  ruinosos  sobretudo  depois  de 
abertos  os  portos  do  Brazil ,  os  regulamentos  pelos 
quaes  se  governava  o  nosso  commercio  externo.  Mas 
perdido  o  Brazil  ,   a  pedra  angular  d'esse  systema  , 
era  então  indispensável  descontinua-lo,  e  lançar  mão 
da  agricultura  e  das  fabricas.  O  peso  dos  hábitos  era 
tão  poderoso  ;  os  espíritos  tão  affeitos  asupprir-se  no 
mercado  estrangeiro   do  pão  e  dos  vestidos  e  com- 
niodos  que  o  paiz  não  produzia  ;   o  geito  da  carrei- 
ra da  America  tão  antigo,  que  a  custo,  e  como  con- 
trafeitos,  nos  fomos  encaminhando  para  nova  vere- 
da, e  novo  regimen  económico,  com  tamanha  repu- 
gnância q^e  só  passados  doze  annos  ,   três  guerras 
civis,  a  ultima  semeada  de  grandes  catastrophcs,  e 
remível  somente  por  grandes  reparações,  íUustrados 
e  pungidos   de  desenganos   tão  estrondosos  ,    só  en- 
tão nos  resolvemos  a  entrar  ,  francamente  ,   era  ca- 
minho diverso  do  até  ahi  cursado.   Emancipou-se  a 
terra  ,   e  cinco  annos  depois  a  terra  retribuía  agra- 
decida, e  até  generosa,  o  beneficio.  Soltaram-se  cer- 
tas prisões  á  industria  fabril.  Não  bastava.  Mas  pres- 
tnu-se-lhe  favor  directo,  e  logo  começou  ella  a  mos- 
trar signaes  de  vida  ,   e  mesmo  a  engrossar  e  cres- 
cer ;  c  engrossava  e  crescia,  porque  alem  de  desas- 
sombrada de  uma  lucta  perigosa  a  sua  fraqueza  in- 
fantil  se  ia  prevenindo  e  fortalecendo  de  meios  de 
resistência  ,  de  machinas  e  capitães  e  experiências 
c  ensaios  para  quando  a  sua  robustez    a  habilitasse 
combater   sem  desavantagem  ,   e  mesmo  a  aperfei- 
çoar-se  nas  lides  da  concurrencia. 

Em  quanto  os  factos  tomavam  assim  um  rumo  de- 
terminado ,  Contribuindo  a  que  se  acordasse  por 
uma  vez  n'um  systema  económico  definitivo  ,  os  juí- 
zos incertos  e  vários  ílucluavam  ,  ou  divergiam.  Ora 
se  dizia  :  a  nação  é  essencialmente  agrícola  :  do  so- 
lo c  que  ella  ha-de  extrahir  a  sua  riqueza  e  prospe- 
ridade ;   asfahricas  atrazam-na  e  empobreccin-na. 


Ora  insinuavam  qun  a  agricultura  não  promcllia  n 
que  se  cuidava  ,  c  que  se  o  reino  se  achava  basle- 
cido  de  cereaes  era  [lelo  contrabando  ,  não  pela  co- 
lheita. Estes  iiroclamavara  então  o  commercio  úni- 
ca ancora  de  salvação  :  arrazar  as  barreiras  que  lhe 
oppunham  as  alfandegas  ,  quebrar  as  algemas  que 
a  natureza  ou  a  nacionalidade  tinha  forjado  aos  prin- 
cipaes  dos  nossos  rios,  destruir  quanto  se  lhes  re- 
presentava empecimcnto  á  entrada  c  circulação  dos 
produclos  estrangeiros  —  tal  era  o  seu  voto. 

Mas  veidio  ao  nieu  pensamento  que  é  —  a  neces- 
sidade de  pôr  termo  a  estas  frequentes  oscillações 
e  de  lixar  por  nina  vez  o  nosso  systema  económico. 
E  este  systema  deve  ser  mixto  ; — ao  mesmo  tempo 
agrícola  ,  fabril ,  c  commercial.  Agrícola  pela  fer- 
tilidade do  nosso  torrão  ,  a  extensão  o  preeminên- 
cia da  nossa  agricultura  sobre  as  outras  industrias, 
e  a  necessidade  do  alimento  a  que  todo  o  estado 
deve  consultar.  Fabril  para  supprir  ao  nosso  mer- 
cado domestico  meramente,  porque  nem  a  superio- 
ridade industrial  de  outros  povos  ,  nem  os  capitães 
que  precisámos  plantar  na  terra,  nos  permittem  dar 
ás  fabricas  tamanho  impulso  que  nos  babilite  a  na- 
ção exportadora  de  artefactos.  Commercial ,  para 
conser\armos  as  possessões  do  ultramar.  E  maríti- 
mo também;  porque,  para  sermos  commerciantcs  de 
commercio  externo  ,  havemos  de  ser  navegadores. 

Temos  assaz  capitães  para  manejar  tantas  indus- 
trias ao  mesmo  tempo?  Não  são  bastantes,  eu  o  con- 
fesso, para  despregar  a  desejada  energia  e  actividade 
era  todas  cilas.  Em  tal  caso,  dir-me-hão,  não  convi- 
ria applicar  esses  capitães  que  temos  á  agricultura 
somente  para  tirarmos  d'ahi  o  beneficio  que  a  nossa 
inferioridade  ,  e  a  disseminação  dclles  por  dijferen- 
tes  emprczas  nos  não  promette  '.  Este  conselho  pôde 
traduzir-se  assim  :  comprai  os  artefactos  ás  nações 
fabris  :  fazei  o  vosso  commercio  externo  nos  vasos 
das  nações  marítimas  ;  ou  encarregaí-as  de  fazer 
por  vós  esse  commercio  :  porque  d'este  modo  os  ar- 
tigos fabris  ,  o  commercio  ,  e  o  carreto  marítimo 
vos  sahirão  muito  mais  baratos.  A  querermos  ser 
cohereutes  ,  deveríamos  também  comprar  trigo  era 
Odessa  ,  no  Báltico  ,  nas  duas  Castellas  ,  abando- 
nando a  agricultura  pelo  mesmo  principio  porque 
largávamos  as  fabricas  ,  a  navegação ,  e  o  commer- 
cio. Alimentados,  então,  vestidos,  transportados 
por  estrangeiros  ,  em  completa  ociosidade  ,  víviria- 
mos  á  lei  da  nobreza  ,  mas  de  que  havíamos  de  vi- 
ver? De  que  rendas,  de  quaes  minas? 

Sc  nós  tivéssemos  um  monopólio  natural  tão  im- 
portante como  o  do  chá,  com  mais  fundamento  des- 
viaríamos das  outras  industrias  os  capitães  para  os 
empregarmos  exclusivamente  no  grangeio  d'esta . 
suppondo  que  ,  muito  mais  lucrativa  que  todas  as 
outras  juntas,  fosse  bastante  a  manter-nos  uo  esta- 
do de  nação.  Mas  se  nós  não  possuímos  senão  o  mo- 
nopólio dos  viulrns  do  Porto,  ínsuíncicntc  a  índem- 
nísar-nos  da  perda  de  outros  rendimentos,  e  demai.s 
enfraquecido  e  combattido  todos  os  dias  por  outras 
nações ,  e  pela  inconstância  da  moda  e  os  caprixos 
do  paladar ,  que  havemos  de  fazer  senão  valer-nos 
dos  motores  industriaes  communs  a  todos  os  povos 
civilisados  ,  e 'produzirmos  nós  mesmos  os  artigos 
reclamados  pelas  necessidades  mais  geracs  do  nosso 
mercado  interno?  Que  pelas  difierentes  industrias 
se  distribuam  em  proporções  justas  e  adequadas  á 
quantidade  d'ellcs  c  á  importância  relativa  de  cad.i 
industria  os  capitães  ,  bem  é  :  essa  distribuição  se 
executará  pela  simples  premoção  o  ínstincto  do  in- 
teresse particular  com  mais  acerto  do  que  o  seria , 


«22 


O  PANORAMA. 


SC  opodesse  ser,  pelas  combinações,  fossem  ellas  as 
mais  apuradas,  do  legislador.  Mas  que  não  sendo  o 
nosso  solo  dotado  cora  nenhum  produclo  natural  pri- 
vilegiado, de  grande  exportação  ,  e  extraordinário 
consumo ,  vamos  consagrar  á  terra  Iodas  as  fadigas 
c  cuidados  desamparando  as  artes  faJjris ,  c  desde- 
nhando-as  como  agente  muito  subalterno  da  rique- 
za ,  só  nos  occupenios  delias  nas  horas  vagas  ,  por 
curiosidade  e  desenfado  ,  não  me  parece  prudente. 

Se  como  os  Estados-Unidos  produzíssemos  em 
grande  copia  algumas  matérias  primas  de  imniensa 
procura  para  as  fabricas  ,  como  o  algodão  e  outros 
géneros  —  se  as  machinas  vorazes  o  as  insaciáveis 
oflicinas  da  nossa  Europa  deparassem  em  Portugal 
o  principal  artigo  da  sua  elaboração  infatigável, 
demittissemos  então  de  nós  ,  muito  embora  ,  o  offi- 
cio  de  fabricantes  :  não  seria  erro  :  posto  mais  se- 
guro fora  ,  talvez ,  não  o  demittir  de  todo.  Convém 
sempre,  eratbese,  a  uma  nação  essencialmente  agrí- 
cola tecer  por  suas  mãos  próprias  os  vestidos  singe- 
Jos  da  classe  que  rega  a  terra  com  o  seu  suor  :  e 
o  mais  ardente  egoisrao  da  nacionalidade,  os  precon- 
ceitos mais  exaggcrados  ou  mais  poéticos  da  inde- 
pendência fraternisão  neste  ponto  com  os  preceitos, 
áridos  e  inexoráveis,  da  snicncin.  Por  patriotismo 
e  por  calculo,  seja  cioso,  pois  o  deve  ser,  de  ves- 
lir-sc  a  si  mesmo  o  povo  agricultor.  Se  na  exporta- 
ção do  algodão  consiste  a  sua  riqueza,  a  sua  rique- 
za não  ha-de  padecer  quebra  ,  ainda  que  elle  recu- 
se acceitar  pannos  em  troca  do  algodão ,  porque  c 
este  um  producto  Ião  afreguczado  ,  que  na  actual 
situação  económica  do  mundo  não  haverá,  por  mui- 
tos annos,  probabilidade  de  que  afTrouxe  o  seu  con- 
sumo :  c  d'este  modo  o  paiz  que  ó  agricultor,  es- 
teja tranquillo  sobre  a  sua  extracção.  Eaqucllepaiz 
agrícola  ,  pelo  contrario  ,  que  não  é  exportador,  ou 
cuja  maior  riqueza  se  não  cifra  na  exportação  de 
productos  de  monopólio  ,  com  dobrado  motivo  deve 
fabricar  vestidos  para  as  suas  classes  laboriosas , 
porque  limitaudo-se  quasi  ao  interno  todo  o  seu  mer- 
cado, aproveita-lhe  mais  que  a  qualquer  outro  am- 
plia-lo por  agencia  das  fabricas  ,  que  serão  um 
acrecido  de  consumo  para  os  seus  productos  ruraos. 

Resulta  ,  pois  ,  que  somente  os  paizes  ,  como  os 
Estados-Unidos  c  o  Brazil ,  opulentos  em  productos 
iiaturaes ,  c  esses  exclusivos  ou  quasi ,  e  alem  de 
exclusivos  muito  superabundantes  ás  necessidades 
do  consumo  domestico ,  e  muito  procurados  para 
uso  das  fabricas  ou  do  liomem  ,  podem  ,  sem  grave 
darano,  escusar  o  cxcrcicio  da  industria  fabril,  mas 
não  tanto,  esses  mesmos,  que  vão  comprar  a  nações 
estranhas  as  alfaias  mais  ordinárias  do  serviço  das 
suas  classes  pobres.  E  que  os  outros,  como  o  nos- 
so ,  desfavorecidos  de  similbatite  vantagem,  se  qui- 
zerem  adiantar-se  cm  riqueza  ,  ou  reaniraar-sc  do 
abatimento  ,  bão-dc  combinar  com  a  agricultura  as 
artes  fabris. 

X  nós  é  esta  combinação  muito  favorável ,  pois 
com  cila,  ao  lado  da  nossa  principal  producção  que 
é  a  agrícola  creâmos  tim  mercado  activo  para  as 
matérias  primas  e  os  alimentos  que  fornece  a  terra, 
o  qual  del)alde  jirocurariamos  fora  do  reino  ,  visto 
(jue  do  próprio  vinlio  ,  que  é  o  principal  artigo  da 
nossa  exportação  o  grande  consumidor  é  Portugal. 
E  esse  mesmo  artigo  não  o  exportámos  ]ior  sobre- 
pujar muito  ao  su[)primeiilo  interno  ,  como  o  assu- 
(•ar  no  lirazil ,  c  o  algodão  na  America  do  Norte  , 
porque  do  vinho  que  produz  o  nosso  solo,  segundo 
indica  o  rendimento  do  subsidio  litlerario,  se  fosse 
cscançado  pelas  duas  terças  partes  dosporluguezes 


da  Europa ,  tocaria  a  cada  um  pouco  mais  de  meio 
quartilho  por  dia  ;  circumstancia  que  mostra  não 
só  que  elle  não  chegou  ainda  ao  máximo  da  sua  ex- 
tracção possível  e  rasoavel  dentro  do  reino  ;  mas 
que  Portugal  está  longe  de  ser  verdadeiramente  ex- 
portador, ou  de  poder  basear  na  exportação  de  gé- 
neros agrícolas  todo  o  seu  systema  económico  ,  sa- 
crificando outros  recursos  e  instrumentos  de  rique- 
za social.  Alem  do  vinho  vendemos  ,  na  verdade  , 
aos  estrangeiros  outros  productos  agrícolas  ,  como 
c  o  sal ,  mineral  valioso  que  nos  sobeja  em  grande 
excesso  ,  mas  de  rendimento  muito  inferior  ao  do 
vinho.  E  também  frutas  e  hortaliças  ,  sobre  os  pro- 
veitos de  cuja  exportação  não  haverá  quem,  certo, 
erga  o  princípio  anti-fabril  sem  excitar  um  riso 
mais  inextinguível  do  que  o  dos  deuses  de  Homero. 

(Continuar-se-ha. ) 
A.  d' O.  Marreca. 


CCIDADOS    QUE    SE    nEVEM    TEB    COM    OS    E.fFEBMOS. 

Deparou-se-nos  um  artigo  assim  denominado  por 
Mr.  Raticr  ,  doutor  em  medicina  pela  universida- 
de de  Paris  ,  pratico  mui  conhecido  por  seu  zelo  . 
luzes,  e  publicações  hygienicas  ,  que  por  sua  im- 
portância ,  precisão  ,  clareza  ,  c  utilidade  pareceu- 
nos  conveniente  extrabir  do  Jornal  dos  Conheci- 
mentos Úteis  tom.  1.°  pag.  IG.  Raras  addições  nos 
pareceu  juntar-lhe.  =Imagina-se  ,  diz  o  citado  au- 
ctor ,  haver  desempenhado  tudo  quanto  é  nccessa- 
rii  ao  enfermo  quando  se  ha  ministrado  tantos  cal- 
dos por  dia  ,  tantos  copos  de  remédio  ,  tantas  co- 
lheres de  cordeal ,  &c.  ,  o  pouco  se  inquietam  do 
ar  que  ello  respira  ,  do  regimen  alimenlario  que  se 
deve  seguir,  da  limpeza  e  accio  era  que  deve  estar, 
c  principalmente  do  repouso  de  corpo  e  d'cspirilo 
que  lhe  são  indispensáveis.  Por  uma  imperdoável 
condescendência,  cm  logar  d'executar  arisca  as 
ordenanças  do  medico,  se  facilitam  ao  doente  ali- 
mentos defczos  ,  como  vinho  ,  c  outros  ;  conservam 
o  quarto  do  enfermo  sempre  fechado  ,  não  renovam 
o  ar,  nem  lhe  mudam  a  camisa  c  lençoes  da  cama, 
assentando  que  lodo  o  ponto  está  em  reduzir  o  en- 
fermo a  uma  immobilidade  perfeita  ,  e  em  afastar- 
Ihe  o  contacto  do  ar  almosphcrico.  A  barbaridade 
e  a  preoccupação  neste  artigo  chega  muitas  vezes 
ao  excesso  de  privarem  inteiramente  <la  luz  do  dia 
a  camera  do  doente  ,  fazendo-o  respirar  ,  alem  de 
um  ar  corrupto  o  carbónico  das  luzes  perpetua- 
mente ncccsas.  Outra  prejudicialissima  prevenção  é 
assentarem  que  se  não  podo  viver  ,  nem  tratar  do 
enfermo  sem  lho  fazerem  tomar  algum  alimento  diá- 
rio ,  ainda  mesmo  que  o  medico  o  tenha  prohibido 
[o  costume  generalisado  ilos  caldos  de  galinha  está 
neste  caso].  Quantas  mortes,  produzidas  por  um  si- 
milhnnte  absurdo,  tem  acontecido  nos  casos  em 
que  é  absolutamente  indispensável  uma  abstinência 
total  ! 

Mui  felizes  os  enfermos  a  quem  não  rodeiam  se- 
não pessoas  discretas  ,  inlelligentcs  ,  zelosas  ,  c  as- 
saz lirnies  para  executar  á  risca  as  recommeuda- 
ções  do  medico.  Km  vez  de  taes  pessoas  .  os  ami- 
gos ,  os  parentes  ,  os  domésticos  clieios  de  ternu- 
ra ,  e  (Fuma  muito  mal  entendida  binnanidade  ce- 
dem aos  desejos,  ou  phantasias  do  enfermo  ;  minis- 


o  PANORAJMA. 


223 


tram-lhc  refrigerantes  c  outros  allivios  passageiros, 
mas  uocivos  ;  diminuem  as  quantidades  dos  medi- 
camentos prescriptos  por  comprazer  ao  doente  ;  c 
quasi  sempre  os  aturdem  por  um  palavreado  inútil 
a  titulo  de  distraliir,  ou  animar  o  pobre  pade- 
cente. 

Assim  que  ;  limpe:a  ,  discrição ,  bondade  mislura- 
da  com  firmeza  ,  intclligencia  ,  c  exaclidão  em  exe- 
cutar as  ordens  do  facultativo,  cuidado,  e  reminis- 
rciiria  para  dar  a  cslc  conta  de  tudo  o  que  lhe  im- 
porta conhecer :  eis  todas  as  qualidades  que  se  re- 
([ucrem  no  enfermeiro  ;  e  é  isto  o  que  mui  rara- 
mente se  encontra.  Mas  estes  predicados  do  espiri- 
to não  bastam  só  :  convém  que  seja  assaz  forte  e 
robusto  para  supportar  as  fadigas  e  a  vigilia  ;  para 
levantar ,  ou  volver  o  doente  ;  e  desembaraçado  c 
geitoso  para  praticar  as  miúdas  applicações  e  cura- 
tivos periódicos  que  não  estão  a  cargo  do  medico 
ou  cirurgião.  Desgraçadamente  este  oliicio  c  empre- 
go ,  tão  necessário  quanto  delicado  ,  não  está  cm 
voga  ,  nem  é  seguido  como  cumpria.  As  mulheres 
são  ordinariamente  mais  próprias  para  isto  do  que 
os  homens  ;  e  povos  ha  onde  esta  importante  tarefa 
faz  o  objecto  d'ura  instituto  religioso  ;  taes  são  as 
beguiuas  na  Bélgica ,  as  irmaãs  da  caridade  em 
França  ,  e  n'outras  partes. 

Apesar  de  tudo  seria  para  desejar  que  só  amigo 
e  parentes  se  quizessem  encarregar  de  guardar  e 
servir  os  doentes  de  consideração.  Ima  guarda  de 
algumas  horas  repartidamenle  não  é  demasiado  pe- 
nosa ;  e  tudo  iria  melhor ,  e  mais  discretamente 
feito  tendo  o  cuidado  d'afastar  aquelles  que  por 
sua  fraqueza,  ou  demasiada  ternura  são  inaptos  pa- 
ra isso.  Se  as  pessoas  nimiamente  afiectadas  d'inte- 
resse  c  estremecido  cuidado  pelo  enfermo  se  dedi- 
cassem a  esta  tarefa  substituiriam  o  sentimento  á 
rasão  ,  c  ver-se-hia  talvez  cm  logar  dum  enfermo 
dois  ou  três. 

O  que  for  nocivo  para  um  são,  não  poderá  jamais 
ser  útil  a  um  doente.  Assim  um  ar  demasiado  es- 
pesso e  carregado  ,  uma  temperatura  muito  quente  e 
ithafada  é  cousa  absolutamente  prejudicial.  Pelo 
contrario  é  preciso  que  o  ar  do  quarto  seja  puro, 
fresco  e  renovado  a  miúdo  ,  havendo  todavia  a  pre- 
caução de  desviar  a  corrente  d'ar  frio:  dever-se-ba 
.ibrir  as  janellas  e  porta  alguns  instantes  cada  dia  , 
tbchando  então  as  cortinas  do  leito,  ou  resguardan- 
do com  coberturas  o  enfermo.  Xo  inverno  se  deve 
conservar  n'uma  temperatura  doce  e  agradável  afo- 
gueando a  camcra  com  brazas  vivas  de  lenha  de 
vides ,  no  caso  que  ahi  não  haja  chaminé  em  que 
possa  alimentar-se  fogo  brando  ;  de  modo  que  haja 
sempre  15  ou  16  graus  de  calor  de  thermometro 
deReaumur.  [Nós  estamos  persuadidos  que  ha  uma 
verdadeira  preoccupoção  em  snppòr  que  nos  paizes 
temperados  .  nos  chamados  mesmo  de  clima  quente 
como  em  líespanha  e  Portugal ,  não  ha  jamais  ne- 
cessidade de  fogo'  senão  nas  cosinhas:  em  Lisboa 
mesmo  ha  nos  mezes  de  dezembro  e  janeiro  dias 
muito  frios  era  que  não  só  os  doentes,  os  sãos  mes- 
mo ganhariam  era  commodidade  e  saúde  aquentan- 
do-se  ao  fogo.  O  receio  das  constipações  é  ura  pa- 
pão ,  ura  phantasma  ridículo  para  com  as  pessoas 
sensatas  c  discretas  que  tomassem  as  precauções 
communs  e  ordinárias  a  todos  os  seres  rasoaveis  :  o 
contrario  disto  é  solTrer  um  mal  actual  pelo  receio 
d'um  futuro  incerto]. 

Deve  empregar-sc  todo  o  cuidado  em  evitar  to- 
dos os  cheiros  fortes  e  desagradáveis.  Convirá  mui- 
tas  Tezes  renovar  e  purificar  o  ar  com  fumigaçõc» 


de  chlorato ,  empregadas  com  moderação  :  todas  a$ 
demais  triviaes ,  como  dos  fumos  de  vinagre,  d'as- 
sncar ,  d'alfasema  ,  de  pólvora  ,  de  genebra  ,  ou 
d'agua  de  colónia  ,  (5ic.  não  servem  senão  de  mas- 
carar a  infecção  e  podridão  do  ar  sem  remediar  o 
mal. 

lin  outro  costume,  desgraçadamente  muito  com- 
mura  ,  é  o  de  sobrecarregar  os  enfermos  de  vestidos 
c  col)erturas  demasiado  (jtientcs:  nem  muito,  nem 
pouco  é  a  regra  adoptavel.  V.  necessário  que  ne- 
nhum aperto  nem  ligadura  oppressora  cerre  o  doen- 
te :  os  colchões  de  pluma  ,  e  outros  demasiadamen- 
te moles  devem  ser  banidos  da  cama  dos  enfermos  : 
os  melhores  leitos  para  estas  occasiões  são  os  mo- 
veis ;  aquelles  era  volta  dos  quaes  se  pôde  andar  , 
que  facilmente  se  podem  mudar  c  desfazer  sem  in- 
commodo  do  doente.  Já  se  vè  por  isto  que  os  mais 
ricos  e  luxentos  leitos  são  os  menos  próprios  para 
estas  occasiões  :  uma  cama  levantada  sobre  bancos 
ou  cadeiras  será  a  mais  conveniente  ao  tratamento 
do  enfermo.  Para  os  casos  de  fractura  e  deslocação 
de  membros  são  excellentes  os  leitos  mechanicos 
de  Danjon ,  por  meio  dos  quaes  o  doente  se  pôde 
levantar  e  voher  sem  ajuda  doutrem.  Deve  procu- 
rar-se  que  o  doente  tenha  sempre  os  pés  quentes  ; 
e  muito  refrigera  e  consola  os  enfermos  mudar-llic 
a  roupa  da  cama  de  tempos  em  tempos.  Outra  abu- 
são muito  espalhada  c  que  não  convém  aos  enfer- 
mos lavar-se  ;  e  não  é  raro  verem-se  doentes  que 
durante  trinta  e  quarenta  dias  não  tem  chegado  ao 
rosto,  á  boca,  e  ás  mãos  uma  gota  d'agua  por  lim- 
peza ;  que  emfim  são  conservados  n'um  estado  com- 
pleto de  desalinho,  e  esqiialidez  repugnante.  Alem 
do  rosto  ,  da  boca  ,  dos  dentes  e  das  mãos  ,  que 
lodos  os  dias  devem  ser  lavados  com  agua  morna  . 
é  indispensável  também  lavar  com  uma  esponja  mo- 
lhada n'agua  avinagrada  ou  aguardentada  as  partes 
do  corpo,  que  estando  naturalmente  mais  sujeitas 
á  pressão  contínua  ,  necessitam  de  serem  limpas  a 
miúdo. 

O  regimen  alimentar  é  tão  essencial  que  muitas 
vezes  elle  só  completa  o  tratamento ,  e  oppéra  a 
melhora.  Era  quasi  todas  as  moléstias  agudas,  prin- 
cipalmente nas  que  são  acompanhadas  de  maior  ou 
menor  desarranjo  de  digestões,  o  principal,  e  mui- 
tas vezes  o  único  remédio ,  é  a  abstinência  de  co- 
mer ;  isto  é  ,  o  curativo  em  tal  caso  é  pôr  em  re- 
pouso o  órgão  fatigado.  A  dieta  portanto  é  ponto 
capital :  ministrar  alimento  a  um  doente  de  febre  , 
é  augmenta-la  (•).  Kão  se  deve  sob  pretexto  qual- 
quer dar  vinho  aos  enfermos  sem  uma  expressa  or-  . 
dem  do  medico.  A  melhor  bebida  que  se  possa  for- 
necer a  um  doente  e  convalescente  é  agua  pura  , 
ou  ligeiramente  assucarada,  ou  misturada  com  uma 
colher  de  bom  vinho  muito  velho.  É  um  costume 
reprovado  dar  muitas  vezes  de  comer  aos  doentes  ; 
pouco  e  digerivel  c  o  que  convém  :  e  para  que  se 
não  encontrem  no  estômago  os  alimentos  com  os 
medicamentos  é  forçoso  que  haja  íntervallo  rasoa- 
vel  para  que  os  segundos  não  sejam  annullados  pe- 
los primeiros. 

Não  se  deve  jamais  forrar  a  natureza:    convém 


(•)  Nus  eocunfrámos  n'inr.a  oollecrào  d'ohservaçries  hr- 
çieiíicas  dum  homem  mui  illiislrado  iim.i  que  cabe  aqui 
muito  a  propósito  :  ^Tem-se  communicado  da  índia  o  uso 
da  canja  darroz  (arroz  cosido  em  agua)  como  o  alimento 
mais  próprio  para  dieta :  o  caldo  de  galiiilia  sendo  absur- 
damente ministrado  aos  doentes  de  febre.  Descobriu-se  este 
uso  na  índia  por  occasiào  d'unia  epidemia,  em  falta  de  cu- 
mesliveis ;  com  uso  d'arroz  cosido  multo  raro  em  acua  e  sa! 
Eararam. 


224 


O  PANORAMA. 


obscrva-Ia  ,  c  ajudar  seus  esforços  :  por  conseguin- 
te na  suppressão  das  evacuações  é  preciso  sim  pro- 
curar remover  a  dilliculdadc,  porem  jamais  com  vio- 
lência c  repetições  cjue  cscandalisem  c  mortifiquem. 

Sc  o  repouso  physico  é  necessário  aos  doentes  ,  o 
rcpnuso  e  tranquiUidadc  d'alma  não  é  menos  impor- 
tante. As  comoções  fortes  podem  fazer  degenerar 
om  moléstias  graves  ligeiras  indisposições.  A  cspc- 
ranra  v  a  mãi  da  alegria  ,  e  é  por  taes  caminhos 
que  se  aligeiram  os  males  do  enfermo. 

As  mortes  apparciites  reclamam  igualmente  um 
especial  cuidado  da  parle  dos  enfermeiros,  c|ue  de- 
sorientados pela  illusão  ou  abandonam  os  pobres 
enfermos  ,  ou  os  tratam  como  cadáveres  dcscobrin- 
do-os ,  lirando-os  do  leito,  &c.  A  decisão  decreto- 
ria  do  finado  pertence  aos  homens  da  arte. 

(J.  da  C.  N.  C.) 


Op.rUEU  ,    SEGL.NDO   i  FABILI   E    A   IIISTORU. 

OiiiMiEU  ,  filho  dc  Apollo  e  da  musa  Calliope  ,  nas- 
ceu em  Thracia  ,  e  habitando  junto  ao  monte  Ro- 
dopes  casou  com  Euridice  ,  princeza  daquelle  paiz. 
Arislaco  ,  príncipe  visinho  ,  se  namorou  desta  apai- 
xonadamente, e  premeditou  viola-la;  mas  cila,  pa- 
ra se  subtrahir  á  violência  do  fogoso  príncipe  ,  fu- 
giu para  o  campo  aonde  falleceu  da  mordedura  de 
uma  serpente.  Tão  atribulado  ficou  o  marido  cora 
a  perda  de  sua  mulher  que  desceu  ao  inferno  aon- 
de esperava  encontra-la.  Orpheu  era  dotado  de  ra- 
ro talento  para  a  musica  e  poesia  ,  e  tão  bom  uso 
fez  delles  nas  regiões  infcrnaes  que  ÍMutão  e  Pro- 
sérpina lhe  restituíram  a  esposa  ,  com  a  condição 
de  que  não  voltaria  a  cara  atraz  sem  que  chegasse 
a  ver  a  luz  do. mundo.  Ou  Plutão  não  sabia  que 
cousa  era  amor  ,  ou  então  quiz  zombar  do  pobre 
Orpheu;  porque  sujeitar  um  marido  a  que  em  tão 
extenso  caminho  se  não  mova  para  ver  se  sua  ama- 
da consorte  o  segue,  era  querer  um  impossível.  Im- 
paciente Orpheu  por  ver  Euridice,  e  desejando  cer- 
lificar-se  se  cila  o  seguia  ,  quebrou  a  promessa  ,  e 
perdeu  para  sempre  sua  mulher.  Orpheu  cm  quan- 
to esteve  nas  trevas  elogiou  nos  seus  cânticos  a  to- 
dos os  deuses  ;  esquccendo-se  de  líaccho  por  olvido 
inexplicável.  Este  deus  ,  estimulado  com  a  affron- 
ía ,  instigou  por  tal  forma  as  Menades ,  suas  sa- 
cerdotizas  ,  que  fizeram  cm  pedaços  o  poeta  musi- 
co ,  espalhando-lhc  os  membros  pelo  campo  ;  —  as 
musas ,  porem  ,  os  juntaram  ,  em  premio  de  ter  el- 
le  excellentemcnte  cantado  cm  louvor  d'ApolIo.  Ha 
quem  descreva  mui  diversamente  a  sua  morte  ;  mas 
isso  pouco  nos  importa  ,  pois  agora  só  trataremos 
da  vida. 

Todos  concordam  em  queOr[)hcu  foi  um  dos  mais 
antigos  poetas  da  Grécia  ,  e  o  primeiro  que  iiilro- 
duziu  os  ritos  dc  JUaccho.  —  Era  pessoa  dc  consu- 
mados talentos  ,  e  o  mais  sábio  dos  discípulos  de 
l.ino.  Estabcleec\i  expiações  para  os  maiores  cri- 
mes ,  e  ritos  para  applacar  a  cólera  das  mais  olTen- 
diiias  divindades,  sendo  ao  mesmo  tempo  medico 
liahilíssirao  na  cura  dc  todas  as  enfermidndes.  Al- 
trihucm-se-lhe  muitos  livros  em  que  trata  da  mu- 
tua geração  dos  elementos;  da  força  do  amor  nas 
pnxlncções  naturaes;  das  guerras  dos  gigantes  com 
•lopilcr;  do  rapto  e  queixa  de  Prosérpina;  das  pe- 
regrinações dc  Ceres  ;  dos  trabalhos  dc  Hercules  ; 
das  ccremonias  dos  Coribantcs  ;  das  respostas  rays- 
teriosas  dos  oráculos ;  dos  sacrificios  de  Vénus  e 
Minerva ;   das  lamentações  dos  egypciuí  por  Osi- 


I  ris  ;  e  da  interpretação  de  sonhos  ,  signacs  ,  prodí- 
gios ,  e  expiações  pelos  defunclos.  Orpheu  jactava- 
se  de  possuir  a  arte  de  ensinar  aos  homens  a  lin- 
guagem dos  pássaros  ;  c  dc  descobrir  a  vontade  de 
Júpiter  pelo  vòo  das  aves ;  de  poder  deter  os  dra- 
gões em  sua  carreira;  dc  tirar  a  peçonha  ás  ser- 
pentes ,  e  de  adivinhar  cm  muitos  casos  as  inten- 
ções dos  homens.  Kão  deve  pois  admirar  que  po- 
desse  amansar  as  feras  com  os  sons  da  sua  lyra , 
fazer  parar  o  curso  dos  rios,  amainar  as  tempesta- 
des ,  nem  que  se  movessem  montes  e  arvores  para 
o  escutar  I  ! 

Os  antigos  snppozeram  que  Orpheu  viveu  no  tem- 
po dos  Argonautas  ,  e  que  tonKÍra  parte  naquella 
expedição.  Esta  fabula  teve  origem  no  Egyplo  —  o 
paiz  das  ficções.  Quando  no  mez  de  julho  o  sol  en- 
tra no  signo  dc  Leão  o  Nilo  inunda  os  campos.  Pa- 
ra significar  a  alegria  do  puhiico  ao  ver  que  a  pro- 
picia inundação  chegava  á  altura  desejada,  figura- 
vam os  egypcios  um  joveu  tocando  lyra  sentado  ao 
pé  de  um  leão  manso  ;  c  quando  as  aguas  uão  cres- 
ciam representavam  o  Horus  estendido  sobre  o  leão 
como  se  estivera  morto.  Chamavam  a  este  symbolo 
Orcph ,  em  lingua  cgypcia  ,  que  denota  a  parte  in- 
ferior da  cabeça  ,  para  significarem  que  a  agricul- 
tura se  aciíava  então  inteiramente  parada ;  e  as 
canções  com  que  o  povo  se  divertia  neste  período 
de  inactividade,  por  falta  de  occupação  ,  se  appel- 
lidavara  hynuios  de  Orpheu.  Com  o  crescimeiíto  das 
aguas  volviam  os  lavradores  aos  seus  trabalhos ,  e 
isto  deu  occasião  a  dizer-se  que  Or[)lieu  voltava  do 
inferno.  A  uma  imagem  collocada  junto  do  Horus 
chamavam  os  egypcios  Euridice  [i)alavra  composta 
dc  cri,  leão;  c  dc  duca  ,  manso]  para  significarem 
que  a  violência  ou  raiva  da  inundação  tinha  acal- 
mado ;  e  como  os  gregos  interpretavam  as  figuras 
dos  egypcios  cm  sentido  litteral ,  e  não  emblemáti- 
co ,  fizeram  de  Euridice  a  mulher  de  Orpheu. 


Polimento  para  tnovcis.  —  Muitos  marceneiros  de 
Paris  e  Londres  usara  dc  uma  espécie  de  polimen- 
to ,  a  que  chamaram  da  China,  c  que  tem  a  vanta- 
gem de  fácil  preparação  e  de  conservar  os  moveis 
lustrosos  e  na  bclleza  primitiva.  Faz-se  c  usa-ac 
pela  maneira  seguinte.  Díssolve-sc  cera  em  aguar- 
raz  ,  partes  íguaes  :  se  o  polime;ito  é  destinado  a 
trastes  de  mahógaao  ou  de  cõr  similhantc  ,  proce- 
der-sc-ha  assim:  —  dei!e-se  uma  pouca  de  herva 
lingua  de  vacca  de  infusão  cm  seis  onças  d'essen- 
cia  de  thercbcutina  ,  por  espaço  dc  48  horas;  coe- 
so o  liquido  e  juntc-se-lhe  seis  onças  de  cera  bclla 
feita  em  migalhas  ;  depois  de  encorporada  com  a 
essência  esta  nova  substancia  ,  põe-se  de  parte  me- 
clicnilo  dc  tempo  a  tempo:  ao  cabo  de  oulras  -iS 
horas  achar-se-ha  dissolvida  a  cera,  e  formada  uma 
quasi  massa  mui  branda  ;  a  qual  applicarão  sobre 
os  moveis  esfregando  com  um  pedaço  de  flanella 
sem  descontinuar  a  fricção  cm  quanto  não  estiver 
sècco  o  polimento  e  até  que  não  haja  na  madeira  o 
menor  vestígio  dhumídadc.  —  Se  o  polimento  que 
SC  pcrlcndc  é  amarcllo  ilcita-sc-dMnfusão  páu  ama- 
rello  dos  tintureiros  em  vez  da  horva  supramencio- 
nada. Sendo  os  moveis  de  mármores  .  dissolvr-se 
cera  branca  em  vez  de  amarella  ;  e  dá-sc  o  ])oli- 
mento  do  mesmo  modo.  —  Esta  substancia  deve  ser 
guardada  cm  vasilha  bem  tapada. 

As  máximas  são  como  os  números,  que  compreben- 
denj  grandes  Talores  em  bem  poucos  algarismos. 


82 


o  PANORA3IA. 


22u 


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Os  THBONos  d'Inglalerra  ,  França  e  Alemanha  eram 
occupadus  por  ires  poderosos  monarch.is,  Henrique 
S.",  Francisco  1.°,  e  Carlos  3.°  Malavindos  os  dois 
últimos  sobre  pertenções  á  coroa  de  Nápoles  esta- 
vam qnasi  em  ruptura  de  guerra  ;  e  cada  um  pela 
sua  parte  diiigenceava  alliar-se  com  a  Graã-Brela- 
nha  ;  por  isso  ambos  intentavam  conciliar  a  ami- 
sade  de  Henrique,  e  a  de  seu  principal  ministro  o 
cardeal  de  Wolsey.  Por  Cm  conseguiu  o  monarcba 
JiLBO  22—1843. 


da  França  vèr  no  continente  o  seu  visinlio  d'3lcra 
do  Canal:  Francisco  1.°  assentou  a  sua  corte  tem- 
porária ,  por  occasião  deste  encontro,  em  Ardres,  e 
Henrique  8."  em  Guines.  De  parte  a  parte  a  osten- 
tação de  riquezas  foi  excessiva  :  os  abarracamentos 
e  edifícios  de  madeira  que  se  levantaram  para  os 
inquilinos  ,  que  haviam  de  os  habitar  por  tão  pou- 
cos dias,  eram  lodos  forrados  das  mais  ricas  telas 
de  seda,  e  de  galões  de  ouro,  por  tal  forma  que  se 
2.'  SEaiB.  —  VoL.  II. 


226 


O  PANORAMA. 


póz  a  estas  sumptuosas  tendas  reacs  o  nome  de 
acampamento  d'ouro.  =  Amigável  foi  o  trato  entre 
os  dois  nesta  feira  d'arraial  ,  que  de  certo  o  foi ,  e 
não  sessão  convencionada  para  sérias  e  estáveis  ne- 
.:;ociações  politicas :  simulada  era  a  reciproca  con- 
descendência ;  e  os  eITeilos  do  tratado  peremptório 
ílcaram  no  papel ,  como  cm  outras  occasiõcs  idênti- 
cas ,  anteriores  e  posteriores  a  esse  encontro.  Mos- 
tra-o  a  guerra  que  rebentou  poucos  annos  depois. 
Todavia  se  na  historia  não  avulta  o  encontro  dos 
monarchas  rivaes  pelos  resultados  cm  acontecimen- 
tos futuros  ,  as  narrações  que  das  pompas  c  festas 
d'então  nos  deixaram  os  chronistas  conleniporancos 
dão  suiricienle  idéa  dos  estylos  do  còrle,  c  dos  tra- 
jos, divertimentos,  e  mais  circumstancias  dessa  epo- 
cha.  —  lia  sobretudo  um  rasgo  do  animo  de  caval- 
leiro.,  de  que  era  grandemente  dotado  o  rei  de 
França.  Francisco  notou  alguns  receios  em  Henri- 
que pelas  precauções  que  tomava  para  a  primeira 
recepção  solemne  ;  e  para  o  tranquillisar  appresen- 
tou-sc  desarmado  e  qnasi  só,  ura  dia,  bera  cedo, 
no  acampamento  de  Henrique  ,  que  soube  avaliar 
esta  demonstração  do  generosa  confiança,  penhor  ao 
mesmo  tempo  de  sincera  boa-fé.  —  N'outra  occa- 
sião  ,  acabados  os  torneios  dos  cavalleiros,  espectá- 
culo muito  da  moda  ,  os  luctadorcs  d'aml)as  as  na- 
ções provaram  forcas  entre  si  ;  e  ao  disculir-se  ua 
lenda  real  o  mérito  dos  respectivos  combatentes  ,  o 
jnonarcha  inglez  travou  do  braço  do  francez  e  li- 
rando-o  a  terreiro,  disse:  «Também  nós  lidare- 
mos; porque  esta  brincadeira  é  ntil  exercício  ,  c 
não  a  havemos  deixar  unicamente  á  gente  de  nossa 
comitiva.»  Fez  Ires  ou  quatro  esforços  para  derri- 
J)ar  Francisco  ;  mas  este ,  homem  rolnislo  c  luta- 
dor .  n'uma  volta  de  mão  deu  com  o  contrario  em 
terra  ;  e  nunca  mais  se  experimentaram  em  conten- 
das gymnasticas  ,  talvez  porque  seriam  pouco  airo- 
sas para  cabeças  coroadas. 


O  Bobo. 
•    11Í28. 
XIV. 


Amor 


c  vingança. 


Troo  esqueceria  na  edificação  de  umcastcllo  do  sé- 
culo XI  ou  \II  menos  um  bom  e  solido  cárcere, 
com  troneiras  bem  estreitas  c  engradadas  de  gros- 
sas barras  de  ferro.  As  vezes  os  aposentos  eram  mal 
reparados  contra  as  injurias  das  estações  e  os  mu- 
ros débeis  e  pouco  vigiados  ,  mas  a  masmorra  su- 
mida debaixo,  de  torre  macissa  ,  cscaçamente  allu- 
miada  ,  com  seus  alçapões  de  grosso  carvalho,  suas 
entradas  occnitas,  por  onde  cm  muitas  occasiõcs  os 
nobres  alcaides  e  senhores  iam  ,  não  sentidos,  pra- 
ticar as  atrocidades  ([ue  se  lècm  nas  memorias  da- 
quclla  cpocha  ,  e  a  que  ordinariamente  dava  ori- 
gem a  vingança  ou  a  cubica;  esse  aposento  (Kan- 
gustia  ,  dizemos,  nunca  deixava  de  ser  conslrniilo 
com  primor.  O  cárcere  do  eastello  era  quasi  sem- 
pre uma  propriedade  mais  valiosa  c  productiva  , 
que  todas  as  terras,  villas  ,  herdades  o  direitos  aii- 
nexos  áquellcs  nitihos  de  pequenos  tyrannos ;  era 
uma  espécie  de  laboratório  de  alchimia  verdadeira 
onde  a  pobreza  de  judeu  jurada  e  tresjurada  pela 
loura  se  convertia  em  chuva  áurea  ,  os  argaes  ou 
trouxas  dos  bufiirinheiros  inglezes  ou  italianos  se 
derretiam  como  se  fossem  decora,  caquellas  aboba- 


das, frias  e  húmidas,  fossem  de  metal  candente — e  ate 
os  alforges  do  devoto  monge,  ou  do  venerável  clérigo 
se  convertiam  em  escarcella  bem  provida  de  gasta- 
dor prestameiro.  As  prisões  dos  legares  afortalcsa- 
dos  que  coroavam  differentes  cabeços  de  Galliza  c 
Portugal  eram  uma  espécie  de  providencia  ,  que 
em  casos  apertados  acudia  milagrosamente  aos  do- 
nos ou  tenentes  desses  logares,  quando  os  concelhos 
visinhos  sabiam  defender  as  suas  talhas  c  adegas, 
ou  os  acostados  do  fidalgo  castellciro  murmuravam 
por  falta  das  soldadas  ,  ameaçando  abandona-lo  in- 
dcfenso  á  revendita  dos  outros  nobres  cora  quem 
trazia  guerra  de  homizio. 

Devemos  crer ,  ao  menos  piamente  ,  que  o  conde 
Henrique  ,  na  epocha  em  que  alcvantou  o  eastello 
de  Guimarães,  não  lançou  nos  fundamentos  do  seu 
edificio  soberbo  um  cárcere  seguro  e  vasto  com  os 
intuitos  de  rapina  que  guiavam  o  commum  dos  se- 
nhores nestas  tristes  edificações.  Ainda  que  algum 
documenlinho  de  má  morte  provasse  o  contrario 
cumpria-nos  po-lo  no  escuro,  ou  contestar-Ihe  fran- 
camente a  authenticidade,  porque  o  conde  foi  o  fun- 
dador da  raonarchia ,  e  a  monarchia  desfunda-se 
uma  vez  que  tal  cousa  se  admilta.  Assim  é  que  se 
hade  escrever  a  historia  ,  e  quem  não  o  fizer  por 
este  gosto  ,  evidente  é  que  pude  tratar  d'outro  oHi- 
cio. 

Fossem,  porem,  quacs fossem  os  motivos  do  con- 
de, o  certo  éque  não  lhe  esquecera  o  construir  nas 
raizes  daqncllns  torres  e  murallias  uma  forte  mas- 
morra, cujo  pavimento  ficava  inferior  ao  fundo  do 
fosso  lançado  entre  asbarbacans  e  asquadrellas  do 
muro.  Este  logar  húmido  c  mal-são  aiienas  recebia 
a  ténue  claridade  de  duas  troneiras  que  davam  pa- 
ra a  carcova.  Dentro,  uma  escada  de  pedra  fecha- 
da no  alto  com  um  alçapão  chapeado  de  ferro  con- 
duzia á  escada  superior  da  torre.  Ao  lado  via-se 
um  potro  .  do  qual  estavam  pendurados  alguns  ta- 
gantcs  ou  açoutes  de  couro  cru,  cordas,  e  mais 
aparelhos  de  tratos.  Defronte  uma  polé  pendente 
de  grossa  argola  cravada  na  abobada  ,  c  distante 
apenas  da  parede  dois  ou  Ires  palmos  ,  oscillava 
quasi  imperceptivelmente  com  os  golpes  de  vento 
que  murinura\am  pelas  altas  frestas  ou  troneiras. 
D'um  pillar  grosseiramente  afloiçoado,  que  susti- 
nha ao  meio  da  quadra  o  fecho  díi  abobada,  sabiam 
alguns  grilhões  ferrugentos,  chumbados  na  pedra. 
Estes  grilliões  eram  —  como  uma  sangria  cm  caso 
de  ajioplexia  fulminante  o  é  na  medicina  —  um 
luxo  de  sriencia  de  carcereiro  —  ou  antes  um  pleo- 
nasmo mais  intolerável  que  todos  aquelles  que  cos- 
tumam votar  á  execração  publica  os  grammaticos  c 
rhctoricos.  Cadeias  em  tão  seguro  cárcere  eram  ab- 
solutamente inúteis,  e  deleito  bem  se  mostrava  que 
alli  tiidiam  sido  postas  como  simples  adereço,  e  cas- 
quilharia de  terror. 

Um  largo  poial  encostado  ao  pillar,  e  cuberto  de 
uma  pouca  de  palha  meia  podre  formava  com  os 
instrumentos  de  martyrio  todo  o  adorno  da  masmor- 
ra. Deviam  contcntar-sc  desse  escabcllo  para  se  as- 
sentarem, desse  leito  jiara  dormirem,  os  habitantes 
desta  melancholica  morada.  E  com  rasao  ;  onde  o 
exercicio  dos  membros  sé)  podia  ser  leito  nas  dores 
e  angustias  dos  tratos,  era  leito  de  rcpiuiso  a  la- 
gem  fria  do  poial,  e  a  palha  já  fétida  que  o  cubria 
fofo  almadraque  de  pennas. 

Um  eavallciro,  cuja  qualidade  se  conhecia  pelas 
esporas  douradas,  que  ainda  conservava  alivelladas 
sobre  os  balegoens  ,  c  pelo  cinto  de  prata  que  lhe 
apertava  o  brial ,  estava  ahi  assentado.  Parecia  co- 


o  PANORAMA. 


227 


gitar  profundamente.  Quedo,  com  os  colovellos  fir- 
mados sobre  os  joelhos  e  as  faces  entre  os  punhos , 
o  vento  que  redemoinhava  pela  espaçosa  quadra  , 
ondcando-lhe  os  cabellos  desordenados  liie  fazia  ca- 
hir  sobre  o  rosto  algumas  madeixas  que  lho  enco- 
briam. Um  soluçar  comprimido  era  o  único  signal 
de  \'u\3  que  se  lhe  percebia  ;  no  mais  a  sua  immo- 
Lilidade  assimilhava-se  á  de  um  cadáver. 

O  sol  inclinava-sc  para  o  poente  :  os  seus  raios 
dourados  roçando  peia  borda  do  fosso  vinham  alra- 
vez  de  uma  das  Ironciras  pintar  um  pequeno  circu- 
lo avermelhado  no  pavimento  da  masmorra  aos  pés 
do  preso,  era  cujo  roslo  batia  a  claridade  pallida 
refrangida  da  lagcm  branca.  A  luz  do  dia  aodcsap- 
parccer,  como  que  se  dobrava  para  aflagar  c  bei- 
jar o  desgraçado,  que  talvez  não  tornaria  a  ver. 
Dir-se-hia  que  os  raios  do  sol  se  prendiam  aos  ca- 
bellos louros  do  mancebo  onde  folgavam  scintillan- 
do  trémulos  ,  e  que  pediam  áquellcs  olhos  morlaes 
e  mcio-cerrados  o  ultimo  olhar  de  saudade  com  que 
o  homem  costuma  dcspedir-se  do  astro  esplendido  , 
quando  elle  se  vai  mergulhando  na  extremidade  do 
horisonle. 

E  parecia  que  esla  linguagem  mysteriosa  achava 
no  coração  docavalieiro  uma  dessas  harmonias  inex- 
plicáveis que  Ueus  estabeleceu  entre  a  natureza  c 
o  homem  nu  grande  concerto  do  universo.  Afastou 
os  cabellos  da  fronte  ;  depois  poz  os  olhos  no  sol  , 
e  um  sorriso  quasi  imperceptível  lhe  fulgurou  atra- 
vez  do  véu  de  nielancholia  profunda  que  se  lhe  es- 
tendia sobre  as  faces,  comoatravez  do  sudário  del- 
gado unido  a  um  corpo  morto  parece  ás  vezes  ha- 
ver um  rápido  movimento  de  vida,  que  cessa  no 
mesmo  instante  em  que  a  vista  perlende  fixar  essa 
illusão  passageira. 

O  mancebo  alevantou-se ,  crusou  os  braços  e  fi- 
cou por  algum  tempo  com  os  olhos  fitos  na  tronei- 
ra  illuminada.  Finalmente  levou  a  mão  á  fronte,  c 
os  seus  passos  vagarosos  soaram  de  um  para  o  ou- 
tro lado  do  calabouço.  Pouco  apouco  os  lábios  agi- 
taram-se-lhe  como  a  superficie  do  mar  que  se  en- 
crespa aos  primeiros  sopros  da  procella.  A  tempes- 
tade accumulada  naquella  alma  rebentou  por  fim 
dolorosa  e  terrível :  — 

«Oh,  —  exclamou  elle  —  como  a  vida  ó  rápida  e 
ao  mesmo  tempo  eterna  para  o  que  sabe  que  vai 
morrer '.  Eternidade  pelo  infinito  dos  pensamentos 
que  passam  tumultuosos  no  espírito  do  condemna- 
do  :  rapidez  pela  ligeireza  com  que  para  elle  se  en- 
caminha a  hora  tremenda  !  E  que  importa  ?  Aqui 
entre  injurias,  como  ura  vil  criminoso  ;  no  oriente, 
misturando  o  sangue  com  a  terra  que  bebeu  o  Sal- 
vador;  lá  fora  dessas  muralhas,  em  nobre  lide  de 
cavallciros;  —  tudo  é  morrer!  Que  importa?  ..>  " 
E  depois  com  um  brado  d'agonia  como  responden- 
do a  si  mesmo  :  —  «Muito  ,  muito  !  — porque  amo  ; 
porque  a  vida  é  doce  para  mim  por  ella  1 — por- 
que a  morte  ignominiosa  é  ignominia  para  a  aman- 
te do  homem  que  expirou  em  supplicio  infame.  Um 
cavallo  e  uma  espada  ! — que  me  dêem  um  cavai- 
lo  e  uma  espada  ,  e  depois  dez  ,  vinte,  cem  guer- 
reiros que  rae  accommettam  ,  que  me  despedacem 
ferindo-me  a  um  tempo  I  Cahirei  com  honra  !  Dirão 
delia  :  —  eis  a  que  amava  um  cavalleiro  de  esforço 
que  bem  soube  morrer !  .  .  Ao  menos  assassinai-me 
aqui !  . .  nos  tratos  .  .  .  como  vos  approuver  .  .  .  mas 
não  mancheis  de  opprobrio  a  rainha  hora  derradei- 
ra I  . .  Infante  de  Portugal  ,  infante  de  Portugal '.  — 
vem  salvar-me  I — olha  que  querem  cobrir  dinfa- 
mia  o  leu  Egas '. » 


E  Egas — porque  era  elle — parecia  aspirar  o  ruí- 
do longínquo  dos  ginetes  dcAllonso  Ilcnríquez  pre- 
cipítando-sc  para  os  muros  de  (íuimarães;  mas  nos 
seus  ouvidos  apenas  sussurrava  aqiiellc  zumbido 
duvidoso  que  se  cré  escutar  no  meio  de  completo 
silencio.  Então  atirou  comsigo  de  novo  ao  poial  ,  c 
alevanlou  os  punhos  cerrados  para  o  céu  com  um 
gesto  índizivel  de  desesperação.  I)e()ois  os  braços 
descahiram-lhe  ,  a  fronte  pendcu-lhe  soi)re  o  peito  , 
e  as  lagrymas  que  revia  o  seu  coração,  queima- 
das pelo  fogo  que  lhe  lavrava  lá  dentro,  seccaram 
de  todo.  Uma  lembrança  suave  de  amor  convertera 
a  agitação  da  amargura  na  triste  e  ainda  mais  do- 
lorosa tranquíllidadc  do  desalento. 

«Dulce,  Dulce,  nunca  mais  te  verei  I  —  murmu- 
rou o  mancebo. —  Se  ao  menos  podesse  dizer-tc  que 
te  amei  leal  e  puro  até  o  meu  ultimo  dia  ,  e  que 
este  amanheceu  porque  viu  cumprir,  como  cumpri 
todas  ,  a  minha  derradeira  promessa  !  Sc  eu  podes- 
se antes  de  deixar  aterra  antever  o  céu  a  teus  pés '. 
.  .  .  Mas  entre  ti  c  mim  estão  estas  pesadas  aboba- 
das ,  que  me  esmagam  o  coração  ;  c  a  rainha  voz 
não  as  pôde  romper  para  te  chamar  ,  para  te  repe- 
tir mil  vezes  que  morro  porque  te  amava  como  mu- 
lher nenhuma  foi  amada!  Dulce,  Dulce,  nunca 
mais  te  verti !  » 

E  o  desditoso  cahindo  de  bruços  sobre  a  palha 
immunda  e  fétida  do  calabouço ,  arquejava  violen- 
tamente. 

Naquella  postura,  cxhauslas  as  forças  d'alraa  , 
o  trovador  se  conservou  horas  largas.  A  vista  dos 
homens  elle  saberia  esconder  o  seu  delírio,  e  mor- 
rer com  firmeza;  mas  na  solidão  a  saudade  d'uma 
existência  cheia  de  amor  e  de  esperanças,  a  ver- 
gonha de  supplicio  alTrontoso ,  e  o  temor  da  morte 
l!ie  não  consentiam  velar-se  diante  de  si  próprio 
com  a  mascara  que  a  vaidade  e  o  orgulho  põe  na 
face  humana  ainda  nas  raais  terríveis  situações,  pa- 
ra que  a  vida  seja  uma  contínua  farça  ,  da  qual  o 
coração  é  o  actor  mentiroso  desde  o  berço  até  o  se- 
pulchro. 

Tinha  anoitecido ,  c  o  silencio  continuava  pro- 
fundo:  a  frouxa  claridade  das  cstrellas  não  pene- 
trava no  cárcere  cujas  trevas  eram  densas,  cuja 
atraosphera  era  grossa  e  húmida  no  meio  da  sec- 
cura  de  um  ardente  mez  de  junho.  Cevando-se  na 
amargura  o  senso  intimo  de  Egas  reconcentrára  na 
dòr  toda  a  sua  energia  ,  e  este  devorar-se  a  si  pró- 
prio era  ajudado  pelo  repouso  dos  sentidos  exter- 
nos, inúteis  para  o  pobre  preso  na  sua  immobilida- 
de  e  no  silencio  e  escuridão  que  o  rodeava. 

Dahi  a  pouco  ,  porem  ,  uma  toada  longínqua  de 
harpas,  doçainas,  e  psalteríos  sussurrou  a  espaços 
trazida  nas  lufadas  do  vento.  Insensivelmente  o  tro- 
vador pòz-se  a  escuta-la  ,  e  sentiu  correr-lhe  nas 
veias  ,  que  pulsavam  ardentes  ,  um  frescor  que  re- 
frigerava. A  melodia  que  se  ouve  ao  longe  na  soli- 
dão nocturna  é  como  ijenção  de  Deus  para  o  infe- 
liz ,  porque  é  consoladora  e  santa.  Quando  aquelles 
sons  vibravam  mais  dislínctos  Egas  sentia  dentro 
da  alma  uma  certa  voluptuosídadc  na  dòr,  c  a  ima- 
ginação lhe  pintava  a  imagem  de  Dulce  como  visão 
aería  que  descia  ao  horrível  calabouço,  trajando 
alvas  roupas  ,  cingida  a  fronte  de  cecéns  virgi- 
naes  ,  e  que  aperlando-o  ao -seio  o  arrebatava  no 
meio  d'hymnos  dos  anjos  para  as  delícias  eternas 
da  pátria  do  verdadeiro  repouso.  Era  um  sonho  fe- 
bril o  seu  ;  mas  havia  nelle  um  exlasi  indizível  que 
lhe  apagava  da  memoria  a  situação  em  que  viera 
lancar-se.  Emfim  a  toada  cessou  ;   c  o  cavalleiro 


228 


O  PANORAIUA. 


cahiu  de  chofre  na  realidade.  Esse  tombar  repenti- 
no do  céu  no  aliysmo  fez-lhe  manar  sangue  de  to- 
das as  feridas  do  coração.  O  vento  sussurrava  ain- 
da ;  porem  o  seu  agreste  sibilar  só  lhe  fazia  lem- 
brar o  ruido  do  verme  que  no  cemitério  devia  len- 
tamente devorar  os  membros  do  justiçado. 

E  então  elle  despedaçava  cnlre  as  mãos  confran- 
gidas os  punhados  daquella  palha  bumiiia  do  seu 
leito  de  pedra  ;  e  os  dentes  rangiam-lhe  em  longo 
espasmo  ,  que  Icrniiuava  por  suor  frio  manando-lhe 
em  bagas  da  fronte. 

Quantas  vezes  elle  na  sua  desesperação  accusa- 
ria  a  Providencia  por  o  haver  tornado  o  maior  dos 
infelizes!  E  comtudo  uma  agonia,  que  valera  por 
todas  as  outras,  ainda  não  viera  rocr-lhe  o  cora- 
ção. As  toadas  que  haviam  alegrado  por  algum  tem- 
po a  noite  da  sua  alma  partiam  das  salas  illumiua- 
das  dos  paços,  onde  em  banquete  esplendido  o  con- 
de e  a  rainha  celebravam  as  vodas  da  real  pupilla 
e  herdeira  dos  Bravaes  ,  com  Garcia  Bermiidez  ,  o 
nobre  alferes-mór  de  Portugal.  —  E  elle  não  o  sa- 
bia! 

O  som  dos  instrumentos  começara  a  ouvir-se  de 
novo,  quando  por  cima  daquellas  melodias  vibra- 
ram brados  agudos  mas  longínquos  que  pareciam 
o  grilo  d'alarma  d'esculcas,  que  se  punham  suc- 
cessivamente  de  sobre-aviso.  Estes  brados  approxi- 
mavam-se  cada  vez  mais  até  que  restrngirauí  nas 
barbacaãs  —  depois  nos  andaimes  das  quadrellas  — 
depois  nos  eirados  das  torres.  Repetidos  por  mui- 
tas vozes,  conglobados  n'uma  grita  confusa  e  in- 
distincta  formavam  um  ruido  medonho  ,  mas  ,  pa- 
ra o  cavallciro  que  machinalmeute  se  pozera  a  es- 
cuta-los ,   ininlelligivel. 

Para  alguém,  tudavia,  a  significação  deste  bradar 
fora  bem  clara  e  distincla.  Uma  almcnara  seacccn- 
deu  subitamente  no  cimo  da  torre  alvarraã,  e  pouco 
tardou  que  as  outras  torres  lhe  correspondessem 
accendciido  as  suas.  O  trovador  não  as  via  ;  mas  a 
luz  avermelhada  dos  fachos  rezinosos,  jorrando  do 
alio  ,  cahiu  obliquamente  no  fundo  encharcado  do 
fosso  e  reflectiu-se  pelas  troneiras  na  abobada  da 
masmorra.  Do  meio  das  trevas,  recalcadas  por  es- 
sa claridade  frouxa  para  o  pavimento  da  quadra  , 
Egas  dislinguia  a  argola  brilhante  da  polé,  simi- 
Ihante  ao  olho  reluzente  de  um  demónio,  que  mi- 
rava altcnto  o  pobre  caplivo  como  se  lidasse  por 
enxerga-lo  nas  trevas. 

De  repente  un)a  eslrupida  de  cavallos ,  nm  tinir 
de  espadas  roçando  por  armaduras  ,  a  principio  de 
poucos  —  depois  de  mais  —  depois  de  muitos,  veio 
distrahir  a  allenção  do  trovador,  que  fasi  inado  por 
aquelle  olhar  maldito  da  polé,  não  despregava  del- 
ia a  visla.  Este  novo  ruido  soava  da  banda  do  por- 
tal do  castcllo,  e  n  luz  triste  das  alinenaras  Egas 
viu  passar  como  sombras  alem  do  fosso  um  fio  de 
«avalleiros,  que  despegando  ao  que  parcela  da  pon- 
te levadiça  se  dirigiam  ao  burgo.  Era  uma  scena 
rápida  e  phanlaslica  o  coriscar  contínuo  e  fugitivo 
dos  capellos  de  ferro,  e  das  lanças  aprumadas,  e 
o  desapparecer  dos  meios  corpos  dos  homens  d'ar- 
mas  ,  que  a  aresta  da  carcova  apenas  deixava  des- 
cortinar. Aquella  linha  de  vultos  negros  e  lampe- 
janles  preiipilava-se  para  as  barbacans. 

l'ma  esperança  duvidosa  alluiniou  então  a  alma 
do  cavallciro.  O  bradar  das  atalaias,  o  repentino 
arrojd  dns  homens  de  guerra  annunciavam  um  i)e- 
rigo  iíiiminenie  ;  e  que  outro  seria  este  perigo,  que 
não  fosse  a  ap()roximação  do  infante?.  .  Pela  men- 
te d'Egas  passou  unia  idéa  refrigerante  de  liberda- 


de e  de  vida.  Alevantou  as  mãos  ao  céu,  e  as  la- 
grymas  lhe  borbulharam  dos  olhos,  até  ahi  enxu- 
tos, ao  murmurarem  seus  lábios:  —  «Meu  Deus, 
tu  podes  salvar-me!  Salva-me,  senão  da  morte,  ao 
menos  da  ignominia.» 

Mas  quando  se  lembrou  de  que  a  noite  correria 
sem  combale  ,  em  quanto  talvez  não  passasse  sem 
que  o  desejo  de  vingança  atroz  se  realisasse  ;  quan- 
do rellectiu  que  o  receio  dos  esculcas  porventura 
fora  vão  ,  e  que  até  mil  outros  successos  podiam 
dar  motivo  áquella  revolta,  a  idéa  de  salvação  des- 
fez-se  de  novo  no  espirito  do  prisioneiro  ,  que  um 
momento  vacillára  na  certeza  do  supplicio. 

Encostando-se  outra  vez  na  sua  dura  jazida,  Egas 
sentiu  alongar-se  a  eslrupida  dos  cavalleiros  e  vol- 
tar tudo  gradualmente  ao  anterior  silencio,  no  meio 
do  qual  a  claridade  das  altas  almenaras  ,  refrangi- 
da nas  guardas  da  carcova  ,  penetrava  no  calabou- 
ço ,  como  cm  igreja  deserta  os  raios  da  luz  das  to- 
chas penetram  pelas  juntas  mal  unidas  do  ataúde  á 
roda  do  qual  ardem  os  brandões  gigantes.  As  vezes 
dentro  do  ataúde  ha  ainda  vida  ,  como  a  havia  no 
negro  calabouço;  mas  o  que  ahi  faltava  ,  como  na 
tumba  da  igreja,  era  um  raio  de  esperança. 

Passara  mais  de  uma  hora  :  a  callada  da  noite 
U)ra  apenas  interrompida  por  algum  raro  correr  de 
ginete  atravessando  a  ponte  levadiça  ,  e  pelo  sus- 
surro do  fallar  e  mover  de  muitos  homens  para  o 
lado  do  burgo:  sussurro  quasi  imperceptível,  mas 
que  ás  vezes  estrepitava  como  um  trovejar  ao  lon- 
ge. Então  o  cavallciro  escutava  aquelle  som  confu- 
so como  o  enfermo  que  se  revolve  em  seu  leito  ,  e 
crê  achar  allivio  nessa  mudança   de  situação. 

Fui  n'uma  destas  occasiões ,  cm  que  o  remoto 
riiido  dos  homens  d'armas  ,  niistnrando-se  com  as 
rajadas  de  um  vento  suão  ,  era  mais  perceptível , 
que  uma  pequena  porta  sumida  cm  um  canto  obs- 
curo do  cárcere  começou  a  abrir-se  mansamente, 
e  deu  passagem  a  alguém  que  descia  para  aquelle 
tenebroso  aposento. 

Era  um  vulto  de  mulher.  Alvejavam-lhe  as  rou- 
pas fiuctuantes  á  luz  de  uma  tocha  que  trazia  na 
mão,  e  os  seus  passos,  postoque  rápidos,  pareciam 
vacillar  descendo  áquella  espécie  de  voragem.  Cin- 
gia-lhe  a  cabeça  uma  grinalda  de  fiores  e  trajava 
as  gallas  toilas  de  uma  noite  de  sarau  ;  mas  as  suas 
faces  eram  pallidas  ccmio  as  da  virgem  morta,  que, 
lambem  engrinaldada  afronte,  deitam  no  seu  ataúde. 

Já  tinha  dado  alguns  passos  na  vasta  quadra, 
quando  o  trovador,  cujo  olhar  fora  atlrahido  pelo 
clarão  da  tocha  ,  bradou  com  um  grito  de  alegria 
e  pasmo  impossível  de  descrever : 

<(  Dulce  1  »  ^ 

Era  ella  de  feito. 

O  prisioneiro  correu  para  a  donzella  e  excIamo\i 
com  voz  aflogada  :  «Oh  minha  Dulce  !  .  .  Deus  ou- 
viu-mc  .  .  .  quiz  que  ainda  uma  vez  te  visse  na  ter- 
ra ..  .  quiz  suavisar-rae  este  longo  morrer!» 

«Não  morrerás!  —  interrompeu  Dulce.  —  Estas 
livre!  —  O  infante  avisinha-se  :  cavalleiros,  bestei- 
ros e  peões  cobrem  os  andaimes  das  barbacaãs  ;  e 
a  rainha  quer  salvar-le.  A  porta  occulta  deste  hor- 
rível cárcere  está  para  ti  aberta.  As  minhas  lagry- 
mas  (ditiNcram  delia  a  chave  ,  que  morrendo  lhe 
entregou  o  conde  D.  Henrique.  Só  de  mim  ella  fia- 
ra o  segredo  de  que  existia  esto  caminho  secreto. 
Fernão  Perez  o  ignora.  Elle  já  sabiu  para  o  burgo, 
e  a  rainha  o  seguirá  em  breve  porque  o  ronde  n 
arrasta  comsigo  para  testemunha  do  sangue  que 
úmanhaã  deve  correr.  No  meio  do  tumulto  pedcrás 


o  PANORAMA. 


229 


«ahir  de  Guimarães:  o  leu  pag-em  também  já  Iíttc 
ic  espera  com  um  ginete.  .  .  .  Parle  ....  oh  parte 
sem  demora,  n 

«Partiremos  ambos  —  replicou  o  cavalleiro  :  — 
não  esquecerias  um  palafrem  para  ti ,  uma  espada 
para  mim.  Eu  e  tu  temos  de  cumprir  uosso  jura- 
mento. » 

«Egas  —  respondeu  a  don/ella  tristemente  e  re- 
dobrando-se-lhe  a  pallidez  —  o  que.  exiges  é  impos- 
sive!  .  . .  impossivel  ,  porque  o  sol  que  breve  hade 
romper  aliumiará  ura  campo  de  batalha.  Podes  tu 
recordar-te  de  nossos  juramentos  quando  diante  de 
nós  está  um  lago  de  sangue?» 

«E  que  importa?  —  Alem  desse  mar  de  sangue 
que  dizes  haverá  paz  para  ti  —  e  por  enire  inimi- 
gos e  amigos  eu  te  farei  passar  alem  delle.  Enião 
basla-me  uma  hora,  e  soldarei  todas  as  minhas  di- 
vidas. 1) 

«O  que  exiges,  repito,  é  impossivel!  —  tornou 
Dulce  com  a  energia  tranquilla  de  profunda  deses- 
peração.—  Nestes  paços  eu  ficarei  segura....  De- 
pois. .  .  Se  tu  soubesses  ...  oh  ,  nada  !  .  .  absoluta- 
mente nada.  .  .  Sou  eu  que  não  sei  o  que  digo.  .  . 
Por  Deus  ,  que  partas !  . .  Lm  instante  pôde  per- 
der-nos.  » 

«Partirei  —  e  já  —  acudiu  o  cavalleiro  dando  al- 
guns passos  e  fitando  os  olhos  era  Dulce  que  se  as- 
semelhava a  uma  estatua  de  mármore:  —  mas  tu 
partirás  comigo,  porque  eu  jurei  salvar-te,  e  tu  ju- 
raste seguir-me. » 

«Tem  piedade  de  mim,  Egas! — murmurou  a 
donzella  erguendo  as  mãos. 

«Vera  !  — foi  a  resposta  que  elle  proferiu  com  o 
tom  de  uma  resolução  inabalável,  segurando  o  bra- 
ço de  Dulce  ,  e  pondo  o  pé  no  primeiro  degrau  da 
escada  secreta. 

De  repente  a  pallidez  da  donzella  converteu-se 
era  vivo  rubor.  X  timidez  desappareceu  dos  seus 
olhos  ,  que  brilharam  febris  ,  e  soltando-se  da  mão 
d'Egas  ,  lhe  disse  em  tom  dolorosamente  severo  : 

«Affasta-te!  —  vedado  te  é  o  tocar-me.» 

O  cavalleiro  recuou  espantado,  cruzou  os  bra- 
ços ,  e  contemplou-a  por  alguns  instantes  em  silen- 
cio. 

«Entendo-te  !  —  exclamou  elle  com  um  acccnto 
em  que  se  misturavam  mil  affectos  oppostos.  —  Não 
queres  por  á  prova  a  lealdade  de  um  homem  que 
tudo  arriscou  por  ti  ,  que  por  ti  só  vivia  ,  que  por 
ti  ia  morrer  em  supplicio  infame  !  .  .  Que  era,  pois, 
o  teu  amor,  donzella?  Passatempo,  e  engano!  .li- 
guem mentia  ainda  ha  pouco,  dizendo  que  boje  me 
seguiria  ;  alguém  escarnecia  o  meu  amor  ,  porque 
vendera  sua  iimocencia  ao  estrangeiro,  e  talvez  me 
vendeu  a  mim!  Dulce,  quem  disse  ao  conde  de 
Trava  que  hontem  estive  aqui?» 

«Bárbaro,  que  affrontas  a  desventura!  —  repli- 
cou Dulce  cujas  faces  de  novo  haviam  descorado. 
—  Saberás  tudo,  já  que  assim  Deus  o  quiz.  .  Pou- 
cos dias  me  restam  ;  mas  esses  não  os  quero  viver 
calumniada  e  despresada  por  ti.  .  .  Foi  no  meio  de 
ura  banquete  de  noivado,  quando  as  taças  scinlil- 
lavam  erguidas,  e  as  suspeitas  carregavam  o  sem- 
blante do  cavalleiro  que  devia  estar  mais  alegre,  e 
o  coração  da  mulher  que  as  outras  envejavam  es- 
tallava  de  dor  ,  foi  então  que  se  ouviu  correr  pe- 
las torres  e  atalaias  o  grilo  de  «  inimigos  :  »  —  foi 
ao  soar  das  trombetas  ,  e  ao  desappareccrem  os  ca- 
valleiros  como  relâmpagos,  que  a  mulher  cujo  co- 
ração eslallava  de  dor ,  se  achou  só.  . .  Era  a  noi- 
va :  o  esposo  também  partira.   Então  a  desgraçada 


correu  a  lançar-se  aos  pés  da  rainha  c  obtcTe  a  tua 
liberdade.  .  .  Sabes  quem  era  esta  noiva?  .  .  .-Váivi- 
nhasle-o  já  !  .  .  Tive  d'escolher  entre  a  tua  morte  e 
ser  mulher  de  (iarcia.  Não  hesitei.  E,  todavia,  eu 
era  burlada  ;  e  tu  devias  morrer.  .  .  .\gora  aqui  es- 
tou. .  .  Veiu.  se  queres.  .  .  Fugirás  com  uma  adul- 
tera !  .  .  com  uma  adultera.  .  .  Será  esse  nome  o 
que  o  mundo  escreverá  na  fronte  daquclia  que  tan- 
to amasie  !  » 

Egas  ficou  immovel  olhando  para  ella  desorienta- 
do. Depois  estendendo  as  mãos ,  e  recuando  ainda 
mais,  bradou  eora  um  gesto  d'horror: 

«Perdição  eterna  para  mim  !  —  I'erdição  para  li, 
que  me  assassinaste  !  » 

Dulce  considerou  callada  por  um  momento  aquel- 
le  horrível  delírio.  Tremula  e  cheia  de  terror  ca- 
hiu  por  terra  ni\irmurand(j  entre  lagrymas  : 

«Egas,  pcrdoa-me  o  ter-te  salvado! — Por  tua 
mãi ,  pelo  nosso  amor  que  foi  tão  puro,  oh,  não 
me  odees.  Quem  sabe?!  .  .  ante  nós  está  a  mocida- 
de e  o  futuro.  . . .  Foge  ....  salva-te  que  amda  c 
tempo  !  u 

O  cavalleiro  porem  conservando  os  braços  esten- 
didos e  hirtos  ,  voltou  a  face  ,  e  respondeu  furioso  : 

«Arreda-le,  mulher  do  estrangeiro!  Que  perlen- 
des  de  um  condemnado?  Deixa-me  descer  ao  infer- 
no sem  me  perseguir  até  lá  I  .  .  F"ugir  ! — oh,  eu 
fugir  ?  !  » 

E  ria  com  rir  medonho. 

Duke  arrastou-se  para  elle  soluçando. 

nVai-te:  —  proseguiu  o  trovador,  e  alTastando-se 
alé  o  primeiro  degrau  da  escada  que  dava  para  o 
alçapão  ferrado  da  masmorra  ,  e  levantando  a  voz  ; 
—  Carcereiros,  levem  esta  mulher  sem  pudor  que 
vem  tentar  um  moribundo  no  hora  solemue  do  pas- 
samento !  1) 

«Tudo  por  ti,  menos  a  infâmia:  —  interrompeu 
Dulce  ,  com  resolução  sobre-humana  ,  pegando  na 
tocha  que  ardia  no  chão,  e  retirando-se  para  a  por- 
ta occulta.  —  Morrerás....  mas  eu  não  tardarei 
apoz  ti.  .  .  N'um  mundo  melhor  tu  me  farás  justi- 
ça 1  ..  u 

Não  pôde  dizer  mais  nada  ,  e  desappareceu  no 
vão  escuro  da  porta,  que  se  fechou  alraz  delia.  L'm 
grilo  doloroso  foi  o  que  depois  se  ouviu  ;  e  depois 
profundo  silencio.  Os  joelhos  d' Egas  curvaram-se 
debaixo  delle  ,  e  encostou-se  arquejando  sobre  os 
degraus  da  escada.  Tinha  acabado  tudo  para  o  des- 
graçado. Daria  a  alma  aos  demónios  para  ver  dian- 
te de  si  Garcia  Bermudez  naquelle  momento  ,  por- 
que sentia  devora-lo  a  raiva  de  um  tigre.  O  sangue 
do  seu  rival  fora  ura  refrigério  para  a  febre  que  o 
consumia.  X  sua  existência  era  um  pesadcllo  mons- 
truoso ,  um  cabos  de  dór  e  desesperação.  Com  os 
punhos  cerrados,  ameaçando  o  céu,  bradou:  «Pro- 
videncia .  .  .  mentira  !  —  Então  ,  como  aterrado  da 
blasphemia  ,  cobriu  o  rosto  com  as  mãos  ,  e  mur- 
murou :  «Perdão,  meu  Deus  !  »  —  .\s  lagrymas  rom- 
piauí-lhe  violentas.  Um  instante  mais  que  ellas  tar- 
dassem aquelle  coração  teria  deixado  de  bater  pa- 
ra  sempre. 

Poucos  minutos,  porem,  haviam  passado  quan- 
do um  ruido  de  cadeias  ,  acompanhado  de  ranger 
de  quicios,  soou  por  cima  da  cabeça  do  cavalleiro. 
Machinalmeníe  elle  alçou  a  cabeça  :  o  pesado  al- 
çapão de  carvalho  chapeado  de  ferro  alevantava-se 
lentamente,  e  quando  rodou  de  todo  a  luz  brilhan- 
te de  dois  fachos  jorrou  pela  escada  ,  e  allumiou 
parte  da  masmorra.  Dois  homens  d'armas  estavam 
no  alto  da  escada  com  os  fachos  nas  mãos,   e  um 


230 


O  PANORAMA. 


monge  negro  ,  que  apparecia  no  meio  dcllcs  ,  co- 
meçou a  descer  a  escada.  O  trovador  pòz-se  era 
pé  ,  6  estremecendo  involuntariamente  ,  recuou.  O 
monge  com  o  rosto  sumido  no  capnz  ,  e  movcndo- 
se  compassadamente,  era  uma  apparição  sinistra. 

Apenas  este  pòz  os  pés  no  pavimento  do  cárcere, 
fez  signal  aos  dois  homens  d'armas  que  se  retiras- 
sem ,  e  dirigiu-sc  ao  preso.  Cruzando  as  mãos  so- 
Jire  o  peito  e  curvando  a  caíjcça ,  disse  com  uma 
voz  grossa  c  contrafeita  :  — 

liDominus  salvationcm  noslratibus  et  caclcra.n 

«Quem  sois  vós?  —  ()ue  me  quereis?  —  pergun- 
tou o  preso,  que  se  alfaslára  sumindo-se  na  escu- 
lidão  do  cárcere,  onde  não  balia  a  luz  dos  fachos. 

«O  nobre  conde  de  Trava  mandou  chamar  ao 
mosteiro  de  S.  Salvador  um  sacerdote  que  al)so!- 
■vcssc  um  homem  que  devia  morrer  breve.  Recel)i 
«u  a  mensagert  e  vira  exercitar  essa  obra  de  cari- 
dade. Creio  que  sois  vós  que  figurareis  no  auto. 
Ouvirei  vossa  confissão  quando  vos  appruuver,  meu 
irmão !  n 

Isto  disse  o  monge  com  lom  solcmne  ,  c  cm  voz 
alta  de  modo  que  fosse  ouvido  dos  dois  homens  de 
armas  que  se  iam  retirando.  Approximou-se  ao  mes- 
mo tempo  ao  cavaileiro  e  segurando-lhe  o  braço  o 
conduziu  para  ao  pé  de  uma  das  Ironeiras,  por  on- 
de entrava  o  clarão  baço  das  almenaras.  A  luz  dos 
fachos  tinha  desnpparecido. 

O  frade  recuou  o  capuz,  c  mudando  repentina- 
mente o  metal  de  voz  grossa  em  alllaulada ,  prose- 
guiu  : 

«Não  me  conheces,  ligas?  Não  to  lembras  de  D. 
Bibas  ,  do  jogral  gollardo  ,  com  quem  brincavas  na 
lua  infância?  Ingrato,  que  te  esqueceste  de  mim." 

«Chocarreiro  ,  para  que  vens  apparecer-me  nes- 
te trance  tremendo?  —  interrompeu  o  trovador. — 
Porque  vens  misturar  a  risada  ào  manincllo  com  os 
derradeiros  arrancos  do  moribundo?» 

«Venho  salvar-te  ,  homem!  —  replicou  o  bobo. 
—  Rir-rae?I — O  rir  já  não  é  para  mim!» 

«Nem  tu  o  podes,  nem  eu  o  quero  : — respon- 
deu o  cavaileiro.  —  Tens  acaso  força  de  quebrar 
estes  ferros?  Tenho  eu  que  fazer  da  vida?  O  meu 
futuro  acabou. » 

«Cavaileiro  namorado,  bem  sei  que  tua  dama  é 
já  d'outreml — insistiu  o  bobo.  —  _Mas  não  aciías 
uma  idéa  grande  de  que  lo  alimentes  ainda?  Um 
destino  a  satisfazer?  um  nobre  feito  a  proseguir? 
Também  para  mim  ,  nesta  vida  risonha  c  folgada 
de  bufão,  houve  uma  hora  de  agonia  c  desespera- 
ção como  a  tua  ,  e  \ivi !  Vivi  para  vingar-me  :  pa- 
ra a  vingança  deves  tu  viver,  se  és  um  homem. 
Mal  sabes  que  prazer  6  o  responder  com  a  injuria 
á  injuria,  com  o  marlyrio  ao  martyrio  !  Olha  :  áma- 
nhaã  ha  um  topar  em  cheio  de  escudos  e  lanças, 
ha  uma  festa  de  sangue  e  matança  ;  c  o  cavaileiro 
esforçado  poderá  [)òr  um  joelho  sobre  os  peitos  do 
seu  inimigo  derriba<lo ,  c  gritar-lhe  aos  ouvidos 
nponlando-lhe  o  punhal  á  garganta:  —  sou  eu  que 
te  mando  aos  infernos  I  —  Oh  como  será  bom  e  con- 
solador !  Quizera  ser  forte ,  c.  s(ír  cavaileiro  .... 
Mas  tu  o  és:  tu,  o  abandonado,  podes  abrir  a  val- 
ia dos  mortos  entre  o  altar  o  o  leilo  do  noivado  ; 
converter  cm  escarnco  e  menlira  as  bênçãos  do  sa- 
cerdote ;  ver  a  teus  pés  cstorcendo-sc  moribundo  o 
que  assassinou  a  tua  alma  ,  e  cuspir-lhe  nas  faces 
dcmudadas,  e  rir  .  .  .  desespera-lo  com  o  teu  rir.  .  . 
í;  tudo  isto  o  que  ha  para  ti  na  vida,  se  fugires.  Se 
iicarcs ,  ao  romper  d'alva  subirás  a  uma  das  torres 
«leste  caslcllo  para  ahi  assistires  mudo  c  quedo  ás 


façanhas  do  teu  rival ;  mudo  e  quedo  pendurado 
de  uma  corda  do  alto  das  ameias,  como  um  judeu 
vil ,   como  um  feiticeiro  maldilu.  .  . 

«Oh  não  digas  mais  I  —  interrompeu  o  cavailei- 
ro como  embriagado  e  phrenctico  pelo  horror  e 
pela  vingança  que  respiravam  as  palavras  ,  o  ges- 
to ,  o  olhar  de  I).  Bibas.  —  Não  digas  mais'.  — 
Tens  rasão  ,  o  vingar-se  é  o  prazer  supremo  d'um 
réprobo!  —  Não  acceitei  delia  a  liberdade:  accei- 
ta-la-hei  de  ti.  .  .  Depois  .  . .  depois  ,  Deus  se  com- 
padeça de  mim.» 

«Não  ha  tempo  a  perder:  —  proscguiu  o  bobo 
começando  a  despir  a  cogula  que  trazia  vestida. — 
Toma  este  habito,  e  saiic,  curvado  e  escondendo 
o  rosto  :  os  guardas  não  te  conhecerão  :  dirige-te 
ao  palco  principal  do  castcllo  :  junto  á  torre  da  es- 
querda é  a  pocilga  do  Iruão  :  a  porta  estará  aber- 
ta :  lá  dentro,  por  detraz  da  minha  pobre  enxer- 
ga ,  é  a  entrada  de  um  caminho  subterrâneo:  sc- 
gue-o  :  irás  sahir  bem  perto  do  sitio  aonde  dizem 
que  chegam  os  corredores  do  infante.  O  resto  per- 
lence-te  a  li. » 

«Mas  qual  será  a  tua  sorte  quando  na  hora  fatal 
os  algozes  baseando  a  sua  vicliina  ,  só  ic  encontra- 
rem a  ti! — disse  o  cavaileiro  hesitando. 

«Pensas  tu  ,  que  se  a  cabeça  me  corresse  algum 
risco,  eu  a  exporia  por  te  salvar? — Oh  que  não! 
—  Também  tenho  a  minha  vingança  e  quero  folgar 
depois  de  a  ver  satisfeita.  Deixar-me-hão  aqui; 
[)orque  o  conde  de  Trava  não  voltará  esta  noite  ;  e 
ámanhaã  ...  oh  ámanhaã  !  .  .  .  Gonçalo  iMendez  da 
Maia  virá  solfar-me.  .  .  Sei  certo  que  hadc  vir.» 

E  apontando  para  a  escada ,  repetiu:  «Não  ha 
um  momento  a  perder.» 

O  cavaileiro  callou-se  e  carregando  o  capuz  so- 
bre os  olhos  subiu  a  escada  ,  e  atravessando  por 
entre  os  guardas,  que  mal  olharam  para  ellc  alten- 
tos  a  fechar  o  alçapão  da  masmorra  ,  sabiu  da  tor- 
re e  encaminhou-se  para  o  sitio  que  o  truão  lhe  in- 
dicara. Os  terrivcis  pensamentos  que  o  agitavam 
produziam  nellc  uma  desusada  energia. 

Quando  o  bobo  se  achou  só,  similhanle  a  tigre 
raivoso  ,  galgou  de  um  pulo  ás  grades  de  uma  das 
Ironeiras  :  mirou  o  céu  por  alguns  momentos,  c  de- 
pois deixando-se  cabir  cm  pé  no  pavimento ,  bateu 
as  palmas  bradando  : 

«Aragonez,  ahi  te  envio  o  meu  vingador!  Conde 
de  Trava  ,  não  tarda  Gonçalo  iMendoz  !  l  in  castcl- 
lo por  vinte  açoutes  !  —  o  truão  c  mais  generoso 
que  tu.  Oh  ,  oh  !  .  .  . 

E  desatara  a  rir.  (Conchrir-sc-hà.) 

(A.  Herculano. J 


Rio  cnANDE  do  sli. 


(Conclusão.) 


CiiMPBE  examinar  se  esta  província  ,  conforme  o 
systema  usado  naqucllas  eras  pelos  soberanos  de 
Portugal  a  respeito  de  quasi  loiio  o  littoral  do  Bra- 
sil ,  tocou  também  era  partilha  a  algum  particular. 
Pelo  Septcntrião,  não  chegaram  até  seu  território 
as  oitenta  léguas  de  costa  doadas  a  Pedro  l.opez  de 
Souza  ,  as  quaes  lindavam  mais  ou  menos  no  rio  de 
S.  Francisco  do  Sul,  c  mnito  em  duvida  abrange- 
ria a  ilha  de  St.'  Calliarina  :  pelo  Moiodia  não  a 
comprehendoram  as  largas  sesmarias  que  o  auctor 
da  iYoííWa  lUi  imliftcacuo  dotilitlo,  e  boa  fé ,  com 
que  se  obrou  a  nova  colónia  do  Sacramento ,   no  con- 


o  PANORAaiA. 


231 


tinente  chamado  de  S.  Gabriel ,  em  as  margens  do 
Rio  da  Prata,  refere  que  o  príncipe  D.  Pedro,  ain- 
da rescnle  ,  fizera  mercê  ao  visconde  de  Asseca  , 
c  a  seu  irmão  João  Corrêa  de  Sá.  Não  era  natural 
appelccercni  lerras  desconhecidas  ,  que  um  marili- 
mo  ouriçado  de  allaqucs  tinha  impedido  de  alli  sur- 
girem os  mais  intrépidos  navegantes  :  sobretudo  ex- 
perientes do  êxito  ruinoso  de  tacs  eraprezas  ,  ainda 
em  outras  donatárias  ,  com  liouifsiinos  portos  ,  de 
facil  embocadura,  c  abrigados  de  vendíivaes. 

Portanto  os  riscos  da  entrada  do  Uio  Grande  de 
S.  Pedro,  invocação  que  é  fama  lhe  deram  os  je- 
suítas das  Jlissõcs  do  Uruguay  ,  que  vagavam  por 
estas  campanhas  em  cata  dos  índios,  c  a  esparcc- 
lada  costa,  sem  abrigo  nem  surgidouro,  foram  sem 
duvida  os  obstáculos,  que  por  tanto  tempo  retarda- 
ram fundações  nestas  planícies  ;  apenas  alguns  ha- 
bitantes das  duas  povoações  portuguezas,  que  a  la- 
deavam ,  tinhnm-se  animado  ,i  transita-las  ,  quan- 
do em  1713  o  governador  do  Rio  de  Janeiro,  Fran- 
cisco de  Távora,  ordenou  a  Francisco  de  Brito  Pei- 
xoto, capitão  mór  da  villa  da  Laguna,  c  da  qual 
havia  sido  o  povoador  com  seu  pai  e  irmão  á  custa 
dos  seus  cabedaes  ,  que  fizesse  examinar  as  campa- 
nhas do  sul  até  á  colónia  do  Sacramento  e  pesquí- 
zar  se  algum  daquelles  sítios  se  achava  occupado 
por  estrangeiros  ;  expediu  elle  a  esta  diligencia  cin- 
co homens  brancos  com  alguns  escravos,  os  quacs 
depois  de  tudo  explorarem  até  á  aldèa  dos  índios 
Charruas  de  S.  Domingos  Soriano  ,  ao  voltar  com  a 
noticia  de  que  se  conservavam  dcscmpcdidos ,  fo- 
ram atacados ,  aprisionados,  e  despojados  d'armas 
e  roupa  por  um  troço  considerável  de  índios  ,  de 
cujo  capti\eiro,  passados  tempos,  conseguiram  es- 
capar. 

Segunda  expedição  composta  de  quarenta  homens 
brancos ,  e  vinte  c  cinco  escravos ,  atravessou  a 
campanha  ,  e  recolhcndo-sc  com  porção  de  gado , 
que  havia  arrebanhado  das  visinhanças  de  Maldo- 
nado ,  encontrou  nas  margens  do  Uio  Gran<le  um 
lote  de  quarenta  índios  das  reducções  castelhanas, 
que  levados  á  Laguna  declararam  serem  enviados 
pelos  seus  padres  a  escolher  sítio  adaptado  para  no- 
vas aldêas.  O  capitão  mór  os  afagou  ,  brindou,  e 
despediu  com  uma  carta  para  os  mesmos  missioná- 
rios jesuítas,  na  qual  lhes  intimava  que  todo  aquel- 
le  território  pertencia  ao  domínio  portuguez,  e  por 
tanto  se  abstivessem  não  só  de  alli  erigir  povoa- 
ções, mas  até  de  o  devassar  pelos  seus  emissários. 
Para  estorvar  simílbantes  introducçõcs  furtivas,  des- 
pachou ainda  seu  genro  João  de  Magalhães  com 
trinta  homens  ,  e  com  insinuação  de  os  ir  deixando 
estabelccercm-se  por  aquellas  desertas  paragens  ,  e 
lambem  de  concertar  alliança  e  amizade  cora  os  mí- 
nuanos.  Por  esta  forma  se  conseguiu  frequência  e 
communicação  destes  índios  com  a  villa  de  Lagu- 
na ,  e  datam  desde  então  as  primeiras  estancias  de 
gado,  que  os  nossos  foram  por  aqui  formando. 

Entretanto  que  os  portuguezes  da  Laguna  se  apos- 
savam, e  vigilantemente  defendiam,  da  parte  marí- 
tima ,  novo  projecto  se  levantava  de  a  penetrar  pe- 
lo sertão  :  Barlholomeu  Paes  de  Abreu  ,  das  prin- 
cípaes  famílias  de  S.  Paulo,  e  distincío  já  por  ser- 
viços assignalndos  ,  concebeu  a  ídéa  de  uma  estra- 
da de  communicação,  c  representon  ao  governo  em 
23  de  maio  de  i'20  :  ((Que,  á  excepção  dos  bár- 
baros selvagens  ,  restando  despovoado  o  extensíssi- 
mo paiz  desde  a  Laguna  até  á  colónia  do  Sacramen- 
to, de  nenhuma  utilidade  ora  para  o  estado  o  innu- 
meravel  gado  ,  que  o  cobria  ,  podendo  aliás  ser  de 


incalculável  vantagem  ,  como  afliançava  a  experiên- 
cia do  que  cm  circumstancias  análogas  aconteceu 
cora  as  rainas  d'onro  dos  Cataquazes  [hoje  capita- 
nia de  Slinas  Geraes]  ,  que  em  pouco  temjio  depois 
de  descobertas,  tinham-se  augmentado  cora  as  pro- 
visões de  gado  de  toda  a  espécie,  extrahido  dos 
sertões  da  IJahia  ;  que  se  offerecia  a  abrir  franca 
passagem  pelo  interior  das  duas  cajutanias :  sem  o 
mínimo  dispêndio  da  real  fazenda  ;  em  recompensa 
porem  desse  relevante  serviço  exigia  :  1."  Ser  do- 
natário de  quarenta  léguas  de  terra  nas  margens  do 
Uio  Grande  ,  demarcadas  pela  costa ,  vinte  jiara  o 
norte  c  vinte  para  o  sul ,  c  os  fundos  por  todo  o 
sertão  pertencente  a  Portugal ,  de  juro  e  herdade  , 
com  um  padrão  de  200,000  réis,  assentado  na  pas- 
sagem do  mesmo  Uio  Grande,  e  a  patente  de  capi- 
tão mór  daquellc  districto;  2.°  passarem  livres  de 
direitos  pelos  primeiros  nove  annos  os  anímaes,  que 
exportasse  para  si  ou  seus  sócios;  3."  ser  gnarda- 
mór  geral  de  quaesquer  minas  ,  que  se  descobris- 
sem nas  vertentes  do  Rio  Grande,  c  serros  circum- 
visinhos  ,  com  iguaes  ordenados  aos  que  se  confe- 
riam ao  guarda-mór  das  Minas  Geraes. 

Dcinorou-se  a  còrlc  em  resolver;  mas  chegando 
a  S.  Paulo  ,  em  1721  ,  o  governador  e  capitão  ge- 
neral Rodrigo  Ceznr  de  Jleiíczes  ,  e  trazendo  positi- 
vas inslrucçõcs  para  convencionar  com  Bnrtholomeu 
Paes  sobre  a  abertura  do  caminho  para  o  Uio  Gran- 
de ,  por  parecer  o  melhor  meio  de  segurar  estas 
possessões  ,  ou  fosse  por  achar  então  ausente  o  di- 
to Paes ,  empenhado  era  descobrir  estrada  para  o 
Cuyabá  ,  ou  por  esperanças  de  conseguir  o  intento 
sera  os  exuberantes  prémios  exigidos  ,  concertou  a 
cmpreza  em  1722  com  Manuel  Godinho,  que  não 
a  realis.mdo  por  inconvenientes  ,  passou  de  novo  a 
contrjta-la  com  Luiz  Pedrozo  de  Barros  pela  mer- 
cê de  um  habito  de  Christo  ,  com  a  tença  anuual 
de  00,000  réis  ,  graça  que  se  veriíiccu  cm  seu  so- 
brinho o  Mestre-de-campo  de  auxiliares  Manuel 
Dias  da  Silva. 

Este  mesmo  Mestre-de-carapo  ,  ao  correr  o  anno 
de  1735,  acorapanhado  de  uma  partida  escolhida, 
atravessou  cm  três  mezes  o  sertão  a  fim  de  fazer 
diversão  ás  forças ,  que  sitiavam  a  colónia  ,  supe- 
rando os  maiores  obstáculos.  Chegando  aos  campos 
denominados  da  Vacaria  ,  levantou  um  padrão  do 
madeiro  mais  grosso  e  que  pareceu  menos  corru- 
ptível ,  c  nelle  gravou  a  inscripção  :  ((Viva  o  muito 
alto  ,  e  muito  pode-roso  Rey  de  Portugal  ,  D.  João 
V,   Senhor  dos  domínios  deste  sertão  da  Vacaria.» 

.4ssím  a  íllesa  conservação  destes  territórios  uo 
senhorio  portuguez  c  mais  um  testemunho  do  zelo 
e  do  cnthusidsmo  patriótico,  que  instigavam  os  pau- 
listas para  os  altos  feitos  ,  em  que  á  custa  de  suas 
fazendas  e  vidas  tanto  se  extremaram  ;  propensos 
por  génio  e  por  educação  a  emprezas  árduas ,  não 
só  defenderam  ,  mas  ainda  alargaram  as  raias  des- 
te estado  ,  que  sem  elles  é  provável  estivessem  ho- 
je reduzidas  a  mais  estreitos  limites;  por  isso  a 
historia  d;)qnella  província  será  também  a  historia 
geral  do  Brasil. 


Vantagens  e  condições  do  Matrimonio. 

EsPANTAM-SE  OS  moços  com  o  que  ouvem  dizer  do 
casamento,  de  ordinário  aos  mal  casados,  porque, 
senhor,  ha  Vm.  de  saber  que  muito  mais  certo  é 
que  o  mantimento  bom  se  converta  no  raáu  humor 
que  em  nós  acha  do  que   converter  o  máu  humor 


'232 


O   TANORAMA. 


nessa  sua  hoa  virtude.  Parece-lhes  aos  moços  inlo- 
leiavel  a  carga  do  matrimonio.  É,  Sr.,  pesadíssi- 
ma para  os  que  a  não  sabem  levar;  para  os  que 
sabem  é  ligeira.  Lima  arroba  de  ferro  ao  boml)ro 
carrega  ura  homem  que  com  o  fácil  arliíii  io  de  ! 
duas  rodas  [uide  levar  um  quintal.  iNão  excede  o 
peso  do  casan)ento  as  nossas  forças  ,  falta-lhe  as 
mais  das  vezes  nossa  prudência  para  que  o  susten- 
te ;  e  dahi  vem  que  nos  pareça  grande.  —  Quer 
V'm.  ver  quão  leve  é  a  carga  deste  nioJo  de  vida 
que  toma?  Meça-a  com  o  peso  de  essoutra  vida 
que  deixa.  Ponha  ,  Sr.  ,  em  balança  a  inquietação 
passada  ,  os  perigos  ,  os  desgostos  ,  a  desordem  dos 
affectos  ,  aquelle  temer  tudo  ,  não  fiar  de  nada  ,  o 
queixume  que  doe,  a  vingança  que  arrisca,  a  ruim 
lei  que  desespera,  os  ciúmes  que  abrazam,  os  amo- 
res que  consomem  ,  a  honra  cm  occasião  ,  a  saúde 
dimiiHiida  ,  a  vida  arriscada,  e  o  que  é  mais,  a 
consciência  sempre  queixosa.  —  Ora  alviçaras,  Sr., 
que  já  lã  vai  tudo  isto.  Era  verdade  quando  o  ca- 
samento não  trouxera  outro  algum  bem  ,  mais  (jue 
livrar  de  tantos  males,  justamente  merecia  o  no- 
me de  santa  e  doce  vida.  —  Pois  vejamos  o  que  se 
lhe  dá  a  um  casado,  a  troco  dessa  liberdade,  que 
elles  tanto  allegam  que  deixam.  Dá-se-lhe  outra; 
entrega-se-lhe  a  mulher  cora  a  liberdade  ,  com  a 
vontade,  com  a  fazenda,  com  o  cuidado,  com  a 
obediência,  com  a  vida,  com  a  alma.  Quem  pesa- 
rá o  que  deixa  con?  o  que  recebe  que  logo  não  co- 
nheça os  ganhos  desta  troca  ? 

Uma  das  cousas  que  mais  assegurar  podem  a  fu- 
tura felicidade  dos  casados  é  a  proporção  do  casa- 
mei;lo.  A  desigualdade  no  sangue,  nas  idades,  na 
fazenda,  causa  cuntradicção  ;  a  contradicção  discór- 
dia. Eis-aqui  os  tr.iiialhos  por  donde  vem.  Perde- 
se  a  paz  ,  e  a  vida  é  inferno.  Para  a  satisfação  dos 
pais  convém  muito  a  proporção  do  sangue  ,  para  o 
proveito  dns  filhos  a  da  fazenda  ,  para  o  gosto  dos 
casados  a  das  idades.  Não  porem  que  seja  preciso 
uma  conformidade  de  dia  para  dia,  entre  o  marido 
e  a  mulher;  mas  que  não  seja  excessiva  a  vanta- 
gem d'um  a  outro.  De\e  ser  esta  vantagem,  quan- 
do a  haja,  sempre  da  parte  do  marido,  em  tudo  á 
mulher  superior.  E  quando  em  tudo  sejam  iguaes  , 
essa  6  a  sumraa  felicidade  do  casamento.  —  Dizia 
um  nosso  grande  cortesão  ,  havia  três  castas  de  ca- 
samentos no  mundo  : —  casamento  de  Deus  ,  casa- 
mento do  diabo,  e  casamento  da  morte.  De  Deus 
o  do  mancebo  com  a  moça.  Do  diabo,  o  da  velha 
com  o  mancebo.  Da  morte  ,  o  da  moça  cora  o  ve- 
lho. Elle  certo  tinha  rasão  ;  porque  os  casados  mo- 
ços vivem  com  alegria.  As  velhas  casadas  com  mo- 
ços vivem  em  perpetua  discórdia.  Os  velhos  casa- 
dos cora  as  moças  apressam  a  morte,  ora  pelas  des- 
confianças ,  ora  pelas  demasias.  Mas  porque  estas 
cousas  são  muito  gcraes  ,  c  ainda  os  incapazes  tcra 
delias  o  conhecimento  que  aos  entendidos  lhes  so- 
beja ,  é  tempo  de  passar  a  alguns  mais  particula- 
res avisos.  Senhor,  saiba  Vm.  que  á  sua  alma  se 
accresccnta  outra  alma  de  novo  ;  á  sua  obrigação 
SC  ajunta  outra  obrigação.  Assim  devem  crescer 
seus  cuidados  e  seus  respeitos.  E  da  mesm.i  sorte 
<(ue  se  a  um  homem  que  possuísse  uma  licrdade,  a 
qual  cultivasse  ,  lhe  fosse  deixada  outra  de  novo  , 
para  o  mesmo  elTeito  ;  este  tal  homem  ,  sem  dimi- 
nuir era  sua  alegria,  era  força  que  na  diligencia  se 
avantajasse  por  abranger  com  seu  trabalho  a  am- 
bas aqnellas  suas  fazendas  ;  nem  mais  nem  menos 
deve  o  casado  multiplicar  o  tento  e  a  fadiga  [sem 
que  por  isso  se  entristeça]  por  não  faltar  so  novo 


cargo  que  tomou ,  e  lhe  entregaram  cora  a  mu- 
lher que  lhe  deram;  não  para  que  a  arriscasse  e 
perdesse  [e  a  si  mesmo  cora  ella]  ,  mas  para  que 
com  maior  commodo  e  descanço  pudesse  passar  com 
ella  a  vida.  Passemos  a  ver  se  será  possível  dar  al- 
guma regra  ao  amor;  —  ao  amor  que  sohc  ser  a 
principal  causa  de  fazer  os  casados  mal  casados  ; 
unias  vezes  porque  falta  ,  e  outras  porque  sobeja. 
Armcmos-lhe  ,  sequer,  as  redes  ,  caia  elle  se  qui- 
zer ,  e  o  mais  certo  será  que  vòe  e  fuja  delias  ; 
porque  quiçá  por  isso  o  pintaram  com  azas.  — 
.4me-se  a  mulher,  mas  de  tal  sorte  que  se  não  per- 
ca por  ella  seu  marido.  Aquelle  amor  cego  fique 
para  as  damas;  e  para  as  mulheres  o  amor  com 
vista.  Ora  cure  os  olhos  que  tem  ,  ou  os  peça  em- 
prestados ao  entendimento  desses  que  lhe  sobejam. 
Digo,  perder  pela  mulher:  perder  por  ella  seu  ma- 
rido a  dignidade  e  compostura  de  horaera  de  lhe 
não  contradizer  sua  vontade,  quando  c  justo  que 
lh'a  contradiga.  Saiba-se  ,  e  tema-se  ,  que  lambem 
ha  narcisos  do  amor  alheio  ,  como  do  seu  próprio. 
—  Gabavam  muito  certos  cardeaes  ao  papa  Pio  S.° 
um  seu  creado  que  elle  mais  favorecia.  Respoudeu- 
Ihes  :  Bom  é  ,  mas  nunca  me  contradiz.  Tão  longe 
está  de  ser  desamor  que  antes  é  perfeição  do  amor 
o  saber  encontrar  a  vontade  de  quem  se  ama,  quan- 
do ella  não  deve  de  ser  seguida.  Ha  alguns,  Sr.  , 
de  tão  pouco  juizo  ,  que  fazem  ostentação  de  seu 
próprio  cantiveiro.  Igual  affronta  é  a  um  casado  sa- 
ber-se  que  o  manda  sua  mulher,  que  saber-se  que 
ella  c  de  seu  marido  escrava  ,  e  não  companheira. 
Este  foro  ,  esta  prerogativa  de  que  cada  ura  é  bem 
que  use  logo  ao  principio  ,  convém  que  se  concer- 
te. O  marido  tenha  as  vezes  de  sol  em  sua  casa , 
a  mulher  as  da  lua,  Alluniie  com  a  luz  que  ellc 
lhe  der;  e  tenha  lambem  alguma  claridade.  A  ellc 
sustente  o  poder,  a  ella  a  estimação.  Ella  tema  a 
elle  ,  c  elle  faça  que  todos  a  temam  a  ella  ;  serão 
ambos  obedecidos.  Dissera  eu  que  as  mulheres  são 
como  as  pedras  preciosas,  cujo  valor  cresce,  ou 
mingua,  segundo  a  estimação  que  delias  fazemos. — 
Os  que  casam  com  mulheres  maiores  no  ser,  no 
saber  ,  e  no  ler  ,  estão  a  grandíssimo  perigo.  Deste 
livrou  Deus  a  \m.  Os  mais  annos  são  grandes  ar- 
rhas  no  casamento,  era  favor  da  auctoridade  do  ma- 
rido. O  homem  que  casa  com  mulher  de  pouca  ida- 
de leva  a  demanda  meia  vencida.  Nos  tenros  annos 
não  ha  ruim  costume  ,  porque  ainda  o  menos  ad- 
vertido está  no  animo  como  hospede  ,  e  não  de  as- 
sento. Accusando  um  homem  a  sua  mulher  de  mal 
acostumada,  diante  do  seu  príncipe,  foi  delle  per- 
guntado de  que  annos  entrara  no  seu  poder ;  e  co- 
mo lhe  dissera  o  marido  que  de  doze  ,  respondeu 
aquelle  rei  :  —  Pois  vós  sois  o  que  deveis  ser  casti- 
gado ,  que  tão  mal  a  criastes.  L'm  leão  em  peque- 
no se  amansa:  aos  próprios  ferros  da  gaiola  era  que 
vive  preso  toma  affeição  um  passarinho  ;  sendo  aquel- 
le \n\r  seu  natural  feroz  ,  e  este  livre.  É  a  creação 
outro  segundo  nascimento  ,  c  se  em  alguma  cousa 
diflere  do  primeiro,  é  só  era  ser  mais  poderoso  es- 
te segundo.  —  D.  Fra7icisco  Manuel  de  Mello:  Car- 
ta de  guia  de  casados. 


Não  disputeis  com  loucos ,  ébrios  e  néscios  ;    a  vi- 
ctoria  uão  dá  gloria  ,  e  a  derrota  é  vergonhosa. 

Os  intrigantes  persnadem-sc  que  a  intriga  incul- 
ca talentos  c  capacidade  ;  a  experiência  os  desmen- 
te :  annuncia  ignorância  e  improbidade. 

MaTqnez  d^  Maricá. 


83 


o  PANORAMA. 


23a 


N.   S."   DO  VIONTZ.  —  V-S-TA   TOEÍADA  DO  CAMPO  DE  S."  ANNA. 


•A  COLUNA   denominada   da  Senhora   do  Monte  ,    ao 
norle  da  outra  mais  eminente  era  que  est.i  situado 
n  castello,  e  quasi  na  mesma  direcção  contigua  pe- 
las faldas  á  da  Penha  dcFranrn,  tem  de  altura  300 
pós  proximamente  sobre  o  nivcl  do  mar  :  a  coroa  é 
occupada   por   um  terreiro    ensombrado  darvores, 
cuarnecido   de   um    parapeito   quasi   semicircular, 
em  frente  da  ermida  da  Senhora  ,    a  qual  occupa  a 
parte  do  nascente,   com  a  porta  principal  e  seu  al- 
pendre olhando  para  o  poente.  O  cabeço  é  tudo  es- 
carpado desde  o  alicerce  do  parapeito  até  a  raiz  do 
monte   povoada  de  casaria  ,   o  que  não  obsta    a  ser 
cultivado  de  searas  e  algumas  oliveiras  ,  e  sulcado 
de  Íngremes  trilhos   de   pé  posto   e  má  serventia  , 
alem  dos  quaes  é  seu  geral  accesso  a  calçada  áspe- 
ra ,  extensa  ,  e  empinada  que  parle  das  Olarias  ,   a 
que  é  sobreposta  outra  na  direcção  de  sul  a  norte. 
Começa  no  angulo   que- formam  as  duas   a  travessa 
do  Monte  ,    que  vem  parar  ao  largo  da  portaria  da 
Graça,  e  é  a  melhor  entrada  para  este  local.  —  ISo 
alto  ha  uma  cisterna  com   a  porta  resguardada  por 
grade  de  ferro  c  aberta  n'uni  lado  da  pequena  cú- 
pula de  alvenaria  ,  superior  ao  nivel  do  chão  :    ahi 
mesmo  mais  ao  norte  ,  defronte  da  igreja  ,  está  er- 
guida  uma  pyramide  apoucada  ,   c  na  face   do   sul 
lé-se  mal  uma  breve  inscripção  latina  ,   por  ter  le- 
tras gastas  c  outras  lascadas,  ainda  que  modernas; 
porem  o  sentido  é  que  naquelle  local  tiveram  pri- 
meiro estabelecimento   em  Lisboa  no  anno  1148  os 
eremitas   de  St.°  Agostinho.  No  cunhal  da  ermida 
correspondente  á  boca  da  calçada  está  outra  inscri- 
pção na  rjicsnia  lingua  ,    que  declara  terem   os  au- 
gustiiiianos   plantado   o  arvoredo   para    recreio  dos 
habitantes  da  cidade  e  ornamento  du  siiio  ;  começa 
— Pátrias,  civibus  cí  urbi  lífc. ,  e  termina  com  a  da- 
Jruio  2'J— 1843. 


ta  de  1815.  É  magestosa  desta  altura  a  dilatada  vis- 
ta de  Lisboa,  do  Tejo,  e  d'algiins  arrabaldes,  me- 
nos para  nascente  por  causa  do  edifício. 

A  igreja  antiga  foi  totalmente  arruinada  pelo  ter- 
remoto ;  mas  logo  se  tratou  de  levantar  a  que  ora 
subsiste;  por  esse  tempo  se  lavrou  provavelmente 
a  inscripção  da  pequena  pyramide  collocada  onde 
dissemos,  e  a  data  de  1148  indica  a  pertenção  quc- 
suslentavam  os  eremitas  ,  a  qiie  chamávamos  gra- 
cianos ,  de  ser  a  sua  a  primeira  ordem  religiosa 
que  cm  Lisboa  tomou  pé,  estabelccendo-se  nos  pri- 
meiros mezes  da  conquista  e  ainda  primeiro  que  os 
Cónegos  Regrantes  ,  como  Fr.  António  da  Purifica- 
ção procura  provar  na  Chronica  da  Ordem  com  ra- 
sões  que  não  vem  ao  nosso  intento.  Certo  c  que  os 
mesmos  padres  tiveram  uma  pequena  casa  na  la- 
deira baixa  desta  eminência  c  da  banda  do  norte, 
porque  dahi  transferiram  a  morada  em  1243  para 
outra  que  na  cima  llies  fundou  uma  D.  Suzana  , 
proprietária  do  monte  .  fazendo-lhes  doação  deste  e 
d'uma  herdade  que  linha  a  S.  Vicente  de  tora  : 
daqui  passaram  depois  para  o  amplo  convento  da 
Graça  (-;  que  construíram  no  monte  visinho  ,  con- 
servando todavia  a  posse  e  administração  do  eremi- 
tério de  S.  Gens  ,  nome  que  tomara  do  primitivo 
na  raiz  da  eminência  ,  e  proviera  do  santo  do  mes- 
mo nome,  que  alguns  pertendem  que  seja  o  S.  Ge- 
nesio,  que  o  marlyrologio  romano  traz  a  11  de  ou- 
tubro, o  mesmo  queS.  Gines  dos  castelhanos,  mar- 
tyrisado  na  perseguição  de  Diocleciano  ;  outros  o 
fazem  portuguez  e  bispo  de  Lisboa.  A  respeito  da 
cadeira  de  S.  Gens ,  onde  dizem  que  descançava 
quando  fazia  pregação  ao  povo  ,  diz  o  P.°  J.  15.  de 
Castro  fno  M.  de  Portug.]  que  —  é  mais  venerada 


(•;      \iú.  a  pa^.  mb  (lo  4."  \o 


1.  da  iíerie  1." 


2.'  Serie.  —  Yoi..  II. 


23i 


O  PANORAMA. 


depois  que  a  rainha  D.  Maria  Anna  de  Áustria  lhe 
mandou  pôr  grades  de  ferro  á  roda  ,  vindo  senlar- 
.se  iiella  em  1723  ,  para  ser  bem  suecedida  nu  par- 
lo ,  segundo  a  inveterada  fé  das  matronas  lisbonen- 
ses.  —  Hoje  conscrva-se  n'uraa  casinha  com  sua 
porta  ,  dentro  da  igreja  ,  entre  a  porta  principal  e 
a  travessa  ,  do  lado  da  epistola. 

A  invocação  própria  da  Sr."  do  Monte  c  N.  Sr." 
da  Visitação  ,  e  dahi  vem  que  era  veneração  deste 
titulo,  nas  segundas  feiras  de  junho  anteriores  a 
24  ,  nascimento  do  Baptista ,  praticava  o  povo  de 
Lisboa,  principalmente  mulheres,  a  seguinte  usan- 
ça ,  que  achámos  no  chronista  Fr.  António  da  Pu- 
rificação ,  L.°  5."  tit."  3.°  §  21  — «depois  que  ca- 
da devoto  faz  sua  oração  nesta  ermida  ,  se  torna  a 
sahir  delia  ,  e  tomando  pela  parle  esquerda  a  vai 
cercando  em  roda  até  chegar  pela  parte  direita  a 
mesma  estancia  donde  havia  começado  o  circulo. 
E  feito  este  primeiro  circulo  prosegue  logo  a  fazer 
o  segundo  ,  e  assim  continua  até  fazer  nove  círcu- 
los ;  c  acabados  clles  torna  a  entrar  na  ermida  e 
offercce  á  A'irgem  Senhora  nossa  aqucllcs  passos , 
tomando-a  por  advogada  para  suas  necessidades.  » 

Referem  auctores,  entre  elles  D.  Rodrigo  da  Cu- 
nha ,  Cat.  dos  B.  de  Lisboa,  p.  1.^  cap.  32,  que, 
conquistada  a  cidade  pelos  mouros  ,  durante  a  do- 
minação delles  em  três  logares  se  conservou  ,  co- 
mo em  Cedofeita  no  Porto  (::) ,  o  exercício  do  cul- 
to catholico  ,  a  saber  ,  no  templo  de  Santos  o  Ve- 
lho,  no  de  S.  Félix  em  Chellas  ,  e  no  monte  de  S. 
Gens ,  de  que  acabamos  de  tratar. 


Phenomeno  moral  explicado. 

Biffcrcnça  caractcristira  ,  entre  a  meia  idade , 
e  a  idade  actual. 

-Nós  j.v  tivemos  occasião   d'es(  rever  n'oulro  logar, 
dizendo  que  a  meia   idade  t(-M   sido  grandemente 
calumniada  :   mais  afastada  de  nossos  conhecimen- 
tos históricos  usuaes,  desconhecida  quasi  geralmen- 
te ,   ou  conhecida  apenas  pelos  factos  estrondosos , 
violentos,  despóticos,  dos  costumes  e  idéas  da  epo- 
cha ,   só  deixa   perceber  seu  caracter  nobre ,    sua 
crença  firme  e  acalorada,  sua  honradez  e  lealdade, 
e  aquelle   brioso  e  venerando  sacramento  cavalhei- 
resco  da  palavra  dada  ,   aos   que  se  tem  dado  com 
perseverança  ao  ímprobo  estudo  de  prolundar-lhc  o 
espirito  ,   e  de  lixar  o  caracter  desta  cpccba  ,  estra- 
nhamente  heróica,    da    historia   moderna.    Quereis 
.saber  a  rasão  daíjuelle  conceito  depressor,  injusto  e 
i)anal  ,  que  só  avalia  a  meia  idade  pela  rudeza  dos 
'■ostumes  ,   pelas  expolíações  da  prolissão  militar, 
pelas  desordens  da  anarchia?   É  que,  segundo  dis- 
se um  anctor  muito  espirituoso  :  =  Ou,  a  historia  c 
uma  ttíla  ,  ou  tolos  tem  sido  aquelles  que.  no-la  trans- 
7nitttram.  =  0s  acontecimentos  ruidosos,   a  queda 
dos  impérios ,   as  batalhas ,  as  invasões  ,  e  todas  as 
demais   calamidades  que  excitam   a  atlenção  ou   o 
espanto,  os  abusos  do  grande  |)odcr  ,  as  conquistas 
com  que  a  fortuna  coroou  a  ambição  ,   c  a  valentia 
d'um  chefe  ousado,   as  violências  e  os  crimes  au- 
<laciosos  dos  povos  ou  dos  indivíduos  gravam-sc  na 
memoria,    escrevem-se  ,    entalliam-sc   nas   pedras, 
nos  monumentos   da  vaidade  ;    ao  mesmo  passo  que 
as  virtudes   pacificas  ,    o  mérito   privado  ,    os  actos 
lie  beneficência,  de  pia  e  de  generosa  caridade,  fi- 
cam  ommíssos  ,    cscapam-sc   da  lembrança   dos  ho- 
' ::)    A'ia.  a  pag.  169  du  1."  voi.  da  prcseute  Serie. 


mens , 
les. 


e  nem  a  penna  nem  o  buril  se  occupa  dcl- 


Já  se  vê  por  este  preambulo  que  nós  não  parti- 
lhamos nenhuma  das  duas  seitas  muito  communs 
dos  cscriptores ,  dos  entendedores  do  nosso  tempo  : 
nós  nem  somos  dos  sentimentalistas  que  professara 
aversão  systematica  áquella  epocha  de  rudeza,  igno- 
rância ,  e  violência  ,  nem  dos  cnthusiastas  que  só 
vêem  nella  as  proezas  da  brilhante  cavallaria  ,  o 
amparo  dos  desvalidos ,  a  nobreza  de  suas  expedi- 
ções ,  a  dedicação  heróica  aos  créditos  de  sua  pes- 
soa e  ao  pondonor  nacional :  estes  ao  menos  tem 
por  desculpa  o  brilhantismo  da  imaginação ,  a  bel- 
leza  sympathica  da  poesia  ,  a  remontada  figura  dos 
Tancrcdos  de  Tasso  ,  e  dos  doze  d'  Inglaterra  de 
Camões. 

Collocados  no  meio  termo  ,  seguiremos  a  tempe- 
rança pausada  c  fria  da  verdade  histórica  ;  e  sem 
visarmos  a  profundar  cm  seu  todo  esta  vasta  e  em- 
maranhada  campina  ,  que  não  cabe  isso  em  curtas 
paginas,  fixaremos  aqui  somente  o  seu  caracter  mo- 
ral ,  o  seu  typo  particular,  o  seu  cunho  distiocto  , 
segundo  o  qual  fica  seudo  facíl  depois  explicar  c 
apreciar  os  acontecimentos  históricos,  que  delia  de- 
rivam. A  fixação  ,  a  determinação  daquelle  typo  é 
muito  importante  ,  é  transcendente  porque  appre- 
senta  o  principio  dominante  nos  successos  daquella 
epocba  em  toda  a  Europa  :  foi  a  origem  de  tudo  o 
que  vemos  ,  e  que  possuímos  e  gozámos ;  naquelle 
embrião  universal  estava  toda  a  civilisação  mo- 
derna. 

Deixemos  esses  séculos  de  reconslrucção  social , 
cm  que  nada  estava  feito,  c  tudo  se  achava  n'um 
cabos  provisório  |>ara  sahir  dahi  mais  tarde  uma  so- 
ciedade nova.  Falíamos  das  invasões  dos  povos  do 
norte  ,  que  aniquillaram  a  sociedade  ,  família  anti- 
ga romana  :  passemos  por  alto  essa  longa  serie  de 
lutas  ,  a  acção  e  reacção  dos  conquistadores  entre 
si ;  approximemo-nos  da  sociedade  nova  ,  constituí- 
da sobre  o  amalgama  da  fusão  dos  costumes  dos 
germanos  com  os  usos,  costumes,  e  instituições  lo- 
eaes  dos  povos  conquistados ;  cstabeleçamo-nos  no 
roeío  da  feudalidade  dos  séculos  11  ,  12  e  13,  em 
que  já  vemos  um  systeraa  de  governo ,  uma  vida 
social  abraçada  ;  e  procuremos  descobrir  ahi  o  seu 
espirito  ,  o  seu  caracter  moral. 

Aos  que  attciitamente  rencctem  nus  costumes , 
nas  instituições  desta  cpocha  memorável,  duas  cou- 
sas sobresahem  principalmente  :  a  fraqueza  do  prin- 
cipio politico  ;  a  força  ,  a  tenacidade  do  principio 
moral.  Exj)liquemo-nos :  o  vinculo  da  obediência 
que  devia  ligar  os  governados  ao  poder  e  auetori- 
dade  do  governante  era  débil  e  limitado.  Desde  as 
primeiras  invasões  germânicas  que  os  cabos  daqucl- 
las  hordas  guerreiras  se  costumaram  a  contemplar 
o  rei  como  um  commandanlc  ,  um  chefe ,  compa- 
nheiro d'armas ,  sócio  c  camarada  ,  antes  do  que 
supremo  moderador.  A  vida  bellicosa  destes  con- 
quistadores ,  a  necessidade  de  ter  promptos  eslcs 
diversos  commandantes  militares  ,  fez  que  os  reis 
re[iartissem  com  clles  as  terras  novameiíle  ganha- 
das ;  c  dahi  o  solo  dividido  cm  pequenas  sobera- 
nias ,  que  apenas  tributavam  ao  tví  =  /úí  et  liinn- 
»;iíi7(;  =  para  o  acompanharem  nas  expedições  mili- 
tares; tendo  em  certos  casos  o  direito  de  desobe- 
decer-lhe  eguerrca-lo.  Destes  costumes,  e  desta  ne- 
cessidade nasceu  o  direito  feudal  ,  que  reduziu  a 
syslema  esta  anarchia  govern.itiva.  No  fim  do  sécu- 
lo 10  comoc.ir.am  as  expedições  contra  os  sarrace- 
nos ,  e  as  cruzadas ,  nascidas  do  pondonor  guerrci- 


o  PANORAaiA. 


2Tò 


ro  e  chrislão  que  se  apoderou  facilmcnle  de  todas 
as  imaginações  ,  dominadas  pelo  principio  religio- 
so ;  c  dalii  o  espirito  do  cavallaria  ,  que  durou  ali' 
ao  século  li-  inclusivamente.  A  prerogativa  real  ia 
ganiiando  terreno  pelos  princípios  novamente  des- 
cobertos nas  leis  romanas ,  mas  o  fundo  do  syste- 
ma  era  o  mesmo. 

Ora  já  se  vè  que  n'um  similhanlc  estado  de  cou- 
sas, cm  que  os  homens  livres  eram  poucos  c  fra- 
cos ,  cm  que  quasi  tudo  se  cifrava  em  senhores  do 
território  c  seus  colonos  ,  ou  escravos  ;  em  que  tu- 
do se  passava  ou  nas  licenciosas  e  violentas  f;uer- 
ras  internas ,  ou  na  ociosidade  e  moleza  do  solar  , 
ou  castcllo  senhorial,  os  costumes  não  podiam  ser 
puros  ,  nem  as  maneiras  decentes  e  delicadas.  Da- 
lii  esses  repugnantes  exemplos  de  destruições  bar- 
baras e  brulacs  ,  de  raptos  femininos  ,  de  violação 
da  clausura  monástica  ,  e  de  todos  esses  procedi- 
mentos despóticos,  nascidos  da  prepotência  sem 
freio.  Nossas  historias  estão  cheias  destes  attcnla- 
dos ,  c  basta  percorrer  o  livro  velho  das  Linhagens 
para  encontrar  a  cada  pagina  —  mulheres  roncadas, 
—  cavalleiros  mortos  nas  lides  e  parcialidades  de 
familia  —  casamentos  bigamos  —  e  bastardos  d'ori- 
gem  damnada,  e  sacrilega.  Todos  estes  crimes,  to- 
da esta  desordem  de  costumes  era  parcial ;  grassa- 
va principalmente  nas  classes  elevadas  ;  alimenta- 
da pela  violência  da  vida  guerreira  ,  ou  pelo  ócio 
e  moleza  da  paz.  O  coração  estava  corrompido  ,  a 
justiça  sem  força  ;  e  a  opinião ,  este  freio  salutar 
de  nossos  costumes  actuaes ,  não  era  mais  poderosa 
do  que  as  leis. 

Ao  lado  porem  deste  espectáculo  ,  deste  repu- 
gnante painel,  estavam  as  crenças  e  convicções  nio- 
raes  que  conservavam  a  parte  espiritual  da  socie- 
dade n'um  estado  fixo,  permanente  ,  e  assaz  forte 
e  vigoroso  para  revocar  os  homens  a  um  centro 
coramum,  quando  as  paixões  se  acalmavam.  .1  cor- 
rupção datjuella  epocha  estava  mais  nos  corações  do 
que  nos  espíritos :  e  assim  ,  quando  as  desordens  e 
os  desvios ,  nascidos  pela  maior  parte  do  defeito 
das  instituições  politicas,  arrefeciam  de  seu  fervor, 
as  crenças  communs  restabeleciam  ,  como  por  en- 
cantamento ,  a  ordem  perturbada  ,  e  traziam  os  ho- 
mens ao  centro  da  unidade.  A  religião  com  effeito 
era  naquelles  tempos  o  principio  vi;al  das  socieda- 
des ,  cila  suppria  a  insufíiciencia  das  leis ,  a  falta 
de  cultura  e  civilisação  ,  a  fraqueza  da  auctorida- 
de  ,  e  a  ausência  do  direito  publico. 

Daqui  a  grande  preponderância  do  chefe  da  igre- 
ja, que  espanta  hoje  os  ignorantes  da  historia.  Sen- 
do a  religião  o  único  vinculo  que  então  reconhe- 
ciam e  respeitavam  os  homens,  que  muito  é  tomas- 
se e  exercesse  uma  salutar  supremacia  aquelle  que 
se  interpunha  sempre  no  meio  das  desordens  publi- 
cas,  chamando  ao  trilho  os  vassallos  e  os  reis"? 

J.  C.  .Y.  o  C. 


Considerações  sobre  o  Curso  d' Economia  PoUlic%  do 
Sr.  Miguel  Chnalier. 


IX. 


ííOBRE  a  exportação  dos  cereaes  com  melhor  fun- 
damento se  poderia  instaurar  o  systema  exclusiva- 
mente agricola  ,  porque  elles  conetiinena  o  princi- 
pal artigo  da  nossa  produeção  ,  e  o  seu  valor  exce- 


de ao  do  vinho,  c  muito  ao  de  qualquer  outro  pro- 
duct')  nosso  ou  de  Invra,  ou  de  fabrico.  Mas  os  ce- 
reaes chegam  para  nós  —  grande  conquista  ,  sem 
dúvida  ,  e  immcnso  beneficio ,  á  liberdade  o  deve- 
mos I —  chegam  jiara  nós:  não  sobejam.  >"ão  sobe- 
jam ,  quero  dizer  ,  a  ponto  de  nos  tornar  nação  ex- 
portadora de  trigo  ;  porque  esse  ,  que  desde  183S 
temos  exportado ,  pôde  servir  de  reforço  aos  argu- 
mentos ineontrastaveis  do  crescimento  da  agricultu- 
ra ,  mas  não  é  moti\o  sutTiciente  para  que  ou  ago- 
ra ou  no  futuro  nos  possamos  considerar  celleiro 
das  nações  escacas  de  pão.  A  não  ser  Inglaterra  , 
mui  poucos  são  hoje  ou  nenhuns  os  paizes  civilisa- 
dos  onde  se  nota  esta  escacez  permanente  causada 
da  incultura  ou  ingratidão  do  solo,  ou  do  cresci- 
mento da  população  ;  não  a  accidental,  occasionada 
das  inDuencias  meteorológicas  ,  a  que  estão  expos- 
tos os  terrenos  ainda  os  mais  férteis  ;  porque  quasi 
todos  os  estados  produzem  ou  diligencciam  produ- 
zir o  bastante  a  alimentação  nacional.  A  própria 
Hollanda,,  terra  clássica  do  commercio  livre  ,  ain- 
da ha  pouco  restringiu  a  importação  de  cereaes  com 
intento  de  proteger  a  sua  agricultura  contra  a  con- 
corrência estrangeira.  E  os  portos  do  Báltico  mais 
cerealeiros  tem  decahido  da  sua  antiga  importân- 
cia. Presentindo  um  sobrecellenle  de  pão  em  toda 
a  Europa  ,  os  governos  premunidos  contra  a  inva- 
são d'elle  ,  vão  circumvallando-se  com  aquellas 
mesmas  restricções  que  já  adoptou,  e  hoje  guerreia 
Inglaterra.  E  não  ó  a  manchei  a  de  trigo  que  nos 
pode  sobrar  do  nosso  consumo  interno  ,  a  que  dos 
ha-de  supprir  das  faltas  a  que  nos  arriscámos ,  se 
abdicarmos  toda  a  industria  que  não  seja  agricul- 
tura :  pois  para  poder  Dorecer  pela  exportação  dos 
cereaes,  fora  mister  que  vencêssemos  cm  fertilida- 
de os  terrenos  próximos  ao  Báltico ,  e  conseguísse- 
mos rivalisar  em  barateza  com  os  trigos  de  Odessa 
e  do  Adriático. 

Com  isto  não  pertendo  ,  longe  de  mim  ,  affirmar 
que  devemos  de  todo  renunciar  á  exportação  do  tri- 
go: algum  temos  já  exportado  ,  e  mais  poderemos 
ainda  exportar:  propugno  —  que  pelas  rasões  apon- 
tadas o  commercio  e  riqueza  deste  género  o  have- 
mos de  firmar  no  mercado  domestico,  não  no  es- 
trangeiro. 

O  vinho  ó  o  nosso  mais  valioso  artigo  de  commu- 
tação  externa  ;  se  bem  que  ,  como  já  adverti ,  a  ri- 
queza principal  deste  artigo  estriba  no  consumo  na- 
cional. O  sal  é  o  producto  das  nossas  minas  que 
mais  nos  rende,  e  se  exporta  em  maior  quantidade, 
e  que  pela  sua  excellencia  e  a  variedade  das  suas 
applicações  promette  extracção,  superior  ainda  à 
que  tem  :  mas  o  valor  dessa  extracção  é  mui  dimi- 
nuto para  que  nos  possa  exalçar  a  nação  exporta- 
dora ,  ou  que  tira  o  seu  maior  rendimento  do  com- 
mercio esterno,  O  azeite  é  ura  género  precioso  dos 
que  levámos  ao  mercado  estrangeiro :  a  plantação 
de  oliveiras  nos  baldios  e  terrenos  incultos  ,  espe- 
cialmente nos  mais  visinhos  da  costa,  pois  parecem 
ser  os  mais  syrapathicos  a  esta  arvore  ,  seria  medi- 
da recommendavel  :  mas  a  exportação  deste  como 
dos  outros  artigos  não  nos  ministra  rendimento  que 
nos  exima  de  recorrer  a  outras  fontes  de  produeção 
alem  da  agricola  e  commercial.  E  que  nos  não  dis- 
pensara de  recorrer  ás  artes  fabris  e  o  alvo  onde  eu 
quero  chegar ,  e  hãode  chegar  quantos  reflectirem 
que  não  é  nos  paizes  estrangeiros  ,  é  no  nosso  que 
encontrara  mais  considerável  procura  os  artigos  prin- 
cipaes  da  nossa  exportação  —  que  convém  muito  es- 
tender-lhe  esse  mercado  tão  importante — e  que  um 

* 


236 


O  PANORAMA. 


íos  expedientes  mais  azados  a  csleudc-lo  é  o  esla- 
beleciíDcnlo  d.ns  fahriras. 

Não  nos  seria  prejudicial  termos  produrtns  agrí- 
colas de  rmiilo  valor,  cujo  consumo  fosse,  na  maior 
parle  ,  ou  quasi  lodo  ,  externo  :  mas  a  verdade  c 
qne  os  njio  lemos  ,  c  á  excepção  do  sal ,  o  grande 
consumidor  de  todos  os  outros  é  Portugal.  Sohrc  es- 
te facto  devemos  pois  assentar  o  nosso  syslemn  eco- 
nómico ,  as  nossas  attenrões  devem  co!icenlrar-se 
mais  no  mercado  nacional  :  ncllc  está  a  maior  c 
raais  certa  freguezia  dos  nossos  produclos  :  somos 
obrigados  a  es[)ecular  todos  os  meios  de  engrande- 
ce-Io  :  o  que  não  obsta  a  que  ao  mesmo  tcnipo  pro- 
curemos alargar  a  esfera  do  mercado  externo. 

E  não  só  a  peculiaridade  da  nossa  situarão  eco- 
nómica ,  ta.mbe.m  as  regras  da  prudência  nus  acon- 
selham este  passo.  Estamos  vendo  cm  toda  a  Euro- 
pa ,  e  nas  mais  partes  do  mundo  civilisado  a  pro- 
ducção  a  crescer  n'uma  progressão  constante  ,  e  ao 
mesmo  tempo  as  nações  repellindo  por  todos  os  mo- 
dos, para  que  não  irroguem  damno  á  industria  do- 
mestica ,  aquelles  productos  alheios  que  podem  es- 
cusar. Cada  paiz  trata  de  supprir-se  de  objectos  de 
alimento  c  vestuário  no  seu  mercado  interno  ,  c  de 
lorneccr  esse  mercado  de  artigos  indígenas.  Ocom- 
mercio  externo  continua  ,  e  até  augmenta  n'uutros 
íamos  :  mas  neste  ,  que  loca  aos  artigos  que  for- 
mam a  base  essencial  da  existência  e  subsistência 
dos  povos,  propende  a  diminuir.  Eu  não  assevero 
que  esta  marcha  seja  a  mais  para  desejar,  que  esta 
vasta  cadeia  de  restricções  ^eja  favorável  ao  pro- 
gresso da  riqueza  uni\ersal;  mas  digo  que  o  nosso 
l)raço  não  c  omnipotente  que  a  estorve  ,  e  que  ha- 
vemos de  curvar-nos  ás  condições  que  cila  nos  im- 
põe ,  c  segui-la  ,  produzindo  nós  mesmos  os  obje- 
ctos mais  necessários,  pelo  menos,  ao  nosso  sus- 
tento e  commodo. 

-\cni  i)odemos,  nem  nos  conviria  seguramente  , 
abarcar  o  circulo  inteiro  da  industria  ,  vedando  as 
portas  a  Ioda  a  permutação  com  outras  nações  ;  ne- 
nhuma ha  que  produza  quanto  consomme  na  rota- 
ção do  anno :  ha  ,  pelo  contrario  certos  objectos 
com  que  o  clima  ou  outras  circumstancias  singula- 
res privilegiam  certos  paizes  ,  e  por  causa  delles  , 
por  mais  restrictivo  que  seja  o  systcraa  de  cada  um 
em  particular,  nunca  cessará  o  trafico  mutuo  entre 
os  povos.  Mas  uma  divisão  do  trabalho  tão  perfei- 
ta e  symelrica  que  distribua  a  cada  povo  uma  úni- 
ca e  exclusiva  tarefa  industrial ;  uma  lei  que  diga 
a  este  «tu  serás  agricultor  somente»;  —  a  outro 
o  tu  serás  fabricante,  mas  ficas  tolhido  de  exercer 
qualquer  outra  industria»; — a  aquellenlu  serás 
commercianle  ,  mas  nem  de  agricultura  nem  de  ar- 
tes labris  te  hasde  occupam  —  uma  tal  divisão  do 
trabalho  digo  que  é  quimérica  ,  uma  lei  similhanle 
digo  que  é  absurda  e  incxequivel  ,  no  estado  pre- 
sente ;  puis  do  futuro  ou  das  mudanças  sociaes  c 
económicas  ,  que  estão  ainda  no  arcano  das  contin- 
gências ,  não  pretendo  cogitar. 

.Se  a  divisão  du  trabalho  levada  a  este  auge,  não 
passa  ,  por  ora  ,  do  uma  idealidade  ,  presumiremos 
nós  realisa-la?  Com  que  esperança  ou  com  que  van- 
tagem nos  tornaremos  excêntricos  ao  movimento  in- 
dustrial de  todos  os  povos?  E  digo  — í/c  todos;  por- 
que nesse  numero  conto  a  própria  Inglaterra.  In- 
glaterra professa-se  a  nação  fabril  por  primazia  ; 
mas  ainda  não  disse  que  para  se  conformar  ao  prin- 
cipio da  divisão  do  Iraballm  .  deixaria  de  ser  nação 
agntola  ,  largando  inteiramente  a  culluru  das  suas 
terras.   Deseja  ,   s jm  ,   franquear  os  seus  portos  aos 


cereacs  estrangeiros;  mas  porque  o  deseja?  porque 
não  tem  pão  jvira  o  consumo  dos  seus  habitantes  , 
e  ,  mais  que  tudo  ,  porque  á  sombra  dessa  franquia 
pretende  introduzir  c  vender  no  continente  os  seus 
artefactos  estagnados  por  falta  de  compradores.  De- 
seja isto ,  c  acaba  de  declarar  pelo  modo  roais  so- 
lemne  que  pôde  cxprimir-se  uma  tal  nação,  pelo 
inquérito  industrial  de  1840,  acaba  de  declarar 
que  aspira  a  ser  o  único  paiz  manufactureiro  na 
Europa  ,  adjudicando  ao  continente  nesta  partilha 
leonina  o  lote  da  agricultura.  Onde  está  a  recipro- 
cidade neste  Contrato,  c  a  igualdade  nesta  divisão? 
Inglaterra  ,  povo  de  28  milhões  de  habilanles  pro- 
põe ao  continente,  mercado  de  202  milhões  de  con- 
sumidores ,  bastecc-lo  de  artefactos ,  c  em  com- 
pensação oflerece  á  sua  agricultura  o  mercado  bri- 
taimico  ,  o  (|ual ,  no  que  pertence  a  cereaes  ,  ape- 
nas se  compõe  de  28  milhões  de  consumidores , 
não  em  lodo  o  anno,  mas  em  duas  semanas  somen- 
te ,  no  decurso  de  365  dias,  que  para  essas,  e  in- 
completas, lhes  falta  o  [)ão  (•).  OITerece  [ou  inten- 
ta olfcreccr]  o  mercado  britannico  aos  cereaes  do 
continente,  mas  não  faz  igual  olferta  aos  vinhos, 
porque  estes  grava-os  cora  200  e  300  por  cento  de 
direitos  de  entrada  sobre  o  seu  valor  ,  em  vez  de 
lh'a  conceder  franca  ,  ou  impedida  unicamente  por 
direitos  pruporcionacs  aos  que  pede  para  as  suas 
manufacturas  serem  admittidas  nos  outros  estados. 
Com  taes  condições  não  c  de  esperar  que  o  conti- 
nente consinta  em  trancar  as  portas  dos  seus  esta- 
belecimentos fabris  ,  porque  nem  para  tamanho  sa- 
crificio  haveria  indemnisação ,  segundo  notámos; 
nem  que  a  houvesse  ,  se  concebe  como  ,  ainda  cora 
grave  transtorno  ,  seria  praticável  a  mudança  ,  ou 
pass  ;gem  para  outro  emprego  ,  de  capitães  ,  de  ho- 
mens,  de  hábitos,  e  de  interesses  ligados  á  indus- 
tria, por  esta  forma  immolada. 

(Continuar-se-lia. ) 
Â.  d' O.  Marreca. 


A  SATTEA  é  a  linguagem  da  inveja  e  tanto  mais  abo- 
minável que  todos  se  inclinam  a  crer  o  satyrico 
sempre  malévolo  ;  e  como  se  persuadem  que  não 
poupa  vivos,  nem  perdoa  a  mortos  ,  todos  o  abor- 
recem e  contra  elle conspiram  ;  c quando  assim  não 
fosse  ,  sempre  deveria  ser  dotado  de  sãos  e  puros 
costumes  ,  porque  na  realidade  nada  c  mais  odio- 
so que  um  satyrico  dissoluto,  que  censura  vicios 
alheios,  ou  suppõe  defeitos  a  seus  emulos  :  se  aca- 
so julga  pcrmittido  tudo,  porque  sabe  com  sal  ma- 
ligno adubar  os  seus  epigrararaas  ,  pela  mesma  ra- 
são  pôde  um  espadachim  accommetter  e  insultar  os 
homens  mais  circumspectos  e  honrados  ....  Com- 
paro o  satyrico  ao  macaco  ,  porque  só  se  empenha 
em  divertir  os  outros ;  c  no  meu  conceito  como  es- 
te d<'veria  ser  tratado;  um  instante  faz  rir,  mas  lo- 
go enfastia,  c  quasi  sempre  é  espancado  c  expulso. 
—  l'cde(jachc  na  Vid.  do  Quita. 

Troca  poi-  troca.  —  Os  poros  que  antigamente  se 
tinham  em  conta  de  únicos  civilisados  eram  os  gre- 
gos c  romanos,  depois  dos  cgypcios  e  phenicios  ;  c 
deixaram  a  designação  de  Ijarbarns  para  todos  os 
outros  que  conheciam. —  Os  selvagens  do  norte  da 
America  lambem  cU:\m:)m  burbaros  aos  eurupeus  : 
os  groelandezes  ao  norte  da  Europa  vfjin  da  mes- 
ma linguagem. 

■Iradnc- 


(.)     I\b,tr  .•Stiilistií/uc  .v«-  tom.  S.°  pag.  21  ■ 
i;5q  fritiiceia.  — l'arit  JÍÍ3Í).  ■■ '     '■   '•     ■ 


o   PANORAMA. 


•237 


o  ZOSIAC3. 


pE  CT.RTo  qiic  não  haverá  homcTi)  que  ,  no  encami- 
nhar a  vista  para  a  aliobada  celeste,  ao  contemplar 
n  muUiílãn  de  corpos  luminosos  que  povoam  o  es- 
psro  ,  deixe  de  sentir  desejos  de  conhecer  a  natii- 
rera  desses  glol)os,  pequenos  na  apparencia,  e  que 
sob  a  fornia  de  pontos  mais  ou  menos  resplandecen- 
tes deleitam  os  olhos  ao  mesmo  tcuipo  que  confun- 
dem o  entendimento. 

Toiios  (IS  esforços  dos  astrónomos  paia  medir  a 
dislanfia  que  do  gloho  que  habitámos  separa  as  es- 
Irellas  tem  sido  pela  maior  parte  tnfructuosos  :  rae- 
deam  entrenós  e  cilas  tantos  milhões  de  léguas  , 
([uc  mal  pôde  comprchender-se  o  numero.  A''eja-se 
3  este  respeito  a  «  idca  faeil  do  sy<;tema  do  mundo  » 
que  deí\á:nos  escripta  a  pag.  131  do  rol.  2.°  da 
1.*  Serie. 

Dividiram  as  eítrellas  cm  duas  classes,  chaman- 
do de  priínririi  fp-iinãcza  astjuelem  brilho  superior  ; 
de  .f/juiifhi  ;irar>.(lrf:ii  as  que  brilham  immediatamen- 
tp  menos  e  assim  sii<->;pssi\amente.  As  deserta  gran- 
deza ainda  são  perccptiveis  .4  «Uin  simples  ,  mas 
dalii  para  diante  só  podem  distinguir-se  com  o  au- 
xilio do  telcfcopííj.  Os  iiílroDamos,  para  se  não  >e- 


rcm  confusos  com  tamanha  multidão  de  astros  e  po- 
derem facilmente  delinea-los  nas  cartas  celestes  , 
onde  se  desse  com  a  respectiva  situação  ao  primei- 
ro lanço  d"o!hos  ,  as  coordenaram  era  grupos  ou 
consiellações. 

Como  os  antigos  conheciam  menos  cstrellas  ,  em 
rasão  do  pouco  que  estavam  exploradas  diversas 
palies  do  inundo,  dividiram  o  céu  em  menos  cons- 
lellações  do  que  tem  a  moderna  divisão.  A  par  dos 
progressos  da  navegação  e  do  aperfeiçoamento  do 
telescópio  caminhou  a  astronomia  ;  e  hoje  não  ha- 
verá estrella  ,  por  pouco  importante  que  seja  ,  que 
não  esteja  comprehendida  cm  alguma  das  constel- 
lacões.  Estas  são  zodiacaes  ,  boreacs  ,  c  austracs, 
segundo  a  posição  que  occupam  no  firmamento  ,  e 
o  liemispherio  a  que  correspondem.  Os  antigos  pa- 
ra representação  do  giro  que  nos  parece  que  o  sol 
descreve  anunalmeiíte  no  céu  por  entre  .is  estrellas. 
trararauí  doze  figuras  em  cujo  amhito  e  contornos 
metteram  as  cstrellas  das  doze  consti-llações  por 
meio  d.-.s  qiiaes  i>  sot  tem  de  passar  apparentemen- 
te  :  e  dcram-lhc  os  nomes  de  Aries,  rauro  ,  e  os 
( utr.'6    o«e  sã«  beta  sabidos ,   cujos  symbolos  ti 


238 


O  PANORAMA. 


acham  clíigiados  em  qualquer  folhinha  de  porta ; 
são  os  doze  signos  do  zodiaco ,  que  é  um  dos  cír- 
culos máximos  da  esphera  ,  no  qual  se  movera  os 
planeias.  As  outras  constellações  são  horeaes  ou 
auslraes  conforme  demorara  ao  norte  ou  ao  sul  do 
zodiaco;  das  primeiras  conheciam  os  antigos  [já 
em  tempo  do  celebre  Ptolomeu]  vinte,  cm  que  en- 
trara a  ursa  maior,  a  ursa  menor  &c.  — :  das  se- 
gundas contavam  quatorze  ,  sendo  destas  o  cão 
maior,  o  cão  menor,  a  balea  ,  orion  &c. :  tanto 
ii'uma  como  n'outra  situação  os  modernos  desco- 
Iriram  e  figuraram  grande  numero  delias,  que  não 
mencionaremos,  porque  tratar  larga  c  profundamen- 
te de  similhante  assumpto  so  cabe  em  obra  espe- 
cial ,  e  methodica.  Taes  e  tantas  são  as  estupendas 
maravilhas  dos  céus  que  ninguém  deixará  de  reco- 
nhecer o  Supremo  Auctor ,  dizendo  com  o  psalmis- 
ta  : — os  céus  narram  a  gloria  do  Senhor  ,  c  o  fir- 
mamento annuncia  as  suas  obras. 


O  BRAZEIRO. 
lí. 

«DiGNE-SE  V,  M.  attender-mc  —  disse  o  monge. — 
O  mais  velho  dos  dois  moços  chamava-se  Sancho  : 
era  um  cavalheiro  perfeito,  viva  imagem  de  seu 
pai ;  cabellos  pretos  ,  faces  coradas  ,  olhos  vivos  e 
soberbos  ,  alto  e  esbelto.  . .  Oh  !  se  Deus  lhe  tives- 
se prolongado  a  vida  ,  havia  ter  feito  fallar  de  si. 
Na  idade  de  vinte  e  dois  annos  já  tinha  todas  as 
qualidades  que  adornam  um  guerreiro.  Serviu  sob 
o  comniando  de  António  Spínola  na  Flandres  ,  no 
exercito  que  tomou  a  praça  de  Ostende  ,  que  havia 
reístido  a  um  assedio  de  três  annos  e  um  mez.  Era 
cm  1604.  Que  alegria  para  o  conde  de  Pefiacerra- 
da  e  para  a  condeça,  que  ainda  então  vivia,  quan- 
do seu  filho  ,  depois  de  tão  dilatada  ausência  ,  vol- 
tou aos  seus  lares.  Mas  infelizmente  a  alegria  du- 
rou pouco  :  chegam  um  dia  magistrados  e  esbirros 
e  entram  no  castello  ,  onde  Affonso  o  sábio  muitas 
vezes  descaneára ,  c  prendem  D.  Sancho.  Era  ac- 
cusado  —  um  Peiíaccrrada  accusado  !  —  de  ter  tido 
relações  criminosas  com  os  defensores  de  Ostende 
durante  o  cerco.  Tinha-se  interceptado  uma  carta  . 
ainda  que  sem  assignatura  ,  cuja  leltra  parecia  ser 
de  D.  Sancho  ;  e  apesar  de  negar  constantemente , 
o  crime  foi  dado  por  provado  e  D.  Sancho  condem- 
nado  á  morte. 

Xo  dia  destinado  para  a  execução  tinha-se  o  con- 
de encerrado  no  seu  palácio  de  Madrid  ,  quando 
recebe  uma  carta  de  ura  otlicial  das  guardas  Wa- 
lonas  ,  na  qual ,  cedendo  á  voz  da  consciência  ,  se 
accusava  do  crime  attribuido  a  D.  Sancho  ,  e  de- 
clarava que  em  castigo  se  ia  suicidar  com  um  tiro 
de  pistola. 

Sobresaltado  ,  fora  de  si ,  o  conde  corre  ao  pa- 
ço ,  e  com  impaciência  febril  [levada  da  dòr  pun- 
gente de  um  pai]  rompe  pelas  guardas  até  ao  quar- 
to onde  elrci  estava.  Vossa  Magestade  era  este  rei, 
Icmbrar-se-ha  disto?  Estava  assentado  na  sua  ca- 
deira como  ainda  agora  no  mesmo  logar.  O  cardeal 
duque  de  l.erma  estava  ao  pé  de  V.  M.  ,  e  a  pou- 
ca distancia  o  primeiro  secretario  D.  Hodrigo  Cal- 
deron. 

O  conde  dcitou-sc  aos  pés  d'clrei ,  mas  a  sua 
perturbação  era  tão  grande  que  não  pôde  proferir 
uma  só  palavra.  Foi  então  quo  V.  .'\i.  ,  com  frieza 
severa  e  lom  de  soberano,  lhe  perguntou  quem  era, 
e  como  se  podia  atrever  a  entrar  na  camará  real 


sem   ser  annunciado  ,   o  que  era  gravíssimo  crime 
contra  a  etiqueta. 

«Senhor  —  exclamou  em  lagrimas  o  conde  dePe- 
nacerrada  —  tenha  dó  de  um  pai  que  está  cm  pe- 
rigo de  perder  seu  filho.  Querem  matar  meu  filho. 
Senhor  ,  meu  filho  é  innoccnte  ;    aqui  está  a  prova. 

E  o  conde  com  mão  tremula  appresentava  a  el- 
rei  a  carta  do  official  das  guardas  AValonas.  Mas 
elrei  iramovel  respondeu  :  O  mordomo  do  palácio 
recebe  todas  as  petições  para  elrci ;  retirai-vos  ,  e 
entregai-lhc  a  vossa.  Ao  depois  será  examinada. 

« -Vo  depois  I  É  de  presumir  que  o  conde  de  Pe- 
iãacerrada  ,  leal  vassallo  ,  não  estava  senhor  de  si 
quando  se  atreveu  a  dizer  a  clrei :  Já,  senhor,  de- 
ve-se  já  decidir  este  objecto  ,  porque ....  ouvis  a 
campainha?  [e  a  campainha  com  effeito  já  se  ouvia 
tocar].  As  badaladas  daquella  campainha  acompa- 
nham meu  filho  á  morte.  Ouvis  a  ladainha?  São  as 
vozes  dos  penitentes  que  acompanham  meu  infeliz 
filho  a  quem  levara  para  o  cadafalso  ,  e  que  está 
innoccnte  ,  senhor. 

Assim  fallando  o  conde  abraçou  os  joelhos  d'cl- 
rei,  arrastou-se  aos  pés  do  cardeal,  duque  de  Ler- 
ma  ,  implorou  até  a  D.  Rodrigo  Calderon  o  despre- 
zível aventureiro  ,  e  a  ambos  disse  : 

«Meus  presados  senhores,  uni  os  vossos  rogos 
aos  meus  para  que  elrei  assigne  o  perdão  de  roeu 
filho.  L'ma  penna  I  Tinta  !  Em  poucos  minutos  já 
não  é  tempo. 

O  cardeal  e  o  secretario  ficaram  mudos  como 
vós  ,  senhor.  Apesar  disso  A^.  M.  parecia  commovi- 
do ,  e  o  conde  se  aproveitou  deste  momento  para 
lhe  dar  na  mão  a  carta  ,  prova  da  innocencia  de 
seu  filho  ,  e  até  se  atreveu  a  tomar  uma  penna  da 
mesa  e  appresentar-lh'a.  Porem  então  D.  Rodrigo 
Calderon,  o  mesmo  D.  Rodrigo  que  V.  M.  acaba 
de  encermr  na  torre  de  Segóvia,  disse  em  voz  qua- 
si  sumida  :  Senhor ,  só  ao  presidente  do  conselho 
de  Castella  pertence  appresentar  a  V.  M.  a  penna 
com  que  hade  assignar  o  perdão  de  um  condeni- 
uado.» 

«E  elrei  o  que  disse?  d  —  Interrompeu  Isabel  sem 
fôlego  e  na  maior  agitação. 

«Meu  Deus  —  bradou  Filippe  3."  quasi  ao  mes- 
mo tempo.  —  !v'ão  sei  o  que  sinto  de  repente.  Não 
achais  que  este  quarto  está  frio?»  Ninguém  respon- 
deu ,  e  clrei  accrcsccntou  :  «O  vento  de  março  as- 
sopra pela  janella  ,  e  eu  sinlo-mc  gelado.  O  brazei- 
ro  está  quasi  apagado.  Agora,  reverendo,  conti- 
nuai a  vossa  historia.» 

«Estou  prompto  ;  mas  V.  M.  parece  soffrer  mais 
e  talvez  seria  conveniente  o  fim  delia  para  outra 
occasião.»  —  «De  modo  nenhum,  é  só  frio,  conti- 
nuai. » 

«Sim  —  disse  a  princeza  —  continuai :  o  que  dis- 
se elrei  quando  D.  Rodrigo  assim  fallou?« 

Fr.  Ainbrosio  por  um  momento  observou  Filippe 
3.°  para  ver  se  notava  algum  signal  de  perturbação 
no  seu  rosto  ;  depois  continuou  com  voz  de  homem 
que  conta  uma  historia  ordinária  :  — 

Elrei  recordado  de  uma  regra  de  que  talvez  so 
ia  esquecendo  ,  agradeceu  com  uma  inclinação  de 
cabeça  a  I>.  Rodrigo,  e  dissc-Ihe  :  K  vcrdad(í,  man- 
dai procurar  I).  Vicente  Gonzaga. 

É  impossível  pintar  a  impressão  (pie  vislumbra- 
va nos  rostos  de  todos  os  circunistanles.  O  monge 
fez  uma  pausa  ,  durante  a  qu-il  se  lhe  podia  ou- 
vir bater  o  coração'  ""  licito  ;  e  depois  proseguiu  : 
«yuanUo  appareceu  o  presidente  do  conselho  de 
Castella.  a  campainha  e  a  ladainha  já  mal   se  ou- 


o  rA]\ORA]>IA. 


239 


Tiam,  mas  D.  Sancho  já  as  não  podia  ouvir.  —  El- 
rei  pela  sua  stiraina  benignidade  scrviu-se  fazer  a 
declararão  da  sua  innoccncia  ;  mas  cila  já  de  nada 
lhe  servia.  —  .\gora  ,  senhor,  coutarei  a  historia 
do  segundo  Pehacerrada?» 

«Suspendei  —  disse  clrei  —  isso  é  muito  triste. 
Ivão  sabeis  outra  cousa?» 

«  X\\ :  —  exclamou  a  princcza  das  Astúrias  com 
o  tom  que  uma  dama  joven  c  bella  nunca  emprega 
inutilmente  —  permitia  V.  M.  que  o  padre  acabe  a 
sua  historia.  Intcressa-mc  no  ultimo  ponto,  c  de- 
mais é  preciso  que  eu  aprenda  as  cousas  d'IIespa- 
nba  e  os  usos  da  sua  corte.  » 

EIrei  rcndeu-sc  ,  e  com  um  aceno  ordenou  ao 
monge  que  continuasse. —  «Depois  do  assassiiiio  de 
seu  filho  Sancho,  o  conde  resolveu  passar  com  seu 
lilho  Fernando  o  resto  de  seus  dias  no  caslello  da 
serra  de  (iuadarrama.  A  magoa  le\ára  á  morte  a 
condera  quando  soube  da  infeliz  sorte  do  seu  pri- 
mogénito. Nesta  epocha  D.  Fernando  era  moro  de 
doze  ânuos :  e  o  conde  ,  que  se  sentia  envelhecer , 
desejou  naturalmente  conservar  ao  menos  um  fillio, 
que  lhe  podesse  algum  tanto  mitigar  a  dòr  e  cer- 
rar-lhc  os  olhos.  Por  isso  o  conde  havia  promettido 
que  nunca  ,  em  quanto  elle  vivesse  ,  havia  de  al- 
gum Pcuacerrada  apparecer  na  corte  ou  servir  no 
exercito.  Fez  jurar  ao  seu  tenro  filho ,  sobre  o  ca- 
dáver mutilado  de  D.  Sancho ,  que  recusaria  qual- 
quer emprego  ,  grande  ou  pequeno  ,  e  o  joven  es- 
tava firmemente  resolvido  a  ser  fiel  ao  seu  jura- 
mento. Passaram-se  annos ,  e  D.  Fernando  estaAa 
homem.  >"o  anuo  de  1611,  justamente  hoje  faz  dez 
annos ,  completou  os  dezenove  ,  bello  como  seu  ir- 
mão. Nesta  epocha,  sem  motivo  conhecido,  D.  Fer- 
nando cahiu  cm  profunda  melancholia.  O  castello 
velho  ,  era  que  tinha  passado  a  sua  adolescência  , 
perdeu  para  cUe  todos  os  encantos;  frequentes  ve- 
zes foi  visto  no  alto  de  uma  rocha  olhando  para  o 
lado  do  Escurial.  O  pai  que  o  amava  como  um  pai 
de  sessenta  annos  ama  o  seu  filho  único ,  a  espe- 
rança e  consolação  da  sua  velhice  ,  o  herdeiro  do 
seu  nome  ,  o  ultimo  ramo  da  sua  nobre  família , 
muito  se  inquietou  com  esta  mudança  ,  e  procurou 
todos  os  meios  para  descobrir  a  causa  ;  mas  Fer- 
nando guardou  inviolável  o  seu  segredo. 

Um  dia  Fernando  approximou-se  de  seu  pai , 
cora  rosto  menos  assombrado  que  de  costume  ,  a 
pedir  um  favor.  Ainda  nunca  havia  visto  uma  cor- 
rida de  touros  ,  e  até  á  sua  solidão  havia  chegado 
que  haveria  uma  festa  destas  no  dia  3í  de  março 
de  1611  ,  era  Madrid,  na  praça  maior,  para  cele- 
brar o  anuiversario  do  casamento  deA.M.  Xão  era 
desculpável  que  D.  Fernando  a  desejasse  ver?  O 
conde  quando  ouviu  a  petição  de  seu  filho,  suspi- 
rou ,  e  disse  :  Filho  ,  queres  deixar  teu  pai  para 
ir  á  residência  d'elrei :  peço-te  que  percas  essa 
idéa.  Não  sabes  que  não  podes  dar  um  passo  era 
Madrid  sem  pisares  os  mesmos  logarrs  por  onde  o 
pobre  Sancho  foi  conduzido  ao  patíbulo?  As  mulhe- 
res velhas  de  Madrid  não  reconhecerão  cm  ti  as 
feições  de  teu  irmão?  e  ouvirás  sussurrar:  uestc  i 
o  irmão  de  D.  Sancho,  o  fidalgo  moço  ,  que  morreu 
ás  mãos  do  carrasco.»  Filho,  peço-te  que  não  vás 
a  Madrid.  Madrid  é  de  máu  agouro  para  a  nossa 
família,  e  quem  sabe  se  jamais  voltarás. 

Mas  a  mocidade  ás  vezes  é  tão  pertinaz  como 
inconsiderada  nos  seus  planos  :  e  D.  Fernando  res- 
pondeu : 

«Meu  pai  ,  se  me  deixardes  ir  ver  us  io«roc ,  ou 
TOS  direi  o  que  desejais  saber,  e  que  tenho  occulta- 


do  até  agora:  meu  pai,  é  um  grande  segredo. — 
Então  disse  o  pai :  Sc  te  resolves  a  communicar-ine 
o  motivo  da  tua  melancholia  ,  então  talvez  me  re- 
solva a  deixar-te  ir  ver  os  touros  a  Madrid. 

«De  certo?  meu  pai,  então  contarei  tudo.»  Nes- 
te logar  Fr.  Ambrósio  hesitou  como  incerto  se  de- 
via continuar ;  mas  obedeceu  a  um  aceno  d'elrei. 

«O  que  1).  Fernando  disse  foi  o  seguinte:  Um 
dia  uma  tempestade  o  surprchendéra  na  caça  ,  c  o 
obrigara  a  rcfugiar-sc  debaixo  de  uma  arvore  gran- 
de bem  conhecida  dos  caçadores :  apenas  se  tinha 
abrigado  quando  ouviu  no  fim  da  matta  gritos  de 
soccorro ,  e  logo  de  mistura  patadas  de  cavallo.  D. 
Fernando  guiou-se  pela  bulha  c  viu  um  espectácu- 
lo triste.  —  Uns  cincoenta  passos  distante  viu  vir 
um  bello  macho  branco  ,  ricamente  ajaezado  ,  que 
com  espantosa  rapidez  ,  coberto  de  espuma  e  san- 
gue ,  se  approximou  logo  de  um  precipicio  sobre  « 
rio  ,  arrastando  comsigo  uma  dama  desmaiada.  A 
infeliz  sem  duvida  tinha  procurado  deitar-se  do 
macho  abaixo  ,  mas  ,  o  vestido  cmbaraçando-se  no 
estribo,  ficou  suspensa  do  apparelho.  Havia  já  mui- 
to curto  intervallo  a  percorrer  para  se  precipita- 
rem ambos  no  Jlançanares  ,  que  no  fundo  do  abys- 
mo  corria  em  ondas  açoutadas  pela  tempestade  ,  o 
onde  a  morte  era  inevitável.  À  vista  de  tão  terrivel 
perigo  D.  í"ernando  foi  trespassado.  Sem  se  lem- 
brar do  perigo  a  que  elle  próprio  se  ia  expor,  lan- 
çou-se  diante  do  macho  ,  e  teve  a  fortuna  de  agar- 
rar com  mão  firme  a  dama  ,  c  toma-la  nos  seus 
braços. 

O  macho  deu  um  salto  como  furioso  ,  o  vestido 
rasgou-se  a  três  passos  do  precipicio  ,  D.  Fernando 
segurou  o  corpo  da  mais  encantadora  dama  ,  moia 
morta  de  susto  ,  em  quanto  com  medonho  estrondo 
o  macho  se  precipitou  no  abysmo  ,  misturando  a 
sua  voz  com  o  ruído  da  tempestade  c  das  ondas. 

Logo  que  a  desconhecida  d.ima  tornou  a  si  e  se 
viu  salva  ,' ajoelhou  para  agradecer  a  Deus,  depois 
apertou  a  mão  ao  seu  salvador  com  signaes  da  mais 
viva  gratidão.  Mas  neste  momento  se  ouviram  trom- 
betas já  perto  ;  cila  estremeceu  ,  c  como  abalada 
subitamente  por  uma  reflexão  desagradável ,  reti- 
rou a  mão  e  disse  em  voz  meia  apagada  ; 

«Ouem  quer  que  sejais  ,  fugi  :  não  vos  demoreis 
nem  mais  um  instante  ao  pé  de  mim.  Fugi,  fugi. 
tão  depressa  como  poderdes  :  c  eu  peço  a  Deus  que 
ninguém  saiba  o  que  aconteceu  ,  c  o  que  jior  mim 
fizestes.  O  meu  Deus,  estremeço  ;  talvez  que  já  vos 
tenham  visto.  Elles  ahi  vem;  não  ouvis  as  vozes, 
e  os  passos  dos  cavallos.  Fugi :  adeus  ,  adeus ;  não 
me  esqueçais. » 

«O  reverendo  padre  —  interrompeu  aqui  iiuioceu- 
teinenle  a  princcza  —  é  muito  interessante  esta  his- 
toria :  creio  que  todos  os  presentes  são  da  minha 
opinião.»  E  logo  continuou  em  voz  baixa:  «Vedes 
a  attenção  com  que  elrci  escuta?» 

«Senhora  —  disse  cora  ar  de  frieza  Fr.  Ambró- 
sio—  ainda  nj"io  .Tcabei.  No  momento  em  que  1>. 
Fernando  contava  a  seu  pai  como  a  bella  desconhe- 
cida ,  a  quem  elle  salvara  a  vida  ,  tinha  dcsappa- 
recido  ;  como  da  nobreza  das  suas  maneiras  e  da 
riqueza  do  seu  traje  ,  elle  devia  suspeitar  que  era 
dama  de  alta  jcrarchia  ;  como  desde  este  nioinen- 
te  cila  ficara  sendo  o  único  objecto  dos  seus  pensa- 
meníos  e  sonhos,  e  como  desejava  ir  ver  os  louros 
a.^fadrid  so  na  esperança  de  a  tornar  a  ver  —  bate- 
ram na  porta  da  sala  :  <>  o  alcaide  da  corte,  acompa- 
nlixío  d'uiiia  multidão  de  esbirros  ,  chegou-se  a  D 
Fernando,  tocou-lhe  com  a  sua  vara  branca  e  disse  : 


2iO 


O  PANORAMA. 


«Em  nome  d'elrei  ,  cu  prendo  a  ti  ,  D.  Fernan- 
do de  Pcnaccrrada,  como  criminoso  de  Icza-niages- 
tade. » 

«Senhor  alcaide  —  balbuciou  o  conde- — que  fez 
clle?  de  que  crime  é  accusado?»  —  «Tocou  o  cor- 
po sagrado  da  rainha.» 

O  ancião  não  derramou  uma  lagrima  ;  mas  quan- 
do D.  Fernando  o  quiz  abraçar  pela  ultima  vez, 
então  lhe  disse:  Agora,  meu  pobre  filho,  agora  po- 
des ver  Madrid  ,  a  cidade  real.»  —  ISeste  mumenlo 
exclamou  clrei  tiritando  de  frio  :  «O ar  deste  quar- 
to ó  gelado;  Medina  Cteli  ,  não  Ic  disse  que  man- 
dasses renovar  o  brazeiro?"  —  Este  rcs[ioudeu  : 
«Assim  se  fez. » 

"Xão  vedes,  —  disse  Isabel  de  Franra  á  cama- 
reira-mór  —  não  vedes  que  elrei  está  cada  vez  mais 
pallido?» 

«È  verdade;  —  respondeu  a  camareira-niúr  —  S. 
M.  ainda  não  está  inteiramente  restabelecido  da  sua 
ultima  indisposição  ;  não  devia  ter-se  demorado  tan- 
to :  mas  o  padre  vai  continuar.» 

"O  tribunal  dos  alcaides  da  corte  é  severo  qnan- 
<lo  se  trata  de  executar  as  leis,  de  defender  as  pes- 
soas reaes  de  desacatos,  até  dos  mais  involuntá- 
rios ,  leaes  e  úteis.  O  tribunal  tem  rasão.  Não  c 
verdade  ?  Tocar  no  corpo  da  rainha  é  [)rohibido  de- 
baixo de  pena  de  morte.  D.  Fernando  tinha-o  lo- 
cado ,  D.  Fernando  devia  morrer ,  assim  disse  a 
sentença.  Quando  esta  noticia  chegou  ao  conde  es- 
te beijou  o  chão  ,  e  exclamou  :  Meu  Deus ,  miseri- 
córdia I  Ainda  regava  o  chão  com  lagrimas  quando 
recebeu  um  recado  da  rainha,  deste  theor  :  Conde, 
vosso  filho  salvou  a  rainha,  a  ella  compete  salva-lo. 
S.  M.  me  ordena  que  vos  diga  que  hade  empregar 
tudo  que  fòr  possivel  para  salvar  D.  Fernando  da 
sorte  que  lhe  está  destinada,  ou  que  o  accompanha- 
rá  na  morte. » 

-  (Conlinuar-sc-ha). 


Palmeiu.í  aréca  das  Antilhas  ,  ou  abequeira. 

A  ARÉCA  é  uma  espécie  de  palmeira  cujo  cume  se 
termina  em  Icixc  de  folhas  ssmiabertas  ,  e  compri- 
das quasi  dez  pés.  Estas  folhas  abarcam  umas  ás 
outras  na  sua  base  por  meio  de  uma  bainha  ,  cu- 
jas bordas  superiores  parecem  franjadas  ,  ou  teci- 
das de  libras  laxas  ,  que  se  cruzam  á  maneira  de 
talagarça  grossa.  Um  pouco  por  baixo  deste  feixe 
de  folhas  sabem  algumas  espathas  de  comprimento 
quasi  do  três  pés  ,  inchadas  nomeio,  lisas,  ver- 
doengas,  c  que  abrindo-se  dão  nascimento  a  paui- 
culas  ,  ou  espádices  de  flores  esbranquiçadas. 

Não  somente  é  para  lhe  aproveitarem  a  madeira 
do  tronco,  de  que  fazem  calhas  c  tubos,  que  cor- 
tam a  aréca  ;  mas  lambem  para  lhe  tirarem  o  re- 
polho ,  ou  olho  de  cima.  Quando  a  arvore  está  no 
chão  ,  cortam-lhe  a  cabeça  dois  ou  três  pés  c  meio 
por  bai.xo  do  logar  aonde  nasce  o  feixe  das  folhas  , 
c  depois  que  a  esta  parlo  tiram  o  exterior  ,  acha- 
se-lhe  no  centro  o  repolho  ,  composto  de  parles  fo- 
lhosas ,  arranjadas  em  forma  de  leque  fechado , 
braucis,  tenras,  delicadas,  e  de  gosto  que  se  pa- 
rece ao  da  alcachofra  ;  comem-se  cruas  ,  cm  salada 
com  molho  de  pimenta  o  vinagre,  ou  cozidas  dcdif- 
fcrcnlcs  modos,  c  lambem  fritas. 

Os  ualuraes  do  paiz   usam  ainda  da  aréca   para 


outro  modo  de  sustento.  Ouasi  todas  estas  arvores 
logo  (jue  estão  cortadas  .iltiahcm  de  muilo  longe 
uma  multidão  de  grandes  escaravelhos  pretos,  que 
se  introduzem  por  baixo  da  casca  na  parte  menos 
dura,  alli  depositam  os  seus  ovos,  que  produzem 
larvas  grossas  ,  de  uma  pollcgada  ,  com  que  os  que 
delias  gostam  se  regalam  ,  depois  de  as  fazerem  as- 
sar .  enfiadas  em  pequenas  espetos  do  páu. 

I'or  meio  de  uma  incisão  feila  no  tronco  .da  aré- 
ca obtem-se  ura  vinho  mais  estimado  ainda  que  o 
do  coqueiro,  e  que  se  não  faz  vinagre  senão  passa- 
dos trcs  dias. 

Sagueibd  ,  ou  rALUEin.i  co  sagl. 

É  oiTRA  espécie  de  palmeira  ,  cuja  mcdulla  dá  um 
exccllente  alimento.  Quando  as  folhas  desta  palmei- 
ra se  vêem  cobertas  de  um  pó  esbranquiçado,  ef- 
feito  de  uma  plethóra  [abundância]  farinácea,  c  que 
muitos  espinhos  tanto  do  cume  da  arvore  como  da^ 
tolhas  começam  a  cahir ,  são  signaes  para  se  tirar 
a  medulla  com  abundância.  Para  còla  operação  dei- 
ta-se  ao  chão  o  sagúeiro  ,  torta-se  cm  muitos  tro- 
ços ,  ou  pedaços  de  sele  pés  de  comprimento  ,  c  ra- 
cham-se  em  quartos.  Arranca-sc-lhcs  a  medulla  , 
despojam-se  dos  seus  envultorios  ,  csmaga-sc ,  c 
mettem-se  cm  uma  espécie  de  cortiço  um  lanto 
afunilado,  e  ajustado  sobre  uma  [leneira  de  cabei- 
lo,  e  se  lhe  lança  agua.  Alravcz  desta  peneira  pas- 
sa a  massa  do  sagíi  bem  agitada  na  agua  ;  as  fi- 
bras que  ficam  dão-se  aos  porcos.  Deixa-se  repou- 
sar no  vaso  posto  debaixo  da  peneira  a  agua  que 
conlém  a  medulla  reduzida  a  papas  muito  diluí- 
das, vasa-sc  a  agua  depois  brandamente,  e  no  fun- 
do do  vaso  acha-se  a  fccula  branquíssima  ,  e  finís- 
sima ,  em  forma  de  papas  ,  que  depois  se  secca  por 
porções  meltidas  cm  cestos  cobertos  de  falhas.  Mas 
para  esta  massa  se  conservar  inais  tempo,  é  preci- 
so fazc-la  passar  pelos  buraquiuhos  de  umas  certas 
bacias  de  barro  muito  esburacadas,  fazcr-lhc  assim 
tomar  a  forma  do  grãosiiihos  ,  e  depois  seccar  estes 
ao  fogo.  Também  com  esta  massa  molle  se  formam 
pães  da  grossura  de  um  dedo  ,  c  do  meio  pé  qua- 
drado. 

As  folhas  da  p.almcira  do  sagú  tem  ainda  mais  a 
vaniogem  de  se  cobrirem  de  uma  penugem,  de  que 
se  fazem  pannos  ;  lambem  servem  para  cobrir  as 
casas:  as  suas  nervuras  são  projuias  para  fabricar 
cordas.  O  tronco  ferido  por  incisão  dá  lambem  um 
licor  agradável  ;  c  a  sua  medulla  nutritiva  a  faz 
muito  mais  útil  ainda  do  que  a  palmeira  do  coco. 


A  gratidão  deu  origem  (is  armas  d'uma  cidade.  — 
Quem  entrar  em  Durdrccht  pela  porta  que  deita 
para  o  rio  Mosa  pódc  ver  na  volta  do  arco  o  escu- 
do d'armas,  que  representa  uma  ra|)ariga  mugindo 
uma  vacca  :  nas  moedas  cunhadas  ucsta  cidade  acha- 
se  o  mesmo  emblema:  oque  tem  sua  origem  no  se- 
guinte facto. —  \o decurso  das  guerras  da  indepen- 
dência dos  Paizes-Iiaixos ,  quizeram  os  hesiJanhoes 
saltear  de  súbito  Dordrecht  ,  que  sabiam  estar  des- 
apercebida :  quiz  o  acaso  que  a  creada  de  um  la- 
vrador dos  arrabaldes,  indo  pela  tarde  ordenhar  as 
vaccas,  observasse  entre  moitas  os  soldados  embos- 
cados ;  teve  porem  resolução  e  prudência  |)ara  pro- 
seguir  em  seu  caminho  e  tarefa,  liugindo  que  lai 
não  vira  ;  de  volta  ao  ca«:>l  deu  (larte  ao  amo  ,  que 
:ivi<oii  o:  da  v-iiladc  ,  quc  abriíido  os  diques  inun- 
daram o  tcireno,  salvaudo-se  da  sorprcíu. 


84 


o  PANORAMA. 


2it 


'ti  - 

'li  .írrí 


Ama!»hecec  sereno  o  dia  20  de  Janeiro  de  1685  na 

cidade  de  Madrid  ,  e  o  céu  limpo  de  nuvens  osten- 
tava o  azul  formoso  que  tanto  deleita  a  vista  :  o  ar 
estava  bonançoso  ,  e  nem  a  mais  leve  viração  agita- 
va as  raras  folhas  que  as  geadas  tinham  deitado 
nas  arvores  ;  as  avesinhas  largando  seus  ahrigos 
sabiam  a  gozar  o  benigno  ambiente  ,  e  alegravam  o 
carapo  com  seus  gorgeios  :  ao  longe  o  nevado  Gua- 
darrama  cerrava  este  painel  encantador  ,  appresen- 
tando  a  frente  cuberta  de  neve  e  as  faldas  revesti- 
das de  azul  sombrio.  —  Acabara  Carlos  2.°  de  ou- 
vir missa,  e  dirigindo-se  a  seu  aposento  abriu  uma 
janella  que  deitava  para  o  parque  :  melancholico  e 
enfermo  pareceu-lhe  nesta  occasião  que  o  ar  fresco 
da  manhaã  o  remoçava.  Multidão  de  mancebos  pas- 
seava no  parque  galopando  e  alardeando  á  compe- 
tência as  prendas  da  equitação;  e  ao  mesmo  tempo 
grande  numero  de  outros  cavalleiros  e  senhores  de- 
Agosto  5 —  1843. 


sembocava  pelos  postigos  de  Segóvia  e  da  ^  cga  , 
enean)inhando-se  para  a  beira  do  rio,  ou  seguindo 
para  o  Pardo.  Couleniplou  elrei  com  inveja  òcjuella 
concorrência  alegre  e  belicosa  ,  e  sentiu  apoderar- 
se-lhe  do  animo  aquella  timidez  melamhidica  que 
constituía  a  base  do  seu  caracter:  lembrava-se  en- 
tão que  era  reinante  sobre  vastas  monarchias.  e  que 
milhões  d'homens  acatavam  submissos  sua  voz  dé- 
bil ■  e  comtudo  apesar  de  seu  mando  absoluto  era 
tripliceroente  escravo  e  muito  mais  desditoso  que  a 
maioria  de  seus  vassallos.  O  triste  monarcha  via  ty- 
rannisadas  a  sua  imaginação  e  vontade  e  ate  as  suas 
menores  acções  pelos  exorcismos  ,  os  prceeúos  hy- 
gienicos,  e  a  etiqueta  que  pesava  sobre  elle  com 
toda  a  rigidez  do  ceremonial  da  casa  d'Austria. 
Cansado  de  tão  violenta  situação  desprezou  os  man- 
d3iro  do  medico  e  mandou  pór  a  carruagem,  e  pou- 
co depois  sahiu  pela  portinha  deS.  Bernardino,  acom- 

2.*  Serie.  —  Voi..  II. 


242 


O  PANORA3IA. 


panhado  da  guarda  especial  de  sua  pessoa  ,  baixan- 
do pelo  camiiilio  do  Prado,  que  eslava  cheio  de 
genlc  de  todas  as  classes  ,  e  de  cavallos  ,  coches  c 
liteiras:  ainda  a  esse  tempo  não  havia  ahi  calçada  , 
ao  contrario  era  o  caminho  de  superfície  tortuosa  c 
desigual ,  c  nessa  hora  estava  em  partes  intransitá- 
vel em  consequência  das  chuvas  anteriores :  tão 
])ouco  se  tinha  erigido  a  preciosa  capella  de  St.° 
António  cm  que  deixou  Goya  uma  de  suas  mais  es- 
plendidas inspirações  :  alguns  cyprestes  e  outras  ar- 
vores dispersas  e  sem  ordem  faziam  todo  o  orna- 
mento de  la  Florida. — Ao  chegar  Carlos  2.°  a  es- 
te sitio  notou  que  a  gente  parava  e  a  sua  guarda 
de  joelho  em  terra  inclinava  em  adoração  os  mos- 
quetes ;  e  era  seguida  viu  um  sacerdote  que  cami- 
nhava a  passos  lentos,  precedido  de  um  menino  que 
Jevava  uma  lanterna  :  chamou-o  eirci  c  sonho  que 
ora  o  coadjutor  de  S.  Blarcos ,  que  ia  administrar 
o  sagrado  viático  a  um  hortelão  do  souto  de  Uliyas 
calirMcs.  Lembrou-sc  logo  Carlos  do  exemplo  de 
Síodolpho  de  liapshurgo  ,  tronco  ilUislre  de  sua  fa- 
mília ,  c  apeando-se  ajoelhou ,  convidando  ao  mes- 
mo tempo  o  cura  para  que  tomasse  o  assento  do  co- 
che e  dando-!he  o  tratamento  de  mercê ;  por  suas 
mãos  fechou  a  portinhola,  e  acompanhou  a  pé  e  de 
caheça  descoberta.  —  Bera  alheio  se  achava  o  po- 
iire  hortelão  da  visita  quo  ia  chegar  ;  acabava  de 
dirigir  ao  céu  fervorosa  supplica  pelo  destino  de 
sua  íilha  nas  circumstancias  de  ficar  orphaã  c  des- 
Talida;  a  mísera  chorava  á  cabeceira  de  seu  mori- 
iiundo  pai ,  que  via  perecer  cm  desamparo  do  todo 
o  humano  soccorro ,  quando  entrou  o  viático  prece- 
dido d'clrei  c  de  muitos  senhores  da  corte  que  o 
haviam  imitado  :  a  perturbação  do  enfermo  foi  tal 
que  não  acertava  a  responder  ao  sacerdote ,  não 
menos  confundido  quo  elle.  Assim  que  o  padre  ter- 
minou seu  ministério  ,  o  rei  fallou  carinhosamente 
ao  doente  ,  inquirindo  de  seu  estado  e  familia  :  re- 
conheceu que  a  maior  aíflicção  do  mesquinho  era 
cm  rasão  da  futura  sorte  de  sua  filha  ;  pelo  que  deu 
á  rapariga  a  bolça  que  levava  e  promctteu  ao  pai 
ouidar  no  destino  delia  ;  lambem  deram  mostras  de 
sua  generosidade  os  cortczãus  ,  a  exemplo  do  mo- 
narcha.  Uctrocedeu  o  cura  dentro  do  coche,  eacom- 
l)anhado  como  viera ,  accrcscendo  muito  povo  que 
<lava  louvores  a  piedade  de  Carlos. 

Gravoíi-se  em  Antuérpia  naquelle  mesmo  anno 
uma  estampa  que  representa  esta  anecdota  históri- 
ca ,  c  de  que  a  nossa  é  Iransumpto.  —  Desde  então 
os  reis  d'Kospanha  lem  pontualmente  observado  o 
costume  de  ceder  o  seu  coche  Iodas  as  vezes  que 
encontram  o  sagrado  vi;itico. 


O  Bobo.  ,  :    . 

1128.  -■  ''  -    •'■■■'  "■•     '■ 

'     '    ''      XV.  "':• 

(Conrltis~io.) 

\  soBTE  das  armas,  c  a  vingança  de  D.  Bibas  Il- 
idiam resolvido  os  futuros  destinos,  de  Portugal.  Não 
foi  esta  a  |)rimcira  vez,  nem  será  a  ultima,  em  que 
uma  batalha  ou  um  caturra  iuiluam  na  existência 
ou  iião-exislencia ,  no  modo  de  ser  ou  de  não-ser 
destes  corpos  moraes  chamados  nações  ,  que  apesar 
da  sua  individualidade,  em  rigor  ideal  c  abstracta, 
não  deixam  de  parecer  corpos  physicos  —  pela  fal- 
ta de  vontade  e  de  iiitelligencia. 
.Brava  batalha  se  pelejara  no  campo  de  S.Mame- 


de junto  de  Guimarães:  a  hoste  do  infante  ahi  se 
travara  com  a  de  sua  mãi  e  do  conde  de  Trava  ,  e 
depois  de  largo  conflicto,  Affonso  Ilcnriquez  Irium- 
phára  ,  e  1).  Thereza  se  vira  obrigada  a  fugir  com 
o  soberbo  estrangeiro  ,  c  a  ir  encerrar-se  no  castel- 
lo  de  Lanhoso,  distante  duas  léguas  do  logar  do  re- 
contro. 

Mas  porque  não  procuraram  os  vencidos  ampa- 
rar-se  dentro  dos  fortes  muros  e  lorrcs  do  castello 
dcGuimarães?  É  o  que  não  nos  diz  a  historia.  Pou- 
co importa  :  di-lo-hemos  nós.  A  historia  não  conhe- 
ceu D.  Bibas,  e  D.  Bibas  —  muito  em  segredo  o 
revelámos  aqui  aos  leitores  —  nos  oíTercce  a  chave 
deste  myslerio.  O  bobo  tornara  impossível  similhan- 
Ic  arbítrio,  e  porventura  ajudara  a  descer  do  céu 
a  benção  que  cobriu  as  armas  de  Aflbnso  Henri- 
quez. 

Este  não  se  esquecera  do  modo  por  que  ,  e  do 
caminho  por  onde  ,  o  esforçado  senhor  da  Maia  es- 
capara ás  garras  do  nobre  tigre  de  Galliza.  A  lan- 
ça de  Gonçalo  Mendez  não  reluzira  enristada  ao  sol 
da  peleja.  Quando,  porem,  esta  andava  mais  acceza 
e  travada  ,  vários  besteiros ,  que  se  viam  ao  longe 
guarnecendo  os  adarves  e  eirados  das  muralhas  e 
torres  do  temeroso  castello ,  começaram  a  vacillar 
e  correr  de  um  para  outro  lado ,  c  dahi  a  pouco 
alguns  delles  ,  tombando  por  entre  as  ameias ,  fize- 
ram espadanar  as  aguas  encharcadas  e  verdenegras 
do  fosso.  Os  habitantes  do  burgo,  correndo  a  inda- 
gar a  causa  do  terrível  espectáculo  que  presencia- 
vam ,  sentiram  misturarem-se  lá  no  alto  as  accla- 
mações  ao  infante  com  os  gritos  e  gemidos  dos  que 
morriam.  A  ponte  levadiça  ergueu-se  entretanto,  e 
os  burguezes  olhando  de  novo  para  os  muros  viram- 
nos  povoados  de  homens  d'armas  ,  em  vez  de  bes- 
teiros, c  hasteada  na  torre  de  menagem  a  signa  d'Af- 
fonso  Henriqucz.  O  silencio  tinha  lá  cm  cima  subs- 
tituído os  gritos  de  contentamento  e  de  agonia.  En- 
tão um  som  estranho  lhes  chamou  a  attenção.  Olha- 
ram. Em  uma  das  troneiras  do  cárcere  do  alcaide 
o  truão  do  paço,  com  os  braços  estendidos  fora  das 
grades  ,  batia  as  palmas  ,  e  viam-se-Ihe  reluzir  os 
olhos  c  alvejar  os  dentes  no  meio  de  gargalhadas 
estrondosas.  Por  baixo  da  troneira  um  dos  atalaias 
precipitados  das  ameias ,  atravessado  de  golpes  lu- 
ctava  nas  anciãs  da  morte ,  e  se  revolvia  na  agua 
lodacenta  da  cárcova  ,  a  qual  tingia  com  o  próprio 
sangue.  O  bobo  olhava  para  o  besteiro  com  a  volu- 
ptuosidadc  sangrenta  de  uma  besta-fera.  Era  o  ca- 
valleriço  do  conde  que  o  havia  açoutado. 

Dahi  a  pouco  D.  Bibas  callou-se  relirando-se  da 
troneira  subitamente  ;  mas  não  tardou  a  apparecer 
de  novo  correndo  pelos  adarves  e  debruçando-se 
pelos  eirados ,  donde  fazia  visagens  insolentes  aos 
burguezes  que  olhavam  para  lá  admirados.  Os  pou- 
cos que  entre  estes  eram  parciaes  do  conde  boa 
vontade  tiveram  de  lhe  enviar  alguns  tiros  de  bes- 
ta :  um  caso,  porem,  inesperado  veio  divertir-lhes 
a  attenção  :  as  portas  da  igreja  de  S.  Salvador  abri- 
ram-se  de  par  cm  par  ,  c  dentro  ouviu-se  o  som  do 
inciodioso  órgão,  enlevo  das  damas  da  corte  da  bel- 
la  infanta,  c  o  canto  dos  monges,  que  entoavam  as 
orações  do  ritual  antigo  para  chamar  a  benção  do 
céu  sobre  a  cabeça  do  priueipe  que  devia  voltar 
vencedor  dos  seus  inimigos. 

A  revolta  começava  no  Imrgo  pela  liturgia  mo- 
nástica. Não  havia  duvida  de  que  Fr.  Ililariãn  tor- 
nara ao  mosteiro  ,  porque  a  voz  fraca  c  tremula  do 
velho  abbadc  entoara  as  palavras  do  psalmo  —  Deus 
se  compadece  de  nós.  c  os  kyrics  dos  outros  monges 


o  PA1VORA3IA. 


243 


haTíam  apoz  isso  reboado  no  lemplo  c  sido  inter- 
rompidos novamente  por  Fr.  llilarião  que  cantava  : 
Lcvanta-tc,  oh  srnhor !  ao  que  os  seus  confrades  res- 
pondiam na  toada  solemne  do  canto  gregoriano.  De- 
pois de  varias  orações  ,  durante  as  quaes  muitos 
burguczcs  tinham  succcssivamente  entrado  na  igre- 
ja ,  seguia-se  uma  em  que  era  necessário  proferir  o 
nome  do  principe  para  quem  se  invocava  a  protec- 
ção divina.  Ousadamente  o  bom  do  abbade  gargan- 
leou  : 

«Oh Deus,  a  cujos  pés  está  o  universo,  e  a  quem 
obedece  tudo  sob  o  império  do  leu  servidor  íiel  o 
principe  D.  AlTonso  I  —  concede-lhe  tempos  paciQ- 
cos  ,  e  piedoso  aftasta  delie  esta  barbara  guerra , 
para  que  ,  regedor  do  teu  povo  ,  guiado  por  li ,  se- 
nhor ,  obtenha  paz  no  meio  das  gentes.»  (■) 

-■Vo  acabar  esta  oração  um  leve  ruido  de  applau- 
so  sussurrou  pelas  naves  ,  mas  logo  morreu  em  at- 
tento  silencio.  Fr.  llilarião  continuou  : 

« Invocaraos-le  ,  Senhor  ,  para  que  sejas  propicio 
ás  nossas  preces ,  tu  que  és  o  rei  dos  reis ,  e  o  do- 
minador dos  que  imperam.  Volve  ollios  benignos 
para  o  nosso  principe  D.  Afibnso.  . . » 

Ao  repetir  deste  nome  ,  proferido  em  voz  mais 
alta ,  um  brado  de  muitos  brados  retumbou  pelas 
naves  do  antigo  templo  de  D.  .Munia  :  o  povo  que 
o  enchia  escoou-se  lentamente  pelo  escuro  portal,  c 
as  acclamações  ao  infante ,  rcstruginiio  no  terreiro 
contíguo ,  vieram  reboar  de  novo  pelas  sacrosanlas 
abobadas. 

Os  homens  de  rua  ,  c  os  villões  vendo  o  castello 
e  o  mosteiro  declararem-se  pelo  filho  do  conde  Hen- 
rique —  revoltar-se  a  torre  de  menagem  e  o  ritual 
—  entenderam  que  o  burgo ,  assentado  aos  pés  dos 
dois  symbolos  da  força  e  da  intelligcncia ,  devia 
imita-los.  Dentro  de  poucos  minutos  pelas  viellas 
da  povoação  corriam  os  peões  armados  de  fundas,  de 
bestas ,  d'ascumas ,  e  fugiam  para  a  campanha  os 
besteiros  do  conde  ,  que  guardavam  os  vallos  e  os 
cubcllos  da  cerca  exterior,  acompanhados  de  apu- 
pos dos  burguezes  ,  e  de  muitas  pedradas  e  virotes 
disparados  atraz  delles.  Então  a  ponte  levadiça  do 
castello  desceu  ,  e  alguns  homens  d'armas  sahiram 
para  o  burgo.  Á  sua  frente  vinha  o  Lidador  que  se 
dirigiu  ao  mosteiro ,  rodeado  já  da  villanagem , 
que  o  saudava,  e  acclamava  o  infante  ,  e  que  o  se- 
nhor da  Jlaia  fazia  affastar,  para  poder  seguir  avan- 
te ,  com  boas  contoadas  de  lança  ,  segundo  era  di- 
reito e  costume  tratar  peões  em  similhautes  autos. 
D.  Bibas,  montado  em  um  ginete  do  conde  de  Tra- 
va e  ataviado  com  as  suas  louçainhas  de  bufão,  se- 
guia de  perto  o  cavalleiro,  rindo  e  fazendo  -íisagens 
e  momos ,  sem  se  esquecer  de  distribuir  golpes  de 
])alheta  á  direita  e  á  esquerda  com  toda  a  munifi- 
lencia  de  um  truão  real. 

Entretanto  na  hoste  de  D.  Thercza  se  espalhara 
a  noticia  de  que  o  inexpugnável  alcácer  de  Guima- 
rães succumbira  á  traição  ,  e  que  os  inimigos  ti- 
nham apparecido  subitamente  no  seu  recinto  ,  como 
surgindo  de  sob  a  terra.  Esta  nova  fizera  esmore- 
cer os  corações  mais  robustos  ;  mas  quando  os  ho- 
mens d'armas ,  besteiros  e  pionagera  deixados  no 
castello  e  no  burgo  começaram  a  acolher-se  fugiti- 
vos c  mal-feridos  aos  pendões  da  hoste,  e  narraram 
os  acontecimentos  que  os  obrigaram  a  abandonar  o 
seu  posto ,  o  desalento  se  tornou  geral ,  c  a  victo- 
ria  ,  ate  ahi  indecisa  ,  principiou  visivelmente  a  in- 

(•)  Em  todas  a?  circunisíancins  destn  ceremonia  religio- 
sa seriiimos  rieuresa  e  lextualmeiíle  o  ritual  lie  Silos  de 
^\)õ}  publicado  por  Ber^aDza. 


clinar-se  para  o  lado  do  infante.  Os  balsões  varie- 
gados dos  estrangeiros  abatidos  pela  maior  parte 
ante  os  ricos  homens  portuguczes  ;  as  alas  vacillan- 
do  e  retrahindo-se  dos  golpes  furiosos  dos  seus  ad- 
versários ;  os  almogaures  ou  corredores ,  simulando 
voltearem  para  comettimento  inesperado,  mas  real- 
mente fugindo  ,  davam  já  claros  annuncios  de  pró- 
ximo desbarato.  Debalde  o  conde  de  Trava  com  a 
voz  e  com  o  exemplo  tentava  reanimar  os  brios  dos 
seus  cavalleiros  :  debalde  se  atirava  como  desespe- 
rado ao  meio  dos  maiores  perigos ;  a  hora  derradei- 
ra do  seu  dominio  em  Portugal  tinha  soado  ;  e  D. 
Thereza  que  ,  observando  o  combate  de  um  outeiro 
onde  estava  assentado  o  pavilhão  real ,  tremera  a 
principio  pela  sorte  do  lilho  ,  conheceu  emfim  que 
negro  para  ella  e  para  o  conde  devia  ser  este  dia 
fatal.  Terrível  momento  foi  para  a  bella  infanta 
aquelle  cm  que  as  lanças  de  Fernão  Perez  e  de  Af- 
fonso  Henriquez  se  enristaram  frente  a  frente.  Fe- 
chou involuntariamente  os  olhos  horrorisada.  Ao 
descerra-los  de  novo,  descortinou  o  vulto  agigantado 
do  moço  principe  que  sobrelevava  aos  mais  corpo- 
lenlos  cavalleiros  {::)  já  muito  longe  dalli,  abrin- 
do fundos  sulcos  por  entre  as  mcsnadas  ou  compa- 
nhias dos  nobres  homens  de  Galliza.  Os  dois  emu- 
los  do  império  tinham  ferido  em  soslaio ,  e  as  on- 
das dos  cavalleiros  os  haviam  separado. 

Xesta  mesma  occasião  outros  dois  guerreiros  lam- 
bem rivaes  —  mas  rivacs  por  ura  aílccto  mais  vio- 
lento ainda  que  a  ambição  —  haviam  visto  emfim 
satisfeito  o  seu  ódio ,  encoatrando-se.  Ao  pó  delles 
nesse  momento  só  combatiam  peões.  Egas  com  a 
tenacidade  de  um  demónio  ,  com  a  prudência  tran- 
quilla  de  um  rancor  implacável  se  esquivara  a  to- 
dos os  grandes  riscos  da  batalha ,  espiando  o  ins- 
tante em  que  Garcia  Bcrmudcz  arrastado  pela  ebrie- 
dade do  combate  se  aíTastasse  dos  cavalleiros  ara- 
gonezes  que  o  seguiam.  Este  instante  chegou  :  oal- 
fercs-mór  correra  ao  meio  de  uma  ala  de  besteiros 
que  recuava  diante  dos  fundibularios  da  behetria 
de  Gontingem.  Alguns  golpes  do  seu  montante  de- 
viam bastar  para  atTastarem  aquolla  nuvem  de  peões 
desordenados.  Um  cavalleiro ,  porem  ,  similhantc 
ao  nebrí  que  se  arroja  sobre  a  prèa  se  dirigia  par:: 
elle  a  todo  o  correr  do  cavallo.  Parando,  o  esforça- 
do Garcia  esperou-o  a  pé  firme.  Sem  saber  porque, 
o  coração  batia-lhe  apressado. 

Era  Egas  :  a  pouca  distancia  do  alfcres-mór  o 
guerreiro  sofreou  o  ginete,  como  se  aspirasse  o  chei- 
ro do  sangue  que  ia  correr  ;  como  sorrindo  á  idé;; 
de  que  naquelle  logar  a  morte  teria  uma  nobre  vi- 
ctiraa.  Elle  ou  Garcia?  Que  lhe  importava?  Tm  ou 
outro.  Para  o  que  perecesse  como  para  o  que  trium- 
phasse ,  o  dia  seguinte  tinha  de  ser  um  dia  de  re- 
pouso e  de  paz. 

Entre  os  dois  proferiram-se  algumas  palavras. 
Eram  baixas  e  rápidas :  ninguém  as  ouviu ;  ma> 
deviam  ser  atrozes.  Quasi  a  um  tempo  o  monlanii- 
de  Garcia  faiscou  batendo  no  elmo  do  seu  adversá- 
rio,  e  a  acha  d'armas  de  Egas  esmigalhou  o  escu- 
do do  aragonez  :  depois  por  longo  tempo  não  soou 
alli  senão  o  restrugir  do  ferro  no  ferro,  o  ranger  de 
dentes,  e  um  rir  sumido  mas  infernal.  Riam  por- 
que o  sangue  lhes  começava  a  rever  das  armadu^- 
ras  rotas  e  aboladas.   Os  eavallos  arquejavam  sob 


(::)  Em  1833  o  tumulo  de  D.  Affonso  1."  em  St."  Cruz 
de  Coimbra  foi  aberto,  e  pessoa  que  assiáliu  a  e?se  .ido.  nu 
pelo  menos  ainda  pôde  examinar  a  ossada  do  nosso  prim;  i- 
ro  rei ,  me  asseverou  que  esses  ossos  eram  de  dimensão  ex- 
traordinária. 


2U 


O  PANORAMA. 


as  suas  rèdcs  de  malhn  ,  c  sob  os  pcsnclos  nrnczes 
de  seus  donos,  qui;  cm  pé  nos  cslrihos  c  a()cilan- 
do-os  cnlre  as  duras  joellieiras  de  feno  os  faziam 
bater  de  pcilos  iim  no  outro  ,  e  misliirareni  a  escu- 
ma cnsaníjiientada  que  liies  cobria  os  freios  c  salpi- 
cava as  crinas.  Os  pobres  animaes  mcncavam-se  já 
a  custo  ,  c  as  forcas  e  o  animo  feroz  dos  cavallei- 
ros  não  quebravam  ,  antes  pareciam  crescer.  Quasi 
ao  mesmo  (empo  os  ginetes  ajoelharam  e  cahiram  ; 
inas  de  um  salto  os  dois  adversários  licaram  em  pó 
com  a  espada  na  mão.  Os  besteiros  e  fiuidciros  que 
os  cercavam  tinham  cessado  de  combater  ,  c  consi- 
deravam com  terror  aquello  espectáculo,  como  se 
«ma  voz  de  cima  lhes  houvera  dilo  que  esse  com- 
bate era  um  repto  de  morte.  Dava-]h'o,  porem,  a 
conhecer  um  tremendo  signal  :  ambos  destros  no 
])elcjar,  nenhum  curava  de  rcsguaidar-se  dos  gol- 
(les  do  seu  contrari<i  ,  altento  só  a  feri-lo.  Naquel- 
las  almas  repassadas  de  furor,  dos  dois  pcnsamen- 
los  de  vida  c  de  morte,  não  cabia  senão  um  —  e 
era  ao  segundo  que  ambos  exclusivamente  se  aban- 
donavam. 

Por  lim  o  cavalleiro  de  lliba-de-Douro  começou 
a  levar  visivelmente  a  melhoria  do  generoso  alfc- 
res-mór.  Kslc  não  previra  o  recontro  que  o  aguar- 
dava :  o  ódio  d'Egas  havia,  porem,  calculado  pla- 
cidamcnte  este.  Assim  ,  pela  primeira  vez  cllc  dei- 
xara de  combater  ao  lado  do  infante  ,  vendo-o  cer- 
cado de  inimigos.  Como  a  luz  do  astro  da  noite  se 
desvanece  ao  subir  no  oriente  o  sol,  do  mesmo  modo 
o  santo  fogo  da  amisade  amortece  e  se  apnga  quan- 
do se  accende  ou  fulge  o  facho  das  duas  mais  ar- 
dentes paisues  humanas — a  vingança  e  o  amor. 

Depois  de  largo  pelejar  o  braço  de  Garcia  dei- 
xou de  responder  á  sua  vontade  enérgica.  A  espada 
não  lhe  escapou,  porque  lh'a  prendia  ao  braçal  uma 
cadeia  de  ferro  ;  mas  a  mão  não  podia  aperta-la  : 
o  bom  cavalleiro  sentiu  as  azas  da  morte  roçarem- 
]he  frias  pela  fronte  e  gelarem  as  bagas  de  suor  que 
Jh'a  banhavam:  vergarani-lhe  os  joelhos  ,  e  no  lu- 
me baço  dos  olhos  ccntelharim-lhe  como  duas  fa- 
chas tremulas  e  rápidas  de  fogo  vivo  ;  vacillou  e 
eahiu  :  cahiu  para  nunca  mais  se  erguer.  «Dulce! 
—  foi  o  seu  ultimo  murmúrio:  o  ultimo  som  que 
ouviu,  ura  rugido  de  tigre;  a  ultima  luz  que  viu, 
o  lampejar  de  um  punhal  ,  que  lhe  descia  entre  o 
carnal  e  o  saio  :  não  fez  um  movimento  ,  um  gesto 
de  supplica  ;  não  esperou  nem  quiz  piedade.  Não  a 
queria  vencido  ;  não  a  leria  vencedor  ;  não  poderia 
espera-la. 

Ao  arrancar  o  ferro  fumegante  do  coração  do 
aragonez  ,  ligas  sentiu  os  gritos  de  desalento  e  te- 
mor dos  peões  inimigos,  que  fugiam  aterrados  ven- 
do o  termo  daquelle  duellu  fatal,  em  quanto  os  vil- 
lões  de  Gontingem  lhes  despediam  uma  nuvem  de 
setas  c  pedras,  acompaidiadas  d'injurias  e  amea- 
ças. Com  um  sorriso  doloroso  o  trovador  olhou  lar- 
go tem|io  |)ara  o  cadáver  do  seu  rival.  Depois  cha- 
mando alguns  besteiros  lhes  disse: 

«Fazei  umas  andas  de  troncos  d'arvores,  c trans- 
portai csle  cadáver  ao  mosteiro  de  (iuimarãcs.  I,á 
deveis  encontrar  quando  ahi  chegardes  o  ahbade 
Fr.  Ililarião.  Dizci-llie  que  Kgas  .Moniz  o  moço  lhe 
pede  uma  tumba  e  uma  sepultura  honrada  para  tão 
nobre  c  valente  cavalleiro.  Dizci-lhe  lambem  ,  que 
a  minha  pVomcssa  desta  noite  hade  cumprir-so  ,  c 
que  ainda  hoje  nos  veremos  !  a 

"  Ver-nos-bemos !  ver-nos-hemos  !  —  repetiu  cllc 
em  Voz  baixa  era  quanto  os  soldados  começavam  a 
«xecutar  o  que  lhes  ordenara.  —  Apoz  o  cadáver  do 


que  dorme  o  ultirao  somno  ,  o  daqnella  que  respi- 
ra c  parece  viver  —  lambem  cu_ terei  o  meu  moi- 
mento !  » 

E  apesar  de  mal-ferido  c  com  o  arnez  despeda- 
çado montou  no  cavallo  que  lhe  oflereceu  um  almo- 
cadem  de  peões  ,  e  partiu  á  rédea  solta  para  onde 
entre  nuvens  de  pó  se  viam  ao  longe  fulgurar  as 
espadas  dos  pelejadores. 

Mas  não  era  peleja.  Era  ura  encalço  ,  uma  car- 
nificina de  vencidos.  A  todas  as  novas  atterradoras 
vindas  de  Guimarães  accrescèra  a  da  morte  de  Gar- 
cia Bcrmudez  que  os  besteiros  fugitivos  tinham  es- 
palhado. O  conde  de  Trava  retirava-se  combatendo 
ainda,  soccorrido  por  alguns  cavalleiros  mais  estor- 
çados,  mas  o  commum  dos  homens  d'armas  fugiam 
desordenadamente.  A  sorte  do  alleres-mór  quebrou 
emfim  os  brios  até  dos  mais  destemidos. 

Quando  se  conheceu  claramente  para  que  lado 
se  inclinava  a  victoria  ,  D.  Thereza  esqueceu-se  de 
que  era  mãi  ,  esqueceu-se  da  altivez  e  dureza  de 
Fernão  Perez,  para  se  lembrar  só  de  que  era  aman- 
te e  rainha,  e  de  que  mais  de  uma  vez  o  som  da 
sua  voz  tinha  bastado  a  infundir  ousadia  invencível 
no  animo  dos  seus  guerreiros.  Montou  n'um  pala- 
frem  c  acompanhada  unicamente  de  um  pagem  e  de 
dois  escudeiros  desceu  ao  campo,  deixando  na  ten- 
da as  suas  damas  c  donzellas,  que  choravam,  e  rc- 
savam  cheias  de  medo  ,  e  horrorisadas  das  scenas 
de  extermínio  que  passavam  na  planície. 

E  as  duas  hostes  ,  travadas  ,  enredadas ,  invollas 
no  pó  ,  rolavam  como  uma  nuvem  tempestuosa  af- 
fastando-se  para  longe  do  outeiro,  onde  estava  ale- 
vantado  o  pavilhão  da  bclla  infanta.  O  sol  inclina- 
va-se  para  o  occidente  ,  e  o  poderio  da  filha  d'AÍ- 
fonso  (j.°  ia  fenecendo  como  ia  fenecendo  o  dia. 

Subitamente  do  meio  daquelle  turbilhão  de  ho- 
mens armados,  sahiu  rápido  como  a  setta  um  vulto, 
galgando  pela  encosta  ,  e  encaminhando  a  carreira 
do  cavallo  para  o  lado  da  tenda  real :  o  vigia  que 
velava  á  entrada  chamou  os  demais  guardas  ,  que 
eram  ajienas  alguns  velhos  cavalleiros  pousados  e 
um  troço  de  besteiros  do  burgo. 

O  vulto  era  um  homem  d'armas  :  — parou  a  cer- 
ta distancia  da  tenda  ,  e  bradou  aos  vigias  : 

«Dizei  á  illustre  preslameira  de  Itravaes  ,  á  no- 
bre esposa  do  alferes-mór  de  Portugal,  que  seu  ma- 
rido e  senhor  lhe  ordena  se  dirija  ao  mosteiro  do 
burgo  de  Guimarães,  onde  ao  anoitecer  o  achará 
esperando.  Sem  réplica,  e  sem  tardança  deve  cum- 
pri-lo ,  porque  a  lide  perdeu-se  e  só  desse  modo  se 
l)odorã  salvar,  u 

Ditas  estas  palavras  o  homem  d'armas  desceu 
com  a  mesma  rapidez   o  outeiro  para  o  outro  lado. 

Dulce  que  entre  as  demais  damas  de  D.  Thereza, 
era  a  única  tranquilla,  porque  para  ella  já  não  ha- 
via na  terra  nem  temor  nem  esperança,  ouviu  o  bra- 
dar do  mensageiro.  Pareceu-lhe  conhecer  a  voz  que 
bradava;  mas  logo  rellecttinque  era  illusão.  Essa 
voz  não  podia  chegar  até  aquelle  logar  ,  porque  a 
abobada  de  um  cárcere  a  abafava  ,  e  porque  simi- 
Ihanle  mensagem  repelida  por  tal  boca  seria  mons- 
truosidade impossível. 

Entretanto  o  cadáver  de  Garcia  Bermudcz  fora 
collocado  entre  dois  renques  de  brandões  acecsos 
no  meio  da  nave  principal  do  templo  de  S.  Salva- 
dor. Alem  das  grades,  que  segundo  o  antigo  costu- 
me separavam  acapella  miir  do  corpo  da  igreja,  os 
frades  psalmeavam  as  orações  da  tarde.  Subitamen- 
te um  cavalleiro  com  as  armas  rotas  e  cobertas  de 
pó  entrou ,   e  íeguindo  por  unu  das  naves  laleraes 


o  PANORAMA, 


2Í5 


foi  cncostar-sc  á  ultima  colnmna  junto  do  cruzeiro. 
Apenas  o  divisou,  Tr.  Hilarião  desrer.rfo  da  sua  ca- 
deira onde  presidia  ao  coro,  fez  sigiial  para  que  se 
abrissem  os  ranrellos  de  ferro ,  e  encamiuiiou-se 
para  o  recem-chegado. 

F.iliarain  a  sós  largo  espaço  :  o  que  disseram  ne- 
nhum monge  pode  perceber  ;  mas  notaram  que  o 
ahbade  ao  relirar-sc  trazia  os  olhos  arrazaiios  de  ia- 
sçrymas.  O  cavalleiro  conservava-se  encostado  a  co- 
lumna  sem  movimento,  simillianto  ao  cadáver  que 
jazia  no  féretro  coUocado  no  meio  do  templo. 

I'assou  uma  hora.  Ã  noite  tinha  desciílo  :  —  a  luz 
Taricgada  das  vidraças  não  se  repintava  já  nas  al- 
vas lagens  do  pavimento.  Fr.  líilaruio  ,  acabadas  as 
orações,  cham.ira  para  junto  de  si  os  monges,  a 
quem  ordenou  o  que  quer  que  fosse  :  alguns  sahi- 
ram  ,  mas  não  tardaram  a  voltar  :  (js  outros  torna- 
ram aos  seus  stallos  ou  sedes,  onde  assentados  cabis- 
baixos e  de  braços  cruzados  pareciam,  no  volver  de 
quando  cm  quando  a  cabeça  pura  o  cruzeiro,  espe- 
rar algum  acontecimento  extraordinário. 

jNo  ambilo  da  igreja  silenciosa  ouvia-sc  apenas  o 
respirar  constrangido  e  violento  do  rcccm-vindo  ,  c 
.is  vezes  o  crepitar  das  tochas  que  ardiam  ao  redor 
da  tumba. 

Este  silencio  ,  porem  ,  qnebrou-o  nm  tropear  len- 
to de  cavallos  soando  do  lado  dagalilé  ou  alper.dra- 
da  que  rodeava  exteriormente  o  edifício,  e  que  se- 
gundo o  costume  da  epocha  servia  de  cemitério  ao 
mosteiro.  O  ruido  approximava-se  cada  vez  mais , 
até  que  finalmente  parou  junto  das  portas  abertas 
ainda  de  par  cm  par. 

Ihna  dona  com  a  cabeça  coberta  d' um  véu  bran- 
co ,  seguida  de  um  pagem  que  trajava  as  cores  do 
alferes-raór  (íarcia  Bermudez  ,  entrou  ,  e  chegando 
ao  meio  da  nave  principal  correu  com  os  olhos  aquel- 
las  arcarias  :  a  igreja  parecia  deserta  ,  e  apenas  o 
habitador  do  féretro  que  cila  via  perlo  de  si,  espe- 
rava solitário  o  instante  em  que  o  deitassem  no  seu 
leito  de  pedra.  Uma  la.mpada  baça  pendente  sobre 
o  altar  mor  dava  uma  claridade  moribunda,  que  se 
perdia  no  ambiente  ,  e  não  deixava  enxergar  atra- 
Tcz  dos  cancellos,  os  monges,  vestidos  de  coguUas 
negras,  que  se  conservavam  assentados  nos  teus 
síallos  em  completa  immobilidade. 

Inútil  é  dizer  ao  leitor  quem  era  a  dona,  qne  en- 
trara :  —  elle  o  adivinhou  já.  l)ulce  obedecera  á  men- 
sagem de  seu  marido  e  senhor  sem  alegria  e  sem 
mágua  ,  sem  confiança  e  sem  receio,  —  sem  querer 
recordar-se  do  passado  ,  sem  pensar  no  futuro  :  a 
sua  alma  tinha-seabslrahido  da  vida  :  assuasacções 
eram  uma  espécie  de  somnambulisnio  ,  ou  antes  os 
movimentos  involuntários  de  um  cadáver  galvanisa- 
do.  A  solidão  da  igreja  ,  os  medos  da  noite  ,  a  pre- 
sença de  um  morto  não  acharam  já  naquelle  cora- 
ção triturado  um  sentimento  de  lenor  que  desper- 
tassem. Voliou-se  para  o  pagem  e  com  voz  socega- 
da  ,   disse-lhe  ; 

«Meu  senhor  ainda  não  veio.  Ide  espera-lo  lá 
fora,  e  quando  chegar  dizei-lhe  que  Dulce  cuni[)riu 
á  risca  —  sem  replica  e  sem  tardança  —  a  sua  men- 
sagem. Elle  foi  quem  tão  somente  se  demorou.» 

E  o  pagem  sahiu  ;  e  Dulce  ficou  era  pé  ,  com  os 
braços  pendentes  e  os  olhos  fitos  na  tumba  :  os  seus 
joelhos  não  se  dobravam,  porque  o  orar  não  lhe  tra- 
ria a  considação.  .\as  desditas  communs  da  existên- 
cia o  espirito  busca  a  Deus  ;  mas  a  sumraa  desven- 
tura é  Ímpia  e  incrédula  —  mais  que  a  plena  felici- 
dade. 

Também  ser-lhe-hia  impossirel  orar.  Ouviu  uns 


passos  qne  davam  nas  lagens  nm  som  metálico.  O 
reccm-vindo  encaniinliava-se  para  alli  vagarosamen- 
te. Dulce  não  mostrou  um  só  indicio  de  susto:  des- 
pregou os  olhos  do  féretro  ecravou-os  nodesconhc- 
cido  ,  com  semblante  sereno. 

O  cavalleiro  chegou  ao  pé  da  nobre  dama.  Ella 
sentiu  a  sua  luva  do  ferro  segurar-lhc  o  braço;  mas 
a  mão  que  o  segurava  não  sentiu  esse  braço  tremer. 
(Ainduziu-a  até  a  borda  da  tumba,  c  parando  apon- 
tou para  esta  : 

«  Dorme  o  somno  do  verdadeiro  repouso  —  disse 
Dulce  sorrindo. —  Quem  inedera  dormi-lo tambcni '. 
—  SIas  para  que  nic  trazeis  aqui?  Quem  sois  viis 
que  vos  atreveis  a  pôr  mãos  na  mulher  do  alfercs- 
mór  de  Portugal,  que  espera  no  logar  por  elle  apra- 
zado, a  vinda  de  seu  marido?» 

n  !".teri!0  que  fosse  o  teu  esperar  seria  inuíi! :  — 
respondeu  o  cavalleiro.  Elle  te  precedeu  aqui.  Fui 
eu  que  o  guiei ;  cu  que  cm  nome  delle  chamei  sua 
mulher;  eu  que  os  quero  ver  unidos.  Eis  queci  cu 
sou  :  eis  onde  elle  está.» 

E  puxando  com  força  o  panno  negro  de  tumba , 
o  cadáver  de  Garcia  Ucrmiidez  com  a  sobrcvosle 
ainda  ensanguentada  ,  e  cora  os  oliios  baços  feroz- 
mente abertos,  appareccu  diante  de  Duke. 

A  desgraçada  conlemplou-o  por  alguns  instantes  : 
depois  fitou  avista  no  cavalleiro  :  duas  lagrymas 
cahiam-lbe  em  lio  pelas  faces.  Insensivelmente  ajoe- 
lhou com  a  cabeça  encostada  ao  féretro ,  e  o  mur- 
múrio que  sussurrava  nos  seus  lábios  era  similhan- 
tc  ao  ciciar  de  ténue  aragem  passando  na  seara  ma- 
dura. Orava  emfim  :  o  sentimento  de  piedoso  dever 
sobrevivia  ainda  naquclle  coração  ,  apparentemenlc 
morto  para  todos  os  affectos.  Ao  gesto  denuidado  do 
cavalleiro  lampejou  furor  infernal  ao  ver  Dulce  na- 
quella  postura  ,  ao  ouvir  as  orações  que  murmura- 
va. Segiirou-lhc  de  novo  o  braço  tentando  ergue-la, 
mas  Dulce  alçou  de  novo  os  olhos  para  élle,  e  dis- 
se-lhe com  voz  branda  e  meiga  : 

«Egas,  porque  não  resais  também  por  Garcia 
Bermudez?  —  Era  um  nobre  e  generoso  cavalioiro 
aquelle  que  o  destino  quiz  fosse  meu  senhor  e  ma- 
rido, jlorrcti  defendendo  sua  rainha  ;  Deus  ha-de 
amercear-se  delle  ,  se  vós  lhe  perdoardes  como  eu 
lhe  perdoo  o  mal  que  involuntariamente  nos  fez  :  a 
desventura  de  que  teceu  os  dias  da  nossa  vida.» 

« Xera  eu  lhe  perdoo  ,  nem  Deus  se  amerceará 
delle: — atalhou  o  cavalleiro  com  um  sorriso  atroz. 
Não  I  Para  elle  não  ha  céu  nem  esperança  I  Morreu 
impenitente  e  maldito.  Digo-lo  eu  que  o  rnaiei. — 
Ouves,  mulher  de  Garcia?  Fui  eu  que  o  matei  I 
Era  uma  lide  medonha  '.  —  medonha  !  Jogávamos  al- 
ma e  corpo.  Ooando  um  golpe  me  rompia  asarmas, 
eu  sentia  o  seu  odiu  in)placavel  viver  ainda  no  gu- 
me do  ferro  que  me  sulcava  os  membros  ;  eile  de- 
via sentir  \iver-me  ódio  nos  fios  da  minha  acha 
d'armas.  Teu  marido  ,  n)ulhcr  do  estrangeiro  ,  per- 
deu o  lanço  :  vacillou  e  cahiu.  Não  me  peças  que 
ajoelhe  agora  : — ajoelhei  enlão  —  sobre  o  peito  del- 
le que  arquejava  .  .  .  Foi  para  o  assassinar  !  —  Era 
um  ajuste  entre  nós  .  .  .  ajuste  feito  sem  palavras; 
porque  de  palavras  não  se  precisava  ahi.  Viuva  do 
aragonez  ,  amaldiçoa  o  assassino  de  teu  marido  ,  e 
não  rezes  pelo  condemnadu  :  as  porias  do  inferno 
não  se  abrem  cora  orações.  Trocou  o  leito  da  noiva- 
do pelo  dos  tormentos  eternos  aquelle  a  quem  te 
prostiLuisle  :  deixa-o  lá  repousar,  e  não  mistures 
um  pensamento  do  céu  na  abominação  da  nossa  exis- 
tência. » 

O  respirar  de  Dulce  era  agitado,  e  o  rubor  febril 


246 


O  PANORAMA. 


tingiu-lhe  as  faces  em  quanto  o  cavalleiro  fallou : 
depois  erapallideccu  pouco  a  pouco,  e  cm  lom  qua- 
si  imperceplivcl  respondeu  : 

«Deus  te  recompense,  Egas  ,  pelo  bem  que  me 
fizeste  com  essas  palavras!  Atua  imagem  estava 
gravada  na  rainha  alma  pura  ,  santa  ,  formosa  :  era 
um  laço  indissolúvel  —  o  ultimo  laço  que  a  prendia 
ao  meu  negro  viver.  Debaixo  da  lousa  não  podia 
■vè-la  e  adora-la,  porque  lá  o  dormir  não  tem  so- 
nhos. Turbaste  essa  imagem  com  o  lodo  de  ura  as- 
sassínio ;  com  a  tua  primeira  covardia.  Posso  agora 
morrer.  Só  te  peço  que  te  aíTastes ,  para  te  cu  não 
ouvir  nem  ver  ....  Deixa-me  expirar  abraçada  com 
a  memoria  do  passado  :  com  a  lembrança  do  nosso 
amor  innoccnte  :  deixa-me  até  o  fim  amar  o  meu 
Egas :  deixa-mc  esquecer  de  li,  que  não  es  já  elle  ! 
Egas ,  meu  querido  Egas  .  .  .  alTasta  daqui  esle  ho- 
mem vil  e  perverso  ,  que  ousa  dar  á  tua  Dulce  o 
nome  de  mulher  perdida  I  . .  .  .  Vem  ....  oh  vem 
....  meu  Egas  !  » 

E  a  malaventurada,  deliranlejá,  estendia  os  bra- 
ços para  a  imagem  de  Egas,  que  ella  via  dilTeren- 
te  do  que  tinha  ante  si.  Era  o  seu  anjo  da  guarda 
que  se  librava  nas  azas  de  fogo  para  guiar  aquclie 
espirito  tão  bello  e  meigo  a  refrigerar-se  de  tantos 
raarlyrios  no  oceano  das  consolações  eternas. 

«Oh,  tu  amas-me  ainda  !  —  bradou  o  cavalleiro 
com  uma  alegria  plircnetica  e  selvagem.  —  Bem  ! 
I.evantar-se-ha  uma  barreira  de  bronze  entre  mim 
e  ti ,  que  anniquille  o  derradeiro  clarão  da  espe- 
rança, se  me  conheces  tão  mal,  que  ainda  na  alma 
te  possa  restar  um  vesligio  de  esperança,  ilorrer  ' 
—  Tensrasãol  —  A  minha  amante  polluida  não  pô- 
de ficar  na  terra.  Osepulchro  é  o  crysol  que  te  ha- 
de  tornar  pura.  Jlorre,  queeu  te  seguirei  em  breve.  » 

Estas  ultimas  palavras  restrugiram  como  um  do- 
bre nos  ouvidos  de  Dulce.  O  cavalleiro  affastou-se 
rapidamente  ,  e  chegando  ao  cruzeiro  gritou  : 

«Eis-me  aqui  meus  irmãos!» 

O  altar  mór  illuminou-se  de  súbito  :  os  raonges 
sahirara  dos  seus  stallos  onde  pareciam  adormeci- 
dos. Aquellas  duas  fitas  negras  ondearam  movendo- 
se  para  os  caucellos  abertos  de  par  em  par.  O  ca- 
valleiro entrou,  e  por  meio  das  duas  fileiras  do  fra- 
des ,  approximou-se  do  altar,  junio  do  qual  o  ve- 
lho abbade  resava  as  orações  marcadas  no  ritual 
benedictino  para  uma  profissão  monástica. 

Acabadas  estas,  o  órgão  rompeu  umas  toadas 
tristes ,  e  os  còVos  de  monges  resaram  successiva- 
niente  os  sele  psalraos  penitenciaes. 

Depois  seguiram-sc  mais  orações  murmuradas  com 
voz  débil  por  Fr.  ílilarião  sobre  a  cabeça  de  Jígas 
curvado  ao  pé  do  aliar. 

E  no  fim  delias  um  monge  tomou  da  credencia 
uma  cogulla,  em  quanto  o  abbnde  arrancava  ao  ca- 
valleiro a  pnlirevcsle  branca  franjada  de  ouro,  en- 
nodoada  ainda  do  sangue  dellc  e  do  sangue  deíiar- 
cia  lícrmudez.  A  negra  cogulla  a  substituiu  então 
cabindo  como  um  sudário  sobre  a  cabeça  do  novi- 
ço. O  som  do  órgão  havia  cessado. 

Mas  um  grilo  agudo  e  rápido,  c  um  pequeno  ba- 
que no  pavimento  da  igreja  soaram  como  duas  no- 
tas mais  tardias  daquellas  tristíssimas  toadas.  O  an- 
jo da  guarda  de  Dulce  voava  para  o  céu  atravez 
das  solidões  do  espaço  :   uma  alma  o  acompanhava. 

No  outro  dia  scpultavam-sc  em  duas  sepulturas 
ilivcrs;is  na  galilc  do  mosteiro  de  D.  Muma  o  alfe- 
res-mór  da  rainha  D.  Thereza  c  sua  nobre  esposa 
a  herdeira  dos  Lravaes  ,  que  expirara  de  dòr  ,  se- 
gundo se  dizia  ,    ao  pé   do  féretro  de  seu  illustre  e 


valente  marido  ,  morto  no  batalha  do  campo  de  S. 
Mamede. 

Gonçalo  IMendez  da  Maia  ,  tenente  por  Aflbnso 
Ilenriquez  do  castello  de  Guimarães,  e  o  abbade 
de  S.  Salvador,  assim  o  haviam  ordenado,  separan- 
do na  morte  aquelles  que  a  benção  do  sacerdote  ti- 
nha unido  para  sempre  na  vida. 

Foi  um  pequeno  escândalo  era  que  as  beatas  do 
burgo  fallaram  muito,  com  variados  commentarios. 

Um  noviço  do  mosteiro  que  ninguém  conhecia 
appareceu  morto  ao  romper  d'alva  do  terceiro  dia 
sobre  a  lousa  da  sepultura  de  Dulce.  IVa  face  da 
pedra  tinha  escriplo  duas  compridas  trovas ,  que 
um  monge  curioso  copiou  n'um  pergaminho  que 
guardou  no  cartulario  do  mosteiro,  onde  ainda  no 
decimo-scxto  século  se  conservava.  Quem  as  quizer 
ler  procurc-as  na  Jliscellanea  de  Miguel  Leitão  de 
Andrade. 

Foi  caso  em  que  todos  scismaram. 


Provavelmente  o  leitor  deseja  saber  o  que  foi  fei- 
to de  D.  líibas ,  e  das  mais  personagens  desta  im- 
portanlissima  e  mui  verdadeira  historia.  Dir-lh'o- 
hemos  cm  breves  palavras. 

A  rainha  e  Fernão  Peres ,  do  castello  de  Lanho- 
so ,  aonde  se  haviam  acolhido,  se  deram  a  partido 
ao  infante  ,  que  ahi  os  tinha  cercado.  D.  Thereza 
apenas  sobreviveu  dois  annos ,  e  o  conde  regressou 
a  Galliza  ao  solar  de  Trava ,  que  herd<íra  de  seu 
pai. 

D.Bibas  reconquistou  a  paz  d'espirito  com  o  gos- 
to da  vingança  ;  e  ainda  por  muitos  annos  alegrou 
os  sare-ius  de  seu  senhor  D.  Affonso.  Morreu  velho, 
deixando  o  importante  cargo  que  exercitava  aos  dois 
celebres  Iruões  deD. Sancho  1.° — Bonamis  cAcom- 
paniado. 

Gonçalo  Mendez  tornou-se  cada  vez  mais  famoso 
por  inauditas  façanhas  contra  a  mourisma  ,  até  que 
expirou  ás  mãos  dos  sarracenos  no  recontro  de  Be- 
ja ,  como  já  de  outra  voz  vos  havemos  contado. 

O  reverendo  Eicha  Martim  voltou  para  a  sé  de 
Lamego,  porque  ninguém  fez  mais  caso  dellc  na 
corte  ,  nem  para  bem  ,  nem  para  mal.  Lá  comeu  , 
bebeu,  dormiu  c  rezou  —  umas  vezes  pelo  alcorão, 
outras  pelo  breviário. 

O  bom  de  Fr.  Hilarião  foi  apagando  como  pôde , 
nos  lautos  banquetes  de  Aflbnso  ilenriquez,  as  sau- 
dades de  Egas  ;  mas  as  diligencias  que  fazia  para 
esquecer  sua  magua  custaram-lhe  a  vida.  Morreu 
de  uma  indigestão  de  dobrada,  como  alguns  annos 
antes  morrera  o  gordo  bispo  de  Santiago,  o  vene- 
rável Ermegildo. 

Deus  SC  lembre  de  suas  almas. 

(A.  Herculano.) 


Jogos  de  força. 


Esta  classe  de  divertimentos  é  de  mui  remota  anti- 
guidade ,  e  vè-se  frequentemente  executada  nas  ci- 
dades i)opulosas  onde  ha  maior  numero  de  curiosos 
('  ociosos,  que  favorecidos  de  músculos  rijos  e  or- 
ganisação  alhlctica  expõem  mil  vezes  a  vida  ,  uns 
liclo  aían  de  brilhar,  outros  para  ganhar  pão.  Nas 
praças  publicas  d' Athcnas  e  lloma  havia  como  nas 
modernas  siinilhantes  espectáculos,  e  os  miseráveis 
histriões  que  os  desempenhavam  pediam  cm  vez  de 
dinheiro  uma  ou  meia  hora  do  altenção  :  já  nessa 


o  PANORAMA. 


^47 


era  SC  fazia  a  chamada  torre  de  homens ,  célebre 
peJa  difliculdade  c  perigo  ,  e  cm  que  os  chins  le- 
vam sobre  outras  nações  a  primazia. —  Afigura  mos- 
(rada  na  gravura  inclusa  foi  desempenhada  n'umthc- 
atro  de  l'okim,  e  recebida  com  geral  acceitação  as- 
sim de  naturaes  como  de  eslrangeiros  ;  os  velhos  , 
costumados  a  taes  espectáculos ,  confessaram  que 
não  tinham  visto  cousa  mais  perfeita.  l'or  certo  que 
rauita  destreza  é  precisa  para  se  encarapitarem  ho- 
mens uns  em  cima  de  outros  e  formarem  perfeita- 
mente pyramidcá ,  castellos  ,  pontes  e  outras  figu- 
ras ;  que  se  punham  em  pratica  antigamente  por  es- 
ta maneira. —  Quatro  homens  vigorosos  se  postavam 
iim  em  frente  d'outro  e  se  agarravam  fortemente  pa- 
ra construir  a  base  do  edificio ,  outros  dois  subiam 
aos  hombros  destes  ,  e  sobre  elles  ia  o  terceiro ,  c 
ainda  sobre  o  terceiro  o  quarto  ,  que  de  tão  consi- 
derável altura  tomava  outro  que  escolhiam  de  pou- 
cas carnes  c  maçara,  colhendo-o  d'umrepellão  ;  fa- 
zia-o  girar  por  cima  da  cabeça  ,  sustinha-o  á  força 
de  pulso  durante  alguns  minutos  em  postura  ridí- 
cula ;  e  o  que  isto  fazia,  firmado  só  no  pé  direito, 
meneava  cinco  ou  seis  vezes  o  pobrete  e  atirava 
com  elle  á  turba,  que  o  aparava  com  risadas  c  al- 
gazarra :  não  se  sabe  porem  se  oqiie  servia  de  pélla 
ficava  ou  não  estropeado  na  maior  parte  dos  casos. 


vê  ,  pelos  preceitos  da  arte  ,  mas  cslá  longe  de  ter 
como  a  chim  o  perigoso  mérito  da  torre  de  fnrfas. 
Os  chinas  sobresahcm  nestes  jogos  c  p\\.'rcicios  por 
sua  intrepidez  e  destreza. 


Addisson  refere  que  em  suas  viagens  pela  Itália 
assistira  a  um  espectáculo  muito  acceito  emA'eneza 
e  peculiar  desta  cidade.  Dma  quadrilha  de  aldeãos 
figuravam,  sobre  umas  grandes  taboas  que  em  seus 
hombros  suslinham,  uma  pyramide  perfeita,  que 
contava  até  seis  corpos  em  altura  :  o  peso  era  tão 
bem  repartido  que  nenhum  se  podia  queixar.  As  ca- 
madas da  pyramide  iam  ,  como  devia  ser  ,  cm  gra- 
dual diminuição,  coroando  a  cúspide  um  rapaz  que 
quando  lhe  parecia  deixava-se  escorregar  destra- 
mente ,  e  baixava  rodando  por  aquella  torre  viven- 
te, que  estendia  seus  muitos  braços  para  recebê-lo. 
—  .\  pyramide  veneziana  é  construída  ,   ao  que  se 


O   CEGO    PEREGRINO. 

[Conclusão.] 

Corre  a  noite  triste  e  fria, 
E  quer  o  fado  mofino 
Que  a  inexperta  donzella    ' 
Vá  guiando  o  peregrino. 

Seguem  por  ásperos  trilhos  , 
Já  das  serras  estão  fora  , 
Entram  na  vasta  campina 
Quando  assoma  a  luz  da  Aurora. 

Chegados  são  a  estrada  , 
Inda  a  esse  tempo  deserta; 
t.  preciso  que  a  um  cego 
Se  annuncie  a  rota  certa. 

—  Vai  sempre  —  lhe  diz  a  guia  — 
Encostado  a  este  muro  : 

Se  a  direita  não  deixares 
Chegas  a  porto  seguro. 

—  Menina,  tão  cedo  é 

Que  inda  não  me  atrevo  só  ; 
Não  me  desampare  aqui , 
Do  ceguinho  tenha  dó. 

—  fyão  tardarão  passageiros, 
A  carreira  c  frequentada : 
Poderás  ir  perguntando 
Rumo  da  tua  jornada. 

—  Quem  madruga  a  estas  horas 
Leva  pressa  ou  tem  niáu  fim  ; 
Como  nutrirei  esp'rnnças 

De  que  tenham  dó  de  mim? 

—  Consinto  ainda  guiar-te 

Té  que  o  sol  doure  o  horisontc ; 

Por  ser  caminho  de  casa 

A  encosta  daquelle  monte. — 

Poucos  passos  eram  dados  , 
E  as  vozes  de  cavalleiros 
Desinquietavam  os  echos 
Dos  circumstantes  outeiros. 

O  tropel  avisinhou-se  , 
O  maioral  conheceu 
O  cego  fingido  e  falso  , 
E  para  elle  correu. 

—  Boa  prêa  ,  senhor  ,  tendes  , 
Destes  mate  a  gente  esperta  ; 
Juro  que  vai  a  manha 

Mais  que  a  força  descoberta. — 
Co  encontro  subitaneo 

A  donzella  desatina  , 

Entrevê  ,  mas  horrorisa-a  , 

Sorte  que  se  lhe  destina. 
O  rubor  lhe  abraza  as  faces  , 

Ostentar  força  parece  ; 

Passa  o  colérico  impulso  , 

Descorada  desfallece. 
Quem  te  dissera  que  a  velha  , 

Em  que  a  mãi  teus  olhos  viam. 

Era  uma  mercenária 

Que  teus  pais  mal  conheciam. 
Fructo  d'amor  clandestino  , 

Fostes  em  serras  criada  , 

Tendo  de  pisar  palácios. 

Nobre  e  opulenta  morgada. 


24« 


O  PANORAMA. 


Qtiando  leu  pai  procurava 
Chamar-le  filha  querida 
,      Presumplivo  herdeiro  iritenla 
Koubnr-le  os  bens  e  a  vida. 

Mas  o  céu  ,  que  sempre  acode 
A  innocencia  indefcnsa  , 
Serviu-se  para  o  castigo 
Do  mesmo  acto  (la  olTensa. 

Criado  do  conde  velho  , 

Que  ia  na  escolta  assassina  , 
Se  encarrega  do  transporte 
Da  desditosa  menina. 

Escuso  trilho  lhe  indicam, 
Porque  sem  ser  visto  vá 
Onde  o  roubador  a  salvo 
Leve  a  elícito  a  tenção  má. 

Designios  de  quem  o  manda 
O  conductor  não  sabia  : 
Mas  qi'e  os  lius  eram  sinistros 
Velos  actos  descobria  : 

Reparando  com  mais  tento 
Para  as  feições  da  donzelia, 
Percebe  que  com  seu  amo 
Muito  se  parece  ella. 

Lcmbra-lho  uma  historia  antiga. 
Que  em  segredo  se  contava  , 
De  circuinstancias  incertas 
Jlas  que  ao  conde  respeitava. 

Pensa  um  pouco  e  emlim  rcsolte 
M':d:ir  rumo  e  sem  detença 
Apprescntar  a  roubida 
De  sen  amo  na  presença. 

Entram  salas  de  palácio  ; 
E  o  conds  se  marsvilha 
De  caso  tão  imprevisto 
Que  lhe  reslitue  a  filha. 

Relatara  o  fiel  servo 

O  successo  extraordinário  ; 
Como  livrara  a  menina 
Dos  furores  d'um  falsario. 

Breve  a  donzelia  traja 
Galas  cm  vez  do  saial  ; 
Obeuecida  de  lodos 
Sob  o  teclo  paternal  : 

O  traidor  que  os  bens  e  vida 
Arrancar-lhe  pertendeu  , 
Temendo  a  ira  do  conde 
De  todo  desappareceu. 

lá  vai  expiai   a  culpa 
Vagabundo  e  loragido  , 
Talvez  falho  de  recursos 
Acabar  como  um  mendigo  (•). 


A  DonaiiDEiRA  e  Ópio. 


A  Dormideira  branca  é  aquclla  de  que  se  exlra- 
hc  o  ópio.  Tournefort  couta  que  a  seuieam  cm  mui- 
tas proviíicias  da  Ásia  ,  como  nós  semeámos  o  tri- 
go. Os  seus  caules  são  de  altura  de  trcs  ou  quatro 
pés  ,  direitos  ,  ramosos  ,  guarnecidos  de  folhas  ob- 
longas ,  largas  ,  scrreadas  ,  e  de  còr  vcrde-mar  cla- 
ro :  as  Dores  postas  na  summidade  ,  são  em  forma 
de  rosas  ,  grandes  ,  e  ordinariamente  compostas  de 
qualro  pétalas  brancas  :  o  fructo  ,  que  lhes  succe- 
de,  é  uma  capsula  ovada  que  tem  urna  só  válvula, 
e  muitas  cellulas  por  dentro,  coroada  de  uma  ro- 
della  cslrellada  ,  e  que  contém  um  grande  numero 
de  sementes  pequenas  redondeadas ,  brancas .  de 
(•)     Eiitá  a  (iiuBeira  parte  a  pat'-  3ã. 


gosto  doce  ,  oleoso  ,  e  farináceo  ;  por  baixo  da  ro- 
dclla  ha  muitos  furos,  e  por  elles  sahein  as  semen- 
tes. Toda  a  planta  estando  verde  está  recheada  de 
um  sueco  lácteo,  amargo,  e  que  lança  um  cheiro 
desagradável.  Semea-se  uo  levante,  como  dissemos, 
em  campo  aberto.  Mal  que  as  cabeças  apparecem  , 
faz-se-lhes  uma  ligeira  incisão  ,  c  por  aqui  escor- 
rem algumas  gotas  de  um  licor  lácteo  ,  que  se  dei- 
xa coalhar ,  e  se  recolhe  depois.  Esta  substancia 
prepara-sc  então  humedecendo-a  com  agua,  ou  mel; 
remecbendo-a  por  muito  tempo  em  uma  gamella  de 
páu  bem  liso  ,  com  uma  espátula  forte  até  que  ad- 
quira a  consistência  do  pez;  fazem  com  ella  peque- 
nas pastilhas,  e  este  é  o  ópio  tão  gabado  pelos  po- 
vos do  levante,  lia  outros  dífTerentes  modos  de  o 
preparar,  e  lambem  se  faz  delle  bom  licor.  O  ópio 
do  commercio  é  tirado  por  pressão  das  cabeças  e 
folhas  da  dormideira  tudo  junto  ;  é  menos  agradá- 
vel do  que  o  primeiro,  e  vem  feito  em  pães  do  ta- 
maalio  de  um  punho.  Esta  mercadoria  é  da  Nato- 
lia ,  do  Egyplo ,  e  das  índias:  deve-se  observar 
que  a  nossa  dormideira  por  nascer  em  climas  mais 
frios  ,  não  tem  as  propriedades  narcóticas  tão  fortes 
como  as  naturacs  de  climas  quentes. 

Os  povos  do  levante  tomam  o  ópio  habitualmen- 
te ,  e  longe  de  solTrerem  a  menor  consequência  fu- 
nesta, excita-lhes  pelo  contrario  nas  entranhas  uma 
certa  sensação  agradável  :  elle  dissipa  ,  como  o  vi- 
nho .  a  inquietação  e  a  tristeza  ;  acalma  as  enfer- 
midades ,  reanima  o  corpo  abatido  ,  e  dá  vigor  ás 
pessoas  sadias.  Os  turcos  o  tomam  ao  entrar  nas 
batal.ias  ,  como  os  nossos  soldados  europeus  bebem 
aguóidcnlc  para  o  mesmo  fim.  Tal  é  o  efieito  que 
elle  produz  sobre  as  pessoas  costumadas  a  toma-lo, 
e  que  usam  delle  com  moderação;  mas  este  eITeito 
c  bem  contrario  quando  a  dose  é  mais  furte,  ou  a 
pessoa  não  está  habituada;  este  sueco ,  narcótico 
neste  caso  ,  no  principio  põe  a  pessoa  de  bom  hu- 
mor ,  d.  pois  faz  bocejar  ,  causa  soluços  ,  e  excita 
gradualmente  a  anciedade ,  o  vomito,  a  syncope  , 
a  alienação  de  espirito,  as  vertigens,  o  riso  sardó- 
nico ,  a  estupidez  ,  a  vermelhidão  das  faces  ,  a  in- 
xação  dos  beiços  ,  a  difliculdade  da  respiração  ,  o 
furor,  os  suores  frios,  o  desrallecimeulo,  finalmen- 
te um  somno  profundo  ,  e  muitas  vezes  a  morte.  — 
O   ópio  entra  no  uso  da  medicina. 

O  mais  admirável  porem  é  ,  que  a  semente  en- 
cerrada nas  capsulas,  não  participa  de  modo  algum 
das  propriedades  dos  suecos  da  planta.  Dá  um  óleo 
muito  bom  ,  que  ,  sendo  novo  ,  c  quasi  tão  agradá- 
vel como  o  da  azeitona  ,  e  pode  muito  bem  suppri- 
lo  quando  este  falta.  Commumraente  eiuprega-sc  pa- 
ra desencardir,  pulir,  e  amaciar  a  pelle  :  os  pin- 
tores fazem  grande  uso  deste  óleo  ,  a  que  muito 
impropriamente  no  commercio  chamam  óleo  de  cra- 
?'0í ,  ou  cravinas. —  Thcs.  de  Men. 


Barbas  rcclcsiasticas. —  Alguns  dos  primeiros  pa- 
dres da  Igreja  tomaram  a  prática  de  rapar  a  barba 
por  indicio  de  vaidade.  S.  Clemente  d'Alexandrra 
escreveu  que  na  barba  crescida  conlribuia  para  or- 
namento dosiiomens  como  alrajiçapara  a  formosura 
das  mullicres.  —  O  4.°  concilio  carthaginez  no  câ- 
non ii."  ordena  que  «o  clérigo  não  ponha  olco  nem 
banhas  nocabello,  nem  rape  as  barbas  como  ospro- 
phanos. —  Os  padres  do  rito  grego  ainda  usam  bar^ 
bas  compridas. 

O  AMOR  produz  mais  hcroismo  na>  mulheres  que  a 
aiubicão  noii  iiomens. 


85 


o  PANOR.OIA. 


249 


MAI.AGA. 


Pa  assomada  das  collinas  que  circiimdarn  a  interes- 
sante cidade  de  Málaga  ,  a  obra  de  duas  Icgiias  de 
distancia  ,  compraz-se  o  viajante  na  contemplarão 
da  magnifica  variedade  daquelles  contornos.  Paiz 
rico,  povoado  e  coberto  de  vinhatarias  ,  olivaes, 
amendoeiras,  pomares  d'espinho  :  o  pressuroso  mo- 
vimenlo  das  aguas  de  vários  ribeiros,  que  soltan- 
do-se  das  alturas  as  cortam  para  todos  os  lados  ,  a 
formosa  aggregarão  da  cidade  que  á  maneira  de 
amphitheatro  se  eleva  gradualmente  em  suave  de- 
clive sobre  o  rio  Guadalmedina,  ostentando  uma 
multidão  de  cúpulas  e  torres ;  a  magestusa  Serra- 
nevada,  coroada  de  gelos,  fechando  o  quadro;  for- 
mam um  composto  magico  e  diiricil  de  descrever. 
—  Circuitam  a  cidade  Ires  grandes  arrabaldes  com 
eitensas  e  largas  ruas  e  boa  casaria  ;  de  outras  es- 
treitas e  mal  calcadas  se  compõe  o  antigo  recinto  , 
algumas  delias  em  torcicolos  ;  e  as  praças  ou  lar- 
gos são  acanhados;  sem  embargo  do  que  o  todo  é 
agradável  pela  disposiç.io  da  planta  geral  ,  policia  , 
vista  de  mar  e  baixeis  que  o  sulcam  ,  pelo  bello 
porto  onde  muitos  navios  ancoram  ,  pelos  bonitos 
jardins,  hortas  e  plantios  de  arvores  fructiferas  , 
casas  de  campo.  &c.,  e  pelo  seu  elirna  temperado, 
âlmosphera  limpa  e  sadia.  Numera  7:000  edifícios, 
pela  terça  parte  de  construcrão  moderna.  A  mes- 
quinha estructura  das  casas  antigas  contrasta  so- 
bremaneira com  a  formosa  apparencia  das  posterio- 
res e  a  boa  architectura  de  alguns  edifícios  públi- 
cos, como  a  Sé  ,  a  igreja  dos  Marlyres ,  o  Uospi- 
líl  de  S.  Julião  ,  S.  Filippe  Neri ,  e  outros. 

Agosto  12—1843. 


A  sé  compõe-se  de  ires  naves  divididas  por  oito 
pilares  até  o  cruzeiro  ,  e  outros  tantos  que  rodeam 
a  capella-mór.  Estes  pilares  são  grupos  de  colum- 
n.is  corinihias  sobre  seus  pedeslaes.  A  fachada  prin- 
cipal é  de  diiis  corpos  com  columnas  de  mármore  , 
e  seu  frontispício  não  é  muito  elegante;  tem  duas 
torres,  uma  de  105  varas  castelhanas  [mui  pro- 
xim.  iO  braças  portiig.]  ,  e  a  outra  por  concluir  só 
chega  á  altura  da  fachada.  Nas  outras  duas  porta- 
das que  correspondem  aos  braços  do  cruzeiro  se 
nota  a  demasiada  profusão  de  folhagens  e  outros 
que  taes  ornatos ,  bem  como  no  interior  do  templo. 
Os  cantos  do  pavimento,  as  columnas  dos  pórticos, 
seus  adornos,  os  púlpitos,  e  balaustres,  são  de 
mármores  e  jaspes,  extrabidos  do  território  daquel- 
la  comarca.  A  Diogo  da  Silva  se  attribue  a  traça 
da  obra,  ainda  que  só  consta  que  teve  principio  em 
22  de  junho  de  1522:  tardou  muito  a  rematar-se , 
do  que  procederam  notáveis  alterações  em  sua  pri- 
mitiva planta  ,  visto  que  fora  dirigida  por  diversos 
mestres  ;  conhece-se  todavia  que  a  intenção  do  pri- 
meiro fora  edificar  pelo  molde  da  cathedral  do  Gra- 
nada. 

Muito  nos  estenderíamos  se  quízcssemos  noticiar 
as  bcllezas  dos  demais  edííicíos  públicos,  tanto  sa- 
grados como  prophanos  ;  todavia  não  deixaremos  de 
mencionar  alguns ,  laes  como  ,  a  alfandega  .  magni- 
fico palácio,  de  obra  moderna  ,  que  acredita  o  ar- 
ehitecto  D.  Manuel  Marlim  Rodrigues,  e  em  que 
se  tem  gasto  acima  de  um  milhão  de  cruzados. 
Também  devemos  citar  o  collegio  de  San-Telrao  ,  a 

2."  Serje.  —  YoL.  II. 


250 


O  PANORAMA. 


casa  do  Consulado  ,  e  o  paço  episcopal  ,  todo  de 
cantaria  c  de  boa  architectura.  O  iheatio  foi  diri- 
gido pelo  romano  ílasoncsqui ,  que  lhe  deixou  de- 
corações de  muito  hom  gosto.  O  passeio  da  Alame- 
da está  situado  entre  os  mais  sumptuosos  c  commo- 
dos  cdificios  da  cidade  e  próximo  ao  porío  ,  afor- 
moseam-no  ura  excellcntc  chafariz  e  muitas  esta- 
tuas |)or  entre  o  arvoredo,  nem  faltam  os  bancos 
de  pedra;  é  um  dos  vistosos  da  Hespanha. 

O  porto  de  Málaga  c  talvez  dos  mais  interessan- 
te;; do  Mediterrâneo ,  quer  pela  concorrência  de 
embarcações  ,  quer  pela  visinhança  do  Estreito  e 
servir  de  abrigo  aos  que  fogem  deste  reinando  tem- 
poracs.  ISa  ponta  do  molhe  antigo  ha  ura  farol  ro- 
tatório construído  pelo  engenheiro  Perri ;  lodos  os 
materiaes  que  nesta  obra  cntrarara  foram  feitos  em 
Hespanha,  como  se  Ic  na  inscripção  sobre  a  porta  ; 
aceendeu-se  a  primeira  vez  em  30  de  maio  de 
1817. 

São  justamente  celebradas  as  producções  do  ter- 
ritório de  Málaga  ,  particularmente  fructas  seccas  , 
batatas,  assucar  ,  algodão,  e  o  vinho  de  que  faz 
abunilanlcs  colheitas ;  modernamente  o  enriqueceu 
mais  a  aclimalação  da  cochonilheira  ;  a  canna  doce 
conimum  e  a  de  Otaiti  dão-se  como  na  America  e 
Índia  ,  e  do  mesmo  modo  varias  fructas  do  Novo- 
nuindo .  e  o  tamarindo ;  algumas  arvores  d'Afri- 
ca  medram  como  na  costa  fronteira.  Jiinte-sc  a  tu- 
do isto  a  fartura  e  delicado  sabor  do  pescado,  a 
brandura  do  clima  ,  a  actividade  do  commercio  c 
industria,  o  caracter  alegre  dos  habitantes,  e  achar- 
sc-ha  que  esta  cidade  é  das  privilegiadas  no  mun- 
do para  se  desfruetarem  os  encantos  da  existência. 


SaOlTOMIA  POLITICA. 

Considerações  sohre  n  Curso  d' Economia  Politica  do 
Sr.  Miguel  Chcvalier. 


QpALoiEn  que  a  causa  seja,  é  facto  que  se  observa 
hoje  na  Europa  um  crescimento  de  producção  ,  e 
uma  tendência  a  crescimento  ainda  maior ,  tanto 
na  industria  fabril ,  como  na  agricultura.  Desle  au- 
gmento  de  productos  era  cada  estado,  e  dos  mais 
essenciaes ,  nasce  o  ir  diminuindo  a  necessidade 
que  cada  um  poderia  ter  de  se  supprir  nos  alheios. 
K  desta  diminuição  commum  procedo  que  cada  po- 
vo vai  progressivamente  tornandu-sc  o  consumidor  , 
maior  e  mais  certo,  dos  seus  géneros  próprios,  agri- 
colas  ou  fabris.  Obrigado  cada  paiz  a  contar  [irin- 
cipalmentc  com  o  consumo  interno  ,  que  hade  lazer 
senão  engrandecer  o  horisonte  desse  consumo?  E 
eomo  hade  engrandece-lo  senão  aproveitando  todas 
as  faculdades  do  homem  ,  e  todos  os  produclos  do 
solo.'  As  faculdades  do  homem  de  que  maneira  ha- 
de aproveita-las  se  assim  como  as  emprega  na  cul- 
tura do  solo,  as  não  empregar  nas  artes  fabris;  eos 
productos  do  solo  se  do  mesmo  modo  que  destina  uma 
parte  delles  .lo  alimenlo  ,  não  destinar  outra  parte 
10  consumo  das  fabricas?  lima  nova  ollicina  que  se 
levanta  c  uma  nova  sabida  que  se  abre  aos  produ- 
<-los  agrícolas.  Uma  nova  terra  que  se  ara  é  um  no- 
vo mercado  que  se  franqueia  aos  artigos  de  manu- 
factura. Attende-se  ,  desta  sorte  ,  ás  diversas  apti- 
d<5es  do  homem  ,  occupando-as  a  todas ,  c  ás  preci- 
sões variadas  da  nossa  espécie,  crcando  objectos 
com  que  ellas  se  satisfaçam. 
Deste  cuidado  e  csludo ,  que  cada  nação  applica 


aos  seus  recursos  internos ,  deriva  o  empenho  com 
que  cada  qual  affasla  dos  seus  domínios,  para  que 
lhe  não  empeça,  a  concurrencia  estranha.  Tem  ,  na 
verdade,  sido  maléfico  em  muitos  cpsos,  a  muitas  em- 
prczas  ,  e  a  muitos  ramos  d'industria,  este  syslcma 
de  restricçõcs ,  esta  politica  repulsiva  :  e  não  se 
aponta  um  único  exemplo  de  ter  sido  proveitosa  a 
algum  paiz,  senão  caminha  escoltada  de  machi- 
nas  ,  de  capitães,  de  mcthodos  e  instrumentos  suc- 
cessivamente  aperfeiçoados,  de  muito  discernimento 
e  perseverança  :  prova  incontestável  de  que  são  es- 
tes ,  não  ella  ,  os  verdadeiros  motores  e  a  origem 
directa  de  todo  o  progresso  económico.  Mas  6  fora 
de  duvida,  que  tem  muitas  vezes  servido  de  auxi- 
liar áquelles  motores,  c  que  sem  esse  auxilio,  a 
intervenção  delles  seria  insuITliienle  ou  ineficaz.  Que 
sem  restricções  é  impossível  introduzir  a  industria 
fabril  em  alguns  paizcs  ,  ninguém  nega  :  afiirma-se 
todavia  que  as  fabricas  fundadas  cnm  o  favor  d'uin 
lai  aitificii)  abortam  c  são  darnuosas  á  riqueza  c 
[)rosperiilade  da  nação  que  as  protege.  AllirmatÍTa 
que  na  boca  das  que  vivem  da  exportação  dos  seus 
artefaclos,  e  portanto  suspeitas  e  interessadas,  é  ar- 
gumento de  mais  para  nus  convencermos — repito— 
que  sem  a  mediação,  não  digo  do  systcma  reslri- 
ctivo,  mas  de  restricções  temporárias,  é  impossível 
erigir  fabricas  e  sustenta-las  em  alguns  paizes. 

Oondemno  as  restricções  como  systema ,  como 
principio,  e  como  regra  geral  :  o  principio,  o  sys- 
lcma, a  regra  geral  opposta  —  a  liberdade  —  é  que 
é  verdadeira  e  genuina  —  a  liberdade  de  exercer 
qualquer  industria  ,  e  de  comprar  e  vender  ou  no 
paiz  ou  fura  delle.  Mas  para  ser  proficua  esta  li- 
berdade ,  não  hade  parar  no  arbilrio  absoluto  que 
corj  ella  se  concede  aos  productores  e  consuraido- 
dores  ,  a  uns  de  escolher  o  ramo  indnslrial  a  que 
queiram  dedicar-se  ,  a  outros  de  se  irem  prover  no 
mercado  qae  mais  lhes  convenha  que  é  sempre  o 
mais  barato.  Suppõe-se  sempre  que  productores  e 
consumidores  farão  uso  judicioso  desse  arbítrio  ,  e 
empregarão  ao  mesmo  temjio  meios  e  instrumentos 
produclivos  adequados;  porque  se  os  não  empre- 
garem, a  liberdade,  sem  este  adjutorio,  c  medida 
vaã  ,  faculdade  inulil.  O  que  se  comprehende  tão 
facilmente  ,  que  demonstra-lo  parece  superUuo. 

Posta  a  liberdade,  assim  enlendida  ,  como  regra 
e  systema,  os  limites  á  faculdade  de  produzir,  c  de 
comprar  evenderonde  sequeira,  constituem  a  exce- 
pção ;  de  maneira  que  tamanho  absurdo  vem  a  ser  ar- 
vorar a  excepção  em  principio  ,  e  as  restricções  em 
systema  ,  como  decidir  que  o  principio  ou  a  regra 
não  solTrc  excepções.  Os  que  attribnem  ás  restricções 
acreação  e  adiantamento  da  industria  fabril,  cahem 
n'um  erro  grosseiro  ,  se  estimam  de  nenhum  preço 
as  machinas  que  encurtam  as  despezas  do  fabrico  . 
abreviam  e  esmeram  o  trabalho  ,  os  capitães  que  o 
nutrem,  as  vias  de  communicação  outras  tantas  ar- 
térias, por  onde  circulam  os  produclos :  meios,  en- 
tre outros  ,  indispensáveis  e  eíTieacissimos  de  pro- 
ducção. Os  que,  ao  contrario  ,  reputam  absoluta- 
mente mallogradas  ou  prejudiciaes  as  restricções , 
rcluctam  contra  a  experiência  que  os  desmente  : 
mas  por  isso  mesmo  que  cilas  são  a  limitação  re- 
qiicr-se  mais  disccrnimcnlo  no  applica-las  ,  e  cor- 
re-se  maior  risco  de  abusar. 

Succede  umas  vezes  que  ao  desleixo  c  desprimor 
no  fabrico  interno  se  juntam  direitos  excessivos  de 
importação,  e  que,  convidado  por  estes  dois  incen- 
tivos ,  o  contrabando  atropclla  lodos  os  obstáculos  , 
c  inlroduz  por  suas  portas  travessas  os  producto» 


o  PANORAMA. 


2âl 


estrangeiros  cm  tanta  copia  que  as  fabricas  nacio- 
nacs  morrem  do  desamparo  c  inanirão.  Siiccede  ou- 
tras vezes  que  a  (alta  de  modelos  e  de  conciirrcn- 
cia  estranha  dcsestimula  c  descuida  o  fabricante 
nacional  a  ponto  que  o  consumidor ,  desgostoso  ou 
da  imperfeirão  da  obra  ou  da  exaggeração  do  pre- 
ço, chama  pela  interferência  do  contrabandista  ;  cha- 
niaracnlo  ao  qual  nunca  é  surdo  o  contrabandista. 
t  mister  bastante  tino  para  não  topar  neste  esco- 
lho. SIas  se  o  contrabando  annullando  a  acção  das 
restricrucs  pinle  matar  a  industria  fabril  ,  a  liber- 
dade absoluta  proscrcvcndo-as  não  será  igualmenlc 
assassina  ? 

Eu  disse  —  note-se  bem  —  que  o  contrabando  an- 
nulla  a  acção  das  rcstricções  ncsle  sentido  —  qitc 
elle  r  o  agente ,  por  cuja  intcrvctiíâo  entram  no  mer- 
cado nacional  os  artigos  estrangeiros ,  que  se  deseja- 
vam afugentar  do  mesmo  mercado.  Mas  se  eu  atten- 
lo  na  causa  primaria  que  traz  a  esse  mercado  aqucl- 
les  artigos,  então  digo  que  no  menos  preço  dos  ver- 
dadeiros motores  da  industria  fabril  ,  está  ,  na  rea- 
lidade ,  a  origem  da  desvalia  dos  productos  nacio- 
naes  ,  e  da  voga  dos  que  o  não  são.  Considerações 
simples  e  evidentes  a  mostrar  por  um  lado  que  os 
instrumentos  produclivos  são  a  condição  essencial 
da  existência  das  fabricas,  e  que  as  rcstricções  não 
passam  de  expediente  ,  necessário  certamente  ,  mas 
occasional  e  temporário  ;  e  por  outro  lado  ,  que  se 
estas  não  são  recursos  como  os  outros  ,  genéricos  e 
permanentes  ,  nem  por  isso  se  pôde  negar  a  sua  in- 
fluencia no  estabelecimento  e  progresso  das  fabri- 
cas ;  pois  a  confirma-la  basta  o  impulso  uuinen- 
so  que  deu  ás  de  França  o  bloqueio  continental , 
que  vedando  ás  mercadorias  inglezas  a  entrada 
em  França  ,  na  Alemanha  ,  e  na  Itália  ,  abriu  lo- 
do este  vasto  mercado  aos  productos  da  indus- 
tria franceza.  E  se  me  oppozerem  que  esse  impul- 
so foi  devido  á  abolição  das  mestrias  e  regulamen- 
tos que  entorpeciam  o  desenvolvimento  da  mes- 
ma industria  ,  confessatei  que  é  verdade ,  mas 
que  o  bloqueio  continental  concorreu  juntamente 
com  aquella  abolição,  cada  qual  por  estylo  c  grau 
differente  ,  para  tamanho  progresso.  Accrcscentarei 
que  os  obstáculos  que  esse  bloqueio  póz  á  importa- 
ção do  trigo  estrangeiro  na  Inglaterra  forçaram  a 
cultivar  as  terras  ,  aguilhoando  ,  como  confessa  um 
dos  mais  distinctos  economistas  daquella  nação ,  a 
agricultura  ingleza  a  ponto  de  refazer  a  distancia 
que  tinha  perdido,  e  marchar  em  linha  com  as  suas 
rivacs.  E  se  me  instarem  que  sommados  os  ganhos 
das  nações  que  lucraram  ,  e  as  perdas  das  que  per- 
deram com  o  mesmo  bloqueio ,  o  resultado  mostra 
uma  diminuição  na  riqueza  universal  ,  concederei 
de  barato  esse  resultado  :  mas  lembrarei  que  cada 
povo  ,  como  associarão  separada  de  outros  povos  , 
avalia  a  bondade  das  suas  medidas  económicas  pe- 
lo interesse  que  delias  lira  ,  e  não  pelo  damno  que 
as  mesmas  medidas  causam  ou  podem  causar  a  ou- 
tras nações.  E  que  se  quando  um  paiz  medra  em 
prosperidade  á  custa  de  outro  paiz  e  com  detrimen- 
to delle  ,  a  7nassa  geral  da  riqueza  não  augmenta  e 
até  pude  decrescer  ,  ainda  que  fora  melhor  para  o 
género  humano  que  o  beneficio  alcançado  por  um 
fosse  de  natureza  a  communicar-sc ,  mais  ou  me- 
nos ,  a  todos  os  outros  ,  como  succede  nos  aperfei- 
çoamentos industriacs,  nem  por  isso  se  hade  dizer 
que  o  estado  que  se  fortalece  c  lucra  accidentalmen- 
le  com  o  abaixamento  de  outro  eslado  ,  deixe  de 
fortalccer-se  e  lucrar,  como  lucrou  iVança  ao  abii- 
gu  do  bloqueio  cuntineDlal. 


Ê  que  os  aperfeiçoamentos  industriaes  são  con- 
quistas do  homem  sobre  a  natureza  ,  e  os  seus  se- 
gredos —  conquistas  com  que  a  humanidade  apro- 
veita ;  em  quanto  as  de  um  povo  sobre  outro  po- 
vo ou  seja  do  território  arrancado  violentamente 
pelas  armas,  ou  de  mercados  havidos  com  a  mes- 
ma violência  ,  e  resguardados  por  linhas  de  alfan- 
degas, são,  como  os  roubos  e  os  ganhos  ao  jogo  ou 
pela  fraude,  mera  transferencia  de  riqueza  das  mãos 
do  espoliado  para  as  do  cspoliador.  Ksle  utilisa  , 
mas  na  aciepção  económica  e  rigorosa  do  vocábulo. 
não  produ:  ;  porque  a  [)roducção  pertence  somente 
ao  trabalho  industrioso,  e  a  oulra  ordem  de  luctaí 
diversas  das  luclas  niarciaes  ou  politicas.  È  que  na 
csphera  da  economia  politica  o  homem  combate  so- 
mente com  a  matéria  c  o  mundo  exterior  ,  e  na  cs- 
phera da  politica  c  da  guerra  o  homem  combate 
com  os  seus  similhantes.  Estes  combates  differen- 
çam-se  ,  estas  espheras  estão  separadas :  mas  não  v 
tal  a  separação  que  no  caso  de  se  julgar  indispen- 
sável uma  guerra  cujas  armas  sejam  as  pautas,  e 
baluartes  as  alfandegas,  não  releve  convocar  a  con- 
selho a  scicncia  económica  para  que  ella  opine  ate 
onde  se  ha  de  levar  essa  guerra  ,  e  até  que  ponto 
se  ha  de  prolongar  ,  para  que  d'ahi  colha  um  po\o 
vantagens  análogas  ás  que  os  meios  económicos  «■ 
os  instrumentos  produclivos,  pela  sua  iudole  huma- 
nitária, liberalisam  a  todos  os  povos.  O  desideran- 
dum  da  sciencia,  a  theoria  das  sabidas  e  mercados 
é  substituir  a  estes  artificios  administrativos  os  agen- 
tes da  industria  ,  e  Irocar  estas  manobras  do  egoís- 
mo nacional  por  doutrinas  largas  e  sociacs  de  fra- 
ternidade entre  todas  as  nações  ,  e  por  um  regime 
de  franqueza  e  liberdade  commercial.  Mas  é  forço- 
so remetter  ao  futuro  a  resolução  completa  d'esía 
questão  ,  já  que  o  estado  presente  a  não  compade- 
ce ,  e  deixar  ás  nações  grandes  edisciplinadas  nas 
artes  da  industria  a  iniciativa  em  reformas  tão  ex- 
tensas ,  e  mudanças  tão  prufundas. 

Porque  temos  já  interessados  nas  fabricas  uma 
porção  considerável  de  braços  e  de  valores.  Porque 
ellas  podem  convocar  os  capitães  que  se  acham  emi- 
grados em  bancos  estrangeiros.  Porque  afiançam  á 
agricultura  novo  consumo  tanto  dos  géneros  alimen- 
tícios, como  das  matérias  primas.  Porque  a  marcha 
da  producção  na  Europa  ,  e  a  exjieriencia  de  caía 
nos  mostra  ser  o  reino  o  melhor  o  o  principal  con- 
sumidor dos  nossos  productos  agrícolas.  Porque  não 
deparámos  na  exportação,  que  cm  laes  circunisían- 
cias  podemos  fazer,  equivalente,  que  nosresarça  da 
perda  das  fabricas.  Porque  ellas  manifestam  ten- 
dência muito  positiva  a  propagar-sc.  —  Por  estas 
que  nos  parecem  rasões  cabaes  ,  sem  amontoar  ou- 
tras ,  concluimos  que  havemos  mister  industria  fa- 
bril tanto  como  precisámos  vestuário  e  mubilia.  A 
nossa  opinião  n'esta  matéria,  é  tão  arreigada,  a  nos- 
sa convicção  tão  profunda  ,  e  esta  necessidade  na- 
cional nos  parece  de  tal  modo  clara  e  patente  que. 
cm  verdade,  olhos  que  a  não  vejam,  entendimentos 
que  a  repugnem,  consciências  sinceras  que  a  resis- 
tam, cusla-nos  a  conceber  como  as  haja.  .\ão  é  por 
antepormos  as  artes  fabris  á  agricultura  ^ — -preferen- 
cia cerebrina  e  insensata,  e  simulação  de  rivalidar- 
de  onde  o  que  deve  haver  é  consorcia.  Não  ó  porqiw; 
podem  subsistir  GOOO  habitantes  quando  se  dedicam 
á  manufactura  na  mesma  kgua  quadrada  em  que 
apenas  podem  alimenlar-sc  ISOO  quando  se  empre- 
gam na  lavoira  :  verdade  eslatistica  compleíaraenie 
inútil,  ao  menos  por  longos  annos  para  nós,  —  cujo 
terreno  sobra  tajito  a  população.  Não  I  £  que  quando 


252 


O  PANORAMA. 


eorreumpaiz  agricultado,  ©observador  não  se  con- 
tenta com  a  pompa  e  o  verdor  dos  campos  :  admira  os 
dons  da  natureza  na  vegetação;  mas  quer  também 
admirar  os  milagres  do  engenho  no  interior  das  fa- 
bricas. N'cstes  pequenos  recintos  da  industria  — 
pequenos  em  proporção  dos  vastos  laboratórios  d.i 
terra  —  é  o  trabalho  muito  maissolerte,  a  arte  mui- 
to mais  esmerada  ,  a  producção  muito  mais  activa  , 
e  é  n'elles  que  tem  o  seu  verdadeiro  assento  o  im- 
pério do  homem.  Quantos  recebem  lá  oscilo  social 
quantos  productos  do  solo  e  da  creação  que  sem  es- 
se sèllo  nenhum  valor  e  quasi  nenhum  préstimo  te- 


riam ,  as  madeiras ,  as  laãs  ,  o  linho  ,  o  ferro  ,  c  o 
algodão !  lembra-rae  sempre,  não  sei  porque  ,  sem- 
pre que  ouro  Inglaterra  aconselhar-nos  a  nós  e  «o 
resto  do  continente  que  desistamos  da  industria  fa- 
bril, aquelle  impagável  Roberto  de  Limoges  ,  bispo 
de  Litchfield  que  pelos  annos  de  1071  a  1072  pu- 
blicou ura  decreto  prohibindo  aos  clérigos  saxões  o 
uso  dos  alimentos  nutrientes,  c  dos  livros  instru- 
ctivos,  com  receio,  diz  o  historiador,  de  que  o 
bom  alimento  e  a  scicncia  lhes  dessem  demasiada  far- 
ia c  atreiimenlo  contra  o  seu  bispo! 

_  (ContinuaT-se-ha.J 

A.  d' O.  Marreta. 


A  ASSUMPÇÃO  DE  N.  S.r-^  —  SEGUNDO  A  GRAVURA  DE  FINIGUERRA. 


O    PFIMEIBO    IMPBESSOn    DE    GRAVIRAS    EM    METAL. 

Na  epocha  do  renascimento  das  artes  na  llalia  não 
se  limitavam  os  ourives,  (dino  ao  pre.soute  ,  a  fa- 
bricar trastes  de  ouro  e  pr.il.i  para  os  usus  ordin.i- 
rios  da  vida  ,  mas  desciiliavam  ,  esculpiam  ,  cinze- 
lavam e  gravavam  ,  fazendo  obras  de  mui  variada 
espécie  e  destinos  ,  para  o  que  modelavam  em  ce- 
ra as  peças  que  intentavam.  A  nossa  inlinção  ago- 
ra é  considera-los  no  exercício  do  gravadores  nesse 
tempo.  —  Tendo  traçado  o  seu  deliiixo  a  ponção  e 
buril  n'uma  chapa  metálica,  usavam,  para  que  so- 
brcsahisscm  as  figuras,  linhas  cruíadas  nos  fundos, 
e  alguns  cortes  nos  logares  sombreados  ,  cujo  elfei- 
to  era  dar  mais  esplendor  aos  ornatos  de  prata  em 


relevo.  Como  este  artefacto  principiou  na  Itália  , 
chamaram  ;i  operação  niellarc  (esmaltar]  ,  donde 
veio  a  palavra  nicllo.  Abrindo-se  qualquer  diccio- 
nario  italiano  \v  basta  o  excellente  de  Joaquim  Jo- 
sé da  Costa  e  .Sa]  achar  se-ha  que  nicllo  significa 
esiniilte  feito  em  ouro  ,  ou  prata  ,  ou  (/uaiqucr  meldl. 
Mas  como  esta  voz  se  applicou  indifterentemente  a 
quatro  cousas,  que  não  obstante  a  reciproca  e  in- 
tima relação  não  devem  confiindir-se  ,  daremos  al- 
gumas explicações.  A  principal  c  a  composição  que 
furmava  o  esmalte  preto  que  apontámos.  Quando  o 
artilice  queria  esmaltar  [empregaremos  sempre  es- 
te verbo]  a  obra  ccmcluida  a  buril  ,  deitava  n'um 
cadinho  cobre  ,  chumbo  ,  enxofre  ,  liorax  ,  até  que 
SC  vitrificassem ,  decantava  o  inixto  e  deixava-o  es- 


o  PAlNORAi^lA. 


253 


íriar  :  pisava  depois  a  massa  vitroa  rhcgando-a  a 
pó  íinissimo ;  com  cxlrcnia  prciaiirão  o  esparzia 
sobre  as  partes  gravadas  <la  Inmiiia  de  praia  que 
perlendia  esniiiltar  :  fcilo  n  que,  e\punlia  a  ciiapa 
ao  lume  ,  dirigindo  para  ella  a  ciiamnia  por  meio 
de  um  iiequeno  folie  ,  operarão  que  hnjc  se  faria 
com  um  mirarico.  Posto  no>auienle  cm  fusão  o  es- 
malte adlicria  ao  metal  seg;iraiulo-sc  nas  miiiiinas 
escabrosidades  da  gravura  :  esfriada  a  lamina,  pas- 
sava-se  primeiro  com  a  pedra  pomes,  depois  com 
malcriaes  mais  brandos  e  por  fim  com  a  mão  so- 
mente, até  ficar  completamente  burnida. —  De  tem- 
pos remotos  foi  conhecido  este  mclhodo  em  Fran- 
ça ;  c  iJucange  no  Glossário  o  descreve  ,  ainda  que 
brevemente. 

Mr.  Dichcsne  sénior ,  conservador  do  gabinete 
de  estampas  na  biblioibcfa  real  em  l'arís  ,  publi- 
cou em  t82(>  o  Enmin  sabre  as  esmalles  ,  onde  ob- 
serva q\ic  não  permittindo  aquella  operação  reto- 
que ou  repar.ição  ,  era  preciso  que  o  artífice  esti- 
vesse bem  certo  de  que  o  trabaibo  eslav;i  bem  con- 
cluído antes  de  lançar  a  composição  sobre  o  me- 
tal ,  por  isso  estava  na  precisão  de  tirar  provas  re- 
petidas para  avaliar  o  progresso  da  gravura  ,  va- 
lendo-se  ao  principio  d'uin  barro  fino  e  compacto 
i[\\c  absorvia  facilmente  a  tinta  negra  e  espessa 
com  que  havia  procurado  encher  os  traços  ;  e  as- 
sim extrahinm  provas  do  seu  trabalho:  mas  estes 
moldes  tinham  o  inconveniente  de  serem  mui  que- 
bradiços ,  e  então  occorrcu  fazereni-nos  de  enxo- 
fre assentado  sobre  o  barro.  —  .\gigantado  foi  o 
passe  de  perfeição  quando  em  vez  destas  segundas 
se  conseguiu  tirar  provas  em  papel  :  viu-se  por  tal 
occasião  a  primeira  estampa  ,  e  estava  descoberta 
a  industria  de  imprimir  com  uma  chapa  de  metal 
gravada.  Sem  entrarmos  em  disputas  de  preferen- 
cia ,  é  fora  de  duvida  que  similhante  arte  teve  por 
berço  Florença  ,  no  meado  do  século  15.° — Já  Va- 
sari  tinha  referido  que  pondo  ao  acaso  uma  mulher 
a  trouxa  da  roupa  ainda  molhada  sobre  o  mostra- 
dor da  loja  de  Thoinaz  Finiguerra  ,  afamado  ouri- 
ves florentino  ,  sem  reparar  que  a  deixara  em  ci- 
ma de  uma  chapa  prompta  para  o  esmalte  do  que 
tratámos  ,  ficou  attonita  quando  ao  termo  de  algum 
tçnipo  indo  buscar  o  alado  viu  com  a  mnior  exac- 
ção  reproduzido  todo  o  lavor  da  gravura  na  roupa 
húmida.  Esla  casualidade,  de  que  os  homens  vul- 
gares não  fariam  caso,  despertou  a  atlenção  do  en- 
genhoso Finiguerra  ,  que  repetindo  o  ensaio  em  te- 
la branca  rellecliu  que  o  papel  daria  o  mesmo  ef- 
feito  ,  e  que  aperfeiçoando  mais  e  mais  o  descobri- 
mento chegaria  a  sujeitar  por  meio  de  um  cilindro 
uma  folha  de  papel  sobre  a  sua  chapa  gravada  ,  e 
assim  alcançaria  exacta  copia  delia  :  a  origem  da 
arle' de  estampador  estava  manifesta. 

Entre  os  objectos  destinados  ao  culto,  nos  quaes 
osouri\es  exercitavam  seu  talento,  devem  ter  men- 
ção distincta  as  laminós  da  pax  tecum  [a  paz  do 
Senhor  seja  comligo]  :  existia  uma  destas  obras  de 
Finiguerra  ,  que  apesar  da  falta  de  nome  e  marca 
era  authenlica  ,  porque  nos  archivos  da  syndicatu- 
ra  de  Florença  constava  o  preço  porque  fora  paga, 
e  que  representava  a  Assumpção  da  St.""  Virgem  ; 
linha-a  o  museu  daquella  cidade,  c  fora  conside- 
rada antigamente  obra  tão  notável  qne  delia  tira- 
ram moldes,  um  dos  quaes  chegou  a  nossos  dias,  e 
foi  comprado  cm  Inglaterra  ha  vinte  e  sinco  annos 
por  230  libras  esterlinas.  O  achado  de  uma  prova 
cm  papel  da  mesma  lamina  deu  maior  evidencia 
as  conjecluras  antecedentes ,    resolvendo   ao  mes- 


mo tempo  a  qneslão  de  saber-$e  qtiem  foi  o  in- 
ventor da  impressão  de  gravuras  feitas  em  metal. 
A  bibliotheca  de  Paris  possuia  este  monumento  ar- 
tístico, sem  lhe  conhecer  a  valia,  até  que  pelo  Cm 
de  1797  o  abbade  /ani  o  reconheceu  e  assignalou  ; 
«I)'enlão  para  cá  [diz  Duchesne]  todos  os  amantes 
das  artes ,  que  visitam  aquclle  gabinete  dVstampas 
admiram  esta  prova  da  primeira  estampa  impressa 
por  Thomaz  Finiguerra  em  14Sí2.»  —  (lorn  eITeito  a 
obra  original  é  digna  da  atlenção  e  exame  dos  mes- 
tres.—  Representa,  como  dissemos,  a  /lííirtíi/>fâo  ; 
quanto  aos  anachrtjnismos  não  fallemos  ,  que  lodos 
sabem  quão  frequentes  os  commcltiant  os  engenhos 
dessa  epocha  :  por  exemplo  ,  Jesu-Christo  tem  um 
barrete  como  o  que  trazia  o  Doge  di;  Veneza  ;  e  os 
mais  que  se  notarão  pela  seguinte  e  succinla  dcs- 
cripção.  —  Jcsu-Christo  colloca  a  coroa  sobre  a  ca- 

j  beça  da  SS."^  Virgem  ,  (jue  se  inclina  com  os  bra- 

j  ços  cruzados  sobre  o  peito:  estas  duas  imagens  es- 
tão n'um  throno  todo  sustentado   por  anjos  ,   e  na 

I  parte  superior  ha  mais  quatro  pegando  n'uma  tar- 
ja em  que  se  lo  :  Assumpla  cst  Mdría  in  cwlum,  airj 
excrcitus  angcltirum.  IVo  primeiro  plano  estão  ajoe- 
lhados St.°  Agostinho  e  St."  Ambrósio,  um  de  bá- 
culo e  outro  com  as  mãos  cruzadas  ;  seguem-se  al- 
gumas santas,  dislinguindo-se  pela  roda  St.^Catha- 
rina  e  pelo  cordeiro  St."  Igncz  :  entre  outros  mui- 
tos santos  conhece-se  o  precursor,  S.João  Baptista, 
vestido  de  pelles  e  empunhando  uma  cruz. 

Por  vir  a  propósito  da  representação  da  prece- 
dente gratura  damos  a  seguinte  passagem  de  um 
dislincto  cscriptor  nosso  ,  f.illando  da  solemiiidade 
que  celebra  a  igreja  no  dia  lo  do  corrente.  —  "A 
festa  da  .-Vssumpção  e  coroação  triuinpbante  ,  diz  o 
P."  Soares  ,  que  é  mui  própria  da  Virgem  ,  e  com 
excelleniMa  entre  todas  suas  festas  ,  porque  repre- 
senta sua  gloria,  premio,  e  triunipho  ;  e  ó  de  tan- 
ta dignidade  que  ainda  que  seja  de  Direito  positi- 
vo se  funda  proximamente  ou  quasi  necessariamen- 
te se  deduz  do  Divino.  Enlende-se  que  foi  instituí- 
da pelos  Apóstolos;  pelo  menos  é  certo  ser  anti- 
quíssima na  primitiva  Igreja  ,  como  consta  de  Lo- 
uiilias  dos  santos  padres,  principalmente  gregos.  O 
papa  S.  Damazo,  portuguez ,  da  illustre  villa  de 
Guimarães,  com  aquellc  celestial  accordo,  com  que 
ordenou  tantas  cousas  na  Igreja  ;  como  foi  a  trasla- 
dação da  Bíblia  por  S.  Jeronymo  ,  c  a  repartição 
dos  psalmos  pelo  mesmo  santo  ,  para  se  rezarem 
nos  dias  da  semana  e  horas  do  dia  ,  e  que  no  fim 
delles  se  dissesse  Gloria  Palri  ,  ífc.  ,  e  se  cantas- 
sem alternalivarnente  a  coros  em  toda  a  Igreja  ;  .  .  . 
e  com  que  ordenou  que  no  princípio  da  Missa  se 
dissesse  a  confissão  e  depois  do  Evangelho  o  Credo 
aos  domingos  e  alguns  dias  de  festa  ;  com  o  mes- 
mo accordo  mandou    que   de  preceito  se  celebrasse 

!  esta  festa  santíssima  ao  decirao-quinto  d'agoslo  em 
que  a  Senhora  passou  desta  vida  ;  esta  antiguidade 
lho  dá  Jacob  Palmcrio  ;  e  porque  na  observância 
havia  menos  cuidado  a  applicou  depois  o  imperador 
Ãíauricio  ,  como  escreve  Aicephoro  e  declara  Baro- 
nio.  —  A.  de  Sousa  de  Macedo.  Eva  eAve,  part.  Vi.' 


O  BllAZElRO. 
III. 

A  p.AiMtA  desempenhou  a  sua  palavra  ,  porque  pou- 
co tempo  depois,  em  3  d'oulubro  de  1611  ,  mor- 
reu de  repente  na  llor  da  idade  e  no  maior  esplen- 
dor da  sua  belleza.  D.  Fernando  lhe  havia  precedi- 


254 


O  PANORAMA. 


(.lo;  também  este  morreu,  como  seu  irmão  mais  ve- 
lho, pelas  mãos  do  algoz;  este  que  era  o  ultimo 
ramo  dos  Penacerradas.  Senhor,  podíeis  tè-lo  sal- 
vado, mas  nãoquizestes.  Recusastes  perdoar  ao  cul- 
pado ,  apesar  da  rainha  vo-lo  implorar  de  joelhos  ; 
e  fizestes  hem  em  dar  ura  alto  exemplo  de  profun- 
da veneração  ;is  leis  da  etiqueta  que  são  leis  do 
reino.  V.  M.  sem  duvida  se  lembrou  então  que  ten- 
do lamentado  a  sorte  de  alguns  condemnados  pela 
santa  inquisição,  V.  M.  não  tinha  recusado  dar 
uma  porção  do  seu  próprio  sangue  para  ser  quei- 
mado pelo  algoz,  em  penitencia  das  sacrílegas  la- 
grimas que  havia  derramado.  Pensáveis  sem  duvi- 
da quedevieis  seguir  sempre  avante  tão  nobre  car- 
reira ,  apegado  aos  usos  de  vossos  maiores  ,  agora 
confiados  ás  vossas  reaes  mãos.  Senhor,  foi  uma 
sublime  lição  para  os  vossos  descendentes  ;  e  eu 
sinto  que  o  mais  próximo,  o  príncipe  das  Astúrias, 
não  esteja  aqui  presente  para  enthesourar  as  minhas 
palavras,  e  para  aprender  como  algum  dia  deve 
aproveitar  estes  exemplos  que  V.  M.  lhe  deixa. 

(I  E  que  foi  feito  do  respeitável  conde  velho,  di- 
gno de  toda  a  compaixão?»  —  perguntou  a  prin- 
ceza. 

'(Lamentais  o  conde ■ — tornou  o  monge  em  tom 
severo. — Não  tendes  rasão  ,  senhora.  O  velho  jul- 
gava que  bastava  ensinar  seus  filhos  de  tal  modo 
que  nunca  largassem  a  vereda  da  honra  ,  da  virtu- 
de ,  e  da  gloria  ;  e  que  se  elles  soubessem  caçar  o 
javali  e  o  veado  ,  montar  um  cavallo  bravo ,  e  ma- 
nejar a  espada  ,  teriam  todos  os  conhecimentos  ne- 
cessários a  um  fidalgo  castelhano  ;  mas  isto  não  é 
bastante:  não  c  assim  ,  senhor?  Um  nobre  caste- 
lhano deve  mais  que  tudo  saber  a  etiqueta  ,  código 
severo  que  contém  a  todos  dentro  nos  limites  da 
sua  obrigação  e  dos  seus  direitos  ;  que  assegura  <is 
pessoas  reaes  a  veneração  que  em  todas  as  situa- 
ções da  vida  lhe  deve  ser  tributada.  Por  isso  o  con- 
de foi  castigado  no  que  peccou.  Como  Rachel  ,  não 
se  quiz  consolar  de  que  seus  filhos  tinham  deixado 
de  existir  ;  despediu  todos  os  criados  ;  e  encerrnu- 
se  só  no  seu  cnstello  ,  onde  morreu  de  magoa.  Es- 
ta é  a  rasão  porque  o  castello  velho  não  é  habitado 
e  cabe  em  ruínas.  Deus  tenha  misericórdia  dos  seus 
habitantes  finados. — Amni  —  disseram  todos;  —  e 
(tme/í  —  disse  tamlieni  Filíppe  3." 

Fr.  Ambrósio  callou-se  ,  e  os  circumstantes  fica- 
ram cm  fúnebre  silencio.  Todos  os  olhos  se  volta- 
ram para  elrei  ,  que  se  mechia  na  cadeira,  como 
quem  queria  dizer  alguma  cousa  ;  mas  a  língua 
secca  c  os  beiços  trémulos  não  lhe  pcrmíltíam  fal- 
tar. O  dia  ia  já  acabando,  c  as  cortinas  de  damas- 
co apenas  deixavam  passar  uma  luz  pallida  ,  cujos 
amortecidos  raios  se  misturavam  com  o  vermelho 
reflexo  do  brazeiro.  Com  tal  claridade  ,  todos  estes 
grandes  d'llespaiiha  ,  com  seus  trajos  negros  e  ros- 
tos íinmoveís  ,  o  velho  monge  com  a  cara  enruga- 
da e  severa,  em  grupos  em  roda  da  cadeira  doi- 
rei, pareciam  uma  congregação  de  espectros  ro- 
deando um  moribundo. 

De  repente  tocou  um  sino  na  capclla.  —  «São 
ave  marias  —  disse  Fr.  Ambrósio.  —  Aetiqueta  exi- 
ae  que  todos  agora  saiam  da  camará  d'elrei,  exce- 
l>to  os  que  lem  qualidade  ccciesíastíca  ,  a  fim  de 
<Iiir  elrei  possa  fazer  as  suas  orações.» 

O  mordomo-mór  deu  signal  levaiitando-se  ,  e  lo- 
dos os  presentes  seguiram  o  seu  exemplo,  e  silen- 
ciosos despejaram  a  sala.  A  príneeza  Isabel  foi  a 
única  que  antes  de  se  retirar  se  chegou  a  elrei  pa- 
ra lhe  beijar  a  mão.   Afigurou-se-lhe  que  a  mão  de 


rei  procurara  a  sua  para  a  deter.  Quando  todos  ha- 
viam sabido  ,  entrou  um  guarda-roupa  para  accen- 
der  as  vellas  de  um  candieíro  de  braços :  tornou 
logo  a  sahir  ,  e  cerrando  a  porta  ,  Fr.  Ambrósio ,  o 
pobre  monge  de  S.  Jcronymo  ,  se  achou  só  com  o 
omnipotente  rei  das  Hespanhas  e  de  ambas  as  ín- 
dias. 

«Senhor — disse  Fr.  Ambrósio  com  profundo  aca- 
tamento ,  puchando  pelo  seu  breviário  —  apraz  a 
V.  M.  pór-se  de  joelhos?  Eu  lerei  as  orações  em 
voz  alta.  » 

«Meu  reverendo  padre  —  tornou  Filíppe  3.°,  le- 
vantando-se  com  custo  —  njudai-me  para  que  eu 
possa  fazer  as  minhas  devoções  :  estou  muito  fra- 
co. » 

«Senhor,  é  uma  grande  honra  que  V.  M.  faz  a 
um  pobre  monge  ,  mas  está  no  seu  poder.  Quando 
elrei  D.  Filíppe  2.°,  vosso  pai  de  saudosa  memo- 
ria ,  sentiu  approxímar-se  do  seu  fim  ,  e  se  refu- 
giou numa  cella  do  nosso  convento  do  Escuria! , 
que  desde  então  é  conhecida  pela  denominação  de 
camará  da  morte  d'elrei,  sempre  tinha  ao  pé  da 
sua  cadeira  ou  do  seu  leito  um  dos  nossos  irmãos 
para  o  dirigir  nas  suas  praticas  religiosas.» 

«Mas  —  exclamou  elrei  parando  na  sua  penosa 
ida  para  o  genuflexório  —  eu  ainda  não  estou  tão 
adiantado  como  meu  pai  ;  tenho  só  quarenta  e  três 
annos  ;  nesta  idade  ainda  me  posso  considerar  mo- 
ço ;  c  se  a  mão  de  Deus  tem  pesado  muito  sobre 
mim  ,  e  me  tem  castigado  este  inverno  com  doen- 
ças graves,  agora  acho-me  consideravelmente  me- 
lhor: os  médicos  tem-me  dito  que  estou  em  plena 
convalescença.  A  primavera  está  á  porta  ;  e  a  pri- 
mavera para  mim  é  saúde  e  nova  vida.  Já  os  jar- 
di.is  de  Aranjuez  estão  era  flor,  como  me  dizem  ; 
os  jardins  de  Aranjuez  me  estão  esperando.  Podeis 
crer  ,  reverendo  padre  ,  que  se  eu  quizesse  já  hoje 
para  lá  ia.  » 

«Senhor,  V.  M.  é  omnipotente  e  só  a  Deus  de- 
ve conta  das  suas  acções  ;  mas  o  palácio  de  Aran- 
juez é  muito  longe  de  Madrid  ,  c  a  jornada  cança- 
ria  a  V.  M.  O  palácio  do  Escurial  é  muito  mais 
perlo,  e  também  lá  ha  bellos  jardins.  » —  «O  Es- 
coriai—  disse  elrei  levantando  a  voz  com  um  ter- 
ror inslinclivo — lá  não  ha  senão  túmulos.» 

«Otempo  passa;— disse  friamente  Fr.  Ambró- 
sio—  já  ha  muito  leini>o  que  deram  as  ave  marias. 
V.M.  digua-se  ajoelhar?  aqui  está  o  genuflexório.» 
—  «Ajudai-me,  reverendíssimo.»  —  Elrei  com  o 
soccorro  do  monge,  postoque  com  custo,  havia  ajoe- 
lhado na  almofada  de  vclludo,  c  o  monge  lhe  per- 
giinlou  se  devia  começar  as  orações.  —  «  Abri  o 
vosso  breviário  ao  acaso,  qualquer  reza  é  agradá- 
vel a  Deus,  me  diz  o  meu  confessor.  —  È  um  psal- 
mo  ;  cu  lerei  o  primeiro  verso,  V.  M.  pôde  repe- 
li-lo.—Então  principiou  o  monge  com  voz  solem- 
iie  o  primeiro  verso  do  psalmo  50  : 

u Misercrc  mei  Deus  ,  sucundum  matjnain  misericoi- 
iliíim  tutim. »  Elrei  olhou  para  o  monge  com  ar  es- 
[)avorido,  mas  repeliu  as  palavras  sagradas  com  voz 
tremula.  O  monge  leu  o  seguinte  verso  ainda  com 
maior  expressão  : 

«  lU  scrnndum  viulliludiíinn  miscrationnm  íuarum 
dele  inHjuitatcm  mcam.  » 

Msa — interrompeu  elrei  —  este  psalmo  é  um  dos 
sete  penitenciaes  ,  que  se  rezam  á  cabeceira  dos 
moribundos. » 

«Senhor  —  respondeu  Fr.  Ambrósio  —  executei 
as  ordens  de  V.  .M.  :  abri  o  meu  breviário  ao  aca- 
so.  Se  nisto  pequei,    mereço  desculpa  ;    porque  os 


o  PANORAMA. 


255 


moniíPS  da  nossa  ordem  não  estão  cosUimados  a  es- 
tar diante  dos  reis  vivos,  mas  só  de  reis  mortos  ou 
moribundos.» 

«  liem  ;  —  disse  seccamentcFIlippe  3.°  —  seja  co- 
mo for  ,  as  miiilias  pernas  ainda  não  estão  bastante 
fortes  para  poder  estar  muito  tempo  nesta  posição. 
Ajudai-me  a  levantar;  quero  tornar  a  sentar-me.» 

Seguiu-se  um  momento  de  silencio.  Em  quanto 
eirei  se  tornava  a  sentar  não  pôde  deixar  de  olhar 
cora  pavor  para  o  ancião  ,  que  lhe  dava  a  ajuda  do 
seu  braço,  procurando  na  physionomia  do  monge 
uma  recordarão  remota  .  um  si^nal  fugitivo  de  co- 
nhecimento, que  vislumbrava  diante  da  sua  imagi- 
nação. 

Assentado  elrci,  o  monge  inclinou-se  com  a  mais 
profunda  submissão,  e  dispunha-se  a  sahir. 

«Ficai  —  disse  elrei  com  vivacidade; — para  on- 
de ides?» 

«Senhor,  permitti  que  eu  me  retire  da  vossa 
presença :  bem  tenho  notado  que  tive  a  desdita  de 
lhe  desagradar. » 

«Ficai;  já  ha  muito  tempo  que  estais  no  conven- 
to de  S.  Lourenço?  —  Sim,  meu  senhor,  já  ha 
muito  tempo.  —  Conhecestes  porventura  o  conde  de 
Peiiacerrada ?  éreis  seu  amigo  ou  seu  parente?» 

«Senhor,  o  conde  de  Peiiacerrada  era  um  inimi- 
go d'elrei  ,  um  desprezador  ousado  das  leis  da  eti- 
queta. Deus  me  defenda  de  lodo  o  contrato  com  os 
inimigos  d'elrei,  que  menoscabam  as  leis  sagradas 
da  etiqueta. » 

Filippe  3.°  passou  a  mão  pela  testa  ,  como  quem 
accorda  de  um  sonho  Icrrivel ,  e  acha  que  só  foi 
sonho  ;  e  disse  cora  alTabilidade  ,  quasi  timorato  : 
<t  Reverendíssimo ,  credes  que  o  Juiz  Supremo  al- 
gum dia  me  pedirá  conta  do  sangue  dos  dois  jo- 
vens ?  » 

«Senhor,  a  solução  desse  escrúpulo  pertence  só 
ao  padre  Aliago  ,  vosso  confessor.  —  Perguntar-lho- 
liei  :  u  — e  depois  o  rei  continuou  :  «  Eu  estranho- 
rae  ;  o  breve  espaço  para  o  oratório  deve-me  ter 
caceado,  porque  ainda  agora  estava  todo  gelado  , 
e  agora  sinto-me  alirazado.  Vede  como  o  fogo  arde 
;io  brazciro ;  não  achais  a  casa  insuportavelmente 
quente?» 

«Senhor,  eu  estou  velho  ;  nos  meus  annos  o  san- 
gue já  está  gelado;  e  não  sinto  o  que  V.  M.  diz.» 

«Isto  é  extraordinário»- — disse  elrei  em  voz  bai- 
xa ,  e  inclinou  a  cabeça  como  se  se  sentisse  ador- 
mecer. 

Entretanto  cada  vez  mais  se  incendiava  o  brazei- 
ro  ,  e  parecia  mudado  em  forno.  Já  o  calor  e  a  e- 
halação  do  fogo  tinham  absorvido  o  ar  vital  da  ca- 
sa ,  e  as  vellas  no  oratório  davam  um  clarão  incer- 
to.—  Fora,  a  lua  se  tinha  levantado  de  traz  dos  jar- 
dins do  Buen-Reliro  ,  e  pelas  vidraças  da  camará 
real  se  via  claramente  a  estatua  equestre  de  Carlos 
).°  com  o  seu  arnez ,  que  com  olhar  sombrio  pare- 
cia contemplar  a  luta  mortal  de  seu  neto.  Havia 
neste  momento  alguma  cousa  de  simbólico  no  aspe- 
-to  destas  duas  figuras  reaes;  uma  de  bronze  e  fer- 
ro ,  outra  de  carne  e  osso ;  uma  direita  e  altiva , 
illurainada  pelo  nobre  astro  da  noite,  reflexo  do  sol 
de  Pavia  e  de  Cerisolc  ;  a  outra  dormitando  sufTo- 
cada  pelo  calor  artificial  do  seu  sol,  —  um  bra- 
zciro. 

Subitamente  eirei  pareceu  accordar  de  um  le- 
Ihargo,  endireitou-se,  enxugou  as  grossas  bagas  da 
testa,  e  disse  quasi  imperceptivelmente  :  «Mandai 
tirar  o  brazeiro.  —  Senhqr  —  respondeu  o  monge  — 
eu  vou  avisar  os  officiaes  a  quem  compete  este  of- 


ficio.  —  Fr.  Ambrósio  sahiu  e  voltou  em  meio  mi- 
nuto. Elrei  mal  podia  já  articular.  —  Senhor  o  of- 
licial  competente  auscntou-se  ,  m.Tndaram-no  cha- 
mar ,  e  não  pôde  tardar.  —  Elrei  não  respondeu  , 
mas  [louro  depois  disse:  Sinto-me  morrer,  padre, 
desabotoai-me  o  fato.  —  Senhor,  não  mereço  tanta 
honra.  A  etiqueta  não  permittc  a  um  pobre  frade 
Jerónimo  tocar  no  fato  d'clrei:  este  oliicio  compete 
uo  nobre  duque  de  .Aledina  C.eli.  .  .» 

«Meu  Deus,  isso  é  verdade,  mas  cu  morro.  Ar, 
ar,  padre,  abri  a  janella.  —  Senhor,  não  me  pos- 
so atrever  a  isso  ;  não  posso  aspirar  a  tanto.  K  ab- 
solutamente prohibido  a  todos  excepto  ao  mnrdomo- 
mór  ,  ou  ao  nionleiro-mór  ,  abrir  qualquer  janella 
na  camará  d'elrei  ,  estando  procnte.» — Fallando 
assim  Fr.  Ambrósio  mal  podia  respirar,  e  os  olhos 
qunsi  se  lhe  turvavam. 

Elrei  animou-se  ,  fez  uma  tentativa  para  se  le- 
vantar da  cadeira,  mas  cahiu  para  traz.  «Ahl  — 
di<se  quasi  sem  voz  —  isto  ó  um  tormento  horrível. 
-Monge  ,  monge  ,  não  vês  que  morro  se  me  não  dás 
ar ,  se  me  não  tiras  este  brazeiro  ,  este  brazeiro 
que  me  sulToca  e  mala.» 

Então  Fr.  Ambrósio  inclinou-se  ao  ouvido  d'el- 
rei,  c  disse  com  voz  sepulchral  que  penetrou  o  mo- 
ribundo rei  com  arripios  gelados  ,  que  juntou  aos 
martyrios  do  corpo  os  mais  terríveis  martyrios  da 
alma:  «Estais  lembrado,  senhor,  que  D.  Sancho 
morreu  ás  mãos  do  carrasco ,  porque  não  estava 
presente  o  presidente  do  conselho  de  Caslella  para 
vos  apprescntar  uma  penna.  .  .  Estais  lembrado  que 
D.  Fernando  de  Penacerrada  morreu  ás  mãos  do  al- 
goz, por  ter  ousado  tocar  na  rainha,  quando  se  tra- 
tava de  lhe  salvar  a  vida.  .  .  » 

«Penacerradas  ;  Penhacerradas  !  —  exclamou  el- 
rei, e  de  terror  se  lhe  arripiou  o  cabello  ,  —  sem- 
pre Peiiacerradas  !  .  .  .  E  olhou  para  o  monge  ,  que 
estava  immovel  ao  pé  da  cadeira  ,  com  a  cabeça 
mettida  no  capuz  ,  em  altitude  de  reflexão  e  de  at- 
tenção. 

«Misericórdia,  monge,  não  esperes  até  que  ve- 
nha o  olíicial  do  paço  para  tirar  o  brazeiro.  Eu  te 
dou  a  minha  palavra  real  .  que  por  esto  crime  não 
hasde  ser  castigado.  Monge  ,  eu  farei  mais  ,  o  pri- 
meiro bispado  que  vagar  será  teu.  Reverendo  pa- 
dre ,  fallai-me;  qno  pretendeis  mais?  Oh!  Miseri- 
córdia, misericórdia.  .  .    Meu  Deus.  meu  Deus.  .  .» 

Mas  Fr.  Ambrósio  ficou  immovel.  Também  não 
tinha  havido  misericórdia  para  D.  Sancho  de  Pena- 
cerrada ,  nem  para  seu  irmão  D.  Fernando. 

Xeste  momento  se  ouviu  um  grito  d'elrei ,  nm 
ultimo  grito,  grito  de  dor  e  de  desesperação  :  — 
n.\h!  monge,  monge,  agora  te  reconheço;  és  o  ve- 
lho Penacerrada.  ..  E  sem  sentidos  cahiu  sobre  o 
braço  da  cadeira.  A  porta  da  camará  real  abriu-se 
no  mesmo  momento  .  e  entraram  o  ofiicial  do  bra- 
zeiro ,  e  o  medico  d'elrei. 

«Vindes  a  tempo,  senhores — disse  o  monge. — 
Sua  Magcslade  desmaiou  por  não  poder  supporlar 
mais  o  calor  do  brazeiro.»  Tiron-sc  este  ;  o  medi- 
co acudiu  immedialaniente  a  elrei,  observando-u 
com  signaes  da  maior  inquietação.  Em  quanto  du- 
rava este  exame  ,  cujo  resultado  Fr.  .\mbrosio  es- 
perava com  inalterável  placidez  ,  abriu-se  de  novo 
a  porta  e  ura  official  annunciou  : 

«Sua  alteza,  o  príncipe  das  Astúrias  ,  pede  li- 
cença para  tributar  os  seus  respeitos  a  elrei.» 

Fr.  .'imbrosío  deitou  olhos  escrutadores  ao  me- 
dico ,  c  dirigindo-se  ao  official  disse: 

«Já  não  ha  príncipe  das  Astúrias,  .\nnnnciai  S 


256 


O   PANORAMA. 


M.  D.  Filippe  4.°  rei  das  Hespanhas  e  de  ambas 
as  Índias.  A  ctiqiiela  manda  que  antes  tio  princi- 
piar o  seu  reinado  ,  o  novo  rei  seja  o  primeiro  que 
visite  o  rei  defunclo. 


QdAES  são   os  verdadeiros  bens  ,    E  QUAES  OS  FALSOS  ; 
E    QIE   COISA   É   VIKTIDE    (•). 

MiiTo  folgarei  [disse  o  discipulo]  de  ouvir  esta  di- 
visão dos  Ijcns  ,  c  folgaria  de  Síiber  quacs  são  os 
verdadeiros  para  os  seguir,  e  qiiaes  os  falsos  para 
OS  deixar.  Os  verdadeiros  bens,  disse  o  mestre,  são 
fó  ,  esperança  ,  e  caridade  ,  c  a  divina  graça  ,  pru- 
dência ,  justiça  c  temperança,  fcjrlaleza  ,  humilda- 
de, mansidão,  castidade,  esmola,  paciência,  abs- 
tinência ,  e  todas  as  mais  virtudes  e  dons  do  Espi- 
jito  Santo  ,  e  bemaventuranças  evangélicas.  Estes 
ião  os  liens  que  nos  fazem  bons  ,  c  de  que  os  ini- 
jnigos  nos  não  podem  despojar,  se  nós  não  quizer- 
jnos.  Estas  são  as  verdadeiras  riquezas  ,  e  não  as 
terrenas  que  são  muitas  vezes  possuídas  dos  maus  , 
c  occasião  de  males;  as  quaes  se  podem  perder  e 
iios  podem  perder.  E  por  isso  não  são  ellas  bens 
verdadeiros,  mas  falsos;  e  mais,  pois  enganam  seus 
possuidores,  e  os  deixam  [como  dize;.i]  no  melhor, 
e  quando  muito  chegam  com  elles  até  a  morte,  mas 
assim  os  desai  ,iaram.  No  fio  dos  falsos  bens  an- 
dam de  parçaria  enfiados  com  riquezas  os  favores 
e  privanças  dos  príncipes  e  honras  do  mundo  ,  c  as 
outras  cousas  a  que  o  vulgo  eliama  bens  da  fortu- 
na. E  nesta  lista  entram  os  bens  que  chamam  da 
Jialureza  ,  como  são  formosura  da  carne  ,  força  ,  li- 
geireza ,  e  outros  desta  qualidade,  Esles  são  os 
hens  que  nos  não  fazem  bons  ,  antes  são  muitas  ve- 
zes possuídos  dos  maus  ,  e  instrumentos  dos  seus 
inales.  E  nelles  não  deve  ninguém  coidiar  como  em 
cousa  segura  ,  porque  não  são  fixos  nem  permanen- 
tes ,  mas  inconstantes  e  transitórios  ,  e  podem  no- 
los  tirar,  ainda  que  nós  não  queiramos.  Qualquer 
tribulação  os  desbarata,  qualquer  mudança  os  tira, 
qualquer  vento  os  arranca.  O  mundo  é  como  uma 
farça,  aonde  entram  diversas  figuras,  umas  de  prín- 
cipes e  nobres,  outras  de  mecânicos  e  lavradores; 
c  accrta-se  que  os  mecânicos  entram  por  figuras  de 
nobres  ,  e  os  nobres  por  figuras  de  mecânicos.  Du- 
ra isto  em  quanto  dura  o  auto  ;  elle  acabado  fica 
cada  um  nu  (]ue  era.  O  que  representava  a  figura 
do  príncipe  ia  com  vestidos  alheios  ;  um  lhe  em- 
prestava o  saio  ,  outro  a  capa  ,  outro  a  gorra  :  aca- 
bada a  festa  cada  um  levou  o  seu,  e  elle  ficou  sem 
nada,  e  donde  entrara  por  príncipe,  fica  alfayate  , 
como  d'antes  era  :  assim  o  mundo  transtorna  as 
cousas,  a  uns  derriba,  a  outros  levanta.  Aos  que 
de  baixa  surte  vem  a  sublimar,  um  dia  lhe  tira  a 
honra  ,  outro  os  oQícios  ,  outro  a  fazenda  :  até  os 
deixar  na  cepa  que  d'anles  eram.  São  mudanças  do 
mundo,  é  roda  que  anda  ás  voltas  ,  são  ondas  a 
que  não  é  concedida  nenhuma  firmeza.  Nas  parti- 
lhas desta  vida  os  justos  ficam  com  as  virtudes,  que 
são  bens  de  raiz  que  duram  ,  e  os  depravados  não 
querem  senão  riquezas  c  deleitações  ,  ([ue  são  mo- 
veis que  se  rafam  e  ac;d)am  ,  e  gastam  com  o  tem- 
po :  assim  como  o  raio  de  fogo,  segundo  conta  Plí- 
nio no  segundo  da  Historia  Natural  ,  fere  quanto 
acha  na  terra  ,  senão  o  loureiro.  V.u  ,  disse  o  discí- 
pulo ,  antes  queria  ler  virtudes  que  sabcr-lhe  a  di- 
linição;  porque  Aristóteles  diz  nas  Elhíca.s ,  que 
não  basta  saber  da  virtude  ,  rnas  qne  é  necessário 
(•)     IiUctnicti>  de  Hcitur  Piutv :   Imaf.   tia  y.  VhrisUii. 


trabalhar  de  a  ter.  Bom  é  praticar  delia  ,  mas  me- 
lhor é  possui-la  :  as  palavras  passam,  e  as  ol)ras  fi- 
cam. Mas  nem  por  isso  deixo  de  desejar  de  saber 
a  definição  á  virtude.  Nisso  ,  disse  o  mestre  ,  ten- 
des vós  muita  rasão  ,  porque  S.  Paulo  diz  na  pri- 
meira aos  corinlhios  que  o  reino  de  Deus  não  está 
cm  pal.ivras  ,  mas  em  virtudes.  E  assim  os  que  en- 
sinam mais  mo\em  com  o  que  fazem  que  com  o 
que  dizem.  Assim  como  primeiro  ouvinii;s  ferir  o 
pau  ,  e  depois  ouvimos  o  tom  :  assim  primeiro  nos 
move  o  (|ue  vemos  ohiar  que  o  que  ouvimos  dizer. 
Mais  eHicacia  paia  persuadir  tem  as  obras  que  as 
palavras.  Mas  pois  quereis  saber  a  definição  da  vír- 
ludc,  eu  vo-la  direi.  A  virtude  é  uma  qualidade 
boa  d'alma  com  a  qual  se  vive  rectamente,  da  qual 
ninguém  usa  mal  ,  a  qual  Deus  obra  cm  nós.  As- 
sim a  define  St.°  Agostinho  no  livro  do  Livre  Ar- 
bítrio. E  110  livro  da  Quantidade  da  Alma  diz  que 
é  uma  igualdade  de  vida,  que  de  todas  a?  partes 
quadra  com  a  rasão.  E  no  livro  decímo-quinto  da 
(lidade  de  Deus  diz  que  ó  uma  ordem  de  amor.  E 
por  isso  diz  a  Esposa  nos  Cantares:  Ordenou  en; 
mim  a  caridade.  S.  Bernardo  no  tratado  ud  fru- 
íres de  Monte  Dei  diz  que  a  virtude  é  uso  da  livre 
vontade  ao  juízo  da  rasão.  Aristóteles  ,  fallando  no 
segundo  das  Ethicas  das  virtudes  nioraes  ,  diz  que 
a  virtude  ó  um  habito  c  electivo  que  consiste  no 
meio  era  respeito  de  nós  ,  definido  e  determinado 
pela  rasão  do  prudente.  E  nas  Politicas  diz  que  a 
propriedade  da  virtude  é  fazer  virtuoso.  E  por  vir- 
tuoso não  entende  ura  homem  tão  justo  que  não 
caia  em  alguma  culpa;  porque,  como  diz  Eliano 
no  livro  da  Varia  Historia,  assim  como  não  ha  pei- 
xe sem  espinha  ,  assim  não  ha  homem  sem  culpa. 
Quem  é  aquelle  ,  fallando  pela  via  ordinária  ,  que 
pelo  decurso  da  sua  vida  não  caia  em  alguma  ve- 
níalíilade?  Mas  por  virtuoso  entende  o  que  está  ha- 
bituado em  bem  obrar  moralmente  ,  e  cora  concer- 
to ,  ainda  que  alguma  vez  tenha  algum  acto  des- 
concertado ,  porque  nas  virtudes  adquiridas  o  acto 
não  é  contrario  ao  habito  ,  e  pôde  um  homem  de 
temperado  habito  fazer  um  acto  de  destemperança  ; 
e  fazer  ura  acto  de  destemperança  sem  perder  o  ha- 
bito de  temperança  ;  porque  a  virtude  é  habito  ,  c 
não  qualquer,  mas  habito  excellente.  Ella  muda  a 
alfandega  de  maus  pensamentos  era  rica  camará  de 
santas  meditações  ,  e  a  terra  converte-a  em  céu  ; 
quero  dizer,  que  pelas  virtudes  os  que  antes  eram 
terrenos  se  tornara  espii  ituaes  ,  porque  tem  a  Sa- 
grada líscritura  por  costume  aos  justos  chamar  céu, 
e  aos  ímpios  lerra.  .\ssim  como  o  sol  que  passa  pe- 
la vidraça  toma  a  còr  da  cousa  em  que  fere  ,  assim 
o  homem  toma  a  figura  da  cousa  a  que  se  applica. 
Se  se  applica  ás  cousas  celestes  toma  a  figura  do 
céu  ,  se  ás  cousas  terrenas  ,  da  terra  ;  c  assim  co- 
mo o  vicio  converte  o  céu  em  terra  ,  assim  a  virtu- 
de a  lerra  em  céu.  Com  ella  se  esmalta  a  nature- 
za ,  c  SC  purifica  a  nobreza  do  sangue  ,  e  se  lava  a 
nódoa  da  baixa  geração,  e  se  alimpa  c  orna  a  cons- 
ciência ;  c,  finalmente,  ó  um  verdadeiro  bera  que 
nos  faz  bons  ;  o  que  não  convém  aos  bens  da  natu- 
reza ,  nem  aos  que  commurarnentc  chamara  da  for- 
tuna. 


O  rnoGRESso  da  civilisação  não  é  representado  pela 
co|iía  das  coramodídadcs  superfiuas  ,  nem  pelos  ca- 
prichos da  moda  ;  mas  sim  pela  fortaleza  e  rectidão 
do  animo,  c  pela  prática  mais  generalisada  das  tir- 
tMdes,  assim  domesticas  como  cívicas.  ;,„ 


86 


o  PANORAilIA. 


2;;7 


os  HABITANTES  DE  BIALHO&CA. 


AisDA  se  erguera  escarpadas  e  dislinctas  no  hori- 
sonle  as  serras  da  Catalunha  para  quem  se  aparta 
de  Barcelona  iaternando-se  no  Mediterrâneo  ,  c  j;i 
da  parte  opposla  apparecem  os  mais  altos  e  pictu- 
rescos  montes  de  Malliorca  ,  como  estalagem  bem 
disposta  ,  ou  casa  de  recreio  ,  que  á  borda  do  ca- 
minho convida  a  descançar  na  primeira  jornada. — 
Em  igual  ou  mais  próxima  situação  a  respeito  de 
Valência  se  encontra  Iviça  ;  e  estas  duas  ilhas,  que 
junto  com  Menorca  formam  o  grupo  principal  das 
Baleares,  não  estão  entre  si  tão  distantes  que  não 
possam  avistar-se  umas  de  algum  ponto  das  costas 
das  outras.  Ou  por  eITeito  de  sua  proximidade  á 
Península  ,  ou  era  consequência  da  unidade  de  cas- 
tas e  de  antiquíssimas  revoluções  ,  ou  por  inexpli- 
cáveis aíBnidades  perdidas  em  a  noite  dos  tempos , 
é  certo  que  as  Baleares  jamais  poderam  separar  a 
sua  sorte  ,  c  a  sua  historia  ,  da  sorte  e  historia  do 
continente  hespanhol.  —  Estas  ilhas,  dons  para  as- 
sim dizer  da  natureza  ,  e  não  espolio  de  conquista 
como  as  Canárias ,  ou  fructo  de  colonisarão  como 
as  Antilhas  e  Filippinas  ,  antes  do  que  possessões 
ou  colónias  d'Hespanha  se  poderão  appellidar  por- 
ções soltas  do  território  desta  monarchia  ;  e  as  suas 
relações  espontâneas  com  a  metrópole  ,  tanto  mais 
fortes  e  suaves  porque  nunca  tem  custado  uma  got- 

Agosio  ly— 1843. 


la  de  sangue  aos  conquistadores  nem  oma  lagrima 
aos  conquistados  ,  fortaleceram-se  ainda  mais  com 
os  accidenles  de  mui  extensa  e  variada  historia. 
Ora  soflreram  o  jugo  dos  invasores  do  contiuente  , 
ora  luziram  com  o  mesmo  brilho  e  fortuna  que  es- 
te ,  retribuindo  com  os  thesouros  de  seu  ferlilissi- 
mo  solo  ,  c  com  homens  esclarecidos  ,  a  indepen- 
dência e  gloria  que  do  império  hespanhol  rece- 
biam. 

Jtalhorca  ,  ou  Mayorca,  segundo  o  nome  próprio 
indica  é  a  mais  importante  ddS  Baleares  ,  quer  em 
povoação,  quer  em  exlensjo  e  fecundidade  de  ter- 
reno, e  sob  qualquer  destes  aspectos  que  se  con- 
temple ou  meça  a  estadística  da  ilha  ,  sempre  ella 
comprchende  as  duas  terças  parles  da  somma  ge- 
ral. N'uma  superfície  de  1234  milhas  quadradas 
contém  acima  de  160:000  habitantes  em  36  povos 
de  maior  consideração  [havendo  alguns  de  sete , 
nove,  e  dez  mil  almas]  distribuídos  por  montes  e 
plainos,  sem  contar  lugarejos  e  casaes  ,  espalhados 
por  toda  a  parte.  As  costas  altíssimas  e  escarpadas 
a  oeste  pelo  lado  por  onde  olha  para  o  continente, 
baixas  e  estendidas  da  parte  de  levante,  e  forman- 
do ao  norte  duas  grandes  bahias ,  a  de  Alcudia  e  a 
dePoilensa,  em  correspondência  [digamos  assim] 
da  outra  de  Palma ,  vastíssima  e  ao  sul ,  oíTerecem 
2.'  Serie.  — VoL.  II. 


258 


O  PANORAMA. 


por  todos  os  lados  aos  navios  portos  numerosos,  en- 
seadas e  praias,  onde  seguros  deitem  ferro;  como 
se  a  terra  participasse  da  hospitalidade  dos  raora- 
(lorcs.  Sem  embargo,  nas  ribeiras  maritiraas  ,  quer 
sejam  charnecas ,  i[uer  montes  picturescos ,  não  ha 
J)usoar  povoações  que  estojam  em  certo  modo  ;i  es- 
pera dos  viajantes,  nem  aldèas  que  baubem  o  pé 
n'agua  e  aspirem  a  brisa  do  mar,  como  era  d'es- 
pcrar  d'uma  gente  agrícola  c  navegadora  ao  mesmo 
tempo  ,  e  das  vantagens  dahi  resultantes  para  a  sa- 
lubridade e  para  o  commercio  :  a  funesta  vis'nban- 
ça  dos  berbcrescos  ,  e  a  sanha  e  cubica  dos  pira- 
las  ,  de  quem  foi  Malhorca  por  três  séculos  espe- 
cial objecto  ,  tornando  erma  a  costa  com  frequen- 
tes desembarques,  e  cingindo  a  ilha  com  uma  zo- 
na de  assolações,  fez  que  se  occultassem  no  fundo 
dos  valles  ou  ao  abrigo  dos  picos  os  jiovos  da  mon- 
tanha, e  se  affastassem  a  duas  c  Ires  léguas  da  bei- 
ramar  os  da  planície  :  c  se  acaso  nesses  contornos 
nlgiim  casal  assoma  é  com  sua  torre  quadrada  c  ma- 
cissa,  dasquaes  não  haverá  talvez  uma  que  não  tenha 
sustentado  um  cerco.  Desapparecida  a  causa  ,  não 
podiam  tão  prestes  desapparecer  os  elleitos ;  notan- 
do-se  unicamente  na  solitária  costa  as  redondas  tor- 
rinhas ,  habitadas  pelos  vigias  que  de  noite  accen- 
dem  seus  fogos  de  observação  como  olho  vigilante, 
as  quaes  de  dia  mal  se  distinguem  da  còr  das  ro- 
chas de  que  estão  penduradas ,  e  semelham  ninhos 
d'andorinhas.  —  Mas  penetre-se  pela  terra  dentro 
curto  espaço  ;  e  logo  o  continuado  arvoredo  de  oli- 
veiras, muitas  velhíssimas,  cuja  folha  descorada  e 
alvacenta  faz  mui  bello  contraste  com  o  estremado 
verdor  das  alfarrobeiras  ,  cubriudo  a  parte  montuo- 
sa  até  o  cirno  dos  cabeços ;  e  lambem  as  vaslissi- 
mas  searas  e  os  ímmcnsos  figueíraes,  que  alcatifam 
as  veigas ;  revelam  toda  a  belleza  e  fecundidade 
daquelle  chão.  —  Espantoso  c  palpável  é  o  incre- 
mento da  agricultura  ha  St)  aunos  em  toda  a  ilha , 
e  o  numero  de  arroteamentos  já  subministra  tri- 
gos c  outros  cereaes  para  abastança  dos  moradores, 
poupando-lhes  o  flagello  da  fome  que  periodicamon- 
Ic  soliViam  seus  antepassados:  osmontes  mais  altos, 
as  ladeiras  mais  íngremes  se  cultivam  disposio  o 
terreno  em  successivos  socalcos  ,  que  apprescntam 
um  amphithealro  vecejante  e  o  exemplo  do  engenho 
c  laboriosidade  do  homem  ;  subdividem-se  as  pro- 
])ricdades  ,  multiplicam-ss  as  casas  c  cora  ellas  os 
pomares  e  hortas  que  cercam  quasi  todas  ;  a  amen- 
doeira ,  arvore  tão  agradável  aos  olhos,  como  pre- 
ciosa por  suas  qualidades  e  fructo  ,  ainda  em  nos- 
so tempo  era  ahi  quasi  estranha,  mas  lern-se  rapi- 
damente propagado  de  uma  á  outra  |)onta  da  ilha, 
e  faz  agora  uma  das  prii]t:i|)aes  colheitas.  Apenas 
liça  uma  terça  parte  do  terreno  total  para  maltas  e 
baldios  ;  as  outras  duas  rcpartera-se  cm  searas,  oli- 
vaes ,  vinhas,  hortas  c  quintas,  cujo  producto  an-; 
nual  liquido  ,  entrando  o  de  gado  grosso  e  miúdo  , 
sobe  a  perlo  de  dois  milhões  de  cruzados  e  cem 
contos  de  réis.  Com  este  augmento  emparelha  por 
conseguinte  o  crescimeuto  da  população  c  a  passo 
igual  a  prosperidade  do  commercio  c  navegação. 

lím  quanto  assim  accresccm  os  fruclos  da  terra  , 
mais  de  40  navios  de  maior  porte,  c  quasi  dupli- 
cado numero  de  outros  menores  ,  cslão  esperando 
esses  géneros  nos  portos  de  Soller,  Andraix  ,  Fcla- 
iiilx  ,  c  especialmente  no  de  Palma  ,  obra  lambem 
rccenlc  da  mão  do  homem,  porque  este  não  pouco 
tem  feito  a  pró  da  sua  pátria  ,  sem  entregar-se  de 
braços  cruzados  ao  benelico  influxo  e  dons  da  na- 
tureza.—  JJilalada  deslc  modo  anavcgação  das  em- 


barcações malhorquinas  ao  longo  das  costas  d'Hes- 
panha  ,  pelns  aguas  d'Africa,  e  por  todos  os  portos 
das  Antilhas  e  da  America  meridional  ;  c  augmen- 
tado  com  a  ultima  guerra  o  preço  dos  géneros  a 
par  da  vantagem  da  exportação ;  Malhorca  com  o 
movimento  mercantil  se  pôde  consolar  da  perda  da 
iualteravellranquillidade  de  que  antes  gosava. 

Não  menos  notável  que  a  abundância  é  o  nume- 
ro e  variedade  de  productos,  devidos  talvez  á  va- 
riedade de  terreno ,  que  não  podemos  deixar  de 
admirar  altendendo  á  extensão  da  ilha  ;  porquanto  a 
vista  da  alternativa  de  cordilheiras,  de  planícies,  de 
campinas  enxutas,  e  das  brejosas  reçumando  agua, 
de  rochas  cortadas  a  pique,  c  de  collíuas  ondulosas 
e  fcrtilissíraas  ,  julgaria  o  observador  passar  aller- 
nadamcnte  por  climas  díslinctos,  ou  Irausferir-se 
de  umas  regiões  para  outras  mui  dislantes ;  tanto 
que  n'ura  livro  moderno,  a  cujo  auctor  por  outro 
lado  a  ilha  deve  pouco  [o  pseudonymo  Jorge  Sand] 
lemos  que  neste  solo  a  sublime  natureza  dos  Alpes 
está  unida  ás  frondosas  campinas  da  Luiziana. — 
Pôde  Malhorca  considerar-se  dividida  em  Ires  par- 
tes, a  do  occidente,  a  central,  e  a  de  Jevanle,  divi- 
são natural,  que  correspondo  quasi  á  territorial,  fei- 
ta de  1834  para  cá,  nos  Ires  partidos  judicíacs  de 
Palma  ,  Inca  e  Manacor.  Os  diversos  accidentes  do 
paiz  resumem  em  próximos  quadros  as  scenas  va- 
riadas de  regiões  diversas  ,  circumstancia  que  tor- 
na muito  agradável  o  aspecto  geral  da  ilha.  (•) 

(Continua. J 


Considerações  sobre  o  Curso  d' Economia  Politica  do 
Sr.  Miguel  Chevalier. 

xr. 

Longe  estou  eu  de  ser  movido  de  senlimcnlos  mes- 
quinhos d'invcja  ou  ódio  contra  a  grande  nação  brí- 
lanuica.  Declaro  que  não  me  associo  de  nenhuma  sor- 
te ás  prevenções  e  resentimentos  dos  que  desejara 
ver  subvertida  a  ilha  ,  raiidia  do  mundo  civilisado. 
Reconheço  os  altos  serviços  que  lhe  deve  a  humani- 
dade. Admiro  e  venero  o  povo  que  se  tem  remon- 
tado a  tão  elevada  esphcra  pelo  puder  do  seu  génio. 
Inclino-me  com  respeito  ante  esses  monumentos  das 
artes,  esses  prodígios  de  sciencia  ,  e  de  trabalho, 
testemunho  tão  brilhante  da  sua  superioridade.  For- 
mo votos  para  que  a  sua  carreira  social  seja  bem 
dilalada,  e  bem  prospera,  para  que  a  sua  iniiucncia 
em  quanto  for  benelica,  c  a  sua  grandeza,  em  quan- 
to for  legitima  ,  não  padeçam  quebra.  E  confesso 
que  se  um  dia  as  nações  pozerem  em  juízo  qual 
d 'ellas  tem  sido  mais  benemérita  do  género  huma- 
no ,  a  esta  ,  sem  hesitação  ,  deverá  ser  destinada  a 
palma  da  preeminência.  Mas  digo  que  o  continente 
que  foi  seu  pupillo  está  em  idade  de  emancípar-se. 
(Jue  o  continente  agradeça  as  lições  e  exemplos  que 
aprendeu  de  seus  mestres,  e  apregoo  os  documen- 
tos de  liberdade  ,  e  os  progressos  de  induslria  que- 
houve  d'elles  ,  é  justo  c  santo  ;  c  que  a  sua  maio- 
ridade se  siga  a  tão  fecundo  ensino,  inevitável.  .Sc 
Inglaterra  sente  cm  suas  entranhas  malocoulto,  e  a 
esse  mal  chama  superabundância  [que  não  pôde  ser 
onde  ha  escacez]  ou  estagnação  que  c  propriamente 
a  sua  enfermidade,  não  cuide  remedia-la  procuran- 
do estancar  a  jiroducção  alheia,  ou  encravar  um  dos 


(■)     Exlr:iliii]o  dos  ailii'os  do  Sr.  J.  M.  Qu.idrado  no 
Somauario  liespuuliol,  •    ■.  ..■"j"' 


o   PANORAMA. 


259 


iiislrumcntos  (i'essa  producção  —  a  industria  fabril. 
Inglaterra  (■  dos  paizes  mais  industriosos  c  dos  de 
primeira  ordem  o  único  que  otTercce  ao  mundo  o  es- 
pectáculo singular  d'uma  população  que  tem  cresci- 
do mais  doque  oalinicnlo  e  d'uma  producção  fabril 
que  tem  resobrado  á  população.  Dos  outros  três  que 
SC  lhe  seguem  em  calhogoria,  França  lavra  pão  para 
si ,  mas  posto  seja  exportadora  de  artefactos  ,  estes 
não  cbcgariam  talvez  para  as  necessidades  do  seu 
mercado  interno,  se  a  população  rural  lizesse  d'elles 
um  consumo  regular.  Us  Estados-l  nidos  tem  sobre- 
ccllente  de  cereaes,  c  pobreza  de  productos  fabris. 
Alemanha  cultiva  cereaes  bastantes  para  o  seu  con- 
sumo ,  e  .sobreexccde-o  cm  artclãitos.  Se  a  cultura 
dos  cereaes  tem  augmentado  ,  e  promelto  continuar 
no  augmento  que  já  dissemos,  e  os  artigos  fabris 
alem  de  lerem  crescido  muito  ,  pela  sua  natureza 
\ão  cm  progressão  ainda  maior,  parece  que  ao  me- 
nos alguns  Estados  ,  e  os  de  primeira  classe,  levam 
muito  adiantado  o  empenho  de  resolver  o  importan- 
te problema  da  producção  ;  problema  que  Inglaterra 
se  propõe  dillicultar  sob  còr  de  conveniência  d'es- 
ses  Estados  ,  e  da  pros[)eridade  geral  do  mundo. 

Eu  já  estabeleci  ,  no  meu  artigo  sobre  as  machi- 
nas,  com  quanta  clareza  me  foi  possível  ,  que  a  su- 
perabundância absoluta,  presentemente,  é  chinicra. 
e  que  até  a  abundância  ,  ainda  circumscrevendo-a 
a  uma  nação  determinada,  é  um  dcsidcrandum,  um 
desiUcrandum  se  a  entendermos  de  modo  que  ella 
comprehenda  a  todos  os  indivíduos  dessa  nação  . 
sem  excluir  um  único.  Pode  certamente  haver  e 
creio  existe  alguma  onde  parte  da  população  esteja 
longe  de  viver  na  abundância  ,  e,  não  obstante,  os 
productos  annuacs  sejam  suílicientcs ,  uma  vez  dis- 
tribuídos cm  certa  proporção  pelos  habitantes ,  a 
cffeituar  essa  abundância.  N'  esse  paiz ,  se  exis- 
te ,  asseverámos  que  está  descortinado  o  arcano  da 
producção  ,  e  que  só  lhe  falta  penetrar  o  da  des- 
tribuição.  E,  fora  ridículo  dissimula-lo,  aquelle 
onde  a  industria  nos  seus  differentes  ramos  parece 
próxima  a  tocar  o  ápice  do  perfeito  ,  é  Inglaterra  ; 
c  apesar  d'isso  a  miséria  de  uma  numerosa  porção 
dos  seus  naturaes  como  que  está  intimando  que  a 
actividade  do  homem,  e  o  apuro  da  arte,  por  gran- 
des que  sejam,  não  bastam  á  felicidade  material  das 
associações  humanas :  ó  indispensável  que  a  jus- 
tiça venha  fazer  olficio  de  medianeira  no  conflicto 
da  penúria  com  a  riqueza  e  sanccionar  a  lei  da  vi- 
da, que  é  o  direito  primordial  da  nossa  espécie,  as- 
segurando um  logar  a  cada  individuo  no  banquete 
em  que  todos  devem  ter  quinhão.  Em  Inglaterra  se 
acha  desenhada,  c  sevo  quanto  é  solida  adislincção 
deTracy  entre  povos  onde  ha  grandes  riquezas  e  po- 
vos ricos.  Alli  ha  grandes  riquezas  ,  c  o  povo  não  é 
rico,  porque  parte  d'el!c  vive  na  penúria.  Alli  ver- 
te o  luxo  sybaritico  dosCrcssos  sobre  asafflicções  do 
proletário  as  amarguras  da  comparação.  Alli ,  que 
era  o  theatro  talhado  para  se  fazer  um  novo  ensaio 
social ,  para  se  executar  o  grande  acto  ,  e  se  inau- 
gurar o  grande  princípio  da  repartição  da  proprie- 
de  ;  insiste-se,  teima-se  em  salvar  o  abysmo,  e  apa- 
gar o  volcão  ,  pondo  um  dique  ao  poder  produclivo 
.«—não  ao  próprio,  que  Inglaterra  ,  a  nação  judicio- 
sa ,  não  cahiria  em  tamanho  desattento  — ;  mas  ao 
alheio,  á  industria  fabril  das  outras  nações. 

É  sobrcsemear  abrolhos  e  estrepes  na  estrada  por 
onde  ellas  caminham  para  o  paraíso  dos  bens  raate- 
riaes.  É  distanciar-lhe  o  alvo  da  felicidade  a  ponto 
de  o  não  poderem  atlingir.  E  vedar  impiamente  o 
remédio  ás  dores  e  convulsões  que  cada  uma  expe- 


rimenta nas  fazes  da  sua  declinação  ,  como  do  seu 
crescimento  ,  porque  este  nos  indivíduos  e  povos  ó 
denotado  não  só  (lor  impressões  agradáveis,  por  pa- 
decimentos lambem.  E  enredar  a  incógnita  da  pro- 
ducção era  labyrintho  donde  seja  impossível  desen- 
iranha-la  ;  porque,  de  sua  natureza  peculiar,  esta 
incógnita  não  tem  de  ser  achada  de  um  jacto  por 
um  só  individuo,  ou  uma  só  nação,  lera  de  ser 
descoberta  gradualmente  pelos  cálculos  e  esforços 
de  quantas  povoam  a  supcrlicie  da  terra. 

Pódc  muito  ,  mas  não  espere  Inglaterra  traçar  o 
circulo  de  1'opilio  á  industria  das  outras  nações, 
suffocando  o  gcrmcn  dos  productos  fabris  no  resto 
do  mundo,  para  dar  sabida  aos  seus,  estagnados. 
E  da  essência  delles  [loderem  mulliplicar-se  até 
ultrapassar  as  necessidades  do  consumo:  mas  ha 
dois  correctivos  contra  este  inconveniente.  Consis- 
te um  em  regular  cada  povo  a  distribuição  da 
propriedade  c  dos  gozos  sociaes  de  maneira  que 
nenhum  seu  natural  deixe  de  estar  habilitado  a  fa- 
zer um  consumo  rasoavel  desses  produclos  nos  mer- 
cados nacionaes  :  o  outro  está  nos  desejos  do  ho- 
mem que  são  variadíssimos  e  illimitados;  que  c 
um  in/inito  na  faculdade  de  consumir  estes  obje- 
ctos, proporcional  ao  iiiftnilu  da  potencia  de  os  pro- 
duzir. Eis  o  remédio,  o  único.  O  outro,  a  cruza- 
da contra  as  machinas  que  insinua  Sismondi  é  dis- 
paratar ;  ainda  que  Inglaterra  quer  tenta-lo  não  nas 
suas  próprias,  nas  do  conliiionte. 

Vaã  tentativa  ,  como  já  annunciei.  Não  me  dete- 
rei mais  com  ella.  E  direi  que  se  por  força  insu- 
perável ,  e  por  circumstancias  particulares  estiver- 
mos fadados,  não  a  deixar  —  que  é  impraticável  — 
toda  a  espécie  de  fabricas,  mas  o  fabrico  de  certos 
artigos  de  maior  procura  ,  e  cuja  laboração  adqui- 
re o  titulo  de  manufactureiras  ás  nações  que  a  exer- 
citam ,  nesse  caso  temos  de  nos  entregar  com  do- 
brada diligencia  á  industria  agrícola. 

Qualquer  das  alternativas  que  nos  caia  era  sor- 
te, uma  pertença  ha  hí  da  industria  fabril  em  cu- 
jo melhoramento  nos  devemos  desvellar ,  que  é  a 
distillação  das  aguas-ardentes ,  a  qual  transforman- 
do o  vinho  cm  substancia  de  mais  longa  duração, 
de  menor  volume  ,  de  maior  valor  em  menor  volu- 
me ,  e  por  isso  de  mais  fácil  e  menos  dispendioso 
transporte  ,  o  sobe  a  uma  alta  cathegoria  no  com- 
mercio  dos  líquidos.  O  primeiro  que  em  Portugal 
descobrir  o  processo  capaz  de  dar  ás  nossas  o  aro- 
ma ,  o  toque  ,  e  as  outras  qualidades  superlativas 
das  aguardentes  francezas,  imprimirá  um  movimen- 
to incalculável  á  riqueza  do  nosso  paíz ,  cujos  vi- 
nhos mais  débeis  produzem  ,  quando  menos  ,  cada 
oito  pipas  uma  de  aguardente  de  10  graus  de  2>,*- 
sa ,  ou  73  graus  centígrados  marcados  pelo  alcoo- 
metro  de  Gay  Lussac,  c  sendo  j  mais  ricos  de  espi- 
rito que  os  de  França  podem  ,  sob  esta  transforma- 
ção, competi-los  com  vantagem  em  qualquer  merca- 
do. Persuade-nos  também  a  consideração  de  muito 
momento  —  que  segundo  os  direitos  actuaes  da  pau- 
ta inglcza  pagaríamos  pela  entrada  de  uma  pipa  de 
aguardente  nos  portos  britaunicos  menos  7T:ooO  r." 
do  que  pagamos  pela  introducção  de  oito  pipas  de 
vinho,  que  são  o  equivalente  daquella. 

É  tempo  de  chegar  ao  commercio  .  o  externo ,  o 
qual,  sejamos  ou  não  fabricantes,  havemos  de  fa- 
zer ;  c  debaixo  do  pavilhão  nacional ,  não  do  es- 
trangeiro como  pela  maior  parle  fazemos ,  se  qui- 
zermos  conservar  colónias. 

O  commercio  !  Eu  bem  sei  que  boje  é  o  externo 
uma  sombra  do  que  foi  antes  de  se  abrirem  os  por- 


260 


O  PANORAMA. 


tos  do  Brasil.  Naqiiclle  período  parecin  Lisboa  a 
imagem  da  actividade.  A  cidade  baixa  era  um  ar- 
mazém vaslissimo.  A  alfandega  ,  aqticlle  deposito 
espaçoso  ,  trasbordava  os  géneros  ,  que  por  não  ca- 
berem nelle  ,  se  vinham  abarracar  ao  Terreiro  do 
do  l'aeo.  As  casas,  as  ruas,  os  largos  eram  estrei- 
tos para  Ião  copioso  mercado.  O  Tejo  estava  coa- 
lhado de  navios;  a  Praça  apinhada  de  negociantes; 
não  havia  transportes  de  mar  e  terra  nem  braços 
que  dessem  vasão  a  tanta  mercadoria.  E  —  cousa 
singular! — nessa  quadra  de  prosperidade  ,  as  al- 
fandegas rendiam  ,  anno  médio  ,  menos  do  que  ho- 
je rendem  ,  hoje  que  as  scenas  se  mudaram  com- 
pletamente ,  e  que  aquella  idade  de  ouro  se  voltou 
em  idade  férrea  1  É  que  o  movimento  qne  se  amor- 
teceu no  externo  passou  para  o  commcrcio  interno. 
No  interior  ha  hoje  mais  vida,  mais  animação, 
mais  cmprezas  ,  mais  transacções  ,  mais  compras  e 
vendas,  maior  producção.  Não  só  o  reino  produz 
mais  ,  mas  comsome  a  maior  parte  das  suas  impcir- 
tações  ;  em  quanto,  naquelle  período,  importando 
certamente  muito  mais  do  que  boje  ,  cxlrahia  no 
mercado  domestico  uma  parte  insignificante  dospro- 
ductos  que  ia  buscar  fora  ,  e  o  resto  ,  que  era  a 
maior  parte  ,  exportava-o.  Exportava  ,  elle  unica- 
mente, todas  as  ricas  mercadorias  do  Brasil,  e  mui- 
tas da  Ásia  para  as  nações  da  Europa  ,  e  para  os 
seus  domínios  próprios;  —  para  as  nações  da  Eu- 
ropa que  hoje  ou  são  providas  por  paizes  commer- 
cianles  ,  on  vão  ellas  próprias  buscar  os  géneros 
soloniaes  ao  logar  da  producção. 

(Continuar-sc-ha). 

A.  d' O.  Marreca. 


■g^wjaBi' 


■^a^  -^v^  IX        i 


ANKTIBAI..    (1) 

Foi  este  o  homem  extraordinário  que  alcançou  ser 
temido  dos  romanos,  que  o  tinham  por  seu  mais  po- 

(1)  Artiji)  loiniiilo  ili)  lirspanliol  do  Sr  D.  Joaquim  Ma- 
ria Bovcr,  ir.Vcailcmia  (1'liihliiria  :  e  a  cslanipa  copiada  do 
luni.  :!."  lio  Tliesonro  (Vanliijviíladis  grct/uí  ,  dç  Urçnoyio. 


deroso  inimigo  ;  é  o  carlhaginez  que  os  malhorqui- 
nos  contaram  como  patrício   em  quanto   a  penna  do 
díslincto   académico   hespanhol  ,    D.  Miguel  Salva  , 
não  matiifestou  qual  era  a  pátria  certa  doheroc,  cor- 
rigindo a  passagem  de  Plínio  ,  que  lodos  sem  criti- 
ca allcgavam.    Annibal  nasceu  era  Cnrthago  ,  e  não 
em  a  ilha  Coelheira  :    Floro   [lív.  2.°  cap.  6.°]   e  o 
historiador  Mcgalupolitano    [lív.  3."  cap.  11.°]   di- 
zem que  contava  nove  annos  quando  veio  a  Hespa- 
nha  ,  e  aqui   foi  educado  ,   chegando  a  ser  homem 
culto   e  de  conhecida  illusiração.   Cornelio  Nepote 
o  faz  discípulo  de  Solino  lacedemonío  ,   na  lingua 
grega  ,    idioma  cm  que  aproveitou  tanto  que  escre- 
veu nelle  a  historia  do  proconsulado  de  Cneo  Man- 
lío  na  Ásia  ,  [segundo  Vossio  de  hhl.  graic.  liv.  4.° 
cap.  13.°]  ;    na  Itália  erigiu  um  monumento  a  Juno 
Lacinia   com    uma  inscripção  púnica   e  grega  ,   que 
como  escreve  Tito  Lívio  liv.  28,  cap.  40,   continha 
a  historia  de  seus  feitos.  Mas  as  façanhas  bellicosas 
foram  as  quo  imniiirlalisaram  seu  nome.  Jura  a  seu 
pai  Amílcar,  governador  das  Daleares  ,  ódio  eterno 
a  Roma  ,    reúne   as  fadigas  de  soldado  aos  estudos 
de  general  ,   e  chega   a  ser  militar  exccllenle  antes 
dos  15  annos :  completava  os  2G  quando  lhe  é  con- 
fiado  aos  219  antes   de  J.  C.  o  mando   do  exercito 
que  os  carlhaginezes    haviam  reunido   para  vingar 
ultragcs  feitos  pelos  romanos;    e  tomando  a  estes  a 
cidade  allíada,  Sagunio  (2),  jornada  em  que  os  ma- 
Ihorquinos   se  distinguiram,   colhe   n'uma  serie  de 
facções  os  mais  gloriosos  lauréis.  —  Duvidámos  se 
8:500  atiradores   de  funda   raalhorquinos  ,   que  se- 
gundo Florían  tão  temíveis  se  fizeram  por  sua  des- 
treza ,    passaram   logo   cora  Annibal   á  Itália   ou  se 
encorporaram   depois   no   exercito  ,   é  porem   certo 
que  atravessando  com  elles  o  Uhódano  se  adiantou 
em  dez  dias  até   a  raiz  dos  Alpes,    causando-lhe   o 
perigoso  transito  por  estas  montanhas  as  mais  peno- 
sas fadigas     porque  parece  que   os  gelos ,   nevões, 
penhascos  e  preci|iicios  tinham  de  roldão  conlluido 
para   lhe  embargar  o  passo.   Os  biblíographos  fran- 
cezes  referem  que  depois  de  viajar  14  dias  por  mon- 
tes evalles  entrou  em  planície,  onde  teve  o  desgos- 
to de  ver  qne   o  seu   numeroso  exercito   de  60:000 
homens  eslava  reduzido  a  26:000.  Não  obstante  per- 
das tão  consideráveis  ,  Annibal  tomou  Turim  ,  des- 
baratou  as  cohorles   de  Cornelio  Scipião,    que   en- 
controu acampadas  ;i  borda  do  Tesíno,  c  pouco  de- 
pois  as  de  Sempronio   perto   da  ribeira    de  Trcbia. 
Esta  memorável  batalha   deu  golpe  fatal  nos  venci- 
dos ,  mas  os  vencedores,  apertados  do  frio  mui  ri- 
goroso ,   não  tiveram  a  satisfação  de  receber  com 
gosto  os  timbres  que  recolheram  n'um  vencimento, 
quo  taiUa  gloria  trazia  a  Carlhago.  O  mesmo  gene- 
ral venceu  depois  Klaminio,  que  pereceu  no  campo 
com  15.000  romanos  junio  90  lago   de  Trasimcno  ; 
dos  6:000   prisioneiros,    que  então  fez,    só  deu  li- 
berdade aos  latinos. 

Alllicta  com  tamanhas  perdas,  a  republica  roma- 
na creu  que  o  modo  de  repara-las  algum  tanto  era 
eleger  dictador  a  Quinto  Fábio  iMaximo,  capitão 
cauteloso,  que  tratou  de  observar  os  movimentos  de 
Annibal ,  occultar  os  seus  ,  c  fatiga-lo  por  meio  de 
repelidas  marchas  :  este  proceder  e  o  não  querer 
arriscar-se  a  combate  desvantajoso  o  fez  pouco  re- 
commendavel  a  seus  compatriotas  ,  por  isso  é  quo 
a  auclorídadc  e  mando  foi  repartida  cnire  elle  e 
Miuucio;  e  findo  o  tempo  da  dictadura  foram  am- 
bos substituídos  por  Terêncio  ^'arrão  e  Paulo  Emi- 
(21  Vido  suliro  Miiivicdro,  110  asseiilo  da  aaliga  Sagun- 
to,  a  pag.  161  do  rol.  1.°  ila  prcsenie  Serie. 


o  PAJÍORAJIA. 


26  { 


lio,  que  perderam  em  216  ant.  de  J.  C.  a  famosa 
Lalalha  de  Cannas  ,  á  custa  de  5:630  da  cavallaria 
de  Annibal  ,  que  acabaram  na  peleja.  — O  general 
carlhagincz  ,  cm  vez  de  passar  a  Uoma  ,  para  apro- 
veitar-se  das  riquezas  c  vantagens  que  lhe  propor- 
cionavam suas  victorias  ,  quiz  fazer  quartéis  d'in- 
Tcrno  em  (/ipua  ;  c  [segundo  Tito  Livio]  as  delicias 
desta  cidade  foram  tão  damnosas  a  seus  soldados 
como  úteis  lhe  haviam  sido  suas  armas  para  semear 
terror  e  lulo  entre  os  romanos.  Tal  é  o  modo  de 
pensar  do  I.ivio  e  de  outros  historiadores,  mais  mo- 
ralistas que  polilicDS,  que  em  nada  coincidem  cora 
a  opinião  do  celebre  Condillac  ,  pois  segundo  este 
é  falso  que  o  ócio  de  Cápua  afeminasse  os  soldados 
de  Annibal.  Dste  sem  largar  a  Itália  manteve-se  por 
14  annos ,  tomando  cidades,  ganhando  victorias; 
mas  Roma  ,  que  de  dia  para  dia  punha  em  pratica 
novos  esforços,  levanta  num  anno  18  legiões  e  che- 
ga a  tempo  de  poder  causar  no  exercito  rival  de- 
cadência notável  ,  como  allirma  Polybio.  Todavia 
Annihal  era  valente  ,  e  a  diminuição  de  suas  tropas 
não  foi  bastante  para  o  deter  no  desígnio  de  por 
cerco  á  capital  do  mundo  ,  posloque  teve  de  desis- 
tir em  211,  por  causa  das  chuvas  ,  gelos  e  ventos  , 
sem  saudar  as  muralhas  de  Roma.  O  cônsul  Jlar- 
cello  veio  em  seguimento  guerrea-lo  em  três  dis- 
linctos  comL.ites  que  obrigaram  .\nnibal  á  retira- 
da ,  ao  passo  que  Asdrúbal  seu  irmão  se  dirigia  a 
Roma  ,  para  soccorrè-lo  ,  e  encontrando  Cláudio  foi 
por  este  desbaratado  e  morto.  O  romano  ,  recolhcn- 
do-se  a  seu  campo  ,  trouxe  a  ensanguentada  cabeça 
de  Asdrúbal  que  mandou  pregar  á  entrada  do  acam- 
pamento de  Annibal.  A  perda  do  irmão  ,  que  mui- 
to por  suas  virtudes  amava  ,  consternou  o  general 
carlhaginez  e  o  moveu  a  voltar  a  Africa  para  tam- 
bém salvar  a  cidade  pátria,  que  apertada  por  todos 
os  lados  sentia  internamente  os  eITeitos  de  guerra 
por  tal  forma  ruinosa.  Viram-sc  então  os  dois  afa- 
mados guerreiros,  Annibal  e  Scipião  ,  para  ajustar 
a  paz  ,  mas  não  querendo  o  romano  encetar  a  ne- 
gociação sem  que  primeiro  o  senado  de  Carthago 
desse  reparações  ao  de  Roma  discordou  das  propo- 
sições do  carthaginez  ,  e  travando-se  a  batalha  ,  em 
o  anno  de  202 ,  a  perdeu  Annibal  nas  cercanias  de 
Zama  com  morte  de  40.000  dos  seus.  Esta  funesta 
jornada  moveu  os  carthaginezes  a  procurar  a  paci- 
ficação por  meio  de  tratados  com  Roma  ;  e  Annibal, 
envergonhado  de  testemunhar  o  opprobrio  da  Íncli- 
ta Carthago  ,  refugiou-se  na  corte  de  Antiocho  ,  rei 
da  Syria  (3)  e  dizendo  :  livremos  os  romanos  do  ter- 
ror que  lhes  inspiro :  com  veneno  se  privou  da  vi- 
da aos  64  de  sua  idade  ,  no  de  183  antes  de  Chris- 
to :  lemos  em  Polybio  megalopolitano  que  fora  ca- 
sado com  uma  senhora  espanhola,  por  nomelmilce. 
Tito  Livio  representa  Annibal  de  crueldade  des- 
humana  ,  de  perfídia  mais  que  púnica  ,  sem  reli- 
gião, e  sem  respeito  á  santidade  do  juramento.  Dis- 
simulando nós  o  que  leria  do  caracter  e  vicios  de 
sua  nação,  cremos  que  os  actos  attribuidos  a  Anni- 
bal pelo  historiador  latino  são  precisamente  apó- 
criphos  como  nascidos  do  rancor  que  lhe  professa- 
vam os  de  Roma.  —  Valor  mesclado  de  sabedoria, 
firmeza  que  não  consentia  turbações  ,  conhecimento 
perfeito  da  sciencia  militar ,  escrupulosa  atlenção 
em  o  pòr  em  prática  ,  fazem  crer  indubitavelmente 
que  foi  Annibal  um  dos  melhores  generaes ,  que 
tem  apparecído.  Cultivou  as  lettras  em  meio  do  bu- 

(3)  Diz  iiiliailo  uniiiero  de  escrijiUircs  que  i.  procurara 
a  còrle  de  Prusias  ,  rei  de  Bythinia,  e  se  matara  porque  o 
hospede  desleal  o  queria  entregar  aos  romauos. 


licio  das  armas.  São  muitos  os  que  o  inculpam  de 
não  ter  progredido  com  o  exercito  depois  da  bata- 
lha de  Cannas;  repetindo  o  dicto  do  capitão  compa- 
trício ,  Alabarbal  :  —  Annibal ,  sabeis  vencer  ,  porem 
nãit  subds  aproveitar-i-ns  da  vicloria.  —  Outro  escri- 
ptor  mais  judicioso  diz  que  Alabarbal  não  teve  mo- 
tivo para  julgar  tão  de  leve  a  tão  conspícuo  gene- 
ral.   

As  Abtes  ,  is  Lettras  .  e  as  Sciencias  em  tempo 
d'ei.rki  1).  Joio  5.° 

(Fragmento  de  wna  obra  inédita  do  século  passado.) 

E  QUAL  era  então  o  ramo  das  cousas  boas ,  que  não 
espalhasse  llores  nos  dias  de  nosso  augusto  João  li. °? 
De  quantos  bálsamos  não  encheu  elle  céu  e  terra, 
para  medicar  feridas  lilterarias  ,  e  para  que  o  hora 
cheiro  de  suavidade  atrahisse  as  que  ihc  foram  suc- 
cedendo?  Assim  o  viu  desde  Alemanha  o  ingénuo 
Struvio,  pois  que  escrevendo  das  livrarias  estran- 
geiras ,  diz  :  — «  Quando  com  o  governo  de  Juuo  o.° 
amo.idicccu  ás  Musas  luz  mais  serena  ,  exvilou-se  de 
novo  o  amor  das  lettras  por  graça  do  Hercules ,  pro- 
motor delias,  n  —  Mas  onde  não  o  julgaram  assim 
doutos,  e  não  doutos?  Os  livros,  cujas  impressões 
promoveu  ,  e  pagou  o  liberalissimo  soberano,  estão 
cheios  dos  elogios  mais  pomposos  e  verdadeiros , 
que  possam  escrever-so.  O  príncipe  humaníssimo 
gloriava-se  de  ser  na  Arcádia  romana  sócio  com  o 
nome  de  .\rete  Melleo.  Em  numero  de  quarenta  e 
trcs  foram  os  agradecidos  pastores  ,  que  pranteando 
sua  morte  ,  levantaram  em  torno  de  seu  mausoleo 
saudosos  cyprestes  cm  sentimento  e  recoramendação 
da  grande  vida.  que  perderam.  Tudo  isto  é  demons- 
tração, com  aljonações  de  virtudes  mil,  do  que  es- 
creveu o  custodio  da  Arcádia,  Morei,  nas  Jlemo- 
rías  daquella  florida  Sociedade. 

Supponha-se  como  certa  a  celebridade,  que  des- 
fructou  este  soberano  cm  muitas  nações.  Porem  se 
este  logar  não  é  agora  para  tanto  referir  ,  não  po- 
derei conter  o  peso  ,  que  faz  cm  minha  memoria  , 
alem  d'outras  muitas  expressões  a  Gratulação,  com 
que  AuloAmnis  exaltou  o  nome  do  nosso  rei.  Como 
aquelle  sábio  não  quiz  por  força  da  lei  Roscia  de- 
por o  véu  ,  declaro  fallar  do  excellente  varão  D. 
Gregório  Mayans.  Nessa  Gralulaijão  manifestou  em 
compendio  tudo  quanto  pôde  obrar  de  grande  e  il- 
lustrc  um  incomparável  monarcha  ,  e  promotor  das 
.lettras.  Vem  o  dito  cortejo  no  tom.  3.°  de  uma  das 
edições  de  suas  Cartas. 

Se  o  rei  prezava  as  sociedades  externas  de  let- 
tras, mostrou  que  a  politica,  sabiamente  ordenada, 
obrigava  a  forma-las  ,  e  adorna-las  em  casa  ;  nem 
certamente  faltaram  nella  os  Lconio  e  Crescimbcne 
para  idea-las,  e  servi-las.  Tanto  era  necessário,  pa- 
ra se  repararem  as  falias  ,  em  que  incorreram  as 
lettras  ,  desde  que  as  Musas  se  esquivaram  contra 
Palias  armada  pela  guerra  da  successão  de  Hcspa- 
nha  ,  e  pelas  inquietações  das  Communidades  Re- 
gulares no  princípio  do  governo  deste  soberano.  Es- 
tas dissensões  monásticas  foram  appendices  das  cam- 
panhas e  guerra  longa  ,  e  dos  desaguisados  foren- 
ses ,  e  distracções  políticas  do  século  de  seiscentos 
entre  pessoas ,  que  se  por  ventura  para  os  estudos 
socegados  tinham  vontade,  fallava-lhes  o  ócio. 

Viu-se  o  rei,  e  viu  suas  cousas.  Decidiu  que  let- 
tras seriam  distracção  de  males ,  e  logo  seguiria  o 
esplendor  nacional,  e  desempenho  de  uma  das  obri- 
gações essenciaes  do  direito  da  magestade.  Por  me- 


262 


O  PANORAMA. 


Jior  direi  que  o  reino  fez  desta  vontaiJe  soberana  in- 
teresse e  religião  :  a  estes  fins  converteu  sua  acti- 
vidade ;  tralialhou  cm  todos  os  ramos  de  litteratu- 
ra  ,  produzindo  novedios  de  outros,  já  enraizados; 
c  os  demais  forniaram-se  de  nova  plantarão.  O  que 
nós  viamos  naquelles  dias  era  muito  Ijcm  querer  ás 
lettras,  era  diligencia,  alegria,  o  sacrifício  aprazí- 
vel de  todas  as  potencias  ,  para  todos  os  desempe- 
nhos. Estudou-sc,  c  muito ,  e  de  vontade.  Forniou- 
se  ,  e  continuou  o  costume.  Amou-se  tal  vida  ,  por- 
que nella  girava  a  alma  universal,  que  presidia  , 
que  fomentava  ,  e  que  era  guia  ,  protecção  ,  e  pre- 
mio. Sejam  heróicos  os  estudos  particulares,  sejam 
polidos,  tenham  direito  a  grandes  créditos;  se  a 
alma  da  nação  de  tanto  se  não  possue  ,  se  nisso  tu- 
do ella  não  respira  ,  e  se  ainda  mesmo  não  ostenta 
respirar,  esmorecem  os  particulares,  sentem  desa- 
lar-sc  dellcs  o  centro  ;  e  tarde  ou  cedo  cahem ,  e 
na  tristeza  c  desamparo  se  consomem. 

Naquelle  reinado  ,  já  que  a  providencia  por  an- 
nos  e  annos  lhe  não  permittiu  desasocego  ,  foram 
suas  felicidades  mansas,  e  cuidou-se  nas  lettras  , 
ora  levando-as  com  desejo  de  perfeição  ,  ora  pon- 
do-as  era  caminho,  para  que  ellas  cm  nova  surccs- 
são  tomassem  estado  seguro,  e  agradável.  Receben- 
do desde  então  as  sciencias  novas  graças  dedicção, 
c  extensão  maior  de  luzes,  vingariam  assim  a  nova 
herança  contra  os  males  ,  que  a  outros  propósitos 
lhe  podesso  causar  algum  fado  preto  nos  bons  estu- 
dos. 

Vingança  ,  por  certo  bem  merecida  ,  porque  no 
governo  do  senhor  rei  D.  José  1."  as  sciencias  e  as 
artes  neste  reino  tem  dado  que  admirar  pelas  sabias 
leis,  disposições  litterarias,  e  intimação  de  melho- 
res estudos  ;  prémios,  e  despachos,  em  que  só  lhes 
faltou  a  vida  do  heroe  soberano ,  victorioso  de  em- 
baraços enormes,  para  concluir  o  começado  com  em- 
penho digno  de  toda  a  boa  e  feliz  sorte  ;  e  de  que 
corressem  no  publico  maior  vulto  de  producçõcs  lit- 
terarias ,  quaes  promcttia  seu  formoso  apparato.  Os 
diaristas  de  Leipsic  escreveram ,  dando  conta  da 
nova  legislação  iitleraria  da  Universidade  de  Coim- 
bra, que  o  rei  José  merecia  o  raro  conceito  de  sá- 
bio promotor  das  lettras ;  masque  no  entretanto  não 
podia  conseguir  o  que  pertcndèra.  Não  rellectiram 
sobre  a  capacidade  da  nação  :  foi  agouro  nascido  de 
sobreviver  o  raonarcha  aos  Estatutos  da  Universida- 
de seis  annos  unicamente,  atribulados  com  a  guer- 
ra do  sul,  e  enfermidade  lenta  e  mortal. 

Em  cousa  ,  que  não  é  agora  o  principal  objecto  , 
serão  bastante  ligeiros,  mas  necessários,  toques  so- 
bre os  cuidados  litterarios  no  reinado  do  senhor  D. 
JoãoS.";  porque  amassa  de  si  é  especiosa. —  Abriu 
exemplo  a  Academia  Real  da  Historia  ,  instituida 
generosamente ,  na  qual  as  virtudes  libcracs  mos- 
traram quanto  podem.  As  ordens  religiosas  produ- 
y.iram  suas  historias  ,  e  apoz  ellas  se  imprimiram 
muitas  outras  memorias  a  outros  respeitos  ,  úv.  que 
recebeu  a  religião  c  a  pátria  muito  credito.  Mere- 
ce a  Academia  Real  da  Historia  elogios  mui  deco- 
rosos pelo  ardor  ,  com  que  se  esmerou  ,  pelas  mui- 
tas obras  de  necessária  instrucção  c  rauito  apura- 
das ,  que  produziu  ;  c  ainda  mesmo  por  outras  de 
outro  género;  porque  ellas  se  devem  considerar  co- 
mo hu  e  estimulo  para  excitar  outros  homens  ,  e 
outras  producçõcs.  Esta  Academia  descobriu  minas 
riquíssimas  de  noticias  ,  cujo  elogio  nunca  hãode 
apoquentar  os  descobrimentos  mais  afortunados,  que 
se  lhes  tem  seguido.  Delia  nasceram,  c  a  cila  fize- 
ram apparato   mui  sensível   as  composições  históri- 


cas, que  a  foram  acompanhando  com  muita  compe- 
tência ,  e  cortezia  ,  dando  lume  útil  á  nação.  O  rei 
com  seu  exemplo  merecia  a  cooperação  dos  vassal- 
los.  Elle  mesmo  ia  á  Torre  do  Tombo  examinar  do- 
cumentos. Para  memoria  de  sua  judiciosa  condes- 
cendência sobre  a  conservação  de  nossas  Memorias, 
escrevo  o  que  recebi  da  boca  de  Manuel  da  Maya  ; 
que  indo  eirei  á  Torre  ,  c  qnasi  ao  anoitecer  ,  lhe 
perguntara  aquelle  guarda-mór  se  dispensava  na  lei 
do  archivo  ,  para  ir  buscar  luz  de  vela  :  respondeu 
o  rei  que  era  fácil  elle  voltar,  com  tanto  que  se 
conservasse  illesa  unia  tal  cautella. 

Mas  da  academia  diziamos.  Quando  o  velho  An- 
tónio de  Carvalho  gemia  debaixo  de  cuidados  e  di- 
ligencias, mal  pagas  pela  lórtuna  escassa,  que  se 
atreveu  a  competir  vicloriosamente  com  os  prémios, 
então  formou  no  principio  do  século  uma  quasi  au- 
rora da  academia,  dando  á  luz  a  Corograpliia  Por- 
tugiieza.  Outros  ,  e  outros  curiosos  lembraram  por 
modo  pratico  aos  patriotas  a  obrigação  de  contarem 
ao  mundo  a  dignidade  dos  procedimentos  nacionaes. 
Eis-aqui  o  espirito  dos  três  saudosos  irmãos  e  sá- 
bios, Barbosas.  A  conservação  da  litteratura  portu- 
gueza  na  liibiwtltcca  Lii.nlnim  merece  toda  a  me- 
moria agradecida.  Pelo  que  nós  hoje  sentimos,  igno- 
rando os  cscriptos  dos  nossos  coetâneos,  devemos 
passar  á  estimação  do  que  nos  conservou  o  abbade 
Diogo  Barbosa.  Junto  a  esta  memoria  vou  collocar 
as  fadigas  dos  eruditos  beneficiados  Francisco  Lei- 
tão Ferreira  ,  e  João  Baptista  de  Castro  ,  decoros 
do  clero  secular,  trabalhadores  incansáveis ,  e  de 
muita  erudição.  Alem  de  muitos  ,  e  muitos  outros 
investigadores  de  nossa  historia  ,  seja  o  meu  béjen- 
sc  dominicano  ,  Fr.  Francisco  de  Oliveira  ,  um  no- 
tável desengano  de  paixão  pela  historia  ,  e  do  pre- 
ço de  fazenda  e  vida  consumidas  por  elle  cm  des- 
cobrir monumentos  da  antiguidade.  Nós  certamente 
os  vimos  por  elle  descobertos,  e  desapparccidos  por 
outros.  Fado  triste  haveria  acabado  algdns  restos, 
que  eu  tenho  podido  salvar  a  pedaços,  e  sangue.  (•) 
Deixada  agora  a  bibliographia  de  crescido  nume- 
ro de  curiosos  ,  que  ou  se  deram  a  ler  em  seus  es- 
criptos ,  ou  padeceram  a  desgraça  de  que  o  terre- 
moto fatal  devorasse  as  suas  collecçõcs,  e  suas  com- 
posições ,  c  actividades  litterarias ,  faço  memoria 
das  grandes  fadigas  da  Academia  Real  da  Historia. 
Pelos  sábios  indivíduos  delia  conhecemos  o  fervor 
dos  estudos ,  e  determinação  libcralissíma  de  dar 
ao  publico  noticias  e  luzes  variadíssimas.  Só  aqui 
recorda  as  duzentas  c  duas  obras  diversas ,  que  já 
no  anno  de  vinte  c  nove  tinha  promptas  o  conde  da 
Ericeira  ,  Francisco  Xavier  de  Menezes  ,  que  sen- 
do impressas  dariam  cm  cem  volumes ,  cujo  cata- 
lago  so  acha  no  fim  da  Fabula  de  Eccho  e  de  Nar- 
risn,  na  qual  respondeu  elle  pelos  mesmos  consoan- 
tes a  outra  símílhante  Falnda  do  marqucz  de  Mon- 
tcllano,  em  as  reaes  vodas  dos  nossos  príncipes, 
celebradas  no  Caía.  Logo  depois  se  imprimiu  a  Bi- 
Uiolhcca  Simmna  ,  que  mostra  a  variedade  de  espc- 
cies,  que  então  se  volviam.  O  desembargador  Igna- 
cío  da  Costa  Ouiiitella  dou  á  luz  a  JlihHofhcca  dos 
Jurisconsultos  Ltisilaiws  ,  e  intentava  não  só  dar  os 
nomes,  como  deu,  havendo-se  depois  descoberto 
muitos  outros  ,  mas  lambem  as  mesmas  Postillas  , 
começando  pela  da  Instituição  dos Ucrdeiíos  ,  dicla- 
da  por  Pedro  Barbosa  ;  c  isto  fazia  com  meditações 
e  projectos  sobre  direito  lusitano,  e  disputas  ana- 
lylicas  ,  com  emulação  aos  Cujacios  ,  e  como  o  sa- 
7õ  ^Kstcs  restos  ainda  liuje  se  conservam  na  Bibliollieca 
l'ublica  liijoreusc.  -  - 


o  PANORAMA. 


263 


bio  Mayans  enviava  a  Mccrmans  para  a  sua  grande 
collecfão.  Deixo  esta  parte  das  nossas  erudições,  e 
prendo-me  á  Academia  da  Historia. 

Foi  seguindo  o  exemplo  de  seu  instituto ,  que 
desde  o  século  de  seiscentos  havia  já  fundido  pelo 
reino,  levantando-se  outras  academias  de  novo,  par- 
ticulares ,  e  desenganando  as  i)ovoaçõcs  principaes 
do  reino  quanto  ódio  tinham  os  nossos  ;i  ociosida- 
de, e  de  quanto  poder  é  a  inclinação  dos  sobera- 
nos era  bem  dos  povos,  particularmente  onde  a  cor- 
tezia  compele  com  a  vassallagem.  Tomou  calor  a 
academia  do  conde  da  Ericeira  ,  occupada  em  lar- 
ga philologia.  O  senhor  infante  I).  António  foi  pro- 
leclor  de  outra  academia,  celebrada  uo  mesmo  seu 
gabinete  do  paço,  para  escrever  as  memorias  das 
artes  e  sciencias;  ò  que  me  faz  lembrada  a  iuno- 
cenle  Macariopotis  do  nosso  bcmaveuturado  prínci- 
pe D.  Tlieodosio  ,  instituída  no  seu  gabinete. 

A  curiosidade  genérica  d"elrei  determinou  a  seu 
enviado  junto  ;i  santa  sé,  Jlanuel  Pereira  de  Sam- 
paio ,  formasse  a  collecção  de  quanto  pertencesse  á 
historia  do  reino ,  que  nas  bibliothecas  da  Guria 
podesse  descobrir.  Pode  ser  que  desta  lembrança 
seja  algum  desempenho  a  collecção  debaixo  do  ti- 
tulo Summirta  Lusilanica ,  de  que  se  sabe  passar 
de  oitenta  volumes  (::).  Este  mesmo  pensamento 
eommctleu  cm  o  anno  de  cincoenta  e  seis  o  rei  ca- 
tholico  ,  Fernando  VI ,  ao  sábio  arcediago  Francis- 
co Pcrcz  Bayer ,  como  elle  insinua  uo  seu  Dâmaso 
e  Lourenço  vingados  a  Hespanha.  Com  igual  curio- 
sidade encarregou  clrci  a  seu  ministro  plenipoten- 
ciário junto  a  S.  M.  Britannica  ,  Sebastião  José  de 
Carvalho  e  >[ello ,  para  que  formasse  uma  collec- 
ção de  bíblias  hebraicas,  e  de  tudo  quanto  perten- 
cesse a  seus  ritos ,  leis ,  costumes ,  c  policia  em 
qualquer  das  línguas  vivas  ;  o  que  elle  desempe- 
nhou ,  chegando  essa  preciosa  collecção  a  Lisboa 
cm  o  anno  de  setecentos  e  quarenta  e  três.  Xomea- 
do  por  este  tempo  Martim  de  Jfendonça  biblíothe- 
cario  d'clrei,  adiantou  este  ramo  de  erudições,  fa- 
zendo vir  no  mesmo  espirito  as  referidas  obras  na 
língua  original ,  de  que  elle  era  muito  intelligente. 

Mas  linces  lentara-se  a  dar  de  mão  era  tantas  fa- 
digas d'elrei  e  da  academia,  por  lhes  faltarem  de- 
licadezas e  verdades  apuradas.  Já  comludo  as  sol- 
lícitavam  muitos  membros  da  academia  :  já  o  que 
de  nós  pretendiam  os  bollandistas  e  críticos  deTre- 
voux  se  chamava  a  bom  exame  ,  ou  para  condes- 
cender, ou  para  rei>ugnar  devidamente  :  já  na  iden- 
tidade de  rasão  com  o  admirável  niarquez  de  Agro- 
poli ,  e  seu  favorecido  Nicolau  António,  e  com  as 
scveridadcs  do  deão  Alarti  ,  e  delicado  senso  do  ze- 
lantissimo  llayans,  se  trabalhava  em  proporção  de 
justiça  e  equidade,  sendo  lodus  elles  corresponden- 
tes de  nos-as  academias.  Estes  votos  e  diligencias 
sobre  os  trabalhos  de  ajuntar  e  digerir  memorias 
eram  cançada  occupação  de  nossos  académicos  his- 
tóricos ,  que  todavia  não  excluíam  outros  estudos. 

(Continuur-se-liaJ. 


Da  variedade  do  gentio  da  I.ndia  ,  e  especialmente 

NO  rilE  TOCA  Á   EELIGIÃO. 

Depois  que  dissemos  alguma  cousa  do  fructo  que  o 
padre  Francisco  naquella  costa  fez  em  os  que  já 
eram  chrístãus  ,  aos  quacs  elle  se  deu  sempre  por 
mais  obrigado  que  aos  infiéis  ;  segue-se  que  digâ- 
(::>  Esta  vTaiuIe  collec(;5ci,  que  passa  não  só  ile  80vol. 
mas  de  200 ,  em  íol. ,  está  na  Bibliolbcca  Beal  Ua  Ajuda- 


mos também  quanto  trabalhou  ,  e  o  que  acabou  na 
conversão  destes.  E  postoque  servira  para  melhor 
se  entender  esta  parle  da  historia  tratar  aqui  um 
pouco  mais  largamente  da  natureza  ,  sortes  ,  quali- 
dades, e  costumes  do  gentio  da  Índia,  cu,  deixan- 
do a  outros  tudo  o  mais,  farei  caso  somente  do  que 
tem  respeito  á  religião.  Das  cousas  do  céu  e  eter- 
nas ha  entre  elles  mui  pouca  ou  nenhuma  noticia  : 
nas  Icmporaes  ,  e  da  terra  são  espertos  ,  e  tão  en- 
tendidos ,  que  não  dão  vantagem  nas  subtilezas  dos 
l ratos  ,  c  contratos  aos  mercadores  da  Europa.  Es- 
timam só  esta  vida  ,  e  os  pontos  em  que  põem  a 
honra ,  que  ,  como  anda  cora  a  vaidade  e  incons- 
tância da  opinião  dos  homens  ,  são  lá  mui  differcn- 
tes  dos  de  cá  :  viciosos  tanto  em  cabo.,  e  tão  deso- 
brigados á  fé  e  verdade  humana  ,  que  parece  per- 
deu com  elles  a  própria  consciência,  ou  o  ollicio  de 
remorder,  ou  de  toda  a  auctoridade  c  força  de 
convencer  e  persuadir  :  sendo  na  raechanica  das  ar- 
tes estremados,  das  sciencias  tem  somente  alguma 
medicina,  e' da  astrologia  o  que  basta  para  tira- 
rem os  eclypses  do  sol  e  da  lua  ,  tanto  d'anlemão  , 
e  a  ponto  como  nõs.  Escrevem  com  pennas  de  fer- 
ro ,  e  servem-lhes  de  papel  [como  de  mil  outras 
cousasl  as  folhas  das  suas  palmeiras ,  de  qne  fazem 
grandes  livros  das  historias  dos  tempos  e  d'outras 
muitas  matérias  ,  assim  em  prosa  ,  como  em  rima  , 
da  qual ,  e  de  toda  a  parte  ,  e  de  toda  a  sorte  de 
poesia  são  por  extremo  curiosos  ,  e  tão  enlevados 
que  para  o  demónio  por  seus  ministros  lhes  fazer 
crer  as  mais  fabulosas  patranhas  contrarias  a  suas 
próprias  leis  ,  e  rasão  natural .  basta  porcm-lh'as  , 
e  cantarem-lh'as  cm  verso  ,  que  postoque  no  nu- 
mero das  syllabas  seja  mui  dilTerente  do  nosso  e 
do  latino  [porque  em  cada  um  hade  haver  setenta 
e  duas]  não  deixa  de  ler  sua  graça  e  magestade. 
Nestes  versos  está  escripta  em  uma  língua  particu- 
lar chamada  gcwdam  a  sua  philosophia  e  theolo- 
gía  ,  que  os  brâmanes  estudam  e  lècra  era  univer- 
sidade por  toda  a  índia.  Consta  esla  doutrina  de 
quatro  partes,  cada  uma  das  quaes  se  divide  pri- 
meíramenle  em  leis  a  que  chamam  corpos  ;  e  de- 
pois em  dezoito  com  o  nome  de  membros ,  e  final- 
mente em  vinte  e  oilo  intitulados  artículos.  E  tra- 
ta-sc  na  primeira  das  quatro  partes  da  causa  e  prin- 
cipio do  Universo ,  da  primeira  matéria  ,  dos  an- 
jos ,  das  almas ,  do  premio  do  bem  ,  do  castigo  do 
mal ,  dos  elementos  da  geração  e  corrupção  das 
crealuras ;  que  cousa  seja  peccado  ,  como  se  deva 
remir,  e  quem  pôde  delle  absolver.  São  o  argu- 
mento da  segunda  os  espíritos  que  elles  intitulam 
regentes  dos  céus  c  dos  elementos  ,  e  a  que  dão  o 
governo  de  todas  as  cousas  criadas.  A  terceira  par- 
te toda  é  moral ,  de  bons  preceitos  e  conselhos  ,  as- 
sim para  a  vida  politica  ,  como  para  a  contemplati- 
va ,  de  que  fazem  particular  profissão.  A  quarta 
contém  as  ceremonias  dos  pagodes  ,  os  sacrifícios  . 
as  festas  ,  e  á  volta  disso  muitas  feiticerias ,  encan- 
tamentos ,  e  grande  parte  da  arte  magica.  Na  dis- 
tincção  das  gerações  e  famílias  fazem  vantagem  a 
outra  gente  do  mundo.  É  nada  em  sua  comparação 
quanto  nesta  parte  houve  entre  as  casas  e  tribus 
do  povo  d'Israel.  Porque  em  muitas  famílias  do  In- 
dostão nem  somente  não  podem  casar  as  pessoas 
j  d'uma  com  as  da  outra,  mas  nem  comer  á  mesma 
]  mesa,  nem  entrar  na  mesma  casa,  nem  estar,  nem 
passar  juntamente  pela  mesma  rua.  Assim  tem  re- 
partido os  oficios  de  serviço  da  republica  ,  fazcn- 
i  do  os  de  menos  sorte  t.smechanicos,  com  tal  ordem 
I  porem  que  cada  fainilia  usa  o  seu  tem  poder  ia- 


264 


O  PANORAMA. 


mais  entrar  no  da  outra.  Os  nobres,  ou  são  nai- 
rcs  ,  que  seguem  somente  a  guerra  ,  ou  brâmanes  , 
a  quem  pertence  o  falso  culío  dos  pagodes ,  e  me- 
neio de  suas  superstições.  Estes  fazem  a  todos  os 
outros  grandes  vantagens  ;  porque  alem  do  falso  sa- 
cerdócio ,  tem  o  poder  c  auctoridade  real  ,  que  an- 
da na  sua  família  já  de  muitos  annos,  tom  cujo  fa- 
vor cila  c  a  mais  respeitada,  e  dilatada  na  índia  e 
em  outros  muitos  reinos  orientaes.  Professam  geral- 
mente grande  abslinencia,  porque  de  mais  de  mui- 
tos jejuns  que  tem,  nenhum,  posloquc  seja  rei, 
pôde  por  nenhum  caso  beber  vinho,  nem  comer  al- 
guma sorte  de  carne  ,  ou  pescado  ,  nem  cousa  cm- 
lim  que  tivesse  vida.  Mas  ainda  entre  ellcs  ha  mui- 
ta diversidade.  Uns  vivem  com  suas  mulheres  c  fi- 
lhos nas  villas  c  cidades,  tratando  a  mercancia 
como  toda  a  outra  gente.  Outros ,  a  que  chamam 
jogues ,  e  os  gregos  antigamente  chamaram  gymno- 
sophistas,  vendem-se  por  homens  castos,  não  se 
obrigando  nunca  ao  matrimonio  ;  dos  quaes  muitos 
tomara  por  vida  peregrinar  por  todo  o  oriente,  pre- 
gando á  gente  cega  os  sonhos  de  sua  superstição  , 
que  acreditam  c  persuadem  com  grande  aspereza  , 
com  que  se  tratam  assim  no  vestir,  como  no  comer. 
Alguns  entrando  pelos  desertos,  c  meios  enterrados 
nas  lapas  e  covas  das  feras  ,  passam  com  incrível 
solTrimento  quanto  se  pôde  imaginar  de  dureza  e 
trabalho,  em  fomes,  sedes,  frios,  calmas,  nude- 
r.a  ,  contínuas  vigias,  fugindo,  como  se  lhe  tive- 
ram ódio  ,  a  tudo  o  que  i)ódc  ser  de  gosto  e  alento 
á  natureza.  Mas  feito  o  noviciado  e  curso  deste  tem- 
po,  c  ellcs  agradiiados  á  ordem  que  entre  si  tem 
com  o  nome  de  abdutos  ,  e  pela  qual  dissimularam 
cora  tão  forte  vida,  ficam  em  premio  da  falsa  peni- 
tencia, c  por  gloria  da  mais  falsa  religião,  com  pu- 
blica licença  para  se  engolfarem  em  toda  a  sorte 
de  vicios,  por  abomináveis  que  sejam,  sem  alguém 
se  poder  nem  escandalisar  quando  os  vê  ,  nem  ag- 
gravar  quando  lhe  loca  :  havendo  que  até  das  leis 
da  rasão  c  da  vergonha  os  fez  não  somente  isentos  , 
mas  senhores  ,  aquelle  seu  deserto  e  supersticiosa 
aspereza.  Que  quando  é  religiosa,  como  o  foi  a  dos 
santos  ermitões  da  lei  da  graça,  tem  por  fim  a  per- 
feita imitação  da  pureza  dos  anjos  nas  almas  e  nos 
corpos  ,  e  não  vai  parar  naquelles  monturos  de  tor- 
peza ,  com  que  o  inimigo  de  longe  faz  negaça  aos 
infleis  cegos,  c  tanto  mais  carnaes  quanto  mais  sof- 
frem  pela  carne. 

Acerca  da  noticia  das  cousas  divinas,  e  naluraes, 
e  moraes  um  livro  ha  entre  os  seus,  que  contém  mil 
e  trezentos  e  trinta  versos  ,  escripto  na  cidade  de 
Meliapor ,  quasi  no  mesmo  tempo  que  nelle  prega- 
va o  apostolo  S.  Thomé  ,  por  um  homem  chamado 
Valuver,  cuja  doutrina  os  mesmos  brâmanes  tem 
cm  grande  reputação,  e  ella  o  merece,  porque  dá 
boa  noti<ia  d'um  só  Creador  do  mundo,  e  trata  da 
reverencia  que  se  lhe  deve  ,  do  despreso  dos  Ído- 
los, da  necessidade  da  penitencia,  do  preço  da  hu- 
mildade, contras  virtudes,  portão  bons  termos  que 
se  presume  teve  o  auclor  conhecimento  com  o  san- 
to apostolo,  e  que  delle  tomou  o  que  escreveu.  Aos 
mais  livros  da  philosophia  ctheologia  dos  brâmanes, 
não  ha  verdade  |se  alguma  ha]  que  não  esteja  ves- 
tida, c  acompanhada  de  muitas  e  mui  prcjudiciaes 
mentiras  ;  o  assijn  posto  que  tratando  da  primeira 
causa  ,  a  chamam  Deus  ,  e  digam  ,  que  é  ura  espi- 
rito puro  ,  incorpóreo  ,  infinito  no  ser  ,  no  poder  , 
na  bondade  ,  e  de  tal  maneira  immenso  ,  que  está 
inteiramente  em  todas  as  cousas ,  e  partes  do  mun- 
do ;   lugo  porem  ajuntam  que,  uuo  eutcnde  no  go- 


verno delle,  negando-lhe  totalmente  a  providencia, 
e  apoz  isso  o  temor,   adoração,   e  serviço  dos  ho- 
mens ;  obrigando-os  por  outra  parte  a  idolatria  do^ 
três  espíritos  ,   que  fazem  regentes  das  espheras  do 
fogo,  do  ar,  e  da  agua.  Porque  ao  que  dizem  que 
governa  a  terra  ,  a  que  chamam  Bráhema  ,  não  or- 
denaram pagodes  nem  sacrílicios  ,   persuadindo  ao 
povo  bárbaro   e  cego   ser   sua  vontade  delle   que  o 
adorem  ,    e  situem   nas  pessoas  dos  mesmos  bramc- 
nes ,   por  descenderem  delle  por  antiga  e  immortal 
geração,  e  o  representem  como  seus  verdadeiros  fi- 
lhos melhor   que  nenhuma   imagem  ,   nem  estatua. 
Oue  foi  diabólica  invenção  para  o  inimigo  repartir 
entre  si  c  seus  ministros  a  adoração  toda,  e  a  tirar 
somente  ao  verdadeiro  Deus.  A  todos  aquelles  espí- 
ritos regentes  do  mundo  fazem  como  filhos  da  pri- 
meira causa  ,   e  participantes  da  i)rimcíra  divinda- 
de, e  por  honra,  e  culto  supersticioso  dos  três,  que 
dissemos,   traz  cada  brâmane  nm  tiracollo  de  Ires 
fios  alados  ,  e  rematados  em  um  só  nó.   E  tem  nos 
cdificios  dos  pagodes   algumas  torres  ,   que  sendo 
Ires  ,    c  (lííTerentes  nos  alicerces   c  maior  parte  das 
paredes  ,   se  vão  ajuntar  e  acabar  cm  uma  só  pyra- 
mide.    E  muitas   vezes   para  significarem   a  confor- 
midade queelles  dizem  ter  os  mesmos  espíritos  com 
opcr.ihamá  [que  assim  chamam  á  sua  primeira  cau- 
sa] os  pintam  a  todos  três  com  um  só  corpo  da  cin- 
ta para  baixo,   e   da  cinta  para  cima  com  três  ros- 
tos ,   que  alguns  dos  nossos   houveram  como  relí- 
quias  da  fé   da  Santíssima  Trindade,    pregada  [di- 
zem] antigamente   em  todas  aqncllas  partes  ,    e  de- 
pois apagada  e  trocada  pela  industria  do  demónio. 
e  peccados  dos  homens.  Tudo  pode  ser.  Mas  eu  re- 
conhecendo no  Oriente  a  pregação  e  luz  do  Evan- 
gelho já  do  tempo  do  apostolo  .S.  Thomé,  ainda  te- 
nho  os  Ires   deuzes   dos  brâmanes   por  mais   antigo 
engano  e  mera  invenção  do  demónio  que  pelo  rasto 
que  alli  lioasse  de  nossa  fé  saniissima.    Porque  não 
só  nesta   matéria  ,   e  naquellas  castas  ,   mas  em  to- 
das as  d'outra  qualquer  gentilidade  [como  notaram 
bem   os  santos]   pretendeu   o  inimigo  fazer-se  bogio 
do  verdadeiro  Deus  ,   arremedando   [não   em  mais  , 
porem    em   quanto    lhe   servia   e   serve   para    enga- 
nos]  assim   os  mysterios   da  lé  ,    como   as  sagradas 
ceremunias  do  culto  divino:   a  fim  que  prégando-se 
depois  as  verdades,  as  não  tivessem  os  homens  por 
dilferentes  das  mentiras  em  que  se  criaram  :   que 
quando  a  visla  é  curta,  e  as  cousas  tem  alguma  si- 
milhança  ,  facilmente  se  toma,  ou  deixa  de  tomar, 
uma  por  outra.   E  assim  veremos  que  nas  ilhas   do 
Jajião  ,  onde  o  demónio  tinha  mais  contrafeitas  nos- 
sas cousas   por  encobrir   as  suas ,    arremedando  até 
a  clausura  ,    templos  ,    hábitos  ,    coro  ,    e  mais   oíTi- 
cios  monásticos,  com  esta  similliança  fazem  os  bon- 
zos não  pequena  guerra   ao  Evangelho.    Porque  co- 
mo  o  lume   da  rasão   natural  ,    por  claro  que  seja, 
uão  chegue   por  si   a  descobrir   o  particular   e  pró- 
prio dos  mysterios  de  nossa  santa  fé  ;  e  no  que  dei- 
los   de  fora   alcança   veja  que   lhes   são  similliantcs 
aipiellas  sombras  lambem  lançadas  pelo  inimigo,  pou- 
co basla  para  lhe  |)ersuadir  que  tudo  é  na  substan- 
cia  o  mesmo,    c   que  não   ha  para   que  façam  mu- 
dança da  antiga  crença,   adoração  c  vida.  —  Padre 
Jitão  de  Lucena,  llisloria  da  Vida  do  Padre  S.  Fran- 
cisco Xavier  ,  capitulo  XI  [*). 

(•)  A  quem  n.~io  tiver  limpo  ou  fallar  vonlaile  <ie  ler  oio- 
liiniiiso  Lucena,  olfpteieiiK  s  eslc  exirnclo  para  que  se  veja 
ipiai  a  certeza  e  veraciílailc  ilc  suas  nolicias  comliinanilo-nii 
cuui  «s  inoilernus  esci  ipUiresesIraiifreirus.  Quniilu  a  pura  lin- 
guagem elástica,   qunlidaUe  é  cssji  que  uiiiguom  llie  Dvt'oa. 


87 


o  PANORAItf A. 


2(io 


A  POSTA  2>OS  AFOSTOI.OS  NA  SE  DE  FAI,MA. 


As   ILHA?   Baleábeí. 

2.°  (•] 

A  CAPITAL  da  formosa  e  ferlil  Malhorca  é  a  cidade 
de  Palma,  assentada  á  horda  d'agua  no  fundo  da 
sua  espaçosa  e  circular  bahia,  aberta  ao  sul,  e  ro- 
deada no  contorno  de  uma  légua  de  jardins  e  ca- 
sas ,  que  formam  continuada  povoação ,  tanto  na 
planicie  que  se  dilata  ao  nascente  ,  como  sobre  as 
aprazÍTcis  e  viçosas  coUinas  do  noroeste  e  poente. 
N'uma  destas,  a  pouco  menos  de  légua  da  cidade, 
carapèa  e  guarda-a  como  scntiaella  vigilante  o  cas- 
tello  de  Bellver,  de  estructura  gothica  e  figura  cir- 
cular, flanqueado  de  elegantes  torres,  entre  as  quaes 
sobresahe  a  de  menagem  :  na  sua  origem  alcaçar  e 
palácio  de  recreio  dos  reis  de  Malhorca  :  depois 
fortaleza  e  principal  defensão  da  cidade  :  e  por  fim 
(•"I     O  primeiro  arliso  em  o  u.°  antecedenle. 

Agosto  26  — 1843. 


prisão  d'estado ,  celebre  pelo  desterro  de  Jovella- 
nos,  e  o  espingardeamento  deLacy.  Na  mesma  cos- 
ta ,  quasi  na  falda  de  Bellver  ,  está  o  lazareto  .  o 
castello  de  S.  (iarlos  ,  a  torre  de  Senhas  ,  e  Porto- 
pí ,  antigo  porto  de  Palma  ,  que  por  sua  estreiteza 
e  acanhamento  actual  daria  motivo  a  duvidar-se  de 
que  em  tempos  remotos  se  abrigaram  dentro  delle 
tresentas  galés,  segundo  as  chronicas  referem. 

Sem  contar  a  numerosa  população  dos  arrabal- 
des, contem  Palma  no  próprio  recinto  mais  de  trinta 
e  seis  mil  habitantes.  É  capital  das  Baleares,  onde 
residem  as  aucloridades  civis  e  ecclesiasticas.  Pes- 
de  1483  teve  escolas  geraes  ,  convertidas  em  1(563 
era  universidade,  que  foi  chamada  Lulliana  do  no- 
me de  seu  patrício  celebre  ,  Raymnndo  Lullo  :  es- 
tabelecimento que  depois  de  seguir  varia  fortuna  . 
e  estar  por  duas  vezes  fechado  neste  século  ,  de- 
sappareceu  em  virtude  do  decreto  de  10  d'agosío 
de  1842. 

2.'  Serie.  —  Voi.  lí. 


266 


O  PANORAMA. 


Não  carece  1'alma  de  hospitaes  coiumodos  ,  de 
institutos  de  beneficência,  de  passeios  públicos  afur- 
moseados  de  arvoredo:  eabc-lhe  e  lhe  pertence  quan- 
to ó  devido  a  uma  cidade  de  commercial  importân- 
cia.—  As  fortes  e  altas  muralhas ,  guarnecidas  de 
baluartes,  e  cercadas  de  fundos  c  larguíssimos  fos- 
sos ,  que  cingem  completamente  Palma  ,  coracça- 
ram-se  em  1562  para  substituição  dos  mui  antigos 
e  arruinados,  que  sem  du\ida  haviam  erigido  os 
árabes,  e  consistiam  cm  taipas  grosseiras  ,  de  que 
ainda  vestígios  se  descobrem.  A  fabrica  da  nova 
cerca  levou  o  restante  do  século  16."  e  todo  o  17.°, 
e  ainda  cm  1801  não  eslava  concluido  o  lanço  que 
deita  para  o  mar.  —  Virgens  de  sangue  e  de  resis- 
tência ,  sem  vomitarem  de  suas  alturas  a  morte  , 
sem  na  grossura  receberem  destruidora  bala  ,  até  o 
presente  outro  uso  não  tem  tido  senão  o  servirem 
de  agradável  passeio  aos  que  naqucUe  giro  vão  con- 
templar como  cm  vista  de  panorama  os  distinctos 
c  diversos  aspectos  da  cidade  e  das  campinas  que 
estão  visinhas. 

Não  pôde  carecer  de  cdificios  e  monumentos  di- 
gnos de  nota  a  que  foi  por  mais  de  um  século  cor- 
te de  um  reino  llorcceute  [se  bem  que  pequeno]  e 
empório  de  commercio  e  trafego  mercantil.  Assim 
((ue  é  avistada  do  alto  mar,  a  grandiosa  sé  com 
sua  multidão  de  pyramides,  sobrepujando  lodos  os 
edifícios  ,  se  manifesta  ;  c  logo  a  elegante  Bolça  ou 
praça  do  commercio  demonstra  a  riqueza  de  sua 
gerência  antiga  ;  como  aquella  testemunha  o  espi- 
rito religioso  coadjuvado  pela  opulência:  as  torres 
maciças  do  paço ,  em  cuja  cima  está  como  vigia 
um  anjo  ,  denotam  o  primitivo  poder  e  a  dignidade 
de  curte  :  —  trinla  campanários  de  outras  tantas 
igrejas  ,  c  o  amphitbcatro  de  casas  cqroadas  pela 
maior  parte  de  torrinhas  e  eirados,  formara  o  con- 
juncto  da  cidade. 

A  calhedral  é  de  Ires  naves ,  c  sustentada  era 
columnas,  que  pelo  esbelto  e  delgado  delias,  e  sua 
proporção  relativamente  á  altura,  causam  assombro 
aos  que  as  contemplam;  se  muitas  sés  a  cclypsam 
cm  riqueza  de  adornos  e  esculpturas ,  poucas  a  su- 
perara era  raagestadc  e  elegância  do  delineamento  , 
p  no  grandioso  c  bem  ajustado  das  proporções.  To- 
davia não  se  pense  que  é  destituída  de  toda  a  cas- 
ta de  ornamentos :  são  dignos  <le  allcnção  o  bcUo 
coro ,  a  capella  real ,  vários  painéis  de  Mesqiiida  e 
outros  professores  ,  o  relevo  da  capella  de  Corpus 
<;hristí ,  os  famosos  candelabros  de  prata  ,  obra  de 
dois  artífices  catalães,  os  túmulos  d'alguns  bispos, 
o  órgão  que  é  mui  gabado  ;  e  os  anjos  e  outras  es- 
culpturas de  mármores  na  raiz  dos  arcos  d'aboba- 
da  :  porem  o  objecto  arcliitectonico  talvez  mais  no- 
tável é  a  celebrada  porta  lateral  ,  dita  dos  Apósto- 
los .  como  na  estampa  se  representa. 

O  teclo  deste  cdificio  maguílico  descansa  sobre 
duas  ordens  de  sete  columuas  de  ITJ-j  palmos  de 
diâmetro  c  1:>6  de  elevação;  o  plano  da  igreja  me- 
de ÍOT  palmos  de  comprimento  e  19!)  de  largura 
com  223  de  altura  na  mais  elevada  abobada. 


As  .\llTES  ,   AS   LeTTRAS  ,   E  AS  SCIENCIAS  EM  TEMPO 

D'ELni:i  D.  João  S.° 
(Fragmento  de  uma  obra  inrdila  do  século  passado.) 


O  MONno    physico  ,   ainda   na  parte   da  historia  na- 
tural ,   feitiço  c  aproveitamento  nestes  dias,   mere- 


ce lembrança  digna  de  conservar-se.  No  anno  de 
vinte  c  quatro  por  ordem  d'elrei  foi  Mcrveilleux 
examinar  as  raridades  de  Cintra  ,  onde  achou  uma 
agalha  ,  c  se  persuadiu  haver  alli  mina  de  simi- 
Ihantcs  pedras.  Era  quarenta  e  oito  foi  á  mesma 
serra  o  inglcz  Guilherme  Duque  ,  e  descobriu  três 
grandes  pedras  de  cevar,  junto  ao  convento  da  Pe- 
na. Em  1730  já  recolhia  era  rauseu  particular  pro- 
ducçõcs  naturaes  o  cardeal  da  Cunha  ,  e  nesse  an- 
no lhe  fez  um  regalo  notável  de  muitas  curiosida- 
des da  America  Rodrigo  César.  Com  a  notícia  des- 
tas poderia,  augmentar-se  o  catalogo  das  jilantas  cul- 
tivadas no  jardim  botânico  d'elrei  de  Franca  pelo 
intendente  Guy  de  la  Brosse  ,  onde  traz  mais  de 
três  dúzias  de  plantas  nossas  ,  que  se  lhe  manda- 
ram. Já  naquelle  anno  mostram  as  memorias  do 
tempo  vir  muito  anil  do  Maranhão.  Sebastião  Esta- 
co de  Vilhena  escreveu  a  Historia  da  Natureza  ,  a 
qual  foi  licenciada  para  a  impressão  cm  o  anno  de 
vinte  c  sete.  Slatheus  Saraiva  compúz  a  Historia 
iratiirai  da  America.  João  Ferreira  Matado ,  alge- 
Iiííta  delicadíssimo  ,  que  felizmente  curou  o  des- 
mancho cuidadoso  de  uma  perna  ao  senhor  infante 
D.  Francisco  ,  formou  uma  bastante  collecção  da 
historia  e  préstimo  das  plantas  de  Africa  ,  a  qual 
trabalhou  em  !sa!é  pelos  annos  de  \inle,  e  eu  a  vi 
na  minha  mocidade.  Ignacio  José  Slagro  escreveu 
a  Pharmacopea  das  Plantas  da  Comarca  de  Beja. 
Neste  espirito  veio  a  Lisboa  Merveilleux  ,  suisso  , 
para  escrever  a  historia  natural  deste  reino  :  para 
desenhar  as  plantas  trouxe  a  Guilhart,  como  escre- 
ve Guariente  no  Aheccdario  1'illorico.  Também  é 
daquelle  reinado  a  sociedade  sobre  os  interesses  de 
todas  as  minas  do  reino,  cuja  administração  foi  da- 
ài  a  Manuel  da  Cruz  Santiago,  na  forma  do  alvará 
de  20  de  dezembro  de  1709,  e  repetida  em  qua- 
renta ;  na  qual  havia  facultativos ;  exceptuando  das 
espécies  as  minas  de  ouro  puro  ,  praia  pura  ,  c  pe- 
dras preciosas.  Quem  não  dirá  ser  enlão  a  abertu- 
ra das  minas  da  America  na  parle  mineralógica  ura 
grande  decoro  da  historia  natural,  logo  que  não  se- 
pulte a  industria? 

A  curiosidade  c  interesse  das  fabricas  tiveram 
expediente,  armando-se  os  teares  no  amio  de  trinta 
e  dois  nas  casas  dos  Prazeres  do  conde  da  Ilha  .  e 
depois  na  Cotovia.  Os  que  havia  em  Bragança  e  La- 
mego esperavam  o  governo  mais  desembaraçado  de 
outros  cuidados  ,  ou  que  sendo  superior  aos  traba- 
lhos soubesse  com  elles  unir  as  providencias  eco- 
nómicas c  polilicas  em  beneficio  dos  povos.  í".  cons- 
tante que  o  circulo  vai  mesquinho,  se  o  coração 
não  dá  respirações  vigorosas  e  sadias.  Para  o  adian- 
lamenlo  das  arles  mandou  clrci  moços  que  estudas- 
sem fora  ,  dos  quacs  uma  parte  licou  estrangeira  , 
e  outros  conheci  em  Lifboa  e  llouia.  André  Gon- 
çalves, Ignacio  de  Oliveira,  Domingos  Nunes,  mes- 
tre de  Joaquim  Manuel  da  lioelia  ,  tcnilo  eorasigo 
á  frente  o  recommendavel  Francisco  >  ieira  ,  for- 
mam uma  excellenlc  porção  de  pintores  sábios  cm 
todas  as  partes  de  sua  grande  faculdade.  Os  Debrj 
deixaram  no  reino  desenhos  de  sua  invenção ,  mui- 
to dignos.  As  obras  de  Mafra,  aqueducto  de  Lis- 
boa ,  e  Arsenaes  acreditam  ao  mesmo  tempo  a  ge- 
nerosidade do  protector  das  artes,  c  os  inventores, 
e  polidos  artislas  que  as  desempenharam.  Entre  el- 
les SC  distingue  João  André  (iazzo  ,  que  fez  o  di- 
gno c  engenhoso  arsenal  de  Estremoz  ,  e  os  quar- 
téis nos  castellos  em  a  cidade  de  Évora.  Da  enge- 
nharia lambem  é  certo  ser  acreditada  por  sábios 
com  exercício.   Nas  machinas  de  Custodio  Aieira  , 


o   PANORA3IA. 


267 


facilmente  praticadas  para  massas  enormes ,  só  fal- 
ta para  seu  acabado  c  merecido  louvor  não  ficarem 
descriptas  ;  assim  como  desejamos  na  poreellana  do 
raro  engenho  do  brigadeiro  Jiartholomeu  da  Costa  , 
no  que  pertence  á  fundição  c  elevação  da  estatua 
equestre  do  senhor  rei  D.  José.  A  historia  deste  ar- 
tefacto admirável  está  conclnida  com  Iodas  as  suas 
(iemonstrações.  Pôde  renunciar-se  á  gloria  da  pu- 
blicação? Muito  a  mereceu  o  senhor  rei  I).  José. 
Por  cila  está  excitando  os  profundos  e  agradecidos 
respeitos  da  nação.  JiUa  é  na  verdade  symbolo  de 
tantas  verdades  ,  de  quantas  fez  que  fosse  a  mesma 
estatua  pregoeira  o  insigne ,  o  pessoa  original  em 
suas  inscripções  latinas,  o  sábio  António  Pereira 
de  Figueiredo.  Mas  engenharia  foi  cuidado  especial 
do  senhor  rei  D.  João  S.°  Em  janeiro  de  trinta  c 
três  baixou  decreto  ao  conselho  de  guerra  para  au- 
gmento  de  fortificações ,  accrescentando  as  .-luIas  e 
academias  deste  exercício  em  Elvas ,  Almeida,  e 
Viana  ;  mandando  que  em  cada  regimento  de  infan- 
leria  houvesse  companhia  de  engenheiros ;  c  que 
nem  pedreiros,  nem  carpinteiros  fizessem  plantas 
de  edificios  ,  nem  medissem  obras,  sem  lerem  ap- 
prendido  geometria.  Em  10  de  março  do  mesmo 
anno  deu  soldo  dobrado  ao  tenente  coronel  Chcr- 
mont,  e  ao  coronel  Josó  da  Silva  Paes.  Aquellc  en- 
sinava toda*  as  partes  da  mathemalica  necessárias 
para  a  guerra  ,  principalracnle  a  fortificação. 

Já  em  novembro  do  anno  de  quinze  fizeram  um 
notável  acto  na  sala  da  galé  ,  a  que  assistiu  eirei  , 
os  discípulos  de  Domingos  Vieira  ,  lente  na  aula 
real  das  fortificações.  E  no  anno  de  vinte  Manuel 
de  Azevedo  Fortes  havia  feito  uma  representação  ao 
rei  sobre  a  forma  e  direcção  que  deviam  ter  os  en- 
genheiros, na  qual  dá  iustrucções  para  melhorarem 
as  novas  academias  da  fortificação,  que  clrei  D. 
Pedro  mandou  formar  nas  províncias  do  reino.  E 
de  antes  em  1713  havia  mandado  elreiD.  João  tra- 
duzir e  imprimir  a  Fortificação  moderna  de  PfefTin- 
ger.  André  Piibeiro  Coutinho,  soldado  exercitado  no 
sitio  de  Belgrado,  e  na  inòia  ,  o  qual  depois  pas- 
sou a  Colónia  ,  publicou  pela  estampa  inslrucções 
niililares.  Dos  Exames  de  Artilheiros  e  Bombeiros  , 
por  Alpoim  ,  dizem  ainda  hoje  os  intelligentes  te- 
rem muito  préstimo.  Os  reparos  de  artilharia,  le- 
vados á  Catalunha  ,  eram  fabricados  cora  muito  en- 
genho ,  como  diz  o  Deão  Marti ,  na  parte  primeira 
das  suas  Cartas  pag.  110.  Em  setembro  de  vinte  e 
três  teve  principio  o  engenhoso  arbítrio  de  brocar 
ao  mesmo  tempo  muitos  cilindros  de  espingarda.  O 
engenho  de  serrar  madeira  junto  a  Leiria  é  do  an- 
no de  vinte  e  quatro  :  e  no  seguinte  começou  a  tra- 
balhar a  fabrica  de  vidro  em  Coina.  Em  vinte  c 
nove  começou  a  da  pólvora  em  B.irquarena  por  An- 
tónio Cremer.  Para  o  uso  delia  já  de  antes  se  ha- 
via imprimido  a  RefularUo  dos  canos  chamados  de 
três  tempos  por  Bernardino  Botelho  d'0!iveira.  Des- 
tas idéas  nasceu  a  vontade  do  fazer-sc  uma  demons- 
tração publica  ,  para  a  qual  em  junho  de  trinta  c 
Ires  estava  quasi  acabada  uma  praça  levantada  na 
Junqueira  ,  cm  que  trabalharara  os  discípulos  de 
(^hcrmont. 

Xa  marinha  repetiu  Manuel  Pimentel  as  dignas 
memorias  de  seus  maiores.  A  sua  Arte  de  Xavcgar 
confirma  a  justiça  de  ser  elle  em  verdade  cosmo- 
grapho-mór.  Domingos  Vieira  foi  hábil  mestre  no 
arsenal  da  marinha.  Ainda  qne  o  Marte  Armado, 
isto  é,  as  Conclusões  raathcraaticas  em  portuguez 
com  aquelle  rosto  ,  em  o  anno  doze  deste  século  , 
do  jesuita  Ignacio  Vieira   sejam  reduzidas  a  sim- 


ples pratica  de  Muniloria ,  Propugnaloria ,  Sfe.: 
comtudo  os  princípios  estudavam-se  a  propósito  cm 
Lisboa.  Era  Évora  mesmo  os  ensinou  o  jesuita  João 
Francisco  Musarra  ,  como  elle  diz  na  obra  latina 
Astronomia  brevemente  exposta  ,  impressa  cm  Messi- 
na  cm  setecentos  e  dois,  por  instancia  dos  seus  pa- 
dres de  Roma  ,  quando  deste  reino  se  recolhia  a 
sua  pátria  ,  Sieilia.  São  cousa  sabida  as  fadigas  do 
coronel  D.  Francisco  Xavier  Mascarenhas ,  como 
quando  no  Terreiro  do  Paço  em  trinta  e  sete  mos- 
trou a  bondade  da  formatura  de  columnas  ,  de  que 
imprimiu  uma  espécie  de  apologia.  Estas  contendas 
deram  occasião  a  outros  cseriptos  :  e  são  conheci- 
das as  contendas  entre  António  do  Couto  Castello- 
branco  ,  c  Manuel  de  Azevedo  Fortes  ,  pessoas  de 
muita  intelligencia  nas  matérias  da  sua  profissão. 
Os  olliciaes  ,  que  se  recolheram  salvos  da  guerra 
pela  successão  d'I'espanha  ,  tinham  voz  sabia  ,  pa- 
ra que  não  esqueçamos  suas  memorias  nesta  oppor- 
lunidade.  Pôde  ler-se  a  este  respeito  o  que  refere 
o  P."  D.  António  Caetano  de  Sousa  no  Tom.  VIÍT 
da  Ilistor.  Grncalog.  da  Casa  Real.  Sobre  a  cons- 
trucção  das  naus,  pelas  diligencias,  com  que  por 
fora  da  pátria  se  adiantava  esta  profissão,  quiz  ei- 
rei melhorar  o  systema  de  F^rancisco  dos  Santos  ,  e 
mandou  vir  constructor  inglez.  Assim  como  não 
podendo  promover  Gaspar  da  Costa  de  Att.-ide  o 
seu  projecto  na  Arte  das  Armadas  navaes  ,  embar- 
cando capitão-mór  das  naus  da  índia  ,  todo  o  mun- 
do se  prendeu  aos  arbítrios  do  P.  Hoste. 

Quanto  ás  sciencias  physicas  Luiz  Badcn  teve  na 
rua  das  Gáveas  o  seu  gabinete  ,  cm  que  fazia  de- 
monstrações. Elrei  soube  aproveitar  o  gabinete  de 
machinas  do  famoso  Desauguillieres.  Bento  de  Mou- 
ra trouxe  mil  incentivos  e  documentos  dos  seus  es- 
tudos ,  e  composições  originaes  ,  inventadas  e  res- 
peitadas fora  do  reino.  Os  hollandezos ,  que  elrei 
mandou  vir  para  reforma  do  Tejo,  se  não  o  melho- 
raram ,  certamente  fizeram  que  se  tratasse  da  hy- 
draulica.  Destas  espécies,  ora  aproveitadas,  ora 
frouxas ,  se  formou  o  bello  physico  Manuel  Angelo 
Villa,  constructor  de  quaesquer  machinas,  como  se 
não  fazem  mais  acertadas  e  polidas.  Elrei  mesmo 
gostava  destes  estudos  ,  e  interessava  nelles  o  prín- 
cipe. Cora  elle  observou  curiosamente  o  eclypse  de 
agosto  do  anno  de  vinte  enove;  e  o  entregou  ames- 
tres destas  úteis  profissões.  Teve  elrei  a  curiosida- 
de de  ver  compor  os  olliciaes  da  typographia  ,  e  os 
fez  ir  ao  paço  para  observar  o  mechanismo.  \  cu- 
riosa -Iríe  dos  vernizes  de  João  Stooder  cm  hollan- 
dez  e  portuguez  é  de  seus  dias. 

.\  cirurgia  e  anatomia  lambem  melhoraram.  A. 
Cirurgia  de  Le  Clero  imprimiu-se  traduzida  em  por- 
tuguez cm  o  anno  de  quinze.  Em  abril  de  trinta  c 
ura  se  estabeleceu  no  hospital  real  eschola  cirúr- 
gica, dando  as  lições  ísa.TC  Eliot  com  cirurgiões  de 
partido,  a  quem  elrei  assignou  a  tostão  por  dia. 
Manuel  Gomes  de  Lima  abriu  no  Porto  a  Academia 
cirúrgica  com  estatutos  approvados  por  aquelle  so- 
berano ;  do  que  ,  e  de  outras  cousas  a  isto  perten- 
centes ,  se  pijdc  lér  a  Introducção  ,  que  este  incan- 
sável erudito  escreveu  ás  suns  Memorias  de  Cirurgia. 
O  doutor  Santucci  começou  as  lições  de  anatomia  , 
dando-lhe  eirei  trezentos  mil  réis  de  partido  .  alem 
dos  cento  c  vinte,  que  recebia  do  hoípiíal.  Aposen- 
tou-se  o  doutor  Monravá  ,  que  havia  ensinado  esta 
faculdade,  e  ainda  cm  o  anno  de  trinta  c  dois  pre- 
sidiu aum  actoexpcrimental,  precedido  de  umdia- 
logo ,  e  naquelle  se  fizeram  as  dissecções  sobre  um 
cadáver  fresco  de  duas  horas,  e  muito  apto  para  as 


268 


O  PANORAMA. 


operações,  por  haver  fallccido  de  merrss  terçaãs. 
Assistiram  rauitos  fidalgos,  e  notável  concurso.  Ain- 
da que  D.  António  de  Monravá  e  Roca  tinha  cara- 
cter avesso,  era  por  outra  parte  sábio,  e  zeloso  do 
aproveitamento  dos  discípulos.  Não  se  aposentou  pa- 
ra ócio  .  e  alem  do  sobredito  acto,  fez  três  dias  de 
couclus(3es  na  igreja  do  hospital  real  de  Lisboa  cm 
o  anuo  de  trinta  e  dois  ,  em  que  lhe  argumentaram 
os  doutores  Bernardo  da  Silva  e  Manuel  de  Moura. 
Zombaram  os  competidores  nesta  crise  de  doutri- 
nas ,  assim  como  a  rudeza  espantadiça  de  cousas  , 
que  ella  ignora.  Monravá  tinha  maneiras,  e  satisfa- 
ção de  si,  mui  desagradáveis  ;  porem  as  pedras  en- 
sossas  mette.m-se  nos  alicerces  para  grandes  edifi- 
cios.  Acerca  da  medicina  ,  cm  o  anno  trinta  e  oito 
mostraram  uso  de  Hippocrates  ,  e  erudição  medica 
franceza  os  doutores  Ortigão  e  ("arvalho  ,  entre  os 
pareceres,  com  que  abonaram  o  doutor  Taylor,  mc- 
<iico  oculista  de  sua  raagcstade  britannica.  Porem 
como  os  sábios  de  zelo  querem  mais  e  mais,  por 
este  motivo  ,   e  com  muita  rasão  ,   estranhou  entre 


nós  a  falta  de  sciencias  naturaes  o  erudito  auctor  , 
que  cm  cincoenta  e  um  publicou  o  Projfcío  desti- 
nado á  correcção  e  augminlo  da  sabedoria  natural. 
Como  era  versado  na  historia  medica  e  cirúrgica 
tinha  presentes  os  combates  ,  que  de  antes  ,  e  por 
aquelles  annos  occuparam  as  prensas  ,  como  deixou 
mostrado  o  Escudo  Apoloqclico  de  Bernardino  Bote- 
lho de  Oliveira  sobre  a  parte  onde  se  faz  a  sensa- 
ção do  objecto  visivo  ,  c  outras.  Sabia  o  zelo  ,  com 
que  Francisco  Lopes  publicou  o  remédio  ellicaz  con- 
tra a  mordedura  das  viboras  :  como  Lourenço  Pe- 
reira daUoclia  extrahiu  e  curou  uma  hérnia  óssea: 
como  se  acudiu  a  preservar  da  peste  temida  ,  pelo 
Tratado,  mandado  fazer  por  elrei  ,  e  muitas  outras 
cousas  publicadas  pela  impressão  :  mas  queria  este 
profundo  medico  a  sua  faculdade  mais  promovida, 
e  ampliados  os  meios  de  assim  se  verificar.  Nós  o 
vimos  depois  satisfazer-se  das  profundas  diligencias 
para  os  estudos  da  L'nivcrsidade  de  Coimbra  nesta 
parte  de  sua  profissão. 

[  Coneluir-sc-haJ . 


CASA  AMBUI.AnTE  NOS  ESTADOS  UNIDOS. 


Uos  MiMERosos  viajantes  modernos  ha  um  ,  filho  da 
Península,  dotado  do  talento  d'ohservação  e  de  zelo 
estudioso  ;  falíamos  do  Sr.  D.  Ramon  de  la  Sagra  , 
auctor  (lo  interessante  livro  «Sinco  mczes  nos  Es- 
tados-Unidos  da  America  do  Norte  "  que  tem  mere- 
cido as  honras  da  traducção  em  vários  idiomas  e  a 
estimação  dos  sábios.  —  Km  rasão  da  nossa  estam- 
pa daremos  um  pequeno  trecho  desta  obra. — 

Miaf/ara  1."  d' Átjottn  de  1833.  —  \  casualidade 
deparou-me  hoje  uma  sccna  de  notável  ingenuida- 
de para  fazer  contraste  ás  grandes  o  sublimes  im- 
pressões que  esta  paragem  me  leni  oiícrccido  :  pas- 


seava pelo  caminho  da  planície  que  segue  parallc- 
lamente  ao  rio ,  e  que  a  cousa  de  milha  da  estala- 
gem atravessa  um  bosque  frondoso.  Na  sua  borda 
percebi  uma  habitação  de  forma  singular ,  como 
nunca  me  capacitei  que  existisse  cm  parte  alguma  . 
no  todo  linha  a  figura  de  um  coche  ,  de  tecto  de 
tabolciro  e  de  fundo  como  um  bote  :  quatro  rodas 
pequenas  separavam  do  chão  esta  vivenda  original. 
K  curta  distancia  um  homem  trabalhava  arrimado 
a  uma  arvore  a  fazer  barris  ;  no  trage  e  semblan- 
te manifestava  infortúnio  e  resignação  :  cheguei-mc 
e  saudei-o ,  rclribuiu-me  com  aflabilidade ,  e  ven- 


o  PANORAJIA. 


2(i9 


do-mc  intercssario  na  sua  sorte  rcferiu-me  a  sua 
historia.  Era  um  francez,  visinho  de  Slontrcal.  on- 
de vivia  do  fructo  de  seu  trabalho  uo  oHicio  de  ta- 
noeiro ,  porem  a  extrema  concurrencia  de  emigra- 
dos irlandc7.es  foi  diminuindo  pouco  a  pouco  o  pre- 
ro  c  extracrão  de  seus  barris  :  ao  mesmo  tempo 
uma  hoa  acção  cansou  a  ruina  de  sua  pequena  pro- 
priedade ,  hypothccada  a  favor  de  um  amigo  des- 
graçado. Em  tal  situarão  ,  privado  de  recursos  e 
de  esperanças,  juntou  a  ferramenta  que  lhe  lic.íra, 
e  construiu  a  casinliola,  que  se  mostra  na  estampa, 
ideada  para  navegar,  e  também  para  transporte  por 
lerra.  Acabada  a  sua  arca  ,  mctteu-se  nelia  com  a 
mulher  e  filhinha  ,  e  subindo  pela  corrente  do  rio 
S.Lourenço,  entraram  no  lago  Ontário,  cujas  aguas 
atravessaram  do  mesmo  modo  até  o  forte  Jorge  na 
desembocadura  do  Niagara  :  aqui  alugou  quatro 
bois  para  subir  a  costa,  e  continuando  por  algumas 
milhas  o  caminho  parallelo  ao  rio  fixou  a  residên- 
cia no  bosque ,  porque  a  falta  absoluta  de  recursos 
o  privou  de  progredir  na  viagem.  «Por  outro  lado 
[accrcsceutou  sorrindo-se]  tanto  me  aproveitava  es- 
ta como  outra  paragem  ;  porque  quando  parti  de 
Montreal  não  sabia  por  onde  fosse  ,  c  a  Providen- 
cia me  conduziu  aqui.  Puxei  de  minhas  ferramen- 
tas, armei  o  banco  ao  pó  desta  arvore,  e  cora  umas 
tábuas  e  arco»  que  havia  salvado  pude  fabricar  duas 
tinas  que  vendi  logo  :  assim  comecei  faz  oito  dias 
e  graças  a  Deus  a  obra  não  falta  ;  em  cada  celha 
ganho  dois  xelins  [pouco  mais  ou  menos  um  cruza- 
do] e  posso  commodamente  fazer  três  por  dia.»  — 
Em  quanto  pronunciava  estas  palavras  o  emigrado, 
voltei  a  cabeça  para  a  casinhola  e  vi  sua  mulher 
mui  robusta  e  risonha,  que  me  cortejava  com  agra- 
do. «O  senhor  ouviu  a  nossa  triste  Iiisloria  [me  dis- 
se];  porem  graças  a  Deus  nunca  nos  faltou  pão.» 
—  Ao  mesmo  tempo  uma  menina,  que  teria  cinco 
annos  ,  desceu  a  escadinha  e  chegou-se  ao  pai :  ca- 
rinhosa e  amável  como  a  innocencia  infantil ,  vè-la 
era  para  mim  a  um  tempo  triste  e  interessante , 
considerando-a  exposta  d  miséria  c  ao  infortúnio  : 
porem  felizmente  tal  idéa  não  allligia  o  coração  de 
seus  pais  ;  os  quaes  me  convidaram  a  entrar  e  a 
que  participasse  de  seu  parco  almoço.  O  convite 
excitou  em  minha  alma  ura  tropel  d'idéas,  e  juro 
que  antes  me  negara  á  mesa  d'ura  monarcha  do 
que  á  daquelle  homem  resignado  e  contente  no 
meio  das  privações :  tomei  pela  mão  a  estimável 
menina  ,  subi  os  cinco  degraus  da  estada  arrimada 
exteriormente  á  porta  acanhadíssima  ,  e  entrei  na 
casinha  onde  estava  a  mesa  posta  com  o  maior 
aceio  :  só  dois  pratos  de  carne  c  batatas,  um  pão 
mui  volumoso,  um  tarro  d'agua  compunham  toda 
acoberta.  Observei  o  caracter  daquelle  par;  fiz- 
Ihe  varias  perguntas  ,  entretive-me  com  a  creança  , 
e  á  medida  que  fazia  progressos  nas  minhas  obser- 
vações, entrou  a  lembrar-me  uma  idéa,  a  princi- 
pio vaga  ,  depois  mais  determinada  e  clara  ,  e  a  fi- 
nal a  convicção  intima  ,  como  a  lenho  da  existên- 
cia própria  ,  de  que  aquella  mesquinha  casinhola 
movei  ,  como  que  arrojada  pela  desgraça  para  um 
bosque  deserto  do  Canadá  ás  margens  do  Niagara  , 
era  o  santo  alvergue  da  ventura  conjugal.  E  em 
que  sitio  ,  Deus  omnipotente  ,  se  me  appresentava 
similhante  exemplo  !  Visinho  a  um  prodígio  da  na- 
tureza '•)  ,  cuja  immcnsidade  me  fizera  conhecer  a 
pequenez  das  penas  humanas,  esse  mesmo  sitio  me 

(•)  Refere-se  á  famosa  criíaracta  do  Niagara:  vid.  a 
breve  descripçào  de  CliateaubrianJ  traduzida  a  pag.  124 
do  Tol.  2."  Serie  1.» 


oíTerccia  sob  o  aspecto  da  penúria  ,  c  rodeada  dos 
atlribulos  do  infortúnio,  a  única  felicidade  real  a 
que  o  homem  deve  aspirar  na  terra  !  Providencia 
inelTavel  !  —  exclamei  no  interior  do  meu  coração 
— concedes  a  paz  do  espirito,  a  resignação  nas  des- 
graças ,  a  impre\isão  das  fataes  consequências  da 
miséria  ,  os  puros  gozos  do  amor  e  da  ternura  fi- 
lial ,  ao  homem  singelo  e  obscuro  que  arromccado 
pela  infelicidade  estabelece  entre  as  arvores  seu 
ninho  como  as  aves  ;  c  derramas  o  tédio,  a  inquie- 
tação ,  a  fatal  ambição  ,  no  peito  do  opulento  ,  de 
cujo  palácio  fazem  morada  o  egoismo  ,  o  ódio  e  a 
perfidia  ! 

Explicaram-me  depois  como  tinham  verificado  a 
sua  navegação  pelo  lago  Ontário.  As  rodas  e  a  es- 
cada guardam-se  no  interior  da  casa  ,  o  leme  e  a 
verga  para  as  velas  arvorara-se  sobre  o  tecto,  c  dis- 
to cuida  o  marido  ;  e  a  mulher  trata  do  arranjo 
domestico,  e  dirige  pela  duas  janellinhas  lateracs 
as  cordas  do  leme.  Esta  singular  machina  não  tem 
mais  de  lo  pés  de  comprido  por  (i  de  largo,  divi- 
dida em  dois  aposentos  interiores  por  um  lençol 
que  separa  a  camará  da  cosinha  e  refeitório  :  por 
baixo  do  soalho  ha  um  vão  para  guardar  bastcci- 
mentos  ,  ferramentas ,  e  o  velame  e  cabos  qnande 
não  navega. 


Ma.nlel  de  Sousa  de  Sepii.ved.i. 

Setembro  de  loíS  —  3  de  fevereiro  de  looS. 

I. 

O  casamento ,  e  o  emlarqxic. 


í/f-  honraiiafama , 

J^ibfral ,  cattalh iru  .  i  namorado. 
E  comsigo  trará  ajorinosa  dama 
Que  amor  por  grão  mcrcc  lhe  terá  dado. 
"  .  Lusíadas,  Cant.  5.",  Esl.  46. 

O  corpo  da  terra  (inJia  cstcndiílo  sua  vasta  pyramidr 
dfí  sombras  até  o  firmamento  (»'  ,  e  n'essas  sombras 
envolto  os  muros  famosos  de  Dio.  As  ondas  batiam 
inutilmente  sobre  o  rochedo  immovel  que  a  defen- 
de ,  e  pareciam  bem  a  imagem  do  poder  da  Ásia 
vindo  alli  quebrar-se ,  havia  pouco,  contra  as  ar- 
mas invencíveis  dos  nossos  soldados.  Xa  fortaleza 
ouvia-se  um  soido  de  passos  de  homens  que  iam  la- 
zer o  quarto  de  prima  a  um  baluarte.  ISo  caminho 
que  conduzia  para  esse  baluarte  estava  uma  casa  , 
a  porta  meio-aberla,  dentro  luzes  accesas,  c  os  que 
passavam  viam  distinctamente  um  homem  sentado 
u'uraa  cadeira  ,  com  o  rosto  virado  para  a  porta.' 
Quem  era  esse  homem?  era  Luiz  Falcão,  capitão 
da  fortaleza.  Bem  desprevenido  estava  ,  cntretendo- 
se  com  um  seu  filho  natural  ,  ainda  menino  ,  que 
tinha  ao  pé  de  si  áquella  hora,  (|uando  uma  espin- 
garda apontada  sobre  ellc  da  [larte  da  rua  ,  acer- 
tando-lhe  na  cabeça  ,  o  estendeu  morto  sobre  o  pa- 
vimento. Ao  estampido  do  tiro  e  alaridos  do  menino 
acudiu  a  família,  e  divulgada  a  noticia  pela  fortaleza 
correram  á  casa  os  amigos  e  apúselles  entrou  um 
tropel  de  povo  e  soldados  :  mas  ninguém  pode  ati- 
nar de  que  mão  viria  desparado  aquelle  desastre. 
Desceram  á  rua  ,  e  á  luz  de  tochas  foram  apressa- 
damente procurando  por  toda  a  parte  o  assassino . 

(.)     Bellissima  imagem  do  P.-  Bernardo,  tmLtiz  e  Ca- 
lor pog-  523. 


270 


O  PANORAMA. 


oa  vestígios  delle ;  porem  debalde,  porque  nada 
encontraram. 

Ao  outro  dia  mostrava  a  cidadella  um  aspecto 
sombrio  e  lúgubre.  Dobravam  os  sinos :  rolavam 
compassados  e  raelancholicos  os  taraboics :  via-se 
uma  ala  de  tropa  marchando,  semblantes  abatidos  ; 
e  outra  de  sacerdotes  entoando  psalnios  fúnebres  : 
fechava  um  ataúde  o  cortejo.  Entraram  na  igreja  : 
e  pouco  depois  o  governador  de  Dio  ,  que  ainda  na 
véspera  era  a  alma  da  fortaleza  ,  o  centro  dos  mo- 
vimentos daquella  machina  complicada ,  a  voz  a 
quem  obedeciam  todos  aquelles  guerreiros  ,  inani- 
mado e  frio  como  a  pedra  tumular  que  o  cobria  , 
tomava  assento  na  habitação  dos  mortos.  Preenchi- 
dos os  ofTicios  da  religião,  faltava  satisfazer  aos  da 
justiça.  Tiraram-se  miúdas  inquirições  sobre  o  at- 
tentado  ,  mas  não  se  achou  rasto ,  nem  ainda  remo- 
to, do  seu  auctor.  Despediu-se  immediatamenle  ura 
catur  a  Goa  ,  dando  conta  ao  governador ,  Garcia 
de  Sá  ,  deste  trágico  successo.  Garcia  de  Sá  ficou 
muito  magoado  [o  motivo  principal  do  seu  senti- 
mento logo  o  referiremos] ,  e  sem  perda  de  tempo 
despachou  Martim  Corrêa  da  Silva  para  a  capita- 
nia de  Dio  ,  e  em  sua  companhia  mandou  o  doutor 
Manuel  de  Mergulhão  a  tirar  devassa.  Este  magis- 
trado não  poupou  diligencias  para  averiguar  a  ori- 
gem do  crime  ,  e  até  chegou  a  metter  a  tratos  um 
soldado  por  alguns  indicios  que  contra  e!le  houve  : 
mas  o  soldado  não  confessou  cousa  alguma.  Ficou, 
assim  ,  a  victima  no  sepulchro  sem  vingador,  c  a 
verdade  no  peito  do  delinquente  sem  se  patentear 
á  justiça  que  a  buscava  :  somente  appareccu  a  sus- 
peita na  lingua  dos  homens,  e  a  fama  do  delicio, 
correndo  a  índia,  despertou  indignação  geral  con- 
tra a  covardia  e  atrocidade  do  assassínio. 

Pouco  depois  houve  ura  casamento.  Quem  foram 
os  noivos? 

Tinha  duas  filhas  o  governador  Garcia  de  Sá  ,  c 
á  mais  velha  ,  D.  Leonor  de  Alboquerque  ,  destina- 
do por  esposo  Luiz  de  Falcão  ,  alvo  ,  como  acaba- 
mos de  ver  ,  de  ódio  occulto.  Era  Luiz  Falcão  ri- 
co ,  e  Garcia  de  Sá,  para  a  cathcgoria  a  que  estava 
exaltado  ,  pouco  favorecido  dos  bens  da  fortuna  ,  e 
para  adquiri-la  então  ,  muito  adiantado  em  annos. 
Por  este  lado  o  casamento  que  projectara  ,  repre- 
sentava-se  vantajoso,  e  o  accídenlc  inesperado  e  ter- 
rível que  veio  frustra-lo,  devia,  e  cora  rasão,  doer- 
Ihe  profundamente.  D.  Leonor,  sua  filha,  era  mo- 
ra ,  formosa  ,  e  sensível  :  seduziam-na  outros  inte- 
resses, quão  dilierentes  dos  que  fallavam  á  persua- 
são de  seu  velho  pai.  Tinha  posto  as  aíTcições  da 
sua  alma  em  Manuel  de  Sousa  de  Sepúlveda  :  com- 
prehenderam-se  os  corações  de  ambos,  c  desde  en- 
tão que  podiam  ,  com  serem  tantas,  as  contrarie- 
dades com  que  os  alTrontava  Garcia  do  Sá  ,  senão 
prender  mais  fortes  e  mais  profundas  asraizes  des- 
te amor?  A  bala  de  uma  espingarda  ^eio,  impre- 
vistamente ,  arrazar  as  duas  barreiras  únicas  que 
no  mundo  o  contrastavam  :  cahiram  por  terra  ,  am- 
bas ao  mesmo  golpe,  a  resistência  do  velho  e  a  vi- 
da de  Luiz  Falcão.  Contratou-se  a  união  dos  dois 
amantes  ,  c  viu-sc  então  o  que  sempre  se  hade  ver 
neste  mundo  —  a  inconsistência  dos  juízos  huma- 
nos, e  a  pouca  firmeza  da  opinião  popular.  As  mes- 
mas bocas  que  em  toda  a  Índia  ,  c  principalmente 
em  (ióa  tinham  desfechado  maldições  e  pragas  ás 
primeiras  novas  da  desventura  de  f.uiz  Falcão  acom- 
panhadas como  estas  vieram  de  conjecturas  e  ru- 
mores sinistros ,  não  faziam  agora  senão  esparzir 
bênçãos  e  louvores  sobre  os  noivos.   Chegado  o  dia 


do  recebimento,  sahiu  D.  Leonor  da  casa  paterna 
para  a  igreja.  Ornavam-lhe  a  cabeça  ,  como  o  des- 
creve Corte  Real,  umas  laçadas  guarnecidas  de  pé- 
rolas de  alto  preço  e  admirável  lavor  ;  levava  Cr- 
maes  riquíssimos  ;  um  vestido  o  franceza  ,  de  seda 
verdegai  ,  justo  até  á  cintura,  e  da  cintura  alar- 
gando-se  com  rnda  até  o  chão  ;  as  mangas  largas  , 
golpeadas  e  presas  com  botões  de  grossas  pérolas; 
um  collar  de  brilhantes  ;  um  cinto  abraçando  es- 
treitamente o  esbelto  talhe  da  dama  ;  um  custoso 
manto  da  mesma  seda  e  cor  do  vestido,  cahindo- 
Ihe  airosamente  do  hombro  esquerdo.  Os  olhos  to- 
dos se  enlevavam  menos  na  elegância  e  custo  do 
trajo  do  que  na  bellcza  singular  da  mulher;  e  as 
multidões  aggiomeradas  nas  ruas  e  praças  de  Gôa  , 
ao  vc-la  passar  exclamavam  :  como  é  formosa!  Ao 
ver  junto  delia  Manuel  de  Sousa  ,  diziam  :  coino  é 
venturoso,  c  cavalleiro!  Celebrada  a  cereraonia  re- 
ligiosa ,  converteu-se  a  cidade  toda  n'uma  festa. 
Primeiro  houve  jogos  e  torneios  de  nobres ,  masca- 
ras e  fogos  de  artificio,  brindes  e  alegrias  de  ban- 
quete ,  com  apparatoso  esplendor  :  e  depois  seguiu- 
se  o  turno  da  plebe  com  suas  danças  e  folgares 
continuados  por  13  dias. 

Poucos  mezes  depois  veio  a  morte  em  junho  de 
1349  apagar  a  carreira  breve  e  pouco  illustre  de 
Garcia  de  Sá  :  pouco  illustre  porque  seria  dillicil  a 
homem  ainda  mais  qualificado  do  que  elie  era,  ele- 
var-se  acima  da  craveira  ordinária  da  mediocrida- 
de depois  do  governo  de  D.  João  de  Castro ,  como 
administrador  o  primeiro  e  o  mais  zeloso  que  teve 
a  índia  ,  e  como  delegado  da  metrópole  um  dos 
que  mais  dignamente  souberam  representar  naquel- 
le  império  a  magestade  da  pátria.  Passou  a  Jorge 
Cabral  o  glorioso  bastão  de  governador  da  Índia. 
Era  melhor  escolha  que  o  seu  antecessor.  Aos  pri- 
mores de  cavalleiro  e  esforçado  juntava  pericia  , 
actividade  e  ambição  nobre  que  é  ,  nos  que  gover- 
nam e  commandam  ,  aquelle  frenezi  infatigável  em 
remediar  desconcertos ,  aperfeiçoar  o  que  está  cria- 
do ,  e  emprehender  cousas  novas.  P.ealçava-o  sobre 
todas  uma  qualidade  ,  muito  para  ser  estimada  em 
taes  legares  —  a  de  justo  apreciador  do  mereci- 
mento alheio.  Com  tão  boa  condição  não  podia  dei- 
xar no  esquecimento  a  Manuel  de  Sousa  de  Sepúl- 
veda que  já  se  linha  estremado  em  difierentes  car- 
gos e  combates ,  e  nos  campos  de  Dio  pelo  seu  va- 
lor. Despachou-o  em  junho  de  1330  de  Gòa  para 
Cochira  com  quatro  navios  de  remo  ,  encarregando- 
Ihe  que  reunido  com  a  armada  de  Fernão  de  Sou- 
sa e  os  mais  navios  que  se  podesscm  apromptar  . 
fosse  pôr  bloqueio  á  ilha  de  Bardela  ,  e  reter  ,  ate 
que  elle  para  lá  partisse  ,  os  príncipes  malabares 
que  alli  se  achavam  prestando  apoio  aos  intentos 
ambiciosos  do  çamorim  ,  em  detrimento  do  com- 
mercio  da  pimenta  ,  o  mais  lucrativo  que  fazíamos 
na  .\sía.  Jlanuel  de  Sousa  desempenhou  pontual- 
mente esta  coramissão  ,  cercando  a  ilha  de  modo  a 
ser  impossível  ou  a  evasão  dos  sitiados  ou  o  soc- 
corro  de  fora.  Mas  pela  variedade  dos  successos 
I5ardela  nunca  chegou  a  ser  oppugnada  ,  c  os  prín- 
cipes vieram  a  larga-la  por  convenção  amigável  do 
Çamorim  com  o  successor  de  Jorge  Cabral ,  o  vice- 
rci  D.  Aflbnso  de  Noronha.  Quando  o  více-reí , 
vindo  de  Portugal,  passou  em  Cochim,  nomeou  por 
capitão-mór  dos  rios,  para  expedir  a  pimenta,  a 
Manuel  de  Sousa  ;  e  foi  ainda  durante  este  novo 
cargo  que  o  ultimo  se  achou  n'um  combale  de  mui- 
ta importância  para  o  estado,  e  muita  honra  para 
elle  pelo  seu  feliz  successo.  .    ■• 


o  PANORAMA. 


271 


A  historia  narra-o  assim.  Eram  14  de  fevereiro 
de  1351  ,  e  nesse  dia  estava  para  se  embarcar  o 
ex-governador  Jorge  Cabral ,  para  ao  seguinte  dar 
íi  vela ,  quando  ;i  noite  chegaram  uovas  que  entra- 
vam porCochim  de  cima  oito  mil  nayres,  e  vinham 
fazendo  grandes  estragos,  matando  c  assolando  quan- 
to encontravam.  Esta  noticia  póz  toda  a  cidade  em 
receio  e  ahoroço  que  augmentou  quando  se  soube 
que  —  demais  de  serem  nayres,  que  quer  dizer  ca- 
vallciros ,  e  é  rara  de  homens  valentes  —  os  ini- 
migos vinham  amoucos  —  juramentados  a  perecer 
ua  empreza ,  ou  a  leva-la  por  diante.  Sahiram  á 
rua  principal  Jorge  Cabral ,  o  capitão  da  cidade  , 
e  Manuel  de  Sousa ,  e  mandando  tocar  a  rebate  os 
tambores  ,  rcuniu-se  toda  a  gente  ,  e  tumaram-se  as 
bocas  das  ruas  para  que  os  inimigos  não  penetras- 
sem dentro  de  noite.  Ao  outro  dia  pela  manhaã  mar- 
chou Manuel  de  Sousa  a  busca-los  com  l.òOO  por- 
luguezes  ,  e  alguma  tropa  da  terra  ,  ficando  Jorge 
Cabral  com  o  resto  dos  soldados  cm  guarda  da  ci- 
dade. Os  nossos  ,  divididos  em  duas  columnas ,  en- 
traram por  Cochim  de  cima ,  onde  andavam  os 
araoucos  commettendo  barbaridades  e  cruezas  es- 
pantosas,  e  cahiudo  sobre  elles,  não  os  .destroca- 
ram e  aTugenlarara  ,  como  muitas  vezes  succedia  , 
ao  primeiro  choque.  Tiveram-sc  os  nayres  firmes , 
c  erapenhou-se  a  batalha,  segundo  diz  a  historia, 
mais  perigosa  c  disputada  de  quantas  demos  na  ín- 
dia. Jías  a  final  rolos  e  desbaratados  com  morte  de 
dois  mil  delles,  alcançou  Manuel  de  Sousa  viclo- 
ria  completa  dos  inimigos. 

Recolhendo-se  á  cidade  ,  recebido  alli  com  mui- 
tos applausos  e  dislincções,  ficou  naquella  paragem 
por  obrigação  do  emprego  até  á  jornada  do  Chem- 
be.  A  essa  foi  com  o  vice-rei,  e  ajudou  a  expugnar 
a  cidade  e  a  destroçar  os  príncipes  malabares  que 
nella  se  achavam  conjurados  com  o  Çamorim  em 
ruina  nossa  ,  ou  do  trafico  [que  era  o  mesmo]  da 
pimenta  ;  como  já  fica  notado  ,  o  mais  considerável 
com  que  então  corríamos.  E  de  lá  regressou  a  Co- 
chim para  se  embarcar  para  o  reino,  logo  que  che- 
gasse deCoulão,  onde  eslava  á  carga,  o  galeão  gran- 
de S.  João  ,  que  elle  havia  de  coaimandar. 

Chegado  emfim  com  4:oOO  quiulaes  de  pimenta  , 
tomou  em  Cochim  mais  trcs  mil ,  c  melteu  outras 
fazendas  taes  e  em  tamanha  quantidade,  que  se  af- 
firma,  não  partiu  da  índia,  depois  que  cila  se  des- 
cobriu até  então  ,  embarcarão  tão  rica  como  esta. 
Levava  perlo  de  200  portuguezes  ,  muitos  fidalgos 
e  cavalleiros  ,  e  mais  de  300  escravos  a  bordo. 
Nelle  ia  lambem  Diogo  Mendes  de  Almeida,  porta- 
dor de  cartas  e  presentes  que  a  elreí  D.  João  3." 
mandava  Xautaquim  ,  príncipe  de  Tanixumaa  ,  ilha 
do  Japão ,  pedindo  auxilio  de  oUO  portuguezes  pa- 
ra conquistar  a  ilha  Lequia  ,  e  oíTereccndo  em  re- 
conhecimento o  tributo  annual  de  sinco  mil  quin- 
taes  de  cobre  e  mil  de  lalão.  —  Tão  alta  era  e  Ião  ' 
dilatada  afama  do  nosso  nome '.  Os  que  não  prostrá- 
vamos com  as  armas  ,  vinham  de  seu  moto  próprio 
humilhar-se  ao  poderio  das  nossas.  Os  fracos  coita- 
Tam-se  ao  nosso  escudo.  Os  fortes  iuclinavam-se  a 
nós  ,  como  a  senhores.  Os  ambiciosos,  como  aquelle 
príncipe  japonez  ,  de  novas  conquistas  procuravam 
a  sombra  da  nossa  bandeira,  ou  o  braço  dos  nossos 
soldados.  Na  Ásia  não  se  soltava  uma  frecha ,  não 
se  disparava  um  mosquete,  não  se  cruzava  uma  es- 
pada que  o  não  fosse  por  nossa  causa.  No  oceano 
não  se  proferia  uma  palavra  que  não  fosse  portu- 
gueza  ;  porque  língua  de  estrangeiros  baixinho  e 
em  segredo  se  fallava  para  qus  a  não  escutasse  o 


ouvido  sempre  altento  dos  nossos  canhões ,  para 
que  a  não  percebesse  a  amurada  alterosa  dos  nos- 
sos navios.  Fomos  grandes  I  . . . .  fomos  !  .  .  .  Sobre 
as  cinzas  que  nos  restam  que  se  não  apague ,  ao 
menos ,  o  fogo  sagrado  das  recordações.  Um  dia 
pude  ainda  vir  em  que  elle  seja  fecundo. 

Embarcados  no  galeão  deixámos  os  passageiros  , 
lodos,  menos  o  capitão  e  sua  familia.  Chega  este 
enifim  ao  cacs  cora  a  bella  l).  Leonor  ,  e  dois  me- 
ninos seus  filhos ,  acompanhado  de  numeroso  con- 
curso de  parentes  e  amigos,  e  de  multidões  de  po- 
vo. Divisava-se  tristeza  nos  semblantes.  Corriam  la- 
grimas neste  apartamento;  e  as  mais  amargas  eram, 
e  as  mais  sinceras  talvez  ,  as  lagrimas  do  peão  me- 
nos costumado  do  que  outros  a  fingir  impressões 
que  não  sente  ,  ou  a  esconder  as  feridas  c  as  do- 
res do  coração.  O  interesse  que  aili  convocava  as 
turbas  nascia  de  dois  sentimentos  que  obram  po- 
derosamente sobre  ellas  :  nascia  da  admiração  irre- 
sistível que  excita  o  valor  marcial,  e  de  enleio  des- 
conhecido com  que  nos  prende  a  formosura.  O  po- 
vo que  alli  viera  ao  embarque  amava  a  Manuel 
de  Sousa  como  vencedor  dos  nayres  e  defensor  de 
Cochim  ,  e  a  D.  Leonor  como  a  mais  suave  expres- 
são e  o  mais  perfeito  ideal  da  belleza.  Misturava  a 
ambos  em  suas  affeições  ingénuas  ,  e  depois  cons- 
tellava  cm  grupo  brilhante  como  esses  do  firma- 
mento estas  mesmas  aíleiçõcs ,  confundia  cm  seu 
affecto  o  prestigio  do  guerreiro  cora  os  encantos  da 
mulher.  De  dois  sentimentos  primitivos  se  acendrá- 
ra  um  só  ,  novo  c  mais  ardente  ,  e  esle  sentimento 
estava  alli  accumulado  como  no  seu  grande  foco ; 
multiplicado  por  todas  aqucllas  almas  ;  agitado,  es- 
timulado pelas  circumstancías  ,  pela  occasião  ,  pe- 
lo sitio  ;  augmentado  por  um  sem  numero  de  fas- 
cinações ;  engrandecido  pela  communicação  rápida, 
eléctrica  ,  mysteriosa  ,  profundamente  dramática  de 
tantos  espectadores.  Tristes  todos  elles ,  magoados 
da  separação  preoccupavam-nos  as  contingências  da 
viagem  ,  aíiligia-os  a  idéa  vaga  de  futuros  perigos  , 
e  do  meio  daquella  pinha  de  povo  ferventes  orações 
subiam  ao  céu  pelo  salvamento  do  galeão  ,  e  pela 
fortuna  de  Manuel  de  Sousa  de  Sepúlveda  e  de  D. 
Leonor.  Quem  podia  alli  haver  que  a  não  desejasse 
aos  dois?  Quem  d'entre  aquellas  mullidões  se  lem- 
brava ainda  da  morte  de  Luiz  Falcão  ,  o  rival  ia- 
feliz  e  o  noivo  abortado?  Ninguém,  talvez,  se  lem- 
brava delia.  ...  Só  a  não  linha  esquecido  ,  cm  su.i 
memoria  indelével ,  em  sua  consciência  eterna  ,  o 
Juiz  Supremo  dos  crimes  dos  homens  '.  .  .  . 

Dado  o  ultimo  abraço  ,  embarca  o  capitão  com 
sua  familia  em  um  ligeiro  catur  que  remando  os 
conduz  ao  galeão.  Em  cima  já  do  cunvcz  levantam- 
se  as  ancoras,  desfra!dam-se  as  velas,  e  cortando 
as  ondas  diz  o  ultimo  adeus  aos  muros  .  aos  tem- 
plos ,  ás  torres  ,  ás  praias,  c  aos  habitantes  de  Co- 
chim o  orgulhoso  baixel.  Os  espectadores  alongam 
olhos  sa;;dosos  para  elle,  que  se  pavonea  em  lodo 
seu  fausto.  Depois  a  cncur\adura  da  terra  eucobre- 
Ihe  o  casco  ,  e  já  não  offerete  á  ^ista  senão  as  ver- 
gas e  as  velas.  Dahi  a  pouco  só  se  descrimina  o  to- 
pe do  mastro.  E  logo  dis!ingue-se  apenas  um  ponto 
escuro  no  ambiente  indefinido  que  separa  o  mar  di> 
céu.  Este  mesmo  ponto  se  dissipa  em  sombra.  E  a 
mesma  sombra  desapparece  nas  regiões  do  ar,  on- 
de ainda  procuravam  avidamente  o  galeão  os  mora- 
dores da  cidade  ,  onde  cada  vez  mais  lh"o  afasta- 
vam ,  occultando-o  em  suas  névoas,  os  horisontes^ 
avaros  I  (Coniinuar-se-haJ. 

A.  tl'0.  5Iarrec4i. 


272 


O  PANORAMA. 


A    MAMA    DE    DISPUTAR. 

]Vão  ha  (empo  cm  que  não  tenha  havido  disputas, 
nem  ponto  sohrc  que  se  não  tenha  disputado.  As 
sciencias,  as  artes,  a  litteratura  ministraram  abun- 
dantes materiaes  a  tantos  homens  que  instigados  por 
sua  vaidade  pertenderam  impor  aos  demais  o  jugo 
de  suas  opiniões  :  árdua  cmpreza  1  porque  o  amor 
próprio  é  um  inimigo  indomável  e  tenaz,  que  com 
difljculdade  abandona  o  campo  e  quasi  nunca  se 
dá  por  vencido.  Como  ha,  pois,  homem  cordato 
que  lide  para  que  triumphem  as  suas  opiniões  por 
meio  das  disputas?  —  Não  acharemos  erro  que  não 
tivesse  sequazes  ,  nem  verdade  que  não  tenha  en- 
contrado antagonistas.  Jlil  caminhos  conduzem  ao 
erro  ,  ura  só  á  verdade  ;  e  que  homem  sensato  ter:i 
tão  cega  e  orgulhosa  confiança  era  suas  idéas  que  , 
julgando  que  só  nellas  se  acha  a  verdade,  se  resol- 
va a  disputar  para  sustenta-las?  \s  opiniões  combi- 
nam com  o  tempo;  e  a  diversidade  dos  povos  mos- 
tra na  mesma  epocha  opiniões  totalmente  contra- 
rias :  saia  ,  pois ,  do  seu  cantinho  o  obscuro  dispu- 
tador  orgulhoso,  e  na  prodigiosa  variedade  que  no- 
tar nas  idéas  das  nações  ,  que  ora  existem  ,  achará 
poderoso  correctivo  á  sua  fatal  mania  ;  desfarte  ap- 
prcnderá  a  desconfiar  das  próprias  idéas  ,  a  ser  to- 
lerante e  não  encetar  disputas  a  cada  passo  e  em 
qualquer  assumpto. 

Não  ha  muitos  annos  que  vivia  um  dispulador 
dos  mais  accerrimos.  Era  aliás  homem  sisudo  e  de 
talento  ,  mas  deslustrava  as  boas  prendas  com  tão 
latal  defeito.  Se  algum  militar  [por  exemplo]  rela- 
tava qualquer  acção  cm  que  se  achara  ,  interrom- 
pia-o  logo  e  coutava  onde  ,  como  ,  c  contra  quem 
se  havia  dado  a  batalha.  Os  seus  melhores  amigos 
receavam  visita-lo  ,  pois  apenas  os  saudava  erapre- 
hendia  nova  disputa,  ou  continuava  com  mais  alen- 
to alguma  que  tivesse  ficado  pendente  :  não  basta- 
vam a  retrahi-lo  ou  corrigi-lo  o  silencio  e  sobre- 
cenho  com  que  uns  manifestavam  o  seu  enfado  , 
nem  a  muda  mas  enérgica  despedida  de  outros , 
que  por  não  injuria-lo  sabiam  precipitadamente  a 
desafogar  a  cólera,  sem  dar-lhe  outra  resposta. — 
Um  dia  veio  despedir-se  delle  um  visinho,  que  pa- 
decia d'asma  ,  dizendo-lhe  :  «meu  amigo,  é  [ireci- 
so  que  cesse  o  nosso  trato  e  habitual  conversação  . 
porque  o  medico  m'o  prohibe  como  prejudicial  pa- 
ra a  minha  moléstia.  —  Seus  sobrinhos,  esperanç.T- 
dos  cm  herda-lo  ,  viram  a  final  a  sua  esperança  fa- 
lha porque  lhes  faltou  a  condescendência  para  tole- 
rar a  mania  dispntadora  do  tio ;  do  que  procedeu 
achar-se  este  desamparado  na  velhice.  Por  ultimo, 
n'uma  tarde  ao  sahir  d'um  sermão  veio-lhc  febre, 
de  pura  zanga  de  ter  estado  a  ouvir  sem  poder 
contradizer.  Conservando  o  seu  caracter  até  o  fim  , 
quando  já  mui  doente  e  impossibilitado  ,  fazia  com 
que  disputassem  o  padre  cura  e  o  tabeílião  ,  que 
mandara  chamar.  Deus  lhe  tenha  a  alma  no  des- 
cauço  ,  em  que  deixou  a  todos  por  sua  morte. 

Ao  chegar  aqui  ,  replicará  talvez  algum  dispula- 
dor—  «  então  havemos  de  condemnar-nos  ao  silen- 
cio ,  deixando  correr  o  erro  impunemente?  Será 
sempre  loucura  o  disputar?  .  .  .  Não  disputava  Só- 
crates ,  até  nos  convívios?  Porventura  não  resulta  a 
verdade  do  embate  de  opiniões  encontradas  ,  assim 
como  sabe  a  chis|)a  da  pederneira  ao  golpe  do  fu- 
sil?  .  .  .  1)  —  Força  é  confessar,  que  as  disputas  pro- 
duzem algum  bem  ,  mas  esse  bem  escaco  está  mais 
que  compensado  por  mil  inconvenientes  e  damnos. 
yuanlo  mais  se  disputa  mais  se  embrulham  e  obs- 


curecem as  questões  :  o  que  pelo  comraum  succe- 
de.  Tão  difficil  é  que  o  vesgo  olhe  direito  ,  como 
que  rectifique  seus  erros  quem  vé  as  cousas  de  tra- 
vez.  O  amor  próprio  não  acerta  a  pronunciar  esta 
phrase  —  mio  tenho  rasuo,  equivoquei-me  ;  e  ha  pou- 
cos que  a  saibam  apreciar.  —  O  vento  leva  os  nos- 
sos gritos,  c  são  baldados  os  esforços  que  fazemos 
para  persuadir  a  nossos  adversários ,  conservando 
cada  qual  a  sua  opinião  como  antes  d'haver  dispu- 
tado.—  Ainda  que  a  verdade  esteja  pela  nossa  par- 
le, nem  sempre  é  opporluna  a  occasião  de  a  dizer  ; 
e  alem  disso  argúe  pouca  rasão  perlender  sempre 
tè-Ia. 

Açafrão.  —  Ha  muitas  espécies  desta  ulil  plan- 
ta ;  a  que  Gorece  no  meado  da  primavera  é  annual, 
oriunda  da  Africa ,  c  em  o  nosso  continente  apenas 
serve  para  ornamento  dos  jardins.  É  esta  a  açafroa, 
rarlhamo  ou  açafrão  bastardo  (cartltamus  íiHfíonus  •; 
é  cultivada  nas  regiões  do  Levante  porque  das  suas 
bellas  llores  se  faz  tinta  que  dá  á  seda  bonitas  co- 
res de  encarnado  escuro  ;  lambem  se  usa  para  tin- 
gir plumas  ;  dos  estames  tira-se  um  bello  verme- 
lho, a  que  chamam  vermelhão  d' Ilcspanha  ou  laca 
de  carthamo.  A  semente  é  purgativa.  Do  Egypto  sa- 
be a  maior  quantidade  do  carthamo  que  consomem 
as  tinturarias  francczas.  Multiplica-se  semeando-o 
era  janeiro  ;  da-se  melhor  em  terra  leve  mas  subs- 
tancial ,  e  quer  as  regas  moderadas. 

A  espécie  que  serve  á  medicina  e  lambem  ás  ar- 
tes mais  que  a  outra  é  o  açafrão  propriamente  dito 
(crocus  salivu.ij ;  llorece  no  outono  e  cultivam-se 
campos  inteiros  desta  planta;  e  como  a  sua  flor, 
que  é  a  parle  aproveitável ,  não  dura  mais  de  dois 
dias  depois  d'aberla,  é  necessário  fazer  rapidamen- 
te a  colheita  á  forca  de  gente.  Assim  mesmo  a  úni- 
ca parte  da  llór  ,  que  dá  a  cór  ,  c  que  se  emprega 
é  o;pislilo;  extrabe-se  portanto  este  com  todo  o  cui- 
dado ,  e  põe-se  a  seccar  para  se  conservar. 


Feira  das  mulheres.  —  Ha  na  extremidade  orien- 
tal da  Hungria  a  montanha  de  Bihar  ,  habitada  por 
gente  pastoril  ,  de  raça  valaquia,  e  mui  remota  da 
civilisação  europea.  .No  dia  de  S.  Pedro  concorre 
este  povo  á  planície  dcKalinassa  ,  e  abi  faz-se  uma 
feira  ,  mercado  de  permutação  de  géneros  .  como 
em  toda  aparte  ;  mas  muito  notável  por  ser  o  campo 
dos  casamentos.  Os  pais  que  tem  filhas  casadouras 
trazem  comsigo  as  donzellas  ,  e  n'um  carro  os  do- 
tes ,  que  consistem  em  pobres  moveis  domésticos , 
alem  de  cabeças  de  criação  que  vem  por  seu  pé. 
Apesar  que  nunca  se  tivessem  visto,  os  mancebos 
revistando  a  feira  escolhem  as  noivas  a  olho ,  e  ao 
tratar  do  ajuste  regaleam  a  quantidade  e  valor  do 
dote  :  ajustado  este  e  feita  a  escolha,  recebe  o  par 
a  benção  nupcial,  semceremonia  despedindo-se  das 
resijcctivas  famílias.  O  governo  húngaro  ha  tempos 
que  faz  diligencias  por  supprimir  esta  feira  ,  que  ás 
vezes  é  causal  de  rixas  sanguinolentas;  e  por  temor 
de  bostilisar  abertamente  aqucUa  Iribu  ,  vai  com 
providencias  prudentes  restringindo  pouco  a  pouco 
os  privilégios  do  mercado. 


Os  ERiío.^í  lambem  instruem:   ha  muita  gente  rica 
de  seus  próprios  desenganos. 

Os  desenganos  mais  úteis  são  aquelles  que  nos 
custaram  mais  caro. — Marquez  de  Manca. 


Il 


8S 


o  PANORAMA. 


273 


í'"Tl 


S£  SE   TA&RAGONA. 


íacbago.va  é  a  capital  do  districto  .  ou  província  . 
lio  mesmo  nome  ,  e  que  c  limitado  ao  norte  pela 
Catalunha ,  ao  sul  pelo  antigo  reino  de  Valência  , 
ao  occidente  pelo  Aragão.  Esta  cidade  jaz  na  costa 
do  Mediterrâneo  ,  no  declive  de  ura  monte  :  é  das 
mais  antigas  d'Hespanba  ,  e  suppõem-na  edificada 
pelos  phenicios;  gozou  de  tamanha  consideraçíio  no 
dominio  romano  que  foi  caberá  da  Uispiviia  Citerior 
ou  Tarraconrnsis ,  que  abrangia  a  Catalunha,  o  Ara- 
gão ,  a  Navarra  ,  líiscaia  ,  Astúrias  ,  Galiza  ,  parte 
do  que  foi  reino  de  Leão  ,  e  as  ilhas  Baleares.  Por 
não  carregarmos  de  erudição  histórica  este  breve 
artigo  diremos  que  em  tempos  succcssivamente  pos- 
teriores seguiu  os  destmos  geraes  da  nossa  penín- 
sula. 

A  sua  cathedral  é  das  principaes  igrejas  do  rei- 
no visinho,  e  teve  começo  governando  a  diocese 
st.°  Olegário,  em  1120.  O  corpo  do  templo  c  vas- 
to e  magestoso  ,  de  architeclura  que  pode  chamar- 
se  golhica  pelo  rasgado  e  esbelto  das  proporções  , 
romana  pela  solidez  e  nobreza  ,  e  árabe  pelos  ca- 
prichosos capiteis.  A  nave  do  meio  lem  até  ao  pres- 
l)iterio  389  palmos  catalães,  78  de  presbitério,  e 
61  de  largura  ,  sendo  algum  tanto  menores  as  duas 
collaleraes  ,  que  estão  cheias  de  capellas  ;  d'altura 
alé  o  interior  do  lanlernim  ha  137  palmes.  —  O 
frontes^ticio  d'estylo  gothico  c  composto  de  muitos 
arcos  meltidos  uns  dentro  dos  outros,  com  um  gran- 
Sete-mbro  2 —  1843. 


de  óculo  superior,  que  recebendo  a  luz  da  partt- 
meridional ,  para  onde  deita  ,  a  eonimunica  á  nave 
principal  ,  havendo  outros  dois  óculos  menores  so- 
bre as  portas  lateraes  :  nos  lados  da  principal  e  nos 
estribos  dos  arcos  erguem-se  duas  pyramidcs  ou 
obeliscos  ,  e  entre  os  envasamentos  destes  e  os  ar- 
cos vi!cm-se  collocadas  '22  estatuas  de  pedra  :  os 
baíxos-relevos  também  são  belios.  O  coro  a  meio 
da  igreja,  como  em  todas  as  calhedraesd'Hespanha, 
foi  construído  em  1  í8o  ;  nota-se  mais  o  órgão,  o 
retábulo  do  altar-mór,  e  os  túmulos  de  D.  .loão  de 
Aragão,  e  de  três  arcebispos  que  são  de  muito  gos- 
to e  sumptuosidade.  A  capella  magnifica  do  Sacra- 
mento é  toda  de  mármores  ,  e  mui  rica  d'esculptu- 
ras :  Iodas  as  mais.  quer  ppr  antiguidade  quer  por 
construcção  ,  merecem  exame  ,  sobresahindo  a  de 
St.*  Tiiecla,  obra  do  meado  do  passado  século.  At- 
Irahe  igualmente  a  altenção  a  excellente  bacia  ro- 
mana ,  convertida  em  baptistério  ,  e  que  lui  acbi- 
da  nas  ruínas  do  palácio  dos  imperadores :  é  bel- 
lissima  obra  de  14  palmos  por  S  ,  e  com  7  de  fun- 
do ,  sustentada  sobre  globos  e  leões.  Ninguém  dei- 
xa de  visitar  o  claustro  ,  de  gosto  arábigo  e  fanta- 
sioso.—  Sem  numerarmos  outras  curiosidades  do 
recinto  deste  templo,  diremos  que  eui  suas  pare- 
des ha  varias  pedras  extrahidas  de  outro  gentílico, 
consagrado  a  Augusto,  e  adornadas  com  inscripcõck 
e  formosos  baíxos-relevos. 

2.'  Serie.  —  Voi..  II. 


274 


O  PANORAMA. 


Manpel  de  Sousa  de  Sepúlveda. 

II. 

O  mar. 


O' ir  thc  glud  waltrs  ,  nf  lhe  Aark-hluc  sra , 
<~>ur  thouijkts  us  Iwunillfss,  and  our  soiils  as/ree. 

BvitoK. 


Oli  mnldilo  o  primeiro  que  no  mundo 
A'tíí:  ofiílns  veias  pds  em  scccn  tenho  ! 

Digno  lia  eterna  pena  do  profundo  , 
Se  è Justa  ajusta  lei  que  siyo  e  tentio. 
Nunca  juiio  algum  alto  c  profundo.. 
Nem  eilhurn  sonora  ,  ou  vivo  engcniw , 

Te  de  jinr  isso  fama  nem  memoria; 

Uas  eumtigo  se  acabe  o  nome ,  e  a  gloria! 
Lis. ,   Cant.  4.°  ,  Est.  Íoa. 

O  .iiAR  é  um  drama  bem  fecundo  !  Que  symbolo  da 
vida  qiic  passamos  sobre  a  terra  haverá  alii  mais 
liei?  O  movimento  dos  successos  vemos  retratado 
nas  ondas :  o  emblema  da  sorte  e  a  sua  inconstan- 
ria  na  variedade  com  que  lliictuam  :  o  império  ir- 
rosistivol  das  circunjstancias  no  violento  embale  das 
vagas;  e  n'um  frágil  baixel  mareado  pela  esperan- 
ça voga  para  o  porto  desconhecido  da  eternidade  o 
homem,  \  iajante  de  um  dia  '  Imagem  do  infinito  , 
neste  mundo  que  habitámos,  não  a  conheço  eu  mais 
bem  imitada.  (Juiz  a  Divindade  manifcstar-se  aos 
nossos  olhos  ,  e  rcvelar-se  á  nossa  alma  nesta  gran- 
de obra  do  seu  poder  I 

De  quantos  tem  navegado,  qual  é  aquellc  que 
n'um  dia  de  bonança,  com  um  céu  sereno  e  puro, 
ao  espraiar  a  vista  pela  vastidão  das  aguas ,  não 
sentiu  o  coração  dilatar-se-!he  e  sorrir-se-lhe  de 
sozo?  íí  que  o  homem  que  nas  villas  e  cidades  vè 
limites  c  barreiras  para  qualquer  parle  que  se  vol- 
te—  a  sua  vontade  limitada  por  leis  muitas  vezes 
absurdas,  por  magistrados,  por  sem  numero  de 
agentes  tio  governo,  por  bayonctas  de  soldados,  e 
por  ferro  de  tyrannos  ;  as  suas  acções,  a  sua  voz,  c 
a  sua  língua  embargadas  [)or  erros  do  vulgo,  e  por 
convenções ,  muitas  vezes  insensatas  ,  da  socieda- 
de ;  os  seus  pro|)rios  passos  limitados  por  estreite- 
za de  ruas  ;  os  seus  próprios  olhos  limitados  por 
edifícios  que  lhe  roubam  o  horisonle  —  quando,  no 
alto  mar,  solto  de  todas  estas  prisões,  sobre  o  con- 
vcz  de  um  navio  contempla  a  immensidade  por  lo- 
dos os  lados  —  respirando!  —  levanta  um  grito  mais 
sublime  do  que  Chrislovão  (lolondio  ao  vislumbrar 
a  terra  (|ue  procurava  ,  e  exclama  do  fundo  do  seu 
coração  onde  a  tem  impressa  ^/íôpn/arfc  ,  lilierda- 
'/(•.'  =  Para  cila  aspira  desde  o  berço  até  o  tumu- 
lo, para  esse  mundo  Ião  appelccido  navega  inces- 
santemente ,  c  acabrunhado  dos  ultrajes  que  lhe  vè 
solfrer ,  desgostoso  dos  sofismas  com  (jue  a  ca^il- 
lam  ,  da  hypocrisia  com  que  a  desfiguram,  se  al- 
guma hora  chega  a  encontrar  o  seu  semblante  ve- 
nerando ,  sauda-a  inclinando-se  de  res[)eilo  ,  abra- 
ça-a  transportado  de  cnthnsiasmo.  A  ella  saudava 
aqiielle  espirito  nobre  ,  tão  tristemente  avaliado  co- 
mo mal  comprehendido  pelos  seus  contem])orancos, 
Fernando  de  Magalhães ,  quando  passados  tantos 
revezes  que  por  seu  mal  não  foram  os  últimos,  ao 
avistar  o  Oceano  Pacifico  ,  de  joelhos  rendia  graças 
;i  Providencia  ,  e  tirava  de  um  rei  a  vingança  es- 
trondosa e  memorável  sobre  quantas  nos  recorda  a 
tiussa  e  alheia  historia  ! 


A  liberdade  nasceu  sobre  o  mar,  sobre  as  fro- 
tas de  Tyro  c  Carthago,  sobre  os  galeões  de  Vene- 
za, sobre  os  pântanos  da  Ibjllanda,  sobre  as  praias 
de  Inglaterra  ,  sobre  as  margens  do  Mississipi ,  so- 
bre as  aguas  do  Amazonas :  e  se  de  lá  a  não  trans- 
portámos para  as  nossas  instituições  politicas  nós  , 
senhores  do  oceano  mais  de  ura  século,  de  lá  trou- 
xemos ,  c  foi  lá  que  conquistámos,  a  independên- 
cia, sem  a  qual  é  um  vão  nome  o  nome  de  pátria, 
e  a  liberdade  uma  promessa  de  aleivosia. 

Nasceu  sobre  o  mar  a  liberdade  ,  c  a  riqueza 
também  —  não  a  formosura,  como  fabularam  os  an- 
tigos—  mas  no  mesmo  berço,  ao  lado  de  ambas, 
nasceram  igualmente  as  tempestades.  Se  fora  possí- 
vel erguer  dois  medãos  mortuários,  um  das  carcas- 
sas dos  navios  naufragados  e  das  riquezas  que  com 
elles  se  alTundiram  —  o  outro  de  ossos  humanos 
dos  que  as  ondas  sepultaram;  e  no  cume  desses 
medãos  se  ajuntassem,  parcella  a  parcella,  sonima- 
dos  os  gemidos  dos  moribundos,  a  dôr  das  famílias 
consternadas  ,  as  lagrimas  da  viuvez  e  da  orphan- 
dade  ,  os  suspiros  da  amizade  ferida  nos  seus  laços 
mais  estreitos,  os  soluços  do  amor  assassinado  em 
suas  sympathias  mais  doces  e  mais  profundas — um 
brado  de  indignação  se  alçaria  unanime  contra  a 
arte  náutica  e  seus  inventores,  e  ninguém  talvez  se 
abalançara  aos  riscos  desta  loteria  de  bens  e  males 
que  oflcrcce  o  navegar  !  .  .  . . 


13  de  abril  de  1S^2  — 24  de  junho. 

liL 

O  naufrágio. 


os  rejitos  que  lutaram 

Como  touros  indomilos  bramando  , 
Mais  e  mais  a  tormenta  acrescentavam  , 
Pela  viiiida  enxárcia  assoriando: 
líí  Inne/iagos  medonhos  não  cessavam  ^ 
Feres  trovões ,  que  vem  representando 
Caliir  o  céu  dos  eixos  sobre  a  terra , 
Comsigo  os  elementos  terem  iiuerra- 
Lus. ,  Caul.  6.°  ,  Est.  í!4. 


Partido  de  Cochim  ,  seguia  viagem  prospera  o 
galeão  S.  .loão  ,  e  a  treze  de  abril  se  achava  nor- 
deste sudoeste  com  o  Cabo  de  Boa-Esperança  ,  vin- 
te c  sinco  léguas  ao  mar  delle  :  mas  o  vento  se  lhe 
mudou  a  oeste  e  oesnoroestc  ,  e  começou  a  toldar- 
sc  o  céu  no  [iroprio  dia  (]ue  cuidavam  passariam  o 
cabo  á  outra  banda.  Mostrava  a  almosphera  um  so- 
breccnho  ameaçador;  trovejava;  ccrrava-se  a  luz; 
approximava-se  a  noite  ;  crescia  o  vento  ;  cerado- 
brnva-se  o  perigo  com  a  escuridade.  Traziam  uma 
só  andaina  de  velas,  e  essas  mesmas  muito  velhas  : 
e  assim  indo  arribando  com  um  bolço  ,  tornaram  a 
desandar  130  léguas,  línlão  saltou  o  vento  ao  nor- 
deste com  tamanha  fúria  que  os  fez  outra  vez  vol- 
tar para  o  sul.  Com  os  mares  qno  cresciam  do 
poente  ,  c  com  os  que  o  levante  vinha  erguendo  , 
ficou  o  oceano  tão  cruzado  e  soberbo  que  o  galeão, 
mettido  entre  aqiielie  conflicto  de  serras  sobre  ser- 
ras de  ondas  ,  com  ser  o  maior  navio  que  andava 
na  carreira,  não  podia  sotfrer  o  embate  e  peso  enor- 
me (las  aguas  :  |)elos  i)ordos  ambos  as  ia  bebendo 
c  alaganiio-se  :  e  ora  apparecia  alçado  no  cume  das 
vagas,  orà  sumido  na  concavidade  do  oceano.  Quasi 


Il 


o  PANORAMA. 


275 


perdidos  foram,  deste  modo,  com  as  bombas  sem- 
pre na  mão  correndo  Ires  dias  a  Deus  misericórdia 
sobre  aqucilcs  abysmos.  Ao  cabo  do  quarto  amai- 
nou o  vento  ,  mas  não  soeegoii  o  mar;  antes  ficou 
tão  alterado  ,  e  sacudiu  tão  fortemente  o  galeão  , 
que  lhe  quebraram  alguns  dos  machos  mais  ne- 
cessários para  sustentar  o  leme.  Er)l,To  o  mestre  , 
Christovão  Fernandes,  que  era  um  velho  muito  hon- 
rado e  prudente  ,  vendo  o  perigo  ,  disse  em  segre- 
do ao  carpinteiro,  que  no  navio  era  o  único  que  li- 
nha dado  noticia  do  estrago  do  leme  ;  «  irmão,  cal- 
lai  comvosco  a  desgraça  que  acaba  de  acoutecer- 
nos ,  porque  se  a  chega  a  saber  a  marinhagem  , 
dcsacoroçòa  e  estamos  todos  perdidos.» 

Cora  este  receio  iam  ,  quando  o  vento  tornando 
a  virar  a  leste,  lhe  levou  o  papafigo  da  verga  gran- 
de. Temendo  então  os  olliciacs  ficar  sem  o  da  proa, 
acudiram  a  colhe-lo:  mas  apenas  o  c(}Iheram,  atrn- 
vessou-se  o  galeão  ,  no  qual  deram  três  mares  tão 
grossos,  que  com  os  balanços  rebentaram  da  banda 
de  bombordo  os  apparelhos  e  costanciras  do  mastro 
grande.  Tropeava  o  navio  tanto  que  não  havia  ncl- 
le  homem  que  podesse  ter-se  em  pé  para  accorrer 
ao  serviço:  e  receosos  de  que  com  os  soIa\ancos 
cahindo  o  mastro  repentinamente ,  lhes  causasse 
alguma  avaria  considerável,  assentaram  de  o  cor- 
tar a  tempo  e  cora  cautela.  Jlas  apenas  lhe  tinham 
descarregado  as  primeiras  machadadas  ,  viram-no 
estourar  por  cima  das  polés  das  coroas  ,  e  — como 
se  fora  uma  folha  de  arvore  —  aquelle  madeiro 
enorme  ir  pelos  ares ,  e  lança-lo  o  vento  com  lodo 
o  pezo  da  gávea  c  mastaréu  ao  meio  das  ondas. 

Açoitados  da  continuação  do  temporal  ,  extenua- 
dos de  forças,  vendo-sc  em  destroço  sem  mastro  e 
quasi  sem  velas,  mesmo  assim  não  soçobraram  de 
todo  aquelles  ânimos,  porque  morava  ainda  n'elles 
a  perseverança  e  desíemidcz  dos  portuguezes  anti- 
gos. Guarneceram  uma  verga;  da  lona  velha  com- 
puzerara  uma  vela  que  envergaram  ;  e  d' uma  an- 
tenua  c  o  pedaço  que  lhe  ficara  do  mastro  como 
poderam  engenharam  um  no\o  mastro,  iías  o  ven- 
to veio  outra  vez  ,  furioso  ,  arrebatar-lhe  esse  mes- 
mo cadáver  de  mastro  cvela  que  chegaram  a  arvo- 
rar: atravessou-se  o  galeão,  deitou  o  leme  á  ban- 
da como  traste  inútil,  e  começou  o  porão  a  encber- 
se  de  agua.  Era  espectáculo  lastimoso  e  medonho 
o  que  n'aquelle  momento  se  presenciava  dentro  do 
navio:  o  soluçar  inquieto  d'este  ,  a  confusão  e  o 
tumulto,  os  gritos  de  misericórdia  ,  o  tombar  dos 
homens  uns  sobre  os  outros,  o  soar  do  apito,  o  bra- 
dar do  mestre  ,  o  rugir  do  mar  ,  o  bramir  do  ven- 
to,  o  fuzilar  dos  relâmpagos,  o  rebombar  dos  tro- 
vues.  Era  a  lucta  dos  elementos  cora  o  esqueleto  nú 
de  um  baixel.  Era  a  sauh.i  do  oceano  que  exigia 
as  vidas  de  uns  poucos  de  homens,  e  a  resistência 
d'esses  homens  que  se  não  queriam  entregar.  D'el- 
Ics  os  que  eram  fracos  gemiam  e  choravam;  c  os 
que  eram  fortes  interrogavam  os  céus  e  os  rumos, 
e  acolhidos  a  esse  baluarte  meio  arrasado  —  o  ga- 
leão —  defeudiam-se  com  a  força  dos  braços  c  as 
armas  da  intelligencia  do  assalto  de  seus  inimigos. 
Lucta  desigual  c  terrível  I  E  comtudo  ainda  alli  se 
observava  mais  terrível  lucta  do  que  esta,  no  es- 
forço de  ura  homem  ,  que  amava  cora  idolatria  a 
uma  mulher  ,  contra  a  morte  ,  que  queria  roubar- 
Ihe  n'aquelleconflicto  o  objecto  querido  do  seu  cul- 
to. Este  homem  era  o  capitão.  Esta  mulher,  ado- 
rada e  incomparável ,  era  D.  Leonor. 

A.  eslrella  de  Manuel  de  Sousa  ainda  lhe  foi  pro- 


picia. Foi  rolando  para  a  Icrra  por  espaço  de  dez 
dias  o  galeão  sem  mastro,  sem  leme,  sem  velas  c 
sem  governo  com  as  correntes  e  os  ventos  mais  ba- 
beis ou  mais  poderosos  do  que  o  jiiloto  e  a  agulha; 
e  nos  8  de  junho  deram  vista  da  costa  os  atribula- 
dos navegantes.  Chamou  Manuel  de  Sousa  os  olK- 
ciaes  a  conselho,  e  no  conselho  assentaram  que  não 
havia  já  outro  remédio  senão  varar  cm  terra  ,  t 
tratar  de  salvar  as  vidas :  deixar-se  ir  até  serem 
em  certo  numero  de  braças,  c  assim  que  achassem 
fundo,  surgir  c  lançar  fora  o  batel  em  que  haviam 
de  desembarcar.  Logo  alli  deitaram  fora  ,  a  tentar 
desembarcadouro  ,  uma  manrhua  com  alguns  ho- 
mens ,  que  bom  espaço  depois  voltaram  com  a  no- 
lit  ia  de  haver  perto  uma  praia  coramoda  ,  sendo  o 
mais  rocha  talhada  a  pique,  e  penedia  impraticá- 
vel. Então,  já  com  13  palmos  de  agua  no  porão, 
foram  endireitando  para  a  terra  ,  e  chegado  o  na- 
vio até  sete  braças  e  dois  tiros  de  besta  do  sitio  de- 
signado para  o  desembarque  ,  lançaram  ancora  ao 
mar  ,  determinando  desembarcar  com  o  resto  das 
munições  e  mantimentos ;  e,  em  terra,  das  relí- 
quias do  navio  compijr  um  caravelão  em  que  fos- 
sem a  Sofála  ou  Moçambique  ,  ou  mandassem  lá 
aviso  para  os  virem  buscar. 

Embarcaram  pois  na  manchua  ,  com  não  pouco 
perigo,  Manuel  de  Sousa,  sna  mulher  e  filhos,  e 
Ijcrío  de  vinie  pessoas  principaes  com  algumas  es- 
pingardas e  outras  armas  para  se  defenderem  sendo 
necessário;  c  desceram  aterra.  E  como  naquella 
costa  era  então  rigor  do  inverno  e  o  frio  excessi- 
vo ,  mandou  logo  Manuel  de  Sousa  accender  um 
grande  fogo  ;  e  á  proporção  que  a  manchua  ,  que 
tinha  voltado  ao  galeão  a  buscar  mais  gente,  che- 
gava cora  ella ,  elle  que  a  andava  esperando  na 
praia  ,  a  guiava  com  muita  humanidade  ,  e  a  que 
podia  pela  sua  própria  mão  conduzia  ao  sitio  onde 
estava  acccsa  a  fogueira.  Neste  trabsllio  de  desem- 
barcar gente  ,  armas  ,  provisões  ,  pólvora  e  roupas 
se  continuou  Ires  dias,  ao  cabo  dos  qi:acs  começan- 
do o  mar  a  eraliravecer,  c  acontecendo  qucbrar-sc  .i 
amarra  do  mar,  vendo  o  mestre  que  o  perigo  estava 
imminenie,  disse  para  a  gente  do  galeão:  «Irmãos, 
antes  que  a  náu  abra  c  se  nos  vá  ao  fundo  ,  quem 
quizer  embarcar  naqucllc  batel  o  poderá  fazer.» 
Embarcou  então  o  piloto  que  era  homem  velho  c 
muito  acccito  a  todos,  e  alem  do  mestre  umas  qua- 
renta pessoas,  porque  não  cabiam  mais.  Essas  mes- 
mas estiveram  a  poeto  de  ir  ao  fundo ,  por  ser  mui 
forte  o  jogo  das  ondas ;  e  o  batel  chegou  á  praia 
tão  desmantelado,  que  logo  al!i  se  foz  cm  peda- 
ços. 

Ainda  no  galeão  ficavam  perto  de  oOO  pessoas , 
sendo  portuguezes  200  com  o  contramcítre  c  o  guar- 
dião. E  como  se  vissem  sem  o  b.itel ,  largaram  a 
amarra  do  mar  ,  e  foram  alando  pela  da  terra  até 
tocar  o  navio.  Apenas  tocou  ,  começou  a  abrir-se 
por  varias  partes;  e  dahi  a  pouco  a  força  da  agua 
que  entrava  trouxe  acima  nadando  caixotes,  barris, 
contras  vasilhas,  ás  quaes  e  ás  taboas  ,  para  se 
salvar,  se  lançaram  os  desgraçados,  morrendo,  uus 
afogados,  outros  de  contusões,  quarenta  portugue- 
zes c  setenta  escravos.  A  terra  chegaram  com  mui- 
tas feridas  dos  páos  e  pregos  os  outros  que  escapa- 
ram :  e  era  quatro  horas  se  descoseu  e  desfez  a 
embarcação  de  maneira  ,  que  não  foi  parar  á  praia 
taboa  nem  páu  ,  que  passasse  de  uma  braça. 

(Continuar-sc-ha.  / 
A.  li' O  Marreca. 


S76 


O  PANORAMA. 


o  RAIfCIFKB.,  OU  KSNNO  ,  E  SEUS  DONOS. 


KsTE  animal  õ  um  grande  beneficio  para  os  halii- 
tantes  da  frigida  J.aponia  ,  c  que  a  Providencia  lhe 
doou  ,  assim  como  aos  árabes  do  deserlo  o  utilissi- 
»no  camello.  í]  da  mesma  espécie  ,  pnstoque  maior 
<juc  o  veado  ,  c  só  se  encontra  nas  regiões  polares 
da  Ásia,  e  apesar  das  tentativas  para  introduzi-lo 
na  Escócia  e  outros  climas  septenlrionaes  nunca  se 
iiaturalisou  ;  sendo  facto  singular  que  os  indjviduos 
desta  espécie  que  foram  transportados  a  paizes  on- 
de o  clima  e  alimentos  eram  mais  análogos  aos  da 
Laponia  enfermaram  e  morreram  mais  depressa  que 
<(S  encerrados  n'nu)a  arribana  e  nutridos  com  ali- 
mentos diversos.  De  tempos  mui  remotos  os  lapões 
domesticaram  o  rangifor  ,  c  lhe  devem  quasi  Iodas 
as  conveniências  que  podem  dcsfriutar  ,  pois  alem 
de  allivia-los  em  suas  tarefas  lhes  presta  alimento 
saudável  e  nutriente.  Orangifer  ('•  amofinado  no  ve- 
rão por  uma  praga  que  oliriga  sens  donos  a  condu- 
zi-lo á  costa  marítima  para  mitigar-lhe  o  padeci- 
mento e  conservar-lhc  a  vida.  —  «A  ilha  da  Balea 
[narra  De  llroKe  em  sua  Viagem]  durante  os  mezes 
dVslio  c  frequentada  pelos  lapões  com  seus  gados  : 
a  causa  que  os  constrange  a  tacs  emigrações,  posto- 
«jiic  estranha  pareça,  é  bastante  poderosa;  porquan- 
to nessa  estação  está  o  interior  do  paiz  tão  iníesta- 
tio  por  dilTercntes  castas  de  mosquitos  que  nenlium 
animal  pode  escapar  á  inces.sante  perseguição  del- 
l<-5.  Fazem-sc  varias  fogueiras  para  levantar  fuma- 
radas,   c  cem  o  furco  se  resguardam  os  habitantes 


dos  importunos  inimigos,  e  alem  de  tudo  isso  tem  de 
untar  a  cara  com  breu  para  preservativo  dos  perti- 
nazes ferrões.  O  rangifer  ó  de  mais  a  mais  perse- 
guido por  uns  grandes  tavões  [talvez  da  raça  do 
moscardo  (/ucapnrjmnla  os  bois]  ,  os  quaes  não  só  o 
atormentam  com  as  picadas  senão  que  depositam  os 
ovos  na  ferida  que  causam,  o  que  tanto  molesta  aquel- 
Ic  gado  que  a  não  o  tirarem  dos  bosques  nos  mezes 
de  junho,  julho  e  agosto,  pereceria  a  maior  parte. 
Estes  insectos  não  podem  sofTrer  a  brisa  do  mar 
nem  o  vento  mais  fino  das  assomadas :  eis  a  rasão 
das  emigrações  no  verão  para  esses  sitios.»  — 

.\o  começar  o  inverno  deixam  os  lapões  a  costa 
e  voltam  ao  sertão  antes  que  principiem  os  nevoei- 
ros ,  quadra  em  que  o  jicllo  do  rangifer  crcsee  c 
gatdia  certa  còr  esbranquiçada  :  então  é  que  este 
animal  d;i  a  conhecer  o  sen  valor  peculiar  ;  que  se 
elle  não  fosse,  impossível  seria  ãquelles  povos  todo 
o  transporte  c  communicação  ;  basta  um  só  para  pu- 
lar  a  carreta  especial  daquellas  terras ,  chamada 
trenó,  com  a  carga  de  Ires  quintaes  ,  caminhando 
com  a  maior  rapidez  ,  fazendo  frequentes  vezes  em 
dezoito  horas  jornada  de  mais  de  ÍO  leguns.  —  Na 
Suécia,  em  o  palácio  de  Drotningholm,  ha  uma  pin- 
tura de  um  rangifer  que  em  1699  conduziu  um  of- 
ficial  com  papeis  e  participações  de  grande  monta  a 
quasi  incrível  distancia  de  200  léguas  em  ÍS  horas. 

<l  rangifer  come  de  toda  a  bcrva  .  mas  d'invcrno 
só  se  alimenta  de  ini.'Sgo  ,  e  o  descobre  deb,TÍ\o  do 


o   PAINORAMA. 


277 


polo  só  pelo  faro ;  ullimanicnte  se  averiguou  que 
devora  sôfrego  uma  cnsla  de  ratos  em  que  pnr  lá 
as  serranias  ahundam.  O  numero  de  cabeças  que 
constituem  um  rebanho  orça  por  lOO  ou  300  ;  o 
que  basta  para  manter  com  abmidaneia  uma  fami- 
lia  cm  lodo  o  anno.  No  verão  fazem  os  lapões  con- 
siderável porção  de  queijos ,  e  no  inverno  matam 
as  caijcças  de  gado  ,  do  que  precisam  para  provi- 
mento caseiro.  Duzentos  dos  mesmos  animaes  che- 
gam para  uma  familia  que  não  seja  numerosa  e  que 
viva  com  reslricta  economia  ;  com  oO  não  pôde  con- 
scrvar-se  casa  separada  :  por  isso  o  pobre  costuma 
juntar  o  sen  rebanho  ao  do  rico  ,  cuidando  de  am- 
bos sem  receber  mais  retribnição  que  o  sustento  , 
f  reputando  por  salário  o  angmcnlo  de  seu  peque- 
no rebanho. 

A  gravura  que  precedo  representa  uma  familia 
de  lapões  ordcnliando  o  rangifer. — Ha  também  ran- 
giferos  montezes  ,  que  os  habitantes  mais  activos 
caçam  pelas  serras  para  fazerem  comnicrcio  da  ar- 
mação esgalhada  e  das  pelles,  assim  como  das  lin~ 
suas,  qne  bem  curadas  são  d'estimação  em  alguns 
reinos  do  norte  da  Kuropa. 


As  Artes  ,  as  Lettr.is  ,  k  as  Scie.ntias  ksi  TKJiro 
n'EinEi  l).  João  o." 

( Fragmeido  de  nm/i  obra  im-dila  do  século  passado.) 

I  Conclusíio.] 

ToHo  grandes  vontades  e  desejos  não  enchem  os 
corações  sem  muitos  e  generosos  efteitos ,  viu  o  sá- 
bio rei  que  almas  desprovidas  não  podem  fazer 
grandes  adiantamentos,  e  cuidou  de  livros.  É  indi- 
zível a  quantidade  prodigiosa  corii  que  fez  enrique- 
cer a  nação  de  obras  uleis  ,  c  de  grão  decoro  ,  e 
com  que  a  este  exemplo  e  occasião  vieram  a  este 
reino  milhares  de  mortos  illustres  buscar  também 
rntre  nós  vida.  .\inda  que  antes  dos  negociantes 
Lerzo  e  Morganti  houvesse  deste  género  de  cora- 
mercio  ,  como  pelos  livros  de  boas  bibliothecas  da 
nação  ,  e  pelos  catálogos  dos  mercadores  se  conhe- 
ce ;  comtudo  dos  annos  de  vinte  por  diante  engros- 
sou esta  levada  a  recrear  grandemente  olhos  esprei- 
tadores.  Eis-aqui  algumas  noticias  de  traze-r  na  me- 
moria para  credito  nosso.  Dou  uma  copia  do  que  o 
meu  prudentíssimo  reitor  em  a  Universidade  de 
("oimbra  ,  Francisco  Carneiro  de  Figueiroa  ,  varão 
nascido  para  governo  politico  de  academias  .  escre- 
veu nas  suas  curiosas  Memorias  daquclla  Lnivcrsi- 
dadc  N.  XXV  ,  fallando  do  reitor  .Nuno  da  Silva 
Telles,  da  casa  de  Alegrete.  =  «  Porque  os  Estatu- 
tos da  Tniversidade  [do  século  de  quinhentos]  dis- 
põe que  lodos  os  annos  se  comprem  quarenta  mil 
réis  de  livros,  para  se  ir  accreseentando  a  li\raria 
delia,  que  alem  de  ser  quantia  limitada,  se  tinham 
descuidado  muitos  dos  reitores  ,  seus  antecessores , 
de  o  executarem  ,  alcançou  de  sua  magestade  li- 
cença para  se  comprar  uma  li\raria  por  quatorze 
mil  cruzados:  e  a  ampliação  dos  ditos  quarenta  a 
cem  mil  róis;  e  porque  também  não  tinha  a  uni- 
versidade casa  competente  para  uma  boa  livraria  , 
conseguiu  de  sua  magestade  licença  ,  por  provisão 
de  31  de  outubro  de  setecentos  e  dezeseis,  para  se 
lazer  de  novo,  e  lhe  deu  principio  com  toda  a  gran- 
deza .  deixando-a  ja  bastatiteraente  adiantada.  » — 
t^OQtinua  fallando  do  seu  reitorado.  =  Acabou-se  de 
fazer  cem  toda  a  perfeição  a  casa  da  livraria  ,   que 


é  uma  das  mais  magnificas  obras  que  tem  este  rei- 
no. r=.\  ca  bou-se  em  setecentos  e  viníe  c  sinco.  Pa- 
ra augmenlar  a  bibliothcca  real ,  cm  que  estavam 
juntos  os  livros  preciosissimos  e  raríssimos  dos  reis 
antigos ,  sustentou  elrei  fiira  do  reino  muitos  ama- 
nuenses em  muitos  annos.  l'ara  o  mesmo  fim  fez 
comprar  collecçõcs  de  livros,  e  tiveram  ordem  os 
negociantes  (iendron  e  Reycend  de  fazerem  vir  os 
que  podessem  alcançar  ,  e  dclles  repartia  para  as 
reaes  casas  das  Necessidades  ,  e  de  Mafra  [o  que 
lambem  continua  o  senhor  rei  D.  José] ;  mandando 
abrir  no  real  e  insigne  convento  desta  villa,  em  ja- 
neiro de  trinta  c  um,  escliolas  publicas  com  sete 
cadeiras.  Em  outubro  do  mesmo  anno  fez  vir  a  Lis- 
boa Martim  de  I'iua  de  Proença  para  formar  o  ca- 
talogo lia  livraria  real,  havendo-lhe  então  chegado 
vinte  mil  volumes.  Do  fervor  das  communidades,  e 
dos  particulares  a  este  respeito  ,  póde-se  tecer  um 
cl(jgio  de  grande  credito.  O  gosto  nas  encaderna- 
ções pulidas  ó  dos  seus  dias;  e  deve-se  particular- 
mente ao  livreiro  .Mnlheus  Nogueira  ,  que  por  hon- 
ra ,  e  conhecimento  que  delle  tive  ,  e  deste  benefi- 
cio ao  publico  ,  devo  nomea-lo.  Podem-so  ver  as 
suas  pulidas  encadernações  .  cm  grande  parle  dos 
livros  do  abbade  Diogo  Barbosa  .  que  deixou  á  bi- 
bliothcca do  sua  magestade  no  reinado  do  senhor 
rei  D.  Josó. 

Na  Viiriedadc  de  arbítrios  para  saber  e  estudar 
muito ,  pois  tanto  é  para  isso  necessário ,  c  para 
merecermos  hora  nome  ,  foi  exemplar  aquelle  tem- 
po debaixo  da  protecção  regia.  Os  Mercurios  de 
.\níonio  de  Sousa  de  Macedo ,  esquecidos  ,  foram 
enlão  renovados  por  João  de  Bu\ trago.  A  pratica 
das  gazelas  ó  do  anno  de  quinze.  Foram  suggestão 
do  M.  Fr.  Basilio  de  Santa  Barbara  Alfombra  ,  do 
reino  de  Valência  ,  que  da  ordem  dos  capuchinhos 
transitou  para  esta  província  da  ordem  terceira,  ne- 
cessitado pelos  encontros  que  leve  nas  divisões  pá- 
trias sobre  a  successão  de  Hespanha.  Viveu  entre 
nós  com  credito  ,  c  com  as  primeiras  pessoas  da 
fidalguia,  por  seus  talentos  litterarios  e  civis  ;  o 
deste  modo  o  recebi  dos  padres  ,  seus  contemporâ- 
neos. Jforreii  victíma  da  caridade.  Elle  era  dia  e. 
noite  assistente  firme  a  qualquer  religioso  enlcr- 
nio  ;  e  por  uso  de  uma  caridade  livre  e  ardente  se 
interessou  ató  a  morte  na  assistência  dos  perigosos 
doentes  na  famosa  epiílcmia  dos  vómitos  pretos  no 
bairro  de  S.  Paulo,  deixando  raros  exemplos,  a 
saudosa  memoria. — iías  como  escrevíamos  :  pr<3- 
duziam  excellcnles  effeílos  as  correspondências  lil- 
lerarias  ,  ([ue  praticaram  ,  alem  de  muitos  outros  , 
o  conde  da  Ericeira,  e  o  principal  D.  Francisco  de 
Almeida,  com  D.  Gregório  Mayans  ,  e  o  Deão  do 
Alicante,  Jlarti,  a  cujo  fullecimento  dedicou  o  mes- 
mo principal  uma  academia  ,  em  que  orou  na  lir>- 
gua  latina  o  erudito  professor  ,  .Vulonío  Felíx  Men- 
des. 

.\as  diligencias  de  apurar  as  doutrinas  ,  pelas 
quaes  se  entende  a  critica  ,  houve  fervor  cm  muita 
varieiiade  de  assumptos.  Era  recolher  memorias  de 
lapides  sepulcbraes  e  outros  monumentos  de  remo- 
ta antiguidade  ,  segundo  as  leis  académicas  ,  traba- 
lharam muitos  curiosos  no  gosto  do  P.  D.  Jeronj- 
mo  ("uníador  ,  ainda  que  este  fíd  mais  activo  eai 
diligenciar  e  publicar.  Morganli  dístinguiu-se  em 
a  numismática  ,  mas  este  sábio  deu  provas  publi- 
cas dii  seu  talento  a  este  e  outros  muilus  respeitos ; 
e  quanto  delle  refere  a  li'MMhc:a  Lusitana  ^ão  pu- 
ras verdades,  e  fui  certamente  um  brilhante  resplen- 
der do  clero  secular.  Quanto  á  numismática  baste 


278 


O  PANORAMA. 


por  ora  reconlar  a  collccrão  preciosíssima  do  mar- 
quez  de  Al)rnnlcs,  que  esleve  empenhada  cm  trin- 
ta e  seis  mil  cruzados,  a  qual  seu  lilho  resgatou  (.;. 
Não  deve  portanto  esquecer  o  muito  que  se  acha 
cscriplo  a  este  respeito  no  tom.  í.°  da  Ilisturia  Ge- 
nealógica da  Casa  Real  ,  nem  a  cançada  fadiga  que 
tomou  o  doutor  Nicolau  Francisco  Xavier  da  Silva 
para  provar  a  verdade  da  doação  dos  oitenta  mil 
dinheiros  de  ouro,  que  elrei  D.  Affonso  Henriques 
fez  ao  hospital  de  S.  João  de  Jerusalém  ,  da  qual 
obra  se  imprimiram  algumas  folhas  (.:).  Quando  se 
escreve  a  historia  numismática  da  Nação ,  oITere- 
cera  os  dias  (i'clrei  D.  João  dignos  monumentos 
para  ella  ,  cunhados  em  medalhas ,  que  por  dili- 
gencia do  erudito  e  pulido  abhade  Garnicr  ,  eapcl- 
lão  da  real  casa  de  S.  Luiz ,  se  publicaram  ha 
pouco. 

Deste  propósito  passemos  a  outras  espécies  rela- 
tivas á  mesma  Academia  Real.  Quanto  se  desco- 
briu e  adiantou  nossa  historia?  quanto  concorreram 
á  porfia  as  províncias  não  c  fácil  dize-lo.  A  curio- 
sidade era  immensa  em  trabalhar  para  esta  honra 
nacional.  Ninguém  cançava  de  copiar  obras,  de 
que  se  podessc  tirar  lume  novo,  erudição  c  prazer, 
fossem  versos,  fossem  noticias  c  memorias,  e  qual- 
quer outra  erudição.  Dos  seus  dias  é  a  boa  traduc- 
ção  da  Árchitcrtura  de  Palladio,  ainda  que  não  se 
imprimiu.  Em  todas  as  profissões  houve  adiantamen- 
to e  activa  competência.  Escreveram  na  lingua  la- 
tina com  acerto  o  padre  Ueis  ,  o  carmelita  descal- 
ço Fr.  Caetano  de  S.  José  ,  o  jeronimiano  Fr.  José 
Caetano  ,  os  António  liodrigues  da  Costa  ,  os  Vale- 
sio,  os  .^lendes  ,  o  marcjuez  de  Alegrete,  c  muitos 
outros.  Quem  deseja  muito  não  deixa  de  oflender- 
se  de  que  a  iingua  pátria  não  deveu  aos  académi- 
cos maior  esmero ,  e  que  no  estylo  dos  que  são  ex- 
ceptuados se  acha  ar  bastante  gothieo.  Ouvi  sempre 
aos  críticos  prudentes  desculpar  pela  natureza  de 
memorias  soltas  a  dispensa  de  oração  mais  conccr- 
lada  ;  e  que  por  estas  nódoas  entre  curiosidades  de 
agradecer  se  encontram  muito  pulidos  escriptos  em 
Imgua  corrente  e  harmoniosa  ;  e  no  que  respeita  a 
pensamentos  sensatos  ,  todas  as  memorias  dos  nos- 
sos ministros  neste  século  são  dignas  de  veneração 
pela  propriedade  de  vozes  e  pbrases,  corresponden- 
te a  seus  grandes  objectos.   Sc  passarmos  deste  di- 

(•)  Em  outro  lojar  ú.i  lufsmr»  obra  tornamlo  o  A.  ;i 
fallar  de  meilalh.-is,  accresrciila  nljiimas  noiirias  sobre  esli- 
pailicnlar,  clizenilii-=  .i  A  ciillerrão  preciosa  e  mais  rara 
foi  a  do  marqiiez  de  Ai)ranles.  A  sua  raridade  avultou  di- 
íuamcnle  pelas  iiioilallias  dn  ouro  e  praia,  cpic  a  seu  pai  , 
o  inarquez  de  Foules,  em  duas  caixas  deu  em  o  anuo  de 
dezesete  ein  R<jma  o  papa  CIiMucnle  XI,  excrllenle  coidie- 
«■edor  deslas  elejaucias.  Cheirou  a  sit  um  peÉuliu  luimisuia- 
lic-o  de  resjieilo  pelas  Hiedallias  anliías  de  sua  jrraude  casa, 
c  pelas-  conseiuinles  acqiiisieões.  Quanla  perda  só  esta  no 
terremoto  «le  ciiieoenta  e  cinco!  "=-- 

(;:)  Dclle  ha  varins  opuscuh^s  aulo^raphos  na  Bihliot. 
Pulil.  Ehorcnse  ;  e  o  nosso  A.,  em  outro  logar  da  mesma 
libra,  accrescPíila  a  seu  respeilo  o  òesuinle.  i^i;  No  oulro  ra- 
mo de  lilleraliira  ,  ipial  é  a  liiíluria  lilleraria,  se  distinguiu 
uiuiio  Nicolau  Francisco,  e  mereceu  ser  frequeulado,  pela 
snmma  jiromplidào  em  anniniciar  noiicias  [ihilnl.iiicas.  A 
esla  er{idição  ajuntava  ouiros  proveitos  o  trato  com  este  eru- 
dito ,  qual  era  o  fiosto  da  boa  latuiidade,  para  (pie  irenio  e 
e-lodo  o  levavam  com  desempenho.  Na  dcclamac;rio  foi  ve- 
liemenle ,  o  que  provou  orando  no  douloramenlo  em  Iheolo- 
lia  de  Xavier  de  Fcuiles,  »lrevendo-se  na  f;rande  sala,  que 
í-ra  ajireja  de  Santa  Cm?.,  a  invocar  Jupiler  .Slator ,  bn- 
leiído  as  campas  para  vincar  o  nome  daquelle  saliio  llu-olo- 
po,  seu  amiffo,  cuja  »loria  qniz  oíTuscar  um  antau'onisla  á 
face  <1.T  -Vcadimia.  A  declamação  foi  gosladu  lambem  pelo 
de«CDl|>eulio  oratoric.— - 


reito  publico  ao  mais  frequente  para  a  justiça,  que 
se  deve  aos  homens  ,  teve  nesta  parte  nome  parti- 
cular o  sábio  consulto  João  Alvares  da  Costa.  Elle 
pòz  á  vista  dos  homens  escriptos  escondidos. 

A  severidade  das  scienrias  não  sorveu  comsigo 
todas  as  outras  curiosidades.  As  boas  artes  tiveram 
esthola  muito  frequentada  ,  e  desempenhada  com 
admirável  credito.  Mafra  foi  berço  da  esculptura 
em  mármore.  Da  praticada  em  madeira  foi  Manuel 
Dias,  digno  da  memoria,  que  lhe  fazem  plausível 
os  bons  monumentos,  que  hoje  se  estimam.  Viei- 
ra, e  André  (íonçalvcs  ,  mestres  de  António  Joa- 
quim Padrão;  Domingos  Nimes,  mestre  de  Joaquim 
.Manuel  da  Kocha  ;  Ignacio  de  Oliveira  ,  e  outros 
insignes  pridessorcs  de  pintura  ,  fazem  honra  a  na- 
ção. Escriptos  sobre  a  arte  não  se  puldicaram.  O 
l*.*^  Manuel  Ferreira  Leonardo,  debaixo  do  nome 
deJeronymo  dcAndraiIe,  escreveu  o  elogio  do  pin- 
tor Viclorino  ]\lanucl  da  Serra.  José  Gomes  da  Cruz 
fez  plausível  esta  profissão  dcfendendo-a  ,  por  ins- 
tancia do  benemérito  pintor  André  Gonçalves,  dos 
que  a  reputaram  por  arte  mechanica  ;  o  que  já  se 
havia  repetido  desde  Séneca  na  Hespanha  ,  e  impu- 
gnou sabiamente  no  fim  do  século  XVI  Gaspar  Gu- 
tiérrez  de  los  Rios  na  obra  Xolicia  General  para  ta 
estimacion  de  las  Artes.  O  doutor  José  Gomes  da 
Cruz  o  fez  entre  nós  sabia  e  polidamente.  Pede 
exame  vagaroso  ,  e  determinado  a  este  propósito  a 
narração  dos  meios  por  onde  nossos  professores  de 
piíiliira  buscavam  e  ensinavam  estylo;  sobre  quaes 
antigos  copiavam;  quaes  e  diligentes  acquisíções 
fizeram  .  e  onde  se  depositaram  ,  c  donde  se  perde- 
ram. Não  tenho  desembaraço  para  tanto:  ouiros 
com  sabedoria  ,  c  basla  que  com  zelo  igual,  pode- 
rão publicar  muitas  cousas  admiráveis,  que  a  este 
respeito  tivemos,  e  ainda  possuímos  de  honra  para 
este  nosso  século.  Necessária  c  importante  cousa  é 
a  historia  da  pintura  dos  nacionaes  em  composição 
c  gabinetes.  O  exemplo  dos  estranhos  assim  convi- 
da, e  a  necessidade  de  emendar  as  negligencias  de 
Pedro  (juarientc  nas  abhrevíadas  memorias  que  fei 
de  nossos  pintores  ,  e  dos  originac?  conservados  no 
reino,  quo  elle  viu,  e  de  que  se  lembrou  mes(]ui- 
uhamcnlc. 

Estas  cspccícs  levam  a  consideração  para  a  críti- 
ca ;  mas  delia  é  notório  quanto  se  fez  de  uso  sábio 
nos  exercícios  da  Academia  Real  ,  e  outras  vezes 
desmedido,  lim  verdade  muito  fermentou  a  critica, 
sendo  lida  a  obra  do  inteiro  varão  Nicolau  António 
u  Censura  de  historias  fabidosas)i  ,  dedicada  a  clrei 
D.  João  pelo  advertido  e  sábio  D.  Gregório  Mayaus. 
— Das  boas  qualidades  dos  theologos.  no  logar  pró- 
prio   direi  algumas  espécies  agradáveis,  e  o 

que  se  oliereccr  de  outro  gcncro  (§). 

Aquclla  foi  a  idade  de  se  amar  a  sabedoria.  Era 
necessário  tempo,  a  tim  de  se  aperfeiçoar  o  traba- 
lho, ora  informe,  ora  melhorado,  qual  se  ex[)eri- 
menta  cm  ganhar  disiancias  das  bnas  cousas.  Jisme- 
rou-se  a  nação  enlrc  rudezas,  esforços,  e  alcances. 
Formou  almas  de  seenteiidercm  com  as  luzes  e  for- 
mosura do  novo  século,  que  lhes  succedeu.  A  for- 
ça da  attracção  pede  qualidades  reciprocas.  Deus 
hade  melhora-las  cada  vez  mais,  porque  dará  todas 
as  luzes  a  quem  as  deseja,  e  a  quem  soberanamen- 
te preside  ,  e  pódc  favorecer  as  artes  c  sciencías. 

Este  como  episodio  entendi  não  seria  desagrada- 
is)    No  ilecurso  de  Ioda  a  obra,  deque  (iránxis  este  fra- 
Smenln,    e  como  rpisoilio  ,   se  trota  especialmente    dos  eslu- 
<lo$  theolúgicos  no  primeiro   meado   do  ieculo   .WIU  entre 
nós. 


o  PANORAMA. 


27  a 


vel.  Aponlci  as  referidas  noticias  c  sugeitos.  nutri- 
do entre  muitos  dclles.  Tanto  disse  ,  porque  pelo 
menos ,  quando  falte  ao  referido  a  proporção  de 
prande  cstyio  ,  vingo-lhe  a  memoria  cora  a  honra 
de  orarão  verdadeira.  Oxalá  passem  elles  a  desin- 
quietar a  nol)rc  emularão,  para  augmenlar  o  nume- 
ro de  seus  similhantcs ,  c  aperfeiçoa-los  em  gloria 
da  nação.  Dei  este  golpe  ressentido  por  saber  que 
mil  sugeitos  estimáveis  da  nossa  pátria  tem  pereci- 
do até  cm  os  nomes,  o  o  que  é  mais,  pela  troca  de 
.nlhèa  erudição  ,  que  ainda  mesmo  sendo  boa  ,  não 
deve  ter  o  desar  de  esquiva  para  obrigações  essen- 
ciacs  e  pátrias.  Também  assim  escrevia  observando 
que  de  nossas  cousas ,  e  de  nossos  varões  illustres 
se  não  cuida  quanto  se  deve  ,  sendo  elles  por  seus 
serviços  tão  beneméritos  da  gloria  de  serem  contem- 
plados, como  aquelles  que  os  elogiassem. —  O  arce- 
lispo  Cenáculo,  no  Elogio,  ou  Estudos  do  /'.''  doutor 
Fr.  Joaquim  José  Pimenta  ,  da  Ordem  Terceira  de 
S.  Francisco,  e  Lilleratura  de  seus  dias. —  Obra  iné- 
dita ,  e  original  da  Bibl.  Pub.  Eborense. 


A  D\MA  Pé-de-Cabba.  ' 

I  -         (Conto  de  junto  ao  Lar}.  (*i 

Parte  Primeira. 

I- 

Vós  os  QCE  não  credes  em  bruxas ,  nem  cm  almas 
penadas  .  nem  nas  tropelias  de  satanaz  ,  assentai- 
vos  aqui  no  lar  ,  bera  juntos  ao  pé  de  mim  ,  o  con- 
tar-vos-hei  a  historia  de  D.  Diogo  Lopes  ,  senhor 
de  Biscaia. 

E  não  mo  digam  no  fim: — não  pôde  ser.  Eu 
não  o  tirei  da  minha  cabeça.  Li-o  n'um  livro  mui 
velho,  velho  como  o  nosso  Portugal. 

Juro-vos  que  se  me  negais  esta  verdadeirissiraa 
historia  sois  dez  vezes  mais  descridos  do  que  era 
S.  Thonié  antes  de  ser  grande  santo.  E  não  sei  eu 
se  estarei  d'animo  de  perdoar-vos ,  como  Christo 
lhe  perdoou. 

Silencio  profundissimo  ;  porque  vou  principiar. 

II. 

D.  Diogo  Lopes  era  ura  inf.iligavel  monteiro  :  ne- 
res  da  serra  no  inverno  ,  sócs  dos  eslevaes  no  ve- 
rão ,  noites  e  madrugadas  ,  disso  se  ria  elle. 

Pela  manhaã  cedo  de  um  dia  sereno  estava  D. 
Diogo  em  sua  armada  ,  em  monte  selvoso  o  agreste 
esperando  um  porro  moutez  ,  que  batido  pelos  ca- 
çadores devia  sabir  naquelia  assomada. 

Eis  senão  quando  começa  a  ouvir  cantar  ao  lon- 
ge :  era  uma  linda,  linda  toada. 

Alevantou  os  olhos  para  uma  penha  que  lhe  fica- 
va fronteira  :  sobre  ella  eslava  assentada  uma  for- 
mosa dama;  e  era  a  dama  quem  cantava. 

O  porco  fica  desta  vez  livre  e  quite  :  porque  D. 
Diogo  Lopes  ,  não  corre  ,  vòa  para  o  penhasco. 

«Quem  sois  vós,  senhora  tão  gentil:  quem  sois 
que  logo  me  captivastes?» 

«.Sou  de  tão  alta  linhagem  como  tu,  porque  ve- 
nho do  semel  déreis  —  como  tu,  senhor  de  Bis- 
caia. » 

«Se  já  sabeis  quem  cu  seja,  ofTercço-vos  a  mi- 
nha mão,  e  com  cila  as  minhas  terras  e  vassallos.» 


(•)  Este  cijulo,  110  geuero  phantastico  ,  é  tirado  subs- 
tancialmente do  tilulo  9  «lo  Livro  das  Linhagens ,  cbamado 
Tuljarmenle  do  conde  D.  Psdro. 


«Guarda  as  tuas  terras,  D.  Diogo  Lopes  ,  qiic 
poucas  são  para  monteares  :  guarda  os  teus  vassal- 
los,  que  poucos  são  elles  para  te  baterem  a  caça.» 

«Que  quereis  pois,  senhora,  para  eu  vos  dar  em 
arrbas?" 

«Nada  te  peço  ,  barão  ,  salvo  o  esqncccrcs-tc  do 
signal  da  cruz  ,  c  nunca  mais  te  persignares. » 

D.  Diogo  Lopes  não  era  dos  mais  devotos,  c  ar- 
dia cm  amor  c  desejos.  «Está  dito!  e  viva  o  dia- 
bo '.  —  bradou  elle ;  e  levando  a  bella  dama  nos 
braços,   cavalgou  na  mula  em   que  viera  montado. 

Só  quando  á  noite  no  seu  castcllo  pôde  conside- 
rar miudamente  as  formas  da  airosa  dama  ,  notou 
que  tinha  os  pés  forcados  como  os  de  cabra. 

m. 

Dirá  agora  alguém: — era  por  ccrio  o  demónio 
qne  entrou  cm  casa  de  D.  Diogo  Lopes.  O  que  lá 
não  iria!  Puis  sabei  que  não  ia  nada. 

Por  annos  a  dama  e  o  cavallciro  viveram  cm  san- 
ta paz  e  união.  Dois  argumentos  vivos  ha%ia  disso: 
D.  Inigú  Guerra  e  Dona  Sol,  enlevo  ambos  de  seu  pai. 

Im  dia  pela  tarde  D.  Diogo  voltou  de  montear: 
trazia  um  javali  grande  —  muito  grande.  A  mesa 
estava  posta.  Mandou  trazc-lo  á  casa  onde  comia 
para  se  regalar  de  ver  a  excellente  préa  que  havia 
preado. 

Seu  filho  assentou-sc  ao  pé  dcilo  :  no  pé  da  niãi 
Dona  Sol  :  o  co.nieçaran;  alegremente  sou  jantar. 

"Boa  mciUaria,  D.  Diogo  —  dizia  sua  mulher. — 
Foi  uma  boa  c  limpa  caçada  I» 

«Pelas  tripas  de  Judas'.  —  respondeu  o  barão  — 
Que  ha  bem  cinco  annos  não  colho  urso  ou  porco 
niontcz  que  esto  valha  \  <> 

Depois  enchendo  de  vinho  o  seu  pichei  de  prata 
mui  rico  o  lavrado,  virou-o  de  golpe  á  saúde  de 
todos  os  riccs-honiens  fragueiros  c  raonleadorcs. 

E  a  Comer  c  a  beber  durou  até  a  noite  o  jantar. 

IV. 

Ora  deveis  de  saber  que  o  senhor  de  Biscaia  li- 
nha um  alão  a  que  muito  queria  :  raivoso  no  travar 
das  feras ,  manso  com  seu  dono  ,  e  até  com  os  ser- 
vos de  casa. 

A  nobre  mulher  de  D.  Diogo  tinha  uma  podenga 
preta  como  azeviche,  esperta  e  ligeira  que  mais 
não  havia  dizer,  c  a  que  ella  não  menos  queria. 

O  alão  estava  gra\ emente  assentado  no  chão  de- 
fronte de  I).  Diogo  Lopes  ,  com  as  largas  orelhas 
pendentes  c  os  ollios  meio-cerrados  ,  como  quem 
dormitava. 

,\  podenga  negra  essa  corria  pelo  aposento  viva 
e  inquieta  pulando  como  ura  diabrete:  o  pello  liso 
e  macio  reluzia-lhe  com  um  refiesu  avermelhado. 

O  barão  depois  da  sande  urbis  et  orbis  feita  aos 
monteiros  ,  esgotava  um  kirie  comprido  desandes 
particulares  ,   c  a  cada  nome  uma  taça. 

Estava  como  cumpria  a  um  rico-homem  illustre 
(\\\c  nada  mais  tinha  que  lazer  neste  mundo  senão 
dormir  e  caçar. 

E  o  alão  cabeceava  como  um  guardião  velho  cm 
seu  coro  ,  e  a  podenga  saltava. 

O  senhor  de  Biscaia  pegou  então  de  um  pedaço 
de  osso  com  sua  carne  c  mediila  ,  e  alirando-o  ao 
alão  grilou-lhe  :  —  «Silvano,  toma  lá  tu  ,  que  és 
fragnciro  :  leve  o  diabo  a  podenga  ,  que  não  sabe 
senão  correr  e  retouçar.» 

O  canzarrão  abriu  os  olhos,  rosnou  ,  pòz  a  pala 
sobre  o  osso ,  e  abrindo  a  boca  mostrou  os  dente» 
anavalhados.  Era  como  o  seu  rir.    . 


280 


O  PANORAMA. 


Mas  logo  soltou  um  uivo  ,  e  caliiu  ,  perneando 
mcio-morto  :  a  podenga  de  um  pulo  llie  saltara  á 
garganta  ,  e  o  alão  agonisava. 

<cl'elas  barbas  de  D.  Krom  ,  meu  bisavó!  —  ex- 
clamou D.  Diogo  pondo-sc  em  pé  tremulo  de  cole- 
ro  c  de  vinho.  -^A  perra  maldita  raalou-me  o  mc- 
Jlior  alão  da  matilha;  mas  juro  escorcha-la  viva.» 
li  virando  com  o  pé  o  tão  moribundo,  mirava 
as  largas  feridas  do  nobre  animal  que  se  morria. 

«A  la  fé  que  nunca  tal  vi!  Virgem  liemdita  !  — 
Aqui  anda  cousa  de  Belzebuth. «  E  dizendo  e  fa- 
zendo ,  benzia-se  e  persignava-se. 

«Ui!. —  gritou  sua  mullier  como  se  a  houveram 
queimado.  O  barão  olhou  para  cila  :  viu-a  com  os 
olhos  brilhantes,  as  faces  negras,  a  boca  torcida  e 
os  cabellos  eriçados  : 

L  ía-se  alcvaulando,  alcvantando  ao  ar  cora  a 
liobre  1).  Sol  sobraçada  debaixo  do  braço  esquer- 
do ;  o  direito  cstendia-o  por  cima  da  mcza  para  sen 
filho  l>.  Inigo. 

K  aqueile  braço  crescia  alongando-sc  para  o  mes- 
quinho ,  que  de  medo  não  ousava  bolir. 

li  a  mão  da  dama  era  preta  c  luzidia  como  o 
pello  da  podenga  ,  e  as  unhas  tinham-se-lhe  esten- 
dido bom  meio  palmo  ,  e  recurvado  cm  garras. 

«Jesus,  santo  nome  de  Deus! — bradou  D.  Dio- 
go ,  a  quem  o  terror  dissi|iára  as  fumaças  do  vi- 
nho ;  c  travando  de  seu  filho  com  a  esquerda,  fez 
í:o  ar  com  a  direita  uma  e  outra  vez  o  signal  da 
cruz. 

K  sua  mulher  deu  um  grande  berro  ao  ver  isto , 
e  largou  o  braço  d'lnigo  (iuerra  que  já  tinha  se- 
guro ,  e  continuando  a  subir  ao  alto  sahiu  por  uma 
grande  fresta,  levando  a  filhinha  que  muito  cho- 
rava. 

Desde  esse  dia  não  houve  saber  mais  ,  nem  da 
inãi  nem  da  filha.  A  podenga  negra  ,  essa  sumiu- 
se  por  tal  arte  ,  que  ninguém  no  castello  lhe  tor- 
mon  a  por  a  vista  cm  citisa. 

1).  Diogo  Lopes  viveu  muito  tempo  triste  ealihor- 
lido  porque  já  não  se  atrevia  a  montear.  Lembrou- 
se  ,  porem  ,  um  dia  de  espairecer  sua  tristura  ,  e 
cm  vez  d'ir  á  caça  de  cerdos,  ursos  e  zevras,  sa- 
liii  á  caça  de  mouros. 

Mandou  pois  levantar  o  pendão ,  desenferrujar  e 
pulir  a  caldeira  ,  c  provar  seus  arnezes.  Entregou 
a  Inigo  Guerra  ,  que  já  era  mancebo  e  cavalleiro  , 
o  governo  do  seus  castellos  ,  e  partiu  cora  lustrosa 
inesnada  d'horaens  d'armas  para  a  hoste  d'clrei  D. 
Kamiro  ,  que  ia  em  arrancada  contra  a  niourisma 
d'Hcsj)auha. 

l'or  muito  tempo  não  houve  dclle  ,  em  iJiscaia, 
Max  novas  nem  mensageiros.  —  (A.  IJcrcuUinu.J 


A  ridra.  —  A  macieira  c  da  mesma  familia  das 
pereiras  ,  e  igualmente  tem  muitas  espécies  e  va- 
riedades ,  das  quacs  umas  são  arvores  e  outras  ar- 
bustos, que  em  toda  a  parte  prosperam  excepto  nos 
climas  muito  quentes.  E  sabido  que  nos  departa- 
mentos do  Oeste  da  França  é  cultivada  era  ponto 
grande  ,  e  com  muita  vantagem  ,  porque  do  fruclo 
extrahem  o  vinho  chamado  cidra  ,  de  l)na  qualida- 
de ainda  que  menm  activo  que  o  das  uvas  das  vi- 
d'Mras  .  que  os  habitantes  ilaquelles  districtos  nun- 
cí  podcram  aclimatar.  —  As  maçaãs  de  que  fazem 
essi  bebida,  não  são  das  castas  destinadas  para  co- 
mer c  para  compotas  ,  mas  sim  de  outras  peque- 
nas ,  acidas,  e  desagradáveis  ao  paladar. 

O  vinho  de  maçaãs  é  usado  desde  remolissimos 


tempos  ;  os  hebreus  lhe  chamaram  shhar  ,  que  S. 
Jerouymo  traduziu  siccra,  donde  veio  o  nome  cide- 
ra  ou  cidra.  As-nações  posteriores  aos  hebreus  lam- 
bem conheceram  este  vinho  :  os  gregos  e  romanos 
o  fabricavam  c  bebiam.  Entre  os  fraucezes  é  muito 
vulgar  ,  principalmente  onde  faltam  as  vinhas.  — 
Mr.  lluet,  o  erudito  bispo  d'Avranches,  assegura 
que  muito  antes  do  lo."  século  estava  a  cidra  em 
uso  na  França  ;  diz  mais,  que,  segundo  relação  de 
Amniiano  Marcellino  ,  os  filhos  de  Constantino  re- 
preheiídiam  os  habitantes  das  Gallias  de  gostarem 
de  vinhos  e  de  outros  licores  que  se  pareciam  com 
file  ;  que  os  capitulares  de  Carlos  Waguo  numeram 
na  lista  dos  ollicios  ordinários  o  de  siceralur,  fabri- 
cante de  cidra  ;  que  foi  dos  biscaínhos  que  os  nor- 
mandos ajirenderam  a  lãbricar  esta  bebida,  no  tem- 
po das  pescarias  ,  industria  commum  a  ambos  os 
povos;  que  os  primeiros  tiidiam  recebido  esta  arte 
dos  africanos,  que  de  mui  antigos  tempos  a  prati- 
cavam.—  A  este  lespcito  consulte-se  a  Encyclope- 
dia  mcthodica  no  Diccionario  das  Artes  e  Ollicios. 
Mediante  a  distillação  obtcm-se  da  cidra  agua- 
ardente,  que  não  é  desagradável  .-  lambem  delia  se 
faz  vinagre  sadio  co.mo  a  bebida  originaria.  Kedu- 
zindo  a  cidra  por  evaporação  a  menor  quantidade 
lãz-se  um  xarope  que  dizem  ser  peitoral.  O  bagaço 
que  fica  de|)uis  de  extrahido  o  sueco  das  macaãs  , 
serve  para  queimar  e  delle  se  utilisam  os  pobres  ; 
e  também  serve  para  estrumar  os  pés  das  arvores  . 
e  para  alimentar  porcos.  —  Asseveram  que  a  bebe- 
dice ,  occasionada  pela  cidra  dura  mais  que  a  pro- 
duzida pelo  vinho  legitimo  de  uvas. 


Pontes  nadiiacs  tia  America.  —  O  valle  d'Iconon- 
zo  ou  de  l'andi ,  em  a  Nova-Graiiada  ,  é  guarne- 
cido d'cscalvados  penhascos,  de  lorma  extraordi- 
nária ,  que  parece  foram  afeiçoados  por  mãos  hu- 
manas :  estão  dispostos  em  duas  linhas,  ficando  em 
meio  ura  espaço  vão  ,  mui  fundo  ,  de  quasi  légua 
de  comprinienlo  ,  e  que  é  o  valle  por  onde  corre 
a  torrente  de  Surama-1'az  ,  encaixada  n'um  canal 
inaccesáivel.  Seria  impossível  transpor  esta  iinper- 
via  quebrada  ,  se  a  natureza  ,  servindo-se  daquel- 
les  rochedos,  não  houvesse  preparado  duas  pontes 
que  dão  passagem  de  um  ao  outro  lado.  —  A  pri- 
meira é  um  arco  natural ,  de  44  pés  de  comprido 
por  3(i  de  largo,  com  a  grossura  de  seis  pés  no 
centro  ,  proximamcute  :  é  todo  um  pedra  inteiriça  , 
eleva-se  perto  de  300  pés  sobre  o  nivel  das  agiias 
da  cilada  torrente. —  A  segunda  é  composta  de  três 
enormes  volumes  de  rocha,  que  cahirani  de  manei- 
ra que  reciprocamente  se  sustentam;  o  do  meio  é 
como  o  fecho  da  abobada  .  accidente  que  podéra 
ler  suscitado  aos  indígenas  a  idéa  das  obras  d'al- 
venaria  em  volta  d 'arco,  que  os  povos  do  Novo- 
mundo  desconheciam:  chcga-se  a  esta  segunda  pon- 
te por  ura  trilho  estreito,  que  vai  rastreando  a  bor- 
da do  desfiladeiro  ,  a  começar  da  primeira.  Está  a 
458  toezas  [medida  franceza]  acima  do  nivel  do 
Oceano  ,  c  talvez  a  280  pés  sobre  o  fundo  do  val- 
le :  no  meio  desta  segunda  ponte  ha  ura  boqueirão 
de  300  pés  quadrados,  por  onde  so  vê  a  profundi- 
dade do  abysmo  ,  que  só  é  habitado  por  aves  no- 
cturnas ás  quacs  não  é  possível  dar  caça  pelo  im- 
l)ralicavel  do  sitio  ,  que  não  permitte  a  descida  ao 
valle. 

A  GLOBi.v  humwa  bem  ponderada  nunca  vale  quaa- 

Ic  custa. 


89 


o  PANORAMA. 


281 


N:,^— 


niAUSOI.£U    NAS   £X£QX?XAS   Z>£   riIiIPPE   2." 


FAEyniAS  DE  FiLippE  2.°  EM  Sevilha,  e  r*so  notável 

NAS   MESMA?   ACONTECIDO. 

(Ánno  de  lo98  '. 

Vas  solemnidades  e  funcrões  .  quer  ecclesiasticas  , 
quer  de  regozijo,  quer  liinebrcs  ,  dislinguiuse  na 
Hespanha  Sevilha  na  cpocha  da  sua  grandeza  ,  do 
que  entre  outras  cousas  d.io  prova  as  honras  fune- 
Ijres  celebradas  em  memoria  de  Filippe  2.°  —  Ueu- 
uido  ás  auctoridades  ecclesiasticas  o  cabido,  corre- 
ram com  as  despczas  ,  que  foram  extraordinárias  ; 
fazendo  a  traça  do  tumulo  e  dirigindo  a  obra  o  ar- 
chitecto  da  cidade  ,  João  de  Oviedo.  Na  sé  se  eri- 
giu esta  fabrica  ,  apesar  de  temporária,  sumptuosa, 
debaixo  da  abobada  que  fica  entre  o  coro  e  a  ca- 
pella-mór  e  é  a  mais  alta  da  igreja.  Constava  ella 
de  Ires  corpos  ;  o  primeiro  dorico  ,  formado  de  pi- 
lastras  e  coluranas  em  numero  de  dezeseis  ;  entre 
as  pilastras  havia  nichos  com  altares  c  santos  ,  es- 
tando repartidos  pelos  inlercolumnios  os  emblemas 
e  hicrogliphicos  análogos  ao  objecto:  —  o  segundo 
era  jónico  ,  formavam-no  oito  columnas  estriadas  , 
no  centro  sobre  mui  amplo  pedestal  assentava  a  ur- 
na funérea  ,  cuberta  com  rico  panno  de  brocado  , 
e  grandes  almofadas  do  mesmo  a  cabeceira  ,  e  em 
cima  delias  a  coroa  c  sceptro  ,  a  espada  nua  ,  as 
manoplas  e  celada  ;  na  base  da  urna  havia  um  leão 
recostado  segurando  nas  garras  a  haste  da  bandeira 
nacional ;  nos  quatro  ângulos  deste  segundo  corpo 
Tiam-se  outras  tantas  pyramides  ou  obeliscos  con- 
sagrados ;is  quatro  esposas  que  tivera  o  fallecido 
monarcha  ;  1).  Maria  de  Portugal  !•;,  D.  Maria  de 
Inglaterra,  D.  Isabel  de  la  Paz,  c  D.  Anna  de  Ale- 
manha :  —  o  corpo  terceiro  e  ultimo  era  corinthio, 
íambera  com  suas  colnninas  ,    e  diante   delias  esta- 


"i     Filha  de  D.  João  3." 
julho  de  1545- 

Setembro  9 —  1843. 


morreu  de  parto  em  18 


vam  collocadas  estatuas  ,  occupandò  o  centro  a  de 
S.Lourenço,  sobre  pedestal,  e  de  altura  de  •2-2  pal- 
mos. Rematava  o  soberbo  tumulo  com  uma  ciipula 
em  que  assentava  um  globo  que  em  cima  sustenta- 
va a  ave  pbenix. —  Desde  as  duas  portas  do  cruzei- 
ro seguiam  duas  ruas  de  arcos  ,  adornadas  d'  esta- 
tuas e  escudos  d'armas,  e  que  davam  serventia  pa- 
ra o  mausoléu. —  Tudo  era  fabricado  de  madeira  e 
panno,  mas  imitando  a  bem  acabada  pintura  os  már- 
mores das  estatuas  ,  outras  castas  de  pedras,  bron- 
zes ,  dourados,  &c.  segundo  os  objectos,  que  re- 
presentava. Uma  infinidade  de  dísticos  e  epilaphios 
alludiam  ás  acções  do  monarcha,  que  bem  é  de  sup- 
por  quanto  ahi  seriam  exaggeradas  ou  disfarçadas. 
Chegou  o  dia  úí  de  novembro  de  i.^OS  ,  véspera 
daquelle  em  que  a  pompa  fúnebre  teria  logar  ;  en- 
traram na  sé  ás  duas  da  tarde  todas  as  communi- 
dades  religiosas  ,  o  clero  secular ,  o  corpo  da  uni- 
versidade, o  cabido;  depois  chegaram  ostribunaes, 
da  inquisição  ,  civil  ,  e  municipal  ;  tomando  todas 
estas  corporações  assento  na  capclla-mór  ;  todos  em 
bancos  rasos  por  serem  exéquias  reaes.  So  dia  se- 
guinte á  hora  marcada  entraram  os  padres  e  mais 
auctoridades  mencionadas,  porem  o  tribunal  da  in- 
quisição foi  o  ultimo  que  chegou  e  a  tempo  que 
concluído  o  evangelho  da  missa  subia  já  ao  púlpi- 
to o  orador  sagrado  ;  de  repente  aquella  corporação 
no  transito  para  o  seu  assento  suspende  os  passos , 
e  sem  respeito  ao  acto  ,  ao  logar ,  e  á  celebração 
do  sacrificio  da  missa  ,  envia  ao  regedor  do  tribu- 
nal civil  uma  forte  intimação  para  que  «sob  pena 
d'excoraraunhão  laiw  scntentim  tirasse  um  panno  pre- 
lo que  cobria  o  banco  em  que  estava  sentado;)  o  re- 
gedor oppoz-se  abertamente  c  respondeu  que  o  não 
tirava.  O  tribunal  inquisitório  levou  adiante  seu 
processo  ,  e  alli  mesmo  declarou  excommungado  o 
regedor;  e  em  seguida  mandou-se  suspender  a  mis- 
sa, e  desceu  do  púlpito  o  padre.  Succedeu  isto  pe- 

2.'  Serie.  —  Voi.  H. 


282 


O  PANORAMA. 


las  dez  da  nianhaã,  e  como  em  perguntas  e  respos- 
tas e  notilicaçõcs  decorria  o  tempo  ,  dispoz  o  cabi- 
do que  passasse  o  celebrante  á  sachristia  para  que 
coQcluisse  a  missa;  e  assim  se  fez.  Todos  perma- 
neceram sentados ,  c  o  regedor  das  justiças  firme 
em  seu  propósito  ,  até  que  se  metteu  por  mediador 
o  marquez  d'Algaba,  é  ás  quatro  da  tarde  a  inqui- 
sição levantou  a  excommunhão  ao  regedor  ,  remet- 
lendo-se  este  assumpto  á  deliberação  do  Conselho 
de  S.M.  —  Suspen  deram-se  por  este  acontecimento 
as  exéquias  até  a  sentença  da  superior  instancia  ;  e 
todos  os  concorrentes  despejaram  o  lem[ilo. — 

No  mez  do  dezembro  veio  a  resolução  do  conse- 
lho, ordenando  que  as  exéquias  se  celebrassem  im- 
raediatarncnte,  e  que  o  regedor  tirasse  o  panno  nc-- 
gro  que  mandara  pôr  era  seu  banco.  Aquellas  so 
eíTectuaram  cm  30  e  31  do  citado  mez,  com  o  que 
rematou  esta  ridícula  contestação. 


ESTCDOS    ÍVÍOKiES. 
1. 

[As  recordações]. 


Còjio  .1  philosophia  é  triste  e  árida  : — JiS  ye/.cs  na 
primavera  o  vento  norte  alira-se  peias  encostas,  tom- 
bando dos  visos  (la  serra,  como  se  uma  intelligencia 
vivesse  nclle  —  intelligencia  de  maldade  e  dealrui- 
ção.  De  noite  e  de  dia  os  troncos  das  arvores  tor- 
cem-sc  e  gemem  ,  as  ramas  açoutam-se  e  desjieda- 
çam-se  envoltas  nos  braços  longos  c  flexiveis  da 
ventania  :  o  demónio  do  septeutrião  sibilla  no  meio 
delias  um  zumbido  entre  de  lamento  e  d'escarnco. 
Debalde  o  bosque  estende  saudoso  por  um  momen- 
to os  Sf.'us  mais  altos  raminhos  para  o  sol  que  se 
vai  alevanlando  no  oriente:  a  rajada  despega  de 
novo  da  cumiada  da  montanha  ;  o  bosque  curva-se 
para  o  meio-dia  ;  c  galgando  por  cima  daquellas 
mil  frontes  inclinadas  das  plantas  gigimtes,  das  rai- 
nhas niagestosas  da  vegetação,  aquelles  turl)ilhòes 
de  atmosphcra  agitada  rolam  pela  planície  col)erta 
já  de  relva  enlresachada  das  primeiras  Doriuhas. 
iintão  ,  relva  e  Dorinhas  murcham  esmagadas  pelas 
mãos  da  procella  ,  que  tudo  alcançam  ,  Instigam  e 
desbaratam.  Os  carvalhos  frondosos,  c  as  boninas 
rasteiras  cora  a  fronte  pendida  para  a  terra  ,  como 
outros  tantos  symbolos  do  desalento,  não  ousam  er- 
gue-la  para  o  céu.  É  que  o  rugir  da  rajada  cahc 
da  montanha  cm  perennc  catadupa.  As  vezes,  como 
por  brinco  infernal ,  o  vento  finge  adormecer  um 
instante  ,  e  depois  remoinha  c  apruma  os  topos  das 
arvores  e  as  corolas  das  llores  ,  mas  é  para  logo  as 
vergar  cora  mais  força  ,  e  apupar  com  o  silvo  in- 
solente aquclla  rápida  esperança,  qne  se  desvane- 
ce» Ião  breve. 

E  quando  o  vento  acalma  é  para  saltar  ao  poncn- 
te  ou  ao  sul.  A  rajada  já  não  silva  da  montanha  : 
uma  bafagem  tépida  vem  da  banda  do  mar  ;  mas  o 
céu  está  toldado  e  o  ar  húmido:  o  dia  passa  mc- 
lancholico  c  pesado  sobre  a  bonina  que  a  nortaiia 
açoutou:  ella  não  pode  saudar  o  sol  no  oriente  : 
está  pendida  c  murcha  como  a  ventania  a  deixara. 
A  noite  vera  encontra-la  n'uma  espécie  de  torpor  , 
que  é  existir,  mas  que  uão  ó  vegetar,  e  ainda  me- 
nos viver. 

Como  a  florinha  do  campo  a  alma  por  onde  pas- 
sou a  procella  da  philosopbia  ,  esse  turbilhão  tran- 
sitório do  doutrinas,  de  systcmas,  de  opiniões,  d'ar- 
gumenlos ,  pende  d jsaaimada  e  triste ;   e  ua  clari- 


dade baça  do  sccpticismo  ,  que  torna  pesada  e  fria 
a  atmosphera  da  intelligencia  ,  não  pôde  aquecer- 
sc  aos  raios  esplendidos  do  sol  de  uma  crença 
viva. 

Com  Kant  o  universo  c  uma  duvida  :  com  Locke 
é  duvida  o  nosso  espirito:  o  n'ura  destes  abysmot 
vem  prccipitar-se  todas  as  philosophias. 

A  arvore  da  sciencia  ,  transplantada  do  Éden, 
trouxe  comsigo  a  dòr  ,  a  condemnação  e  a  morte  : 
mas  a  sua  peior  peçonha  guardou-se  para  o  presen- 
te :  foi  o  scepticismo. 

Feliz  a  intelligencia  vulgar  e  rude  ,  que  segue 
os  caminhos  da  vida  com  os  olhos  fitos  na  luz  e  na 
esperança  postas  j)ela  religião  alem  da  morte,  sem 
que  um  momento  vacille;  sem  que  um  momento 
a  luz  sé  apague  ou  a  esperança  se  desvaneça  I  Pa- 
ra tila  uão  ha  abraçar-se  com  a  cruz  era  Ímpeto 
de  agonia,  e  clamar  a  Jesus :  — «Creio,  creio, 
oh  Nazareno  I  Creio  em  ti  prrrque  a  tua  moral  é 
sublime;  porque  eras  huaiilde  e  virtnoso;  porque 
filho  da  raça  soífredora  e  austera  chamada  o  povo, 
eras  meu  irmão  ,  e  não  podias  ,  Ião  bom ,  tão  sin-, 
gelo ,  tão  puro  enganar  teu  pobre  irmão.  Creio , 
creio  ,  oh  Nazareno  !  porque  até  a  hora  do  expirar 
,ia  ignominia  ,  até  a  hora  da  grande  prova  ,  nunca 
desmenliste  a  tua  doutrina.  Creio,  creio,  oh  Na- 
zareno! porque  tu  só  nos  explicaste  o  mysterio  des- 
ta associação  monstruosa  da  saúde,  do  ouro,  do  po- 
derio e  dos  crimes  a  um  lado  ,  e  a  da  enfermida- 
de ,  da  pobreza  ,  da  servidão  e  da  innocc ncia  a  ou- 
tro ;  porque  nos  explicaste  como  os  destinos  huma- 
nos se  compensavam  alem  do  scpulchro.  Creio, 
creio,  oh  Nazareno!  porque  só  tu  soubeste  revelar 
a  consolação  á  extrema  miséria  sem  horisonte  ,  e 
os  terrores  á  completa  felicidade  sem  termo  na  vi- 
da ,  collocando  no  logar  do  destino  a  providencia  , 
e  do  nada  a  inimorlalidade  !  Creio,  creio,  oh  Na- 
zareno !  jiorque  a  intensidade  do  teu  viver  c  um 
impissivel  humano;  a  victoria  da  lua  doutrina  se- 
vera contra  a  philosophia  c  o  paganismo  um  mila- 
gre;  a  gloria  do  leu  nomo  de  sufipliciado  maior 
que  todas  glorias  das  mais  altas  e  virtuosas  intclli- 
gencias  do  mundo.  » 

Não! — o  animo  vulgar  que  nunca  vacillou  na 
fé,  que  no  insensato  orgulho  da  sciencia  nunca  dis- 
cutiu o  Verbo  ,  nunca  julgou  o  Christo  ,  esse  igno- 
ra a  dolorosa  oração  do  que  pede  a  Deus  o  crer  : 
ignora  quanto  fel  encerra  a  interrupção  contínua 
de  cada  phrase  ,  de  cada  palavra  daquelle  tormen- 
toso orar  ;  ignora  o  que  é  atirar-se  aos  pés  da  cruz 
por  um  impulso  quasi  phrcnetico  do  coração,  sen- 
tir a  voz  gélida,  pesada,  cruel  do  entendimento  di- 
zer-lho  tranquíllamcnte  :  —  f/iwm  sahc!  —  e  cahir 
desanimado  no  lethargo  da  duvida  ,  donde  muitas 
vezes  bom  tarde  se  alevanta  o  espirito  ,  opprimido 
e  quebrado,  porque  nelle  pelejaram  horas  largas  o 
instincto  religioso,  e  o  demónio  implacável  a  que 
chamam  sciencia. 

A  sociedade  é  bera  injusta  quando  ás  faces  do 
desgraçado,  que  assim  Incta  comsigo  mesmo,  sacode 
o  lodo  da  injuria,  dizcndo-lhe  :  <i  hypocrita  !»  por- 
que escondeu  aos  que  o  rodeara  ,  não  as  certezas  , 
que  não  as  tem  ,  mas  as  duvidas  terríveis  da  iutel- 
ligencia  ,  e  lhes  revela  só  as  inspirações  ,  os  de- 
sejos, as  saudades  do  coração  !  —  Hypocrita?  ! 
Tanto  como  o  que  havcndo-se  transviado  da  estrada 
e  cabido  cm  fujo  profundo  ,  dorido  ,  coberto  de  pi- 
saduras e  feridas  ,  c  ensanguentando  as  mãos  e  o 
rosto  nas  urzes  do  despenhadeiro,  lidasse  por  sahir 
delle  e  voltar  ao  caminho  suave  c  plano ,  c  bradas- 


o  PANORAMA. 


283 


se  aos  que  visse  ao  longe:  «não  tos  afTasteis  para 
aqui!»  Hypocritas  sãoaquellcs  que  mentem  aos  que 
os  escutam  ;   que  simulara  a  paz   do  descrer  Iran- 
quillo,    quando   vai  )á  dentro   o  tumultuar   das  in- 
certezas.  Como  satanaz  ellcs  dizem  que  o  inlerno  é 
o  céu:   dizem  que  a  irroligiosidadc  tem  o  segredo 
do  repouso  e  da  ventura  .   quando  o  que  ella  dá  ó 
inquietarão  c  desesperança. 
'        Feliz  a  alma  vulgar  e  rnde  que  crè  ,    c  nem  se- 
is* l  quer  sabe  que  a  duvida  existe  no  mundo  1  Está  cer- 
ta de  que  alem  da  morte  lia  vida  ;  conhece  as  suas 
condições  ;  conliecc-as  como  lh'as  ensinaram,  como 
conhece  as  condições  dos  corpos.  Tara  ella  as  noites 
não  tem  os  pesadcllos  monstruosos  .  nem  os  dias  as 
meditações  febris  cm  que  o  sceptico  irivolunlario  se 
debate  na  orla  do  possível,  que  toca  por  ura  lado  nas 
solidões  do  nada,  por  outro  na  immensiJade  de  Deus. 
Mas  ainda  mais  feliz   a  intelhgencia  superior   ás 
do  vulgo,   aquella  que  a  Providencia  destinou   á 
missão  do  poeta,  nos  annos  da  infância  e  da  juven- 
tude ,   antes  que  o  árido  bafo  da  sciencia   a  quei- 
masse passando   por  cima  delia!   Nesse  espirito  e 
nessa   idade  a  religião  não  está  só  nos  preceitos  e 
nos  dogmas;  está  na  natureza  inteira.  A  alegria  de 
Deus  ,   o  aspirar   das  fragrâncias   celestes ,   a  toada 
suavíssima   dos   hymnos   dos  anjos  ,   descem   a  ella 
nos  raios  do  scl  quando  nasce  e  quando  desappare- 
ce;  tremulam  nocspelhar-se  da  lua  nas  aguas;  mis- 
turam-se  no  cicio   das  arvores  ;    entretecem-se  com 
os  mil  gemidos   da  noite  ;    vivem   nas  alfeíções  do- 
mesticas ;    e  santificam  o  primeiro  bater  do  coração 
pelo  amor.   Tudo  então  é  viçoso  e  puro  ,    porque   a 
alma  poética   lhe  empresta  viço  e  pureza.   As  har- 
monias  moldadas  na  virilidade   pelas   leis   das  lín- 
guas, e  dasescholas,  são  apenas  um  echo  frouxo  des- 
ses cânticos  da  meninice  e  da  primeira  mocidade, 
que  se  evaporam  sem   se  escreverem,   que  são  um 
oceano   de  delicias  ineffaveis  em   que  se  emballa 
raollemente   a  imaginação  e  o  sentir  do  homem  ,   a 
quem   o  mundo  ha-de  chamar  poeta.   Nessa  epocha 
da  vida   elle   não  abstrahe   do  real  para  salvar  ver- 
dadeira e  intacta  a  sua  idealidade:    fiz  mais;  der- 
rama esta,   que  é  a  seiva  intima  do  sen  viver,  pe- 
lo universo,   e  converte-o  n'uma   cousa   formosa, 
santa  ,  ideal  ,  que  o  mundo  está  bem  longe  de  ser. 
Depois  vem  outra  epocha  da  vida.  em  que  a  feli- 
cidade é  mentida,  mas  ainda  é  felicidade,  postoque 
já  eivada  de  vaga  inquietação  ,  de  ambições  desre- 
gradas ,   d'esperanças   mesquinhas   e   heterogéneas. 
São  os  annos  que  precedem   c  seguem  immediata- 
mente  os  vinte.  Abrem-se  então  ante  nós  os  cami- 
nhos do  mundo  como  uraa  conquista.   Gloria  d'ar- 
tistas,  poderio,  opulência,  acções  generosas  e  gran- 
des ,    amor  sem  termo  ,   amisade  sem  perfídias  ,  vi- 
da multiplicada  indefinidamente  pela  infinidade   de 
affectos  c  sensações  —  que  é,  cmfim  ,  o  que  não  so- 
nhámos nessa    epocha   de  fervente   loi^cura?   A  in- 
Docencia   morreu  ,   a  poesia  intima   e  creme  desoa- 
raton-se.  o  sentimento  religioso  dcsvaneceu-se  :  mas 
ficam  os  deleites  dos  sentidos,  que  nos  embriagam  ; 
os  applausos  das  multidões  aos  nossos  hymnos  des- 
corados,   que  elias  ainda  julgara  enérgicos  e  bri- 
lhantes ;  applausos  que  nns  consolam  ;  fica-nos  uma 
philosophia  orgulhosa  c  insensata ,   que  se  crè  pro- 
funda, uraa  sciencia  superficial,  que  se  crè  comple- 
ta ,   pela  qual  dormimos  tranquillos  sobre  a  nega- 
ção de  todas  as  idéas  myslicas,  e  de  todas  as  lem- 
branças de  Deus. 

Desta   idade  em  diante  é  que  chega  o  desfazer 
das  illusões — até  das  illusões  do  orgulho.   A  poe- 


sia suave  e  pura  da  infância  e  da  puberdade  pas- 
sou :  passa  lambem  o  iris  das  paixões  férvidas,  .ias 
ambições  insaciáveis,  da  tr^iiça  na  projiria  ener- 
gia, (jomeça  então  o  pardo  crepubculo  deste  scepti- 
cismo,  que,  similhante  a  herpes  lentos,  vai  lavrando 
por  todas  as  nossas  opiniões  c  affectos  ,  c  os  pros- 
tra e  subjuga  ;  desde  essa  epocha  a  vida  tem  lar- 
gas horas  de  tédio  cm  que  o  existir  é  uma  carga 
pesada  ,  porque  nos  f.illa  um  alicerce  em  que  pos- 
samos fimiar-nos;  porque  fluctuamos  sobre  as  né- 
voas densas  do  duvidar  de  tudo. 

O  materialismo  incrcdulu  já  tirou  das  phascs  c$- 
pirituaes  dos  altos  engenhos  argumento  contra  a  im- 
iiiorlalidade.  Com  a  sua  lógica  míope  persuadiu-se 
de  que  via  as  enfermidades  e  a  decadência  da  alma 
atoiíipnnliarcm  as  enfermidades  e  a  decadência  do 
corpo  ;  que  via  o  entendimento  cachetico  esmorecer 
com  a  decrepidez  ;  quiz  que  elle  na  morte  ficasse 
perdido  e  annulado  entre  as  cinzas  da  sepultura.  Se 
o  materialismo  soubesse  que  ávida  das  summas  in- 
telligencias  é  a  poesia  ,  e  que  ella  segue  a  ordem 
inversa  do  desenvolvimento  physico  ;  se  conhecesse 
que  a  energia  intima  tem  o  seu  apogeu  nos  annos 
débeis  da  infância  ,  e  começa  a  desvanecer-se  quan- 
do os  órgãos  se  fortalecem  ,  elle  não  teria  achado  n 
explic.Tção  do  phenomeno  nas  suas  tristes  doutri- 
nas. Nos  destinos  eternos  dos  homens  iria  encon- 
trar a  rasão  desse  facto  ,  que  então  veria  á  sua  lui 
verdadeira.  Os  olhos  da  alniE  se  vão  pouco  a  pon- 
co  enevoando  no  meio  das  trevas  do  mundo:  nesta 
atmosphera  grosseira  e  corruf^ta  ella  resfolga  a  cus- 
to ,  e  com  o  diminuir  dos  alentos  diminuem-se-lhe 
snecessivamente  os  brios  :  cada  dia  lhe  desfolha  um 
affecto  ,  lhe  discute  uma  crença  ,  lhe  mata  uma  es- 
perança ,  lhe  traz  um  desengano  cruel.  Entre  o  es- 
pirito e  o  mundo  partiram-so  uni  a  um  todos  os 
laços.  Vós  credes  que  a  meute  se  definha  ,  e  el- 
la apenas  dormita  para  despertar  vigorosa  ao  sol 
da  eternidade  ,  que  rompe  atraz  do  scpulcbro. 

Toraai-nie  esse  octogenário  tonto  que  foi  um  al- 
to engenho  ;  cavai  no  deserto  do  seu  coração  gasto 
e  frio  ,  e  arrancai-me  de  lá  uma  daqnellas  paixõe.s 
que  ardem  até  o  ultimo  instante  da  existência  :  vi- 
brai uma  corda  das  que  lhe  davam  na  idade  viril 
um  som  estridente  :  dizei-lhe  :  —  «leu  filho  querido 
foi  arrastado  ao  lril)un<il  como  criminoso  ;  espera-o 
o  suppli 'io  se  não  houver  unia  voz  eloquente  que 
o  defenda:  se  ella  se  erguer  será  salvo;  —  e  tu 
foste  na  mocidade  o  mais  eloquente  dos  homens!). 
—  Dizei-lhe  isto  ,  e  vereis  esse  engenho  ,  que  cre- 
des moribundo  ,  atirar-se  como  um  tigre  ao  meio 
dos  juizes  ,  c  achar  toda  a  energia  dos  vinte  e  cin- 
co annos  para  defender  aquella  vida  que  a  nature- 
za ligou  á  sua  pelas  harmonias  raystcriosas  da  pa- 
ternidade. Se  as  palavras,  se  o  órgão  extenuado  da 
linguagem  não  poder  exprimir  o  pensamento  da- 
quella  ;ilraa  remoçada  subitamente,  o  gesto,  o  olhar, 
os  meneios  substituirão  a  língua,  e  .se  cansados  <■ 
débeis  não  bastarem  á  violei.cia  da  idca  ,  o  espiri- 
to despedaçará  o  quasi  cadáver,  e  despedindo-st 
da  terra  provará,  que  se  dormitava  não  se  extin- 
guia ,  e  que  despertando  partia  o  vaso  frágil  que 
já  não  o  podia  conter. 

Tal  é  o  destino  da  intelligencia  neste  breve  des- 
terro :  dois  dias  conserva  as  recordações  verdadei- 
ras e  puras  da  sua  origem  immorlal :  outros  dois 
allumia-se  ao  fogo  fátuo  das  paixões  e  esperanças : 
o  resto  delles  revolve-se  na  lucta  tormentosa  das 
idéas  .  dos  affectos  ,  dos  desenganos  :  depois  vem  o 
dormitar  da  velhice  e  a  regeneração  da  m^orte. 


2U 


O  PANORAMA. 


Eu  que  já  vou  áqiiem  do  marco  ,  onde  começa 
<)  terceiro  período  da  viagem  humana,  a  sós  ás  ve- 
zos com  as  minhas  recordações  infantis,  ponho-me 
a  comparar  a  aspecto  prosaico  c  triste,  que  tem 
actualmente  para  mim  o  universo,  com  as  formas 
suaves  c  poéticas  em  que  elle  me  apparecia  involto 
nesses  tempos  dourados.  íí  uma  compararão  amar- 
ga :  mas  a  saudado  que  encerra  consola  do  seu 
amargor. 

Hoje  a  lua  no  crescente  alevanta-sc  ao  anoitecer 
de  ura  dia  sereno  do  estio,  e  estende  o  manto  de 
Ihama  de  prata  sohre  a  face  levemente  crespa  das 
aguas:  os  seus  raios  ,  transparecendo  por  entre  o 
verde-ncgro  das  copas  do  arvoredo  .  que  se  balou- 
çam somnolentas ,  descem  trémulos  sobre  o  chão 
pardo  .  e  lhe  mosqueam  a  superfície  como  o  dorso 
da  panlhcra.  A  virarão  íenuissinia  da  tarde  passa  , 
e  murmura  um  cicio  quasi  imperceplivel  na  folha- 
gem. T.m  volta  do  circulo  alvacento  que  o  luar  es- 
parge no  céu,  scintillam  algumas  cstrelias  no  azul 
do  firmamento,  que  parece  o  leito  recamado  de  sa- 
phyras  em  que  se  reclina  a  rainha  da  noite. 

Ha  quinze  ou  vinte  annos  uma  tal  noite  tinha 
para  mira  um  sem  numero  de  mysteriosas  harmo- 
nias, que  eu  não  sabia  explicar,  mas  que  sabia 
sentir.  Agora  sei  dizer-vos  o  que  é  a  lua  ,  a  sua 
luz  refracta,  a  noite  ,  a  virarão  ,  o  vuilo  das  aguas 


encrespadas  .  as  estrellas  ,  c  as  solidões  do  espaço ; 
mas  o  que  eu  já  não  sei  é  verter  as  lagryraas  d'i- 
nefTavcl  contentamento  que  se  me  escoavam  tépidas 
pelas  faces,  ao  contemplar  esse  espectáculo:  o  que 
cu  já  não  ouço  são  as  harmonias  iramaleriacs  e  in- 
timas, que  vagavam  pela  atmosphcra  tranquilla,  co- 
mo um  eccho  longínquo  das  harpas  angélicas  tom- 
bando de  astro  em  astro  até  se  derramarem  na 
terra. 

Dai-me  uma  nota  só  dos  cânticos  que  eu  então 
escutava  ;  dar-vos-hei  em  troco  toda  a  minha  estú- 
pida e  inútil  scicncia  I 

Alas  essa  eiiocha  da  vida  não  voltará  mais  ,  por- 
que não  pude  retroceder  uma  única  onda  do  rio 
impetuoso  do  tempo  I  Depois  da  tara  do  mel  esgo- 
tada ,  resta  a  do  absintio.  Que  se  resigne  e  espe- 
re nquelle  que  vai  devorando  os  dias  da  duvida  e 
do  desalento.  Chegará  a  hora  de  renascer  para  a 
poesia  c  para  a  certeza  :  será  a  da  morte.  A  Provi- 
dencia foi  ainda  generosa  comnosco  conscntindo- 
nos  affastar  dos  lábios  a  espaços  o  cálix  do  fel,  e 
deixando  que  nestes  momentos  rasguem  o  nosso 
longo  e  tedioso  crepúsculo  alguns  raios  transitórios 
de  luz.  A  memoria  t'  o  instante  de  repouso;  e  a  sau- 
dade o  clarão  suave  que  nos  illumina. 

Uecordar-se  —  coiisolar-se. 

(A.  Herculano.) 


AS   CAMUnÇAS. 


l>rrs  animaes ,  agilissimos ,  espertos,  e  no  tama 
nho  c  forma  em  tudo  parecidos  á  cabra  domestica 
pertencem  ao  género  das  antílopes  ,  intermédio  en- 


qucnlam  os  mais  altos  c  intratáveis  picos  das  prin- 
eipaes  cordilheiras  da  Europa  e  da.Xsia  occidentai, 
como  os  Pyrinéus,   os  Alpes,  as  montanhas  da  (íre- 


Ire  os  veados  e  as  cabras,  eque  tem  iacrimaes,  co-  i  cia  ,  o  ('aucaso  ;  e  talvez  que  se  encontrem  em  ou 
mo  os  primeiros ,  c  os  xavelhos  recurvados.   Fre- j  trás  situaçõís.  Xos hábitos  e  ligeireza  assemelham-se 


o  PANORA3IA, 


285 


muito  ao  bodequim  ;  veja-sc  no  que  dilTercm  ,  a 
pag.  205  do  voi.  1.°  deste  Jornal  ,  onde  inserimos 
estampa  c  noticia  deste  animal  selvático  ,  e  alii 
mesmo ,  o  risco  da  perigosissiina  caça  de  ambos ,  a 
qual ,  alem  de  degenerar  em  paixão  nos  babitantes 
das  serranias  ,  é  vantajosa  ,  quando  feita  ás  camur- 
ças ,  cm  rasão  do  valor  das  pelles ,  que  depois  de 
curtidas  tem  varias  applicações,  e  são  bem  conhe- 
cidas  Como  esta  casta  é  veloz,  precatada,  mu- 
nida de  perfeito  olfacto  e  vista  penetrante  ,  ó  dilli- 
cil  de  apanhar  ,  maiormentc  porípic  Irepa  por  es- 
carpadas roclias  ,  em  sitios  imper\ios  ao  homem  ; 
de  tal  modo  que  parece  incrível  como  se  não  des- 
penlia  em  repetidos  pulos  irregulares  saltando  por 
fraguedos  e  pi>nliascos,  onde  não  tem  uma  saliência 
em  que  passa  lirraar-se  ;  por  isso  os  caçadores,  pa- 
ra não  frustarem  suas  penosas  e  arriscadas  fadigas, 
cosiumam-se  juntar-sc  cm  bandos  e  fazerem  córco 
ao  pincaro  ou  agulha  que  sabem  ser  frequentado 
por  caraurças  ;  o  faro  subtil  dos  aniuiaes  denuncia- 
]hcs  os  perseguidores  que  vera  da  banda  do  vento, 
por  consequência  fogem  na  direcção  opposta  c  as- 
sim vão  cahir  em  mãos  da  outra  partida  dos  ini- 
migos. 

Aborrecem  tanto  o  calor  que  se  vão  acoutar  nos 
mais  empinados  desfiladeiros  ,  c  só  de  inverno  .  du- 
rante a  inteusidade  do  frio,  procuram  alguns  valles 
mais  baixos:  pastam  hervas  ,  matto  ,  e  gomos  d*ar- 
Tores  e  arbustos  :  tcem  as  crias  em  março  ou  abril, 
raras  vezes  duas  de  um  parto  ,  e  só  as  ammaraen- 
tam  até  o  outubro  seguinte.  Dizem  que  a  carne  das 
camurcas  é  saborosa. 


Mi^CEL    DE  SOCSA  DE   SePCLVEDA. 

IV. 

Africa. 


ffs  Africa .  dos  bens  do  mundo  avara 
Inculta,   c  toda  chtia  de  bruteza; 
Co  Cabo ,  que  aléqui  se  tos  nrgàra , 
Que  assentou  para  o  Austro  a  natureza : 
Olha  essa  terra  toda ,  que  se  habita 
Dessa  gente  stm  tei ,  quasi  injinita. 

Lls.,   Ciiiit.  10,  Est.  92. 

Foi  uma  nobre  e  ardida  cinpreza  a  das  descobertas 
da  .\frica.  Foi  uma  sublime  intelligencia ,  e  uma 
poderosa  vontade  a  daquelle  príncipe  que  primeiro 
em  Portugal  creou  a  eschola  e,  pódc  dizer-se,  ins- 
pirou o  génio  da  navegação.  Deverii-lhe  muito  a  hu- 
manidade .  a  sciencia  ,  e  a  gloria  também.  Grande 
homem  é  aquelle  que  sabe  tirar  partido  das  tendên- 
cias de  uma  epocha  e  das  propensões  de  um  povo. 
E  se  elle  chega  a  converter  os  erros  e  as  paixões 
do  seu  tempo  em  vantagem  duradoura  da  sua  na- 
ção ou  da  sua  espécie  ,  merece  então  o  titulo  de 
Lemfeitor  c  a  coroa  de  immortal.  Era  a  religião  na 
epocha  em  que  viveu  o  infante  D.  Henrique  o  voto 
mais  acendrado  e  o  mais  pungente  estimulo  da  so- 
ciedade porlugueza.  Apoderando-se  das  consciências 
e  das  cabeças  tinha-se  esse  divino  instincto  torna- 
do quasi  em  delírio,  ilas  esse  delírio  voltou-o  aquel- 
le príncipe  cm  proveito  da  civilisação  e  do  com- 
mercio  :  e  o  que  na  idade  media  fora  flagello  da 
Europa  —  o  demónio  da  intolerância  —  transmuta- 
do em  principio    de  bem  e  progresso,    produziu 


[quem  o  diria!]  resultados  que  o  mundo  hoje  ad- 
plaude  e  proscguc  com  enlhusiasrao.  Kecalcado  so- 
bre a  extrema  do  occidente  ,  este  povo  tão  pequeno 
era  território,  mas  tão  vasto  cm  pensamentos  como 
ínsotírido  de  repouso  e  de  paz  a  que  o  tinham  de- 
safcíçoado  quatro  séculos  de  guerras  mal  interrom- 
pidas, .Tbafaria,  se  a  natureza  lhe  não  estivesse  co- 
mo clamando  =  (ío  ocfíino  ,  oo  ocea«o.' =  Ao  ocea- 
no pois  se  lançou  no  amanhecer  do  século  Vi  ,  cu- 
commendando-sc  a  Ucus,  e  hypothecando-sc  á  ven- 
tura ;  e  desde  essa  madrugada,  dormindo  ainda  em 
somno  profundo  o  resto  da  Europa  ,  caminhou  tan- 
to ,  que  parece  hoje  um  sonho  a  historia  raeinora- 
vcl  de  suas  cmprezas.  Não  eram  ,  não  ,  almas  vul- 
gares as  desses  homens  que  com  tão  escassos  meios 
l)ara  resistir  aos  perigos  tão  variados  do  mar  ,  es- 
tando_  ainda  na  sua  infância  a  arte  náutica,  se  afou- 
taram aos  abysmos,  c  penetraram  tantas  terras  bar- 
baras ,  desconhecidas  ao  resto  do  mundo,  fiados 
unicamente  na  grandeza  do  seu  coração  ' 

Correndo  com  os  olhos  o  mappa  ,  desde  o  ponto 
cm  que  Europa  se  divide  de  .\frica  até  o  Cabo  de 
Boa-Esperança  ,  quasi  se  não  topa  uma  ilha  ,  um 
golpho  ,  um  promontório  ,  uma  costa  ,  uma  babia 
que  não  seja  porlugueza  pelo  descobrimento  e  pelo 
nome  ,  senão  pelo  senhorio  ;  e  dobrando  o  Cabo 
quantos  vestígios,  quantos  se  não  encontram  por  to- 
da a  costa  do  oriente  da  actividade  e  do  génio  de 
nossos  navegadores?  Aquelle  vasto  oceano  está  coa- 
lhado dos  seus  ossos,  aquellas  praias  ainda  estão  hú- 
midas do  seu  sangue,  aquellas  terras  ainda  nos  são 
testemunhas  do  seu  valor,  eos  cchosdaquelles  mon- 
tes ainda  se  não  cansaram  de  repetir  o  pregão  secu- 
lar de  suas  victorias.  Chnrama  era  essa  que  lhes  ar- 
dia nos  peitos  mais  abrazadora  que  o  fogo  dos  trópi- 
cos. Eucrvou-se  acaso  a  ten)pera  heróica  de  que  eram 
forjados aquelles ânimos?  Encrvou-se,  sim;  masnão 
se  perdeu.  Xa  alma  do  homem  mais  frouxo,  e  do 
povo  mais  apathico  reside  um  principio  de  energia 
e  de  acção.  Alinai-lhe  com  a  corda  vital,  evibraí-a 
q^ie  vos  hade  dar  um  som  :  procurai  nessa  pedra 
inanimada  c  insensível  a  vèa  onde  se  occulla  o  fo- 
go e  feri  que  hade  afusilar-vos  centelhas :  applícai 
a  pilha  galvânica  a  esse  cadáver  que  ahi  jaz  ,  er- 
guerse-ha  diante  de  vós  !  Não  é  a  mesma  em  todas 
as  cpochas  ,  bem  o  sei ,  a  vara  magica  que  desper- 
ta os  povos.  Foi  grande  estimulante  no  século  das 
descobertas  o  proselytismo  religioso,  que  não  pres- 
taria hoje.  Mas  lem-o  sido  entre  nós  somenos  o 
amor  da  independência?  E  o  enthusiasmo  da  liber- 
dade ,  exaggerada  ou  não  ,  não  puz  ,  ao  fechar  do 
século  18.",  em  movimento  todas  as  forças  d'um 
povo  illuslre?  E  quando  arrefeceu  esse  enthusias- 
mo ,  não  houve  um  homem  que  soube  tocar  ua  li- 
bra syrapathica  xla  gloria  a  esse  mesmo  povo  ,  e 
abala-lo  a  obrar  prodígios  cm  nome  da  ambição  , 
como  os  tinha  obrado  em  nome  da  pbilosophia? 
Será  ,  também ,  seguido  como  muitas  vezes  é  do 
incentivo  da  grandeza  nacional,  fraco  aguilhão  o 
do  commercio? 

Havia  um  toque  de  verdadeira  ingenuidade  ein- 
nocencia  ,  que  boje  mal  pode  ser  compreheudido  , 
na  confiança  com  que  os  nossos  antepassados  na 
primeira  epocha  das  suas  excursões  náuticas  redu- 
ziam o  titulo  da  posse  real  das  terras  que  iam  des- 
cobrindo a  escrever  o  motlo  ,  profundamente  syra- 
pathico  e  altamente  social ,  do  infante  D.  Henri- 
que ^>)  na  casca  dos  dragoeiros,  a  plantar  com  sin- 


(•")     Ninguém  ignora  que  o  inolto  era  este;   ialnu  ile 
iienfaire. 


286 


O  PANORAMA. 


Seleza  algumas  cruzes  de  pau  ,  ou  a  assentar  pa- 
iJrões  do  pedra  demonslrando  em  seu  letreiro  a  da- 
ta da  descoberta  ,  e  o  nome  do  descobridor.  Mas, 
com  todo  esse  desartificio,  que  paciência  no  estudar 
as  inclinações  do  pqvo ,  e  que  destreza  no  governar 
aquellas  ondas  revoltas  da  multidão  para  um  fim 
nacional  1  liu  não  me  atrevo  a  decidir  se  a  nossa 
sciencia  ,  que  na  jactância  não  é  mesquinha,  vale 
neste  ponto  a  sua  que  era  menos  fumosa  ,  mas  pô- 
de ser  que  mais  ellicaz.  Souberam  cllcs  com  o  po- 
■vo  mais  pequeno  da  Europa  ,  destiluidos  de  todos 
os  instrumentos  da  policia  moderna  ,  devassar  o 
mar  c  a  terra  por  milhares  de  léguas,  e  cofiduzir- 
nos  ao  vértice  da  pyramide  no  commercio  c  na  po- 
litica. E  nós  com  todo  o  apparato  d'arles,  c  a  van- 
tagem dos  cabedaes  da  fortuna  e  também  da  expe- 
riência amontoados  em  quatro  séculos,  com  quan- 
tas sejam  as  nossas  perdas,  superiores  a  elles  sem 
comparação,  havemos  descido  ao  mais  humilde  grau 
<la  escala  das  nações  commercianles.  íí  que  se  nos 
estanca  o  génio  ,  cumpre  confessa-lo.  iVingucm  ho- 
je affirniará  que  a  nossa  decadência  provenha  wní- 
camrntr  da  elevação  de  outros  povos  ,  porque  o  do- 
gma ,  decrépito  ,  das  nações  não  poderem  prospe- 
rar senão  com  o  abaixamento  e  pobreza  de  ou- 
tras ,  c  hoje  regeitado  pela  economia  ,  e  desmenti- 
do a  todas  as  horas  pela  auctoridade  dos  factos. 

IVão  deixo  cu  de  considerar  que  se  vão  desmoro- 
nando os  vallos  que  separavam  as  sociedades — que 
os  povos  se  vão  aggrcgando  á  unidade  social  e  po- 
litica—  que  a  linha  que  dividia  um  paiz  era  tan- 
tas nações  como  as  suas  províncias,  os  seus  distri- 
ctos  ,  os  seus  municípios  ,  as  suas  differcules  clas- 
ses se  vai  apagando:  mas  isso  que  monta?  È,  ape- 
nas, quebrar  os  obstáculos  á  união.  Dahi  a  alcan- 
çar a  unanimidade  ,  e  a  influir  impulso  commum  e 
uniforme  no  grande  todo  nacional ,  vai  muita  dis- 
tancia. Quereis  ouvir,  cm  poucas  palavras,  o  que 
.1  nós  nos  falta:  achar  aquellas  idéas  poderosas, 
que  apaixonam  as  multidões  ,  e  achadas  atira-las , 
como  facho  incendiado  ,  ao  meio  da  sociedade  por- 
lugneza  hebetada  c  paralítica.  Conheciam  esse  se- 
gredo os  nossos  antigos,  c  essas  povoações  tão  desa- 
tadas como  pareciam  ,  e  como  eram  as  do  seu  tem- 
po, com  que  habilidade  não  sabiam  vincula-las  em 
laço  estreito  ,  c  tocor-lhe  aquelle  rebate  a  que  ci- 
las acudiam  sempre  em  agitado  tropel !  Vede  uma 
associação  industrial:  como  um  pensamento  imico 
dirige  aos  seus  membros  todos  :  como  caminham 
unidos  para  o  fim  do  interesse  que  alli  os  jun- 
tou :  como  são  acres  e  diligentes  no  esquadrinhar 
os  danmos  ,  os  proveitos  ,  as  causas  de  ambos  ,  os 
passos  que  para  lá  guiam  :  como  o  estremecimen- 
to que  sente  um  o  sentem  todos:  como  a  idca  que 
aili  os  convocou  está  con';tantemcnte  accesa  naquel- 
las  cabeç.-is  ,  regendo  todas  aquellas  vontades,  mo- 
vendo e  indammarido  sem  de.srimço  n'uma  direc- 
ção única  e  commum  todos  aquelles  esforços  :  co- 
mo marchando  todos  debai:-;o  d'Hma  só  bandeira  , 
a  uma  voz  que  todos  entendem  e  coramove  a  to- 
dos ,  chegam  a  lonseguir  os  resultados  a  que  as- 
piravam !  Assim  hadc  ser  a  grande  associação  na- 
cional, SC  quizer  marchar  em  linha  com  nsprogres- 
•ios  do  seu  século.  .Somos  portuguozes,  povo  meri- 
"iional.  e  herdeiro  de  grandes  recordações,  ^'ão  nos 
lalicce  sensibilidade  para  receber  eslimnlos  se  os 
convenientes  nos  forem  applicados.  Tivemos  tem- 
po ,  espaço  ,  industria  ,  commercio,  para  adquirir  e 
«nthesourar.  Temos  homens,  terra,  clima,  recursos 
pbysicos  u  moraes ;   mas  .    cu  já  o  disse  ,   falta-iios 


o  génio ;  c  falta-nos  exactamente  no  logar  onde 
mais  o  precisávamos  que  era  nas  regiões  do  poder. 
O  poder  tem  ,  desde  muito  ,  sido  quasi  completa- 
mente estéril  para  nós.  E  quando  cu  me  demoro  a 
contemplar  os  elementos  fecundos  ,  que  ainda  res- 
tam á  nação  portugueza  ;  quando  comparo  o  estado 
era  que  cila  se  acha  com  o  de  outras  rauito  menos 
dotadas  pela  Providencia  ,  mas  melhor  aquinhoadas 
de  sabedoria  politica  e  governativa  ,  gemo  da  nos- 
sa inferioridade,  e  da  nossa  humilhação! 

Quem  evocará  das  ruinas  o  espirito  enérgico  dos 
tempos  passados?  Quem  despertará  do  Icthargo  em 
que  jaz  entorpecido  este  povo?  Quem,  quem  apon- 
tará a  esta  geração  era  seu  desalento  a  eslrella  da 
esperança? 

Os  túmulos  e  os  rios. 

Existem  umas  catacumbas  em  que  habitam  alguns 
seres  humanos.  iVo  vestíbulo  estão  como  postas  de 
guarda  (iguras  de  raposas,  symbolo  da  vigilância. 
A  um  angulo  lança  uma  fraca  alampada  a  sua  luz 
moribunda  sobre  o  subterrâneo,  onde  ao  cahir  da 
noite  se  reúnem  os  moradores,  e  passara  mostra  ao 
despojo  que  fizeram  durante  o  dia.  Alli  estendidos 
sobre  |)ilhas  de  ossos  de  finados  contam  uns  aos  ou- 
tros suas  aventuras  estes  habitantes  das  cavernas, 
meio  nus,  e  quasi  selvagens;  mas  nem  por  isso  des- 
tiluidos de  astúcia  e  de  malicia.  Depois  ao  lume 
acccso  com  esses  mesmos  ossos  ,  c  cora  pedaços  de 
caixões  funerários  cosinlião  o  seu  festim  ,  e  rctei- 
çoados  com  o  banquete  infernal,  entram  logo  a  cui- 
dar uo  achado  ou  na  preza  do  dia  seguinte.  Quem 
são  esses  homens  estranhos?  os  troglodytas.  E  es- 
ses subterrâneos  scpulchraes  que  elles  habitam?  as 
catacumbas  da  Thcbaida.  E^lamos  no  Egypto  ,  ter- 
ra de  maravilhas  c  demysterios,  cujos  antigos  mo- 
numentos certificam  a  cuda  ]iasso  que  alli  se  cui- 
dava inuilo  dos  mortos  ,  e  muito  pouco  dos  vivos. 
Cousa  singular'.  A  civilisação,  a  historia,  as  artes  , 
as  sciencias,  os  costumes  deste  povo  estão  deposita- 
dos e  cifrados  nos  seus  túmulos.  A  vida  reputavam- 
na  peregrinação  de  um  dia  ,  e  a  alma  ,  segundo  as 
suas  crenças  religiosas,  habitava  na  morada  dos  mor- 
tos em  quanto  alli  se  conservava  uma  reliqiiia  do  cor- 
po. Embalsamavam  os  cadáveres  com  muito  cuida- 
do para  que  durassem  séculos  :  accumnlavara  piedo- 
samente nos  sepulchros  quanto  pudia  tornar  aprazí- 
vel aquella  morada  aos  espíritos  que  alli  suppunham 
residir:  e  lá  mesmo  com  o  auxilio  da  pintura  e  es- 
culptura  procuravam  perpetuar  a  memoria  e  os  fei- 
tos dos  fallccidos  para  servirem  de  exemplo  ás  ge- 
rações que  lhes  haviam  de  succeder ;  elles  pelo 
mármore  ,  c  o  pincel  ,  nós  pela  arte  divina  da  ioi- 
prcnsa. 

Africa  ,  os  túmulos  são  o  testemunho  da  tua  ci- 
vilisação no  passado  .  e  os  rios  o  penhor  da  tua 
grandeza  no  futuro.  Corre  ,  patriarcha  das  aguas  . 
.\ilo  mysterioso  e  sagrado,  corre  os  teus  vastos  do- 
mínios ;  luimilha-te  como  os  ribeiros  ,  e  murmura 
como  elles  :  rola  impetuoso  ,  rola  as  tuas  ondas : 
atravessa  rápido  os  desfiladeiros  c  as  montanhas  : 
brame  dcspcitoso  na  garganta  d.-.s  rochas  :  dcspe- 
nha-te  enfurecido  nas  catadupas  :  passeia  sereno  e 
magcstoso  as  idanicíes  ,  c  cm  lua  grão  carreira  não 
como  o  conquistador  que  devasta  mas  como  a  di- 
vindade que  fecunda  ,  abençoa  os  cami)os  :  levanta 
essas  ilhas  graciosas  que  te  obedecem  como  a  seu 
suzerano  c  protector:  beija  o  esiihíngc  colossal  que 
os  homens  e  os  deuses  deixaram  esquecido  ás  luas 


o   PAWORAMA. 


•287 


margens:  consola  o  viajante  abrasado  do  deserto 
com  a  fresquidão  de  tuas  auras,  com  o  picluresco 
de  tuas  scenas ,  com  o  aspecto  deleitoso  dos  tama- 
reiros  de  Syena  :  foge ,  foge  como  a  belleza  orgu- 
lhosa c  requestada;  e  como  cila  os  segredos  do  seu 
coração  ,  recata  ,  ó  Xilo  ,  os  inystcrios  do  teu  nas- 
cimento. Pai  da  civilisarão ,  rio  portentoso ,  de 
todos  o  mais  antigo  ,  e  o  mais  eiiygmatico  ,  que 
acalentaste  a  monarchia  de  Menes  em  seu  berço  ; 
que  assististe  á  fundação  de  Mcmíis  v.  Tliebas  ;  que 
viste  emigrar  a  colónia  de  Cecrops  ;  que  choraste 
as  lagrimas  araargns  da  escravidão  sob  o  jugo  de 
Cambysses  ;  que  do  aviltamento  do  senhorio  estran- 
geiro te  consolaste  um  pouco  com  o  reinado  glorio- 
so dos  Pioinmeus ;  que  gemeste  as  profanações  de 
Cleópatra  ,  e  a  tyraiinia  uas  armas  romanas ;  que 
te  acurvaste  resignado  ao  sceplro  do  arahe  ;  que 
palrizastc  ao  sacudir  a  dominação  dos  califas  da 
Ásia;  que  raalsonTreste  a  usurpação  do  nazareno;  e 
que  reconheceste  em  lim  a  lei  doprophcla  —  tu  se- 
rias boje  uma  ruiiia  venerável  ,  ou  unia  |)olencia 
decahida  ,  se  o  grande  Alboquerque  vivesse  assaz 
para  derivar  o  leu  luirso  :  {*] 

Se  a  Providencia  embari^ou  o  guerreiro  porluguez 
no  projecto  de  degradar  de  sua  oiiulcncia  e  cele- 
bridade este  rio,  reservou  a  outro  portuguez  ,  sa- 
cerdote, a  gloria,  tantos  séculos  c  a  tal  desvelo 
buscada  ,  de  o  devassar  na  sua  fonte.  Aos  vinte  e 
um  de  abril  de  1618,  na  Kthiopia  ,  reino  de  Go- 
Gojara,  território  do  Sacahala,  paiz  dos  .\gaus,  niui 
perto  de  uma  pequena  montanha  encontrou  o  padre 
Pedro  Paes,  jesuíta  [)orluguez,  o  berço  doISilo,  (::) 
nascendo  de  duas  fontes,  uma  das  quaes  poderá  ler 
quatro  palmos  de  diâmetro.  Sae  da  sua  origem  ca- 
minhando occulto  por  debaixo  de  hcrvas  e  arvore- 
tas  entretecidas ,  espaço  de  um  terço  ou  quarto  de 
Icgua  :  e  ao  cabo  d'esse  espaço  pela  primeira  vez 
;ipparece,  ainda  humilde  e  indigente,  correndo  en- 
tre pedras  esse  rio  ,  cujc  nascinienlo  Alexandre  e 
Philadelpho  perguntaram  ,  mas  debalde,  ao  orácu- 
lo de  Amnon  ;■  Sesostris  c  Cambisses  procuraram  , 
e  Nero  mandou  buscar  ,  com  exércitos  poderosos  ; 
e  César  o  Dictador  mais  queria  descobrir  do  que 
dominar  em  Roma  ! 

Rio  illusire  ,  não  tens  rival  sobre  a  terra'.  Pode- 
se  affectar  apenas  a  honra  de  teu  segundo  ,  e  o  teu 
segundo  é  o  Niger. 

O  Níger  é  uma  das  grande.;  artérias  de  Africa. 
Quanto  sangue,  quanta  seiva  encerra  o  coração  d'a- 
quella  península  inimensa.  todo  passa  pelo  .Níger. — 
Mas  duraiie  muitos  séculos  castigou  aos  temerários 
que  se  arrojaram  a  metter  pé  em  sua  commarca,  e 
a  procurar  o  registo  do  seu  nascimento  este  rio,  co- 
mo o  guerreiro  dos  tempos  que  foram  ,  catafracto 
de  todas  as  armas;  dciTeudido  por  precipício  de  al- 
gares ,  por  aspereza  de  serras  ,  por  tempestades  de 
areia  ,  por  dilúvios  de  chuva  dos  trópicos,  por  fu- 
ror de  ventanias  ,  por  fogos  do  equador  ,  por  soli- 
dões, por  torrentes,  por  truculência  de  feras,  e  por 
crueldade  de  homens. —  \  historia  das  viagens  ao 
Níger,  é  um  martyrologio  continuado,  e  neste  mar- 
lyrologío  a  victima  mais  illustre  é  Jlungo  ParL. 

Em  sua  primeira  viagem  Mungo  Park,  depois,  de 


(•)  Anir^oasi  iiai  '3os  sábios  da  cxpediçitu  franceza  , 
que  foi  ao  Ejypl"  ,  é  ile  opinião  que  nào  teria  siilo  inexe- 
quirel  o  plano  de  Alboquercjue ,  adoptadas  certas  mudiQ- 
cações  que  aponta. 

('■■)  Voyaie  hislorique  d'Abissinie  duR.  P.  Jerome Lo- 
bo, traduite  du  portujais,  continuée  de  plusieurs  disserla- 
tions,  letires ,  et  meaii)ires  par  M.  Le  Grand-Paris  1723 
—  pag,  sio. 


muitos  trabalhos  ,  c  de  perigos  a  que  parece  mila- 
gre haver  escapado  ,  levando  pela  redca  o  cavallo 
exhausto  de  cançaço  ,  foi  de  repente,  perto  de  lab- 
bi ,  tirado  do  abattimento  cm  que  ia  pelo  grito  de 
jubilo  dos  negros  que  o  acompanhavam  :  Geo  aflil- 
li  I  eis  aqui  a  agua.  Kntão  o  vi.njantc  olhou  e  ven- 
do com  arrebatamento  o  grande  objecto  da  sua  ex- 
pedição ,  o  magestoso  Níger,  por  tanto  tempo  c  a 
tanto  risco  intentado  ,  faiscando  ao  primeiro  raiar 
do  sol,  precí|iilou-se  sobre  as  suas  margens,  bebeu 
soffrego  de  suas  aguas  ,  c  rendeu  acções  de  graças 
á  Providencia  eterna  que  aos  seus  esforços  acabava 
de  coroar  com  o  successo.  Voltou  á  pátria  Mungo 
Park  sem  ter  descoberto  o  curso  definitivo  do  Ní- 
ger. Repousou  dez  annos  no  seio  de  sua  família. 
-Mas  consumido  por  aquella  lava  occulla  e  nunca 
extíncta  do  génio  ,  resolveu  segunda  viagem  ainda 
mais  perigosa  que  a  antecedente  ;  emprehendendo 
descer  pelo  rio  desde  a  sua  sahida  da  região  de 
.Mandinga  jtnito  a  BammaKu  até  á  sua  embocadura. 
Partiu.  Chegou  aofiambeacora  a  sua  pequena  comi- 
tiva, seu  cunhado  Anderson,  c  o  pintor  Scolt,  man- 
cebo-ambos,  cheios  d'enlhusiasmo  ecoragcm,  com- 
patrícios e  amigos;  alguns  soldados,  o  tenente  Jlar- 
íyn  ,  e  dois  marinheiros  para  equipagem  do  barco 
que  haviam  de  construir  para  a  descida  do  Níger  , 
e  C  carpinteiros.  Subiu  o  Gambea  até  Kace  e  cm 
íiaee  ajustou-se  com  iini  padre  de  Mandinga,  ne- 
gro intcliigcnte  e  íiel  chamado  Izaaco  ,  para  o  se- 
guir na  qualidade  de  guia  e  interprete.  X  II  de 
maio  começou  a  sua  peregrinação  aventurosa,  e  en- 
tre as  fadigas,  accidentes  e  tribulações  variadíssimas 
por  que  passou,  doissinacs,  revelação  da  sorte  que 
lhe  eslava  dctinada  ,  como  duas  badaladas  lúgu- 
bres do  um  sino  de  finados  ,  o  avisaram  durante  o 
caminho.  Na  passagem  do  rio  ■'i\'únda  Izaaco,  oguia, 
foi  acconimettido  por  nm  crocodilo,  e  já  meio  en- 
golido ,  depois  de  uma  lucta  ensanguentada  e  terrí- 
vel ,  pôde  o  negro  intrépido  tirar  os  olhos  ao  mons- 
tro ,  c  d'e£te  modo  escapar  á  morte  ainda  que  fe- 
rido e  mui  gravemente.  Ao  passar  outro  rio  o  Bor- 
Waulima  ,  braço  o  mais  oriental  do  Senegal ,  en- 
fermos já  a  esse  tempo  lodos  os  europeus  da  cara- 
vana ,  precedia-os  entre  os  selvagens  que  vagueiam 
por  aquellcs  sítios  um  boato  singular  e  sinistro  :  é, 
diziam  aqiielles  negros  ferozes,  ura  Doi:mmoulafoug 
— uma  cousa  que  aqui  vem  para  ser  comida.  A  ca- 
da passo  uma  nova  desgraça  o  soçobrava  ;  mas  lan- 
çando os  olhos  ao  hurisoiíle,  se  divisava  sequer  uma 
cadeia  de  montaniias  ba!;hadas  pelas  aguas  do  Ní- 
ger ,  reanimado  da  esperança  ,  triumfava  da  sua  si- 
tuação o  magnânimo  viaj.snte. 

Em  lins  de  setembro  ciiegou  próximo  á  villa  de 
Síuisanding  ,  e  ancorou  a  sua  barca.  E  da  villa  a 
16  de  novembro  escreveu  ao  seu  amigo  los.  Bank  a 
ultima  carte  em  que  lhe  dizia  que  era  sua  inten- 
ção tirar  o  parlido  possível  da  corrente  e  dos  ven- 
tos ,  navegando  no  meio  do  Níger  ;  e  que  bem  ce- 
do ou  havia  de  descobrir  o  termo  do  rio  mysterio- 
so  ,  ou  morrer  em  suas  aguas. 

O  navio  de  Mungo  Park  tinha  capacida#e  siillí- 
ciente  para  conter  120  homens  ;  mas  a  bordo  leva- 
va O  somente  :  quatro  brancos  em  cujo  numero  en- 
trava o  tener-te  Síartyn  ,  o  próprio  Park  ,  tre?  ne- 
gros escravos  ,  c  Ãmadi  o  novo  interprete  substitu- 
to de  Izaaco.  Ia  bastecido  de  miuiições  de  toda  .í 
casta.  Partiu  de  Sansanding  em  novembro  de  ISOj, 
chegou  em  dois  dias  a  Genii  e  de  lá  ao  lago  de 
Dibbic  ,  onde  foi  atacado  por  Ires  barcas  armadas 
de  piques  e  lanças.  Síungj  Park  conseguiu  todavia- 


288 


O  PANORAMA. 


repeli-las.  Junto  a  Bakbara  ,  ancoradouro  de  Tom- 
buctu  ,  enconlrou  outras  três  ,  que  igualmenle  re- 
pclliu  ,  e  ás  abas  do  junto  á  capital  leve  que  com- 
bater ainda  outros  inimigos.  Em  cada  um  d'cstcs 
recontros  perderam  os  iiaturaes  muita  gente.  Perto 
de  tiouroumo  foi  assaltado  o  navio  europeu  por  se- 
le canoas  que  poz  em  fuga  ,  com  morte  de  um  só 
europeu ,  tendo  cada  um  dos  homens  que  lhe  res- 
tavam 13  espingardas  carregadas.  Próximo  á  resi- 
dência do  reiGotoyege  tornaram  os  indigenas  a  ata- 
ca-los com  60  canoas  que  foram  todas  postas  cm 
derrota,  depois  de  terem  perdido  muita  gente,  lis- 
tava reunido  ás  margens  do  rio  um  exercito  consi- 
derável de  Pulos  :  mas  a  gente  de  MungoPark  pas- 
sou trauquillanicnte  por  elles,  sem  se  ver  obrigada 
a  travar  combate.  Ancoraram  em  Caflo  :  alli  des- 
cansaram um  dia  ;  c  depois  proseguiram  até  á  fron- 
teira do  reino  de  Iloussa  ,  onde  Amadi  devia  re- 
troceder, segundo  tinlia  ajustado  com  3lungo  Park. 
Mungo  Park  tomou  terra  cm  Yaour ,  i)aiz  habitado 
por  Marabulos ,  e  mandou  [lelo  seu  interprete  pre- 
sentes ao  principal  do  logar,  que  em  testemunho 
de  agradecimento  o  brindou  com  uma  carga  de  ar- 
roz, trcs  escudcUas  de  mel ,  um  carneiro  ,  e  uma 
novilha.  Depois  enviou  pe!o  mesmo  ao  rei,  que  es- 
lanccava  a  alguns  centos  de  passos  do  ribeiro,  sinco 
aiHicis  de  prata,  alguma  pólvora  ,  c  pederneiras  de 
espingardas  ,  pediudo-lhe  acceitassc  aquella  olVerta 
em  memoria  dos  brancos.  O  principal  perguntou  en- 
tão a  Blungo  Park  ,  se  elle  voltaria  ao  seu  paiz  ;  e 
o  viajante  respondeu,  sincero,  que  lhe  seria  impos- 
sível o  voltar.  Esta  resposta  foi  a  verdadeira  causa 
da  sua  morte  ;  porque  o  negro  astuto,  seguro  assim 
de  que  não  seria  accusado,  guardou  para  si  os  pre- 
sentes. Amadi  Fatouma  ficou  era  Yaour  ;  Park  con- 
tinuou a  sua  derrota  ;  e  o  rei  irritado  de  que  elle 
partisse  sempresenlca-lo,  mandou  púr  aferros  o  in- 
terprete, e  ao  seu  exercito  que  perseguisse  a  Mungo- 
Park, e  o  matasse.  Junto  aBussa,  onde  altos  roche- 
dos comprimem  o  leito  do  rio,  e  tornam  muito  peri- 
gosa a  sua  passagem,  atacaram  d'improviso  ao  navio 
osnaturaes,  e  o  cobriram  d'uma  saraiva  de  pedras, 
frechas  e  piques.  Dois  escravos  que  estavam  á  |)ròa 
da  canoa  cahiram,  e  Mungo-Park  vendo,  depois  de 
ura  combate  longo  e  renhido  ,  perdida  toda  a  espe- 
rança de  salvação  ,  precipitou-se  no  rio  com  o  ulti- 
mo dos  europeus. 

Morreu  o  heróico  viajante  sem  chegar  a  ver  o 
que  alguns  annos  depois  viram  ,  mais  afortunados, 
Clapperton  e  sobretudo  os  irmãos  Lander  —  o  curso 
inteiro  do  Níger  —  á  excepção  do  seu  berço,  ainda 
hoje  desconhecido  á  Europa.  Mas  ,  como  o  seu  an- 
tecessor ,  pagaram  também  cora  a  vida  sua  devoção 
á  scicncin.  (Conlinuar-sc-ha). 

A.  d' O.  Marreca. 


A  durarão  dus  liomois  c  a  de  ahiumas  arvores. — 
Observei ,  no  cimo  do  I.ibano,  cedros  que  segundo 
as  tradições  árabes  permanecera  desde  o  tempo  de 
Salomão.  Não  ha  nisso  impossibilidade  :  a  natureza 
deu  a  certos  vegetaes  mais  duração  que  aos  impé- 
rios ;  alguns  carvalhos  tem  assistido  á  successão  de 
muitas  dynastias,  c  a  lande  que  pizàmos  a  pés,  o 
caroço  d'azcitona  que  esfregámos  nos  dedos ,  c  a 
pinha  do  cedro  varrida  pelo  vento  ,  terão  a  facul- 
dade de  se  reproduzir,  dar  llor  e  cobrir  com  som- 
bra o  chão  ,  quando  já  os  centenares  de  gerações  , 
que  tem  de  soguir-nos,  houverem  restituído  á  ter- 
ra o  punhado  de  pó  que  alternativamente  lhe  toma- 


ram d'empreslimo.  Não  o  lenhamos  por  sígnal  de 
desprezo  da  creáção  para  comnosco  ;  a  importância 
relativa  dos  entes  não  se  mede  pela  duração  mas 
pela  intensidade  da  existência.  Ha  mais  vida  n'u- 
ma  hora  de  pensar  ,  de  contemplação,  de  rezar,  c 
de  amor  ,  que  na  existência  inteira  do  ho^iem  pu- 
ramente physica.  Ha  mais  vida  n'um  pensamento 
que  percorre  o  mundo  e  ascende  ao  céu  dentro  de 
espaço  de  tempo  inapreciável ,  no  millionessímo  de 
um  segundo,  do  que  em  dezoito  séculos  de  vegeta- 
ção das  oliveiras  que  palpo  agora  (•)  ou  nos  dois 
mil  e  quinhentos  annos  dos  cedros  de  Salomão.  — 
De  Lamartine. 


Recordação  e/fica:  dos  varões  insignes.  —  Sempre 
me  pareceu  que  a  mais  segura  e  expressiva  relí- 
quia de  qualquer  homem  illustre  é  o  paiz  que  pre- 
feriu e  iiabitou  durante  o  seu  transito  pelo  mundo; 
é  uma  espécie  de  manifestação  material  do  seu  ta- 
lento ,  uma  revelação  muda  de  parte  da  sua  alma  , 
um  commentario  vivo  e  sensível  da  sua  vida ,  de 
suas  acções  e  pensamentos. —  Sendo  ainda  mance- 
bo passei  horas  solitárias  e  contemplativas  deitado 
debaixo  das  oliveiras  que  assombram  os  jardins  de 
Horácio,  avista  das  cascatas  resplendentes  deTivo- 
li  ;  deitei-ine  muitas  vezes  pela  tarde,  ao  sussurrar  do 
formoso  mar  de  Nápoles,  debaixo  das  varaspendcn- 
tes  das  videiras  próximo  ao  logar  onde  Virgílio 
quiz  que  as  suas  cinzas  repousassem,  por  ser  amais 
linda  o  amena  situação  em  que  tinha  posto  a  vista. 
— Mais  para  diante,  quantas  manhaãs  c  tardes  pas- 
sei assentado  ao  pé  dos  bellos  castanheiros,  naquel- 
le  valle  pequeno  dito  des  Charmettes,  para  onde  a 
leirbrança  de  João  Jacques  Ilousseau  me  allrahia  e 
onde  me  demorava  por  sympathia  que  me  suscita- 
vam suas  meditações  e  desvarios  ,  suas  desgraças  e 
seu  alto  eni,enho  ! —  Assim  me  aconteceu  com  ou- 
tros muitos  escriplores  ou  homens  celebres  ,  cujos 
nomes  ou  escríptos  me  abalavam  fortemente  :  quiz 
estuda-los  ,  conheec-los  nos  logarcs  ,  que  lhes  de- 
ram ou  berço  ou  inspirações  ;  equasi  sempre  o  lan- 
ço de  vista  intclligentc  descobre  analogia  secreta  c 
profunda  entre  a  pátria  c  o  varão  illustre  ,  entre  a 
scena  e  o  actor  ,  entre  a  natureza  c  o  talento  que 
esta  creára  c  inspirara.  —  O  mesmo  A. 


Diz  que  as  lebres  ,  como  gente  y    ■ 

Um  dia  conselho  houveram  .      • 

Por  não  viver  tristemente  . 

E  afogar-se  de  repente  '  <. 

Todas  juntas  resolveram.  '  -■.'■'. 

Duas  raãs ,  como  sohiam  ,  ,  C: 

Junto  ao  charco  eram  pastando 

Adonde  as  lebres  corriam  , 

E  de  medo  do  que  ouviam 

Vão-se  110  charco  lançando. 
Uma  lebre  mais  ladina  , 

(Jue  isto  viu  .  leve-se  quedo, 

E  grilou  pela  campina  : 

—  Tende  mão  ,  gente  mofina  , 

Que  inda  ha  raãs  que  vos  tem  medo. 

D.  Franc.  M. — Çamfonha  d'Eut.  Cari.  2. 


Bnm  merecem  o  somtio  da  noite  os  que  aproveitam 

utilmente  as  horas  do  dia^ 

(•)     F.illa  lias  oliveira»  do  horto  de  Getliseuiani ,    que  .\ 
pia  crciiçu  jul^a  do  tempo  de  Christo. 


90 


o  PANORAMA. 


289 


-   ;Í 


XAUFENBUaG. 


L"ma  lenda  do  Rue.no. 

A  SEGCNDA  calaracta  do  Rheno  (1),  menos  estupen- 
da que  n  do  canlão  de  SchaíThausen  c  situada  a 
perto  de  30  milhas  de  distancia  desta  ,  interrompe 
a  navegarão  do  famoso  rio  pouco  abaixo  da  povoa- 
ção de  Laufenburg  ,  no  canlão  de  Aargau  (2j  , 
onde  já  as  margens  alcantiladas  e  de  bruta  e  desi- 
gual penedia  vão  estreitando  o  leito  das  aguas  obri- 
í,'ando-as  a  correr  muito  mais  arrebatadas  ,  que- 
brando alem  disso  aveia  d'agua  os  penhascos  amon- 
toados e  os  bancos  de  escolhos,  ate  mais  adiante  a 
rápida  inclinação  do  terreno  as  precipitar  de  cer- 
ta altura  e  formar  a  nova  cachoeira  :  forçoso  é  na 
visinhança  desta  paragem  perigosa  descarregar  os 
liarcos  ;  e  próximo  da  povoação  está  lançada  a  pon- 
te ,  que  se  vè  no  desenho  acima.  O  Rheno  em  todo 
o  ssu  curso  é  pela  imaginação  popular  povoado  de 
entes  sobre-naturaes,  e  as  suas  margens  havidas  por 
scenas  de  successos  maravilhosos  ,  versões  ou  texto 
d'oulros  análogos  que  em  todos  os  tempos  e  em  lo- 
dos os  povos  acceitou  a  credulidade.  —  No  sitio 
que  apontámos  voga  a  tradição  da  fadaLore,  e  que 
é  na  substancia  a  mesma  que  o  conto  de  Melusina 
inserto  em  o  nosso  vol.  o.°  —  O  livro  ,  nítido  e 
adornado  de  bellas  gravuras  em  aço,  intitulado  — 

(1~)  A'iJ.  sobre  este  rio  a  pag.  9  do  volume  1."  desta 
.-•-rie. 

(i)  A  que  mais  creral,  porem  corruptamente,  chamam 
Argovia.  Aar?au  significa  província  ou  districlo  do  Aar , 
u  qual  i  um  rio  que  atravessa  o  cantão  suisso  a  que  dá  no- 
me .  e  desemboca  no  Rheno. 

Sete.ubro  16—1813. 


Sagas  :  Icgrndcs  des  borih  du  Rhin  ,  é  a  compilação 
dessas  historias  de  prodígios  e  aventuras  phanta- 
siadas.  Delle  tomaremos  a  seguinte  para  exemplo. 
No  anno  de  1400,  Colónia  era  assolada  pelo  con- 
tagio voraz  e  rápido  ,  que  ceifava  innumcraveis  vi- 
das ,  crescendo  a  tão  subido  numero  a  mortandade 
que  não  havia  logar  nem  tempo  para  as  honras  fú- 
nebres, e  os  cadáveres  eram  arremeçados  aos  mon- 
tões para  as  valias  amplissimas.  —  Vivia  então  em 
iVeumarkt  uma  senhora  mui  respeitável  ,  por  nome 
llichmodis  ,  casada  com  o  fidalgo  proprietário  de 
.^.ducht ;  cahiu  enferma  ,  e  em  breves  dias  foi  do 
leito  transferida  para  a  tumba  ;  seu  marido  a  man- 
dou sepultar  no  cimilcrio  dos  santos  apóstolos.  Mas 
os  coveiros  repararam  cm  que  a  defuncta  levava 
n'um  dedo  ura  annel  d'ouro,  e  resolveram  despo- 
ja-la daquella  jóia.  Clandestinamente  e  alta  noite 
Ibram-se  ao  campo  dos  mortos  ;  e  levantada  a  ter- 
ra ,  aberto  o  eaixão  ,  ao  tomarem  o  dedo  para  ex- 
trahir  o  annel ,  o  supposto  cadáver  suspirou  pro- 
fundamente e  sentou-se  :  não  quizeram  mais  ouvir 
os  coveiros  ,  e  recobrados  algum  tanto  do  primeiro 
assombro  fugiram  sem  atlender  á  voz  supplicante 
da  resuscitada ,  c  deixando-a  em  sua  agonia  de- 
samparada (3). — A  senhora  Richmodis  sahiu  da 
cova,  tomou  a  lanterna  abandonada  pelos  coveiros, 
e  arrastou  os  pés  como  pôde  até  a  pousada  que  ha- 
bitara :  bateu  ;  porem  quando  á  pergunta  —  nquem 
bate   tão  rijo? «  —  respondeu   «a  dona    da    casa  a  — 

('ò)  Referem-se  casos  pasmosos  de  catalep^ia  ;  talvez 
que  a  algum  delles .  exaggerado  pela  tradição  oral ,  deves- 
se origem  este  conto. 

2."  Serie.  —  Vol.  II. 


•290 


O  PANORAMA. 


os  criados,  conhcccndo-lhe  a  voz  ,  amedroiitaram- 
sc  ,  e  cscondoiam-sc  em  seus  quartos  :  mas  a  se- 
nhora não  descontinuou  ,  até  que  seu  marido  acor- 
dando mandou  aos  criados  que  vissem  quem  a  des- 
lioras  tal  Inilha  fazia;  ao  que  elles  ,  transidos  de 
medo,  replicaram  que  era  a  alma  de  sua  ama,  que 
requeria  entrar,  c  que  não  iriam  ;í  porta  porquan- 
to havia  no  mundo.  O  amo  descompo-los  de  par- 
tos ,  mas  ,  como  lhe  certificassem  que  haviam  reco- 
nhecido a  voz  da  senhora,  foi  elle  próprio  á  janel- 
la  saher  quem  batia:  ao  divisar  um  vulto  embru- 
lhado n'um  lençol  arripiou-se-lhe  o  corpo,  capaci- 
tando-se  também  ouvir  a  falia  de  sua  esposa,  que 
soUicitava  entrada  :  depois,  cobrando  mais  animo, 
perguntou  de  novo.  «Quem  sois  vós?»  —  «Já  não 
conheces  a  voz  de  tua  mulher!» — tornou  o  vulto 
solnçanilo.  —  «Tão  impossível  c  seres  minha  mu- 
lher, como  que  os  meus  cavallos  soltando-se  saiam 
da  cavallieriça  e  subam  ao  palheiro.»  —  Inda  não 
eram  bem  acabadas  estas  palavras ,  já  se  ouvia  o 
estrépito  dos  cavallos  a  subirem  os  degraus  : — o 
senhor  d'Aducht  correu  a  abrir  a  porta  á  sua  espo- 
sa ;  e  recobrado  do  pasmo  deu-se  pressa  a  libera- 
lisar-lhe  quantos  soccorros  lhe  suggeriu  o  seu  des- 
velo ,  para  reanimar  a  miscra  senhora  ,  semi-morta 
de  frio  ,  e  restabclecò-la  completamente. 

Por  bom  numero  de  annos  viveu  Richmodis  de 
perfeita  saúde,  c  até  deu  á  luz  trcs  filhos  mui  nu- 
tridos e  sadios:  mas  desde  aquelle  successo  nin- 
guém a  viu  rir  ;  trabalhou  assiduamente  a  bordar 
uma  tapeçaria  cm  que  era  figurada  a  sua  resur- 
reição  ,  e  de  que  fez-  presente  á  igreja  dos  santos 
apóstolos.  Finalmente  ,  fallecida  em  idade  avança- 
da, a  depositaram  á  entrada  da  igreja,  junto  a  seu 
esposo,  cm  mausoléu  alto,  do  qual  sabiam  harmo- 
niosos sons  que  enlevavam  quem  lhe  prestava  at- 
tento  ouvido. 

A  historia  desta  rcsurreição  foi  pintada  á  entra- 
da da  porta  principal  do  templo,  para  perpetua 
memoria  ;  mas  ,  confundida  na  ruina  d'onlras  mui- 
tas antigualhas  da  cidade  de  Colónia  ,  essa  pintura 
está  meia  apagada  :  também  procurará  hoje  debal- 
de o  viajante  os  cavallos  de  páti,  que  para  lembran- 
ça do  caso  estavam  collocados,  segundo  reza  a  tra- 
dição ,  á  janella  do  celleiro  da  casa  que  habitara  , 
como  é  fama  ,  a  familia  d'Aduchl. 


MaM  EL    DE   SolSA   DE   StPtLVCDl. 

V. 

o  contraste. 

(l'(dc  (la  niiliirrzii  o  ilrscnnctrto  !  ) 
Lus.   Cant.  :!."  Est.  1:í!J. 

n.k  raça  dos  leões  a  mais  formosa  ,  a  mais  trucu- 
lenta c  a  mais  clássica  é  a  africana.  Desta  penínsu- 
la extensissinia  .são  indígenas  a  zclira  ,  o  mais  hei- 
lo  dos  quadrúpedes  que,  á  similhança  dos  anacore- 
tas do  oriente  ,  mora  nos  desertos  —  o  bippopotta- 
mo  ,  patriarcha  dos  rios  —  o  avestruz,  a  n.ais  gi- 
gantesca ,  c  o  pavão  ,  a  mais  nobre  c  a  mais  bella 
das  aves  —  a  baobab,  arvore-colosso,  tão  i)reslimo- 
sa  c  tão  serviçal  ao  homem  que  a  honrou  elle  com 
foros  de  cidadaã  em  vários  paizes  do  novo  mundo 
para  onde  foi  transplantada.  Não  cedem  no  niages- 
toso  a  nenhumas  do  globo  a  maior  parte  das  suas 
llorestas.  lUvalisam  com  as  mais  pomposas  de  Itália 


e  Ilespanha  as  do  Atlas  ;  e  tem  parecenças  cora  as 
do  meio  dia  da  America  as  do  Guiné,  Senegambia, 
Congo  ,  e  Nigricia.  Das  montanhas  o  Atlas ,  e  os 
montes  da  Lua  não  degradúam  da  linhagem  aristo- 
crática do  llimmalaya  e  Chimhoraço.  Dos  mctaes  o 
ouro  ,  que  pela  lavagem  se  extrahe  em  grande  co- 
pia dos  terrenos  de  alluvião  ,  compete  com  o  me- 
lhor de  outros  paizes.  Mas  a  natureza  tão  generosa 
alli  cora  as  substancias  inorgânicas,  as  creações  ve- 
getaes  ,  c  as  espécies  instinctivas ,  foi  mesquinha 
com  o  homem  e  avara  em  demasia.  Não  c  que  eu 
julque  inferior  ás  outras  pela  intclligencia  e  o  co- 
ração a  raça  africana ;  mas  alíirmo  que  aquella  ex- 
tensão de  desertos  areosos  —  que  aquella  cadeia  de 
altíssimas  montanhas  —  que  aquella  falta  de  gran- 
des golphos  e  mares  interiores  —  que  aquella  mui- 
ta distancia  que  separa  uns  dos  outros  os  grandes 
rios  navegáveis  ,  isolando  os  homens  e  as  povoa- 
ções ,  c  privando-os  de  dois  commercios ,  qual  del- 
Ics  mais  importante  ,  o  das  mercadorias  e  o  das 
idéas  ,  retém  n'uraa  condição  estacionaria  de  bar- 
baridade os  habitantes  deste  vasto  continoule  {*]. 
Dai  a  um  paiz  todos  os  ingredientes  da  prosperida- 
de ,  SC  ao  mesmo  tempo  lhe  negais  os  meios  de 
conimunicar-se  com  os  seus  membros  dispersos  ,  a 
civilisação  é-lhe  impossível.  Dclai-o  como  quizer- 
des  ,  o  homem  que  se  isola  é  riqueza  bruta  inca- 
paz de  aperfeiçoamento  o  preslírao  ,  e  mesmo  no 
centro  das  sociedades  policiadas  objecto  sem  valor : 
e  até  o  que  habita  em  paizes  livres  ,  se  não  se  en- 
costa aos  outros,  acaba  por  seropprimido  e  escravi- 
sado.  Verdade  profunda  que  convém  repetir  lodos 
os  dias  e  proclamar  a  todas  as  horas  aos  povos  to- 
dos da  nossa  Europa  !  Depois  da  natureza  e  a  arto 
lhes  ter  achanado  as  barreiras  que  podiam  obstar 
á  permutação  c  á  convivência  ,  que  lhes  resta  aos 
desherdados  para  o  não  ser  ,  e  aos  sem  amparo  pa- 
ra se  tornar  fortes,  senão  associar-se?  O  segredo  da 
força  e  da  fortuna  das  multidões  consiste  na  união. 
O  exemplo  antigo  ,  o  desengano  moderno  ,  o  farol 
dos  povos  noviços  na  carreira  social  ,  quereis  saber 
onde  eucoiilra-lo?  Na  Inglaterra  da  Europa  ,  na  In- 
glaterra da  America.  Jlas  estávamos  em  Africa. 
Voltemos  a  elia. 

É  malfadado  o  homem  na  Africa  pelos  estorvos 
que  contrapõe  ao  melhoramento  e  progresso  a  con- 
figuração do  terreno  e  doencia  do  clima  :  o  bem 
que  se  lhe  note  sua  feição  predominante  ,  nem  to- 
dos os  traços  são  homogéneos  na  phísiouomia  deste 
continente:  aqui  c  alli  apparecern  ,  do  longe  cm 
longe  ,  os  contrastes.  Vè-sc  o  Atlas  que  topela  com 
os  céus;  c  as  planícies  de  Çahara  que  se  abatem  e 
nivelam  cora  a  terra.  Ha  as  |ilanicies  do  Çahara, 
quadro  de  esterilidade  e  monotonia;  e  no  meio  del- 
ias os  oasisgraciosos,  ilhas  de  verdura,  que  sãoou- 
tros  tantos  vallcs  regados  por  sem  numero  de  nas- 
c(ntes  ou  pelas  aguas  do  céu.  lia  o  frio  glacial  e 
neves  eternas  no  cume  de  algumas  montanhas  ;  e 
ha  o  calor  ardente  da  tórrida  nos  plainos  ccntracs. 
Ha  nas  entranhas  da  grande  Elhiopia  o  anjo  exter- 
minador que  despede  da  espada  o  fot/o  mortal  das  fe- 
bres;  o  ha  na  paiz  montanhoso  de.Vquapim  o  ar  be- 
néfico c  puro  de  Itália  ,  o  no  dislricto  do  Cabo  de 
liiia-Esperança  uma  salubridade  de  clima  ,  como  se 
não  logra  maior  era  nenhum  logar  do  globo.  lia  a 
Abissiuia  fértil  e  a  costa  de  Ajan  nua  e  çafara.  Ha 
os  fuUos ,  raça  progressiva  ;  povo  tolerante  de  re- 
ligião, c  modelo  na  moralidade;  indolc  doce^  c  pa- 

(•)  ('hauio-lhe  or.i  conliiieiUe,  ora  peninsiil.i ,  porque 
lie  ambos  os  moilos  a  designam  os  geograiihos. 


o   PAINORAMA. 


291 


cifica  ;  lingtia  culta  ,  poclica  ,  eloquente  quanto  pu- 
de imaginar-se.  K  ha  os  chiiigallas,  lypo  de  iiiimo- 
bilidadc,  bárbaros  hoje  como  eram  ha  dois  mil  an- 
nos  ;  hal)itand()  de  verão  cm  Oorcstas  impenetráveis 
aos  raios  do  sol,  no  meio  dosrhinoccrontcs,  dos  bú- 
falos, dos  javalis,  das  panlhcras,  dos  leopardos,  c 
dos  leões  ,  rodeados  de  sapaes  onde  moram  o  cro- 
codilo, a  serpente,  o  escorpião;  de  inverno,  quan- 
do se  alagam  as  llorestas ,  procurando  guarida  nas 
cavernas  dos  rochedos  escarpados :  de  homens  len- 
do somente  o  rosto,  das  feras  o  vi\er  de  rapina  c 
de  sangue  ,  das  selvas  e  das  montanhas  a  grosseria 
e  a  rudeza. 

Inculta  e  selvagem  em  grande  parte  do  interior 
SC  mostra  Africa  ,  c  a  sua  civilisacão,  se  pôde  di- 
zer, verdadeiramente  demora  ás  extremidades  nor- 
te e  sul ;  assentada  sobre  a  ourella  de  terra  que  se 
banha  no  Jleditcrraneo  ,  e  cnthronisada  nesse  pro- 
montório que  deu  fama  eterna  ao  nume  portuguez. 


O  Cítbo  de  Boa-Espcrança. 

I\'áo  anhara  guando  iimajigiira 
Se  nos  mostra  no  ar ,  robusta  f  vúlitla . 
De  disforme  c  grandíssima  estatura, 
O  rosto  carregado ,  a  barba  esquálida : 
Os  ol/tos  encorados  ,  e  a  postura 
ilcdonha  e  má ,  c  a  cor  terrena  e  pallida , 
Cheios  de  terra  ,  e  crespos  os  eabellos , 
A  boca  negra,  os  dentes  amarei/os. 

Lus.  Cant.  5.°  Est.  .'i9- 


J?«  sou  aquellr  occulto ,  e  grande  Caho 
A  quem  chamais  vós  outros  Tormentório ; 
Que  nunca  a  Ptolomeu,  Pomponio,  Estrabo, 
Plinio ,  e  quantos  passaram ,  fui  notório : 
Aqui  toda  a  Africana  costa  acabo 
^'esle  meu  nunca  eisto  promontório , 
Que  para  o  polo  Antárctico  se  istendc, 
A  quem  vossa  ousadia  tanto  ojfi  ude. 
D."  — í':sT.  50. 


o  Cabo  de  15oa-Esperança  pertence  ainda  boje 
aos  portuguezes  tão  indispiitavchncnle  como  perten- 
ce a  Newton  a  thcoria  da  attracrão  ,  e  a  do  verda- 
deiro systema  do  mundo  a  Copérnico  e  a  Galileo. 
Por  conquista  e  pela  roda  incessante  das  revoluções 
perdc-se  a  terra  ,  e  ,  até  certo  grau  ,  o  mar  :  mas 
uma  propriedade  ha  ahi  inalienável  como  os  espí- 
ritos e  immortal  como  elles,  que  se  não  usurpa  — 
a  propriedade  da  gloria.  O  Cabo  de  Boa-Esperanra 
c  portuguez. 

Bem  sei  cu  que  em  vão  se  tem  procurado  para 
altestar  o  nosso  dominio  esse  padrão  S.Filippe,  que 
alli  assentou  líarthõlomeu  Dias,  o  descobridor:  tal- 
vez o  arrancaram  hollandezes,  talvez  o  arrojaram  as 
torrentes  ao  fundo  do  oceano.  Mas  ,  graças  a  Deus, 
a  memoria  das  gerações  é  mais  pcrcnne  que  o  bron- 
ze, e  hoje  os  títulos  e  heranças  não  se  escrevem  so- 
mente cm  pergaminhos  de  pedra. 

Postou  a  natureza  este  promontório  na  extrema 
da  Africa  meridional,  onde  elle  esta  entre  a  índia, 
a  America  do  sul ,  e  a  Australasía  ,  como  um  mar- 
co cortando  em  duas  ametades  a  estrada  que  vai 
da  Europa  ao  oriente  ;  estancia  de  repouso  aos  na- 
vegantes ,  entreposto  das  mercadorias  dos  dois  hc- 
mispherios,  verdadeira  chave  do  oceano  indio,  ata- 
laya  dos  mares ,   e  ponto  capital  para  o  senhorio 


dcllcs  ,  que  hoje  cresce  a  consideração  ainda  maior 
polo   ascendente   politico   c  commcrcial   que    agora 
mesmo  acabam  de  alcançar  na  China  as  armas  in- 
glezas.  Alli,   ao  norte  do  Cabo,   na  base  scpten- 
tríonal   de   três   montanhas  ,    a  Mcza  ,    a  Cabeça  do 
Leão,    c  o  Píncaro   do  Diabo,    se  edificou  uma  ci- 
dade ,    capital    de  uma  colónia ,    extensa    do   COO 
milhas  :   e  sabeis  vós  como  nessa  colónia  e  nessa 
cidade   tudo   demonstra   a  importância   do   sitio,    e 
declara    o   segredo    do   futuro    que   cst.i   reservado 
;is  sociedades?  Enlr.ii  ,   c  vereis  o  mundo  desenha- 
do  em   pcíjueno  mappa.   \  éreis  as  physionomias , 
os  costumes  ,   c  os  trajos  de  todos  os  povos  ,  as  re- 
ligiões de  todos  os  paizcs  ,   as  producções  vegctacs 
de  todos  os  climas ,   não  trazidos  alli  accidcntal- 
menle  pelo  conimercio;   mas  indígenas,   naturali- 
sados ,    amigos,    irmãos,    abraçados,    confundidos 
naquella   pátria   coramum.   O  portuguez   e   o  bush- 
man  ,   o  hollandez  c  o  negro  ,   o  inglcz  e  o  caffre  , 
o  francez   e   o  hottentote   lá  nascem   e  vivem.   Alli 
desabrocha  ,   sem  nenhum  artificio  humano  ,  com  o 
mesmo  viço  e  bellcza  a  planta  da  zona  tórrida,   c 
a  das  zonas  temperadas,  e  crescem  as  fructas  todas 
dos  trópicos  e  da  Europa.  E  presumis  que   a  tanta 
variedade  de  producções  possa  bastar  uma  só  tem- 
peratura? Não  —  que  naquella  colónia  succcdcm-se 
o  gelo  dos  poios,  a  calma  do  equador,  a  primavera 
dos  climas  amenos  ,   e  o  inverno  tempestuoso  das 
costas  marítimas.   A  terra  varia  e  veste-se  de  pom- 
pas díffcrentes  em  duas  dilTerentes  quadras:  passa- 
das as  chuvas  do  outono  csmalta-se  de  assucenas  , 
de  lyrios,   de  amaranlos ,   c   de  narcisos  ;   recende 
de  aromas  ;    c  encanta   os  olhos  pela  magcstade    de 
umas  ,   pelo  mimo  de  outras  ,    e  pelo  matiz  variado 
de  tantas  flores.   Nas  outras  estações  outros  grupos 
não  menos  magníficos  enchem  os  campos  de  formo- 
sura  c  os  homens  de  alegria.   E  tão   fecundo  é   o 
torrão  ,  que  dos  vinhos  o  Madeira  ,  o  Stein  ,  o  Por- 
to ,   o  Pontac  ,   e  o  Constança   tão  precioso  ,  alli  se 
criara. 

Mas  se  deixarmos  a  cidade  ,  e  o  terreno  ao  su- 
doeste delia  ,  a  lavoura  e  as  vinhas  ,  encontraremos 
no  centro  de  descampados  pedregosos  a  stapelia  , 
o  saião  ,  a  herva  prata  ,  o  euforbio  ,  e  o  aloés  ;  al- 
gumas delias  levantando-sc  á  estatura  de  arvores, 
e  casadas  amorosameute  com  os  salgueiros  e  as 
acácias,  sombreando  as  margens  de  ribeiras  sem- 
pre cristalinas  e  opulentas.  A  leste  ,  fronteiros  á 
cidade  ,  verdejam  bosques  e  llorestas  em  que  se 
contam  talvez  oitenta  espécies  dificrentes  de  paus, 
alguns  delles  de  bclleza  incomparável.  Povoa-se  o 
ar  como  em  toda  a  colónia  de  uma  infinidade  de 
aves,  ricas  muitas  delias  de  harmonia,  de  cór , 
de  plumagem.  Amotacilla  annuncia  o  primeiro  ago- 
niar das  plantas;  o  cantor  da  primavera  o  dcsabro- 
Ihar  das  ar\  ores;  o  ampelo  golhelheiro  aponta  o  mez 
da  congelação  ;  a  emberiza  da  neve  apregoa  os  ri- 
gores do  inverno  ;  a  procellaria  do  Cabo  certifica 
os  navegantes  da  sua  chegada  a  elle  ;  e  a  procella- 
ria do  pego  adverte-os  do  temporal  que  se  approxi- 
ma  ,  indo  empoleirar-se  na  popa  e  proa  dos  navios. 
A  este  território  ,  talvez  o  mais  uotavel  do  mundo 
pela  abundância  c  diversidade  das  pioducções  ,  a 
este  quadro  tão  animado  e  extraordinário  pelo  pin- 
turesco do  sitio,  pelo  solemne  das  recordações,  o 
pelo  esmero  dos  homens,  quiz  a  natureza,  para  que 
lhe  não  faltasse  o  sublime  em  nenhum  género,  se- 
mea-lo  até  no  meio  do  horror.  Sobre  a  montanha, 
a  que  com  rasão  pozeram  nome  Píncaro  do  Diabo, 
se  formam  com  auxilio  do  sudoeste  essas  lem|iebla- 


292 


O  PANORAMA. 


«les  Ião  temerosas  aos  habitantes  como  aos  navega- 
dores. Quando  ellas  assomam  ,  a  cataihira  dos  as- 
tros infunde  espanto  e  terror  :  engrandecem  as  es- 
trellas  aos  olhos  do  espectador  consternado  ,  c  aífi- 
guram-se  andar  em  contínuas  e  violenlasoscillações: 
a  lua  parece,  convulsa  e  tremula,  querer  dcspe- 
gar-se  da  sua  orbita  :  c  os  planetas  tomam  uma  co- 
mo cauda  e  figura  pavorosa  similhanle  á  dos  come- 
las  ! 

Correi  o  districlo  :  onde  vos  não  appareccr  a  ar- 
te no  alinhamento  das  ruas  ,  na  symctria  dos  edifí- 
cios ,  e  no  primor  dos  jardins  ,  vos  apparccerá  a 
natureza  no  esplendor  da  vegetarão ;  onde  a  ve- 
getação se  callar  ,  nos  ermos  e  valics  estéreis . 
vos  compensará  na  magnificência  dos  quadros.  Su- 
bi ;is  serras  alcantis  :  asscnlai-vos  sobre  o  topo  da 
montanha  da  Meza  :  nm  soberbo  panorama  se  des- 
pregará diante  de  vós  :  a  cidade  vos  parecerá  um 
xadrez  ,  os  navios  botes  ,  as  ondulações  das  monta- 
nhas o  encapellado  dos  mares.  Se  sahirdes  do  distri- 
clo ,   temei  alongar-vos  muito,   que  se  o  fizerdes  e 


entrardes  na  Cymbebasia  ,  não  haveis  de  encontrar 
alli  nenhum  conforto  humano.  Se  tiverdes  fome  não 
achareis  que  comer,  nem  uma  raiz  sequer;  porque 
essa  terra  amaldiçoada,  coberta  de  collinas  d'arèa, 
e  armada  de  rochedos,  odeia  a  vegetação.  Se  ti- 
verdes sede  ,  não  achareis  agua.  Se  quizerdes  fal- 
lar  ,  não  encontrareis  uma  lingua  ou  um  vulto  de 
homem  para  responder-vos  ;  porque  alli  quasi  não 
ha  vesligio  de  creaturas  humanas.  Ouvireis,  sim, 
vozes  ;  mas  essas  vozes  serão  o  mugir  do  búfalo  ,  o 
uivar  do  lobo  ,  e  o  rugir  do  leão  ,  quasi  os  únicos 
senhores  daquellas  plagas  desoladas.  Para  qualquer 
lado  que  lanceis  os  olhos  ,  vereis  a  hnmanida<ie  e 
a  vida  em  anniquiiação  ,  c  o  próprio  mar  arrojan- 
do sobre  a  praia  despojos  da  morlc  —  ossos  de  tu- 
barões, e  cadáveres  de  baleias!  Fugi,  leitor,  fu- 
gi e  encaminhai-vos  depressa  para  a  terra  do  Na- 
lal  (::)  ,  onde  deixámos  os  naufragados  que  alli  es- 
tão ,  ha  um  bom  espaço,  a  esperar  |ior  nós. 

(Coníimta  r-se-lia) . 

A.  d' O.  Marreca. 


J     . 


AI.PHABETO  lilANVAIi  DOS  SUHBO-SIVDOS. 


Qi;estòes  de  prioridade  d'invenção  se  tem  levanta- 
do no  mundo  litterario  a  respeito  do  raetlindo  d'cn- 
sino  dos  surdos-raudos  ,  pcrtendendo  os  francezes  a 
gloria  para  os  seus  |)atricios  ;  e  muita  gente  ha  per- 
suadida do  que  ella  cabe  aos  abbades  ou  padres 
l/lipée  e  Sicard  ,  aliàs  zelosos  fautores  e  aperfei- 
çoadores  do  mcthodo.  Por  oulra  parle  os  nossos  vi- 
sinhos  peninsulares,  «ns  a  querem  dar  ao  liespanhol 
João  Paulo  BoncI  ,  outros  a  atlribuem  ao  P."  Pedro 
Poncc  ,  benediclino  ,  de  quem  diz  Feijoo  que  pelos 
annos  de  1570  a  loTS  já  linha  ensinado  alguns  sur- 
do-mudos. — Todavia  vchementcs  inducções  ,  e  de- 
cisivos testemunhos  niellcm  de  |)05sc  dessa  gloria 
ao  piirlufíiiez  Jacob  Rodrigues  Pereira,  que  [segun- 
<lo  um  nosso  respeitável  e  mui  sabedor  lilterato] 
sem  duviíla  foi  o  primeiro  que  cm  França  ,  em  Pa- 

(::)     Assim   clmniaila  do  dia  em   (|iin   a  dcscubriu   a  ai-  ] 
niada  de  Vascu  da  Oaina ,  no  anuo  de  1497.  j 


ris ,  exercitou  com  publica  utilidade  a  arte  deste 
ensino.  Vem  a  favor  de  Pereira  a  aucloridadc  de 
Andrcs  na  Ilisloria  de  Ioda  a  Uttcratura  ,  c  as  mais 
citadas  na  erudita  nota  pelo  supra  indicado  liltera- 
to conimunieada  ao  Museu  Portuense  [jornal  publi- 
cado em  1839];  da  qual  achámos  conveniente  to- 
mar o  seguinte  extracto. — 

«  Em  uma  obra  franceza  [que  temos  á  vista]  im- 
pressa em  Paris  cm  177G,  com  o  titulo  u  lustitu- 
(iim  dcs  soiirds  et  muets  par  la  voie  des  signes  mc- 
tliodiqxies  ,  era  12°,  sem  nome  de  auetor ;  mas  que 
conjecturámos  ser  do  próprio  abbado  TEpée,  a 
pag.  G  se  diz  :  — 

«Mr.  Enmud ,  Mr.  Pereira  porlngue:  ,  e  Ma- 
vdama  de  Santa  Roza  ,  religiosa  da  (Iriiz  ,  fo- 
nram  os  primeiros  ,  que  no  nosso  scculo  se  ap- 
«plicaram  á  inslrucção  dos  surdo-mudos ,  sem 


o   PANORAMA. 


2f)3 


«lerem   concerta Jo  enlrc   si   o  plano   de   suas 
«operações  ...  &c.  a 

O  escriptor  francez,  mais  amigo  da  sua  nação  do 
que  nós  ,  ás  vezes  ,  parecemos  ser  da  nossa  ,  põe 
em  primeiro  logar  a  Mr.  EniauU ,  postoque  logo 
diz  uquc  o  não  conhecera  nem  a  ncnlium  dos  seus 
discijmlos  ,  e  que  súmcnic  suubera  de  pessoas  inslrui- 
das  ,  que  ellc  sadsjazia  mui  bem  o  cargo  que  liavia 
tomado. » 

ISão  é  nosso  animo  tirar  a  Mr.  Ernaud  o  mere- 
cimento da  prioridade  ,  se  realmente  lhe  compele. 
Somente  notaremos  aqui  [porque  nos  parece  digno 
de  notar-se]  que  nem  a  Academia  H.  da  Scicnc. 
de  Paris,  na  sua  Historia  dos  annos  de  17i9  a 
17ol  ;  nem  os  sábios  Be  Mairan,  De  llu/Jon,  c  Fcr- 
rcin  ,  que  a  informaram  sobre  os  progressos  de  um 
íioiv)  ahotuin  de  Pereira  ;  nem  o  mesmo  I)c  Iluffun 
na  llist.  nat.  do  Homem,  dando  honrosos  testemu- 
nhos de  approvação  e  louvor  á  arte ,  que  Pereira 
exercitava  desde  17í(í  ,  dissessem  uma  só  [lalavra 
acerca  de  Mr.  Ernaud.  Ainda  mais  :  que  o  rei  de 
França  Luiz  15  ,  depois  de  ter  ouvido  ,  e  interro- 
gado os  diícipulos  de  Pcreirtt  ,  lionrasse  còIc  illiís- 
tre  portugucz  em  1731  cora  uma  pensão  de  1^8:000 
rs.  anuuaes  ;  que  passados  quatorze  annos,  em  17tío, 
lhe  fizesse  a  nova  graça  de.  o  nomear  seu  Interpre- 
te;  e  que  em  todo  este  tempo  não  apparecesse  .'//-. 
Ertiaud  a  vindicar  a  sua  preferencia  ,  ou  ao  menos 
a  sollicitar  ;is  mesmas  approvaçõcs  e  prémios  :  e 
que  só  muito  depois  fosse  «premiado,  e  tratado  pe- 
la Academia,  corno  inventor,  seguiudo-se  daqui 
grande  emulação  entre  os  dois  rivaes»  como  refe- 
re o  Sr.  ^'iana  de  Rezende  em  a  nota  ao  n."  3  do 
seu  Jornal  Mcdico-Chirurgico ,  que  publicou  em 
1833. 

Como  quer  que  seja  :  no  cap.  2  desta  mesma  obra 
se  faz  menção  do  Prngramma  publicado  por  Perei- 
ra em  1751  ,  sobre  o  methodo  do  seu  ensino;  e  no 
cap.  3  se  diz  que  Pereira  c  os  seus  discipulos  lhe 
davam  a  denominação  de  Dactylologia. 

O  escriptor  francez  emenda  o  nome,  e  julga  me- 
lhor que  se  diga-  Dacttjlolalia  ;  e  em  quanto  ao  me- 
thodo [que  aliás  confessa  não  lhe  ser  bem  conheci- 
do] pretende  refuta-lo  em  toda  a  obra  ,  mostrando 
a  cada  passo  ociíirae  que  [a  nosso  parecer]  lhe  cau- 
sava o  credito  de  Pereira  ,  e  comludo  reconhecen- 
do ,  que  entre  os  discipulos  do  illustro  portuguez 
«se  achavam  alguns  em  estado  de  compor  obras»  e 
que  «Mr.  de  Saboureux  de  Fontenai,  surdo-mudo  de 
nascimento ,  e  um  dos  alumnos  de  Pereira ,  daria 
disto  completa  demonstração  ,  se  fizesse  imprimir  as 
suas  próprias  prodv.cçõcs.  »  — 

Chama-se  alphabeto  manual  uma  serie  de  postu- 
ras ou  figuras  diversas  que  a  mão  toma  para  repre- 
sentar uma  por  uma  as  Icttras  do  alphabeto  ,  como 
representa  a  nossa  gravura  ,  na  qual  em  a  primeira 
casa  se  vè  que  com  os  siuco  dedos  se  representam 
as  vogaes  ,  e  em  as  outras  casas  estão  successiva- 
mente  designadas  as  figuras  para  as  consoantes. 

Por  meio  deste  singelo  methodo  .  dactylologia  ou 
linguagem  dos  dedos  ,  podem  significar-se  e  escre- 
ver se  não  só  as  palavras  e  phrases  ,  mas  até  dis- 
cursos ;  adquire-se  facilmente  o  uso  em  poucos 
dias.  —  Nem  sempre  6  necessário  formar  phrases 
inteiras  ,  a  voz  principal  basta  para  fixar  a  atten- 
ção  ,  e  um  gesto  natural  completa  o  pensamento. — 
\ão  deve  confundir-se  a  dactylologia  com  a  lingua- 
gem dos  gestos,  a  mimica,  a  verdadeira  linguagem 
dos  surdo-mudos :  a  primeira  só  é  uma  espécie  de 


escrever  mo  ar  que  dispensa  de  recorrer  a  lápis  ou 
penna  ;  esta  só  (igura  as  lettras  ao  passo  que  a  lin- 
guagem mímica  representa  as  idéas.  Com  o  gesto 
imitámos  a  forma  do  corpo,  os  seus  movimentos, 
todas  as  acções  ph)  sicas  ,  e  por  melaphora  os  actos 
inlollectuaes  e  moraes.  A  nossa  phjsionomia  refic- 
cto  aos  olhos  quanto  se  passa  em  o  nosso  interior; 
o  gesto,  animado  com  o  jogo  da  physionomia,  cons- 
titue  uma  linguagem  natural  ,  rica  ,  llcxivcl ,  enér- 
gica ,  que  se  presta  a  lodos  os  matizes  do  pensa- 
mento :  para  exprimir  as  paixões  não  ha  lingua  que 
possa  iguala-la  em  força  e  calor. 

Os  surdo-mudos  usam  uns  para  com  os  outros 
quasi  exclusivamente  da  expressão  mimica  ,  e  só 
recorrem  ao  alphabeto  para  os  nomes  próprios  c  vo- 
zes Icchnicas  didiccis  d'expressar,  por  um  gesto  es- 
pecial ;  para  com  as  outras  pessoas  valem-se  habil- 
mente da  dactylogia.  Por  este  meio  c  fácil  conver- 
sar com  qualquer  surdo-mudo,  com  tanto  que  lhe 
figurem  as  palavras  no  idioma  em  que  foi  instruído. 
Nas  cidades  dos  Estados-Unidos  americanos  é  tão 
commum  o  uso  deste  alphabeto  que  em  qualquer 
sociedade  o  surdo-mudo  ,  sem  lançar  mão  da  escri- 
pta  encontra  quem  o  allenda  e  entenda,  e  lhe  sai- 
ba responder  ,  diminuiiido-se-lhe  assim  a  desconso- 
lação resultante  do  seu  estado  physico. 

Desde  fevereiro  de  183 í  que  o  benéfico  instituto 
dos  surdo-mudos  nesta  corte  est.í  unido  aos  colle- 
gios  d'aluranos  da  Casa  Pia  ,  estabelecida  no  real 
mosteiro  de  Belém- 


Considerações  sohre  o  Curso  d' Economia  Politica  do 
Sr.  Miguel  Chcvalier. 


XII. 


O  C0M3IERC1O  externo  tem  causa  ,  /ini ,  e  resultados  : 
três  cousas  que  cumpre  distinguir  bem,  e  definir, 
para  evitar  os  erros  cm  que  ,  pela  confusão  e  ine- 
xacta apreciação  delias  ,  se  tropeça  a  cada  passo. 
A  causa  c  o  =  ííoh  oinnis  feri  omnia  tellus ^^nem 
todos  os  climas  são  para  todos  os  productos,  nem 
a  todos  os  povos  ,  em  circumstancias  dadas  ,  é  pos- 
sível ou  convém  produzir  certos  artigos.  O  fim  ó 
gozar  cada  nação  dos  productos  que  não  tem.  Os 
resultados  são  muitos.  Obter  [o  que  é  um  ganho] 
baratos  e  bem  obrados  alguns  objectos  que  a  in- 
dustria indígena  não  poderia  produzir  senão  mui 
caros  e  mal  afeiçoados.  .\lcançar  outros  [o  que  <'; 
uma  vantagem]  que  ella  tinha  impossibilidade  aii- 
soluta  de  crear.  Abrir-se  ura  novo  mercado  á  pro- 
ducção  domestica ,  porque  c  patente  que  com  os 
artigos  desta  é  que  se  hãode  comprar  osíiue  ocom- 
mercio  traz  de  fura.  Vem  depois  ,  mas  secundaria- 
mente ,  os  lucros  do  negociante.  Estes  se  converte- 
riam em  perda  se  as  exportações,  que  são  os  gé- 
neros nacionacs  que  elle  transporta  para  trocar  pe- 
los estrangeiros  ,  não  fossem  inferiores  cm  valor  iis 
importações  que  são  os  géneros  estrangeiros  que 
traz  ao  reino  era  commutação  ou  actual  ou  futura 
dos  nacionaes.  Seriam  nullos  ,  pelo  mesmo  princi- 
pio ,  se  as  exportações  fossem  iguaes  ás  importa- 
ções. E  serão  tanto  maiores  quanto  mais  excede- 
rem as  importações  ás  exportações.  E  eis-aqui  por- 
que quanto  mais  as  primeiras  se  a\anlajarem  em 
valor  ás  segundas,  tanto  melhor;  que  é  a  mesma 
rasão,   mui  simples,  porque  convtm  ao  que  Irans- 


294 


O  PANORAaiA. 


porta  o  valor  de  10  trazer  em  troca  e  relorno  dcl- 
le  o  valor  de  20. 

Consisliiido  pois  os  lucros  líquidos  do  commercio 
externo  na  diflerença  entre  o  preço  por  que  se  ven- 
dem no  estrangeiro  os  artigos  exportados  c  aquelle 
por  que  se  vendem  no  paiz  exportador  os  artigos 
importados,  seria  para  desejar  o  conhecimento  ave- 
riguado dessa  diflerença  por  meio  da  publicação 
periódica  de  uma  tabeliã  de  exportações  e  impor- 
tações, que  comprehendesse  não  só  as  mercadorias, 
mas  o  numerário  ,  as  lettras  ,  os  créditos  e  as  pro- 
messas de  pagamento  relativos  a  este  trafico  que 
lodos  ellcs  se  saldam  em  ultimo  resultado  com  mer- 
cadorias. Esc  essa  tabeliã  contivesse,  alem  do  pre- 
ço por  que  correm  ou  são  vendidos  em  Portugal  os 
géneros  importados ,  o  preço  por  que  correm  ou 
são  vendidos  os  exportados  —  o  preço,  não  em  Por- 
tugal que  esse  para  pouco  presta  ;  mas  nos  paizes 
para  onde  \ão  expedidos  os  mesmos  géneros  —  bem 
individuada  era  tudo  o  mais  c  bera  exacta  ,  seria 
uma  excellcnte  directriz  económica ,  e  resolveria 
muitas  questões  commerciacs  e  muitos  problemas 
de  industria  interna,  ainda  hoje  cercados  de  névoas 
pela  falta  desta  luz  ;  falta  que  não  somos  nós  os  úni- 
cos ,  Iodas  as  nações  a  experimentam  ,  porque  to- 
dos os  seus  ensaios  nesta  matéria  tem  sabido  im- 
perfeitissimos. 

Desta  explanação  sobre  a  theoria  do  commercio 
externo  quero  cu  deduzir  não  só  quão  differentc  ó 
a  natureza  do  que  fizemos,  senhores  do  Brasil,  pa- 
ra o  que  hdjc  nos  é  dado  fazer  sem  aquclla  posses- 
são ;  mas  também  quacs  são  as  condições  únicas 
cora  que  ,  no  estado  presente  ,  nosso  e  do  mundo 
coramercial,  poderemos  continuar  este  nobre  e  pro- 
fícuo oííicio  de  mercadores. 

Anteriormente  o  nosso  negociar  era  em  grande 
parte  assim.  Commutavamos  as  mercadorias  da  Ásia, 
não  portugucza  ,  com  as  mercadorias  de  outras  na- 
ções :  commercio  de  transporte.  Commutavamos  os 
géneros-  do  Lrasil  —  que  era  nosso,  mas  que  dei- 
xou de  o  ser  —  parte  com  géneros  de  Portugal  [e 
atéqui  era  commercio  de  cabotagem]  :  e  na  maior 
parte  com  artigos  estrangeiros,  dos  quacs  uns  eram 
para  lá  transportados  licitamente,  outros,  com  mas- 
cara e  scllo  de  portuguczcs ,  ]ior  contrabando  :  e 
nessa  parte  era  commercio  de  circuito. 

Era  na  realidade  em  grande  parte  um  commer- 
cio de  transporte,  e  quanto  o  era,  no  que  toca  ao 
Itrasil  ,  tinha  mais  de  externo  que  de  cabotagem. 
Perdido  o  Brasil  ,  desde  então  esse  mesmo  que  ti- 
nha natureza  de  cabotagem  colonial  ,  se  transfor- 
mou ,  e  por  essa  circumstancia  é  que  cu  tenho  de- 
nominado externo  a  todo  esse  commercio. 

Mas  a  propriedade  ou  impropriedade  do  vocábu- 
lo pouco  importa  ,  quando  fica  exposto  o  ponto  de 
vista  em  que  olhei  o  objecto  :  a  influencia  desse 
commercio  que  fazíamos,  sobre  a  riqueza  nacional, 
é  que  releva  apreciar. 

Aquelle  que  manejávamos,  trocando  as  merca- 
dorias de  nações  estranhas  pelos  jirodurtos  de  ou- 
iras  nações,  claro  está  que  não  aproveitava  á  nossa 
industria  domestica  senão  em  quanto  se  fazia  em 
vasos  nacionacs  ,  porque  então  essa  [lorção  do  capi- 
tal destinado  ao  (ingaiucnto  do  frete  ,  e  conslrucção 
diis  navios  se  dislribnia  por  um  certo  numero  de 
trabalhadores  produclivos  do  reino.  O  contrario  se- 
ria ,  SC  os  vasos  não  fossem  uacionnos  ;  porque  nes- 
se caso  se  repartiria  por  trabalhadores  estrangeiros 
o  que  havia  de  ser  pelos  do  paiz  ;  e  o  capital  don- 
de subissem   esses  quiidiões   se  empregaria   cm  be- 


neficio da  industria  alheia  ,  subtrahido  á  nacional 
em  detrimento  da  mesma.  Os  lucros  líquidos  do 
negociante  desse  trafico  também  não  utilisariam  á 
nação  senão  em  quanto  fossem  empregados  na  sua 
agricultura  ,  nas  suas  fabricas  ,  ou  no  seu  commer- 
cio externo  directo  ,  entrando  nas  transacções  co- 
mo elemento  de  permutação  os  productos  indíge- 
nas. 

O  commercio  que  manejávamos,  trocando  os  pro- 
ductos do  Brasil  com  os  de  outras  nações ,  alimen- 
tava ,  mais  ou  menos  ,  a  industria  brasileira  ,  e  só 
podia  fomentar  a  da  metrópole  ,  verificadas  as  cir- 
cumstancias  e  condições  que  dissemos  a  favoreciam 
sob  o  commercio  meramente  de  transporte. 

E  aquelle  que  fazíamos,  trocando  os  productos 
do  Brasil  pelos  da  metrópole  ,  animava  ,  ou  mais 
depressa  tendia  a  animar  a  industria  da  metrópole: 
mas  de  feito  mui  pouco  ou  nada  contribuiu  para  o 
adiantamento  das  nossas  fabricas  ,  segundo  mostrou 
a  experiência.  E  porque?  Porque  os  nossos  fabri- 
cantes, por  caros  e  mal  obrados  que  fossem  os  seus 
artigos,  certos  do  consumo  exclusivo  no  Brasil,  dor- 
miam ,  como  já  notei ,  bybernavam  no  meio  da  ac- 
tividade e  progresso  das  fabricas  europcas.  Como 
as  fabricas  a  marinha  mercante  podia  também  dor- 
mir ,  e  ser  bem  ronceira  ,  porque  o  monopólio  as- 
segurava-lhe  que  não  encontraria  no  oceano,  proa 
ao  Brasil ,  rival  que  a  incomraodasse  ou  a  compe- 
tisse. 

Era  portanto  esse  ,  considerado  na  sua  totalida- 
de, um  commercio  que  em  parte  corria,  estranho 
inteiramente  á  producção  da  metrópole,  e  aos  ar- 
tigos da  sua  industria  ;  cm  parte  se  não  fundava 
nem  dependia  dos  progressos  dessa  producção  ou 
do  aperfeiçoamento  dessa  industria.  Não  se  basea- 
va pois  em  nenhum  estatuto  ,  em  nenhum  princi- 
pio, em  nenhum  agente  económico  :  fuudava-se  nes- 
sa prerogaliva  proficua  a  outras  nações  que  a  sou- 
beram utilisar,  fatal  a  nós  que  a  desaproveitamos, 
c  convertemos  em  damno  —  na  prerogaliva  do  mo- 
nopólio. 

Eu  desci  a  esta  analyse,  incorrendo  até  em  re- 
petições ,  jjara  concluir  que  cessando  o  monopólio 
e  também  as  circumstancias  excepcionaes  era  que 
então  se  achava  o  mundo  ,  o  nosso  commercio  ex- 
terno não  pôde  hoje  continuar  estacionário  como 
arte  ,  independente  da  producção  domestica  como 
agente  de  trocas,  estranho  ao  aperfeiçoamento  des- 
sa producção  como  instrumento  de  progresso  e  in- 
centivo á  divisão  do  trabalho  ,  alheio  ao  adianta- 
mento da  nossa  marinha  mercante  como  industria 
e  vehiculo  de  productos.  Hade  ser  o  inverso,  com- 
pletamente o  inverso  do  que  foi.  Hade  appoiar-se  , 
medir-se  ,  accommodar-se  ,  limitar-se  ,  cstender-se 
segundo  a  capacidade  da  producção  nacional ,  que 
é  verdadeiramente  o  seu  leito  de  Procusto.  Have- 
mos de  jiroduzir  muito  se  quizermos  dar-lhe  gran- 
de margem.  Havemos  de  fabricar  e  sobretudo  agri- 
cultar com  perfeição  e  pouca  despeza  se  quizermos 
acrescentar-lhe  os  ganhos.  Havemos  de  nmlliplicar 
e  baratear  os  nossos  transportes  marítimos  ,  se  pre- 
tendermos que  alem  de  fecundo  seja  nacional.  Com- 
munícações  fáceis.  Machinas  muitas.  Capitães  gi- 
rando. Instituições  de  credito  que  os  multipliquem. 
Juros  que  não  sejam  enormes.  Fabricas  bastantes, 
líoleações  as  mais  ;  e  no  torrão  mais  fecundo,  me- 
lhor. Lespezas  juiblicas  que  não  pequem  por  exces- 
sivas ou  inúteis.  Tributos  que  não  embarguem  o 
desenvolvimento  ás  faculdades  vilães  do  paiz.  Na- 
vios bem  construídos  ,  bem  manobrados ,  equipados 


o  PANORAMA. 


29í 


cora  economia ;  é  o  auxilio  que  reputo  mais  ade- 
quado ao  nosso  commercio  externo. 

SacrKicio  de  uma  industria  por  outra.  Derrota 
ao  fabricante  c  victoria  ao  vinlialoiro.  Morle  ás  ar- 
tes da  cidade,  c  vida  ás  artes  do  commercio.  (luer- 
ra  ao  creador  das  laãs,  e  paz  ao  produclor  da  uva. 
Favor  aos  artigos  de  fabrico  alheio  ,  e  ódio  ás  ma- 
térias primas  de  casa  e  de  fora.  Comi)inações  fun- 
dadas sol)rc  o  conHicto  perpetuo  das  classes  indus- 
triosas umas  com  as  outras,  da  terra  com  as  nia- 
chinas,  dos  produclos  de  um  terreno  com  os  de 
nutro  ,  das  licbidas  espirituosas  cora  o  pão  do  ope- 
rário c  do  artista  —  por  muito  que  se  pai  lêem  com 
apparencias  plausíveis  não  podem  redundar  senão 
cm  mina  geral  da  nação,  e  proveito  —  mas  provei- 
la  temporário  —  do  estrangeiro.  A  constituição  de- 
feituosa da  sociedade  assaz  discordou  já  os  interes- 
ses de  seus  membros ,  sem  ser  necessário  que  novo 
fermento  veníia  irritar  esta  hostilidade  radical.  A 
habilidade  politica  c  a  económica  cifra-sc  hoje  no 
mitigar ,  o  que  se  possa  ,  a  fricção  desses  iutcres- 
ses. 

Passo  ás  linhas  de  communicação  raaritima. 

Pódc  um  individuo  sem  inconveniente  ecom  pro- 
veito até  em  vez  de  construir  fretar  embarcação  pa- 
ra a  si  se  transportar  e  aos  seus  géneros.  Lm  paiz 
não  pôde  sem  perda  de  interesses ,  e  sem  damnos 
de  oulra  ordem  que  não  ó  minha  intencãa  invosti- 
i'ar  ,  fazer  em  vasos  alheios  todo  ou  a  maior  parte 
lo  seu  tráfico  externo.  O  fabricante  que  em  logar 
«le  as  ter  próprias,  toma  machinas  de  aluguel,  e  o 
povo  que  freta  era  vez  de  armar  á  sua  custa  ma- 
■  binas  de  locomoção  raaritima  ,  desherdam-se  am- 
'  s  —  um  de  parte  do  beneficio  das  invenções  me- 
rhanicas,  o  outro  d'uma  boa  parte  d'aquelle  logra- 
doiro  universal  c  estrada  incomparável  que  a  mu- 
nificência divina  legou  ás  nações  —  o  mar  !  O 
c  immercio  nacional  que  se  transporta  em  navios 
estranhos  priva-se  da  potencia  do  vapor  ,  do  movi- 
nienlo  das  ondas,  e  do  impulso  dos  ventos,  e  re- 
nunciando aos  dons  gratuitos  do  céu  e  d.l  terra  , 
vi-se  andar  como  caplivo  por  aquelle  mesmo  ocea- 
no ,  ultimo  refugio  da  liberdade  opprimida.  Avil- 
la-se  á  face  da  humanidade  e  da  civilisação  o  povo 
que  esquecido  das  tradições  da  sua  gloria  niariti- 
raa  cursa  a  vastidão  das  aguas  —  como  um  fardo 
de  fazenda  e  um  cadáver  sem  movimento  —  por  in- 
dustria e  esforço  alheio. 

Se  o  império  do  oceano  nos  fugiu  para  nunca 
mais  voltar,  ao  menos  não  seja  tanta  a  degradação 
nos  que  descendem  dos  navegadores  illuslres  do  sé- 
culo lo  c  1(>  que  outros  raareem  c  mercadejem  por 
clles.  Precisámos  de  promover  a  nossa  marinha  mer- 
cante. O  plano  mais  efllcaz  a  consegui-lo  sou  cu  in- 
competente para  o  apontar:  mas  julgo  que  posto  a 
despojássemos  do  favor  dos  dilTerenciaes,  ainda  nos 
restam  outros  meios  de  aviventa-la  ,  e  entre  elles  a 
protecção  á  Companhia  das  pescarias  ,  por  um  la- 
do ;  e  por  outro  a  frequência  nas  carreiras  lon- 
gínquas. Em  geral  pôde  dizer-se  que  os  melhora- 
mentos mais  capitães  de  que  cila  carece  ,  se  hão- 
dc  introduzir  na  arle  do  coustructor  nacional  e  no 
regimento  e  economia  da  navegação ,  donde  re- 
sultem barateza  e  rapidez  de  transporte,  dimi- 
nuição do  risco  do  navio  e  da  carga.  AqucUes  mes- 
mos que  parecem  insignificantes  são  de  grande 
monta  e  iniluencia  no  commercio.  É  notório  que  a 
ligeireza  e  melhor  qualidade  dos  cabos  permittiam 
aos  hollandczes  manobrar  os  seus  navios  com  me- 
nos custo  que  os  outros  povos,  eque  desta  circums- 


tancia,  á  primeira  vista  pouco  altcndivel,  procedeu 
a  sua  preponderância  maritinia  por  espaço  de  dois 
séculos.  Aos  cabos  de  linho  que  seguravam  as  an- 
coras succederam  as  cadeias  de  ferro  ,  que  são  ho- 
je muito  usadas,  eque,  sobre  outras  vantagens  , 
portam  com  maior  facilidade.  Outros  melhoramen- 
tos haverá  que  quadrem  á  nossa  marinha  mercante, 
e  julgo  que  para  se  formar  juizo  seguro  dos  mais 
idóneos,  e  ao  mesmo  tempo  da  inferioridade  em  que 
vamos  neste  ramo  tão  <lilticil  ,  o  melhor  guia  seria 
um  inquérito  geral  sobre  clle. 

Outra  falta  ,  assaz  grave  ,  c  uma  das  mais  cra- 
pecivcis  ás  nossas  exportações,  c  a  falsificação  de 
alguns  géneros  que  exportámos.  Por  milagre  seu 
multiplicam-se  as  pipas  de  vinho  do  Porto,  de  pri- 
meira qualidade  ;  mas  na  mesma  proporção  desce 
o  preço  e  o  credito  deste  primoroso  liquido.  A  adul- 
teração pratica-se  no  reino  ,  e  fora  dclle  ,  nos  pró- 
prios armazéns  de  Inglaterra.  Esta  fraude  que  co- 
meça castigando  severamente  aos  que  a  não  comcl- 
tcra ,  acaba  por  ser  nociva  aos  próprios  delinquen- 
tes, o  o  resultado  da  culpa  de  alguns  vera  a  abran- 
ger a  todos  os  prodiictores  c  negociantes  do  mais 
valioso  artigo  que  levámos  aos  mercados  estrangei- 
ros. Como  a  contrafacção  avilta  o  género  c  o  seu 
valor  ,  os  que  o  conservam  genuiuo  vèem-se  ,  em 
muitos  casos  ,  obrigados  a  falsifica-lo  para  ganhar 
na  quantidade  aquillo  mesmo  que  perdera  na  qua- 
lidade ,  e  de  desvio  em  desvio  ,  recrescendo  a  oc- 
casiãn  por  uma  quebra  de  fé  mercantil  succede  vir 
a  arruinar-se  o  mais  rico  monopólio  que  possuc  es- 
te paiz  :  por  criminoso  abuso  do  homem  acontece 
assim  que  venham  a  ser  estéreis  os  raios  solares 
com  que  a  natureza  opulenlou  o  torrão  do  Douro. 
Não  é,  como  outras,  esta  burla  commcrcial  da  na- 
tureza daquellas  ,  que  prejudicam  a  poucos  ,  c  se 
corrigem,  no  mercado  nacional,  desafreguezando 
um  vendedor  fraudulento  ,  e  frequentando  mais  , 
com  lucro  delles.  os  que  o  não  são  :  aqui  o  vende- 
dor é  a  nação  ,  não  um  individuo;  o  descrédito  aí- 
fecta  o  género  ,  não  é  só  aos  particulares  que  o 
adulteram  ;  padece  o  paiz  exportador  todo  elle.  E 
como  a  liberdade  não  tem  em  si  providencias  con- 
tra esle  mal  ,  é  forçoso  que  o  nação  que  o  soffre  as 
vá  buscar  a  oulra  origem  ,  e  procure  um  meio  que 
não  dê  de  rosto  o  fira  de  encontro  ao  p.in  ;  ao  fim 
que  é  a  prosperidade  ,  a  qual  nestas  ciscumstancias 
se  não  pôde  conseguir  por  meio  da  liberdade. 

Para  prover  a  este  grave  damno  não  nos  resla 
senão  recorrer  a  leis  que  o  acautelem  no  reino  ,  e 
a  regulamentos  consulares  ou  intcrnacionaes  que  o 
previnam  e  emendem  fora  dellc ;  executar  os  vigen- 
tes;  e  promulgar  os  que  faliam.  Como  no  vinho,  d 
sentiríamos  já  no  trigo  ,  se  do  ullimo  fizéssemos 
exportações  consideráveis  ;  porque  já  ha  exemplo 
de  termos  illudido  a  confiança  do  comprador  es- 
trangeiro ,  e  nas  remessas  faltado  dolosamente  ás 
amostras,  e  á  nossa  palavra  ,  com  injuria  que  o  é 
da  honra  ,  e  o  pôde  ser  do  iuteresse  nacional. 

fCniichiir-se-haJ. 
Â.  d' O.  Marreca, 


Curso  de  Direito  Natural  Sfc.  por  V.  Ferrer  Kclr, 
Paiva.  —  Coimbra  1843  —  l  vol.  S.° 


Centbo  e  instituição  principal  do  ensino  superior  no 


296 


O  PANORAMA. 


nosso  pair,  a  universidade  de  Coimbra  offerece  nas 
phascs  da  sua  esisteucia  um  dos  meios  mais  segu- 
ros para  podermos  avaliar  os  progressos  ou  deca- 
dência das  sciencias  e  das  lettras  em  Portugal.  Em 
todos  os  tempos  ,  desde  a  sua  fundação  até  hoje  ,  c 
])or  cila  que  a  historia  se  tem  regulado  para  ava- 
liar o  estado  da  iutellectualidade  nacional.  E  ,  de 
feito  ,  c  daquelle  1'uco  de  luz  que  por  cinco  séculos 
se  tem  derramado  a  illustração  para  todos  os  angu- 
les de  Portugal ,  illustração  boa  e  verdadeira  por- 
que cm  harmonia  sempre  com  o  estado  c  precisões 
da  nossa  sociedade. 

Sejam  quacs  forem  as  mudanças  que  a  nova  or- 
ganisação  politica  do  paiz,  as  suas  novas  necessi- 
dades ,  c  as  doutrinas  mais  esclarecidas  do  século 
actual  nos  obriguem  a  fazer  no  systcraa  do  ensino 
publico,  é  minha  convicção  profunda  que  a  univer- 
sidade ,  longe  de  se  dever  guerrear  com  o  intuito 
de  a  anniquilar  ou  pelo  menos  de  lhe  diminuir  a 
importância  ,  se  hade  nugmcntar  c  completar  ,  con- 
vcrtcudo-se  em  verdadeiro  santuário  da  scicncia  no 
mais  alto  e  puro  sentido  destas  palavras.  Quanto 
lual  ella  pôde  produzir — c  ó  incontestável  que  no 
estado  actual  tia  instrucção  publica  aqiiella  acade- 
mia pôde  gerar  ,  e  talvez  gera  já  ,  graves  damnos 
sociaes  —  tudo  isso  nasce  não  da  essência  do  insti- 
tuto ,  mas  da  falta  de  philosophia  politica  que  tem 
presidido  a  todas  as  reformas  até  agora  feitas  no 
ensino  publico.  Quando  a  uuiversidade  representar 
tanto  em  extensão,  como  em  intensidade,  o  máximo 
grau  de  progresso  scicntifico  ;  quando  as  condições 
lilterarias  exigidas  para  ser  inscripto  no  livro  dos 
alumuos  forem  taes  que  só  capacidades  eminentes 
possam  arrostar  com  as  dilliculdades  postas  á  fre- 
quência das  faculdades,  e  ainda  depois  disso  á  ac- 
quisieão  dos  graus  ;  então  o  influxo  daqut-llc  insti- 
tuto será  de  muitos  modos  benéfico  ,  e  as  únicas 
accusações  attendiveis  e  sérias  que  se  fazem  contra 
elle  cahirão  completamente  por  terra. 

1'osto  pertença  áquellcs  a  quem  incumbe  organi- 
sar  a  instrucção  publica  ,  estabelecer  por  via  da 
lei  esta  ordem  de  cousas  de  um  modo  fixo  e  posi- 
tivo ;  todavia  ao  alcance  dos  professores  está  o  ir 
aplanando  o  caminho  para  essa  gravíssima  reforma. 
São  elles ,  que  podem  trazer  pela  pratica  a  doutri- 
na ;  pelo  facto  o  preceito.  Posta  realmente  a  scien- 
cia  na  universidade  a  par  dos  conhecimentos  no 
resto  da  Europa,  o  mais  é  comparativamente  fácil, 
logo  que  haja  um  governo  que  entenda  o  verdadei- 
ro syslenia  d'cnsino  nacional  ,  em  relação  aos  inte- 
resses nioraes  e  niateriacs  da  nação. 

Muitos  dos  novos  professores  da  universidade  tem 
concebido  claramente  estas  doutrinas  e  avaliado  <i 
sua  importância.  Os  compêndios  sobre  diversas  ma- 
térias que  se  tem  publicado  em  Coimbra  nestes  úl- 
timos annos  são  disso  prova  cabal.  Elles  destroem 
os  preconceitos  arreigados  cm  muitos  espíritos  con- 
tra a  universidade. 

Estes  preconceitos  são  de  dois  géneros,  ambos  ri- 
dículos, tacanhos,  c  indignos  de  entendimentos  al- 
lumiados.  Segundo  uns,  com  as  cabellcíras  do  mar- 
qucz  de  Pombal  ,  com  as  abbatinas  ,  e  com  certos 
ademanes  de  uma  gravidade  estudada  c  de  lingua- 
gem oracular  ,  a  scicncia  dcsappareceu.  Professo- 
res mancebos  ,  cheios  de  energia  ,  de  vida  íntelle- 
clual  ,  de  amor  da  gloria  ,  c  \endo  diante  de  si  a 
imprensa,  que  hoje  tem  o  direito  de  os  julgar  , 
são  incapazes  de  conservar  c  augmentar  o  esplen- 
dor das  lettras  ,  porque  faliam  como  os  outros  ho- 
mens c  com  cllcs ,   porque  trajam  c  vivera  como 


toda  a  gente.  Esta  c  a  prcoccupação  dos  filhos  do 
século  passado,  prcoccupação  innocentc,  que  a  mor- 
te vai  diariamente  desfazendo  até  a  anniquilar  de 
todo.  Segundo  outros  a  universidade  é  iclUa  por- 
que é  anti(ja,  e  por  isso  incapaz  de  progresso;  ló- 
gica de  peralvilhos,  lógica  bruta  que  em  vez  de 
melhorar  o  que  é  susceptível  de  ser  melhorado,  o 
destroe  ,  sem  examinar  se  ahi  havia  alguma  cousa 
utíl  e  respeitável  que  aliás  se  não  pódc  supprir  ; 
como  se  a  nação  não  fosse  ainda  mais  antiga  que  a 
universidade  ,  e  se  para  a  elevar  á  grandeza  e  ci- 
vilisação  do  século  fosse  preciso  anuiquila-la  e  su- 
bstitui-la por  outra  nação  amassada  de  novo  barro. 
Estes  taes  suppõem  estabelecido  na  ponte  do  Mon- 
dego um  embargo  perpetuo  para  os  livros  ,  para  os 
instrumentos  scicntificos  ,  para  as  idéas  ,  para  tudo 
o  que  representa  actualidade  e  progresso  ,  porque 
fora  de  Lisboa  não  suppõe  possível  salvação  lilte- 
raría  ,  e  as  barreiras  da  capital  são  os  limites  do 
seu  orbe  cathedratico.  Simílhante  erença,  não  é  ínno- 
cente  como  a  dos  velhos  ,  é  absurda  ,  mas  perigo- 
sa. É  delia  que  nasce  em  boa  parte  a  guerra  len- 
ta ,  mas  tenaz  que  se  vai  alcvanlando ,  não  contra 
o  que  a  universidade  tem  de  mau  ,  que  essa  é  jus- 
ta e  legitima  ,  porem  contra  a  sua  existência  ,  o 
que  é  altamente  insensato. 

A  grande  resposta  que  a  universidade  tem  dado, 
e  me  parece  hade  continuar  a  dar,  são  as  prelec- 
ções dos  seus  professores,  os  seus  compêndios  e  li- 
vros. Não  creio  cegar-me  pela  amisade  se  asseverar 
que  nesta  lucta  grande  e  nobre  um  dos  campeões 
mais  distínctos  é  o  Sr.  Vicente  Fcrrer,  auctor  dos 
Elementos  de  Direito  das  Gentes  ,  e  que  este  anno 
acaba  de  publicar  o  seu  Curso  de  Direito  I\'atural 
segundo  o  estudo  aelual  da  seicncia.  Encarregado 
do  ensino  daquelles  diíTicultosos  ramos  da  scicncia 
que  tocam  por  um  lado  na  critica  da  rasão  pratica 
ou  philosophia  moral  ,  e  por  outro  na  jurisprudên- 
cia positivn  ,  o  Sr.  Ferrer  vencendo  os  embaraços 
que  lhe  offcrecia  a  gravidade  da  matéria,  e  ao 
mesmo  tempo  as  distracções  a  que  o  tem  constran- 
gido a  carreira  politica  em  que  por  vezes  o  lançou 
já  o  voto  dos  seus  concidadãos,  elaborou  e  redigiu 
no  meio  desses  embaraços  e  agitações  dois  compên- 
dios importantíssimos,  que  não  só  faliam  pela  uni- 
versidade ,  mas  honram  o  paiz  ,  que  pôde  gabar-se 
de  possuir  professores  dignos  do  século  cm  que  vi- 
vem ,  e  da  grave  missão  do  magistério,  que  lhes 
foi  confiada. 

Constrangido  a  seguir  nas  suas  prelecções  o  com- 
pendio de  Martiui — Positiones  de  Leyc  Naturali  — 
adoptado  pelo  Conselho  da  Faculdade  de  Direito, 
o  Sr.  Fcrrer  applicou-sc  principalmente  a  dois  fins: 
a  illustrar  as  obscuridades  frequentes  naquclle  ce- 
lebre escriptor ,  e  a  modificar  as  suas  doutrinas 
pelas  dos  mais  affamados  auctores  modernos  e  pe- 
los próprios  estudos  e  cogitações.  Assim  o  Curso 
do  Sr.  Ferrer  é  uma  espécie  de  commentario  per- 
petuo a  Marlini  e  ao  mesmo  tempo  o  resumo  subs- 
tancial das  opiniões  dominantes,  principalmente  na 
Alemanha  ,  paiz  que  por  via  de  regra  é  o  foco  de 
toda  a  sincera  c  verdadeira  scicncia.  ]V'uma  cpo- 
cha  cm  que  a  liberdade  chama  todos  os  cidadãos 
a  avaliarem  os  próprios  direitos  e  deveres;  o  Ijvro 
do  Sr.  Fcrrer  não  é  uma  obra  puramente  universi- 
tária. As  obrigações  ,  c  os  direitos  políticos  c  civis 
la  vão  assentar  na  jurisprudência  natural.  Importa 
conhecer  esta  para  conhecer  até  onde  se  estendem 
tanto  umas  como  outros. 

(A,  Herculano.) 


91 


o  PANORAJIA. 


297 


BUSTO  J>E  CANOVA. 


A  BREVE  noticia  do  celebre  Canova  ,  estampada  a 
pag  3o4  do  Tol.  S.°  que  publicámos  em  1S41,  ad- 
diccionaremos  agora  mais  algumas  particularidades. 
—  Vimos  como  se  desenvolveu  precoce  o  engenho 
de  tão  eximio  artista  ;  accrescentaremos  que  na  ida- 
de de  vinte  e  dois  annos  era  já  conhecido  como  au- 
ctor  das  estatuas  de  Orpheu  e  Euridice  :  o  grupo 
de  ícaro  e  Dédalo  rendeu-lhe  logo  uma  pensão  pe- 
cuniária estipulada  pelo  senado  veneziano.  Esme- 
rou-se  nos  seus  trabalhos  ,  para  obstar  a  corrupção 
áo  gosto  artístico,  diligenciando  reunir  o  estudo  da 
natureza  á  ideal  bellcza  dos  antigos,  o  que  mostrou 
sobejamente  no  Theseu  cavalijando  no  Minotauro  rein- 
cido. Da  apparição  dessa  obra  data  a  sua  fama  eu- 
ropea. 

Tendo  em  1798  sabido  da  pátria  ,  agitada  pelas 
guerras  e  revoluções  ,  com  o  intento  de  viajar  pela 
Alemanha  ;  quando  voltou  a  Roma  ,  nomeou-o  ins- 
pector geral  da  academia  de  bellas-artes  o  pontifice 
reinante  Pio  7.°,  dando-Ihe  ao  mesmo  tempo  o  grau 
de  cavallciro  romano,  e  fazendo-lhe  a  singular  hon- 
ra de  lhe  por  ao  peito  as  insígnias  desta  condecora- 
ção. Em  1802  S.  Santidade  facultou-lhe  a  permis- 
são de  passar  a  França  ,  onde  o  primeiro  cônsul , 
Buonapartc,  o  chamava;  e  na  capital.  Paris,  foi  li- 
songciramente  acolhido,  e  o  Instituto  recebeu-o  em 
o  numero  dos  sócios:  tomando  o  encargo  de  fazer 
um  busto  colossal  de  Napoleão ,  não  foi  tão  felix 
Setembro  23—1843. 


nesta  como  nas  obras  precedentes,  todavia  não  dei- 
xou de  obter  a  fita  da  legião  d'bonra. 

Outra  viagem  fez  Canova  á  França ,  mas  em  mui 
diíferentes  circumstancias,  e  quando  o  museu  fran- 
cez  ,  enriquecido  com  as  espoliações  coramcttidas 
em  quasi  toda  a  Europa  ,  fui  por  via  de  restituição 
despojado  da  maior  parle  das  preciosidades  que  as 
armas  Iriumphantes  de  Napoleão  lhe  tinham  consi- 
gnado. O  papa  dera  commissão  a  Canova  de  recon- 
duzir a  Roma  quantos  objectos  artísticos  haviam  por 
esse  tempo  sido  tomados  áquella  capital  do  orbe 
christão.  Desta  vez  partiu  com  o  titulo  c  caracter 
de  embaixador  do  pontifice  ,  o  que  deu  motivo  a 
que  os  francezes  ,  por  sua  natural  propensão  mole- 
jadora  ,  lhe  chamassem  emballeur ,  empacotador  , 
em  logar  de  ambassadeur  ,  embaixador  ;  porque  na 
realidade  ellc  foi  entrouxar  e  buscar  o  que  tinha 
sido  roupa  de  francezes. 

Dahi  a  pouco  tempo  dirigiu-se  a  Londres ,  onde 
Jorge  4.°,  então  príncipe  regente  ,  o  brindou  com 
uma  soberba  caixa  de  tabaco  guarnecida  de  brilhan- 
tes ;  desgostoso  porem  do  clima  voltou  em  breve 
para  a  Itália  ,  e  o  papa  lhe  deu  a  incumbência  de 
fazer  assentar  nos  respectivos  logares  as  obras  pri- 
mas que  acabavam  de  chegar  de  Paris.  Por  esta 
occasião  prestaram-lhe  as  maiores  honras  ;  a  aca- 
demia de  S.  Lucas  sabiu  a  recebè-lo  ;  e  o  summo 
poutiúce,   em  demonstração  do  quanto  estava  con- 

2>  Sewe.  —  VoL.  11. 


298 


O   PANORAMA. 


lente  delle,  na  solemne  audiência  que  lhe  concedeu 
era  5  de  fevereiro  de  1816  ,  teve  a  complacência 
de  lhe  entregar  por  sua  própria  mão  o  diploma  que 
attestava  ficar-lhe  inscriplo  c  iicme  em  u  livro  áu- 
reo do  capitólio.  A  final  foi  creado  jnarquez  d'is- 
chia,  com  a  renda  de  3:00G  escudos  romanos,  que 
despendeu  toda  em  favorecer  e  aninjar  os  alumnos 
das  artes ,  a  beneficio  das  quaes  praticou  outros 
muitos  actos  de  liberalidade,  como  dissemos  no  ar- 
tigo ,  que  no  começo  deste  deixátios  citado. 


Manuel  de  Solsa  dí;  S.:pí,lveda. 


VI. 


O  Calastrophc. 

Destrcidv  cora  o  destroço  completo  do  galeão  a  pos- 
sibilidade de  armar  embarcarão  dos  seus  fragmen- 
tos, convieram  ir  caminho  do  rio  de  Lourenço  Mar- 
ques ,  onde  esperavam  encontrar  navio  dos  que  to- 
dos os  annos  alli  costumavam  vir  de  Moçambique 
ao  resgate  do  marfim.  Mas  como  havia  muitos  fe- 
ridos e  doentes  ,  e  alli  tinham  agua  e  mantimentos 
que  salvaram  do  naufrágio,  pareceu  a  Manuel  de 
Sousa  demorar-se  n'aquelle  sitio  até  que  todos  sa- 
rassem ,  e  no  cmlanto  fortificar-se  ,  como  fez  ,  por 
cautella  com  tranqueira  de  arcas  e  pipas.  No  esta- 
do em  qne  todos  se  achavam  era  elle  o  qne  mais 
soffria  :  sofiVia  os  cuidados  e  amarguras  de  chefe  ; 
as  alUicções  de  pai  e  esposo,  e  esposo  de  tal  mu- 
lher como  D.  Leonor  ;  as  magoas  do  porluguez  ;  as 
jienas  intimas  de  liumcm.  Opprimido  da  gravidade 
das  circuraslancias  ,  do  extraordinário  da  situação, 
e  da  incerteza  do  futuro  não  tinha  um  momento  de 
descanso;  provendo  a  tudo,  pensando  em  tudo,  tra- 
balhando com  o  corpo  e  ainda  mais  com  o  espirito, 
Tigiando  de  dia,  e  levantando-sc  de  noite  Ires,  qua- 
tro vezes  a  rondar  o  quarto. 


Í7i)!a  inlcrrvpção. 


Os  viiilios  odorifiros. 


Crispas  isciimas  rriiuim  ,  í/iíc  no  interno 
Coração  morem  suhila  ah-iiria- 

Lis.  Ca.\t.  X    Est.  4."- 


N'uma  d'cssas  noites,  estando  o  piloto  e  o  mes- 
tre na  sua  l)arraca  que  tinham  ordenado  de  uma  vê- 
la  Tcliia,  e  uns  paus,  houve  entro  os  dois  um  dia- 
logo pouro  mais  ou  menos  nos  termos  seguintes. 

—  Grande  peccado,  irmão  André  Vaz  [André  A"az 
era  o  piloto]  nos  mclteu  nesta  desgraça  cm  que  nos 
Tcmos  :  e  o  peior  é  que  o  paguem  os  justos  c  os 
peccadores.  Deus  me  perdoe  c  me  livre  de  formar 
juizos  temerários  ;  mas  receio  que  aquella  morte. . . 
Infeliz  !  Ku  ouvi  com  estes  ouvidos  ,  c  só  de  pensa- 
lo  ainda  estremeço,  cn  ouvi  nas  mais  tardias  e  só- 
siuhas  horas  de  algumas  noites  das  qne  passámos 
em  tormenta  ,  uns  lamentos  que  não  eram  de  pes- 
soa viva  ,  mas  de  alma  de  finado  ,  e  a  voz  ,  de  que 
bem  me  recordo,  era  a  íua  —  a  sua  o  não  podia 
ser  outra. 

—  IlUisão,  mestre!  Eram  pios  de  algum  maça- 
rico. 

—  l'cior  cessa  1  Obrigais-me cntãQ  a rcTelar-ros  o 


que  não  queria.  Vi  com  estes  olhos  ,  ■^i  o  espectro 
ensanguentado  !  .  .  . 

—  Historia  !  Vistes  ....  O  que  vós  vistes  foram 
os  phantasmas  da  vossa  imaginação  aterrada  com  o 
perigo  da  tempestade. 

—  Tcnho-me  achado  em  muitas,  sem  mudar  de 
còr  ;  mas  em  nenhuma  em  que  houvesse  as  appari- 
ções  funestas  que  presenciei  nesta.    Sois  incrédulo! 

—  Incrédulo!  Ora  essa  I  Esíaes  zomljando.  Acre- 
dito firmemente  que  esta  costa  em  que  naufragámos 
é  desastrada  ,  cheia  de  correntes  encontradas  e  de 
parceis  ;  e  sobretudo  que  se  não  tivéssemos  trazido 
uma  vela  rota  e  velha  que  nos  fez  perder  bons  lan- 
ços de  vento  em  quanto  nos  occupavamos  a  cosê-la 
e  remenda-la  ,  e  se  a  embarcação  não  viesse  tão 
atravancada  gemendo  com  a  carga  que  era  muita  , 
Icriamos  salvado  o  Cabo  com  tempo  bonança  ,  e  a 
esta  hora  estaríamos  descansados  em  Portugal.  Mas 
ao  que  dizeis  não  posso  dar  credito. 

—  Acrcditai-o  ou  não  ,  digo-vos,  piloto,  que  o 
galeão  estava  excommungado.  Nunca  me  lembra 
de  encontrar  ventos  tão  ponteiros  ,  nem  mares  tão 
anaçados  do  temporal  como  aquelles  estavam  :  eram 
fúrias  e  diabos  do  inferno;  não  eram  ventos  nem 
mares.  As  lanças  de  fogo  que  atravessavam  o  céu 
eram  uma  cousa  medonha  como  cu  nunca  vi.  O  es- 
talar dos  trovões  não  ha  memoria  de  outro  tão  con- 
tinuado e  pavoroso  nestas  paragens.  As  enxárcias 
assobiavam  de  um  modo  estranho  e  singular.  E  o 
leme  .  o  miserável  leme  andava  com  elle  bruxaria 
— bruxaria  ,  não  pôde  deixar  de  ser — c  tantas  vol- 
tas lhe  deram  que  a  final  perdeu  de  todo  o  gover- 
no. Assim  havia  de  ser  para  nossa  desgraça  ,  por- 
que navio  sem  leme  é  o  mesmo  que  casa  sem  do- 
no ,  e  cabeça  sem  miolos.  .  .  .  [Neste  ponto  o  piloto 
não  ])<jile  suster  um  sorriso  que  bem  claro  queria  dizer 
—  jue  a  cabeça  do  mestre  era  uma  daqurtlas  cabe- 
ças, que  elle  sem  dar  por  tal  estava  descrevendo  com 
deliciosa  ingenuidade].  E  depois  os  mezes  que  an- 
dámos e  desandámos  escorrendo  a  costa  ,  sem  ha- 
ver vè-la  nem  menos  toma-la  .  .  .  só  por  arte  diabó- 
lica, ou  por  castigo  de  Deus  —  qne  os  nossos  pcc- 
cados  são  grandes  I  .  .  .  Foi  mofina  nossa  não  haver 
ninguém  que  se  lembrasse  de  absolver  ou  esconju- 
rar o  galeão  ,  que  se  o  fizessem  não  nos  veríamos 
agora  mettidos  nestes  trabalhos.  Bem  fresco  tenho 
ainda  na  idéa  o  caso  que  aconteceu  na  armada  de 
AtTonso  d' Alhoqucrquc  ,  estando  a  hinvornar,  na 
illia  Gamaram,  em  1513  (•) ,  se  bem  me  recordo. 
Escutai,  piloto,  que  é  um  caso  verdadeiro,  e  ainda 
estão  vivos  muitos  chrislãos  quem'o  contaram,  tes- 
temunhas delle.  E  foi  que  sendo  tão  grande  a  fome 
que  os  nossos  padeceram  na  ilha  que  não  escapou 
cousa  viva  de  gado,  camellos,  e  asnos  que  se  não  co- 
messe, té  de  um  palmar,  que  AlTonso  d'Alboquer- 
que  quiz  guardar  para  fazer  fortaleza  ,  não  ficou 
raiz.  De  maneira  que  assi  deste  mantimento  como 
de  uma  sorte  de  peixe  a  modo  de  cações  ,  ostras  , 
contidas,  c  caranguejos  mais  azues  e  verdes  que 
da  cor  que  ha  naquellas  partes  ,  se  causou  cm  to- 
da a  frota  um  género  de  enfermidade  ,  que  estan- 
do ura  homem  rindo  c  jogando  as  cartas  ou  enxa- 
drez  ,  cabia  para  a  outra  |)arte  morto  ,  com  grande 
espanto  e  terror  de  todos  por  ser  morte  súbita.  Suc- 
ccdeu  fallecer  desta  morte  um  homem  d 'armas  que 
lançaram  ao  mar,  sepultura  dos  que  nelle  morrem. 
E  estando  de  noite  os  que  vigiavam  seus  quartos 
cm  vigia    de  uma   nau,    ouviram  grandes  pancadas 


llarrus.  Decail.   !í 
^uo  da  Impreusa  Regia. 


F.  8.»  pag.  290  e  291 — ^Ecli- 


o   PANORAMA. 


299 


nclla ,  e  parecendo-lhe  que  fundeava  em  alguma 
caberá  de  areia  ,  acudiram  por  fora  com  um  balei 
Ter  o  logar  onde  sentiram  as  pancadas  ,  e  acharam 
o  defuncto  pegado  com  as  mãos  na  quilha  junto  do 
leme.  Tiraram-no  dalli,  e  entcrraram-no  era  terra; 
mas  ao  dia  seguinte  foi  achado  em  cima  da  cova. 
Acudiu  a  este  myslerio  o  P.'  Fr.  Francisco  ,  pre- 
gador, e  julgando  estar  o  morto  em  alguma  ex- 
communlião  ,  o  absolveu.  Absolvição  foi  ella  que 
tornado  a  enterrar  ,   ficou  para  sempre. 

—  Aconsclho-\os .  mestre,  que  não  sejais  tão 
promplo  em  engulir  cações  e  outros  acepipes  ,  so- 
bretudo se  forem  da  ilha  Camarão,  como  o  sois  em 
engulir  patranhas,  como  essa  que  acabais  de  me 
contar  :  que  se  engulirdes  os  primeiros  ficareis  mor- 
to c  bem  morto  ,  e  protesto-vos  que  vos  não  boli- 
reis  mais  do  sitio  onde  vos  lançarem  ,  como  di- 
reis se  boliu  esse  defuncto  que  se  agarrou  á  quilha 
de  nraa  n;iu  ;  porque  haveis  de  saber  que  os  ara- 
mes que  pozeram  em  movimento  ao  tal  finado,  não 
foram,  nem  mais  nem  menos,  do  que  maranhas  de 
alguém  que  ideava  pretexto  para  se  sahir  daquolla 
ilha  infernal. 

—  Blasphcmais ,  piloto! 

—  Não  lenho  estômago  que  accommode  animale- 
jos  taes  como  esses  que  me  quereis  empurrar. 

—  Nesse  caso  obrigais-me  a  fallar  sem  rodeios. 
Seria  patranha  a  morte  de  Luiz  Falcão,  e  o  casa- 
mento que  se  seguiu  a  esse  desastre  ?  .  .  . 

—  Silencio  e  prudência,  mestre,  que  esta  bar- 
raca tem  ouvidos.  .  .  Silencio  e  prudência  e  sobre- 
tudo mais  caridade  com  o  próximo,  que  o  espirito 
maligno,  que  dizeis  divisastes  nos  ventos  e  nas  en- 
xárcias ,  vejo  cu  agora  ,  e  bem  claramente ,  que  se 
TOS  \eio  aninhar  na  lingua  I 

—  Eu  digo  o  que  dizia  e  pensava  o  povo  de  Goa 
e  de  Ioda  a  índia. 

—  Os  conceitos  do  povo,  mestre,  são  inconstan- 
tes como  os  ventos,  e  variáveis  como  as  correntes 
desta  costa. .  .  . 

A  esta  altura  tinha  chegado  o  dialogo  ,  cm  que 
os  dois  contendores  ficaram  por  algum  tempo  si- 
lenciosos ,  medindo-se  um  a  outro,  e  como  refa- 
zendu-se  para  continuar  a  lucta  ;  lucla  de  que  to- 
davia escusam  os  nossos  leitores  de  esperar  conse- 
quências mais  serias,  porque  toda  a  artilheria  que 
se  jogava  de  parte  a  parte  não  passava  de  palavras. 
O  mestre  Christovão  Fernandes  ,  apesar  da  idade  e 
de  ter  suflVivelmente  abalroados  a  meia  dúzia  de 
dentes,  que  lhe  tinham  escapado  ao  naufrágio  de 
todos  os  outros  ,  em  despedindo  a  lingua  parecia 
fura  de  duvida  ter  resolvido  o  problema  do  moto 
contínuo.  O  piloto ,  que  estava  na  força  da  vida , 
e  que  conservava  completa  a  batteria  mandibular  , 
não  era  tão  palrador  :  mas  a  sua  pólvora  era  mais 
fina.  Entre  os  dois  não  havia  similhança  senão  em 
pertencerem  ambos  á  mesma  espécie  dos  bipedes. 
Ao  mestre  faltava-lhe  já  o  aço  que  é  uma  falta  mui 
sensível ;  em  quanto  o  piloto  ,  soldado  sem  segun- 
do ,  militava  com  igual  reputação  nas  bandeiras 
de  Neptuno  e  Vénus.  Não  era  ahi  qualquer  pe- 
dante :  e  dclle  é  que  podia  dizer-se  :  laurcafus  ir. 
utrojue  jure.  Koa  alma  no  mais,  incapaz  de  fazer 
■nal  a  uma  mosca  ,  pontual ,  generoso  ,  amigo  dos 
seus  amigos;  mas  era  endireitando  o  olho  a  uma 
coifa  ,  ninguém  se  lhe  atravessasse  na  estrada,  que 
o  tal  piloto  fazia  um  homem  em  talhadas  como  se 
fosse  um  melão.  Por  isso  é  que  elle  achava  certo 
chiste  áquillo  mesmo  que  o  bom  velho  Christovão 
Fernandes  tanto  reprovava  :  e  para  apanhar  uma 


garça  do  lote  daquella  que  apanhou  o  seu  capi- 
tão ,  Manuel  de  Sousa  de  Sepúlveda  ,  daria  não  só 
um  tiro,  mas  uma  dúzia  de  tiros,  e  não  só  mataria 
um  homem  ,  mas  um  cento  delles,  se  fosse  preciso, 
sem  o  mais  pequeno  escrúpulo.  De  resto,  André 
Vás  não  sabia  se  as  suspeitas  do  mestre  naquelle 
ponto  escabroso  eram  bem  fundadas  :  mas  appro- 
vando  o  delicto  ,  a  que  ellas  se  releriam  ,  de  lodo 
o  seu  coração  ,  a  sua  natural  prudência  ,  regulada 
pelo  adagio  «nem  zumbando,  nem  de  veras,  enm  leu 
amo  jogues  as  peras»  cmbridava-lhe  a  lingua  sobre 
quanto  podia  ser  oíTensivo  aos  seus  superiores.  Ti- 
nha feito  baslantcs  viagens,  e  nessas  viagens  toma- 
do talvez  algumas  tinturas  de  lutheranismo.  Não 
era  que  tivesse  duvidas  sobre  o  dogma  ,  porque 
André  Vaz  entrava  de  melhor  mente  por  uma  per- 
na de  presunto  ou  um  quarto  de  carneiro  do  que 
por  qualquer  ponto  ou  calhamaço  de  theologia.  O 
seu  lutheranismo  era  de  outra  estofa.  O  homem  não 
acreditava  em  bruxas  ,  nem  em  feitiços  ,  nem  em 
belecos  ,  nem  em  espíritos  que  vem  ,  nem  em  es- 
píritos que  voltam.  Da  santa  inquisição  fugia  co- 
mo se  pôde  fugir  de  cobra  de  cascavel,  e  aos  mui- 
to reverendos  inquisidores  tinha  o  asco  que  se  cos- 
tuma ter  aos  animacs  peçonhentos,  ás  víboras  e  aos 
lacraus.  De  mothaphisicas  não  entendia.  O  admirá- 
vel bom  sizo  de  que  era  dotado  ia  direito  ao  âma- 
go das  questões  praticas  que  a  rotação  da  sua  »ida 
appresentava  á  sua  intelligencia  liara  rcsohe-las 
—  como  abala  do  caçador  dextro  vai  direita  á  peça 
de  veação  em  que  põe  a  mira.  Emfim  o  [liloto  An- 
dré Vaz  era  taful  de  repica  ponto  ,  e  pôde  dizer- 
se  que  naquelles  tempos  era  um  homem  do  pro- 
gresso. 

Não  assim  o  mestre  Christovão  Fernandes.  Não 
havia  beata  velha  cuja  credulidade  tonta  podes- 
se  correr  parelhas  com  a  sua.  A  lingua  tinha  to- 
luvel  em  demasia  ,  c  muito  pouco  avisada.  Os 
brios  de  marinheiro  c  de  soldado  íam-lhe  fugindo 
rapidamente  com  os  annos  ,  e  tinham  soffrido  uma 
quebra  lastimosa  com  o  perigo  de  que  havia  pouco 
se  salvara.  Para  cumulo  de  desgraça  o  soberano 
elixir  com  que  os  reparava  das  brechas  amiudadas, 
que  a  idade  e  o  susto  dos  temporaes  lhe  faziam  , 
perdeu-se-lhe  no  naufrágio.  Dos  dois  seus  melhores 
e  mais  íntimos  amigos  resla\a-lbe  um,  que  era  o 
seu  rosário  ,  e  faltava-lhe  outro  que  era  o  seu  can- 
girão  ;  e  com  esta  falta  os  restos  desbaratados  do 
seu  antigo  valor  estavam  quasi  a  exhalar  o  derra- 
deiro suspiro. 

O  piloto  que  era  compassivo  e  que  bem  conhe- 
cia donde  nasciam  os  apuros  do  velho  ,  e  o  modo 
infallivel  de  afinar  aquella  viola  destemperada,  de- 
pois de  alguns  minutos  de  silencio  em  que  os  dei- 
xámos a  ambos  ,  foi-se  a  um  canto  da  barraca  ,  e 
tirando  uma  borracha  —  por  uma  transição  hábil , 
que  esqueceu  á  perspicácia  do  próprio  Quintiliano  — 
passou  a  offerece-la  ao  desconsolado  mestre  por  es- 
tas palavras:  «Mestre,  eu  que  conheço  uma  das 
vossas  mais  particulares  devoções  ,  quero  esta  noi- 
te proporcionar-vos  meio  de  satisfaze-la.  »  —  O 
mestre  arrebatado  da  eloquência  destas  palavras  , 
temendo  transtornar  com  as  suas  este  bcllo  movi- 
mento, pòz  logo  a  borracha  á  boca  :  e  o  vinho  pre- 
cipitou-se  naquellas  cavernas  com  a  impetuosidade 
de  um  rio  desembocando  na  sua  foz. 

Estava  ,  neste  momento  ,  verdadeiramente  subli- 
me o  nosso  mestre  :  os  olhos  envidraçados  erguidos 
ao  céu  ;  as  mãos  sobre  a  borracha  ;  a  direita  ,  co- 
mo que  desconfiada  de  que  fosse  pouco  efficaz  a  lei 


300 


O  PANORAMA. 


da  gravidade  ,  ajudando  por  meio  d'amorosas  com- 
pressões a  queda  do  liquido;  o  pescoro  estendido 
como  um  ganso  ;  e  os  gorgomilos  ora  contrahindo- 
se  ,  ora  dilatando-se.  E  o  piloto  coiiteniplavn  ,  ad- 
mirado ,  ao  seu  companheiro  lodo  absorto  naquel- 
les  cálculos  de  longitude.  Mas  esperou  ,  esperou 
tanto  tempo  que  elle  acabasse  de  tirar-lhe  a  prova, 
que  cançado  já  de  esperar,  o  temendo  que  a  incó- 
gnita daquella  trabalhosa  equação  não  viesse  a  ap- 
pareccr  senão  no  fundo  da  sua  borracha,  sem  mais 
ceremonia  deitou  mão  a  cila  ,  interrompendo  o  si- 
lencio ,  que  dura\a  havia  minutos,  por  estas  pala- 
Tras  : 

—  «Arreai,  mestre,  arrcai-me  a  escola  a  essa 
embarcação  ,  que  com  a  brisa  desfeita  cm  que  is 
^■ejo-vos  geito  de  dar  com  ella  em  seeco.  A  modo 
que  vos  sentia  vontade  de  seguir  a  vasante  a  esse 
esteiro.  Que  é  isso  !  Vós  quereis  encontrar  váo  na 
minha  vasilha  ,  como  o  exercito  do  Senhor  Deus  o 
encontrou  no  rio  Jordão  !  »  O  mestre  ,  perturbado 
no  seu  c.\tase  ,  vollou-se  cheio  de  ira  [mas  ainda 
lambendo  os  beiços]  contra  o  piloto  ,  dizendo  : 

—  Callai ,  judeu  e  infiel  tornadiço  ,  que,  pela 
gorja  o  juro,  se  estivéssemos  em  terra  de  Góa  o 
1'.'  mestre,  Diogo  de  Borba,  vos  havia  de  emendar 
essa  impiedade  na  santa  inquisição. 

—  Christão  velho  sou  [tornou-lhe  o  piloto]  ,  mer- 


cê de  Deus  ;  mas  á  fé  que  banho  tão  luxurioso  co- 
mo este  ainda  o  não  tomaram  as  vossas  goelas. 

—  Excellente  pinga  !  [Esta  exclamação  era  signal 
de  que  o  vinho,  afugentando  a  ira  repentina  do  mes- 
tre ,  começa\a  a  desatrophiar-lhe  os  humores,  e  a 
fazer  o  seu  cíTcito  costumado]. 

Acrimeza  do  semblante  ía-lhe  espairecendo  n'um 
sorriso.  A  C(5r  da  purpura  começava  a  assomar-lhe 
nas  faces.  Os  olhos  serai-aberlos  mostravam  aquel- 
la  bemaventurada  intercadencia  ,  verdadeiro  elysio 
da  beberronia.  Passou  uma  sombra,  e  esta  sombra, 
que  era  real,  não  a  viu  já  mestre  André  Fernandes, 
que  as  via  imaginarias  quando  estava  em  seu  juizo, 
que  era  talvez  quando  tinha  menos.  A  sombra  era 
Manuel  de  Sonsa  que  andava  rondando,  e  que  ap- 
proximando-se  á  barraca,  disse  para  dentro:  «fria 
noite  ,  camaradas. » 

—  Como  gelo,  capitão  [respondeu  o  piloto],  não 
está  noite  para  beber  agua. 

—  É  assim,  piloto.  Que  falta  nos  fazem  aquellas 
boas  vasilhas  que  se  nos  foram  com  o  naufrágio. 

—  L'ma  alentada  borracha  trazia  eu  [tornou-lhe 
o  piloto],  capaz  de  dar  vida  a  um  defunclo  ,  que 
a  estas  horas  estará  vasada  no  buxo  de  algum  tu- 
barão. [Nisto  o  capitão  foi  continuando  a  sua  ron- 
da ,  e  o  tubarão ,  que  era  o  mestre  ,  resonava  já  a 
bom  resonar].  (Concluir-sc-ha). 

.    A.  d' O.  Marreca. 


A   TOiiliJu   DA    BIAi-RZCaTA. 


OoANDO  na  Castclla  o  poder  soberano ,  débil  e  va- 
cillante,  a  grão  custo  se  mantinha  contra  maquina- 
ções c  enredos  sediciosos  de  ricus-homens,  que  não 
SC  pejavam  de  guerrear  o  raonarcha  ,  ao  passo  que 
laceravam  o  reino  por  suas  [>arcialidades  ,  conver- 
tendo-o  impunenicnle  cm  tbealro  de  sanguenta  de- 
vastação, claro  está  que  não  podiam  ser  respeita- 
dos os  bens  e  vidas  daqucllcs  a  quem  manifestavam 
desagrado  ou  inimizade.   Não  poucos  exemplos  las- 


timosos desta  desordem  e  desenfreamenlo  a  historia 
ofTerece  ;  e  se  a  auctoridade  regia  não  tinha  vigor 
para  fazer-se  forte  contra  a  ousadia  arrogante  dos 
seidiorcs  ,  muito  menos  podia  vingar  injurias  feitas 
a  vassallos  mais  fracos  ,  aos  qnaes  não  ficava  arbi- 
trio  para  se  defenderem  da  maldade  e  injustiça.  Se 
pur  acaso  nesses  tempos  calamitosos  chegavam  a  ser 
castigados  alguns  delictos  e  desaforos  da  nobreza 
orgulhosa,   tão  leves  eram  as  pcnnas  impostas  que 


o  PANORAaiA. 


301 


mais  serviam  de  estimulo  para  coractterem  novos 
crimes  ,  do  que  de  salular  escarmento  á  perversi- 
dade. Raras,  e  por  isso  mui  celebradas  eram  as  re- 
parações estrondosas  ,  devidas  á  innoccucia. 

Nos  princípios  do  século  13.",  uo  reinado  de  D. 
Henrique  3.°,  em  que  uão  houve  tanta  abundância 
do  luaUlades  e  turbulências  ,  por  ser  o  príncipe  , 
Como  a  historia  nò-lo  pinta  ,  muito  amante  da  re- 
ctidão e  da  justiça  ;  vivia  cm  Córdova  certo  caval- 
leiro  ,  que  possuído  de  uma  paixão  tão  arrebatada  , 
e  alheia  a  conselhos,  como  é  o  ciúme,  deu  morte  a 
sua  mulher  sem  causa  justa  :  —  o  rei  [diz  uma  me- 
moria contemporânea]  feita  a  prova  ordinária  man- 
dou por  sentença  que  fosse  edificada  a  torre  a  que 
chamam  de  la  ntal-mucrta,  quer  dizer,  da  que  mor- 
reu injustamente.  Nella  e  por  debaixo  do  arco  que 
ajunta  com  a  muralha  da  cidade,  «"uma  lapida, 
que  na  parte  superior  tem  as  armas  de  Caslella  e 
de  Leão,  gravou-sc  uma  inscrípção .  que  declara 
como  D.Henrique  a  mandara  levantar  e  por  quem, 
c  que  tivera  começo  em  1  ÍOtí  e  termo  em  li08. — 
Não  ó  este  do  numero  dos  edifícios  antigos  ,  que 
por  signaes  d'ancianidade  ,  por  occnparem  sítios 
tristes  c  remotos  da  habitação  dos  homens  ,  ou  por 
outras  circumstauciasque  excitara  vivamente  a  phan- 
lasia  ,  dão  origem  a  lendas  e  contos,  em  que  para 
o  vulgo  consisle  toda  a  historia  dessas  eonstrucções 
de  outras  eras.  £  uma  torre  elegante  e  forte  ,  ere- 
cta em  logar  de  muita  frequência  de  povo  :  porem 
a  denominação  de  mal-inorta  ,  o  estar  jd  illcgí\el  a 
inscripção,  deu  margem  para  que  a  plebe  fingisse  a 
seu  sabor  as  fabulas  e  maravilhas,  com  que  tanto 
se  recreia  a  credulidade.  Imaginam  pois  que  algum 
mouro  encantador  fabricou  a  torre  deixando  ahi  es- 
condido mui  avultado  thesouro ;  e  que  o  homem 
afortunado  aquém  o  sábio  magico  destinou  tão  pre- 
ciosa mina  será  aquelle  que  ao  passar  correndo  a 
cavailo  por  baixo  do  arco  poder  lèr  o  lettreiro  ,  de 
que  restam  tenuíssimos  vestígios  :  com  tal  condição 
fácil  é  d'inferír  que  nunca  similhante  thesouro  se- 
rá desencantado,  nem  correrão  risco  de  ficarem  por 
mentirosos  os  que  asseveram  a  tradição. 


A    DAMA    PÉ-DE-CiDBA. 

(Conto  de  juiiío  ao  LarJ. 

Parte  Segunda. 

I. 

EoA  um  dia  ao  anoitecer:  D.  Inigo  estava  á  meza 
mas  não  podia  cear ,  que  grandes  desmaios  lhe  vi- 
nham ao  coração.  Um  pagem  mui  mimoso  e  priva- 
do ,  que  em  pé  diante  delle  esperava  seu  mandar  , 
disse  então  para  D.  Inigo:  —  «Senhor,  porque  não 
comeis? ') 

cc  Que  heide  eu  comer,  Brearte  ,  se  meu  senhor 
D.  Diogo  está  captivo  de  mouros  ,  segundo  resam 
as  cartas  que  ora  delle  são  vindas?» 

«Jlas  seu  resgate  não  é  a  vossa  mofina  :  dez  mil 
peões  e  mi!  cavalleiros  tendes  na  mesnada  de  Bis- 
caia ;  vamos  correr  terras  dos  mouros:  serão  os  ca- 
ptivos  resgate  de  vosso  pai. » 

«  O  perro  d'elrei  de  Leão  fez  sua  paz  cora  os  cães 
de  Toledo  :  e  são  elles  que  tem  preado  meu  pai. 
Os  alcaides  e  potestades  do  rei  tredo  e  vil  não  dei- 
xariam passar  a  boa  hoste  de  Biscaia,  u 

«Quereis  vós  ,  senhor,  um  conselho,  e  não  vos 
custará  nem  mealha?» 


«Dize,  dize  lá,  Brearte.» 

"Porque  não  ides  a  serra  procurar  vossa  mãi? 
segundo  ouço  contar  aos  velhos  cila  é  grande  fada.» 

o  Que  dizes  tu  ,  Brearte?  —  Sabes  quem  é  minha 
mãi  ,   e  que  casta  é  de  fada?» 

"Cirandes  historias  tenho  ouvido  do  que  se  pas- 
sou certa  noite  neste  castello  ;  éreis  vós  pequenino, 
e  ainda  eu  não  era  nada.  Os  porquês  destas  histo- 
rias .  isso  Deus  é  que  o  sabe.  » 

"Pois  dír-t'o-hci  eu  agora.  Chega-te  para  cá, 
Brearte.  » 

O  pagem  olhou  de  roda  quasi  sem  o  querer  ,  c 
chegúu-se  para  seu  amo  :  era  a  obediência  ,  e  ain- 
da mais  um  certo  arripio  de  medo  ,  que  o  fazia 
chegar. 

«Vês  tu  ,  Brearte  ,  aquclla  fresta  entaipada.  Foi 
poralli  que  minha  mãi  fugiu.  Como  e  porque,  apos- 
to que  já  t'o  hão  contado  I  » 

«  Senhor,  sim  '.  —  Levou  vossa  irmaã  comsigo.  .  .  ^ 

«Responder  só  ao  que  pergunto'.  Sei  isso.  Agora 
cal-te. « 

O  pagem  póz  os  olhos  no  chão,  de  vergonha  ;  que 
era  humilde  e  de  boa  rara. 
li. 

E  o  cavalleiro  começou  o  seu  narrar. 

«Desde  aquelle  dia  maldito  meu  pai  pôz-sc  a 
scismar  :  e  scismava  e  amesquinhava-se  ,  pergun- 
tando a  todos  os  monlcíros  velhos  se  porventura  ti- 
nham lembrança  de  haverem  no  seu  tempo  encon- 
trado nas  brenhas  alguns  medos  ou  feiticeiras.  Aqui 
foi  um  não  acabar  dhístorías  de  bruxas  c  dalmas 
penadas. 

"Havia  muitos  annos  que  meu  senhor  pai  se  não 
confessava  :  alguns  havia  também  que  estava  viuvo 
sem  ter  enviuvado. 

"Certo  domingo  pela  manhaã  nasceu  o  dia  ,  ale- 
gre como  se  fora  de  paschoa  :  e  meu  senhor  D.  Dio- 
go acordou  carrancudo  e  triste  como  costumava. 

«Os  sinos  do  mosteiro  lá  embaixo  no  valle  tan- 
giam tão  lindamente  que  era  um  céu  aberto.  Elle 
põz-se  a  ouvi-los  ,  e  sentiu  uma  saudade  que  o  fez 
chorar. 

«Irei  ter  com  o  abbade  :  disse  elle  lá  comsigo  : 
quero-me  confessar.  Quem  sabe  se  esta  tristura  ain- 
da é  tentação  de  satanaz  ? 

«O  abbade  era  um  velhinho  —  santo  —  santo  que 
não  o  havia  mais. 

«Foi  a  elle  que  se  confessou  meu  pai.  Depois  de 
dizer  mca  culpa  ,  contou-lhe  ponto  por  ponto  a  his- 
toria do  seu  noivado. 

«Uil  —  lilho  —  bradou  o  frade  —  fizestes  raarí- 
dança  com  uma  alma  penada  '.  » 

"Alma  penada,  não  sei:  — tornou  D.  Diogo; 
mas  era  cousa  do  diabo. 

«Era  alma  empena:  digo-foeu,  filho:  —  re- 
plicou o  abbade. — Sei  a  historia  dessa  mulher  das 
serras.  Está  escripta  ha  mais  de  cem  annos  na  ul- 
tima folha  de  um  santoral  godo  do  nosso  cartula- 
rio.  Desmaios  que  te  vem  ao  coração  ,  pouco  me 
espantam.  Mais  que  anciãs  e  desmaios  costumam 
roer  lá  por  dentro  os  pobres  escommungados.» 

"Então  estou  eu  excommungado?»  — 

"Dos  pés  ate  a  cabeça;  por  dentro  e  por  fora; 
que  não  ha  que  dizer  mais  nada.» 

«  E  meu  pai ,  a  primeira  vez  na  sua  vida  ,  cho- 
rava pelas  barbas  abaixo. 

«O  bom  do  abbade  animou-o  como  a  uma  creau- 
ça  ,  consolou-o  como  a  um  desventurado.  Depois 
pòz-se  a  contar-lhe  a  historia  da  dama  das  penhas ; 
que  é  minha  mãi  —  Deus  me  salve  : 


302 


O   PANORAMA. 


«E  deu-lhe  por  penitencia  ir  guerrear  os  perros 
sarracenos  por  tantos  annos  quantos  vivera  em  pec- 
cado  ,  matando  tantos  delles,  quantos  dias  nesses 
annos  tinham  corrido.  Na  conta  não  entravam  as 
sextas-feiras,  dia  da  paixão  de  Christo,  cm  que  se- 
ria irreverência  Irosquiar  a  vil  relê  de  agarenos, 
cousa  neste  mundo  mui  indecente  e  escusada. 

«Ora  a  historia  da  formosa  dama  das  serras,  de 
Terho  ad  verbum  como  estava  na  folha  branca  do 
sanloral  ,  resava  assim  segundo  lembranças  do  ab- 
Lade. 

III. 

No  tempo  dos  reis  godos  —  bom  tempo  era  esse  I 
—  havia  em  liiscaia  um  conde,  senhor  de  um  cas- 
lello  posto  em  montanha  fragosa,  cercado  pelas  en- 
costas e  quebradas  de  vastíssima  floresta.  Na  flo- 
resta havia  todo  o  género  de  caça  ,  c  Argimiro  o 
Negro  — assim  se  chamava  o  rico-homem  —  gosla- 
Ta,  como  todos  os  nobres  barões  d'Ilespnnha,  prin- 
cipalmente de  três  cousas  boas  —  da  guerra,  do  vi- 
nho, e  das  damas  —  mas  ainda  mais  do  que  de  tu- 
do isso  ,  gostava  de  montear. 

Dama  possuia-a  formosa  ,  que  era  linda  a  con- 
dessa :  vinho  ,  não  havia  melhor  adega  que  a  sua  : 
caça  ,  era  cousa  que  na  floresta  não  faltava. 

Seu  pai  ,  que  fura  caçador  e  fraguciro  ,  qnanilo 
eslava  para  morrer,  chamou  o  filho  e  disse-lhe  :  — 
has-de  jurar-me  uma  cousa  que  não  te  custará  na- 
da. 

Argimiro  jurou  que  faria  o  que  seu  pai  e  senhor 
lhe  ordenasse. 

n  íi  que  nunca  mates  fera  em  cama  c  com  crias, 
seja  urso,  javali,  ou  veado.  Se  assim  o  fizeres,  Ar- 
gimiro, nunca  nas  tuas  selvas  e  devezas  faltará  com 
que  exercitares  o  mais  nobre  mister  de  um  fidal- 
go. Alem  disso  se  tu  souberas  o  que  um  dia  me 
aconteceu  ....  escuta-me  que  é  um  horrendo  ca- 
so. .  .  » 

O  velho  não  pôde  acabar  ;  porque  a  morte  lhe 
cravou  neste  momento  as  garras.  Murmurou  algu- 
mas palavras  inintelligiveis  :  revirou  os  olhos,  e  fe- 
neceu. Deus  seja  cura  a  sua  alma  ! 

Tinham  passado  annos  :  certo  dia  chegou  ao  cas- 
tcllo  do  conde  um  mensageiro  d'elici  AVaraba.  Cha- 
mava-o  elrei  a  Toledo  para  o  acompanhar  com  sua 
mesnada  contra  o  rebelde  Paulo.  Os  outros  nobres- 
homcns  das  cercanias  eram  como  clle  chamados.  An- 
tes, porem  ,  de  partirem  juntaram-sc  todos  no  cas- 
tello  de  .\rgimiro  para  fazerem  uma  grande  monta- 
ria com  mais  de  cem  alãos,  sabujos,  e  lebreus  , 
cincocnta  monleiros  ,  c  moços  de  besta  sem  conto. 
Era  uma  vistosa  caçada. 

Sahiram  no  quarto  d'alva  :  correram  valles  e 
montes ;  bateram  bosques  e  mattos.  Era  comtudo 
meio  dia  c  ainda  não  haviam  alcvantado  porco,  ur- 
so, zebra  ou  veado.  Blasphcmavam  de  sanha  os  ca- 
Talleiros  ,  praguejavam,  e  depennavam  as  barbas. 

.\rgimiro ,  que  por  longa  experiência  conhecia 
os  sitios  mais  profundos  da  esfiessura  ,  sentiu  lá 
por  dentro  uma  tentação  do  diabo.  Os  meus  lios- 
pcdcs  ,  pensava  ellc  ,  não  [lartirão  sem  beberem  al- 
guns cangirões  de  vinho  sobre  uma  ou  duas  peças 
de  caça.  Juro-o  por  alma  de  meu  pai.»  —  E  se- 
guido de  alguns  monteiros  com  suas  trcllas  de  cães 
afaslou-se  da  companhia  ,  c  deu  a  andar,  a  andar, 
até  que  se  lançou  por  um  vallo  abaixo. 

O  valle  era  escuro  c  triste  :  corria  jielo  meio  uma 
ribeira  fria  c  malassombrada.  As  bordas  eram  pe- 
nhascosas  c  faziam  muitas  quebradas.  Argimiro 
chegou   á  primeira  volta   do  rio  :   parou  ,   pòz-sc  a 


olhar  de  roda  ,  e  achou  o  que  procurava.  Uma  ca- 
verna se  abria  na  encosta  fragosa  ,  que  descia  até 
a  estreita  senda  da  margem  por  onde  o  cavalleiro 
caminhava.  Argimiro  entrou  na  boca  da  cova  ,  e  a 
um  aceno  entraram  apoz  elle  monteiros  ,  moços  de 
besta,  allãos,  sabujos  e  lebreus  fazendo  grande 
matinada. 

Era  o  covil  de  um  onagro  :  a  fera  den  um  gemi- 
do e  deixando  as  suas  crias  estendeu-se  no  chão  e 
c  abaixou  a  cabeça  como  quem  supplicava. 

«Aella!  —  gritou  Argimiro  ;  —  mas  gritou  vol- 
tando a  cara. 

A  matilha  saltou  no  pobre  anima!  ;  que  soltou  on- 
Iro  gemido,   e  cahiu  todo  ensanguentado. 

Uma  voz  soou  então  nos  ouvidos  do  conde:  e  di- 
zia:—  orphãos  ficaram  os  cachorrinhos  do  onagro; 
mas  pelo  onagro  tu  ficarás  deshonrado.» 

«Quem  ousa  aqui  fallar  agouros?  —  gritou  o  ri- 
co-homem olhando  iroso  para  os  monteiros.  Todos 
guardaram  silencio  :   mas  lodos  estavam  pallidos. 

Argimiro  pensou  um  momento:  depois  sahindo 
da  cova  murmurou:  «Vá,  com  mil  salanazes  1  » 

E  com  alegres  toques  de  buzina  e  latidos  da  ma- 
tilha fez  conduzir  ao  caslello  aprèa  que  linha  prea- 
do  (.). 

E  tomando  o  seu  girifalte  prima  em  punho  ,  or- 
denou aos  monteiros  fossem  dizer  aos  nobres  caça- 
dores que  dentro  de  duas  horas  voltassem,  porque 
achariam  em  seu  paço  comida  bem  aparelhada. 

Depuis  seguido  dos  falcociros  começou  a  enca- 
minliar-se  para  o  solar  lançando  neliris  e  falcões  e 
ajuntando  caça  de  volateria,  que  a  havia  por  aquel- 
les  montes  mui  basta. 

IV. 

Dobrava  a  campa  da  torre  de  menagem  no  cas- 
lello do  conde  Argimiro  :  —  dobrava  pela  linda 
condessa  que  seu  nobre  marido  havia  matado. 

Andas  cobertas  de  dó  a  levam  a  enterrar  ao  mos- 
teiro visinho  :  os  frades  vão  alraz  dos  andas  can- 
tando as  orações  dos  finados:  apoz  os  frades  vai  o 
rico-homcm  vestido  de  grossa  estamenha  ,  cingido 
com  uma  curda,  e  rasgando  pelas  urzes  e  pedras  os 
pés  que  leva  descalços. 

Porque  matou  elle  sua  mulher ,  c  porque  ia  elle 
descalço? 

Eis  o  que  a  esse  respeito  refere  a  lenda  escripta 
na  folha  branca  do  sautoral. 
V. 

Dois  annos  duraram  guerras  d'elrei  AVamba  :  fo- 
ram guerras  mui  de  contar. 

E  por  lá  andou  o  rico-homcm  com  seus  bucel- 
larios  que  assim  se  diziam  então  acostados  e  ho- 
mens d'armas.  Fez  estrondosas  façanhas  c  cavalla- 
rias,  mas  voltou  cuberto  de  cicatrizes  deixando  por 
campos  de  batalha  gasta  e  consumida  a  sua  valente 
mesnada. 

E  atravessando  de  Toledo  para  a  liiscaia  seguia-o 
apenas  um  velho  escudeiro.  Velho  c  cheio  de  cans 
e  rugas  lambem  ellc  era,  não  de  annos  mas  de  pe- 
nas e  de  trabalhos. 

Caminhava  triste  e  feroz  no  aspecto:  porque  do 
seu  caslello  lhe  eram  vindas  novas  d'entristecer  e 
raivar. 

E  cavalgando  noite  c  dia  por  montes  e  charne- 
cas ,  por  bosques  c  por  earçaes  imaginava  no  modo 


(•)  Um  jumento  silvestre  não  seria  mui  delicado  m.in- 
jar  para  meza  moderna ;  mas  o  iiso  da  carne  asinina  na 
idade  media  era  vul^'ar  :  ainda  em  nuiilos  dos  uussus  foraej 
apparecc  marcado  entre  as  porlagení  o  qnanlo  devia  pa- 
gar este  género  de  carne. 


o   PAl^ORAMA. 


303 


por  que  dcscul)riria   se  eram  falsas  ou  verdadeiras 
essas  novas  de  mau  peccado. 
VI. 

No  solar  do  conde  Argimiro  um  anno  depois  da 
sua  partida  ,  ainda  tiuio  dava  mostras  da  magua  c 
saudade  da  formosa  condessa  :  as  salas  estavam  for- 
radas de  negro  :  de  negro  eram  os  trajos  delia  :  nos 
pateos  interiores  dos  paços  crescera  a  herva  de  mo- 
do que  se  podia  ceifar  :  as  reixas  e  as  gelosias  das 
janellas  não  se  haviam  tornado  a  abrir:  descantes 
de  servos  e  servas ,  sons  de  salteiros  c  harpas  ti- 
nham deixado  de  soar. 

Jfas  ao  cabo  do  segundo  anno  ludoapparccia  mu- 
dado: as  colgaduras  eram  de  prata  e  matiz:  bran- 
cos e  vermelhos  os  trajos  da  bella  condessa  ;  pelas 
janellas  do  paço  restrugia  o  ruído  da  musica  e  sa- 
raus ;  e  o  solar  de  Argimiro  estava  por  dentro  e 
por  fora  alindado. 

Um  antigo  villico  do  nobre  conde  fora  quem  des- 
tas mudanças  o  avisara  :  doíani-lhe  tantos  folgares 
e  contcnlamenlos  ;  doía-lhe  a  honra  de  seu  seulior, 
pelo  que  clle  via  ,  e  pelo  que  se  murmurava. 

Eis-aqui  como  se  passara  o  caso. 
VII. 

Longe  do  condado  do  illustre  barão  Argimiro  o 
Negro,  para  as  bandas  de  Galliza  vivia  um  nobre 
gardingo  — como  quem  dissesse  infanção —  gentil- 
homem  e  mancebo,  chamado  Astrigildo  o  Alvo. 

Contava  vinte  e  cinco  annos  ;  os  sonhos  das  suas 
noites  eram  de  formosas  damas  ;  eram  d'amores  e 
deleites  ;  mas  ao  romper  da  manhaã  todos  elles  se 
desfaziam  —  que  ao  saiiir  ao  campo,  não  via  senão 
pastoras  tostadas  do  sol  e  das  neves  ,  e  as  servas 
grosseiras  do  seu  solar. 

Destas  estava  elle  farto.  Mais  de  cinco  tinha  en- 
ganado com  palavras  ;  mais  de  dez  comprado  com 
ouro;  mais  de  outras  dez,  como  nobre  e  senhor  que 
era,  brutalmenlc  violentado. 

Com  vinte  e  cinco  annos,  já  no  livro  da  justiça 
dirina  se  lhe  haviam  escripto  mais  de  vinte  e  cin- 
co grandes  maldades. 

Uma  noite  sonhou  Astrigildo  que  corria  serras  e 
valles  com  a  rapidez  do  vento,  montado  em  onagro 
silvestre,  e  depois  decorrer  muito  chegava  alta 
noite  a  um  solar ,  aonde  pedia  agasalho. 

E  que  formosa  dama  o  recebia  e  que  em  poucos 
instantes  um  do  outro  se  enamorava. 

Acordou  sobresallado ;  e  durante  o  dia  inteiro 
não  pensou  em  outra  cousa  senão  na  formosa  dama 
que  vira  nos  sonhos  da  madrugada. 

Três  noites  se  repetiu  o  sonho  :  três  dias  o  man- 
cebo scismava.  Encostado  á  varanda  de  um  eirado 
ua  tarde  do  terceiro  dia  olhava  triste  para  as  mon- 
tanhas do  norte  que  via  lá  no  horisonle  como  nu- 
vens azuladas  :  o  sol  começava  a  descer  no  poente 
c  ainda  elle  estava  embebido  em  seu  melancólico 
scismar. 

Por  acaso  volveu  então  os  olhos  para  o  terreiro 
que  lhe  ficava  por  baixo  :  um  onagro  da  floresta  es- 
tava ahi  deitado  como  se  fosse  manso  jumento  :  era 
inteiramente  similhanta  áquelle  com  que  havia  so- 
nhado. 

Sonhos  de  três  noites  a  fio  não  mentem  :  Astrigil- 
do desceu  apressa  ao  terreiro:  o  onagro  quieto  dei- 
xou-se  enfrear  e  selar;  e  a  Deus  e  aventura  o  man- 
cebo cavalgou  nelle  e  deitou  pela  encosta  abaixo. 

Cumpria-se  tudo  á  risca  :  o  onagro  não  corria , 
voava. 

Mas  o  céu  entrou  a  luldar-se  ,  com  o  anoitecer  : 
a  escuridão  cresceu  e  desfechou  em  vento,  trovões, 


chuva  c  raios.  O  mancebo  começava  a  perder  o  ti- 
no ,  e  o  onagro  dobrava  a  carreira  ,  c  bufava  vio- 
lentamente. l'arou  cm  lim  a  horas  rncrtas.  Sem  sa- 
ber como,  Astrigildo  achou-se  juncto  das  barreiras 
de  um  solar  acastcllado. 

Tocou  a  sua  buzina  ,  que  deu  tim  som  prolonga- 
do e  tremulo  ,  porque  elle  tremia  de  susto  e  de 
frio.  Apenas  cessou  de  tocar,  a  ponte  Icvadiça  des- 
ceu ,  muitos  escudeiros  sahiram  a  recebè-lo  entre 
tochas,  e  as  salas  dos  paços  illuminaram-se. 

Era  que  também  a  condessa  linha  por  três  noites 
sonhado  I 

VIII. 

A  clepsidra  marca  a  hora  do  sexta  nocturna  e 
ainda  dura  o  sarau  no  solar  do  conde  de  Biscaia  : 
porque  a  nobre  condessa  e  o  gentil  Astrigildo  assis- 
tem ás  danças  e  jogos  dos  libertos  e  servos,  que 
para  elles  espairecerem  folgara  lá  na  sala  d'armas. 
Mas  n'um  aposento  baixo  do  solar  um  homem  está 
em  pé  com  um  punhal  na  mão  ,  olliar  furibundo,  c 
o  cahello  eriçado  ;  parece  escutar  toada  longínqua  : 
outro  homem  está  diante  delle  dizendo-lhe  :  senhor, 
ainda  não  c  tempo  para  punir  o  grande  peccado. 
Quando  elles  se  recolherem,  aquclla  luz  que  vedes 
acolá  hade  apagar-se  :  subi  então  ,  e  achareis  de- 
sempedido  o  caminho  secreto  para  a  camará  ,  que 
é  a  mesma  do  vosso  noivado. 

E  o  que  fallava  sahiu,  e  dahi  a  pouco  a  luz  apa- 
gou-se  ,  e  o  homem  dos  cabellos  hirtos  ,  e  do  olhar 
esguazeado  subiu  por  uma  Íngreme  e  tenebrosa  es- 
cada. 

IX. 

Quando  pela  manhaã  cedo  o  conde  Argimiro  do 
seu  balcão  principal  ordenava  que  levassem  o  cor- 
po da  condessa  a  um  mosteiro  de  Donas  que  elle 
fundara  para  ahi  ter  seu  moimento,  elle  e  os  de 
sua  casa,  e  dizia  aos  homens  d'armas  que  arrastas- 
sem o  cadáver  de  Astrigildo,  e  o  despenhassem  de 
um  grande  barrocal  abaixo ,  viu  um  onagro  silves- 
tre deitado  a  um  canto  do  pateo. 

«Um  onagro  assim  manso  c  cousa  que  nunca  vi : 
—  disse  elle  ao  villico  que  estava  alli  ao  pé.  Como 
veio  aqui  este  onagro?» 

O  villico  ia  a  responder,  quando  se  ouviu  uma 
voz:  dir-se-hia  que  era  o  ar  que  fallava. 

«Foi  nelle  que  veio  Astrigildo:  será  elle  que  o 
levará.  Por  ti  ficaram  orphãos  os  filhinhos  do  ona- 
gro, mas  pelo  onagro  estás  ,  oh  conde  ,  deshonra- 
do.  Foste  crú  com  as  pobres  feras:  Deus  acaba  de 
de  vinga-las.  » 

«Misericórdia  I  —  bradou  Argimiro,  porque  na- 
quelle  momento  se  lembrou  da  maldita  caçada. 

Neste  momento  os  homens  do  conde  sabiam  com 
o  cadáver  sangrento  do  mancebo  :  o  onagro  apenas 
o  viu  saltou  como  um  leão  no  meio  da  turba  que 
fez  fugir ,  e  segurando  com  os  dentes  o  morto  ar- 
rastou-o  para  fora  do  castello  ,  e  como  se  tivesse 
em  si  uma  legião  de  demónios  foi  precipitar-se  cem 
elle  do  barrocal  abaixo. 

Era  por  isso  que  o  conde  ia  cingido  de  corda  e 
descalço  apoz  os  frades  e  a  tumba.  Queria  fazer 
penitencia  no  mosteiro,  por  haver  quebrado  o  jura- 
mento que  tinha  feito  a  seu  pai. 

As  almas  da  condessa  e  do  gardingo  cahirnm  de 
chofre  no  inferno  por  terem  deixado  a  vida  em 
adultério,  que  é  peccado  mortal. 

Desde  esse  tempo  as  duas  miseráveis  almas  tem 
apparecido  a  muita  gente  dos  desvios  da  Biscaia  : 


30* 


O  PANORA3IA. 


ella  vestida  de  l)ranco  c  verraelho  ,  assentada  nas 
penhas  cantando  Jindas  toadas  :  elle  relouçando  ahi 
perto  ,  na  figura  de  um  onagro. 

Tal  foi  a  liisloria  que  o  vellio  abbade  contou  a 
meu  pai ,  c  que  clle  me  relatou  a  mim  antes  de  ir 
cumprir  sua  penitencia  nessa  guerra  de  mouros  que 
lhe  ha  sido  tão  fatal.  — 

Assim  concluiu  Inigo Guerra.  Brearte  —  o  pagem 
Brearte  sentia  oscabcllos  arripiarem-se-lhe.  Por  lar- 
go tempo  ficou  immovcl  defronte  de  seu  senlior  : 
ambos  elles  em  silencio.  O  moço  rico-bomem  não 
podia  engulir  bocado. 

Tirou  por  fim  da  oscarcella  a  carta  de  D.  Diogo 
para  a  tornar  a  ler.  As  misérias  e  lastimas  que  ahi 
recontava  eram  laes  ,  qne  D.  Inigo  sentiu  o  pranto 
gotejar-lhe  abundante  pelas  faces  abaixo. 

Então  ergueu-se  da  ineza  para  se  ir  deitar.  Nem 
o  barão  nem  o  pagem  pregaram  olho  toda  a  noite  : 
este  de  medroso,  aquelle  de  desconsolado. 

E  nos  ouvidos  de  Inigo  Guerra  soavam  contínuo 
as  pala\ras  de  Brearte  :  «Porque  não  ides  a  serra 
procurar  vossa  mãi?»  —  Só  por  encantamento  se- 
ria de  feito  possível  tirar  das  unhas  dos  mouros  o 
uohre  senhor  de  Biscaia. 

Piompeu  finalmente  a  alvorada. 

(Á.  Herculano./ 


DOCDMEXTO  A  FAVOIt  DA  CONSERVAÇÃO  DOS  MOXCMENTOS. 

Transcrevendo  este  documento  com  a  sua  ex- 
travagante orlhographia  ,  ainda  que  irregular  ,  pró- 
pria do  século  [mormente  em  papeis  avulsos]  ,  não 
tivemos  a  intenção  só  d'onercccr  um  specimen  des- 
te género  :  qnizemos  sobre  tudo  mostrar  quanto 
se  zelava  ha  três  séculos  a  conservação  dos  monu- 
mentos. Propagadores  das  nobres  ideas  ,  que  tem 
vogado  ultimamente  a  favor  das  antiguidades  pá- 
trias ,  não  podemos  resistir  ao  desejo  de  imprimir 
a  presente  informação  ,  que  é  bom  testemunho  a 
favor  de  nossas  opiniões,  e  bom  exemplo  para  imi- 
lar-se  ,  vendo-se  como  cnlão  se  acudia  a  reprimir 
a  destruirão  das  memorias  arcbeologicas. 

* 
Senhor  huua  Carla  de  Vossa  Alteza  me  foy  dada  , 
per  que  me  mandava  ,  que  viese  a  esta  Villa  de 
Villa  de  Conde  ,  e  soubese  da  Abbadesa  ,  por  que 
mandara  deribar  huua  Gaza  ,  em  que  estavam  cer- 
tas Sepulturas  anliguas,  e  a  rezão  que  me  dese,  es- 
crevese  a  Vossa  Alteza  ,  e  asy  Ihi  noliliquase,  que 
Vossa  Altesa  avia  por  bera  ,  que  ella  mandase  lo- 
guo  correger  a  dita  Caza  ,  como  dantes  eslava,  c 
lhe  asyuase  aquelle  termo  ,  qne  me  amy  pareçese 
conveniente  pêra  o  ella  mandar  fazer  ,  segundo  ea- 
lidade  da  Obra  ,  e  asy  escrevcse  a  Vossa  Alteza 
os  Aluimentos,  que  hy  avia  ,  e  os  letreiros,  que  tc- 
vesem.  Eu  Senhor  vim  loguo  afazer  o  que  Vossa  Al- 
teza me  mandava  ,  c  dise  Abbadesa  o  que  me  Aos- 
sa  Alteza  mandava,  e  vi  a  dita  Caza,  cm  que  esta- 
va as  ditas  Sepulturas,  a  qual  Caza,  Seuhor ,  he 
huua  Gualilé,  que  está  diante  da  Igreja  grande  de 
duas  naves,  a  qual  esta  saã  ,  e  inteira  das  paredes 
somente  está  decima  descuberta  do  telhado,  dise- 
nie  Abbadesa  ,  que  quando  viera  pêra  quella  Caza 
achara  ja  huõa  das  naves  descuberta  ,  que  cayra  , 
c  que  cila  mandara  dcscubrir  a  outra,  porque  nora 
cayse,  c  asy  me  deu  rezam  alem  diso,  que  lho  pa- 
recia ,  que  pcra  sua  onestidade  da  Caza  era  millior 
estar  asy  descuberta  ,  somente  cm  huu  cabo  delia 
está  huli  pedaço  de  telhado  cuberto  ,   e  cerquado 


com  huCas  grades  de  ferro  dentro  do  qual  estão  es- 
tas Sepulturas  ,  que  se  seguem  ;  a  saber  ;  duas  Se- 
pulturas grandes  com  vultos  cm  cima  de  huú  ho- 
me ,  c  huua  mulher  sem  ncnhuu  letreiro  ,  nem  es- 
cudo de  armas  ,  e  estes  diz  que  sam  de  Dom  Af- 
foDço  Sanches  filho  delRey  Dom  Diniz  ,  e  de  sua 
mulher  ,  os  quaes  diz  ,  que  fizerão  aquelle  Mostei- 
ro ;  estam  loguo  junto  destes  outros  dous  Muymen- 
tos  mais  pequenos  com  muitos  Escudos  nclles  na  pe- 
dra lavrados,  com  as  quinas  de  Portugal  em  huíía 
metade  ,  e  cinco  frolcs  de  Liz  de  França  na  outra 
metade  ;  e  estes  também  nom  tem  letreiro  nenhuu, 
e  diz  que  som  de  dous  filhos  do  dilo  Dõ  AlTonço 
Sanches  está  yso  mesmo  hy  outro ,  que  nom  tem 
armas  nem  letreiro  ,  e  he  fama  ,  que  he  de  huu 
Mestre  de  Santiago  destes  P.eynos  de  Purtugual ,  e 
nom  ha  memoria  do  nome  :  estam  hy  outros  dous  , 
que  lèm  huu  Escudo  em  huíí  cabo  que  tem,  Phufia 
metade  as  quinas  de  Porlugual ,  e  na  outra  metade 
as  cinquo  froles  de  Liz  ,  e  no  mco  huu  Escudinho 
raso  sè  nada  ,  e  no  outro  cabo  tem  outro  Escudo  , 
que  na  metade  tem  as  quinas  ,  e  frolcs  de  Liz  ,  c 
na  outra  metade  huua  Barra  cora  duas  cabeças  de 
Serpes  em  cada  ponta  sua  ,  e  na  parede  defronte 
dellc  está  huum  letercyro,  que  diz  que  aly  Jaz  Dõ 
Fernando  de  Meneses  ,  e  sua  mulher  bisneto  de  Dõ 
AfTonço  Sanches,  oqual  hé  Padroeyro  daquelleMos- 
teiro  :  Estes  Senhor  sam  os  Muymentos  ,  que  estam 
debayxo  daquelle  pequeno  culjcrto  ,  que  ficou  ,  e 
fora  delle  está  outra  Sepultura  no  descuberto  ,  que 
tem  huus  Escudos ;  a  saber  ;  em  huíía  metade  as 
quinas  de  Portugual  postas  em  aspa  ,  e  na  outra 
metade  huua  Cruz,  e  nora  tem  letreyro  ,  e  dizem 
que  he  de  huua  filha  do  Conde  Estabre  Dom  Nuno 
Alvres  Pereira  que  foy  mulher  do  Duque  DomAf- 
fonço  ,  filho  delRey  Dom  Joam  o  primeiro  ,  este 
Muyracnto  me  dise  Abbadesa  ,  que  quando  viera 
pêra  ly  o  achara  no  Coro  dentro,  e  qne  eslava  de- 
trás das  cadeiras,  e  que  quãdo  mandara  correger  o 
Coro  nom  sabendo  cujo  era,  o  mandara  aly  põr  fo- 
ra ,  e  aguora  por  que  soubera  cujo  era  o  queria 
mandar  põr  doutro  no  Capitólio,  e  asy  me  dise, 
que  mandava  fazer  huma  Capella  com  o  arquo  pêra 
dentro  para  a  Igreja  ,  pêra  por  nella  os  Muymentos 
de  Dom  Aflbuço  Sanches,  e  de  sua  mulher,  e  de 
seus  filhos,  que  edefiquaram  aquelle  Mosteiro  ,  e 
eu  vy  ja  a  dita  Capella  começada  ,  e  segundo  meu 
parecer  ella  feita  ,  e  acabada  segundo  amostra  que 
me  delia  mostraram  ,  ellas  estaram  na  dita  Capella 
railhor,  e  mais  hõradamente,  que  na  dita  Gualilé, 
ainda  que  se  cubra  como  dantes  :  Esto  Senhor  he  , 
o  que  achcy,  e  eu  toda  via  lhe  asyney  termo  daqui 
ale  Janeiro,  que  ella  tornase  mandar  cobrir  a  dita 
Gualilé  de  olibel ,  e  telha  como  anliguamente  soya 
estar  ,  porque  asy  o  mandava  Vossa  Alteza  ,  e  este 
termo  lhe  dey  ,  porque  ha  mester  muyla  madeira  , 
jicra  o  olivel ,  e  ade  vir  de  fora  ,  que  a  nom  há  na 
terra  ,  e  asy  telha  que  se  ha  de  fazer  no  veram  , 
porque  me  informey  com  Olliciaes  ,  que  tanto  era 
necessário,  asy  que  lodo  está  feito  como  Vossa  Al- 
teza me  mandou  ,  que  lizesse  ;  por  ora  Senhor  nom 
mais,  senam  que  a  Santíssima  Trindade  conserve, 
e  acrccênte  o  Real  Estado  de  Vossa  Alteza  a  seu 
Serviço.  De  Villa  de  Conde  a  20  de  Abril  de  1S25. 
r^  Do  vosso  Corregedor  de  Antrc  Douro ,  o  Minho 
o  Licenciado  António  Corrêa. 


Três  cousas  se  não  recuperam  depois  de  perdidas  : 
vergonha,  lealdade  c  virgindade. 


92 


o  PANORAMA. 


30o 


4'- 


A  TRâNSriGURAÇÃO  ;    ÇUABH.O  DO  ÍÍR.   ESqUIVEi. 


Na  planicie  d'Ksdrelon  ,  sitio  o  mais  vistoso  e  ame- 
no da  Palestina  ,  ergue-se  um  monte  por  lodos  os 
hJos  desacompanhado  ,  qiiasi  circular  desde  a  l)a- 
so  até  a  cima  ,  de  engraçado  contorno  ,  e  todo  re- 
vestido de  viçosa  verdura  e  variado  arvoredo :  é 
coroado  por  uma  superOcie  chaã  ,  que  já  fui  assen- 
to de  uma  povoação  e  de  uma  fortaleza  ;  dalii  se 
desfructam  dilatadas  e  encantadoras  vistas  para  to- 
das as  partes  ;  chama-se  o  monte  Ttiabor  ,  e  desde 
o  tempo  de  S.  Jeronymo  que  a  tradição  diz  ser  o 
logar  da  Transfiguração  ,  onde  o  Salvador  manifes- 
tou a  sua  gloria  a  três  apóstolos,  antes  de  ascender 
aoErapyreo,  e  onde  o  Pai  Celeste  confirmou  a  missão 
do  Filho.  Todos  os  viajantes  concordara  fazendo  uma 
piíitnra  deliciosa  desta  pequena  e  solitária  monla- 
nlia  :    poremos  aqui  as  palavras  de  dois,  um  portu- 

Setejibro  30—1843. 


gucz  e  antigo,  outro  estrangeiro  c  moderno  ;  am- 
bos de  muito  credito  ;  sabcndo-sc  que  entre  suas 
jornadas  mediou  um  longo  periodo  talvez  não  infe- 
rior a  2tí0  annos. — 

Fr.  Pantalcão  d'Aveiro  no  Itinerário  da  Terra 
Santa  ,  cap.  81  m  fine  ,  diz  assim  — «  chegá- 
mos ao  pé  do  monte  Thabor  ,  o  qual  izento  de  todo 
outro  monte  ou  outeiro  está  posto  naquelle  grande 
campo  ,  estendido  de  norte  a  sul ,  tão  gracioso  que 
sua  vista  nos  alegrou.  Não  é  demasiadamente  gran- 
de nera  alto  ,  mas  feito  a  modo  de  um  ovado  mui 
bem  proporcionado  ,  toda  sua  altura  coberta  de  um 

arvoredo   miúdo  e  baixo No  alto  vimos  estar 

três  igrejas  ,  ou  capellas  ,  quasi  de  lodo  cabidas  ,  e 
separadas  umas  das  outras,  as  quaes  foram  alli  edi- 
ficadas  a   honra   dos  Ires  apóstolos,   S.Pedro,   S. 

2,'  Serie.  —  Voi..  II. 


30(5 


O  PANORAMA. 


Thiago  e  S.  João  ,  por  causa  do  que  o  apostolo  S. 
Pedro  disse  ao  Senlior  :  «se  quereis  façamos  aqui 
Ires  moradas.  »  No  baixo  ao  pé  do  raonte,  vimos  as 
ruinas  de  grandes  edifícios  e  foram  de  um  sum- 
ptuoso mosteiro  de  cónegos  regrantes  de  St."  Agos- 
tinho ,  que  alli  esteve  sendo  a  terra  dos  christãos. 
.  . .  Deste  logar  do  santo  Thabor  vimos  estar  a  flo- 
rida Nazaretli  em  um  alto  ,  e  o  monte  Carmelo  e 
parte  do  monte  Libano  ,  e  outros  muitos  logares  de 
que  a  Sagrada  Escriptura  faz  memoria  ,  cuja  vista 
me  era  sunimamente  deleitosa  ,  não  somente  aos 
olhos  corporaes  ,  mas  também  aos  interiores  da  al- 
ma   ))  — 

Na  viagem  do  Sr.  A.  de  Lamartine  lemos  o  se- 
guinte. —  «li-  d'outubro  de  1832.  —  Partida  ás 
quatro  da  ninnliaã  para  o  monte  Thabor,  designado 
o  logar  da  Transliguração ,  o  que  ó  improvável, 
porque  nessa  epocha  o  alto  do  Thabor  era  occupa- 
do  pbr-uma  cidadella  romana.  X  situação  insulada 
e  a  el-evuçiio  desta  montanha  deleitosa  ,  que  surge 
á  similhança  de  moita  de  verdura,  da  planície  de 
E'sdrelou„  foz  que  a  escolhessem  no  tempo  de  S. 
Jeronymn  para  campo  daquella  sccna  sagrada.  Eri- 
giram uma  capella  na  chapada  onde  vão  os  pere- 
grinos assistir  ao  sacrosanto  sacrificio  ;  nenhum  pa- 
dre lá  reside,  mas  vão  ahi  de  Nazarelh.  —  Chega- 
dos a  falda  do  Thabor  —  soberba  pyramide  cónica 
de  perfeita  regularidade  ,  forrada  por  Ioda  a  parte 
de  plantas  e  de  azinheiras  —  o  nosso  guia  perde-se. 
—  Sento-mo  sósinho  á  sombra  de  um  formoso  car- 
valho qiinsi  no  sitio  ondeUaphael  em  seu  quadro  {•) 
pòz  os  discijHilos  deslumbrados  pelo  clarão  que  vem 
do  CPU  ;  espero  que  o  sacerdote  celebre  a  missa  : 
lá  do  alto  nos  ó  nnnunciada  por  um  tiro  de  pistola, 
para  que  pudéssemos  ajoelhar  nos  degraus  deste  al- 
tar gigante  em  presença  d'Aquelle  que  levantou  o 
altar  e  fabricou  a  brilhante  abobada  celeste  que  o 
cobre.  » 

Não  obstante  ser  o  mysterio  religioso  de  que  fal- 
íamos assuinplo  magnifico  em  que  os  mais  insignes 
lueslres  exercrilarani  o  pincel  ,  na  Exposição  publi- 
ca de  pinturas  mnlrilense,  doanno  de  1S37,  appnre- 
ceu  o  quailro,  de  que  é  reduzido  trausumpto  a  gra- 
vura acima  ;  obra  que  entre  as  mais  S(d)resahiu  por 
jnuitas  bellezas  ,  c  em  que  o  Sr.  Esquivei  ,  pintor 
nomeado  do  reino  visinho  ,  apurou  o  seu  engenho 
artislico,  mostrando  que  ainda  tinham  as  Bellas- 
Arles  dignos  cultores  na  pátria  deA'clasquez  eMu- 
rillo. 


Revixdicaçào  d\  gloria  csrnpvDA  A  Peduo  Ai.vaiíks 
Cabral  >o  secllo  19.° 

*  • 

Ninguém  ainda  se  atreveu  a  querer  despojar  Chris- 
tovam  Colombo  da  gloria  de  ser  o  descobridor  da 
.America:  ao  menos  com  muita  rasão  o  mundo  o 
acclama  como  tal.  .Alas  ha  infelizmente  quem  hoje 
se  atreva  a  flucrcr.  (iis|iular  a  Pedro  Alvares  Cabral 
a  gloria  de  ser  q,^'dcscobrid(n-  do  Brasil. 

Suppõe-sc -qiie  a  America  fora  conhecida  dos  an- 
tigos com*  o  nome  -úc  ilha  Atlântida  (1)  :  opini(R'S 
ha  comtudo  ,  e  mui  solidas,  que  o  contestem.  É 
porem  certoquc  visia  Colombo  na  ilha  da  Madeira 
cm  1Í80  quando  alli  aportara  meslrc  Francisco 
Sanches  com  três  ou  quatro  marinheiros  ii'uma  ca- 
ravella  desiroçada.  queimpellida  d'um  grande  lem- 

(•)  A  Traiisfi;.'iir.n;,'io  ó'rini  solerlio  |i;iiiipl  de  Rapliiiei  : 
fla  CMpi.i  que  cm  Ruma  cxtraliiu  o  Sr.  A.  Manuel  «la  Fon- 
seca fall:'íimií  a  |ia?.  30.5  do  1.°  vol  da  presente  Serie. 

(!)     J'latúo  lil).  33. 


poral  fora  era  remotíssima  longitude  occidental  de- 
parar com  terra  não  posla  cm  mappa  ,  ou  carta  de 
marear  (i).  Colombo  devera  mui  naturalmente  bus- 
car ouvir  6  saber  os  casos  desta  derrota  ;  e  como 
alumno  e  companheiro  da  academia  de  Sagres, 
creada  pelo  inclyto  infante  D.  Henrique  ,  homem 
não  era  elle  de  desperdiçar  o  que  ouvira  cm  caso 
de  tamanho  momento  :  confirmam-n'o  sobejamente 
a  pressa  com  que  sahíra  do  seu  novo  domicilio,  e 
as  instancias  com  que  buscou  os  meios  de  eITcituar 
a  viagem  que  descobriu  o  novo  mundo  (3). 

Alem  diito  ,  d'ha  muito  se  julgava  ser  aterra 
redonda  ,  haverem  arjtipodas  (4)  ,  e  que  o  oceano 
atlântico  devera  em  consequência  banhar  duas  cos- 
ias. Colombo  pois  acreditou  que  a  terra  que  San- 
ches descidjríra  era  a  ilha  do  Japão  ,  ou  Cypango 
de  Marco  Paulo,  e  que  navegando  sempre  a  oeste 
iria  dar  no  reino  de  Caltayo  ,  ou  no  paiz  de  Sinas, 
hoje  Chinas,  e  que  acharia  a  rota  das  Índias  mais 
facilmente  do  que  os  portuguezes  dba  muito  bus- 
cavam em  roda  d 'Africa  (5). 

Nem  em  Génova,  nem  em  Portugal  quizerara  an- 
nuir  ao  novo  plano  de  navegação:  realisou-o  com- 
tudo em  Castella  ,  mas  somente  depois  de  perder 
alguns  annos  em  sollicitar  a  corte  .  que  o  rejeitara 
a  princii)io  ;  e  assim  mesmo  o  conseguiu  .  não  por 
ser  melhor  o  juizo  e  o  entendimento  daquelles  cos- 
nuigraphos,  como  pelas  suas  repetidas  instancias , 
e  pelo  poderoso  valiraenlo  de  alguns  nobres. 

Feitos  os  appreslos,  deu  á  vela  de  Paios  com  três 
cara\ellas  cm  agoslo  3,  1192.  Em  11  de  outubro 
deu  >ista  da  ilha  (iuanahy,  uma  das  Lucayas:  des- 
coiíriu  depois  a  ilha  de  Cuba,  e  a  Ilcspanhola,  ho- 
je S.  Domingos,  que  os  indígenas  chamavam  Hay- 
ty  :  tornou  a  fazer  rota  para  a  Europa  ,  e  aportou 
a  Eisboa  em  março  6,  1493. 

Na  segunda  viagem  Colombo  sabiu  de  Cadix  em 
setembro  2o,  1493:  desembarcou  na  Ilcspanhola, 
descobriu  a  Jamayca  ,  e  grande  numero  de  ilhotes 
ao  sul  de  Cuba.  A  terceira  foi  em  1498:  avistou 
a  ilha  da  Trindade ,  e  desembarcou  em  algumas 
parles  da  costa  de  Paria.  Na  quarta  sabiu  de  Ca- 
dix em  maio  9,  1302:  aportou  á  Ilcspanhola,  des- 
cobriu a  ilha  Guanaya  ,  e  Ioda  a  costa  continental 
desde  o  cabo  Graças-a-Deus  até  Porto  Uello. 

Sabe-se  geralmente  que  Colombo  suppóz  que  des- 
cobrira a  ilha  Cypango  ,  e  que  o  seu  pensamento 
original,  bem  como  o  dos  outros  ilhislres  navega- 
dores posteriores,  Fernão  de  Magalhães,  Piuzon  , 
e  Solís,  fora  achar  passagem  á  índia  pelo  mar  do 
sul.  Apesar  de  tudo  isso,  e  de  provarmos  que  do- 
ze annos  antes  da  sua  primeira  viagem  Colombo 
soubera  do  mestre  Francisco  Sanches  que  a  oeste 
havia  terra  não  posta  cm  mappa,  ou  carta  dema- 
rcar, não  nos  atrevemos  a  defraudar  o  illustrc  gc- 
novez  de  um  titulo  de  gloria  que  o  mundo  lhe  con- 
ferira. 

Talvez  que  alem  dos  factos  podcranios  allcgar 
mui  \aliosas  rasõcs  ,  e  taes,  por  exenjplo  ,  como: 
que  Sanches,  homem  rude,  sincero,  e  não  ambi- 
cioso, dissera  o  que  sabia  c  passara,  e  que  nem 
dahi  lhe  viera  gloria  ,  nem  soubera  lalvcz  ganha- 
la  :  que  Colombo,  dcjlado  de  grajules  talentos,  pers- 
picácia ,  e  conhecimentos  náuticos  ,  se  aproveitara 
das  declarações  de  Sanches,  o  que  conlirma  a  cons- 


(2)     Gomara.   Hislor.     de   las  Indi.is.   Cap.  13.   T.  In- 
tlicc  C/ironol.   Lislioa  ,    18-11  p.  75. 
(.•?)      Mallr-lirim.  tom.  0." 

(4)  Pliii.  Hisl.  Nalnr.  lib.  8.°  cap.  64  c  65. 

(5)  Ju.lo  de  Barros. 


o   PANORAx^lA. 


307 


tanle  persistência  cm  seu  plano  uns  poucos  de  ân- 
uos depois  de  rogcilad<i  cm  duas  cortes  illuslradas, 
e  ale  mesmo  uaqiiella  que  ao  depois  o  acccitou  : 
que  nada  do  positivo  e  explicito  promcltcra  nunca 
senão  uma  terra  a  oeste  [lauto  quanto  dissera  San- 
ches] ,  promessa  vaga  c  iiuUliuida  ,  senão  insensa- 
ta ,  sem  levlemuiiho  de  f.ictos  ,  de  historia  ,  ou  da 
scicncia  :  que  linalmente  ató  a  sua  ultima  viagem 
nunca  julgara  haver  descoberto  um  novo  conti- 
nente. 

Não  fora  assim  que  o  grande  Gania  fizera  a  sua 
rota  das  Itulias:  pòz  proa  ao  oriente,  demandou-o 
com  vontade  positiva  ,  com  plano  maduro  c  delibe- 
rado ,  scicncia,  e  consciência  do  que  fazia.  Cum- 
tudo  nunca  os  portuf^uezes  se  atreveram  a  querer 
usurpar  a  gloria  de  Cidombo  :  bastante,  e  de  sobra 
lecm  elles  para  não  mendigarem  o  alheio.  Espere- 
mos justiça  do  tempo,  e  do  compulsar  dos  archi- 
vos  :  cila  ,  tarde  ou  cedo,  lrium|)ha. 

Mas  dado  que  assim  o  façamos  acerca  deste  pon- 
to ainda  controverso,  não  seremos  uós  que,  depois 
de  exinanidos  e  desangrados  na  substancia  e  na 
forma,  nos  deixemos  agora  também  despojar  da  ri- 
ca herança  ,  que  nos  legaram  intacta  os  antcpassa- 
sados,  sem  ao  menos  soltarmos  um  grilo  gemebun- 
do, c  exclamar  —  não:  tirera-nos  tudo,  menos  a 
honra  c  a  gloria. 

Pedro  Alvares  Cabral  foi  ale  hoje  havido  como 
descobridor  do  Brasil  na  opinião  geral  do  mundo. 
Foi  comtudo  disputada  esta  gloria  ao  illuslrc  na- 
vegador portuguez :  eram  escriptores  castelhanos 
ciosos  delia  osque  mais  seoppunhara,  para  adarem 
a  Vicente  Vanes  Pinzon. 

Cabral  sahiu  de  Lisboa  a  9  de  março  de  liJOO, 
e  avistou  a  terra  da  Vera-Cni:  a  22  de  abril  em 
17"  latitudes.,  e  a  23  desembarcaram.  Pinzon, 
i[ue  acompanhara  Colombo  na  primeira  viagem,  deu 
,i  vela  com  quatro  caravellas  em  dezembro  de  1199, 
c  pretendem  que  cm  26  de  janeiro  de  1'600  apor- 
tara ao  Cabo  de  St.°  Agostinho,  ao  qual  chamara 
Cabo  âe  ta  Consolacion.  Se  tudo  isto  assim  lòra  ,  a 
prioridade  do  descobrimento  do  Brasil  iiicontesta- 
Telmcnle  pertencera  a  Pinzon  que  não  a  Cabral. 

Aão  fora  até  qui  muito  de  estranhar  que  antigos 
escriptores  castelhanos,  zelosos  da  gloria  de  um  seu 
compatriota,  ou  buscando  augmentar-lhe  a  que  já 
tinha  ,  mas  não  com  este  titulo,  assim  o  sustentas- 
sem. Mas  revolta  sobremodo,  e  nada  ha  que  o  pos- 
sa desculpar  ,  que  um  escriptor  moderno,  estran- 
geiro e  alheio  a  todo  o  ciúme  honesto  de  nacio- 
nalidade ,  se  deslise  grosseiramente  da  Loa  fé  e 
lealdade  de  historiador. 

Roberto  Southey  na  sua  «Historia  do  Brasil» 
usurpa  a  gloria  de  Cabral  para  a  dar  a  Pinzon.  E 
saiba-se  que  o  largo  e  avultado  credito  do  auctor 
na  sua  pátria,  e  no  mundo  litterario,  como  chro- 
nista  da  Graã-Brctanha  ,  e  seu  poeta  laureado  ,  é 
ominoso  para  a  gloria  de  Cabral  :  alem  disso  a  eru- 
dição e  profundidade  da  obra  demandam  uma  re- 
futação mui  seria  e  cathegorica. 

Da  narração  histórica  da  viagem  de  Pinzon  se 
coUige  claramente  que  não  fora  o  Cabo  de  St. "Agos- 
tinho ,  que  elle  avistara,  o  qual  fica  em  8'-i°  S.  , 
mas  o  Cabo  do  norte  cm  lat.  2"  norte,  llerrera  diz 
assim  :  —  «Se  fucron  por  la  costa  abaxo  quarenta 
léguas  ai  Poniente,»  e  que  logo  entraram  no  Ma- 
ranhão ,  Orellana  ,  ou  Amazonas.  Ora  do  Cabo  do 
norte  a  este  grande  rio  são  em  verdade  quarenta 
léguas,  mas  do  de  St.°  Agostinho  muito  raais  de 


quatrocentas  :    logo  Pinzon  não  descobriu  ,    nem  lo- 
cou costa  do  Brasil. 

Muito  maior  censura  ainda  merece  o  auclor  in- 
glcz  quando  com  mui  pouca  lealdade  omittiu  e  cal- 
lou  aquillo  que  destruia  a  sua  opinião.  Faz  pasmar 
que  tão  tniudanienle  em  tudo  nos  contasse  a\iagcm 
de  Pinzon  ,  e  omiltisse  a  circumstancia  essencial 
das  quarenta  léguas.  Diz  elle  assim  ,  tom.  I  [lag.  5 
«  Fidin  lii-nce  they  coaslcd  ahiiiy  tuirard  tlie  ^orth 
lilt  they  cainc  lo  lhe  tnoul/i  <>f  a  great  lirer.  »  Deve- 
ra extractar  lealmente  os  escriptores  bespanlmes  , 
que  compilava  ,  e  até  mesmo  respeitar  a  auct(jrida- 
de  de  Uoberlson  ,  seu  compatriota. 

llerrera  lealmente  nos  diz  que  Pinzon  proseguin- 
do  em  sua  viagem  [do  Cabo  do  norte  sustenlàmos 
nós]  depois  de  andar  as  quarenta  léguas  entrou 
n'ttm  mar  de  agua  doce....  era  o  Amazonas.  Ao 
paiz  todo  chamavam  os  indígenas  Mariatambal  ;  á 
parle,  que  se  estendia  ao  oriente,  Camomurà ;  e  á 
do  occidente  Paricnrú. 

Depois  de  passar  riscos  iguaes  aos  que  Colombo 
livera  em  Iloccas  dei  Dragnn  ,  perdeu  um  navio: 
atravessou  a  linha  ,  e  chegou  ao  Orenoco  ,  d'onde 
se  fez.  na  volta  da  Europa  ,  perdidos  nas  correntes 
mais  dois  dos  outros  Ires  navios.  Um  rio  na  Guia- 
na em  lai.  1"  30'  N.  tomou  o  nome  de  Pinzon  :  é 
hoje  o  Oyapok  ,  outr'ora  baliza  das  possessões  por- 
luguezas  e  hespanholas.  Carlos  S.°  mandou  abi  pôr 
um  pillar,  o  qual  se  perdera  depois  que  os  fran- 
cezes  entraram  na  Goiana:  mas  em  1723  um  olíi- 
cial  do  Pará  o  descobriu.  —  B.  P.  de  Berredo.  I. 
§13,15. 

Tihurcio  António  Craveiro. 


A  JiÃi  DE  família. 


Copia  de  nm  quadro  de  João  Baptista  Greuze  , — 
a  Noiva  d'Aldca  ,  —  dénios  em  o  4."  vol  da  i.'  Se- 
rie, pag.  317,  c  ahi  o  bosquejo  da  biograpbia  des- 
te artista  ,  que  sobrcsahiu  no  género  particular  de 
pintar  sccnas  da  ^ida  domestica,  sendo  sem  com- 
paração menos  feliz  nos  quadros  verdadeiramente 
históricos.  —  Estampamos  o  esboço  de  outra  com- 
posição sua  que  é  intitulada  «aSIãi  defamilia.»  No 
original  avaliam  os  bons  entendedores  a  expressão 
dasITguras,  que  era  o  melhor  dote,  a  qualidade 
mais  eminente  do  pincel  de  Greuze.  No  gesto  da 
figura  principal ,  cm  toda  a  sua  postura  ,  c  no  ex- 
pressivo da  physionomia  conhcce-se  claramente  ser 
uma  mulher  entregue  aos  cuidados  nialernacs  ;  pa- 
rece que  se  está  ouvindo  fallar,  reprcbcndendo  o 
filho  mais  velho  porque  toca  uma  Ironibetinba  ;  co- 
mo se  cila  dissera  :  —  não  reparas  que  acordas  teu 
irmão.  —  r.  também  mui  notável  e  superiormente 
debuxada  a  physionomia  carrancuda  ,  o  modo  des- 
contente e  amuado  do  rapaz  ,  porque  a  niãi  lhe  ve- 
dara o  regalo  de  fazer  motim.  —  Greuze,  repeli- 
mos ,  não  era  magistral  no  colorido  ,  nem  na  cor- 
recção c  magestade  do  desenho,  mas  qnanto  a  in- 
ventar c  fazer  interessantes  as  scenas  familiares  tal- 
vez que  nenhum  o  excedesse,  nem  com  elle  rivali- 
sasso  naquella  graça  c  naquelle  attractivo  da  ver- 
dade ,  poderosos  agentes  auxiliadores  da  arte.  — 
Didcrot  disse  deste  pintor:  —  «é  o  primeiro  que 
tem  dado  costumes  á  arte ,  e  tem  sabido  encadear 
os  sucessos ,  de  maneira  que  seria  fácil  pelos  seus 
í  quadros  escrever  uma  novella.  » 


308 


O  PANORAaiA. 


A   ItIÃI   SE   FAMIXiIA. 


Mantíl  de  SolSA  DE  Sefilveda. 
VH. 

o  seguimento  e  o  fim. 


Vrrno  morrer  com  fome  es  filhos  c/iarcs  , 
E:n  tanto  amor  gerado-^  e  iiascidus  j 
f 'trilo  os  cafrfs  amperes  e  aiaros 
Tirar  ú  li/iila  dama  seus  vtslidos: 
Os  cri/slaliiws  innnbros  e  pnc/oros  , 
A^  calma  ,  ao  frio  ,  ao  ar  virilo  despidos  : 
Vi  pois  de  ter  pisado  loiujamentc 
í'e'os  delicadoi  pi's  a  ar/a  ardente. 

Lus.  Caiit.  5  Est.  47. 

E  rerito  mais  os  olhes  (jue  escaparem 
De  tanto  mal,  de  tanta  deseenturo, 
'Is  dois  amantes  míseros  ficarem 
Aaft  rvida  e  itnplacabil  espessura. 
Jlli ,  despois  que  as  pedras  abrandarem 
Com  lagrimas  de  dôr  ,  de  niaijoa  pura  , 
Alimpados  as  almas  soltarão 
Da  formosa  c  misserrima  prisiío. 

V."  E»l  40. 

Ao  c.\iio  de  doze  dias ,  convalescidos  os  enfermos  , 
c  j;i  tom  forçíis  para  a  jornada  ,  fez  o  capilão  uma 
Lrcíc  falia  á  genle,  cxhorlando-os  a  não  desalentar 


nos  trabalhos  ,  consolando-os  com  a  esperança  de 
sahir  d'elles,  e  pedindo  muito  a  lodos  que  o  não 
desamparassem  ,  nem  deixassem  só  ,  ainda  que  por 
causa  de  sua  mulher  c  lilhos  não  podesse  caminhar 
tanto  como  elles.  Promettcram  unanimemente  que 
assim  o  fariam  ,  e  ajustaram  ir  sempre  ao  longo  da 
praia  ,  porque  era  melhor  caminho. 

Começaram  a  jornada  aos  solo  dias  de  julho.  Ma- 
nuel de  Sousa  com  sua  mulher  e  filhos  c  oitcnl» 
porluguezese  cem  escravos,  na  vanguarda.  Seguiam- 
-se  o  mestre  e  piloto  com  todos  os  homens  do  mar, 
com  uma  bandeira  e  crucifixo  arvorado.  Na  reta- 
guarda 1'antalcão  de  Sá  ,  com  o  resto  dos  portu- 
guezes  e  escravos  ,  que  seriam  perto  de  duzentas 
pessoas.  A  pé  caminhavam  todos  excepto  D.  Leonor 
que  ia  em  umas  andas  ás  costas  dos  cafres :  e  as- 
sim andaram  todo  aquellc  lucz  com  grande  fadi- 
ga ,  sem  comer  em  lodo  elle  mais  que  arroz  e  al- 
gumas frutas  silvestres  ,  e  tão  fracos  que  por  não 
poderem  continuar  a  jornada  ficaram  por  esses  mat- 
tos  uns  dez  ou  doze  dacomiliva.  Em  todoesse  tem- 
po não  adiantaram  pela  costa  mais  de  trinta  léguas, 
passando  de  cem  as  que  rodearam  por  cansa  das 
grandes  voltas  dos  rios  ,  fragosidade  das  monta- 
nhas e  outros  embaraços  de  que  a  cada  passo  e- 
ram  atalhados.  E  no  dia  exactamente,  que  se  cora- 


o  PANORAMA. 


309 


pletara  um  mez  desta  triste  e  trabalhosa  peregri- 
uação,  (leram  noticia  a  Manuel  de  Sousa  de  Sepúl- 
veda que  um  filho  seu  bastardo  .  de  idade  de  dez 
aunos  ,  que  vinha  ás  costas  de  uui  cafre  ,  lhe  fica- 
va alraz  quasi  meia  logua  com  o  seu  conduclor  , 
ambos  jazendo  no  chão  de  cansaço  c  de  fome. 
—  iez  alto ,  c  promctteu  quinhentos  cruzados  a 
quem  lhe  fosse  buscar  o  menino  ;  mas  ninguém  ou- 
sou a  isso  por  ter  já  anoitecido  ,  com  receio  das 
feras  que  infestavam  todo  aqucllc  caminho.  Isto 
sentiu  elle  tanlo  que  esteve  em  termos  de  endou- 
decer :  mas  resignou-se  e  foi  seguindo  sua  derrota. 
Ahi  lhe  ficaram  também  alguns  portuguezes  e  es- 
cravos :  e  lodos  os  dias  ia  assim  perdendo  duas 
ou  três  pessoas,  que  eram  pasto  dos  tigres  c  das 
serpentes  apeuas  se  separavam  do  resto  da  comitiva, 
listes  que  por  lhes  dcsfalleccrem  as  forças  se  apar- 
tavam dos  companheiros  c  talvez  de  amigos  ,  e  al- 
guns de  seus  proi)rios  irmãos  ,  e  pacs  ,  ao  darem 
o  abraço  da  despedida  ,  certos  já  de  uma  mor- 
te horrível ,  faziam  tamanhas  lastimas  que  não  ha- 
via coração  que  se  não  enternecesse  ,  e  que  não 
chorasse  mais  aquella  desaventura  que  os  trabalhos 
em  que  todos  se  viam  ,  que  eram  grandes. 

Por  aquellas  solidões  marchavam  atormentados 
continuamente  do  pensamento  do  seu  infortúnio  , 
opprimidos  da  fome  ,  investidos  dos  animaes  fero- 
zes,  e  [o  que  mais  duro  parecia]  assaltados  algu- 
mas vezes  pelas  próprias  creaturas  humanas,  ainda 
mais  ferozes  que  os  tigres  —  os  cafres  das  hordas 
selvagens.  Estes  assaltos  eram  frequentes  sobre  tu- 
do nos  passos  estreitos.  E  um  d'elles  que  foi  de' 
lodos  o  mais  apertado  e  terrível,  ia-lhcs  sendo  fa- 
tal. Era  decorrido  mez  e  meio  da  sua  jornada  , 
quando  unia  tarde  ,  quasi  ao  pòr  do  sol  ,  descobri- 
ram uma  multidão  innuraeravel  de  cafres  ,  arma- 
dos de  frechas  e  azagaias  ,  que  com  grandes  ala- 
ridos vinham  descendo  por  uma  ladeira  Íngreme. 
Eram  inimigos.  Cerra-se  a  gente  em  ordem  de  pe- 
leja. Põem-se  na  frente  os  mais  valentes;  e  alli  es- 
peram animosamente  o  ataque.  Chegam  os  cafres 
em  tropel ,  soltando  gritos  selvagens,  indicio  da 
confiança  com  que  contavam  fazer  carniceria  e  des- 
pojo fácil  de  tão  pequeno  numero  de  europeus.  Des- 
pedem sobre  estes  um  chuveiro  de  setlas  hervadas. 
Respondem-lhe  os  nossos  com  algumas  armas  de 
fogo  que  salvaram  do  naufrágio  ,  e  entre  ellas  um 
ou  dois  arcal)uzes.  As  balas  fazem  bom  emprego  e 
estrago  nos  inimigos.  Mas  eram  muitos  :  não  desis- 
tem :  liram-se  as  espadas,  ctrava-se  a  ferro  frio  de 
parle  a  parte  o  combale. —  Cabem  muitos  dos  cafres; 
mas  dos^nossos  lambem  morrera  alguns.  Obram  pro- 
dígios de  valor  Jlanuel  de  Sonsa  ,  e  os  cavalleiros 
portuguezes  que  alli  estavam.  Distingue-se  por  mui- 
tos rasgos  d'esforço  e  intrepidez  Diogo  i[endes  Dou- 
rado :  mas  succumbe  atravessado  de  uma  azagaia  o 
denodado  guerreiro.  Accompanha-o  na  coragem  e 
no  infortúnio  .\nlonio  de  Sampaio,  que  rende  ávida 
á  ponla  envenenada  de  duas  seitas.  Eslava  muito 
duvidoso  e  arriscado  o  condido.  Que  alguém  jul- 
gue ,  se  pôde  ,  da  afllicção  d'aquelles  que  por  fal- 
ta de  forças  ou  de  armas  o  presenceavam  sem 
tomarem  n'elle  parle  activa.  Ao  menos  aos  que 
eomballiam,  o  calor  da  refrega  não  deixava  re- 
flectir :  os  que  não  eomballiam  pensavam  ,  com  an- 
cioso  cuidado,  na  possibilidade  de  um  desfecho  fu- 
nesto a  todos.  Que  angustias  não  padeceria  n'esles 
momentos  o  coração  de  D.  Leonor  I  A  incerteza  du- 
rou até  o  cahir  da  noile  ,  em  que  os  ferozes  cafres 
bem  escalavrados,  se  retiraram  depois  da  lucta  a 


mais  sanguinolenta  c  porfiada,  cm  que  os  nossos  se 
virara  empenhados  durante  aquella  jornada.  Com  a 
noite  e  a  viotoria  não  cessaram  os  receios.  Poze- 
ram-se  vigias:  c  se  o  vento  assobiava  ;  se  sussur- 
rava uma  folha;  se  rumorejava  um  silvado;  se  voa- 
va uma  ave  ;  se  crocitava  ura  corvo  ;  se  bramia,  ao 
longe  ,  ura  ligre  ;  se  se  ouvia  o  ruido  de  uma  ser- 
pente rojando,  de  um  animal  perpassando,  de  uma 
pedra  cahindo  de  algum  monte  visinho  —  era  um 
rehalc  de  cafres  que  vinham  de  novo  ataca-los.  Os 
acordados  punhani-se  á  leria.  Os  que  dormiam  so- 
nhavam cousas  eslraidias  e  espantosas.  Dahi  a  pou- 
co sonhavam  cora  fontes  cristalinas  ,  com  iguarias 
e  banquetes  ,  com  palácios  fantásticos  ,  com  o  lei- 
to macio  e  commodo  da  casa  paterna  ;  c  acordando 
achavam-se  desmentidos,  sedentos,  faminlos,  dei- 
tados sobre  o  descampado  dos  sertões  I  Despertos, 
alTigurava-se-lhes  então  ver  diante  de  si  os  espe- 
ctros ensanguentados  dos  dois  cavalleiros  portugue- 
zes que  tinham  perecido  ,  havia  poucas  horas  ,  na 
peleja  com  os  cafres;  e  convulsos  de  frio ,  e  de 
horror  persignavam-se  ,  c  resavam-lhcs  pela  alma  '. 
Assim  passaram  inquietos  aquella  noite  cruel,  e 
ao  outro  dia  continuaram  a  sua  derrota.  Desapres- 
sados  dos  cafres,  perseguiam-nos  reflesões  mais  pun- 
gentes do  que  as  próprias  azagaias  dos  salteadores. 
E  como  se  fora  pouco  lauto  sotTrimealo ,  quando  o 
acaso  lliesdeparava  frutas  nos  mallos,  ou  nas  praias 
mariscavam  algum  peixe  d'essc  que  o  mar  de  si 
regeilava  ,  fallava-lhes  agua  que  por  muito  escassa 
e  perigosa  de  buscar  pelo  sertão  chegou  a  vender- 
se  a  dez  cruzados  o  quartilho.  D'ella  repartia  ."\Ia- 
nuel  de  Sousa  por  sua  mão  a  lodos  e  a  si  próprio 
cora  a  mesma  igualdade,  e  da  sua  mesma  ração  ti- 
rava para  beberem  dois  filhinhos  de  peito  queconi- 
sigo  trazia. 

Este,  que  parecia  ser  extremo  da  fome  e  sede, 
ainda  passou  a  mais ,  e  a  tal  miséria  chegou  ,  que 
obrigados  delia  a  se  metlerem  pelo  sertão  ,  ahi  se 
sustentavam  dos  animaes  qne  achavam  mortos  ,  e 
com  os  pós  dos  ossos  torrados  de  que  cosiuhavam 
bolos,  e  algumas  papas.  Síuitas  vezes  succedeu 
vender-se  no  arraial  uma  pelle  de  cabra  sêcca 
por  quinze  cruzados  ,  lançá-la  de  molho  ,  e  co- 
mé-la. 

Ao  cabo  de  Ires  mezes  chegaram  aos  domínios 
de  ura  rei  ,  chamado  Inhaca  ,  que  vivia  já  perto 
do  rio  do  Espirito  Santo  ;  homem  alto  ,  bem  as- 
sombrado ,  velho  ,  barba  veneranda  e  toda  bran- 
ca ,  muito  bem  inclinado  ,  e  amigo  dos  ponugue- 
zes ,  e  que  por  ler  alguma  parecença  com  o- gover- 
nador Garcia  de  Sá  lhe  pozeram  o  seu  nome  Lou- 
renço Marques  e  António  Caldeira  ,  que  dos  nossos 
naluraes  foram  os  primeiros  a  intentar  aquellas  pa- 
ragens. O  Inhaca,  avisado  da  vinda  dos  nossos,  os  foi 
buscar  ao  caminho,  e  os  hospedou  na  aidóaem  que 
residia.  E  ouvindo  a  Manuel  de  Sousa  a  determinação 
em  que  estava  de  passar  adiante,  procurou  dissua- 
di-lo :  que  se  demorasse  até  vir  o  navio  do  resgate 
de  Moçambique  onde  se  poderia  ir  :  que  nesse  in- 
tervallo  lhe  ministraria  tudo  o  que  na  sua  terra 
houvesse ;  e  que  não  tratasse  de  oulra  cousa  ,  por- 
que se  de  alli  passasse  ,  havia  de  ser  roubado  e 
maltratado  por  um  rei  ,  que  estanceava  adiante,  e 
se  chamava  Ofumo  ,  que  era  mal  intencionado  e 
perverso  homem.  Manuel  de  Sousa  que  não  se  atre- 
via a  esperar  alli  um  anno  ,  porque  eslava  saudoso 
da  pátria  ,  e  lhe  não  soflria  o  animo  ver  por  tanto 
tempo  victima  das  privações  e  incommodos  do  silio 
a  mulher  mimosa  e  costumada  a  outro  tratamento , 


310 


O  PANORAMA. 


I 


posto  que  agradeceu  ,   não  acccitou   este  conselho. 

Comludo  ,  a  instancias  do  rei  ,  deteve-so  alguns 
dias,  e  da  gente  que  trazia  lhe  deu  30  homens  es- 
colhidos e  Panlalcão  de  Sá  por  commandaiite  para 
juntamente  com  500  cafres  e  capitães  tanihcm  gen- 
tios irem  castigar  um  potentado  visinho  ,  com  o 
qual  o  Inhaca  andava  em  guerra.  Foram,  e  atacan- 
do a  povoação  do  inimigo  lira  queimaram  e  toma- 
ram todo  o  gado,  com  que  se  recolheram.  Das  pre- 
gas partiu  com  os  nossos  o  rei  :  e  passados  cinco 
dias  se  despediram  d'elle  que  os  foi  acompanhan- 
do, e  clles  foram  marchando  resolvidos  a  tornear  a 
bahia  de  Lourenço  Marques,  e  passar  os  rios  pela 
margem  superior. 

Aquelle  dia  chegaram  a  um  que  se  chamava  Be- 
lygane  e  verte  na  barra  de  Lourenço  Marques,  on- 
de também  desembocam  outros  chamados  Anzate  , 
Ofumo ,  e  Manhiça.  Chegados,  pediram  a  clrci 
mandasse  pôr  á  sua  disposição  algumas  almadias 
que  alli  havia  ,  que  são  embarcações  inteiriças  de 
um  só  p;iu  ,  cavado  [)or  dentro,  compridas  algumas 
de  vinte  c  mais  braças,  c  capazes  de  outras  tantas 
toneladas.  Mas  orei  que  sabia  que  o  rio,  largo  de 
■vinte  léguas  ,  não  era  navegável  de  embarcações 
mais  pequenas  ,  e  que  tinha  ardentes  desejos  de 
conservar  comsigo  os  portuguezes  ,  recorreu  ,  para 
lhes  impedir  o  trajecto,  a  quantos  subterfúgios  pô- 
de inventar.  Manuel  de  Sousa  receoso  de  perfulia 
que  não  existia  ,  teimava  ainda  mais  na  sua  reso- 
lução de  passar  adiante  ;  prometlia  paga  avultada 
aos  cafres  que  o  conduzissem  ;  presenteava  o  rei  , 
para  o  contentar,  com  algumas  das  armas  que  le- 
Tava  ;  rogava-lhe  que  se  recolhesse  n  sua  terra  ;  e 
tanto  perseverou  em  suas  rogativas  que  o  rei  se  re- 
tirou e  os  seus  ,  c  o  deixou  seguir  a  jornada. 

Então  Manuel  de  Sousa  fez  ,  primeiro  ,  passar  á 
outra  banda  do  rio  trinta  homens  com  três  espin- 
gardas: depois  passou  elle :  e  logo  o  resto  da  gen- 
te. Desembarcados,  proseguiram  caminhando  cinco 
dias  em  que  venceram  vinte  léguas,  até  que  foram 
tèr ,  já  noite,  ao  rio  Anzate.  Á  borda  d'elle  as- 
sentaram arraial ,  e  se  agasalharam  na  arca  :  mas 
de  noite  tão  abrasados  do  sede  se  sentiram  ,  que 
alli  houveram  de  morrer  todos  á  mingua  de  agua  , 
se  o  não  providenciara  i^Ianuel  de  Sousa  ,  luandan- 
do-a  buscar,  ainda  que  lhe  ficava  alraz  um  bom 
espaço,  e  pagando  a  canada  a  2o  cruzados.  Ao  ou- 
tro dia  chegaram  da  margem  opposta  três  almadias, 
e  pelo  que  os  negros  d'ellas  disseram  se  entendeu 
que  havia  pouco  se  tinha  de  alli  feito  á  vela  para 
Moçambique  o  navio  do  trato.  IVestas  atravessaram 
os  nossos  o  rio.  E  já  então  Manuel  de  Sousa  se 
mostrava  tão  desorientado  do  juizo  ,  desvelado  das 
•vigílias  e  trabalhos,  e  agora  também  da  magoa  de, 
por  Ião  pouco,  vèr  perdida  aquella  monção  de  em- 
barque para  o  reino,  que  indo  na  almadia  com  sua 
mulher  e  filhos,  n'um  accesso  inesperado  de  lou- 
cura arremctteu  ,  espada  nua  ,  contra  os  cafres  que 
remavam,  exclamatulo  ;  u  ali  perras,  onde  me  levais?» 
Os  negros,  assuslados,  lançaram-se  ao  mar:  e  foi 
preciso  que  D.  Leonor  o  quietasse  para  não  ir  a 
mais  o  seu  desatino  ,  que  podia  ser  causa  de  alli 
se  afogarem  todos. 

Durou-lhe,  momentos  apenas,  cslesocego,  porque 
a  imaginação,  que  tomava  energia  da  realidade  me- 
donha dos  seus  infortúnios,  não  o  deixava  tranquil- 
lo.  Ao  desembarcar  poz-se  outra  vez  tão  desnortea- 
do de  cabeça  que  foi  mister  aperíar-lha  com  toalhas: 
o  que  D.  Leonor  fazia  com  buas  próprias  mãos  e 
com  muitas  lagrimas. 


Aqui  tinha  de  começar  uma  nova  serie  de  desas- 
tres maiores  e  mais  espantosos  á  proporção  que  se 
avisinhavam  do  seu  despenho.  Debaixo  d'estc  céu 
de  Africa  ,  n'esta  região  çafara  e  inhospita  ,  ia  re- 
presentar-se  um  drama  que  linha  d'afdmar  áqucllas 
paragens  com  recordações  de  tristeza  e  de  horror  ; 
e  a  monotonia  dos  combates  obscuros  da  natureza 
contra  a  creatura  ,  do  animal  contra  o  homem  ,  e 
do  homem  contra  si  mesmo,  renovados  e  esqueci- 
dos todos  os  dias  n'aquellas  plagas  ,  ia  ser  inter- 
rompida com  scenas  lamentáveis  de  barbaridade  ,  e 
o  espectáculo  de  nunca  ouvido  infortúnio  :  e  essas 
scenas  ,  pela  circumstancia  casual  de  terem  actores 
ilhistres,  espectadores  e  chronistas  da  nossa  Euro- 
pa, não  haviam  de  apagar-se  no  olvido  e  no  tumulo 
das  gerações,  ou  ficar,  ignoradas  ao  longe,  e  des- 
conhecidas ao  resto  do  mundo  ,  no  estreito  âmbito 
de  algumas  pequenas  e  pobres  aldèas  e  povoações 
da  Africa  meridional. 

Postos  ,  como  dissemos  ,  em  terra  ,  avistaram  um 
golpe  de  cafres,  e  vendo-os  se  pozeram  em  som  de 
peleja,  cuidando  vinham  a  rouba-los.  Mas  elles  ap- 
proximando-se  dos  nossos,  sem  mostra  alguma  de 
hostilidade  ,  entraram  a  fallar  com  os  outros  cafres 
da  comitiva  de  Manuel  de  Sousa  ,  e  lhes  pergunta- 
ram que  gente  era  aquella  ,  e  o  que  buscava?  Ues- 
pondeu-se-lhes  :  «que  eram  christãos ;  que  tinham 
naufragado  ;  e  que  lhes  pediam  os  guiassem  a  ura 
rio  grande  que  estava  mais  adiante  ;  e  se  tinham  man- 
timentos ,  e  lh'os  trouxessem,  lh'os  comprariam.  » 
Ao  que  os  cafres  tornaram  «que  se  queriam  manti- 
mentos ,  fossem  com  elles  ao  logar  onde  estanceava 
o  seu  rei  ,  que  lhes  havia  de  fazer  muito  agasa- 
lho. » 

A  este  tempo  os  nossos  iam  já  sem  chefe  ;  por- 
que o  chefe  tinha  perdido  o  attribnlo  mais  essen- 
cial do  mando,  e  o  titulo  mais  legitimo  á  obediên- 
cia—  a  rasão.  De  3S0  que  eram,  sem  contar  os 
marinheiros  ,  tinha-os  rareado  a  morte  a  120  pes- 
soas. E  já  não  caminhava  em  andas  aos  hombros 
dos  cafres  D.  Leonor,  tão  formosa  e  delicada:  a 
pé  e  descalça  ia  como  todos,  com  300  léguas  de 
jornada  ,  nivelada  já  em  tudo  com  os  Íntimos  e  es- 
cravos. Distinguia-a  somente  aquella  superioridade 
que  reflecte  da  nobreza  e  cultura  do  espirito  ainda 
no  meio  dos  mais  duros  transes  ,  e  aquelle  valor 
feminil  que,  por  uma  compensação  providencial  da 
timidez  que  caracterisa  õ  sexo,  brilha  e  se  exalta 
sempre,  quando  as  tribulações  são  maiores,  e  os 
lances  mais  arriscados.  Animava  a  homens  que  ti- 
nham endurecido  nos  trabalhos  e  nas  guerras,  cila 
fraca  e  débil  mulher.  Consolava  a  todos  cila  mãi  e 
e  esposa  ,  a  quem  as  angustias  c  os  receios  deviam 
ter  comprimido  mais  dolorosamente  o  coração.  E 
desta  maneira  foram  ,  guiados  por  aquelles  cafres 
que,  acaso  ou  industria,  alli  inopinadamente  ap- 
I)areceram,  andando  até  chegar  á  terra  do  rei,  que 
se  chamava  Ofumo;  aquelle  mesmo  de  que  os  que- 
ria desviar  a  prudência  ,  que  veio  a  ser  prophccia  , 
de  um  amigo  ;  e  para  onde  ,  a  despeito  delia  ,  os 
chamava  a  fatalidade  do  seu  destino. 

A  primeira  novidade  que  ao  chegarem  os  surprc- 
hcndeii,  logo  foi  signal  de  que  a  sua  situação,  ain- 
da que  já  mui  triste  ,  ia  cobrir-se  de  maiores  ne- 
grumes ,  e  (jue  cada  vez  mais  se  intrincava  o  laby- 
riutho  de  suas  desventuras.  Acharam  recado  do  rei 
em  que  lhes  mandava  ,  bem  diverso  do  Inhaca  que 
tão  alfavcl  c  hospitaleiro  lhes  linha  sido  ,  «que  se 
alojassem  fora  da  povoação  ,  ao  pé  de  umas  arvores 
I  que  lhes  mostraram  ;   e  que  alli  os  proveriam  do 


o   PANORAMA. 


31i 


necessário.»  Junto  a  ella  se  albergaram  cinco  dias, 
c  os  manliinentos  ,  que  durante  elles  lhes  iam  tra- 
tendo  ,  resgatavam  por  pregos.  Jlas  ou  porque  era 
penoso  aquellc  viver  de  acampamento  ,  ou  por- 
que o  precipitava  um  fado  irresistível  ,  Slnnuel 
do  Sousa,  resolvido  a  pousar  uaquella  terra  até  ;i 
chegada  do  navio,  foi-sc  ter  com  o  rei  c  pedir  lhes 
destinasse  cabanas  para  se  aposentarem  na  sua  po- 
voarão. O  rei,  que  com  o  nome  de  falsa  paz  e  ami- 
sade  já  no  animo  trazia  apparelliada  a  traição,  res- 
pondeu que  «como  na  terra  havia  poucas  provisões, 
não  podia  estar  alli  junta  toda  aquella  gente  ;  que 
ficasse  cllc  na  aldèa  com  as  pessoas  que  escolhesse, 
e  todos  os  mais  se  distribuíssem  pelos  logares  visi- 
nhos  ,  aonde  os  aquartelaria  e  forneceria  de  vive- 
res. Sfas  que  para  evitar  a  desconfiança  dos  natu- 
raes ,  era  preciso  que  se  guardassem  todas  as  ar- 
mas dos  portiiguezcs  era  uma  casa  ,  para  lhes  se- 
rem resliluidas  quando  viesse  o  navio  de  Moçambi- 
que.» Manuel  de  Sousa,  que  não  maliciava,  e  uem 
«equer  discorria,  assentiu.  E  propondo  aos  compa- 
nheiros a  entrega  das  armas  que  justilicou  com 
rasões  pouco  para  ser  atlendidas ,  uns  convieram  , 
c  oppozeram-sc  outros;  sendo  destes  a  de  mais  ob- 
firmado  animo  ,  e  ,  segundo  mostrou  o  successo  .  a 
mais  previdente  ,  D.  Leonor  ,  que  com  encarecida 
instancia  trabalhou  por  arredar  o  marido  desse  pas- 
so falso.  I)Í2Ía-lhe  que  o  rei  se  não  atrevia  cora  el- 
les, postoqiic  reduzidos  a  120  homens,  porque  ain- 
da lhes  restavam  cinco  armas  de  fogo  ,  que  era  o 
que  elle  temia  :  que  nessas  eslava  toda  a  sua  espe- 
rança ;  e  que  enirega-las  era  a  sua  perdição. 
Foram  em  vão  os  seus  esforços:  as  armas  entregues  : 
e  o  rei  repartiu  os  portuguezes  pelos  seus  Aneoses  ; 
que  assim  se  chamavam  os  governadores  das  povoa- 
ções. Os  Aneoses  assim  que  tiveram  em  seu  poder 
aos  portuguezes  desarmados  ,  ainda  antes  de  che- 
garem aos  seus  dislrictos,  os  despiram  e  roubaram 
sem  lhes  deixarem  cousa  nenhuma  ,  e  por  cima  os 
maltrataram  desapiedadamente  com  muita  pincada, 
e  os  expulsaram  das  aldèas.  O  rei,  apenas  os  ou- 
tros portuguezes  se  afastaram,  fez  a  Manuel  deSou- 
so  c  aos  do  seu  séquito,  excepto  a  affronla  de  os 
despir  e  espancar ,  o  mesmo  tratamento  ,  e  lhes  to- 
mou tudo  o  que  levavam  que  era  muito,  pois  se 
julga  que  entre  aqucUas  poucas  pessoas  se  acha- 
ram para  mais  de  cem  mil  cruzados  cm  pedraria  c 
jóias  somente.  Roubados  mandou-os  sahissera  da  po- 
Toação.  Este  golpe  acabou  de  alienar  de  todo  a  Ma- 
nuel de  Sousa  ,  que  com  cllc  ficou  sem  dar  accor- 
do  de  si.  Mas  como  era  forçoso  obedecer  á  barba- 
ra ordem  do  rei ,  D.  Leonor  se  pòz  a  caminho.  Le- 
Tava  o  marido  pela  mão  ,  e  ao  collo  um  dos  filhi- 
nhos ,  o  outro  levavam-no  as  escravas  ;  e  mostrava 
tanta  resignação  e  paciência  no  meio  destes  traba- 
lhos que  era  assombro  a  todos.  Coiií'elTa  iam  Duarte 
Fernandes,  contramestre  do  gaIeão% -.o  piloto  An- 
dré Vaz  que  nunca  quiz  desamparar  o  seu  capitão, 
e  todos  os  mais  que  tinham  ficado  na  aldèa  do  rei. 
Os  outros  desvalejadús  e  espancados — em  cujo  nume- 
ro se  comprehendiara  Paiilaleão  de  Sá  ,  c  os  cnais 
fidalgos  e  cavallciros  —  depois  de  expulsos  das  al- 
deãs ,  tornarara-se  a  ajuntar  em  dilTerentcS  silios, 
e  assim  fizeram  um  corpo  de  noventa  pessoas.  Mas 
.como  iam  sem  armas,  sem  vestidos,  sem  dinheiro, 
e  sem  cousa  alguma  com  que  podesseni  comprar 
alimentos  ,  sem  forças  para  arrostar  com  a  fome  ,  a 
sede,  e  as  fa-ligas  da  jornada,  sem  repouso  de  dia, 
sem  abrigo  de  noite  ,  e  sem  consolação  de  nenhu- 
ma espécie,  aborrecidos  da  vida  se  foram  embre- 


nhando pelos  matlos  ,  errantes  por  desvairados  ca- 
minhos, comendo,  onde  as  podiam  apanhar ,  das 
fructas  bravas  e  das  raizcs  das  hervas  ,  e  encom- 
mendando-se  a  Deus  como  homens  jogados  ao  dado 
do  infortúnio,  que  cada  dia  ficavam  vJctimas  da 
morte  por  esses  ermos. 

Manuel  de  Sousa  com  os  do  seu  rancho  foi  seguin- 
do a  direcção  do  rio  Manhiça ,  com  intento  de  alli 
permanecer ,  se  o  rei  ]h'o  consentisse.  Mas  anlCB 
de  lá  chegarem  tornaram  a  accoramctte-los  os  ca- 
fres,  e  isso  que  lhes  restava,  que  era  unicamente 
o  fato  que  traziam  sobre  o  corpo,  Ih'o  roubaram, 
deixando-os  niis.  D.  Leonor,  quando  os  cafres  ten- 
taram despi-la  ,  ás  bofetadas  e  ás  dentadas  como 
leoa  magoada  se  defendia  ,  porque  mais  queria  que 
a  matassem  ,  que  olhar-se  desarmada  do  único  bro- 
quel que  a  resguardava  ,  e  vòr  em  si  profanados  os 
myslerios  da  bclleza  ,  e  os  segredos  do  pudor.  Ma- 
nuel de  Sousa  ,  ao  vc-la  nnquellc  niiscro  estado  ,  c 
os  filhinhos  chorando  no  chão,  parece  que  da  pró- 
pria intensidade  da  pena  e  dor  recobrou  o  entendi- 
mento [como  acontece  á  alampada  moribunda  lan- 
çar mais  brilhante  clarão  no  momento  de  extinguir- 
se].  Chegou-se-a  ella,  tomou-a  nos  braços,  e  com 
palavras  de  religião  e  brandura  a  exhortou  a  que 
SC  deixasse  despir  para  a  não  matarem.  Deixou-sc 
despir ,  e  vendo-se  com,pletaniente  nua  ,  scntou-se 
no  chão  ,  desatou  e  espalhou-  a  trança  de  seus  com- 
pridos e  mui  formosos  ca'|!iellus  ,  com  o  rosto  todo 
inclinado  porque  a  podessòra  cobrip  ;  rodcou-se  das 
suas  escravas  ;  e  com  as  mãos  fez  uma  cova  na  aréa 
onde  se  escondeu  até  a  cintura  ,  sem  mais  se  que- 
rer apartar  daquelle  logar  que  agora  considerava 
o  seu  ultimo  refugio".  Os  homens  da  comitiva,  \cn- 
do-a  naquellá  postura  ,  foram-se  afastando  de  ma- 
goa e  vergonha.  Percebendo  ella  André  \'az  .  o  pi- 
loto, que  virava  as  costas  para  se  ir,  chamou  por 
elle,  e  lhe  disse:  «Bem  vedes,  piloto,  como  esta- 
mos, c  que  já  não  podemos  passar  daqui,  onde  pa- 
rece que  Deus  tem  ordenado  que  eu  e  meus  filhos 
acabemos:  í-vos  muito  embora,  tratai  de  salvar- 
vos  ,  e  encommendai-uos  a  Deus;  e  se  fordes  á  ín- 
dia ou  a  Porlugol  cm  algum  teujpo  contai  como 
deixastes  a  Manuel  de  Sousa,  a  mim  e  a  meus  que- 
ridos filhos!»  O  piloto,  compungido  daquelle  espe- 
ctáculo, voltou  as  costas,  sem  responder  nada,  todo 
banhado  cm  lagrimas,  e  continuou  seu  cauiinho. 

Manuel  de  Sousa  com  todos  estes  desaslres,  e 
andar  com  uma  perna  gravemente  fciida  de  uma 
azagaia,  não  se  esqueceu  da  necessidade  da  mulher 
e  dos  innocentinhos  que  estavam  chorando  com  fo- 
me :  foi-se  aos  matlos  a  procurar  alguma  cousa  pa- 
ra lhes  <lar  ,  e  quando  voltou  com  algumas  fructas 
sylvcstres,  achou  já  morto  a  um,  e  D.  Leonor  co- 
mo pasmada  cora  os  olhos  postos  sobre  elle,  e  com 
o  outro  no  collo.  Elle  fitando  a  vista-  na  mulher  ,  c 
no  filhinho  sem  vida,  ficou  assim  um  pequeno  es- 
paço sem  proferir  palavra  ;  e  passado  esse  espaço  , 
icz  uma  cova  na  arèa  ,  e  por  sua  mão  o  enterrou  , 
deilando-lhe  a  ultima  benção. 

Deiiois  lornou-se  ao  matto  a  buscar  mais  íructas 
para  a  mulher  e  o  outro  meniuo  ;  mas  quando  veio 
achou  ambos  fallecidos ,  e  sinco  escravas  gemendo 
e  pranteando  cm  altus  grilos  sobre  os  corpos.  Ven- 
do aquella  desventura  ,  fez  retirar  dalli  as  escra- 
vas :  tcnlou-se  junto  da  esposa  .  com  o  rosfo  .'obre 
uma  mão  ,  e  os  olhos  cravados  nclla  :  e  assim  se 
conservou  espaço  de  meia  hora.  iVessa  meia  hora 
que  revessa  de  paixões  e  de  pensamentos  não  cor- 
1  reria ,   como  pcsadcllo  de  um  sonho  borrivel,   por 


312 


O  PANORA3IA. 


\ 


aquelle  espirito  atribulado  !  Ao  contemplar  D.  Leo- 
nor morta  e  naquelic  estado,  o  infeliz  chegou,  tal- 
vez, a  blasphemar  cm  seu  coração  do  primeiro  des- 
cobridor portiigucz  como  remota  origem  das  suas 
desgraças  ;  e  agradeceu  aos  bulcões  do  ar  e  ás  tor- 
mentas do  Cabo  a  vingança  que  tomaram  do  auda- 
cioso mortal  que  primeiramente  o  montou.  Ellc  que 
em  todos  os  passos  da  sua  vida  tinha  sido  exem- 
plar, esposo  fiel,  pai  carinhoso,  guerreiro  cujo  san- 
gue havia  vertido  abundantemente  pela  causa  do 
seu  Deus  o  a  gloria  do  seu  paiz  ,  vendo-se  agora 
cm  tamanho  abandono  duvidou  da  Providencia  ! 
Desejou  ter  morrido  nos  campos  de  Diu  ,  no  com- 
bate contra  os  nayres  ,  no  ataque  contra  Chembe. 
Desejou  um  volcão  que  submergisse  aquellas  ter- 
ras infames;  que  o  mar  sahisse  do  seu  leito  ,  e  as 
sepultasse  eternamente  nas  suas  entranhas:  que  do 
céu  se  destacasse  um  globo  incendiado  que  as  vies- 
se abrazar.  Revolveu  na  sua  idéa  o  tempo ,  tão 
querido  ,  dos  seus  primeiros  amores ,  a  formosura 
de  Leonor,  as  horas  de  felicidade  que  tinha  passado 
com  ella,  as  caricias  dos  seus  filhos;  e  o  desgraça- 
do não  pôde  chorar  I  Era  o  ultimo  grau  do  infortú- 
nio a  que  linha  chegado  aquella  alma  espedaçada  ! 
Passado  aquelle  termo  ,  levantou-se  e  começou  a 
fazer  uma  cova  com  a  ajuda  das  escravas  [sempre 
caliado  e  silencioso] ,  e  tomando  a  mulher  nos  bra- 
ços ,  chegando  o  seu  rosto  ao  delia  um  pouco,  a 
deitou  na  cova  com  o  filho.  E  depois  de  a  cobrir, 
sentiu  sede,  sentiu  febre,  sentiu  gelar-se  de  frio, 
sentiu  os  tormentos  da  tortura  ,  sentiu  as  anciãs 
do  afogado,  sentiu  as  agonias  do  moribundo  ;  e  mais 
do  que  isto  sentiu  ,  porque  se  lembrou  ,  com  me- 
moria execravel  ,  que  elle  ....  elle  próprio  acaba- 
ra de  ser  o  coveiro  dos  entes  que  mais  amara  no 
mundo  I  Então  com  o  coração  a  estalar-lhe  ,  perdi- 
do ,  cheio  de  horror  fugiu  da  natureza  ,  de  si  mes- 
mo, dos  seus  pensamentos,  dos  seus  passos,  da  sua 
sombra  ;  e  correndo  foi  buscar  a  morte  na  espessu- 
ra das  selvas  ,  onde  mais  piedade  para  com  elle 
mostraram  os  tigres  do  que  os  homens  ;  porque , 
devorando-o  ,  pozeram  termo  á  sua  dúr  ! 

A.  d' O.  Marreca, 


O   COQIEIKO  DAS  LnDIAS. 


Esta.  arvore,  mais  curiosa  ainda  do  que  a  palmei- 
ra, nasce  no  mesmo  clima.  O  seu  tronco,  que  se 
eleva  a  quarenta  c  sessenta  pés  ,  é  Ijastante  delga- 
do para  similhanle  altura  ,  e  marcado  do  cicatrizes 
semicirculares  que  deixaram  as  f(jlhas  velhas.  Este 
tronco  é  coroado  d' um  cume  medíocre  formado  por 
um  feixe  de  dez  a  doze  folhas,  nmas  direitas,  ou- 
tras estendidas  para  a  ilharga  ,  e  até  pendentes; 
estas  folhas  são  piqnuladas  ,  e  na  sua  circumscri- 
pção  compridas  de  dez  até  quinze  pés,  e  tem  três, 
ou  quasi  três  de  largo.  No  meio  deste  feixe  encon- 
tra-se  um  gomo,  ou  grelo  direito,  quasi  cylindri- 
co,  pontudo,  tenro,  bom  para  comer,  e  a  que  cha- 
mam repolho  (Ic  cor/uciro :  usa-se  pouco  dclle  por- 
que a  arvore  morre  logo  que  o  colhem.  D'cntre  os 
pcciolos  das  folhas  sabem  grandes  cspathas  unival- 
vcs  ,  que  se  abrem  de  lado  ,  e  dão  sabida  a  uma 
panicula  ou  espádice  ,  cujos  ramos  são  carregados 
de  grande  numero  de  llores  rentes  ,  brancas-ama- 
rellas  ;  as  Hores  fêmeas  estão  situadas  para  a  parte 
da  base,  c  as  machas  para  as  extremidades.  Ás  Ho- 
res fêmeas  siiccedem  fructos  conchegados ,  e  em 
forma  de  cachos,  que  siío  os  cocos.  listes  inícios 


são  ovados ,  um  pouco  triangulosos ;  debaixo  da 
casca  ,  que  c  espessa  e  muito  fibrosa  ,  e  cuja  pelle 
exterior  é  muito  lisa  e  parda  ,  acba-se  uma  noz 
quasi  globulosa  ,  dura  ,  do  tamanho  de  um  ovo  de 
avestruz,  com  pouca  diflerença  ,  marcada  na  sua 
base  com  três  boracos  desiguaes,  eque  encerra  uma 
amêndoa  de  carne  branca  e  firme  como  a  da  avel- 
laã  ,  a  que  ella  sabe  um  pouco. 

Esta  noz  é  a  parte  mais  preciosa  do  coqueiro  ; 
quando  não  está  madura  ainda,  tira-se-lhe  uma 
grande  quantidade  de  agua  clara,  odorífera,  pican- 
te alguma  cousa,  de  que  se  faz  uso  no  paiz,  ou 
para  refrigerar  da  sede  ,  ou  para  temperar  os  mo- 
lhos :  tiram-se  até  quatro  libras  de  peso  desta  agua 
das  nozes  maiores.  Amadurecendo  ,  o  interior  do 
cdco  toma  consistência  ,  e  torna-se  em  uma  amên- 
doa ,  da  qual ,  pela  trituração ,  se  lira  um  licor 
branco  como  leite,  e  pela  pressão  um  óleo  bom  pa- 
ra luzes  e  para  comer.  A  casca  externa  que  envol- 
ve a  noz  ,  c  que ,  como  deixámos  dito  é  fibrosa  ,  c 
cuja  filaça  se  chama  cairo,  serve  para  fazer  cabos 
e  outras  diflercntes  cordas. 

Tudo  é  ulil  no  coqueiro  :  os  naíuraes  do  paiz 
servem-se  das  suas  folhas  seccas ,  e  entrelaçadas 
para  cobrirem  as  casas ,  fazer  pára-sóes  ,  e  velas 
de  embarcações  ;  até  mesmo  lhes  servem  em  logar 
de  papel  para  escreverem.  Com  os  seus  filamentos 
delicados  fazem  bellissimas  esteiras,  que  transpor- 
tam a  todas  as  índias.  A  parle  da  arvore  donde  sa- 
bem os  peciolos  folhosos  ,  é  cercada  de  muitas  ca- 
madas de  febras  em  forma  de  rede  ,  que  pódc  bem 
servir  de  coador  para  os  líquidos. 

Esta  arvore  admirável ,  alem  do  licor  provenien- 
te do  seu  fructo  ainda  tenro  ,  dá  mais  um  vinho  , 
cujo  sabor  é  tão  agradável  como  refrigerante.  Para 
o  obter ,  os  Índios  sobem  ao  longo  dos  troncos  dos 
coqueiros,  por  meio  de  uma  escada  de  juncos  ,  e 
cortam  a  extremidade  das  espalhas  ,  ou  envoltórios 
das  flores;  daqui  se  distila  um  licor  branco  que  se 
recebe  com  cuidado  em  vasos  presos  a  cada  uma 
das  espalhas.  Tal  é  o  vinho  da  palmeira  ,  de  que 
se  faz  Ião  grande  uso  na  índia.  Este  vinho  novo  c 
doce  ,  mas  vinte  e  quatío  horas  depois  torna-se  vi- 
nagre. Distilado  tira-se-lhe  um  licor,  ou  aguarden- 
te, a  que  chamam  arraca.  Tira-se-lhe  ainda  depois 
segundo  sueco  não  espirituoso ,  mas  que  pela  eva- 
poração dá  um  assucar  prelo.  As  espalhas  deste 
modo  tratadas  não  dão  fructos,  porque  o  liquido 
que  devia  formar  o  coco  se  atenuou.  O  jián  da  ar- 
vore serve  de  madeira.  Por  este  modo  vemos  que 
nada  se  perde,  pois  que  mesmo  a  casca  da  noz,  ou 
caroço  ,  tem  sua  serventia  ;  como  é  dura  e  lenhosa 
fazem  delia  differentes  vasos  assaz  bonitos. 

Por  uma  continuação  da  liberalidade  da  nature- 
za ,  pródiga  sempre  de  tudo  quanto  é  ulil ,  o  co- 
queiro ,  que  por  si  só  poderia  bastar  para  as  pri- 
meiras precisões  do  homem,  fruclifica  duas  e  Ires 
vezes  em  cada  anno. 


Não  devemos  proferir  palavra  nem  fazer  acção  al- 
guma de  que  nos  envergonhemos  ou  possamos  arre- 
I)cnder-nos  :  o  prazer  cphemero  de  similhantcs  di- 
tos e  actos  não  compensa  os  desgostos  que  depois 
sentimos,  c  as  cxprobrações  amargas  da  consciên- 
cia que  os  condemna. 

Querendo  dar-nos  muita  importância  ,   perdemos 
ordinariamente  a  pouca  de  que  gozávamos. 

Marquez  de  Maricá. 


93 


o  PANORAIMA. 


313 


CAST£I.LO  J>^AGUII.&R. 


GoxrvLO  Eannes  Dobinnl ,  rico-homciu  porluguez  e 
da  illustre  família  dos  Agiiilares,  famoso  por  ar- 
mas, prestou  bons  serviços  aos  reis  de  Castclla  , 
cm  premio  dos  quaes  D.  Alonso  o  Sábio,  pelos  aii- 
nos  de  l'2o8  lhe  fez  cessão  perpetua  dos  estados  de 
Poley  ,  villa  forte  e  poderosa  ,  assentada  sobre  as 
ruínas  da  Ipagro  dos  gregos ,  a  sete  léguas  de  Cór- 
dova para  o  sul  ,  no  coração  da  Andaluzia,  e  que 
era  defendida  por  uma  antiga  fortaleza  de  primiti- 
va construcção  romana.  Do  novo  senhor  tomou  no- 
me uovo  o  ca^tello  de  Poley  e  se  ficou  chamando  de 
Aguílar;  os  descendentes  de  Gonçalo  Eannes  o  pos- 
suíram até  ser  dado  em  1370  a  D.  Gonçalo  Fernan- 
dez  de  Córdova,  que  fundou  o  castello,  de  que  ain- 
da subsistem  as  minas,  no  estado  que  mostra  a  gra- 
vura precedente  ,  feita  por  um  desenho  tirado  em 
1839.  Foi  edifício  espaçoso  e  inexpugnável  ,  não 
menos  digno  de  attcnção  pela  estructura  solidissi- 
ma  dasobras  exteriores  que  pela  l)ella  architectura. 
Achámos  desnecessário  entrar  na  descripção  do 
castello  ;  mas,  para  que  se  veja  que  a  nação  visi- 
nha  tem  padecido  o  mesmo  contagio  que  por  c;i  tem 
lavrado,  não  podemos  ommittir  algumas  palavras 
de  um  contem[)oranco ,  o  Sr.  I)om  !\í.  de  Corte  , 
que  ha  Ires  annos  escreveu  que  «a  distribuição  in- 
terna do  cditicio  ainda  se  deixa  conhecer,  posto 
que  quasi  apagada  pela  mão  do  tempo  e  o  vanda- 
lismo da  ignorância.  .  .  .  »  —  que  «as  enormes  lages 
tem  sido  derrubadas  não  tanto  pelo  decurso  dos  sé- 
culos ,  como  por  uma  ordem  barbara  e  anti-nacio- 
nal  ,  disposição  que,  sob  pretexto  de  melhorar  os 
passeios  das  ruas  da  villa  deu  era  terra  com  um 
monumento  illustre  das  artes  ,  testemunha  de  glo- 
rias ,  Iheatro  de  successos  importantes  ,  e  berço  de 
varões  eminentes.»  —  finalmente  que  «no  fim  do  sé- 
culo passado  achava-se  o  castello  de  Aguilar  habi- 
tável ,  quasi  intactos  os  seus  muros  ,  úteis  as  suas 
torres,  e  digno  de  ser  visitado:  boje,  graças  a  uma 
OcTCBuo  7 —  1843. 


despreoccupação  mais  funesta  que  todas  as  preoc- 
cupações  da  antiga  aristocracia  hespanhola  ,  é  so- 
mente um  estéril  montão  de  ruínas ,  alvo  da  ingra- 
tidão e  esquecimento  da  geração  presente.»  — 


SCiClTClCIA  TZ-LZI-lOà.- 

Consideraçues  sobre  o  Curso  ã' Econmnia  Politica  do 
Sr.  Miguel  Clicvalicr. 

(Conclusão.] 

\a  serie  de  artigos  até  aqui  publicados ,  perde- 
mos de  vista  desde  o  segundo  a  Miguel  Chevalier  e 
a  sua  obra  :  o  seu  nome  tomámos  por  escudo  ;  o 
seu  livro  corno  pretexto  e  estimulo  ;  mas  no  paiz 
em  que  nascemos  pozemos  o  pensamento,  que  se  é 
débil  pelas  nossas  faculdades,  pelo  acanhamento  do 
nosso  espirito  ,  pela  estreiteza  da  área  em  que  o 
semeámos  ,  é  forte  pela  vehemcncía  dos  nossos  de- 
sejos. Neste  bosquejo  rápido  e  incompleto  de  al- 
guns dos  muitos  melhoramentos  económicos  que 
esta  pedindo  a  nossa  situação  ,  filámos  também  á 
manifestação  de  uma  ver<lade  simples,  mas  despre- 
zada ,  c  que  de  o  ser  se  tem  mallogrado  ,  ou  que- 
brantado no  conceito  publico  algumas  reformas  uleis  : 
alluJo  ao  isolamento  de  algumas  medidas  que  se 
tem  tomado,  aliás  proveitosas;  mas  que  pornão  te- 
rem sido  acompanhadas  de  outras,  ou  tem  parado 
cm  se  annullarem  de  todo  ,  ou  fallido  de  resultado 
solido  ,  c  verdadeiramente  nacional.  É  que  se  tem 
desavertido  a  filiação  e  nexo  de  certos  expedientes 
com  outros,  sem  os  quaes  os  primeiros  dccaliem 
da  sua  importância  ,  ou  se  paralisam  inteiramente 
na  sua  faculdade  creadora.  Não  tem  havido  nem 
ha  systema  no  nosso  regimen  económico  :  estrata- 
gemas mesquinhos  ,  providencias  de  detalhe  ,  me- 
didas incompletas,  organisaçõcs  mutiladas  e  efeme- 
2."  SEItlE.  —  Voi,.  11. 


314 


O   PANORAMA. 


ras.  —  a  isto  se  reduz  clle.  O  achaque  da  quadra  é 
esle  :  tomar  por  especifico  único  ao  mal  que  expe- 
rimentámos qualquer  alvitre  bom  na  essência  ;  mas 
per  si  só  iusufficicnte,  ou  inellicaz.  Todos,  mais  ou 
menos,  temos  enfermado  desta  moléstia  terrivel,  de 
que  vamos  convalescendo  com  muito  vagar.  E  pas- 
sando revista  ás  leis  e  actos,  desde  a  restauração 
até  agora  ,  que  intendem  directamente  cora  a  eco- 
nomia nacional  ,  qualquer  poderá  encontrar  os  fa- 
dos que  altestam  esta  nossa  observarão  ,  e  acinte- 
mente  rallámos.  porque  farão  maior  força  no  animo 
do  leitor  achados  por  elle  ,  do  que  indicados  por 
nós. 

Comtudo  apesar  do  atrazameiito  em  que  esta- 
mos ,  a  nossa  situação  é  mais  favorável  a  certos 
respeitos  do  que  a  de  outros  estados  muito  mais 
prósperos.  A  Bélgica  ,  Ião  adianlada  em  todos  os 
ramos  ,  lucla  já  com  esse  enigma  profuiido  que 
atormenta  os  paizes  mais  civilisados  da  Europa  , 
apresentando  naquellas  de  suas  provindas,  onde 
a  industria  tem  recebido  desenvolvimento  mais  am- 
plo e  mais  rápido,  e  a  taxa  dos  salários  é  mais 
elevada,  msior  numero  de  indigentes;  e  menor  nu- 
mero dclles  naquella  de  todas  a  mais  pobre  e  a 
menos  industriosa  —  o  Luxemburgo  ;•).  Na  presen 
ça  deste  embaraço  tem  de  tentar  ensaios  aventuro- 
sos e  caminhos  desconhecidos  para  sahir  delle  :  cm 
quanto  nós  temos  a  cursar  uma  derrota  industrial 
sabida  e  experiment.ida  —  a  mesma  que  andaram 
outros  para  checar  ao  ponto  em  que  se  acham.  O 
nosso  noviciiido  ó  menos  diflicil  ,  ajudado  das  ex- 
periências e  trabalhos  de  alheios  povos.  Aproveitá- 
mos dos  seus  successos  ,  e  até  dos  seus  revezes. 

Se  esta  c  pois  a  nossa  vantagem  sidire  outros  pai- 
zes, que  elles  se  vêem  obrigailiis  a  lançar-se  n'uma 
carreira  desconhecida  ,  e  nós  n'unia  que  o  não  é  , 
entremos  com  afoitez  nesse  campo  que  está  limpo  e 
aberto  diante  de  nós  ;  emulemos  nobremente,  imi- 
lando-a  cm  seus  esforços  ,  a  Bélgica  ,  envergonha- 
dos de  que  sendo  o  seu  território  metade  ou  (louco 
mais  do  continente  porlugucz,  a  sua  população  ex- 
ceda á  nossa  de  Europa  quasi  lí  ,  e  a  sua  indus- 
tria e  civilisação  nos  levem  uma  superioridade  in- 
commcnsuravel  em  todos  os  géneros. 

Nós  pretendemos  que  á  divisão  da  propriedade 
se  acrescentem  trans[iortes  fáceis  —  que  a  produc- 
oão  se  fomente  no  sou  propi  io  endirjão  por  cafii- 
taes  baratos  —  que  os  capilacs  b.iralcem  pelo  modo 
que  o  podem  ser  ,  que  é  a  concentração  e  o  movi- 
mento conimercial  ao  mesmo  tempo  ,  dos  grandes  e 
dos  pequenos  ,  dos  metalllcos  e  dos  que  o  não  são 
— que  o  credito  se  promova  danilo  garantias  aos  que 
emprcsiam  ;  eque  as  gararjtias  se  consolidem  cudili- 
cando  e  regenerando  onde  convenha  a  nossa  legislação 
cahotica  ;  administrando  jusl iça  mais  expedita  e  im- 
parcial do  que  está  sendo  ;  tirando  assim  á  proprie- 
dade a  incerteza  que  a  deprecia  ,  e  que  conlribue 
tanto  para  a  taxa  exorbitante  dos  juros.  Pretende- 
mos que  as  forças  sociaes  que  ainda  estão  solitárias 
scaggreguem — que  as  forças  naturaes,  ainda  dcsprc- 
sadas,  se  ulilisem  — que  a  cominunidadc  indus- 
trial siga  a  gradação  civilisadora  e  histórica  do  mo- 
nachismo,  passando  do  ercmilciio  para  o  remíbio. 
Por  este  pensamento  creador  ,  por  este  principio  da 
associação  é  que  despjànjos  se  abra  o  santuário  da 
natureza  aos  engenhos  privilegiados  ;  se  proporcio- 
ne ás  iuvcnçócs  mechanicas  uma  área  experimental 
nos  estabelí-cimentos   fabris;    se  franqueie  mediante 

(•)  llciisrliliiiij ,  Essai  siir  la  ■'^liitiíliquc  r/cntrulc  de 
!a  B<:l3iquc  pug.  6a  — Uruxeilas,   18311. 


estes  uma  vasta  esfera  á  actividade  individual  ;  e 
se  teça  um  laço  de  fraternidade  e  commercio  entre 
o  campo  e  as  villas. 

Desejámos  commercio  externo  pela  causa  donde 
elle  deriva  todo  ;  pelo  fim  social  a  que  se  dirige  ; 
pelos  resultados  salutares  que  offerece.  E  —  se  é 
licito  misturar  com  as  económicas  considerações  de 
differente  ordem  —  queremo-lo  como  sombra  saudo- 
sa da  nossa  antiga  grandeza,  como  rcDexo  —  em- 
bora pallido  —  como  imagem,  como  monumento  — 
endtora  mesquinho  —  do  nosso  passado.  Queremo- 
lo.  .Mas  sem  possuir  próprios  os  meins  de  conduc- 
ção  que  approximam  as  distancias,  e  até  apagam  as 
separações  que  desunem  os  povos,  fora  aquella  cco- 
noinii  paupcrtina  ,  como  Leibuitz  chamava  á  philo- 
sophia  de  Locke  —  mascara  mais  que  irónica  e  pa- 
rodia degradante  do  nome  honrado  de  nossos  avós  , 
os  vaverjadoí  CS .' 

Desejámos  ter  colónias  sem  embargo  da  conta 
que  sobre  a  receita  que  ellas  nos  rendem  calcu- 
la cm  mais  uns  oitenta  e  tantos  contos  e  não  sei 
que  réis  o  excesso  da  despeza  que  nos  causam. 
Calculo  que  se  delle  havemos  de  concluir  que  a 
metrópole  deve  abrir  mão  dos  domínios  do  nltra- 
n)ar  por  esle  simples  deficit,  nesse  caso  —  já  —  po- 
nhamos em  almoeda  o  reino  de  Portugal  ,  porque 
mostra  —  proprietário  arruinado!  —  uma  lacuna  an- 
nual  de  2:000  contos  no  seu  rendimento.  Lógica 
verdadeiramei  le  paiípcrtina  e  mais  que  a  do  pbilo- 
sopho  inglez  seria  essa  ,  saldando  somente  a  perda 
do  thcsouro  ou  do  estado  com  aquelles  domínios, 
som  metler  em  conta  os  ganhos  do  commercio  par- 
lioular  que  fazem  com  ellos  os  cidadãos  da  metró- 
pole. Lógica  do  desalento,  balda  de  esperança  e 
de  fé  que  resiste  a  acreditar  no  lucro  liquido  que 
poderia  tirar  a  metrópole  dos  mesmos  domínios,  se 
fossem  melhor  administrados  !  [E  passo  a  esponja 
do  esquecimento  sobre  a  historia  e  a  polilica  que 
lautas  advertências  —  cálculos  de  oulra  arithmtli- 
ca  —  nos  tem  escriptas  no  pergaminho  secular  de 
nossas  conquistas]. 

Se  eu  deploro  a  perda  da  nossa  preponderância 
cíimniercial  —  se  tenho  sauilades  da  nossa  supre- 
macia niaritima  ,  e  da  nossa  gloria  p.issnda  ,  não 
é  que  desejo  que  voltando  sobre  o  camitiho  que  le- 
mos andado  retrogrademos  até  esses  lempos.  Eu 
bem  sei  que  as  nossas  casas,  e  até  as  nossas  leis, 
que  as  nossas  villas  c  cidades,  as  nossas  ruas  e 
praças,  os  nossos  vestidos  e  alimentos,  e  até  os 
nossos  costumes  são  melhores  hoje  que  os  de  nos- 
sos avós  :  blasphemia  como  soará  a  alguns  ouvidos, 
a  historia  ahi  está  que  nos  presta  testemunho  de 
verdade.  Outros  chorem  ,  que  eu  não  ,  os  palácios 
de  nossos  primeiros  reis  cobertos  de  colmo  e  gies- 
ta ;  as  devassidões  do  nosso  claustro  ;  a  crueza  e  bar- 
baridade do  nosso  povo;  o  espirito  frugal  do  monar- 
clia  que  taxava  os  pratos  e  os  guisados  que  se  ha- 
viam de  servir  á  meza  dos  particulares;  a  rudeza 
dos  homens  analphabetos  de  nossas  classes,  ele- 
vadas e  ínfimas ;  o  Irajo  e  armadura  eslravagan- 
te  dos  nossos  soldados  ,  a  barbuda  com  seu  cama- 
Iho  e  estofa  ,  a  cola  ,  o  jaque  ,  o  coxeie  ,  as  cane- 
leiras ,  o  esloraque  ,  a  daga  ,  c  grave  :  as  fomes 
e  [icslcs  que  tão  amiudadas  nos  visitavam  em  ou- 
tras eras  não  as  envejo  para  nós  :  as  procissões  es- 
pantosas das  victímas  adornadas  com  sninarra  c  cu- 
idclia  não  as  appeteço  eu.  Em  civilisação  somos 
superiores  a  nossos  antepassados:  elles  levavam 
vantagem  aos  homens  do  seu  tempo  em  náutica,  em 
commercio ,    e  no  génio  das   cmprezas :    mas  nós 


o    PANORA31A. 


315 


estamos  muito  aqucm  dos  nossos  contemporâneos 
nestes  e  em  muitos  outros  pontos.  E\ccdoin-nos  os 
nossos  maiores  em  serem  os  primeiros  d.i  íiia  epo- 
cha ;  em  irmus ,  sold.idus  relard.it.irios ,  na  reta- 
guarda da  nossa.  O  nosso  poder  social  é  mais  hu- 
mano e  menos  despótico  do  que  era  ;  mas  menos 
hábil  ,  menos  cnlcndeiior  do  seu  seiíilo  do  que  o 
foi  n'oulros.  Grande  desgraça,  grande  sobretudo 
para  as  nações  pequenas,  que  nessas  as  forças  in- 
dividuaes  são  delíeis  para  emendar  a  deficiência  e 
desacertos  da  força  publica  ;  em  quanto  nas  n.ições 
poderosas,  a  intelligcncia  do  governo  ,  se  está  in- 
ferior d  do  povo,  é  supplantada  por  ella  ,  como  foi 
na  França  ,   em  89. 

Os  povos  [lensam  ,  trabalham,  e  produzem  por 
íi ,  porque  se  compõem  em  grande  parte  de  adul- 
tos. Os  governos  protegem  o  pensamento  ,  o  traba- 
lho ,  e  a  producç.io  individual  ,  moderando  os  cou- 
fliclos  do  interesse  c  direito  particular  de  uns  com 
o  de  outros,  ou  com  a  sociedade.  E  por  isso  go- 
vernos patcinaes  são  hoje  disparate  e  anachrouismo 
que  corresponde  a  povos  meninos  ■  e  governos  autó- 
matos o  mesmo  significam  que  povos  sem  direc- 
ção. A  tuteila  absoluta  funda-se  na  theoria  que 
os  homens  são  rebanhos  :  a  anarcbia  económica  no 
principio  que  são  perfeitos.  .\.  primeira  doaria  o 
exclusivo  da  agricnilura  ,  das  artes  fabris ,  dos 
capitães  ,  das  pro[)riedades  ao  governos.  A  nnllida- 
de  económica  roubar-lhe-hia  a  acção  benéfica  que 
elle  pôde  exercer  como  administrador  de  grandes 
rendas,  possuidor  temporário  de  grandes  fundos  , 
apreciador  mais  exacto  ,  pela  sua  posição ,  das 
necessidades  e  recursos  do  (laiz.  O  pautado  dos  re- 
gulamentos, e  o  licencioso  do  systema  opposto  são  am- 
bos elles  funestissimos.  L'm  esterilisa  tudo.  O  outro 
não  deixa  organisar  nada.  .\  verdadeira  economia  po- 
litica reina  entre  estes  dois  excessos  ,  exlrema-se 
destas  duas  idcas  absolutas,  que  pelo  serem  se  con- 
vertem em  erros,  que  por  serem  erros  se  transfor- 
mam cm  males  sociaes.  Os  estados  pereceriam,  re- 
gidos absolutamente  por  uma  destas  idcas.  Os  go- 
vernos nunca  adoptaram  exclusivamente  a  nenhu- 
ma delias:  iiiclinaram-se  mais  ou  menos  a  uma  ou 
a  oulra  :  nmas  vezes  deixaram  de  ser  fabricantes  , 
abandonando  esse  mister  á  actividade  dos  particu- 
lares que  o  desempenha  melhor:  outras  construí- 
ram estradas,  tomando  a  iniciativa  era  emprczas 
dispendiosas  mas  uleis  a  que  não  bastavam  os  re- 
cursos individuaes  ,  ou  desconcorridas  pela  mania 
do  isolamento,  pelos  prejuízos,  e  pelos  receios. 

Ao  passo  que  o  espirito  de  associação  se  for  pro- 
pagando ;  que  este  sestro  de  solipsismo  se  fõr  des- 
terrando ;  que  este  temer  e  desconfiar  de  tudo  co- 
mo Pygmalião  ;  que  este  horror  a  despegar-se  do 
numerário  para  que  gire  em  operações  ()roductivas 
fôr  desvanecendo,  a  necessidade  daquelle  auxilio  do 
estado  de  que  não  podem  prescindir  algumas  em- 
prezas  publicas  ,  e  da  iniciativa  que  a  auctoridade 
toma  em  certos  trabalhos  industriaes ,  irá  dimi- 
nuindo. 

Tem  diminuído  já  ,  e  sensivelmente.  Iloje  reu- 
nem-se  homens  e  capitães  particulares  para  crear 
estabelecimentos  fabris;  apparece  á  luz  o  numerá- 
rio enthesourado  ou  escondido  ,  e  com  clle  se  dá 
vida  a  muitos  valores,  braços,  c  instrumentos  até 
agora  inertes.  >"o  serulo  passado  fundavam-se  fa- 
bricas —  fundaram-se  quasi  todas  —  de  emprésti- 
mos do  thcsouro  ,  de  adiantamentos  ,  de  materiaes  , 
de  instrumentos  facultados  pelo  estado  aos  empreza- 
rios.   Então  licenciava-as  a  junta  do  coramercio , 


escravisava-as  o  syslcma  dos  rcgulamenlos  ,  emba- 
raçava-as  cm  suas  malhas  complicadas  a  rede  dos 
privilégios.  Hoje  deu-lhes  carta  de  alforria  ,  dcu- 
Ihes  furos  de  cidade  o  novo  systema  ;  e  solla  ,  co- 
mo a  ave  no  espaço,  pôde  caminhar  a  industria. 

Passo  immenso  :  vicloria  da  liberdade  :  milagre 
<ia  associação.  A  liberdade  disse  ao  homeiíi  :  —  soi» 
proprietário  do  vosso  braço  ,  escolhei  ollicio  :  tra- 
balhai.—  E  disse  ao  pensamento: — discorrei:  in- 
ventai :  auxiliai  as  furças  da  creatura  com  as  da 
natureza:  apparelhai  as  machinas.  —  A  associação 
temperou,  corrigiu,  modificou  as  propensões  antago- 
nistas do  individuo,  arrancou  o  solitário  ao  medi- 
tar selvático  do  egoísmo,  o  homem  livre  ás  paixões 
da  pessoalidade  tão  destruidoras,  se  desenfreadas; 
e  das  faculdades  débeis  dos  seres  isolados  compõz 
a  potencia  invencível  da  communidade.  Pela  pri- 
meira não  ha  desherdados  :  todos  podem  dispor  da 
inlellígcncia  e  da  força  própria,  que  bens  são  indis- 
putáveis. Pela  segunda  não  ha  fracos,  porque  to- 
dos cstão  unidos  :  não  ha  oppiimidos,  porque  a  re- 
sislenciu  e  a  defeza  são  mutuas  :  não  ha  indigentes, 
porque  o  soccorro  é  reciproco  :  não  ha  tyraunos  , 
que  não  possam  ser  esmagados:  não  ha  obstáculos 
á  felicidade   geral  ,   que  não   possam    ser  vencidos. 

E  cora  o  auxilio  de  ambas  caminha  o  carro  triíim- 
phal  d.is  nações,  caminha  e  nada  o  pode  deter.  Vai 
rolando  nos  campos  da  liberdade,  e  nos  da  indus- 
tria também.  Por  aquelle  movimento  succcssivo  . 
por  aquella  lei  providencial  do  progresso  tem  a  pe- 
nínsula de  provar-se  nesta  lide  de  innovações  polí- 
ticas, e  melhoramentos  materiaes  abençoados  de 
outros  paízes.  E  se  um  momento  as  conlradicções 
dos  homens  nos  suspenderem  a  marcha  ,  passará 
rápido  esse  momento.  Ilabilàmos  com  outros  esta- 
dos esta  vasta  região  ,  que  pelo  aspecto  accidenta- 
do  do  seu  território,  e  delineamento  dos  rios  e  ma- 
res que  a  banham,  symbolo  da  variedade,  está 
predestinando  á  vida  activa,  móbil,  e  aventurosa 
as  gerações  que  nella  se  agrupam  e  succcdem.  E 
não  é  possível  que  convivendo  no  collegio  das  na- 
ções civilisadas,  em  contado  com  cilas  pelo  ocea- 
no e  pela  terra  ,  nos  não  seja  comnuinícada  uma 
porção,  ainda  que  fraca,  do  grande  impulso  que 
as  agita  ,  uma  centelha  da  chamma  que  as  aquece. 
Situados  na  orbita  deste  systema  social  ,  participa- 
remos ,  posloque  humilde  satellite  ,  de  uma  partí- 
cula da  energia  que  vivifica  a  outros  estados.  Pela 
própria  gradação  do  nosso  desenvolvimento  interno, 
tendo  já  pago  escote  avultado  aos  exercícios  raystí- 
cos  e  contemplativos  de  outras  eras,  agora  toca-nos 
cuidar  do  viver  externo  e  do  trabalho  industrial 
que  pertence  á  nossa.  Cuidaremos  :  e  da  decompo- 
sião  profunda  ,  do  vício  fundamental  que  achaca  a 
sociedade  ingleza  talvez  venhamos  a  aproveitar.  Fu- 
gindo á  eiva  maléfica  que  os  accometle  na  terra 
natal,  os  seus  capitães  e  os  seus  industriosos  virão 
—  não  o  creio  impossível  —  acoitar-se  a  esta  Pe- 
nínsula ,  fertilisar  este  solo  que  regracía  com  tanta 
magnificência  as  fadigas  do  homem  ,  auxiliar  este 
povo  que  tanto  tem  cooperado  no  adiantamento  de 
todos  os  outros. 

*     • 

Quando  no  meu  art.°  4.°  expuz  o  modo  de  fazer 
circular  os  capitães  não  pecuniários,  não  foi  minha 
intenção  occultar  que  o  banco  de  Lisboa  empres- 
tando ,  como  todos  sabem,  sobre  os  géneros  depo- 
sitados na  .\lfandcga  desta  capital ,  de  feito  contri- 
buía—  nessa  parle  ao  menos  —  para  a  circulação 


316 


O  PANORAMA. 


(ios  mesmos  capitães.  Mas  como  similhanfe  pratica 
nem  se  estendia  a  outros  pontos  conimerciaes  do 
reino,  nem  a  outras  mudanças,  e  siliiarries,  aliás 
mui  variadas,  porque  passam  as  mercadorias,  an- 
tes de  chegar  ao  consumidor,  propuz  que  ampliasse 
fe  atú  me  sorvi  desta  palavra]  o  cxpedionle  que  al- 
li  apontei,  que  não  é  cuulrario,  antes  muito  aná- 
logo á  rcferrda  pratica. 

A.  d' O.   SIarrcca. 


BUSTO  D£   NEW^TON. 

Com  suas  leis  a  vasta  natureza 

Immersa  cm  sombras  liigiibres  jazia  ; 

Surie  ,  ó  Newton —  bradava  a  voz  do  Elerno  : 

Nasceu  Newton  ao  miin-lo,   e  nasce  o  dia. 

i».«  Macedo.  Neislon.  Canto  3.° 

IstAC  Newto.n  ,  descendente  de  uma  antiga  e  honra- 
da familia  do  condado  de  Lincoln,  nasceu  no  dia 
de  Matai  de  i(i't'2  ,  anno  em  que  morreu  o  tão  fa- 
moso quanto  perseguido  Galileu  ;  como  se  a  Provi- 
dencia tivesse  disposto  que  a  f.illa  de  um  fosse  logo 
substituida  por  outro  investigador  profundo  das  leis 
e  arcanos  da  natureza.  Nasceu  orphão  de  pai  ,  que 
havia  pouco  falicccra  ;  e  passando  sua  niãi  a  segun- 
das núpcias  foi  mr.ndado  educar  na  escliola  dcGran- 
tham,  onde  principiou  a  desenvolver,  na  tenra  ida- 
de de  12  annos  ,  a  natural  propensão  para  a  feitu- 
ra de  machinismos  ,  c  o  gosto  !)cla  sciencia  de  cal- 
cular e  pela  arlc  do  desenho.  I'or  morte  de  seu  pa- 
drasto voltou  para  casa  a  ajudar  sua  mãi  no  trafe- 
go e  administrarão  do  casal  e  lavoura,  mas  o  amor 
aos  livros  c  d  meditação  lhe  fazia  esquecer  os  inte- 
resses da  fazenda  :  quando  ia  ao  mercado  gastava 
horas  inteiras  no  caminho,  ás  vezes  a  examinar  uma 
azenha  ou  moinho  ,  ou  (]ualquer  construceão  simi- 
Ihante.  Não  podendo  vcnccr-llic  a  inclinarão,  man- 
daram-no  estudar  a  Camliridge  ;  c  o  que  parecia 
por  condirão  destinado  á  vida  de  lavrador  ohscuro 
veio  a  ser  celebre  entre  os  maiores  philosophos  ,  e 
a  ufania  da  sua  pátria:  começou  pela  Geometria  de 


Euclides  ,  mas  achando  a  sua  penetração  demasia- 
do fáceis  as  proposições  deste  livro  passou  breve- 
mente á  Analyse  de  Descartes  e  á  Óptica  de  Ke- 
plcr,  fazendo  addilamentos  aos  auctores,  e  observa- 
ções ,  que  escrevia  á  margem.  Dentro  cm  pouco 
tempo  chegou  a  noticia  favorável  de  seu  engenho  e 
applicação  ao  Dr.  Barrow,  então  dos  primeiros  ma- 
thcmaticos  inglezes ,  o  qual  se  dcci.irou  constante 
patrono  e  amigo  do  mancebo  estudante. 

De  it)G4  a  Go  ,  estando  já  baciíarel  formado,  oc- 
cupou-se  por  uma  parle  em  especulações  e  expe- 
riências sobre  a  natureza  da  luz  e  das  cores,  e  por 
outra  a  preparar  o  caminho  para  o  seu  novo  me- 
thodo  de  íluxões  c  series  infinitas.  Dahi  a  pouco, 
vindo  o  contagio  assolar  Cambridge  ,  teve  de  reti- 
rar-se  ao  campo  ;  e  foi  por  esse  periodo  que  lançou 
os  fundamentos  ao  systema  universal  de  gravitação, 
cuja  primeira  idéa-  [segundo  uma  anecdota  mui  vul- 
gar] lhe  fiira  suscitada  vendo  cahir  um  pomo  da 
arvore:  dizem  que  um  raciocínio  immediato  o  in- 
duzira a  concluir  que  a  mesma  força  manifestada 
na  queda  da  maçaã  ,  poderia  ser  applicavcl  á  lua, 
e  que  reteria  esta  em  sua  orbita.  Depois  estendeu 
cllo  á  s\ia  doutrina  a  todos  os  corpos  e  a  demons- 
trou por  modo  evidente  ,  confirmando  as  leis ,  que 
Kepler  descobrira  ,  por  uma  laboriosa  serie  d'ob- 
scrvaçõcs  c  raciocínios.  Não  só  todos  os  ramos  da 
natural  philosophia  receberam  de  tamanho  impulso 
grandes  melhoramentos ,  mas  até  se  fez  uma  nova 
sciencia  nas  mãos  de  Newton  :  o  systema  de  gravi- 
tação confirmou  ,  como  dissemos  ,  os  descobrimen- 
tos de  Kepler  ,  explicou  as  leis  immutaveis  da  na- 
tureza ,  converteu  o  systema  de  Copérnico  de  hypo- 
these  provável  era  plena  e  demonstrada  verdade  ,  e 
eITectivamente  desfez  os  vórtices  ou  turbilhões  de 
Descartes,  e  todos  os  improváveis  epicyclos  e  gros- 
seiro apparato  com  que  os  antigos  e  alguns  moder- 
nos entulharam  o  universo.  —  .Se  Newton  tivera  no- 
ticia dos  escriptos  dos  nossos  sábios  António  Luiz 
e  Pedro  Nunes  ,  que  anteviram  alguns  daquelles 
descobrimentos ,  por  certo  que  ,  dotado  como  era 
de  modéstia  e  animo  recto,  faria  delles  menção  di- 
gna em  suas  obras. 

Os  ^  Princípios  nuitlicmaticns  da  pliilosophia  na- 
tural ,  livro  magistral  de  Newton  ,  contém  um  sys- 
tema philosophico  inteiramente  novo  ,  edificado  so- 
bre as  bases  solidas  da  experiência  e  observação, 
e  demonstrado  pela  mais  sublime  geometria :  os 
tratados  sobre  a  Óptica  deram  a  nova  theoria  da 
luz  e  das  cores. 

Em  1687,  Newton  assignalou-se  como  slrênuo 
defensor  dos  privilégios  da  Universidade  de  Cambri- 
dge ,  onde  leccionava  as  matbematicas  :  em  1683 
foi  eleito  meml)ro  da  camará  dos  communs  :  era  já 
então  o  seu  extraordinário  mérito  bem  e  geralmen- 
te reconhecido.  No  ministério  de  lord  Ilalifax  foi 
nomeado  conservador  da  Casa  da  Moeda,  cargo  qu« 
desempenhou  com  serviços  importantes  para  a  na- 
ção :  Ires  annos  depois  o  promoveram  ao  logar  mais 
superior  da  mesma  repartição  ,  no  qual  se  conser- 
vou até  o  seu  fallecimento.  Feito  era  1703  presi- 
dente da  Sociedade  real  ,  resignou  inteiramente  a 
propriedade  da  cadeira  em  Cambridge  ,  onde  havia 
tempos  pozcra  serventuário. 

O  seu  tratado  sobre  refracçõcs  ,  reflexões  ,  infic- 
xões  c  cores  da  luz  ,  que  tem  passado  por  muitas 
edições,  c  tem  sido  traduzido  em  varias  linguas  , 
fui  publicado  a  vez  primeira  cm  170Í.  No  anno  se- 
guinte a  rainha  Anna  o  elevou  á  ordem  de  caval- 
leiro.   Era  1707  appareccu  com  a  Arithmctica  L'ui- 


o  PANORAMA. 


317 


versai.  Muitas  são  as  suas  obras,  e  todas  [córao  se 
usa  dizer;  de  vigoroso  pulso  :  a  melhor  edioão  é  a 
do  Dr.  Horsley  com  precioso  commentario  ,  dada  á 
luz  cm  1784  em  o  vol.  in  í." 

O  habitual  temperamento  ,  e  a  equanimidade  de 
que  ,  também  por  conipleirão  ,  era  dotado  esto  ho- 
mem insigne  ,  contribuíram  para  a  conservarão  da 
sua  saúde,  e  gozo  de  suas  faculdades  até  mui  avan- 
çada velhice  :  a  final  accoramcUeu-o  uma  doença 
da  bexiga,  que  lhe  motivou  graves  padecimentos, 
e  de  que  morreu  a  20  de  março  de  1726  ,  contan- 
do 8Í-  annos.  Foi  sepultado  na  abbadia  de  NVcst- 
minsler ,  onde  lhe  erigiram  monumento  com  inscri- 
pção  latina  :  a  sua  estatua  ,  obra  de  Ronbiliac  ,  foi 
collocada  no  collegio  da  Trindade  em  Cambridge  , 
de  que  fora  membro.  Acha-se  o  desenho  desta  es- 
tatua em  o  nosso  volume  4.° 


AbCIIEOLOGIA    POETCCrEZA. 

VIII. 
1578 


Asptcto   de  Lisboa   ao  ajuntar-se  e  partir   a  armada 
pata  ajuntada  d'Àlcaccr-Quibir. 

Apesar  de  os  historiadores  do  infeliz  D.  Sebastião 
haverem  aproveitado  muitas  memorias  coetâneas  pa- 
ra tecerem  as  suas  narrativas,  esta  de  que  hoje  da- 
mos um  extracto  lhes  foi  desconhecida.  E  todavia 
ella  appreseuta  o  quadro  mais  miúdo  e  talvez  mais 
completo  da  grandeza  e  importância  daquella  des- 
graçada expedição  ,  em  que  as  riquezas  ,  os  sacri- 
Ccios  de  todo  o  género,  e  as  violências  inauditas 
de  que  todo  o  paiz  foi  theatro  não  poderam  reme- 
diar a  decadência  do  antigo  esforço  portuguez,  nem 
restaurar  a  energia  indou.avel  dos  séculos  anterio- 
res ,  corrompida  pela  morte  da  liberdade  munici- 
pal e  da  independência  aristocrática,  annuladas  por 
D.  João  2."  e  por  D.  Manuel. — Do  estylo,  do  mo- 
do por  que  a  relação  dos  successos  se  appreseuta  , 
do  ponto  era  que  ella  termina  ,  e  dos  signaes  pa- 
leographicos  do  manuscripto  se  deduz  que  esta  me- 
moria, pertencente  á  Bibliotheca  Real,  foi  escripta 
por  um  contemporâneo  e  testemunha  ocular  dos 
aprestos  da  armada.  A  valia  ,  pois  que  tem  para  o 
estudo  de  uma  das  epochas  capitães  da  historia  pa- 
■«tria,  nos  fez  escolher  alguns  extractos  delia  para 
formarem  parte  da  serie  de  noticias  mais  curiosas 
e  recônditas  sobre  as  nossas  cousas,  que  ha  muito 
começámos  a  publicar  neste  jornal  sob  o  titulo  de 
Archeologia  Portugueza. 
* 

Estava  a  cidade  de  Lisboa  cm  todas  as  cousas 
mui  differente  do  que  era,  porque  a  gente  que  nel- 
la  havia  não  se  lhe  dava  numero,  nem  havia  ho- 
mem que  passeasse,  nem  audasse  de  vagar,  assim 
naturacs  como  estrangeiros  ,  porque  todos  se  nego- 
ceavam  para  a  jornada  de  Africa  ,  onde  eirci  que- 
ria passar,  e  mostrava  se  em  todos  tanto  alvoroço 
que  pareciam  que  iam  a  folgar  ou  a  ver  umas  gran- 
des festas. 

Havia  muita  gente  estrangeira  afora  os  tudescos, 
que  clrei  mandara  vir  e  que  estavam  em  Cascaes 
alojados,  afora  600  soldados,  os  quaes  indo  para 
a  Rochella  por  mandado  do  papa  em  soccorro  dos 
catholicos  Contra  os  herejcs  ,  vieram  a  Lisboa  to- 
mar refresco  ,  e  pedir  embarcação  a  S.  A.  ,  a  qual 
lhes  não  pôde  dar ,  por  ter  necessidade  de  todos  os 


navios  para  esta  viagem,  antes  disse  ao  capitiío  des- 
ta gente ,  que  era  o  duque  Leuister  de  Irlanda  , 
que  o  quizessc  acompanhar  nesta  jornada  ,  o  que 
para  isso  mandaria  pedir  licença  a  S.  Santidade  , 
para  o  qual  o  duque  lhe  deu  do  praso  40  dias  pa- 
ra dentro  delles  vir  a  resposta,  a  qual  não  veio  até 
a  partida  d'clrci  ;  mas  emfim  os  foz  embarcar  e 
levou  comsigo.  Era  gente  muito  lustrosa,  c  solda- 
dos velhos  exercitados. 

Havia  em  Lisboa  muita  gente  estrangeira  ,  assim 
castelhanos  como  de  outras  nações  ,  que  vieram  pa- 
ra irem  nesta  jornada  por  aventureiros  ,  gente  hon- 
rada e  muito  lustrosa,  que  vieram  soi>ir  clrei  á 
sua  custa  e  sem  partido.  E  assim  acudiram  muitos 
olliciaes  de  instrumentos  militares;  porque  mandou 
eirei  declarar  por  Itália  ,  Castclla  ,  c  .\lemanha  , 
que  todo  homem  que  cm  sua  terra  tivesse  officio  de 
guerra  e  quizesse  acompanhar  nesta  jornada  lhe  fa- 
ria partidos  avantajados. 

Eirei  Filippe  em  Castclla  mandou  apregoar  que 
todo  o  homem  que  passasse  com  seu  sobrinho  nes- 
ta jornada  ,  lhe  levaria  em  conta  todo  o  tempo  que 
servisse ,  como  se  acompanhara  sua  própria  pes- 
soa. 

Fez  eirei  quatro  coronéis  —  se.  Diogo  Lopes  de 
Sequeira  do  terço  de  Lisboa  e  seu  termo  ,  D.  Mi- 
guel de  Xoronba  do  de  Santarém  ,  Vasco  da  Sil- 
veira do  de  Alemtcjo  ,  Francisco  de  Távora  do  ter- 
ço do  Algarve.  Xão  fez  coronel  d'Eutre  Douro  e 
Minho,  nem  da  Beira,  porque  a  gente  que  de  lá 
Vier  se  hade  repartir  por  estes  coronéis. 

Estes  despediu  eirei  a  20  dias  de  maio  ,  para 
que  cada  um  fosse  fazer  sua  gente  e  pagasse  logo 
a  todos  ,  e  começassí  a  paga  a  correr  desde  o  dia 
que  cada  um  partisse  da  sua  terra.  A  gente  de  Lis- 
boa e  a  dos  terços  de  Santarém  e  do  Alemlejo  veio 
embarcar  aqui  em  Lisboa  ;  a  outra  se  embarcou 
em  os  portos  mais  chegados  :  e  para  esta  gente  se 
embarcar  mandou  eirei  vir  aqui  de  Setuval  60  ur- 
cas  que  estavam  d  carga  do  sal.  Todas  estas  entra- 
ram era  Lisboa  em  um  dia  ,  e  ficaram  lá  em  Setu- 
val outras  70  urcas  ,  que  clrei  mandou  bi  carregar 
de  cousas  necessárias.  Vai  por  general  de  toda  a 
armada  D.  Diogo  de  Sousa  ,  governador  que  foi  do 
reino  do  Algarve. 

Era  eIrci  tão  cioso  ou  curioso  da  negociação  des- 
ta jornada  ,  que  de  ninguém  a  fiava  nas  cousas  ne- 
cessárias senão  de  si  mesmo.  E  foi  por  vezes  visto 
em  pessoa  mandar  carregar  e  negociar  os  seus  ga- 
leões ;  e  tão  occupado  que  pela  sesta  se  viu  ura  dia 
no  cacs  sem  chapéu,  mandar  arrumar  em  um  gal- 
leão  umas  poucas  d'armas  ;  e  era  a  sésla  ardentís- 
sima. 

É  infinito  querer  contar  do  aparelho  das  cousas 
de  guerra  ,  que  eirei  mandou  embarcar  :  de  arle- 
Iharia  muila,  e  muito  grossa,  uma  de  campo  e  ou- 
tra de  bater  ,  e  outra  para  o  mar  ,  toda  de  bronze  , 
infinitos  corpos  d'armas  ,  piques,  arcabuzes,  pe- 
louros, ceirões,  carretas,  enxadas,  alviões,  barras, 
pólvora,  marrões,  e  morrões;  e  para  isto  leva\a  mui- 
tos gastadores  ,  que  diziam  que  eram  4:000  :  leva- 
va muitas  azemolas  ,  bois  ,  carros  ,  e  todo  o  mais 
destas  cousas  :  levava  mais  para  os  gastadores  um 
galleão  cbeio  de  çapatos  de  malhóo. 

Chegou  a  Lisboa  o  duque  de  Bragança  no  fim  de 
maio  com  sua  gente  escolhida  ,  vestida  de  amarel- 
lo  ,  e  guarnecida  de  vermelho  :  outra  alguma  de 
seu  serviço  vinha  de  vermelho  fino  ,  com  calças  e 
gibões  da  meíma  còr.  Leva  muila  gente,  e  a  mais 
delia  mandou  embarcar  em  Setuval ,    onde  linha 


318 


O   PANORA3IA. 


para  isto,  e  para  sua  inatalolagem  e  cavallos,  vinte 
e  sele  urcas  apcnadas  por  mandado  d'clrci.  —  O 
duque  veio  pela  posla  ,  e  ao  outro  dia  adoeceu  ,  e 
esteve  mnilo  mal  ;  e  quiiido  viu  que  não  podia  ir 
por  sua  indisposição,  mandou  vir  de  Villa-viçosa  o 
filho  mais  velho,  para  em  seu  logar  ir  com  eirei. 
?íão  lh'o  quiz  a  duqueza  mandar  ,  e  mandou-lhe  o 
filho  segundo  ,  que  lhe  elle  logo  tornou  a  mandar  , 
6  que  em  todas  as  maneiras  lhe  mandasse  o  filho 
mais  velho,  o  qual  veio,  c  partiu  de  Lishoa  apoz 
elrei  era  uma  nau  veneziana,  tão  grande  como  uma 
da  Índia,  muito  bem  concertada  com  muita  artilha- 
ria grossa  ,  com  muitos  estandartes  ,  e  padezcs ;  e 
foi  por  Setuhal  para  levar  comsigo  a  sua  gente  que 
lá  eslava  emharcada. 

Ao  1.°  de  junho  mandou  elrei  lançar  hando  que 
iodas  as  companhias  fossem  receber  soldo  ,  e  que 
todo  homem  assi  natural  como  estrangeiro  que  re- 
cebesse ou  tivesse  recebido  soldo,  c  não  passasse 
á  Africa  ,  que  morresse. 

Foi  elrei  por  vezes  ao  campo  ver  os  esquadrões 
e  os  capitães  como  o  faziam,  e  cllc  mesmo  andava 
nas  resenhas  e  entre  o  pó  e  fumo  da  arcabuzaria  , 
muito  alegre  e  contente.  E  é  de  notar  o  fervor  com 
que  negociou  estas  cousas:  e  depois  que  se  isto  co- 
meçou a  apparelhar  lhe  era  pesada  toda  a  practica, 
que  não  lrala\a  de  guerra  ,   ou  do  apparelho  delia. 

Neste  meio  tempo  houve  algumas  brigas  mui  tra- 
■vadas  ,  e  algumas  de  bandos,  como  foi  uma  dos 
portuguezes  c  tudescos  na  praia  da  Boa-visla  ,  sen- 
do mais  de  200  tudescos  e  outros  tantos  portugue- 
zes ,  que  durou  por  muitas  horas,  sem  os  poderem 
apartar  nem  apasiguar  ;  e  não  morreu  mais  de  um 
tudesco,  e  houve  muitos  feridos  de  uma  parte  e 
outra  ,  e  nasceu  esta  briga  de  dois  portuguezes 
quererem  obrigar  a  dois  tudescos  que  pagassem  a 
uma  taberneira  o  que  lhe  comeram  ,  que  lho  não 
queriam  pagar.  Outra  briga  houve  de  portuguezes 
contra  castelhanos,  porque  três  portuguezes  incon- 
sideradamente arrancaram  contra  um  esquadrão  de 
castelhanos,  e  succcdeu-lhcs  bem,  que  em  pouco 
se  juntaram  40  ou  50  portuguezes  que  brigaram 
Talorosanicnte  ,  onde  mataram  quatro  castelhanos  e 
feriram  mais  de  vinte:  dos  portuguezes  não  mata- 
ram nenhum,  mas  licaram  alguns  feridos.  Esta  bri- 
ga se  fez  no  Rocio,  á  porta  do  hospital  d'elrei  ,  c 
arraou-se  de  estes  Ires  portuguezes  chamarem  la- 
drões a  seis  ou  sele  castelhanos  dos  daquella  com- 
panhia ,  porque  estando  um  mouro  de  Cide  Mura 
com  Ires  moedas  d'ouro  de  500  réis  na  mão,  lhe 
disseram  estes  sete  castelhanos  se  as  queria  trocar, 
que  lhe  dariam  de  ganho  40  réis  por  cada  uma  : 
acceitou  o  mouro,  e  podiram-lhe  os  castelhanos  as 
moedas  para  vèr  se  eram  de  peso,  e  mostrando-lhes 
as  três,  as  passaram  de  mão  em  mão  uns  pelos  ou- 
tros de  maneira  que  desapparcceram  ;  c  o  mouro 
(\ediu  ajuda  a  estes  Ires  portuguezes  e  emenda  da 
zombaria  que  lhe  fizeram  ,  e  que  lhe  tornassem  o 
seu  dinheiro.  Vendo  elrei  que  estes  negócios  iam 
para  mal ,  e  que  cada  dia  havia  brigas  ,  mandou 
lançar  bando  que  lodo  homem  assim  natural  como 
estrangeiro,  que  na  còrle  arrancasse  esjiada  ,  mor- 
resse por  isso,  c  assim  se  atalharam  as  brigas. 

Mas  depois  que  elrei  se  partiu  houve  uma  só, 
que  foi  a  gente  do  duque  de  Bragança  com  uma 
companhia  de  castelhanos  que  ficou  em  Lisboa  pa- 
ra receber  soldo;  e  tanto  qnc  a  briga  se  começou 
"  o  capitão  dos  castelhanos  recolheu  sua  gente  o  me- 
lhor que  pòdc  nas  varandas  dos  paços  da  ribeira  , 
e  a  briga  começou-se  á  porta  domar  junto  ás  casas 


de  Affonso  d'Alboqiierque.  Ajuntaram-se  da  gente 
do  duque  mais  de  200  homens,  e  o  fizeram  como 
muito  soberbos  e  pouco  esforçados  ;  porque  sahindo 
o  capitão  dos  castelhanos  com  uma  bandeira  de  paz, 
e  pondo-se  de  joelhos  diante  delles,  dizendo  que 
por  amor  de  Deus  o  matassem  a  elle  e  deixassem 
os  seus  soldados ;  que  olhassem  que  eram  irmãos 
dos  portuguezes,  e  vinham  a  servir  elrei  de  Por- 
tugal; elles  sem  deferirem  a  isto,  iam  seguindo 
sua  fúria,  e  vendo  algum  castelhano  ás  janellas  ou 
varandas  lhe  tiravam  ás  arcabuzadas  ,  e  ao  mesmo 
capitão  que  lhes  pedia  paz  lhe  tiravam  muitos  gol- 
pes e  pedradas,  que  foi  milagre  não  o  matarem  ou 
ferirem.  Fez  este  capitão  maravilhas  c  deu  mostras 
de  muito  esforçado;  e  porque  já  alguns  do  duque 
haviam  lido  os  dias  atraz  brigas  com  alguns  da  sua 
companhia  ,  e  era  em  rixa  velha  ,  foi  esle  capitão 
ao  duque  pedir-lhe  amnestasse  a  sua  gente  não  lhe 
quizesse  malar  seus  soldados  ,  e  como  já  o  duque 
estav.i  informado  das  finezas  que  este  capitão  fize- 
ra ,  lhe  agradeceu  muito  e  lhe  mandou  dar  um  ca- 
vallo  e  duzentos  cruzados  ,  e  um  chapéu  seu  ,  que 
tinha,  para  levar,  porque  o  capitão  ia  sem  elle,  que 
o  perdera  na  briga. 

E  pela  cidade  se  começou  a  alevantar  um  rumor 
que  seria  bom  prenderem  ao  mesmo  duque;  que 
não  era  possível  que  elle  não  mandasse  á  sua  gen- 
te fizessem  bandos  e  as  taes  brigas,  sendo  elrei  au- 
sente ,  e  que  sempre  a  casa  de  Bragança  fora  aves- 
sa ás  cousas  do  rei.  Não  faltou  quem  avisasse  ao 
duque  disto  ,  o  qual  mandou  chamar  toda  a  justi- 
ça ,  e  lhes  pediu  com  muita  instancia  ,  que  todo 
seu  creado  prendessem  e  julgassem  no  mesmo  ins- 
lantc  ,  e  que  se  conheciam  alguns  dos  outros  da 
briga  passada  os  prendessem  logo  ,  e  se  julgassem 
como  a  elrei  e  a  suas  justiças  parecesse.  Conhece- 
ram doze  dos  que  começaram  a  briga  ;  prenderam- 
nos  :  todos  os  mais  fez  logo  o  duque  embarcar,  e 
partiram  com  o  duque  novo.  Afora  estas  brigas  Io- 
das ,  amanheciam  muitos  homens  mortos  das  bri- 
gas de  noite. 

Aos  oito  dias  de  junho  mandou  elrei  lançar  ban- 
do que  todos  se  aviassem,  porque  elle  se  embarca- 
va a  14  do  mesmo  mez  ,  que  foi  um  sabbado  ;  e 
tão  firmemente,  que  pcrguntando-lhe  Christovão  de 
Távora  se  havia  de  passar  alguns  dias  depois  dos 
qualorze,  lhe  tornou:  —  que  bem  se  podia  o  céu 
ajuntar  com  a  terra  ,  sem  haver  falta  no  que  tinha»' 
mandado  apregoar. 

Neste  sabbado  14  de  jimho  foi  elrei,  dos  paços 
da  ribeira  á  sé,  a  buscar  a  bandeira  real.  Tanloque 
amanheceu  começaram  a  correr  os  fidalgos  para  o 
acompanharem  :  e  parece  que  á  porfia  trabalharam 
para  ir  cada  um  mais  galante  ecustoso:  cousa  que 
espantou  muito  as  gentes,  ver  como  todos  iam  rica- 
mente vestidos  ;  porque  se  a  matéria  dos  vestidos 
era  rica  ,  a  obra  ,  feitios  e  invenções  de  mais  rica 
sobejava;  porque  tudo  era  brocado,  tela  de  ouro  e 
prata  ,  tecidos  d'ouro  e  praia  ,  tecidos  de  seda  mui 
custosos.  Os  veludos,  damascos,  c  todas  as  mais 
sedas  perderam  sua  valia,  e  se  alguma  tinham  era 
pelos  muitos  passamanes ,  rendilhas,  espiguilhas, 
lorchados  e  alamares  de  ouro  que  lhe  punham.  Mas 
tudo  isto  era  de  pouco  gasto  em  comparação  dos 
feitios,  que  estes  destruíram  os  homens. 

Alem  disto  foi  espanto  ver  a  muita  pedraria  que 
neste  dia  sahiu  :  os  botões  d'ouro  ,  as  tranças  dos 
chapéus  cheias  de  rubis,  diamantes,  c  esmeraldas 
de  preço  infinito  ,  cntrcsacbadas  a  compasso  umas 
com  as  outras;  os  camafeus,  medalhas  e  estampas 


o   PAIXORAMA. 


319 


de  feitio  singular  ;  as  cadeias  d'oiiro  grossíssimas 
aos  pescoros,  de  dez  e  doze  vollas  ;  as  coiiras  l)or- 
ladas  d'oiiro  cora  botões  d'ouro,  cristal,  pérolas  c 
demais  pedraria  ;  os  gibões  e  coletes  sobre  lelilha 
d'ouro  com  iuvenrão  de  corte  ,  pique  ,  presponte 
maravilhoso;  os  capotes  de  damasco  ,  setim  ,  olia- 
inalote  de  seda  ,  bandados  com  barras  de  veludo  e 
torçaes  d'ouro. 

Os  arreios  dos  cavallos  eram  cousa  de  admira- 
rão ;  porque  todos  os  fidalgos  levavam  em  seus  ca- 
vallos cabeçadas  e  esporas  de  praia,  esmaltadas  de 
ouro  e  azul  ;  as  estribeiras  com  mil  figuras  e  ma- 
neiras de  bichos  abertos  nellas,  obrados  por  singu- 
lar arte;  as  uominas,  pcitoraes  ,  cigolas  e  cordões 
com  muitas  borlas  d'ouro  e  torçaes  ;  as  muchillas 
com  os  jaezes  c  cuhertas  quando  menos  eram  de 
veludo  com  mil  franjas  de  ouro  c  prata,  c  os  man- 
dís  de  veludo. 

Neui  era  menos  ver  como  os  fidalgos  vestiram  to- 
dos a  sua  gente  ,  uns  de  gran  ,  outros  de  raxa  de 
mescla  o  tamete,  isto  assim  a  escudeiros  o  piígeiís 
como  a  lacaios  e  escravos,  cada  um  de  sua  lihréa 
de  suas  cores,  e  algims  os  vestiram  calças  c  gibões 
de  seda  da  cor  de  sua  libréa  ,  com  meias  de  agu- 
lha de  seda. 

Emíim  foram  os  fidalgos  esperar  a  eirei  á  sala  , 
e  dahi  desceram  com  elle  até  cavalgar.  Eslava  a 
este  tempo  o  terreiro  do  paço  ,  que  é  ura  espaço 
grande,  muito  cheio  de  gente,  que  não  havia  po- 
der andar,  e  alem  disso  era  para  ver  estar  as  li- 
brcas  de  dez  cm  dez  homens,  pegados  nos  cavallos 
de  seus  senhores,  de  cores  diflerenles  todos,  com 
muitas  |)lumas  de  diversas  cores  nos  chapéus,  com 
cendaes  aos  pescoços  com  borlas  d'ouro  e  seda  , 
que  faziam  um  campoesmallado  de  diversas  boninas. 

Finalmente  passando  eIrei  pela  varanda  ,  junto 
da  escada  por  onde  havia  de  descer  a  cavalgar, 
olhou  para  todo  ,o  espaço  da  gente  ,  e  conhecida- 
mente se  lhe  enxergou  no  rosto  o  contentamento  de 
▼er  tanta  gente  ,  tiio  lustrosa  e  tão  alvoroçada  ;  e 
cavalgando ,  foi  passando  pelos  fidalgos  pondo  os 
olhos  em  cada  um  com  uma  alegria  e  benignidade 
desacostumada.  Desta  maneira  foi  acompanhado  até 
a  sé  ,  onde,  depois  de  ouvir  missa,  se  benzeu  com 
muita  solemnidade  a  bandeira,  na  qual  estavam  de 
uma  parte  postas  as  armas  rcacs  ,  e  da  outra  um 
crucifixo,  com  eIrei  D.  Sebastião  tirado  pelo  natural. 

Já  que  tudo  era  acabado  ,  elrei  com  os  joelhos 
no  chão  e  os  olhos  arrazados  d'agua  esteve  um  pe- 
daço diante  do  Santíssimo  Sacramento  rezando.  Aca- 
bando a  oração  entregou  a  bandeira  a  D.  Luiz  de 
Menezes  alferes-mór  ,  que  cuhcrto  a  levou  diante; 
e  assim  acompanhado  até  o  cães  da  rainha,  se  em- 
barcou na  galé  real  ,  cuja  obra  é  estranha  ,  porque 
só  na  popa  ,  onde  elrei  vai  ,  se  affirma  que  se  gas- 
taram mais  de  oito  mil  cruzados,  porque  é  da  mais 
estranha  e  singular  invenção  que  se  viu.  Toda  era 
cozida  em  ouro,  com  muitas  historias  aberías  no  mes- 
mo páu  ,  com  outros  muitos  vultos  formosíssimos, 
e  outras  personagens  de  temerosos  aspeitos,  tudo 
obrado  com  maravilhoso  arteficío  ;  e  o  farol  real  era 
couforme  a  dita  obra  de  maravilhosa  invenção. 

(A.   Tlerculano.) 
(Cordinuar-se-ha) . 


PbILOSOPHU    D4    tida     social  ,     DD    ACTE    DE    AGBADAR 
NO    JIINDO. 

=  0  Mc:«DO ,   disse   espirituosamente   um  observa- 


dor ,  é  uma  lanterna  magica  que  ,  perpetuamente 
era  acção,  apprescnta  uma  vastíssima  scena  em  que 
se  vêem  passar  em  confusa  mistura  defeitos  e  ridí- 
culos ,  prctenções  c  exigências  da  vaidade,  sensa- 
tez e  idiotismo  ,  cordura  e  iniperlíncncia  ,  todas  as 
qualidades  emfim  boas  ou  más  d' indivíduos  de  to- 
das as  idades  e  condições.  Physionomías  c  caracte- 
res, gestos  c  maneiras,  linguagem  e  assumpto  das 
conversações  ,  tudo  ahi  é  d'ordinario  estudadamen- 
te composto  e  affcclado:  mas,  assim  como  ao  ob- 
servador "altento  não  esca[ia  a  condição  e  o  caracter 
do  mascara  alravez  do  seu  disfarce,  também  os  de- 
feitos c  os  vícios  se  revelam  apesar  do  verniz  que 
os  cobre. 

1."  O  mais  seguro  meio  de  figurar  na  sociedade 
é  moslrar-nos  verídicos  e  modestos  era  nossas  re- 
lações com  os  outros. 

2."  Se  quereis  ser  acatado  e  respeitado  ,  receber 
louvores  e  civilidades,  começai  por  merece-las  pro- 
curando de  contínuo  o  aperfeiçoamento.  A  verdadei- 
ra perfeição  ,  que  deve  ser  o  fim  de  nossos  esfor- 
ços perseverantes,  c  a  virtude.  Com  elln  seremos 
indulgentes  para  coro  as  fraquezas  humanas,  e  ja- 
mais descubríremos  suas  falias  c  seus  erros  para 
brilharmos  á  sua  custa. 

3.'  Sede  sempre  reservado  e  moderado  na  mani- 
festação de  vossos  pezares  ou  alegrias.  A  impaciên- 
cia muito  trivial  de  confiar  ao  primeiro  cncontra- 
diço  as  próprias  felicidades  ou  desventuras  é  uma 
fraqueza  d'alma  que  nada  consegue  de  bem,  e  pô- 
de ter  graves  incímvcnientes. 

i.'  Não  viis  desalenteis  jamais  com  os  azares  da 
fiirtuna  :  es()erai  antes  com  magnanimidade  a  volta 
da  prosperidade  ,  conservai  soni|)re  confiança  em 
vós  mesmo,  na  bondade  da  Providencia,  nos  ho- 
mens bons  e  generosos  ,  na  perpetua  mudança  dos 
desi  ínos  humanos. 

D.'  Sede  precatados  e  pacifiios  nos  accidenles 
imprevistos  e  diflícullosos  da  vida  social.  Quando 
o  céu  quer  favorecer  e  privilegiar  um  mortal,  dis- 
se um  phílosiipho  ,  dá-lhe  uma  grande  picstnça  de 
espirito.  E  ainda  que  não  esteja  na  mão  de  cada  um 
este  precioso  beneficio  ,  póde-se  comtudo  prevenir 
as  consequências  desagradáveis  de  sua  falia  pela 
vígilanría  e  pela  prudência. 

6.^  Quereis  vós  ciíuservar  no  mundo  vossa  inde- 
pendência? Quereis  collocar-vos  de  nivel,  em  igual- 
dade com  os  indivíduos  de  vossas  relações?  Não 
lhe  peçais  cousa  alguma  ;  e  não  acceileis  senão  ra- 
ras vezes  os  serviços  que  voluntariamente  vos  pres- 
tarem. Como  porem,  dizeis  vós,  prescindir  sempre 
do  appoio  e  da  protecção  dos  outros?  Como!  O 
meio  é  simples  e  fácil  ;  moderai  vossos  desejos , 
restringi  vossas  precisões. 

7 .'  Desempenhai  com  lealdade  vossa  palavra  , 
cumpri  fielmente  vossas  promessas,  dizei  sempre 
verdade.  Ainda  que  lenhamos  muitas  vezes  motives 
para  não  revelar  nossos  pensamentos,  nada  comtu- 
do pôde  auclorisar-nos  a  dizer  o  contrario  do  que 
pensámos.  Nunca  houve  mentiras  necessárias:  as 
mais  leves  podem  fazer-nos  perder  a  confiança  c  a 
estima  de  nossos  similhantes. 

8.^  Sede  pontual,  laborioso,  minucioso  mesaio 
no  cumprimento  de  vossos  deveres  públicos.  Ado- 
ptai methodos  de  ordem  e  arranjo  em  vossos  negó- 
cios, e  nos  dos  outros  que  estiverem  a  vosso  car- 
go. Todo  o  mundo  se  compraz  era  ler  relações  com 
um  homem  pontual  e  exacto. 

9.^  A  arte  d'agradar  na  sociedade  é  saber  ada- 
ptar o  assumpto  e  a  phrase  da  conversação  á  con- 


1 


320 


O  PANORAMA. 


dirão  das  pessoas  com  quem  tratámos,  á  sua  ca- 
pacidade c  comprehensão,  ao  seu  génio,  caracter,  e 
posição  social. =:01)servemos  ,  diz  I.arochcfocauld 
em  suas  máximas  moraes  ,  pczemos  attentamcntc  o 
legar,  a  occasião,  c  a  disi)osição  em  que  se  acliam 
as  pessoas  que  nos  escutam  :  porque  se  lia  uma  ar- 
te de  saber  fallar  a  propósito  ,  ha  outra  que  nos 
aconselha  saber  callar.  lia  ura  certo  silencio  elo- 
quente que  serve  a  approvar  e  a  condemnar  ,  bem 
como  ha  outro  que  c  de  discrição  e  de  respeito.^ 

10.'  IVão  esqueçamos  nunca  que  aquellcs  com 
quem  entrámos  em  conversação  querem  ser  agrada- 
velmcnlc  dislrahidos,  senão  lisongeados.  =  J.oqui- 
mini  placencia  =  diz  a  Escriptura  ;  falleraos-lhes 
quanto  ser  possa  de  cousas  deleitáveis,  mas  hones- 
tas. Uma  conversação  longamente  instructiva  acaba 
sempre  fatigante  ;  ú  preciso  tempera-la  com  bons 
ditos  e  jovialidades.  Tsão  ha  cousa  que  no  mundo 
pareça  mais  espirituoso  c  dcleilavel  como  os  louvo- 
res e  elogios  delicados.  !N'ão  façais  jamais  o  papel 
de  gracioso  e  cliocarrciro  ;  ainda  menos  o  de  vil 
adulador.  Procurai  com  discrição  ser  ingénuo  e  na- 
tural :  o  homem  que  consljntemente  quer  jiarccer 
agudo  e  espirituoso,  termina  por  se  fazer  insujipor- 
íavel. 

11.'  Conservemos  quanto  possível  fòr  um  sem- 
blante sereno  e  socogado.  O  mais  amável  exterior 
com  que  um  individuo  se  possa  appresentar  na  so- 
ciedade 6  esta  serenidade  lilha  da  igualdade  d'al- 
ma  ,  c  esla  d'uma  consciência  pura  c  Iranquilla  , 
d'um  coração  que  não  6  agitado  pelo  tropel  das 
paixões  violentas.  Sede  benigno  e  benévolo  para 
com  todos  que  se  approximarem  de  vós.  Dirigi  al- 
gum dito  officioso,  d'obsequio,  ou  instructivo  ás  pes- 
soas com  que  vos  entreliverdes ;  mostrai  que  vos 
interessais  por  ellas.  Guardai-vos  porem  de  arro- 
gar o  papel  de  mestre  ou  de  protector,  porque  es- 
sa supremacia  fere  a  modéstia ,  e  não  alcança  o 
seu  fim. 

12."  Conversação  é  um  dos  meios  que  temos  no 
nosso  poder  para  obtermos  estima  e  considcraçãu 
no  mundo  :  mas  para  isso  c  necessário  que  evite  es- 
tes três  escolhos;  que  não  fira,  que  não  enfade  , 
que  não  fatigue.  Ponde  um  cuidado  escrupuloso  cm 
I)annir  de  vossas  palavras  a  maledicência  ,  a  ca- 
lumnia  ,  as  reticencias  malignas  ,  o  escarneo  insul- 
lador  ;  estas  espadas  de  dois  gumes  que  quasi  nun- 
ca deixam  de  tocar  c  ferir  a  própria  mão  que  ou- 
sa maneja-las.  —  Desgraçadamente  este  ar  saty- 
rico  c  malévolo  agrada  ao  commura  das  socieda- 
des :  cnlrelaiito  mais  cedo  ou  mais  tarde  faz  des- 
prezível o  individuo  que  busca  agradar  ;i  cusla  do 
credito  c  da  reputação  dos  outros.  A  zombaria,  per- 
mittida  quando  cila  ó  temperada  com  critica  es- 
pirituosa e  galante,  é  aquella  que  sem  oITender  os 
indivíduos  recahe  sobre  os  desvios,  os  ridículos,  c 
os  excessos  dos  usos  c  das  modas,  dos  vicios  e  dos 
maus  costumes.  Desconfiai  daquelles  que  affectam 
querer  encobrir  todas  as  faltas,  desculpar  todos  os 
erros  :  ordinariamente  não  são  senão  hypocrilas  que 
com  o  manto  da  caridade  cliristaã  se  procuram  acre- 
ditar para  cobrir  os  seus  próprios,  ou  para  acredi- 
tarem o  mal  que  elles  disserem  do  pro%imo. 

13."  Sede  circumspcclo  c  mesurado  (piando  cen- 
surais ou  condemnais  alguma  cousa.  Como  no  mun- 
do ha  poucas  verdades  absolutas,  c  a  maior  parte 
das  cousas  podem  ser  olhadas  por  difiercntes  mo- 
dos ,  (':  dillicil  pronunciar  com  justeza  nos  negócios 
alheios.  Guardai-vos  mais  que  tudo  de  querer  apre- 
ciar os  motivos  das  acções  boas  ,   rebaixando-lhe  o 


mérito  pela  pequenez  de  causas  soppostas.  É  preci- 
so julgar  sempre  o  bem  ,  segundo  o  grau  d'ulilida- 
de  que  occasiona  aos  outros. 

Fallai  pouco  :  e  pezai  antes  de  fallar  as  pala- 
vras, para  que  não  succeda  dizer  o  que  deveis  ou 
quereis  occultar  ,  ou  proferir  cousas  que  tornem  a 
conversação  enjoativa  e  desagradável.  Apprendci  a 
escutar  os  que  faliam,  nem  os  interrompais  cortau- 
do-llie  o  discurso  ;  soffrei  mesmo  que  digam  cousas 
inúteis.  Se  ti\erdes  de  contrariar  o  que  dizem  os 
outros  procurai  adoçar  o  azedume  (|ue  fere  o  amor 
próprio  ;  um  talvez  ,  ou  um  pódc  ser ,  dizia  o  espi- 
rituoso Weiss,  são  o  exórdio  mais  philosophico  pa- 
ra contestar  uma  opinião. 

Nunca  fallemos  de  nós  e  de  nossos  negócios  se- 
não a  nossos  amigos  íntimos:  o  mau  costume  con- 
trario nos  faz  parecer  egoístas  ou  vaidosos.  A  mo- 
déstia é  uma  das  qualidades  mais  amáveis,  e  tan- 
to njais  agrada  ,  quanto  é  mais  rara.  Aquelles  que 
fazem  alardo  de  seus  triíimphos,  que  revelam  seus 
talentos,  que  obrigam  a  escutar  suas  composições, 
que  emfim  andam  mendigando  ajilausos  ,  alcançam 
o  effeito  contrario  ;  pois  que  todos  lhe  retribuirão 
com  enfadamento  e  escarneo. 

É  preciso  ser  tolerante  e  impassível  nas  discus- 
sões em  que  a  rasão  ou  o  emprego  nos  obriga  a  to- 
mar parle.  SoíTrei  mesmo  pacientemente  a  ironia  o 
o  sarcasmo  com  que  combaterem  vossas  boas  ra- 
sõcs  :  oppondo  sempre  a  polidez  e  a  magnanimida- 
de com  perseverança  ,  sede  certo  que  triumphareis 
daquelles  fracos  adversários  ,  porque  vossas  armas 
são  melhores  ,  assim  como  vossas  forças  mais  segu- 
ras. Sede  indulgente  com  os  homens  preoccupados 
de, boa  fé,  e  lembrai-vos  que  a  fraqueza  da  intel- 
ligencia  humana  ,  a  limitada  esphera  de  nossos  co- 
nhecimentos, a  perfeição  emfim  de  nossa  natureza, 
nos  deve  conduzir  a  deplorar  antes  do  que  fulminar 
os  defeitos  do  próximo. 

Jamais  tomareis  parte  nas  conversações  malévolas 
ou  equivocas  ,  nas  que  atacam  a  crença  estabeleci- 
da, as  auctoridades  que  presidem  á  ordem  publica, 
as  leis  que  regem  a  sociedade.  O  vicio  contrario  é 
desgraçadamente  o  typo  quotidiano  das  reuniões  de 
nossa  epocha,  apenas  escapada  d'uma  revolução  que 
póz  em  jogo  e  movimento  todas  as  ambições  ,  to- 
das as  vaidades.  Cada  qual  se  crè  com  capacidade 
e  direito  de  reconstruir  a  sociedade  ,  de  lhe  assi- 
gnar  novas  constituições  e  nova.s  crenças.  ISão  es- 
queçamos jamais  que  todas  as  opiniões  são  respei- 
táveis quando  são  sinceras:  procuremos  antes  il- 
luslrar  do  que  hostilisar. 

J.  da  C.  N.  C. 


Jntroduccuo  da  seda  na  Europa.  —  Os  romanos 
creram  por  muito  tempo  que  a  seda  era  producto 
vegetal  como  o  linho  e  o  algodão  :  da  Pérsia  lhes 
vinha  esla  fazenda  ,  procedente  da  China  ,  região 
que  não  conheciam.  Uns  monges  gregos,  em  tempo 
do  imperador  Justiniano,  trouxeram  a  Constantino- 
pola  os  sirgos  ou  bichos  da  seda  ,  e  ensinaram  o 
cultivo  das  amoreiras  e  tudo  o  mais  conducente  ao 
fabrico  daquellc  precioso  tecido.  Hogerio.  rei  de  Si- 
cília ,  chamou  em  1030  a  Palermo  artífices  gregos 
que  ensinassem  esta  industria,  que  dalii  passou  á 
Itália  c  á  llespanha  e  cm  França  enlrou  quando  go- 
vernava Henrique  1.° — O  reino  deste  nosso  conti- 
nente que  [segundo  a  geral  oíunião]  produz  mai» 
seda  é  o  reino  de  Nápoles. 


94 


o  PANORA3IA. 


321 


FOnXA    TRAVESSA    T>A    SE   DE   NÃI.ACA. 


Em  o  n.'  85  deisámos  esrriptas  algumas  linhas  a 
respeito  Ja  cidade  de  Málaga  ,  que  acaba  de  rece- 
ber por  decreto  real  ,  em  virtude  dos  recentíssimos 
acontecimentos,  o  titulo  de  —  Sempre  denodada,  e 
o  privilegio  de  accrescentar  uma  coroa  civica  ao 
escudo  d'armas  com  a  legenda  —  A  primeira  no  pe- 
rigo da  liberdade.  Da  cathedral  demos  succinla  idéa  : 
é  de  uma  de  suas  portas  lateraes  ,  que  appresen- 
lâmos  agora  desenho. 

Málaga  é  de  grande  antiguidade  ,  os  seus  anti- 
quários pertendera  que  fora  fundada  oito  ou  nove 
século  antes  de  J.  C.  pelus  navegadores  e  commer- 
cianlcs  phenicios ,  que  reconheceram  a  bondade  e 
vantajosa  situação  deste  porto  ,  e  pozeram  á  nova 
povoação  o  nome  àe  Malcha  [que  significa  real]  em 
testemunho  da  estimação  em  que  a  tiveram.  Toda- 
via não  ha  prova  clara  de  tão  remota  antiguidade  : 
o  Sr.  d'Huml)olãt  diz  que  Malaca  ó  palavra  do 
Tasconço  gennino  ,  e  quer  dizer  encosta  de  monta- 
nha. Successivamente  a  possuíram  os  cartliagine- 
zes  ,  os  romanos  que  lhe  deram  a  jerarchia  de  mu- 
nicípio ,  os  godos  ,  e  os  sarracenos  ;  nos  primeiros 
três  séculos  do  dominio  destes  últimos  esteve  su- 
jeita aos  califas  de  Córdova  ;  pelo  desmembramen- 
to do  califado  cahiu  em  poder  ora  de  ura  ora  de 
outro  soberano  de  poucos  recursos  ,  até  que  no  sé- 
culo 13.°  ficou  annexa  ao  reino  mourisco  de  Gra- 
nada. Os  reis  eatholicos,  Fernando  e  Isabel,  a  ga- 
nharam depois  de  porfioso  cerco  de  ires  mezes  ,  no 
decurso  do  qual  os  moradores  padeceram  os  horro- 
res da  mais  excessiva  fome. 

Desde   antigas  eras  ,   em  poder   de  qualquer  da- 

OUTCBRO  li— 1843. 


quellas  nacões  foi  pelo  commercio  famosa  :  ainda 
hoje  é  dasmais  norccenles  da  .\ndaluzia.  Importa 
pannos  finos,  algodões,  drogas,  quincalherias  e 
obras  de  cutelaria  ■  as  suas  exportações  são  muito 
mais  consideráveis  ,  e  por  anuo  montam  proxima- 
mente a  oito  milhões  de  cruzados  ,  consistindo  na 
máxima  parte  em  fructas  e  vinhos;  estes,  que  ou- 
lr'ora  tiveram  gasto  em  Inglaterra  ,  tem  ao  presen- 
te quasi  todo  o  seu  consumo  nos  Estados-Unidos  e 
na  America  hespanhola  ;  as  fructas  são  geralmente 
vendidas  á  Graã-Bretanha  ;  os  outros  géneros  que 
manda  para  fora  são  aguas-ardentes  ,  azeite,  aça- 
frão, barrilha,  e  sabão,  o  qual  é  a  manufactura  de 
Málaga  mais  digna  de  menção,  não  obstante  haver 
uma  fundição  de  ferro,  ha  pouco  estabelecida  ,  e 
uma  fabrica  de  preparação  do  tabaco  de  fumo,  qne 
dá  emprego  diário  a  70Ò  pessoas.  Teve  24  conven- 
tos ,  que  foram  supprimidos  em  1835.  Era  sem 
comparação  mais  populosa  cm  tempo  dos  mouros  ; 
hoje  calculam-se-lhe  sessenta  mil  almas.  Poucos  re- 
síduos conserva  da  architectura  romana  :  os  restos 
dos  edificios  árabes  são  mais  numerosos,  e  desco- 
brera-se  internieados  pela  cidade  em  muralhas,  tor- 
res ,  portas,  casas,  notando-se  ainda  alguns  fra- 
gmentos de  mesquitas  :  lambem  desse  tempo  lhe 
ficou  a  prática  de  construir  sotcas  em  muitos  pré- 
dios, á  maneira  oriental;  alguns  com  seus  miran- 
tes mui  adequados  para  tomar  o  fresco.  O  povo  , 
como  em  quasi  toda  a  Hespanha  ,  é  mui  dado  ás 
festas  de  corridas  de  touros,  para  as  quaes  tem 
uma  grandiosa  praça  .  que  dá  idéa  de  um  circo  ro- 
mano ,  com  a  capacidade  necessária  para  doze  a 
2.°  Serie.  —  Vol.  II. 


322 


O   PANORAMA. 


quinze  mil  espectadores,  c  tendo  a  altura  de  ura 
quinto  andar  até  o  acroterio  superior.  A  malague- 
nha  é  uma  dança,  própria  da  terra,  que  não  deixa 
de  ser  garbosa. 


Abcheologia  portdgueza. 
IX. 

(Continuado  de  pag.  319  . 

E  POBQiE  uão  haja  quem  diga  ,  que  não  trataram 
os  homens  mais  que  de  se  enfeitarem  nem  lhes  lem- 
brara mais  que  suas  louçainhas  e  vaidade  ,  sei  di- 
zer que  o  gasto  que  fizeram  nos  vestidos  foi  pouco 
em  comparação  das  armas  e  aparelhos  para  peleja- 
rem. 

Não  houve  homem  fidalgo  que  não  comprasse  mui- 
tos corpos  d'armas  muito  lustrosos,  e  não  mandasse 
pintar  nellas  suas  armas  cm  campos  de  diversas  co- 
res ;  mil  peitos  de  prova  de  muito  preço  ,  muitas 
couras  e  coletes  de  anta  ,  couraças  de  laminas  cu- 
bertas  de  veludo  e  setiin  de  todas  as  cores  com  ta- 
chas d'ouro  e  prata  ,  muitas  saias  de  malha  ,  e  gi- 
banetcs  ,  tudo  muito  galante  e  de  muito  gasto,  e 
muitas  rodelas  d'aço  lauxiadas  de  lavor  d'ouro  com 
suas  armas  pintadas  nellas,  muitas  adargas  muito 
fortes,  muitas  lanças  dourados  os  contos  e  engastes, 
espadas  largas  e  cortadoras,  muitos  montantes,  le- 
ques, terçados,  e  lodo  outro  género  d'armas  mui- 
to fortes  e  galantes. 

Levam  muitos  homens  fidalgos  um  cavallo  acu- 
bertado  de  euhertas  d'anta  muito  furtes  e  louçans , 
pintarias  nellas  suas  armas  de  tintas  finíssimas.  Ilou- 
Te  ciibcrtas  destas  que  passaram  de  mil  cruzados. 
Não  houve  género  d'armas  assim  offcnsivas  como 
defensivos  que  os  homens  não  comprassem  com  mui- 
to gasto  c  custo,  c  com  mais  gasto  ainda  que  nos 
Tcstidos. 

Levam  lambem  muitas  tendas  muito  ricas  e  mui- 
tas delias  de  seda  ,  com  suas  grimpas  douradas  e 
bandeiras  de  seda  ,  e  tendilhões  para  a  gente  e  ca- 
vallos  ;  e  elrei  leva  muita  summa  de  lendas  que 
mandou  trazer  de  Alemanha  ;  e  se  alTirma  que  as 
d'elrei  c  dos  fidalgos  c  estrangeiros  serão  mais  de 
4;000  com  os  tendilhões. 

É  de  notar  como  os  homens  vão  alfaiados,  e  o 
muito  provimento  de  todas  as  cousas  que  levam  , 
que  p.ireoe  que  levam  casa  mudada  ,  con)0  se  lá 
houvessem  de  estar  viule  annos.  Foi  de  mara\ilhar 
em  todo  este  tempo  ,  com  tanta  confluência  de  fo- 
rasteiros e  gente  de  todo  este  reino  ,  não  faltarem 
nunca  os  maulimenlos  nesta  terra  ,  nem  alevanlar  o 
preço  delles  ,  antes  que  nenhum  outro  tem[io  houve 
mais,  nem  mais  baratos.  Esta  foi  uma  das  cousas 
era  que  Lisboa  mostrou  hem  sua  grandeza. 

Cumr|(i,inlo  elrei  mandou  lançar  bando  cora  penas 
graúdos  ([ijc  ninguém  vendesse  as  cousas  por  mo- 
res preços  do  que  (i'antes  valiam  ,  e  com  ao  prin- 
cípio prendcj-em  algims  por  isso,  não  deixaram  as 
sedas,  pannos,  e  armas,  c  todas  as  cousas  neces- 
sárias para  esta  jornada  do  custar  cinco  e  seis  ve- 
zes mais  do  coslumndo.  Isto  destruiu  os  homens; 
c  na  ruM-nova  onde  todas  estas  cousas  se  vendem  , 
apreçando  um  fid.ilgo  algumas  Cíuisas  de  seda  para 
se  veslir,  pelas  quaes  llie  pediram  tanto  mais  do 
que  valiim  ,  que  fazia  meilo  ,  disse  com  assaz  dor 
de  eoríição  :  —  que  mais  arreceavam  os  homens  a 
guerra  (|ue  se  llies  fazia  na  rua-nova  ,  que  a  que  se 
esperava  em  Africa.  Destes  havia  muitos,  e  os  mais 


delles  negociavam  em  pessoa,  que  assim  era  neces- 
sário para  se  melhor  negociarem,  e  pelo  muito  gas- 
to que  fizeram  ficaram  todos  destruídos,  e  uns  ven- 
deram as  herdades,  e  casas  e  casaes  e  quintans  por 
dois  seitis ,  e  outros  empenharam  as  commendas  c 
morgados ,  por  muitos  annos  por  d'ante  mão  ,  para 
se  aviarem  ,  por  muito  pouco  preço  valendo  muito, 
e  haviam  provisões  d'elrei  para  o  poderem  fazer 
sem  embargo  de  serem  morgados  :  e  outros  vendiam 
a  prata  e  ouro  ,  e  tudo  o  mais  de  que  se  podia  fa- 
zer dinheiro  se  punha  em  leilão. 

Não  houve  nenhum  ofTicio  que  não  estivesse  com 
obra,  e  lodos  elles  alevantaram  sem  consciência. 
Ao  menos  os  olíiciaes  de  vestidos  ,  pintores  ,  doura- 
dores  ,  arraeiros  ,  sirgueiros  ,  e  olíiciaes  de  tendas 
ficaram  ricos  para  sempre  ,  e  os  mais  não  ficaram 
pobres. 

Deu  o  arcebispo  licença  pelo  princípio  de  maio  , 
que  d'ahi  até  se  partir  elrei  trabalhassem  todos  os 
officiacs  de  lodos  os  officios  dias  e  santos  de  guar- 
da, nas  cousas  que  pertenciam  á  guerra  ou  seu  ap- 
porelho  ;  e  assim  se  fez,  que  todos  trabalhavam  ;  e 
comtudo  isso  não  se  poderam  acabar  de  aviar  lodos 
os  fidalgos  ,  que  ainda  cá  ficaram  alguns  que  apox 
elrei  se  partiram. 

Foi  recommendado  a  Jeronymo  Corte-real  e  a  D. 
João  de  Mafra  e  a  outro  fidalgo  ,  que  não  soube  o 
nome  ,  que  inventassem  o  que  poria  elrei  no  tim- 
bre de  suas  armas  novas,  com  que  nesta  jornada 
havia  de  sahir.  Acordavam  que  pozesse  abaixo  das 
armas  reaes  dois  pirâmides  ao  modo  de  columnas, 
e  de  um  destes  ao  outro  pozessem  umas  letras  que 
dissessem  :  —  Amor  ,  fé  ,  amor. 

Depois  d'elrei  assim  estar  embarcado,  este  sába- 
do que  disse  ,  ao  domingo  seguinte  ,  que  foram  15 
dias  do  raez  de  junho,  sahiu  a  ouvir  missa  na  igre- 
ja de  Santos  velho,  e  dahi  se  tornou  outra  vez  a 
jantar  á  sua  galé  ,  e  nella  andou  Ioda  a  tarde  ven- 
do a  frota  ,  c  dando  pressa  que  se  aviassem  ,  e  da 
mesma  maneira  todos  os  dias  daquella  semana  an- 
dou visitando  as  naus  e  velas  grandes,  dando-Ihes 
pressa  que  se  aviassem  ,  e  na  segunda  feira  pela 
manhaã  mandou  elrei  lançar  bando  com  trombetas 
que  todos  se  embarcassem  ,  porque  elle  bolava  na 
quarta  feira  seguinte  de  foz  em  fora  ,  e  o  mesmo 
fez  na  segunda  feira  á  noite ,  e  á  lerça  feira  pela 
manhaã  e  á  noite. 

Na  quarta  feira  se  mudou  o  tempo  do  mar,  e  es- 
teve assim  até  a  segunda  feira  véspera  de  S.  João 
lé  o  meio-dia. 

(')  Neste  meio  lempo  aconteceu  uma  desgraça 
grande  ao  senhor  D.  António,  prior  do  Crato,  com 
elrei  e  com  Christovam  de  Távora;  c  foi  que  tinha 
o  senhor  D.  António  fallado  a  um  criado  da  infan- 
te D.  Maria  ,  grande  reposteiro  ,  e  mautieiro  mara- 
vilhoso e  mui  destro  nesta  cousa  de  banquetes;  e 
estava  concertado  leva-lo  comsigo  nesta  jornada  ,  e 
a  esta  conta  esteve  ,  comeu  e  pousou  alguns  dias 
em  casa  do  senhor  D.  António.  Teve  Christovam  de 
Távora  noticia  deste  homem:  mandou-o  chamar,  e 
lhe  rogou  ou  lhe  mandou  que  o  acompanhasse  nes- 
ta jornada  ;  que  cumpria  assim.  Como  Christovam 
de  Távora  ó  do  bafo  d'elrci  e  tanto  sou  privado  ,  e 
quer  ,  pode  c  manda  ,  acceitou  este  homem  de  boa 
vontade  ir  com  elle  sem  emliargo  da  palavra  que 
linha  já  dado  ao  senhor  1).  António,  o  qual  na  vés- 
pera da  partida  o  mandou  chamar  a  sua  casa,  c 
lhe  disse  que  se  acabasse   de  aviar.    Respondeu-lhe 


(•)      t>  slircfsso  ii''iira(lu  liesle  ^  arlia-r>e  cm  ttnioã  oiiliu- 
toriadures,  ma>  Tem  aiiui  com  diversas  circunièlauciai. 


o    PANORAMA. 


323 


elle  sem  pejo  ,  que  ia  com  Chrislovam  de  Távora  , 
que  não  puilia  ir  com  S.  lix.'  Falluu  a  |paciciuia  :io 
senhor  D.  Atitonio,  e  por  sua  mão  lhe  deu  com  mu 
páu  umas  poucas  de  pancadas  e  o  tratou  mal.  'I'o- 
mado  Chri^lovam  de  Távora  dbto  fez  queixiime  a 
eirci  que  o  senhor  D.  António  lhe  espancara  um 
homem  seu  ,  porque  não  quizera  ir  com  cllc.  lis- 
tando isto  desta  maneira  acertou  de  ir  o  senhor  D. 
António  á  galé  delrei,  e  antes  que  chegasse  a  el- 
le fallou  a  cinco  ou  seis  fidalgos  que  estavam  af.is- 
tados  da  popa,  entre  os  qiiaes  estava  Christovam  de 
Távora  ,  e  todos  salvaram  e  tiraram  o  chapéu  ao 
senhor  D.  António  senão  elle  que  virou  o  rosto  pa- 
ra outra  parle.  Dissc-Ihe  o  senhor  I).  António:  — 
Sois  mal  ensinado,  Christovam  de  Távora  :  — a  que 
elle  respondeu  :  —  Nunca  o  cu  sulie  ser.  senão  quan- 
do me  siibejoii  rasão  para  isso.  Anojailo  o  senhor 
D.  António  ,  se  foi  fazer  queixume  a  eIrci  ,  pare- 
cendo-lhe  que  emendasse  a  des'jortezia  :  elle  lhe 
respondeu  de  má  graça  c  por  cima  de  hombro  :  — 
Vós  lh'o  tereis  merecido.  —  Sahiu-se  o  senhor  D. 
António  da  galé  aggravado.  Informado  depois  eirei 
do  que  passava,  e  sahendo  que  tratava  de  se  ir  pa- 
ra Castella  ,  o  mandou  chamar  e  apaziguou  o  caso. 

Em  todo  este  tempo  que  elrei  esteve  embarcado, 
o  estiveram  os  fidalgos  principaes  ,  porque  tinham 
por  má  fidalguia  estar  elrei  embarcado  ,  e  elles  em 
suas  casas;  ainda  que  de  noite  iam  a  furto  dormir 
a  ellas,  e  dia  estavam  em  suas  embarcações.  A  se- 
gunda feira,  véspera  de  S.  João,  mandou  elrei  lan- 
çar bando  ,  que  toda  a  pessoa  ,  que  estivesse  apon- 
tada nos  róes  ,  estivesse  embarcada  dia  de  S.  João 
pela  manhaã  ,  sob  pena  de  serem  presos  á  mercê 
de  S.  A.  :  e  ao  dia  de  S.  João  pela  manhaã  man- 
dou elrei  levar  ancora  defronte  da  igreja  de  San- 
tos, onde  Costumava  a  manda-la  bolar  todas  as  noi- 
tes ,  e  dahi  se  botou  defronte  de  toda  a  armada  de 
largo,  e  mandou  disparar  uma  peça  ,  que  é  signal 
de  recolher,  e  se  despediu  de  lodo;  e  deixando  os 
que  ficavam  muito  saudosos  se  foi  caminho  de  Oei- 
ras ,  três  léguas  de  Lisboa,  onde  fez  embarcar  os 
600  romanos,  e  mandou  qtie  o  mesmo  fizessem  os 
tudescos.  Ahi  esteve  até  o  outro  dia  ao  jantar  ,  e 
toda  a  manhaã  andou  o  patrão-mór  era  um  bergan- 
tim da  ribeira  de  Lisboa  ,  a  bordo  de  lodos  os  na- 
vios ,  dizendo  da  parte  d'elrei  que  se  partissem  lo- 
go ,  que  esperava  por  elles  em  Oeiras. 

Xeste  mesmo  dia  á  tarde,  elle  com  a  frota  que 
eslava  junta  em  Oeiras,  se  partiu  com  um  tempo 
tão  bem  assombrado  como  elrei  desejava  para  sua 
jornada  ;  e  com  quanto  todos  determinaram  de  se 
aviar  depressa  ,  ainda  ficaram  na  ribeira  de  Lisboa 
160  velas  entre  caravellas  de  fidalgos  e  outros  na- 
vios d'alto-bordo  que  muitos  fidalgos  tinham  freta- 
dos. Todos  estes  navios  que  ficaram  se  negocearam 
com  a  mór  brevidade  que  pode  ser  para  se  irem 
apoz  elrei ;  c  para  isto  mandou  que  ficasse  em  Cas- 
caes  o  galeão  S.  Martinho,  um  navio  formosissimo 
e  mui  forte,  o  qual  ficou  para  dar  guarda  e  segu- 
ro ás  velas  que  ficaram  era  Lisboa  ,  para  as  acom- 
panhar até  Africa. 

Foi  cousa  mui  formosa  de  ver  a  multidão  de  ve- 
las que  foram  com  elrei;  porque  as  velas  que  es- 
tavam no  rio  de  Lisboa  apontadas  para  ir  com  el- 
rei ,  eram  940  ,  entre  as  quaes  eram  mais  de  oOO 
d'alto-bordo  mui  bem  artilhadas,  e  entre  estas  al- 
gumas guerreiras  e  inexpugnáveis  ,  como  eram  os 
galeões  d'elrei,  c  as  naus  venezianas,  e  urcas,  e  ou- 
tras muitas  portuguezas  ,  todas  com  artilharia  de 
bronze ,   com  muitas  bombas  de  fogo ,   e  outros  ar- 


lificios  c  petrechos  desta  qualidade,  fana  estas  velas 
toilns  juntas  e  embandeiradas  com  seus  estandartes 
lie  seda  nas  gáveas,  que  chegavam  com  as  pontas 
á  agua  empa\ezadas,  com  varandas  pintadas  e  cor- 
tinas de  seda  ,  e  as  caravellas  com  seus  toldos  c 
bandeiras  de  qu;iiira  ;  e  ver  andar  elrei  por  entre 
as  náiis  mandando-lhcs  que  se  aviassem  depressa, 
e  disparar  toda  a  artilharia  ,  c  cobrir-se  tudo  de 
fumo. 

Quando  elrei  partiu  de  Oeiras  ,  que  desamarrou 
e  levou  ancora  ,  desamarraram  com  elle  pmico  me- 
nos de  800  velas,  com  as  velas  todas  mcllid.-is.  que 
faziam  uma  visla  formosíssima  ;  e  quando  chegar  a 
Africa  deve  de  ir  com  mais  de  loOO  velas,  porque 
Um  mandado  que  se  ajuntem  rio  Algarve  as  da  ci- 
dade do  1'urlo,  de  Vianna,  d'Aveiro,  villa  do  Con- 
de ,  Uuarcos  .  Seluval  ,  cm  o  qnal  estão  esperando 
mais  de  200  velas,  e  outras  mnilas  que  eslão  eni 
Cezimbra  ,  Sagres,  Lagos,  Tavira,  e  em  todos  os 
portos  do  Algarve,  onde  se  havia  de  embarcar  a 
gente  do  terço  de  Francisco  de  Távora. 

A  ordem  do  soldo  é  que  dá  elrei  a  cada  soldado 
quatro  cruzados  cada  mez  ,  e  os  mantimentos  hão- 
se  de  vender  por  elle,  e  para  isto  mandou  ir  mui- 
tos taberneiros  de  todas  as  parles  para  venderem  no 
campo  os  mesmos  mantimentos  d'elrei  pela  taixa  , 
e  desta  maneira  não  se  pôde  alevantar  o  preço  del- 
les. 


(A.  Ilcrculano.J 


A   MULBEB   BTSROPICA. 


Gerardo  Dow,  notável  pintor  da  eschola  flamenga, 
foi  filho  de  um  vidraceiro,  e  natural  de  Leyden 
onde  falleceu  em  1C80  com  67  annos  de  idade.  Foi 
discípulo  do  famigerado  Rembrandl  ,  ao  qual  imi- 
tou CO  colorido  e  na  força  do  claro-escuro  ,  porem 
não  assim  em  o  geral  do  eslylo,  porque  o  caracter 
e  particular  organisação  o  inclinava  a  concluir  seus 
painéis  com  summa  paciência,  com  minucioso  cui- 
dado nas  menores  particularidades  ,  com  desejo  ex- 
tremo de  acabar  tudo,  qualidades  mui  remotas  da 
maneira  do  mestre  :  consumia  por  isso  muito  tem- 
po no  trabalho  ,  c  pintava  em  ponto  pequeno  ;  de 
raro  os  seus  quadros  chegavam  a  ter  altura  de  dois 
palmos.  A  fim  de  conservar  a  esmerada  limpeza 
que  pertendia  em  suas  obras,  costumava  pò-las  a 
bom  recado  assim  que  largava  o  pincel ;  e  quando 
voltava  á  camará  do  trabalho,  antes  de  principiar, 
deixava-se  estar  immovel  por  bom  espaço  de  tem- 
po para  dar  legar  a  que  assentasse  a  poeira  subtil 
que  levantara  com  os  pés;  no  entanto  não  tirava  a 
tela  ,  os  pincéis  e  a  palheta  ,  da  caixa  em  que  os 
recolhera  ;  o  que  fazia  depois  com  apurada  caute- 
la. Era  homem  desta  paxorra  ;  segundo  confissão 
própria  ,  levou  Ires  dias  a  pintar  as  costas  de  páu 
de  uma  escova  ,  accessorio  roinimo  de  um  painel 
que  fizera.  Por  suas  mãos  preparava  os  pincéis  ,  e 
moía  as  tintas  ,  porque  ninguém  lh'o  fazia  a  seu 
gosto.  Para  conservar  a  exactidão  do  debuxo,  ob- 
servava-o  atravez  da  gradesinha  de  reducção  de 
que  usam  muitos  gravadores:  soccorria-se  lambem 
de  uma  lente  que  diminuía  o  tamanho  natural  do 
modelo. 

Gerardo  Dovn'  fazia  nos  seus  princípios  artísticos 
miniaturas  e  retratos  de  pequenas  dimensões,  mns 
pelo  demasiado  vagar  impacientava  os  donos  ,  que 
os  encommendavam  :   até  que  por  fim  também  elle 


32  í. 


O   PANORAMA. 


se  cansou  de  atlendcr  a  duas  cousas,  á  perfeição 
na  parecença,  e  á  prolixidade  na  execução  da  obra, 
e  reconhecendo  que  eram  incompatíveis,  dedicou- 
se  a  pintar  scenas  da  vida  vulgar,  tão  minuciosa- 
menlo  ,  que  ha  nas  suas  composições  objectos  miú- 
dos ,  que  só  com  o  auxilio  de  vidro  de  angmcntar 
se  podem  devidamente  desfructar  c  ter  em  preço. 
Regularmente  não  escolhia  os  assumptos  que  f.illam 
á  imaginação  e  excitam  a  sensibilidade;  ha  porem 
uma  grande  excepção  desta  sua  maneira  no  apre- 
ciável quadro  da  mulher  liyJrupica.  Ahi  se  vè  a  en- 
ferma sentada  n'uma  cadeira  de  braços;  a  seus  pés 
a  íilha  submergida  em  pranto;  logo  próximo  o  me- 
dico observando  allcntamente  o  liquido  contendo 
no  frasco  que  tem  na  mão.  O  quarto  está  adornado 
demoveis,    alcatifas,   e  outros  accessorios  ,   pinta- 


dos com  o  escrúpulo  que  já  indicámos  no  auctor ; 
e  todavia  essas  circumstancias  não  distraheni  a  at- 
lenção  do  espectador,  captivada  pela  verdade  e  ex- 
pressão das  figuras.  Tudo  neste  painel  é  de  certo 
caracter  sublime  e  nobre  ;  comparativamente  fjl- 
lando  ,  dá  visos  do  toque  e  estylo  de  Uaphael  e  de 
Poussin  :  a  composição  6  bella  e  palhetica  ,  como 
se  fora  obra  dos  insignes  mestres  ;  e  as  miudezas 
que  revestem  a  sccna  são  tão  bem  acabadas  ,  como 
de  um  bom  artista  de  segunda  ordem  ,  que  outra 
cousa  não  soubesse  fazer,  sendo  todavia  primoroso 
neste  seu  ramo  privativo. 

As  pinturas  de  Gerardo  são  estimadas  e  achara- 
se  por  todas  as  grandes  coUecções  e  galenas  daí 
principaes  cortes  da  Europa. 


A  CSUXHSZl  HirSHOFICA  :    OVAS&O  DS  SO^vV. 


31iiííiçiftílílíí>í?íJ^ 


Das   Mis   PRÁTICAS    na  CULTCBA  ,    E  DOS  CORRECnVOS 
(}<  i:    AS  PODKM    lí   DEVE.M    KKCTIFICAU    {•). 

r)i:-i.'-KM(i.s  nas  antecedentes  reílexões.  na  ultima  parte 


(•;      V.  I'.iiiVi.  iiag.  líia  e  33!7  do  toI.    i."  desU  berie. 


das  considerações  geraes,  que  deqnalre  modos  prin- 
cifialmente  ppccavam  os  cultivadores  cm  seus  ama- 
idids  c  trabalhos  agrícolas,  a  saber:  pela  perpetui- 
dade das  mesmas  sementeiras  c  plantações;  —  pcU 
má  escolha  dos  terrenos  ;  —  pela  isolação  e  desam- 
paro das  plantas;  —  c  pelo  raáu  mclhodo  da  irriga- 
ção.  Apontamos  igualmente  os  ccrrsctivos  que  ]■>«- 


o   PAINORA3IA. 


dem  melhorar  e  reclifícar  o  mal  em  todas  estas 
parles. 

Primeiro  correclivo  :  o  afoUiameuto  ou  rolanio  de 
cultura.  Desde  muito  tenipu  que  os  homens  prali- 
cos  e  experientes  viram  que  a  terra  se  cansa  á  for- 
ça de  amanhos  e  de  producção:  que  se  uos  annos 
próximos  á  sua  roleação  produzia  bem  ,  e  corres- 
pondia aos  suores  do  la\rador,  pouco  e  pouco  de- 
perccia  em  força  ferlilisanlc  ,  e  por  fim  se  definha- 
va ,  dando  apenas  poucos,  ou  maus  fructos.  Via-se 
o  phenomcno  ,  porem  não  souberam  a  que  o  allri- 
l)uir  :  o  mais  f.icil  era  assenlar  que  a  Urra,  assim 
como  os  seres  animados,  precisava  descanso:  dahi 
o  systema  dos  o/yiicítTS ,  de  deixar  cm  pousio  uma 
terça  ou  quarta  parte  do  campo  aramei  ,  em  quanto 
se  cultivavam  e  trabalhavam  as  outras.  Diz-se  que 
ura  celebre  agricultor  italiano,  chamado  Barbo,  foi 
o  que  primeiro  fez  e  aconselhou  esta  descubcrla  no 
Cm  do  século  decirao-quarto.  O  seu  plano  consistia 
em  cultivar  a  terça  parte  do  terreno  tio  outono  em 
cereaes  d'inverno,  outra  terça  parte  em  grãos  na 
primavera  ,  c  deixar  em  pousio  a  terça  parte  res- 
tante. E  o  mais  é  que  este  syslcma  pegou  e  cur- 
sou por  alguns  séculos,  e  uão  só  na  Itália,  mas  na 
França  dominou  ,   e  passou  até  nós. 

Os  economistas  porem  entraram  de  desconfiar  de 
nm  systcma  apalhico  ,  perguiçoso  ,  que  pri\a\a  os 
homens  dos  productos  da  terça  parte  de  suas  ter- 
ras; e  rcQectirara  que  com  este  methodo  nem  os 
productos,  nem  as  rendas,  nem  a  população  po- 
diam jamais  crescer  c  augmentar.  E  com  cfTeilo, 
dada  uma  sementeira  regular  e  perpetua  dos  mes- 
mos grãos  n'uma  igual  porção  de  terreno,  era  evi- 
dente que  o  seu  producto  e  rendimento  médio  se- 
ria sempre  o  mesmo  :  ora  é  sobre  este  producto 
médio  que  a  população  c  o  rendimento  se  estabele- 
cem. A  variação  das  estações  somente  ahi  pôde  oc- 
casionar  algumas  diíTerenças ,  porem  estas  são  an- 
tes era  mal  do  que  cm  bem.  O  systeraa  portanto  foi 
condemnado  ,  abandonado;  e  nasceu  a  agricultura 
nova. 

O  cansaço  da  terra  não  procedia  da  continuidade 
dos  amanhos  ,  sim  do  esgotamento  dos  suecos  nu- 
tritivos :  era  preciso  portanto  descobrir  o  modo  de 
economisa-los  e  renova-los,  o  que  se  consegue  [alem 
dos  estrumes,  porque  estes  entram  sempre  em  to- 
da a  lavoura]  pela  afolheação  da  terra  ,  ou  rotação 
das  sementes.  Chama-se-!he  afolhcarãn  porque  o 
campo,  o  terreno  é  dividido  e  distribuído  em  cer- 
tas porções  a  que  dizemos  folhas  [como  as  folhas  de 
partilha  d'araa  herança  comraum] ,  assignando-se  a 
cada  uma  delias  a  sua  cultura  annual ;  e  rotaçuo 
porque  uma  serie  de  sementeiras  e  colheitas  alter- 
nada fazem  ahi  um  giro  por  Iodas  ellas  em  um  cer- 
to numero  de  annos  até  recomeçar  pela  mesma  or- 
dem. Isto  parecerá  ao  principio  complicado;  nós  o 
demonstraremos  mais  tarde  ;  praticamente  é  cousa 
muito  fácil. 

Conveniência  e  necessidade  da  rotação. 

A  experiência  tem  mostrado  que  cm  geral  se  não 
pôde  com  utilidade  cultivar  o  mesmo  género  cereal 
por  muitos  annos  contínuos  no  mesmo  solo;  a  ter- 
ra se  empobrece  e  se  torna  infecunda.  Mas  a  expe- 
riência e  o  discurso  mostram  igualmente  que  não 
succede  assim  com  todas  as  plantas ;  sabe-se  que 
nem  todos  os  vegetaes  as  empobrecera,  e  que  mes- 
mo alguns  ha  que  as  melhoram.  Deste  numero  são 
o  trevo,   a  luserna  ,   e   em  geral   todas  as  demais 


plantas  vivazes  dos  prados  que  se  cortam  antes  da 
sna  maturidade,  as  qiiaps  deixam  a  terra  n'um  me- 
lhor estado  de  fertilidade  que  antes. 

Os  grãos  cereaes  são  mui  vorazes  ,  e  esgotam  os 
suecos  nutrientes  quando  chegam  á  sua  inteira  ma- 
turidade.—  Das  plantas  tuberculosas  é  a  batata  tal- 
\cz  a  que  mais  come  dos  suecos  ferlilisantes  da 
terra.  —  Os  legumes  esgotam-os  menos  que  os  ce- 
reaes, e  quando  se  cortam  era  verde  quasi  nada 
tiram  do  solo. 

A  regra  é  que  as  mesmas  plantas  não  devem  vol- 
tar ao  mesmo  terreno  senão  depois  d 'um  certo  nu- 
mero de  annos.  Quasi  impossível  é  estabelecer  prin- 
cípios fixos  e  rigorosos,  e  indicar  d' antemão  os 
grãos  c  plantas  que  convirá  ado(itar  na  rotação  da 
cultura.  A  experiência  e  bom  discurso  do  cultiva- 
dor o  devem  guiar  na  escolha  das  espécies  segundo 
o  clima,  a  natureza  do  terreno,  e  conforme  as  suas 
necessidades.  As  noções  e  preceitos  geraes  que  po- 
dem dar-se  são  as  seguintes. 

1.°  Convém  intercalar  as  sementeiras  esgotantes, 
e  as  plantas  que  melhorara  ;  istéé.  que  áqucllas  que 
costumam  empobrecer  o  terreno  quaes  os  cereaes, 
se  sigam  as  que  o  melhoram,  como  são  as  dos  pra- 
dos arlificiaes  e  as  hortas. 

2.°  Que  a  cultura  das  sementeiras  feitas  ao  ara- 
do se  alternem  quanto  possi\el  fúr  com  as  das  plan- 
tas cultivadas  á  encbada  ,  e  mondáveis ,  a  fim  de 
que  o  terreno  seja  limpo  e  expurgado  das  más  her- 
vas. 

3.°  Que  nesta  alternativa  se  estrume  com  prefe- 
rencia a  terra  v(d\ida  ao  sacho  ou  á  cnchada,  por- 
que ahi  fica  melhor  misturado  e  cinglomcrado  com 
a  terra  ,  e  muito  bem  produzirá  cereaes  depois  de 
haver  produzido  plantas  ,  hortaliças  e  legumes. 

4.°  Jamais  convirá  semear  cm  terreno  pobre  e 
csterilisado  sem  primeiro  o  fecundar  com  estrumes  ; 
—  não  repelir,  quanto  for  possível,  dois  annos  a 
fio  a  cultura  de  cereaes  do  mesmo  género  ;  —  nun- 
ca os  da  mesma  espécie. 

S.°  .A.S  plantas  próprias  para  forragens  ,  aquellas 
que  se  cortam  em  \erde,  devem  seguir-se  no  ter- 
reno que  acabou  de  produzir  cereaes  ,  da  mesma 
sorte  que  estes  se  seguiram  nos  terrenos  sachados  , 
estrumados,  e  culti\ados  cm  hortas  de  legumes, 
hortaliças  ,  í^c. 

6."  Devera  esrolhcr-se  e  appropriar-se  as  semen- 
teiras e  plantações  adaptadas  á  natureza  do  solo  ,  e 
collocadas  de  modo  que  possam  receber  os  ama- 
nhos preparatórios  que  cada  uma  exige. 

7."  É  indispensável  combinar  e  dispor  a  rotação 
da  cultura  de  maneira  que  se  tenha  sempre  uma 
quantidade  de  forragens  sudicienle  para  entreter  e 
nutrir  os  gados  ;  e  que  estes  sejam  na  proporção 
de  produzirem  a  quantidade  necessária  d'estrumes. 

8.°  O  melhor  circulo  ou  rotação  de  cultura  será 
aquelle  que  sem  esgotar  a  fertilidade  da  terra  ,  dê 
o  maior  proveito  possível ,  com  o  menor  gaslo  da 
seu  amanho. 

Supposlos  os  princípios  que  ficam  enunciados, 
que  podera  variar  comludo  segundo  as  circiimstan- 
cias  que  apontamos  do  clima  ,  da  natureza  da  ter- 
ra ,  e  das  necessidades  locaes  ,  ou  pessoaes  do  cul- 
tivador ,  daremos  aqui  algum  exemplo  deste  me- 
thodo hoje  abraçado  nos  paizes  modelos  de  agri- 
cultura ,  que  todavia  não  poderá  jamais  servir  de 
norma  fixa  ,  porque  a  sua  opplica/rio  ficará  sempre 
dependente  do  discernimento  do  cultivador  e  da  sua 
experiência. 

A  rotação  da  cultura  é  de  mais  ou  menos  tempo 


32G 


O   PANORAMA. 


I 


segando  os  usos  e  experimentos  dos  paizes  e  locali- 
dades ;  e  as  ha  de  4  ,  6  ,  8  ,  e  10  annos.  Aqiiella 
que  tem  merecido  mais  geral  approvacão  é  a  do 
condado  de  ISorfoIk  ;  afolheação  e  rotação  quadrie- 
nal. Consiste  ella  era  começar  por  uma  cullura  de 
horlalieas  ,  legumes,  &c.  ,  em  terra  Lcm  volvida  , 
sachada  e  estrumada  ;  —  faze-la  seguir  d'uma  de 
cereaes  cm  março,  e  de  prados  artificiaes,  conser- 
vados estes  até  ao  terceiro  anno  ,  —  e  terminar  por 
sementeira  (routono. 

Já  se  vè  que  isto  se  refere  a  outra  regra  funda- 
mental de  cultivar,  e  é  que  o  terreno  deve  ficar 
descubcrto ,  ou  nú  ,  e  desprovido  de  ()!anlas  o  me- 
nos tempo  possível  :  são  estas  que  impedem  a  eva- 
poração dos  principies  uleis. 

Exemplo  d' afolheação  e  rotação  quadrienal. 

Cultura  feita  an  sacho.  —  Grãos  de  bico  ;  lenti- 
lhas;  favas;  ervilhas;  rábanos;  cenouras;  batatas; 
cebolas;  feijões;  nabos;  alhos;  couves;  colza,  &c. 

Cereaes  demarco.  —  Milho  de  todas  as  qualida- 
des ;  centeio  temporão  ou  de  março;  cevada  dita  ; 
arroz  ;  avea  ,  &c. 

Forragens.  —  Ferraã  ,  ou  sanfeno  d'Hespanha  ; 
trevo;  meliloto;  serradela;  lentilhão;  trevo  encar- 
nado; esparzèta  ;  luzerna;    chicorea  selvagem,  &c. 

Cereaes  d' outono. — Centeio  ordinário  ;  trigos,  &c. 

A  chave  deste  systema  de  rotação  [assolement] 
consiste  em  alternar  as  sementes  e  a  cullura  de 
modo  que  não  voltem  ao  mesmo  logar  senão  de 
quatro  em  quatro  annos.  A  sua  utilidade  consiste 
em  que  a  terra  aliás  melhor  preparada  ,  volvida  e 
purgada  das  más  hervas  pelo  alternado  das  cultu- 
ras sachadas  e  lavradas  não  é  empobrecida  e  esgo- 
tada de  seus  suecos,  porque  o  que  lhe  tiram  os  ce- 
reaes é  indemnisado  pelas  oulras  plantas  e  hervas 
que  conservam  e  algumas  melhoram  o  terreno.  È 
evidente  que  a  primeira  cousa  que  tem  a  consultar 
o  cultivador  antes    de  adoptar  este  systema  é: 

1.°  A  natureza  do  terreno  que  tem  a  cultivar,  a 
fim  d'adoptar  e  proporcionar  as  sementes  e  plan- 
tas ,  visto  que  nem  todas  as  terras  são  aradas  para 
tudo. 

2."  A  influencia  do  clima  ,  e  regularidade  costu- 
mada das  estações  em  a  localidade  ;  porque  seria 
absurdo  que  o  cultivador  se  abalançasse  a  lançar 
á  terra  sementes  e  plantas  contrarias  á  temperatura 
•lo  local. 

3.°  A  natureza  e  qualidade  dos  vegetacs  que  ahi 
crescem  e  prosperam  naturalmente,  porque  isso  lhe 
indicará  aquellcs  a  que  deve  dar  a  preferencia. 

í.°  Os  recursos  e  necessidades  locaes  ,  os  hábi- 
tos e  costumes  da  povoação  ;  a  facilidade  da  venda 
c  extracção  ;  as  suas  próprias  precisões  :  porquan- 
to ,  cm  logar  de  proveito  seria  ruina  dcdicar-se  a 
xiva  género  de  cultura  que,  apesar  de  sua  abundân- 
cia ou  melhoria  ,  não  tivesse  valor  nem  consumo. 

5."  As  vantagens  ou  inconvenientes  que  resultam 
'l'uma  povoação  considerável,  ou  mesquinha,  da 
penúria  ou  riqueza  dos  habitantes;  da  proximidade 
ou  distancia  das  fabricas,  manufacturas,  &c.  em 
que  o  serviço  e  o  Iralialho  seria  mais  productivo. 

6."  A  ordem  dos  trabalhos  necessários  a  cada 
cultura  ,  a  provisão  dos  instrumentos  corresponden- 
tes a  cada  serviço  agrário,  o  emprego  judicioso  do 
tempo  ,  os  gados  ,  os  estrumes. 

No  outro  artigo  ,  cm  que  trataremos  do  segun- 
do modo  rotineiro,  isto  é,  do  empirismo  da  cultu- 
ra pelo  que  respeita  á  escolha  das  terras,  e  do  cor- 


rectivo a  esle  grave  inconveniente,  mostraremos  pe- 
la doscripçâo  succiula  de  cada  uma  das  espécies 
de  terra  o  absurdo  palpável  de  repetir  no  mesmo 
local  uma  cullura  fraca  ,  mesquinha,  e  improdu- 
ctiva. 

E  com  effeilo  que  causa  lastima  ver  principal- 
mente, nas  duas  províncias  do  Minho  e  Beira,  que 
quasi  eslão  fundadas  sobre  um  terreno  homogéneo, 
e  similhante  na  formação  e  no  clima,  em  que  as 
precisões  e  os  consumos,  os  habilos  e  costumes  dos 
habitantes  não  são  muito  dcsimilhantes  ;  causa  pe- 
na ,  dizemos,  ver  como  ahi  ainda  actualmente  se 
obstinam  a  lançar  á  terra  o  milho  em  terreno  ligei- 
ro ,  secco  e  pulverulento  ,  era  local  onde  não  po- 
dem chegar  as  regas  ;  e  ver  consequenlcmente  de- 
perecer,  definhar-se  e  por  fim  torcer-se  a  pobre 
planta  sem  chegar  a  alguma  maturidade  proveito- 
sa. E  isto  renovar-se  e  repetir-se  todos  os  annos  , 
accusando-se  inútil  e  quasi  sacrilegamente  o  Au- 
clor  da  natureza  porque  lhe  não  mandou  chuvas  no 
estio  I  Não  advertindo  os  irreflectidos  cultivadores 
que  o  milho  c  um  dos  cereaes  esgotantes,  que  re- 
querem terra  mui  pingue  e  fértil  ,  e  que  só  produ- 
zem em  terras  húmidas  ou  regadas.  Mas  tal  é  o  ha- 
bito da  rotina  que  de  pais  a  filhos  tem  passado  o 
costume  de  semear  milho  precisamente  no  mesmo 
local,  sem  variar  jamais  de  cultura.  Variada  que 
fosse  pelo  methodo  proposto  da  rotação  ,  não  se  ve- 
ria o  repugnante  espectáculo  que  dissemos,  e  os 
pobres  pequenos  lavradores  seriam  menos  contra- 
riados em  suas  colheitas.  J.  da  C.  N.  C. 


JJojcsia;. 


N.  B.  —  Um  amigo  do  Snr.  Francisco  Joaquim 
Bingre  nos  offereceu  uma  copia  da  seguinte  ode  , 
manifestando  desejos  de  que  fosse  impressa  no  Pa- 
norama.—  É  notável  esta  composição  lyrica,  por  per- 
tencer a  um  poeta  da  eschola,  meio-arcadica,  meio- 
elmanista  ,  que  entre  nós  íloreceu  no  reinado  da 
Senhora  D.  Maria  1.°  e  regência  de  D.  João  6.°:  e 
ainda  o  é  mais  por  mostrar  que  a  veia  da  metrifi- 
cação não  se  exhauriu  na  provecta  idade  do  cantor 
do  Vouga. 

Fazendo  oitenta  annos  d'idade  em  17  de  jpiho  18Í3, 

£íltímo  canto  Uo  í0m. 

Ode. 

1, 

Pátrio  Vouga  ancião ,  o  cantor  vossa 
Hoje  fixou  o  circulo  da  vida  ; 

Marcou  o  seu  destroço  i     ■         . 

Octogenária  lida. 
No  bronze  o  tempo  deu  co'a  mão  pesad»  . 

A  ultima  pancada. 
2. 
Seu  relógio  fugaz  o  derradeiro 
Nalalicio  apontou  da  longa  era; 

Emperrou  o  ponteiro 

No  oitenta  que  numera. 
Lachesis  pôz  na  roca  com  fadiga 

A  derradeira  estriga. 
3. 
O  fuzo  torto  tem ,  já  mal  o  trilha 


o  PANORAMA. 


327 


[Cansada  de  fiar]  nos  dedos  gastos. 

Clotho,  que  ensarilha, 

Traz  a  meada  a  rastos. 
Atrepos  fera  co'a  tesoura  aberta 

Quasi  os  anneis  lhe  aperta. 
4. 
Nymphas  patrícias  ,  não  touqueis  cora  rosas 
O  seu  tristonho  natalício  dia  .  .  . 

Com  as  Dores  saudosas 

Cingi-lhe  a  fronte  fria. 
Só  lhe  competem  uas  extremas  horas 

Saudades  (»'  ,  passi-floras  li]. 
5. 
Não  mais  ,  nymphas  ,  não  mais  ,  finde  o  festejo 
Das  sonoras  canções  ao  natalício 

Do  Vate  ,  que  no  Tejo  , 

Teve  ás  vezes  propício 
O  refulgente  Apollo  com  espanto 

TVo  trovão  de  seu  canto. 
6. 
Hoje  em  vez  de  canções  ,  só  elegias 
Deveis  cantar  a  seus  longevos  annos  .  .  . 

Com  endeixas  sombrias 

Xenias  de  desenganos. 
Louvai ,  ó  nymphas  ,  um  natal  tristonho 

De  tão  comprido  sonho  I  . . . 
7. 
Novos  vates  do  Vouga  ,  o  rouco  canto 
Do  vosso  velho  companheiro  expira  .  .  . 

S'elle  tem  jus  ao  pranto, 

Honraí-lhe  a  antiga  lyra  , 
Onde  outra  hora  cantou  versos  sem  pejo , 

Que  aprendera  no  Tejo. 
8. 
Era  tempo  mais  feliz,  nas  praias  lusas, 
Salitrosas  ,  da  ínclita  Ulisea  , 

Teve  a  estima  das  Musas; 

Da  Cythara  Febca 
Alguns  sons  aprendeu  ;  teve  louvores 

D'afamados  cantores. 
9. 
Em  seu  sábio  Atheneu  ,  alli  com  elles 
Em  tarefas  poéticas  cantava. 

Francelio  (3)  era  um  daquelles 

Que  as  azas  despregava  , 
Seguindo  o  rasto  de  seus  grandes  sócios , 

Alvos  cysnes  beócios. 
10. 
Dalli  subia  ao  cume  do  alto  Pindo 
Pelo  trilho  do-grão  Cantor  Elmano  {í). 

Quantas  vezes  suliindo 

Belmiro  (5)  Tronstagano 
Do  alto  lhe  bradou  :  Sobe  sem  susto 

Póz  mim  .  .  .  affronta  o  susto. 
II. 
Outras  vezes  nas  azas  o  tomava 
O  melíco  cantor,  cysne  sadino . 

E  tanto  o  remontava 

O  épico  Thomino  (6)  , 
Que  nos  raios  de  Phebo  ,  onde  voara, 

A  fronte  lhe  escaldava.  , 

12. 
A  ver  e«lr.inhns  nres  o  levavam 

(1  )       A   lux.i   llòr  .la   fiimliiOe. 
(2)      A  lrÍ5k'  flur  ilii  niarlyrio. 

^3)     Francelio  Vmigueuse  era  o  nome  pastoril  de  Fran- 
cisco Joai|iiím  Biniire. 

(4)  Eliiumo  S.ulino  era  o  nome  pastoril  de  M.  M.  B. 
de  Bõcaiie. 

(5)  Era  Bt-lcliior  furvo  íemmeJo  Torres  de  Sequeira. 

(6)  Ttiooiaz  Autuniu  dus  Saiitus  e  Silva. 


O  assombroso  Elmiro  (7) ,  o  sábio  Olcno  (8) 

E  os  rumos  lhe  ensinavam 

Que  o  grão  cantor  Isnicno  (!)) , 
Iinitailor  de  1'indaro  e  d'noracio  , 

Descobrira  no  Lacio. 
13. 
Assim  tomando  força  audaz  subia 
Entre  os  cysnes  do   Tejo  ao  piério  monte  ; 

A  lyrica  Thalía 

Muitas  vezes  a  fronte 
Alli  lhe  engrinaldou  de  verde  louro 

Ao  som  da  Ivra  d'ouro. 
II. 
Por  taças  de  cristal  o  estilo  puro 
Bebeu  dos  grandes  vates  quinhentistas ; 

Nunca  o  caminho  escuro 

Seguiu  dos  seiscentistas. 
Foi  por  isso  que  ao  Vouga  o  fez  glorioso 

Bocage  luminoso  (10. 
15. 
Que  lições  lhe  não  deu  do  canto  agrário 
O  seu  dilecto  amigo  ,  o  doce  Alcino  !  .  .  .  (11) 

Com  que  fogachos,  Clario  (12j 

D'alto  fogo  divino 
O  estro  lhe  accendeu  ,  e  o  grão  Jacíndo  (13) 

Nas  tarefas  do  Pindo  !  . .  . 
16. 
Mas  ah  !  De  tantos  cysnes  portentosos 
Só  o  rouco  do  Vouga  agora  resta  !  .  . . 

De  lodos  seus  famosos 

Sócios  viu  a  funesta 
Passagem  do  Acheronte  em  fusca  barca  , 

Onde  elle  agora  embarca. 
17. 
Ficou  só  o  cantor  do  Vouga  annoso  , 
Para  as  portas  fechar  da  Academia  !  .  .  .  (14) 

Elle  chorou  saudoso 

A  nobre  companhia  , 
A  qual  a  fama  ind'hoje  erige  altares 

Nos  lusitanos  lares. 
18. 
Quem  hade  hoje  carpir  amor  tal  queda 
De  Francelio  Vouguense  octogenário?  .  .  . 

F^indou  a  lavareda 

Do  facho  incendiário, 
Que  no  éslro  accendia  altas  fogueiras 

,Vos  Camões ,  aos  Ferreiras  '.  .  .  . 
19. 
Labyrínthos  românticos  ,  charadas  , 
Phrases  híeroglificas  do  Nilo 

São  as  francezadas 

Canções  do  novo  eslylo.  .  .  . 
Já  se  não  cantam  nenias  lacrimosas  , 

Elegias  saudosas  '.  .  .  . 


(7)  P.'  José  Agostinho  de  Macedo. 

(8)  Nuno  Alvares  Pereira  Pato  Moniz. 

(9)  Ji.rio  Vicente  Pimentel  Maldonado. 

(10)  ViJ.  nota  de  iiocage  do  scii  Soneto  nos  seas  últi- 
mos momentos,  em  que  numera  alguns  sócios :  e  vid.  i^u  seu 
Prologo  do  Poema — As  plantas»  os  dois  seguintes  versos. 

Ferve  no  audaz  Francelio,  e  rompe  os  astros, 
Sacro  delirio  ,  destemida  insânia. 

(11)  Joaquim  Severino  Ferraz  de  Campos. 

(12)  Seliasliào  Xavier  Bolellio. 

(I."))      Joaquim  Ignacio  da  Costa  Quiiilila. 

(14)  A  Academia  de  Bellas-Lellras ,  erecta  no  caítello 
de  S.  Jorge  de  Lisboa  pi  r  \arios  curiosos,  debaixo  doa 
auspícios  de  S-  M-  a  Sr.^  D.  Maria  1.^,  e  dirigida  pelo 
inlendenle  geral  da  policia,  Diogo  Ignacio  de  Pina  Mani- 
que; teve  bastante  nume  em  Lisboa,  e  fez  no  paço  d'Aju. 
da  uma  sessão  ao  nascimento  da  Sr.*  D.  Maria  Thereza  , 
primeira  &lba  du  Sr.  D.  Juão  6.° 


328 


O  PANORAIMA. 


20. 
Té  vós  ,  nymphas  genlís  ,  desaprendido 
Tendes  aqiiellas  ternas  cantilenas, 

Que  fizeram  florido 

O  jardim  das  Camenas  ; 
Do  doce  Anacrconlc  os  sons  divinos, 

De  Tiíeocrito  os  hymnos  !  . .  . 
21. 
Em  voz  do  ledo  canto  d'artificio, 
Com  lagrimas  d'amor,  do  triste  >atc 

Honrai  o  nalalicio 

Decrépito  ,   qnc  bate 
.\s  porias  da  (remenda  eternidade 

Cora  susto  e  com  saudade  I  .  .  . 


ExTRAOISDIMniO   PRODCCTO  DA   CILTURA 
DOS  l'ECEGlEir,OS. 

A  DUAS  milhas  de  Paris  para  o  lado  do  nascente  , 
não  longe  da  floresta  de  Vincennes  está  o  povo  de 
Monlrciiil  cuja  povoação  se  occupa  quasi  exclusiva- 
mente ua  cultura  dos  pecegueiros  ;  e  é  ella  tão  pro- 
ductiva  e  rendosa  que  os  dispensa  de  outro  qual- 
quer gcnero  d'iriduslria. 

Antes  da  rcvuliK-ão  de  17S9  era  apenas  conheci- 
da esta  cultura  ;  porque  ao  cimo  do  logar  estava  uma 
bella  casa  de  campo,  equinla  de  madama  Eliznljelli, 
a  virtuoza  princcza  ,  irraaã  de  Luiz  16.°,  a  qual 
com  sua  munificência  e  caridade  se  incumbia  de 
nutrir  e  occupar  nquelles  habitantes,  que  a  respei- 
tavam ,  e  amavam  como  a  niãi.  O  delírio  fanático 
dos  niveladores  lançou  por  terra  o  palácio,  arrasou 
a  quinta  ,  que  foi  depois  retalhada  ,  e  dividida  em 
pequenos  lotes,  e  csles  convertidos  cm  alvergues 
de  pèccgos :  dissemos  alvergues  com  literal  pro- 
priedade como  vamos  expor. 

Algum  dos  proprietários  do  logar  observou  que 
os  pecegueiros  alli  voltados  ao  nascente,  e  abriga- 
dos do  norte  produziam  bem,  equc  os  fructos  ven- 
didos no  mercado  cm  Paris  obtinham  preço  ele- 
radissirao.  .Mas  uma  exposição  ao  nascente  e  nieio- 
dia  era  cousa  accidental  ,  que  assim  mesmo  não 
conseguia  sempre  perfeita  maturação  dos  fructos  , 
porque  as  geadas  e  as  neves  tardias  os  definhavam, 
e  as  demasiado  temporaãs  pesavam  nas  arvores 
privadas  de  algum  apoio,  e  ale  as  despedaçavam. 
Mas  o  amor  do  lucro  aguilhoava  ,  e  as  tentativas  e 
experiências  repetidas  e  aperfeiçoadas  fizeram  em 
fim  o  milagre  ;  quer  dizer  que  se  conseguiu  abas- 
tecer toda  Paris  de  pccegos  lormosos  e  perfeitos,  sa- 
bidos somente  de  JMontreuil.  Não  penseis  porem 
que  lá  se  come  um  pèccgo  ordinário  por  pouco  di- 
nheiro ;  por  menos  de  8  ou  10  soldos  [três  ou  qua- 
tro vinténs  de  nossa  moeda]  é  raro  gostar  este  po- 
mo precioso.  ]\Ias  que  trabalho  o  que  despeza  para 
os  obter?  Eis-aqui  o  methodo  da  cultura:  — 

Depois  de  criados  os  pecegueiros  em  sitios  abri- 
gados á  força  d'estrumes  ,  e  de  cubcrtos  para  os 
livrar  da  neve,  os  enxertam,  e  dispõem  encostados 
perfeitamente  a  um  muro  rebocado  ,  de  4  varas  de 
altura  ordinariamente  ,  guardando-o  sempre  de  fa- 
zer face  ao  norte  e  noroeste.  Os  pecegueiros  vão-se 
afeiçoando  c  prendendo  com  anneis  de  tecido  forte 
aos  pregos  que  estão  semeados  por  toda  a  capaci- 
dade do  muro  ,  formando  a  arvore  no  seu  cresci- 
mento uma  renque  encostada  ao  muro.  Isto  porem 
ainda  não  basta;  c  preciso  alem  deste  resguardo  do 


muro  que  lhes  serve  de  capote  ,  pôr-lhe  chapéu  na 
cabeça  para  os  abrigar  da  neve  vertical,  e  para  es- 
se efTcito  collocam  na  extremidade  superior  do  mu- 
ro nm  bordo  ou  cubcrto  de  palmo  e  meio  de  espes- 
sura ,  feito  de  ladrilho,  ou  tijolo,  encaixado  logo 
desde  a  primeira  construcção  ,  assim  a  modo  das 
goteiras  de  nossos  telhados  ,  suíliciente  para  rece- 
ber a  neve  que  queimaria  d'outra  sorte  as  arvores, 
mas  que  não  impede  a  luz  e  o  sol ,  quando  o  ha, 
o  que  raras  vezes  acontece  antes  da  primavera.  Uma 
fila  ou  enfiada  daquelles  leques  vegetaes  reveste  lo- 
do o  muro,  com  pequena  diflcrença,  e  d'ellas  pen- 
dem os  lindissimos  pòcegos,  quando  se  approximara 
da  maturação,  fazendo  uma  agradabilíssima  perspe- 
ctiva. 

Como  a  figura  cm  leque  on  ventarola  não  cobre 
facilmente  a  siípcrficie  inteira  da  muralha,  vimos  que 
os  lavradores  costumam  encher  esses  vasios  cora 
gingeiras  e  cercíjciras  ,  cujos  lindos  fructos  ajudam 
a  fazer  a  bcllcza  do  painel.  Proximamente  ouvimos 
que  a  sociedade  d'agrícullura  de  Paris  premiara 
com  uma  medalha  d"ouro5Ir.  Malot  por  haver  des- 
coberto o  methodo  de  la  taillc  carrce  ,  da  disposi- 
ção dos  pecegueiros  em  quadrado  a  Cm  d'aprovei- 
tar-se  todo  o  espaço  da  muralha. 

Resla  dizermos  o  producto  dos  pecegos  de  .Mon- 
treuil:  no  anno  de  18'fO  sahiram  dalli  13,300..000 
pccegos,  que  produziram  731»500  francos:  isto  é, 
[lassante  de  cento  e  dezescte  contos  de  réis!  .  . 


Á  dntta   da  rasão.  —  Lady filha  de  uma 

casa  mui  nobre  e  opulenta  d'Inglatcrra  ,  em  idade 
de  17  annos  deixou  Londres  para  ir  a  Paris  era  com- 
panhia de  uma  sua  lia  já  anciaâ  mas  ainda  soltei- 
ra. Passou-se  isto  nos  princípios  de  1789: — a  tia 
apaixonou-se  logo  pelas  idéas  então  dominantes  na 
França  ;  e  tanto  que  a  sua  casa  era  a  assemblca 
dos  cabeças  da  revolução  ,  Condorcet  ,  Mirabeau  , 
e  o  abbade  Seyès  ,  e  posteriormente  dos  sanguiná- 
rios Rohespierre,  St.  Just  e  outros:  não  é  para  ad- 
mirar que  o  exemplo  arrastasse  e  seduzisse  a  sobri- 
nha para  abraçar  com  fervor  as  exaltadas  doutrinas 
republicanas.  Ilobes|iierre  pòz  os  maiores  esforços 
para  lhe  apagar  do  coração  a  imagem  de  um  lord 
mancebo  de  quem  era  promellida  noiva  ,  e  tantas 
diligencias  fez  que  conseguiu  riscar-lh'o  inteira- 
mente da  lembrança.  A  tia  morreu  de  uma  febre 
cerebral  ;  c  dahi  a  pouco  appareceii  a  nobre  Lady 
figurando  de  dcuza  da  rasão  na  sacrílega  festa  ,  da- 
da por  Maximiiiano  Robespierre  nos  campos  Ely- 
sios.  Posteriormente  fugiu  de  Paris  com  um  italia- 
no ,  que  tomou  por  marido  em  Nápoles  ;  mas  o  es- 
poso Ião  cedo  a  abboreceu  ,  que  a  deixou  só  e  em 
abandono  ainda  não  findos  dois  mezes  de  casados. 
Por  vergonha  de  actos  por  tal  maneira  façanhosos  , 
não  quiz  procurar  os  seus  parentes  em  Inglaterra: 
procipitando-se  de  excesso  em  excesso,  a  deuza  da 
rasão  chegou  a  perder  de  todo  a  rasão  que  Deus 
lhe  dera,  c  de  que  tão  máu  uso  fizera.  Em  certo 
dia  a  acharam  delirante,  coberta  de  farrapos,  ex- 
pirando ao  pé  de  um  pobre  alvergue  a  distancia  de 
uma  Icgua  de  Nápoles. 


Os  que  blasonam  de  não  ceder  nem  vergar  são  co- 
mo as  estatuas  de  pedra  ou  bronze,  que  por  malc- 
riaes  e  inanimadas  não  se  curvam  nem  se  dobram. 

Os  louvores  extorquidos  são  brevemente  dosmentidot. 


95 


o  PANORA3IA. 


329 


NATUSASa  DAVIIiA. 


AviLA ,  cabeça  da  provincia  do  seu  nome ,  está  a 
dezoito  léguas  de  líadrid.  Nesta  cidade  por  ordem 
de  Daciano  foi  martyrisado  o  nosso  portuguez  ,  S. 
Vicente,  natural  d'Evora  ,  cujo  corpo  se  venera  na 
sé  lisbonense  (•):  no  logar  do  martyrio  foi  erecto 
um  templo,  depois  que  Constantino  deu  paz  á  Igre- 
ja ,  o  qual  é  dos  antiquissiraos  das  Hespanhas ,  e 
tendo  sido  reedificado  por  S.  Fernando  é  obra  so- 
lida e  magestosa,  e  o  ediQcio  mais  notável  de  Ávi- 
la abaixo  da  cathedral.  Ha  nesta  terra  mais  outro 
logar  santificado,  e  é  o  sitio  onde  nasceu  St/  The- 
reza  de  Jesus  ,  que  está  convertido  em  capella  no 
convento  da  extincta  ordem  dos  carmelitas  descal- 
ços. 

O  numero  dos  habitantes  calcula-se  em  cinco 
mil :  usam  estes  ordinariamente  de  um  trage  ,  que 
lhe  é  particular ,  e  no  desenho  ,  que  estampámos 
aqui ,  se  vè  representado  :   em  parte  semelha  o  dos 

(•)     Vid.  a  paç.  iil  e  417  do  1."  vol.  deita  2.»  Serie. 

OtnroBRO  21  —  1843. 


montanhezes  de  Leão,  em  parte  o  dos  rústicos  de 
Salamanca.  São  os  que  mais  tem  conservado  o  ca- 
racter de  gravidade  singela  dos  antigos  castelha- 
nos. Os  homens  trazem  uma  veste  de  couro  ,  pare- 
cida á  cota,  ou  melhor  diremos  saio,  que  vemos 
nas  figuras  de  soldados  do  século  lo.°;  camisa  ata- 
cada no  colarinho  e  este  bordado,  calças  e  polai- 
nas  como  é  d'uso  no  restante  da  Caslella  ,  rema- 
tando o  vestuário  o  enorme  e  desabado  chapéu  á 
moda  dos  antigos  terços  da  Flandres.  As  mulheres 
trajam  saia  ou  mantéu  que  de  ordinário  tem  muita 
roda  ,  e  cheio  de  pregas  ,  tendo  sempre  na  cortapi- 
za  uma  larga  facha  de  veludo  de  cor  mais  fechada 
que  o  mantéu  ,  e  a  que  chaojam  ta  tiraim :  põem 
no  pescoço  um  lenço  com  seus  bordados  e  franjas, 
chamado  dengue,  e  outro  de  seda  na  cabeça,  pen- 
dente com  graça  e  somente  subjugado  pelo  chapéu, 
que,  postoque  também  derrubado  e  de  copa,  é  me- 
nor emais  airoso  que  o  desmesurado  sombreiro  que 

2."  Sbrie.  —  Vol.  II. 


330 


O   PANORAMA. 


trazem  os  homens.  As  ricaças  costumara  ajuntar  a 
tudo  islo  muitas  verónicas  c  cruzes  (ic  prata  ,  e  o 
avental  de  lina  tela. 

Tão  singelos  como  os  vestidos  acliam-se  os  usos 
e  costumes  desta  boa  gente  ;  delies  os  mais  notá- 
veis são  os  praticados  nas  bodas  ,  e  consistem  n'al- 
gumas  ceremonins  de  origem  remota.  Por  exemplo, 
se  a  noiva  é  de  povo  dislinclo  do  que  habita  o  noi- 
vo ,  não  pódc  este  entrar  a  vê-la  sem  ter' pago  ;i 
rapariga  uma  vez  de  vinho  bom  :  chegado  o  dia  da 
boda,  o  sobredito  noivo,  acompanhado  de  seu  pai, 
do  padrinho  ,  e  do  pagem  da  noiva,  que  é  uma  es- 
pécie de  testemunha,  com  os  mais  convidados,  en- 
caminha-se  á  aldeia  da  futura,  a  qual  sahe  de  ca- 
sa com  seu  acompanhamento  em  tudo  correspon- 
dente áquelle  ,  e  ambas  as  comitivas  dirigem-se  á 
igreja  :  celebrados  os  desposorios  ,  monta  o  rancho 
inteiro  em  cavalgaduras  maiores  ou  menores,  se- 
gundo cada  um  as  tem  ou  (lòde  arranjar,  e  vão  pa- 
ra a  povoação  do  n(JÍvo  comer  o  banquete  ,  que  pe- 
lo commum  consta  de  carne  cosida  ,  carneiro  gui- 
zado  e  arroz  doce,  que  são  pratos  obrigadcjs  .  e  vi- 
nho em  l.irgiiissima  copia  :  o  cnra  e  o  tabelião  da 
terra  assistem  á  comida  ;  finda  esta,  o  segundo  sen- 
ta-se  a  oulra  meza  com  uma  bandeja  diante  em  que 
lodos  os  concorrentes  vem  depor  as  prendas  para  os 
noivos .  que  em  geral  são  roupas  de  meza  e  cama 
e  enfeites  do  fato.  Acabada  a  offerenda  ,  começa  o 
baile  ,  e  todos  os  que  estão  presentes  tem  direito  a 
dançar  um  passo  com  a  noiva,  mediante  o  tributo 
de  cinco  réis  ou  dez  réis,  que  é  apregoado  a  loque 
de  pandeiro. 


A    DAMA    PÉ-DE-CaBRA. 

(Conto  de  junto  ao  Lar), 

Parte  Tereeira. 

I. 

Mensageiuos  apnz  mensageiros;  cartas  sobre  cartas 
tem  vinilo  de  Toledo  a  Inigo  Guerra.  Elrei  de  Leão 
resgatava  todos  os  dias  seus  cavalleiros  por  caval- 
leiros  mnunis  ;  mas  não  tinha  wali  ou  alLaid  capti- 
vo  qne  podesse  d,tr  em  troco  por  tão  nobre  senhor, 
como  o  senhor  de  Biscaia. 

E  muitos  dos  reilemidos  eram  das  Iiandas  das 
serras:  e  estes,  trazendo  as  mensagens,  contavam 
ainda  mais  lastimas  do  velho  D.  Diogo  Lopes,  do 
que.  se  é  possível,  essas  de  que  rosavam  as  cartas. 

«A  porta  do  aguião  em  Toledo  —  diziam  cllcs 
—  tem  a  monrisma  um  grande  campo  lodo  mui 
bera  apalancado  :  aqui  fazem  grandes  Cestas,  guino- 
las  ,  e  touros  nos  dias  dos  seus  perros  santos  ,  se- 
gundo lá  lh'os  pregam  e  determinam  cacizes  e  ule- 
más. 

«Gaiolas  de  bestas-feras  muitas  haahi,  cousa  mui 
de  ver  c  pasmar :  os  tigres  e  leões  não  as  rompem  ; 
rompe-las  mãos  d'homens,  fora  pequice  somente  o 
acredita-lo. 

«j\'uma  destas  prisões,  quasi  nú  ,  com  ferros  de 
pés  e  mãos  ,  está  o  illustre  rico  homem  ,  que  já  foi 
capitão  de  grandes  e  lustrosas  mesnadas. 

«Cortezes  costumam  ser  mouros  com  ser.s  capti- 
vos  fidalgos.  Fazem  esta  perraria  a  D.  Diogo  Lo- 
pes ,  porque  já  são  passados  Ires  annos ,  e  não  ha 
ver  seu  resgate. » 

E  os  peregrinos  que  vinham  do  captiveiro  c  re- 
latavam laes  cousas,  bcin  ceados  c  agasalhados  iiu 


castello  ,  iam-se  no  outro  dia  com  Deus ,  levando 
provida  a  escarcella  ,  e  em  boa  e  santa  paz. 

(Juem  não  ficava  em  paz  era  D.  Inigo:  «Porque 
não  vais  tu  á  serra?  —  dizia-lhe  uma  voz  ao  ouvi- 
do. «Porque  não  ides  procurar  vossa  mãi  :  repetia- 
Ihe  o  pagem  Brearte. 

Que  lhe  havia  de  fazer?  —  Uma  noite  inteira  le- 
vou em  claro  a  pensar  nisso.  Pela  manhaã  ,  a  Deus 
e  á  sorte  ,  ei-lo  que  emfim  se  resolve  a  tentar  a 
aventura  ,  bem  que  de  seu  máu-grado. 

Benzeu-se  vinte  vezes ,  para  não  ler  lá  de  persi- 
gnar-se.  Rezou  o  Pater,  a  Ave,  e  o  Credo;  porque 
não  sabia  se  em  breve  essas  orações  seriam  cousa 
de  recordar-se. 

E  seguido  de  um  mastim  seu  predilecto,  a  pé  e 
com  um  venábulo  na  mão  ,  foi-se  alravez  da  flores- 
ta por  uma  vereda  que  dizia  para  os  píncaros  tris- 
tes e  ermos,  onde  era  tradição  que  a  linda  dama 
tinha  apparecido  a  seu  pai. 

ii. 

Cantam  os  rouxinoes  nos  balsciros ,  murmurara 
ao  longe  as  aguas  dos  regatos  ;  ramallia  a  folha- 
gem brandamente  com  a  viração  da  manhaã:  vai 
uma  linda  madrugada. 

E  Inigo  Guerra  galga  manso  e  manso  os  carris 
empinados  ,  trepa  de  barrocal  em  barrocal  ,  e  ape- 
sar de  seu  muito  esforço  ,  sente  bater-lbc  o  coração 
com  anciã  desacostumada. 

Onde  o  bosque  fazia  alguma  clareira  ,  ou  as  pe- 
nhas alguma  chapada  ,  D.  Inigo  parava  um  pouco 
tomando  o  fôlego  ,  e  pondo-se  a  escutar. 

Muito  havia  que  andava  embrenhado:  o  sol  ia 
alto,  e  o  dia  calmoso:  em  vez  do  cauto  do  rouxi- 
nol ouvia-se  o  piar  da  cigarra. 

E  encontrou  uma  fonte  que  rebentava  de  roche- 
do negro  ,  e  ssltando  de  aresta  em  aresta  vinha  ca- 
liir  em  almacega  tosca  ,  onde  o  sol  parecia  dançar 
no  bolir  das  ondasinhas ,  que  fazia  o  despenho  da 
cascata. 

D.  Inigo  asscnlou-se  á  sombra  da  rocha  ,  c  tiran- 
do a  sua  monteira  matou  a  sede  que  trazia  ,  e  pòz- 
se  a  lavar  o  rosto  e  a  cabeça  do  suor  o  pó,  que  não 
lhe  fallava. 

O  mastim  depois  de  beber  deitou-se  ao  pé  delle, 
e  com  a  lingiia  pemleote  arquejava  de  cansado. 

De  repente  o  cão  pòz-se  em  pé ,  e  arremelleu 
com  um  grande  ladro. 

D.  Inigo  volveu  os  olhos  :  um  jumento  silvestre 
pascia  na  orla  da  clareira  junto  d'Mm  frondoso  car- 
valho. 

«iTarik  I  — gritou  o  mancebo  —  Tarik  !  —  MasTa- 
rilí  ia  ávanle  e  não  o  escutava. 

«Ai,  deixa-o  correr,  meu  filho!  —  Não  c  para 
o  teu  mastim  levar  a  melhor  desse  onagro.» 

Isto  dizia  uma  voz  que ,  lá  em  cima  no  alio  da 
penha  ,  soava. 

Olhou  :  linda  mulher  eslava  ahi  assentada,  e  com 
nm  gesto  amoroso  e  um  sorriso  d'anjo  para  clle  se 
inclinava. 

«Rlinha  mãi  I  minha  mãi!  —  bradou  Inigo  Guer- 
ra alevanlando-se  :  e  lá  comsigo  dizia  :  —  Vade  re- 
tro !  Santo  llermenigildo  me  valha  !  » 

E  como  molhara  a  cabeça  sentiu  que  os  cabellos 
se  lhe  iam  alçando  de  arripiados. 

«Filho,  na  lioca  ""alavras  doces:  no  coração  pa- 
lavras damnadas.  !^las  que  iinporla  ,  se  és  meu  fi- 
lho? Dize  o  que  queres  de  mim,  que  Será  tudo  fei- 
to a  teu  talaiilc  e  vontade.» 


o   PANORA3IA. 


031 


O  moro  cavalleiro  nem  acertara  a  fallar  com  me- 
do. Já  a  este  tempo  Tarik  gemia  uivaDdo  debaixo 
dos  pés  do  onagro. 

«Caiilivo  eslá  de  moiiros  lia  annos  racu  pii  D. 
Diogo  Lopes:  —  disse  por  lim  tiluhcaiido.  —  Qiiize- 
ra  me  ensinásseis ,  senhora  ,  o  modo  porqne  hci-dc 
salva-lo. » 

«Seu  mal,  tão  bera  como  tu,  en  sei.  Se  podcsse 
ter-lhe-hia  accorrido  ,  sem  que  \iesses  requere-lo; 
mas  o   velho  lyrauno  do  céu  quer  que  cUe  pene 

tantos  annos  quantos  viveu  cora  a com  a  que 

sandeus  chamara  dama  I'é-de-Cabra.  » 

«iVão  blasphcmeis  contra  Deus,  minha  mãi,  que 
é  enorme  culpa  :  —  interrompeu  o  mancebo  cada 
vez  mais  horrorisado. 

«Culpa  I  —  para  mira  não  ha  innocencia  nem  cul- 
pa: replicou  a  dama  dando  uma  gargalhada. 

Era  um  rir  de  sonâmbula  triste  e  medonho:  se  o 
diabo  ri,  como  aquelle  deve  ser  o  rir  do  diabo. 

O  cavalleiro  nãu  pode  dizer  mais  palavra. 

tilnigol  —  proseguíu  cila  —  falta  um  anuo  para 
Cttmprir-se  o  captiveiío  do  nobre  senhor  de  Bis- 
caia. Um  anuo  passa  depressa  :  mais  depressa  eu 
t'o  farei  passar.  Vés  tu  aqnelIe  valente  onagro?  — 
Quando  uma  noite  acordando  o  achares  ao  pé  de 
li ,  manso  como  um  cordeiro ,  cavalga  nelle  sem 
SDSto ,  que  te  levará  a  Toledo  onde  livrarás  leu 
pai.»  E  bradando  accrescentou  :  —  Estás  por  isto, 
pardallo?» 

O  onagro  filou  as  orelhas ,  e  em  signal  de  appro- 
Tação  começou  a  azurrar  : — começou  por  onde  ás 
Tezes  academias  acabara. 

Depois  a  dama  pòz-se  a  cantar  uma  cantiga  de 
bruxas,  acompauhando-se  de  ura  psalterio,  de  que 
tirava  mui  estrideutes  toadas  : 

Pelo  cabo  da  vassoura  , 
Pela  corda  da  polé  , 
Pela  vibora  que  vé  , 
Pela  Sura  e  pela  Toura  , 

Pela  vara  do  condão  , 
Pelo  panno  da  peneira  , 
Pela  velha  feiticeira  , 
Do  finado  pela  mão; 

Pelo  bode  rei  da  festa  , 
Pelo  capo  inteiriçado  , 
Pelo  infante  dessangrado 
Que  chupou  vampiro  á  sesta  ; 

Pelo  craneo  alvo  e  lustroso 
Em  que  sangue  se  libou  , 
E  do  irmão  que  irmão  matou 
Pelo  arranco  doloroso  ; 

Pelo  nome  de  raysterio 
Que  em  palavras  se  não  diz  , 
Vinde  já  precitos  vis  ; 
'     ,       Vinde  ouvir  o  meu  psalterio  ! 

E  dançai-me  aqui  na  terra 
Ima  dança  doudejante , 
Que  entonteça  n'ura  instante 
O  meu  filho  Inigo  Guerra. 

Que  eile  durma  um  anno  inteiro. 
Como  em  somno  de  uma  hora  , 
Junto  á  fonte  que  alli  chora  , 
Sobre  »  relva  deste  outeiro. 


Em  quanto  a  dama  cantava  estas  cantigas  ,  o 
mancebo  sentia  ura  quebramento  nos  membros 
que  crescia  cada  vez  mais.  e  que  o  obrigou  a  as- 
scii(ar-se. 

E  logo,  logo  onviu-sc  um  rnido  abafado  como 
de  trovões  c  de  ventanias  engolfando-se  em  caver- 
nas subterrâneas  :  depois  o  céu  começou  a  toldar- 
se  ,  c  cada  vez  se  entenebrecia  mais  até  que  emlim 
apenas  uma  luz  de  crepúsculo  o  alluniiava. 

E  a  mansa  almaccga  refervia  ,  e  os  penedos  ra- 
chavam, e  as  arvores  torciam-se  ,e  os  ares  sibilla- 
vam. 

E  das  bolhas  da  agua  da  fonte  ,  e  das  fendas  dos 
rochedos,  e  d'entre  as  ramas  dos  robles,  e  da  vas- 
tidão do  ar  via-se  descer,  subir,  romper,  saltar  . .  . 
o  que?  —  Cousa  muito  espantavel. 

Eram  mil  e  mil  braços  sem  corpos ,  negros  co- 
mo carvão,  tendo  nos  cotos  uma  aza,  e  na  mão  c.t- 
da  um  uma  espécie  de  facho. 

Como  a  palha  que  o  tufão  levanta  na  eira  aquel- 
la  multidão  de  candeias  cruzava-se  ,  revolvia-se  , 
unia-se,  separava-se,  remoinhava,  mas  sempre  com 
certa  cadencia  ,  como  que  dançando  a  compasso. 

A  D.  Inigo  andava  a  cabeça  á  roda  :  as  luzes  pa- 
rcciam-lhe  azues ,  verdes,  e  vermelhas,  mas  cor- 
ria-lhe  pelos  membros  uma  languidez  tão  suave,  que 
não  teve  animo  para  fazer  o  signal  da  cruz  e  afu- 
gentar aquelle  bando  de  salanazes. 

E  sentia-se  esvaecer ,  e  pouco  a  pouco  adorme- 
cia,  e  dalli  a  pouco  roncava. 

Entretanto  no  castello  tinham  dado  pela  sua  fal- 
ta. Esperaram-no  até  a  noite;  esperaram-no  uma 
semana  ,  um  mez  ,  um  anno,  e  não  o  viam  voltar. 
O  pobre  Brearte  correu  por  muito  tempo  a  serra  ; 
mas  o  sitio  cm  que  o  cavalleiro  jazia  ,  isso  c  que 
não  havia  lá  chegar. 


ill. 


Inigo  acordou  alta  noite: — tinha  dormido  algu- 
mas horas  —  ao  menos  elle  assim  o  cria. — Olhon 
para  o  céu,  viu  estrellas  :  apalpou  ao  redor,  achou 
terra:  escutou,  ouviu  ranialhar  as  arvores. 

Pouco  a  pouco  é  que  se  foi  recordando  do  que 
passara  com  sua  malaventurada  raãi ;  porque  a  prin- 
cipio não  se  lembrava  de  nada. 

Pareceu-lhe  então  ouvir  respirar  alli  perto  :  afir- 
mou a  vista  :  era  o  onagro  pardallo. 

«Já  agora  meio  enfeitiçado  estou  eu  —  pensou  el- 
le : — corramos  o  resto  da  aventura,  a  ver  se  posso 
salvar  meu  pai. » 

E  pondo-se  em  pé  encaminhou-se  para  o  valente 
animal,  que  já  eslava  enfreado  e  sellado ;  cujos 
eram  os  arreios  ,  isso  sabia-o  o  diabo. 

Hesitou,  todavia,  um  momento  :  tinha  seus  es- 
crúpulos—  a  boas  horas  vinham  elles  —  de  caval- 
gar naquelle  corredor  infernal : 

Então  ouviu  nos  ares  uma  voz  vibrada,  que  can- 
tava mui  entoado:  era  a  voz  da  lerrivel  dama  P'>- 
de-Gabra : 

Cavalga  ,  meu  cavalleiro , 

No  alentado  corredor ; 

Vai  salvar  o  bom  senhor  :  • 

Vai  quebrar  seu  captiveiro> 

Pardallo,  não  comerás 
Nem  cevada  nem  aveia  , 
Não  terás  jantar  nem  ceia, 
Rijo  e  leve  voltarás. 


332 


O   PANORAMA. 


>'cm  aroutc  nem  espora 
Requer  elle  ,  oh  cavalleiro  I 
Corre  ,  corre  bem  ligeiro 
Noite  e  dia ,  a  Ioda  a  hora. 

Freio  ou  sella  não  lhe  tires, 
Não  lhe  falles  ,  não  o  ferres , 
Na  carreira  não  te  aterres  , 
Para  trás  nunca  Ic  vires. 

■  Upa  I  firme! — avante,  avante  1 

Breve  ,  breve  ,  a  bom  correr  ! 
Um  minuto  não  perder  , 
Bera  que  o  gallo  ainda  não  cante. 

«Vá  ! — grilou  Inigo  Guerra  com  uma  espécie  de 
phrenesi ,  que  ncUc  produzira  aquclle  cantar  estra- 
nho ;  e  d"um  pulo  cavalgou  no  immovel  onagro. 

Mas  apenas  se  firmou  na  sella  ,  pst !  —  ei-lo  que 
parle  I 

IV. 

Postoque  em  paz  com  os  christãos,  os  mouros  de 
loledo  tem  pelas  torres  ,  cubellos  ,  e  adarves  seus 
atalaias  e  vigias ,  e  nos  montes  que  dizem  para  a 
frontaria  de  Leão  seus  fachos  e  almenaras. 

Mas  se  o  rei  leonez  soubesse  como  descuidosa 
jaz  Toledo  ;  como  ao  anoitecer  se  deixam  dormir 
vigias  ,  se  deixam  de  accender  fachos  ,  quebraria 
seus  juramentos  e  faria  contra  aquellas  partes  uma 
repentina  arrancada. 

Salvo  ter  de  ir  depois  ao  seu  confessor  dizer  con- 
fiteor  JJco,  e  pcccavi ;  porque  o  quebrar  juramento, 
ainda  que  seja  a  cães  descridos,  dizem  ser  feio  pec- 
cado. 

È  a  hora  do  crepúsculo  :  ao  sol  posto  os  de  To- 
ledo mirando  para  a  banda  do  norte  viram  lá  mui- 
to ao  longe  vir  correndo  uma  nuvem  negra ,  on- 
deando e  fazendo  voltas  no  céu  ,  como  a  estrada  as 
fazia  na  terra  por  entre  os  montes  :  dir-sc-hia  que 
vinha  embriagada. 

Era  primeiro  um  pontinho ;  depois  crescera  e 
crcscfra  :  quando  anoiteceu  estava  já  perto  e  cubria 
um  grande  espaço. 

O  muezzim  subindo  á  torre  da  mesquita  chama- 
va os  crentes  de  Mafamede  para  a  oração  da  tarde. 

Mas  com  a  sua  voz  esganiçada  se  misturou  o  es- 
tourar dos  ti-ovões  :  era  como  um  tiple  e  um  baixo. 

E  passou  um  tufão  de  vento,  que  cmbrenhando-se 
e  remoinhando  nas  barbas  longas  e  brancas  do  muez- 
zim ,  lhe  fustigou  com  ellas  a  cara. 

Começou  então  a  cahir  uma  corda  de  chuva,  que 
nem  moços  nem  velhos  se  lembravam  de  ler  visto 
cousa  similhanlc  em  nenhuma  parte. 

Aqui  vcrieis  os  esculcas  a  aninharem-sc  nas  gua- 
ritas das  torres  :  os  roídas  e  sobre-roldas  a  fugirem 
pelos  adarves  ;  os  facheiros  a  sumircm-se  debaixo 
das  almenaras;  oshadjis  a  acolhcrcm-se  ás  mesqui- 
tas molhados  alé  os  ossos  ;  as  velhas  ,  que  tinham 
sabido  ao  vozear  do  muezzim,  levadas  pelas  torren- 
tes das  ruas  tortuosas  e  estreitas  bradando  por  Ma- 
foma  c  Allah.  E  a  agua  cahindo  cada  vez  mais  ! 

Dois  únicos  movimentos  fazem  então  os  morado- 
res de  Toledo:  uns  fogem,  outros  agacham-se. — 
E  a  agua  cahindo  cada  vez  mais. 

O  pavor  quebra  todos  os  ânimos  :  os  cacizcs  es- 
conjuram a  procella  :  os  faquires  penitentes  gritara 
que  se  acaba  o  mundo  ,  c  que  lhes  deixe  os  seus 
bens  aquclle  que  quizcr  salvar-se.  E  a  agua  cahin- 
do cada  vez  mais. 


A  salvação  de  Toledo  foi  não  se  terem  fechado 
suas  portas  :  se  assim  não  succedesse,  dentro  do  re- 
cinto dos  muros  morria  toda  a  mourisma  affogada. 


V. 


Na  prisão  eslá  D.  Diogo  encostado  ás  grades  de 
ferro.  O  pobre  velho  entretinha-se  a  ou^i^  aquelle 
medonho  chover  ;  porque  a  noite  era  comprida  ,  e 
elle  não  tinha  que  fazer  mais  nada. 

Mas  como  o  terreiro  ante  a  sua  gaiola  de  feras 
era  rodeado  de  muros ,  a  chuva  não  podia  escoar- 
se  toda  ,  e  vinha  crescendo  de  modo  que  já  ellc 
sentia  os  pés  molhados. 

E  também  começou  a  ter  medo  de  morrer,  ape- 
sar da  sua  miséria.  Bem  sabia  D.  Diogo  que  a  mor- 
te é  a  maior  delias  todas;  que  não  era  o  senhor  de 
Biscaia  atheu  ,  philosopho  ,  nem  parvo. 

IMas  lá  divisa  um  vullo  alvacento,  que  salvou  por 
cima  do  palanque ,  e  sente  ao  mesmo  tempo  no 
meio  do  terreiro  —  plash  !  — 

E  ouviu  uma  voz  que  dizia:  «Nobre  senhor  D. 
Diogo,  onde  é  que  vós  vos  achais'.»  — 

«Que  vejo  e  ouço?!  —  exclamou  o  velho.  —  Um 
trajo  que  não  alveja  ,  não  é  trajo  d'ismaelita  :  uma 
voz  qnc  não  falia  algaravia  ,  não  é  d'infiel  :  um 
salto  de  tal  altura  não  é  de  cavalleiro  do  mundo. 
Por  vossa  fé  dizei-me  ,  sois  anjo ,  ou  sois  Santia- 
go ? » 

«Meu  pai,  meu  pai! — acudiu  o  cavalleiro  —  já 
não  conheceis  a  falia  de  Inigo?  Sou  eu  que  venho 
salvar-vos.  » 

E  D.  Inigo  descavalgou  ,  e  travando  das  grossas 
reixas  tentava  allui-las:  a  agua  dava-lhe  já  pelos 
artelhos,  e  elle  não  fazia  nada. 

Cheio  de  afllicção  o  mancebo  quiz  invocar  o  no- 
me de  Jesus ;  mas  lembrou-se  de  como  alli  viera  , 
e  este  nome  expirou-lhe  nos  lábios. 

Toiavia  pardallo  pareceu  adivinhar  seu  intimo 
pensamento ;  porque  soltou  um  gemido  agudo  e  rá- 
pido como  se  o  houvessem  tocado  com  um  ferro 
era  braza. 

E  empurrando  com  a  cabeça  D.  Inigo ,  voltou  a 
anca  para  a  grade. 

Pan  !  — foi  o  som  que  se  ouviu.  Com  um  só  cou- 
ce a  reixa  esta\a  no  chão,  e  as  honibrciras  de  pe- 
dra tinham  voado  cm  mil  rachas.  Quer  m'o  creiam 
quer  não  —  di-lo  a  historia  :  eu  com  isto  nem  perco 
nem  ganho. 

D.  Diogo  ,  esse  ficou-o  crendo  ;  porque  uma  las- 
ca de  pedra  bateu-lhc  nos  dois  últimos  dentes  que 
tinha  e  metteu-lh'os  pela  goclla  abaixo.  Por  isso  el- 
le cora  a  dòr  não  podia  dizer  palavra. 

Seu  filho  fè-Io  cavalgar  ante  si ,  e  cavalgando 
apoz  elle  ,  bradou  :  «Meu  pai  ,  estais  salvo  !  » 

E  pardallo  de  um  pulo  galgou  de  novo  o  palan- 
que. Pois  tinha  bons  quinze  [lalnios  ! 

Pela  manhaã  não  havia  signal  de  chuva  ;  o  ar  es- 
tava limpo  e  sereno,  e  quando  os  mouros  foram  ver 
o  que  succcdèra  a  D.  Diogo  Lopes  não  lhe  acharam 
sequer  o  rasto. 


VI. 


D.  Inigo  e  seu  pai,  o  velho  senhor  de  Biscaia  pas- 
sam as  portas  de  Toledo  com  a  rapidez  da  frecha  : 
n'um  abrir  e  fechar  d'olhos  ficam-lhc  para  traz  mu- 
ros ,  torres ,  barbacaãs  e  atalaias.  A  bátega  vai  di- 
minuindo :  rasgnm-se  as  nuvens,  e  veem-se  já  relu- 
zir  algumas    estrellas   que  parecem   outros  tantos 


o   PANORAMA. 


333 


olhos  com  que  o  ccu  espreita  atravcz  do  negrume 
o  que  se  passa  cá  embaixo. 

A  estrada  pelas  descidas  e  suliid.''S  dos  recostos 
converteu-sc  cm  leito  de  torrente  ,  nos  plainos  con- 
verleu-sc  em  lago. 

Mas  pelos  lagos  c  torrentes  o  valente  onagro  rom- 
pe avante  ,  bufando  como  um  damnado. 

^'ão  subiram  bem  um  monte,  j.i  descem  pelo  ou- 
tro recosto  abaixo;  ainda  bem  não  chegaram  a  uma 
clareira,  já  sentem  em  profunda  lloresla  gotcjareni- 
Ihcs  em  cima  os  ramos  agitados  das  arvores. 

Pouco  mais  é  de  meia-noite ,  e  os  topos  nevados 
do  Niudio  se  estampam  no  chão  estreitado  do  céu 
já  limpo  ,  similhanlcs  aos  dentes  do  uma  serra  gi- 
gante capaz  de  devidir  cèrceo  o  heraispherio  aus- 
tral do  hemisphcrio  boreal. 

E  pardallo  investe  sempre  em  galope  espantoso 
com  as  montanhas  disformes  ,  e  desce  os  valles  te- 
merosos ,  e  cada  vez  mais  ligeiro  ,  como  o  seu  no- 
me o  indica,  parece  menos  quadrúpede  que  pássaro. 

Mas  que  ruido  é  esse  que  sobreleva  ao  do  ven- 
to? que  é  isso  que,  lá  ao  longe,  ora  alveja  ora  reluz 
nas  trevas,  como  uma  alcateia  de  lobos  involtos  em 
sudários  brancos  com  os  olhos  só  descobertos  ,  e 
despegando  em  fio  pelo  fundo  do  valle  abaixo? 

É  um  rio  caudal  e  furioso  com  o  seu  manto  de 
escuma  ,  e  com  as  escamas  angulosas  do  seu  dorso 
eriçado  ,  onde  batem  e  chispam  os  raios  das  estrel- 
las  em  mil  reflexos  quebrados. 

íscgreja  sobre  o  rio  uma  ponte  ,  ao  meio  desta 
um  vulto  esguio.  Será  um  marco?  —  uma  columna 
com  estatua?  —  pensaram  os  cavalleiros.  Pinheiro 
não  pôde  ser:  não  consta  que  em  taes  sitios  nasçam. 

Pardallo  ria-se  de  rios  ;  pontes,  fazia  tanto  cabe- 
dal delias  como  de  um  retraço  de  palha.  Todavia, 
bem  que  podesse  de  um  pulo  salvar  vinte  ribeiras 
como  nquella  ,  foi-se  direito  aponte;  porque  não 
era  animal  que  fizesse  africas  escusadas. 

Similhante  a  relâmpago  se  arrojou  o  onagro  áquel- 
le  passo  estreito;  mas,  tá  I — ei-lo  que  de  repente 
pára. 

E  tremia  como  varas  verdes ,  e  arquejava  com 
violência  :  os  dois  cavalleiros  olharam. 

O  vulto  esguio  era  um  cruzeiro  de  pedra  alevan- 
tado  a  meia  ponte:  por  isso  pardallo  emperrava. 

Então  d'entre  uns  altos  choupos  que  da  margem 
d'alem  se  meneavam  um  pouco  mais  abaixo  daquel- 
le  sitio  ouviu-se  uma  voz  fadigosa  e  tremula  que 
cantava  : 

Para  traz,  para  traz,  a  galgar  I 

.Já: 
De  redor  ,  de  redor  vem  passar 

Cá  : 
Que  não  ha  nada  aqui  que  te  empeça  ! 

Buz, 
Nem  palavra  ,  vós  dois  !  Fugi  dessa 

Cruz  ! 

Santo  nome  de  Christo  I  —  exclamou  D.  Diogo 
benzendo-se  ao  escutar  aquella  voz  que  bem  co- 
nhecia ,  mas  que  depois  de  tantos  annos  não  espe- 
rava alli  ouvir ,  porque  seu  filho  não  lhe  dissera 
que  meio  achara  para  o  salvar. 

Apenas  o  grito  do  velho  soou  ,  assim  elle  como 
D.Inigo  foram  bater  contra  o  poial  do  cruzeiro  on- 
de ficaram  de  bruços  ,  involtos  em  lodo.  O  onagro 
ao  sacudi-los  de  si  soltara  um  rugido  de  besta-fe- 
ra.  Sentiram  então  um  cheiro  intolerável  d'enxofre 
e  de  carvão  de  pedra  inglez ,  que  logo  se  percebia 
ser  cousa  de  satanaz. 


E ouviram  como  um  trovão  subterrâneo;  e  apon- 
te balouçava  como  se  as  entranhas  da  terra  se  des- 
pedaçassem. 

-Vlicsar  do  seu  grande  terror  ,  e  de  clamar  ;  ola 
\'irgem  Sanlissima,  D.  Inigo  abriu  um  cantiidio  do 
olho  para  ver  o  que  se  passava. 

.\ós  os  homens  costumámos  dizer  que  as  mulhe- 
res são  curiosas.  Nós  é  que  o  somos.  Mentimos  co- 
mo uns  desalmados. 

(Jue  veria  o  cavalleiro?  Um  fojo  aberto  bem  pró- 
ximo dcUe  sobre  a  ponte  ,  e  que  depois  rompia  pe- 
la agua  : 

E  depois  pelo  leito  do  rio  ;  e  depois  pela  terra 
dentro,  dentro  ;  e  depois  pelo  teco  do  inferno,  que 
onlra  cousa  não  podia  ser  um  fogo  muilo  vcrmclln) 
que  reverberava  daquella  immcnsa  profundidade. 

Tanto  era  isso  ,  que  ainda  lá  viu  passar  de  re- 
lance um  demónio  com  um  desconforme  espeto  nas 
mãos  cm  que  levava  um  judeu  empalado. 

E  pardallo  descia  remoinhando  por  esse  boiíuci- 
rão,  como  uma  pcnna  cahindo  em  dia  sereno  do  al- 
to de  uma  torre  abaixo. 

Aquella  vista  fez  perder  os  sectidos  a  D.  Inigo, 
que  indo  também  a  chamar  por  Jesus  achou  que 
não  podia  proferir  este  nome  sagrado. 

De  terror  tanto  o  velho  como  o  moço  ficaram  alli 
em  desmaio. 

Quando  tornaram  a  si  com  o  romper  do  sol  cla- 
ro ,  conheceram  o  sitio  em  que  se  achavam.  Era  a 
ponte  próxima  á  aldeia  de  Nusturio ,  uo  alto  da 
qual  campeava  o  castello  construído  por  D.  Frora  o 
saxonio  ,  avô  de  D.  Diogo  Lopes  ,  e  primeiro  se- 
nhor de  líiscaia. 

Nenhum  vestígio  restava  do  que  alli  se  passara  : 
os  dois  moídos  e  cheios  de  lodo  e  pisaduras  foram- 
se  arrastando  como  poderam  até  encontrarem  alguns 
villões  a  quem  se  deram  a  conhecer  ,  e  que  os  le- 
varam a  casa. 

Festas  que  em  Nusturio  se  fizeram  por  sua  vin- 
da ,  cousa  é  que  não  vos  direi ;  porque  não  tarda  a 
hora  de  cear  —  rezar — e  deitar. 


Vil. 


D.  Diogo  pouco  tempo  viveu  :  todos  os  dias  ou- 
via missa  ;  todas  as  semanas  se  confessava.  D.  Ini- 
go ,  porem  ,  nunca  mais  entrou  na  igreja  ,  nunca 
mais  rezou  ,  e  não  fazia  senão  ir  á  serra  caçar. 

Quando  tinha  de  partir  para  as  guerras  de  Eeão 
viam-no  subir  á  montanha  armado  de  todas  as  pe- 
ças, e  voltar  de  lá  montado  n'um  agigantado  onagro. 

E  o  seu  nome  retumbou  em  toda  a  Hcspanha  ; 
porque  não  houve  batalha  em  que  entrasse  que  se 
perdesse  ,  e  nunca  em  nenhum  recontro  foi  ferido 
ou  derribado. 

Diziam  á  boca  pequena  em  Nusturio  que  o  illus- 
tre  barão  tinha  pacto  com  Belzebuth.  Olhem  que 
era  grande  milagre  ! 

Meio  precito  era  elle  por  sua  mãi :  não  tinha 
que  vender  senão  a  outra  metade  da  alma. 

Por  oitenta  por  cento  de  lucro  no  recibo  de  um 
egresso  a  dá  ahi  inteira  ao  demo  qualquer  crcalu- 
ra  ,  e  crè  ter  feito  uma  limpa  veniaga. 

Fosse  como  fosse,  Inigo  Guerra  morreu  velho  :  o 
que  a  historia  não  conta  é  o  que  então  se  passou 
no  castello.  Como  não  quero  improvisar  mentiras 
por  isso  não  direi  mais  nada. 

Mas  a  misericórdia  de  Deus  é  grande.  A  cautelia 
rezem  por  elle  um  Pater  e  um  ^Ire.  Se  não  lhe 
aproveitar,  seja  por  mim.  Amen. —  (A.Uerculano). 


334 


O  PANORAMA. 


TALIíSTRAND. 


Este  homem  extraordinário,  três  mezes  antes  de 
morrer  ,  recitou  no  Inslitulo  o  elogio  do  conde  de 
Renhard  ,  e  nesse  discurso  disse  —  que  um  ininls- 
iro  dos  negócios  estrangeiros  hade  possuir  a  facili- 
dade de  parecer  siiicero,  ao  mesmo  tempo  que  nin- 
guém lhe  possa  penetrar  os  pensamentos  ;  e  de  ser 
desconfiado  na  realidade,  postoque  perfeitamente 
franco  em  suas  maneiras.  —  Nesta  máxima  delineou 
Talleyrand  o  seu  pioprio  retrato.  A  faculdade  de 
occuitar  as  suas  opinicíes  nos  casos  graves  ou  im- 
previsto-s,  e  o  aflinco  em  attlender  ao  principio  de 
que  os  attaques  á  pessoa  desvanecemse  com  o  tem- 
po por  carência  de  opposição  ,  deram  em  resultado 
a  ignorância  dos  contemporâneos  quanto  ao  verda- 
deiro caracter  de  tão  notável  homem  :  o  seu  silen- 
cio systematico  foi  occasião  de  vogarem  imputações 
que  não  merecia  se  lhe  fizessem  ;  mas  é  certo  que 
contribuiu  por  outro  lado  para  lhe  grangear  maior 
fama  de  habilidade  c  talentos  do  que  lhe  competia. 
Carlos  Mauricio  de  Talleyrand  Perigord  nasceu 
aos  13  de  fevereiro  de  1754,  o  primogénito  de  três 
irmãos  que  foram:  era  de  familia  antiga  e  nobre, 
mas  seus  pais  o  desprezaram  e  pozeram  a  criar 
n'um  subúrbio  de  ['arís.  Por  effeito  d'uma  queda  , 
tendo  apenas  um  anuo  ,  ficou  para  toda  a  vida  co- 
xo ,  e  incapaz  portanto  do  serviço  militar  ;  viu-se 
depois  obrigado  a  renunciar  os  direitos  de  morga- 
do em  prol  de  seu  segundo  irmão  ,  e  a  seguir  a 
profissão  ecclesiastica.  A  aversão  que  lhe  tomara  a 
familia  ,  e  que  lhe  não  escondiam  ,  o  fez  de  génio 
sombrio  e  taciturno.  Transferido  da  tutclla  da  ama 
para  o  collegio  d'Harcourt,  e  dahi  successivaraenle 
para  o  scraiaarin  de  S.  Sulpicio  e  para  a  Sorbon- 


na  ,  revelou  sempre  a  indole  de  mancebo  relrabi- 
do  ,  orgulhoso,  e  ao  mesmo  tempo  dado  aos  estu- 
dos. Mostrou  na  futura  vida  publica  tanto  gosto  lit- 
lerario  e  tão  extensos  conhecimentos,  que  tão  bem 
cabiam  n'um  homem  d'eslado,  que  forçosamente  sc 
deprebende  terem  sido  adquiridos  na  primeira  ida- 
de ,  porquanto  a  turbulenta  carreira  em  que  de- 
pois se  viu  empenhado  não  lhe  permillia  folgas  pa- 
ra taes  applicações. 

Chegan(io  aos  vinte  annos,  augmentado  em  repu- 
tação de  talento,  e  restabelecido  de  saúde,  estes 
predicados  o  reconciliaram  com  a  vaidade  de  seus 
pais,  que  então  o  recunhcceram  ;  e  o  introduziram 
na  sociedade  de  seus  iguaes  ,  pela  primeira  vez  , 
na  occasião  em  que  sc  celebravam  as  solcmnidades 
da  coroação  de  Luiz  Ki." — Mancebo,  nobre,  de 
ardente  temperamento,  de  agudo  engenho,  possui- 
d(ir  de  boa  presença,  e  sobretudo  daquelle  dote  do 
espirito  ,  que  mais  agrada  ,  isto  é  ,  a  graça  e  vive- 
za da  conversação  ,  não  admira  que  assim  que  en- 
trou no  mundo  grangcasse  applausos  e  estima  ,  co- 
nhecimentos e  amizades ;  e  postoque  no  exterior 
conservasse  a  seriedade  a  que  o  habituaram  as  im- 
pressões de  sua  primeira  idade  ,  soube  com  destre- 
za modifica-la  por  tal  arte  que  era  de  lodos  bem 
recebido  e  festejado.  Dedicado  ao  estudo  ecclesias- 
lico  contra  sua  vontade,  não  era  estranho  ás  dis- 
tracções mundanas  ;  é  porem  constante  quão  poucos 
escrúpulos  o  clero  francez  em  geral  tinha  nesses 
tempos  licenciosos:  pelo  que  o  juizo  severo  de  al- 
guns não  impediu  que  cm  1788  fosse  elevado  á  di- 
gnidade de  bispo  d'Autun.  Por  outra  parte  os  seus 
talentos  o  acreditavam  tanto,  que  o  corpo  do  clero, 


o   PANORA3IA. 


33S 


então  mui  poderoso ,  o  nomeara  oito  annos  antes 
agente  ou  [irocurador  geral  <la  urdi-m  ecclesiaslÍLa 
no  reino,  cargo  melindroso  e  de  extensa  inlluencia, 
e  que  parecia  impropriamente  cninniellido  a  um 
mancebo  de  '2G  annos;  mas  no  desempenho  do  qual 
clle  se  houve  com  tania  aptidão  e  pericia  ,  que  pe- 
lo desenvolvimento  de  sua  habilidade  admuislraliva 
entrou  a  ser  ainda  mais  conhecido  do  publico  em 
todas  as  classes  da  sociedade.  Tal  foi  porventura  a 
origem  principal  de  seu  futuro  engrandecimento. 

Rebentando  a  estupenda  revolução  de  178!),  elei- 
to deputado  pelo  clero  aosEstados-geraes,  deu  Tal- 
leyrand  principio  á  sua  carreira  politica  :  abraçou 
calorosamente  a  causa  nacional  e  continuou  a  de- 
fende-la com  talento  e  perseverança  na  assemblca 
consliluinle.  Alem  de  innumeraveis  trabalhos  ,  dis- 
tinguiii-se;  por  ser  o  primeiro  que  votou  pela  reu- 
nião do  clero  ao  terceiro  estado  ;  por  ter  promovido 
a  abolição  dos  dizimos  e  a  applicação  dos  bens  ec- 
clesiaslicos  ao  lhes<iuro  publico  ;  pela  redacção  de 
mui  crescido  numero  de  relatórios  sobre  fazenda 
nacional,  in*trocção  publica,  e  pezos  e  medidas; 
e  como  membro  da  commi^são  de  consliluição,  pela 
famosa  decl.irição  dos  rliíeilos  do  Itnniem.  \  16  de 
fevereiro  de  1790  elegeram-no  presidente  daquella 
assembléa;  e  em  14  de  julho  do  mesmo  anno  oHi- 
ciou  de  pontifical  na  aliar  da  palria  no  campo  de 
Marte  em  a  ceremonia  da  confederação  franceza. 

Foi  lambem  do*  primeiros  que  preslou  juramento 
de  obediência  n  constituição  civil  do  clero,  e  o  úni- 
co dos  bispos  fraiicczes  que  se  prestou  a  sagrar  os 
nomeados  conslilucionalmente  ;  proceder  reprovado 
pelo  pontifico  Pio  6.°  qiie  fulminou  excommonhão 
contra  Talleyraiid.  o  qual  deu  a  renuncia  da  cadei- 
ra episcopal  de  Autun. 

Em  1791  foi  eleito  membro  do  Directório,  e 
pouco  depois  como  testamenleiro  de  .Mirabeau  veio 
dar  parle  á  assembléa  nacional  da  morte  daquelle 
celebre  orador.  Assim  como  a  corte  o  aborrecia 
por  haver  tomado  abertamente  parle  na  revolução, 
os  republicanos  não  gostavam  do  seu  riso  d'escar- 
neo  ,  e  do  aferro  com  qiie  advogava  a  monarchia 
modificada.  Todavia  Luiz  16.°,  no  primeiro  quar- 
tel de  1792.  incumbiii-lhe  uma  commissão  a  Ingla- 
terra ,  postnque  polilica  ,  sem  cariícler  diplomáti- 
co:  nenhum  bom  resiillado  teve  a  sua  missão:  mas 
conservou-se  em  f.ondres  por  espaço  de  dois  annos 
mantendo  relações  com  os  homens  principnes  da  re- 
publica .  não  obstante  simular  o  ser  perseguido  por 
parle  desta:  sem  embargodisso  as  suasoccullas  ma- 
qninações  causaram  a  ordem  rigorosa  que  era  1794 
o  constrangeu  a  sahir  da  tiraã-Iiretanha  ,  vendo-se 
então  precisado  a  refogiar-se  nos  Eslados-Unidos. 
Por  inlluencia  de  M.""  de  Stael,  voltou  á  pátria  no 
anno  seguinte,  e  continuou  a  ser  um  dos  homens 
mais  interessantes  á  republica  cm  consequência  de 
trabalhos  cactos,  que  não  podem  enumerar-se  n'um 
breve  esboço  biographico  :  por  fim  em  1797  [anno 
S."  da  republica]  chegou  ao  estádio  politico,  em 
que  tinham  de  brilhar  com  maior  esplendor  os  seus 
talentos  e  extraordinária  sagacidade:  foi  nomeado 
ministro  dos  negócios  estrangeiros ,  posto  em  que 
se  manteve ,   desta  primeira  vez ,  até  19  de  julho 

[Continua]. 


Da  BENEFICE5CU  PCBLICA  E  DOS  àSYLOS  0E  ME5WCIDADE. 

Indigência  ,    pauperismo    e    mendicidade    são   três  ' 
grandes  symptomas  pelos  quaes  o  esladisla  observa- 1 


dor  pôde  calcular  o  gra'u  de  roiscria  a  que  se  acha 
reduzida  a  nação  que  faz  objecto  das  suas  indaga- 
ções. 5!as  acontece  que,  por  falia  de  noções  exactas, 
cscriptores  da  iirimeira  ordem  tem  confundido  umas 
com  as  outras  estas  Ires  expressões  ;  e  ,  por  conse- 
guinte ,  uns  tem  dado  sobre  os  diversos  paizes  as 
mais  falsas  informações  a  este  respeito  :  outros  tem 
aconselhado  a  adopção  de  systemas  de  l)cneficcncia 
publica,  n)ais  próprios  para  angmenlar  do  que  pa- 
ra diminuir  o  numero  dos  desgraçados. 

Cumpre  pois  fazer  notar  que  pôde  a  miséria  pu- 
blica parecer  muilo  mais  grave  era  um  paiz  do  que 
em  outro  se  se  altende  ao  numero  dos  mendigos, 
entretanto  que  parecerá  muito  menos  infeliz  se  se 
considera  relativamente  ao  pauperismo.  N'outros, 
pelo  contrario  ,  onde  o  numero  dos  mendigos  é  mui 
diminuto,  e  apenas  se  descobrem  alguns  ^estigios 
de  pauperismo  .  o  numero  e  a  qualidade  dos  indi- 
gentes nos  fazem  conhecer  que  a  miséria  tem  alli 
chegado  ao  mais  alto  grau  de  gravidade. 

O  funesto  syniptímia  do  jiaMpirismo  não  se  obsef- 
va  senão  nos  paizes  que  tem  chegado  a  um  muito 
considerável  gr.áu  de  civilisação.  .\  mendicidade  é 
pri.pria  dos  paizes  medincrcmente  ci\ilÍ5ados;  e  a 
indigência  desliliiida  d'anibos  a(|uelles  dois  modos 
de  beneficência  caraclerisa  os  estados  que  ainda  se 
acham,  como  se  costuma  dizer,  na  infância  das 
sociedades. 

Em  quanto  ,  pelo  atraso  do  eommercio  e  da  in- 
dustria .  as  riquezas  se  acham  concentradas  nas 
mãos  de  um  pequeno  numero  de  ricos-homens  ,' a 
classe  de  humens  ,  que  são  inválidos  ou  ociosos  , 
ainda  quando  seja  numerosa  ,  não  precisa  de  men- 
digar; nem  a  beneficência  é  obrigada  a  recorrer  a 
organisação  do  pauperismo  :  todos  clles  se  distri- 
buem ()elas  casas  dos  homens  abastados,  a  cuja 
sombra  vão  viíendo.  ou  antes  vegetando,  como 
plantas  parasitas  ou  como  apaniguados. 

Qu.indo  porem  na  successão  dos  tempos  ,  o  pro- 
gresso da  civilisação  tende  a  dividir  as  riquezas, 
desapparecendo  essas  famílias  de  grandes  proprie- 
tários terrítoriaes  ,  e  succedendo-lbes  lavradores 
mais  ou  menos  abastados,  fabricantes,  negociantes 
e  capitalistas  mais  ou  menos  ricos,  mas,  tanto  uns 
Como  outros,  ephemeros,  e  cujas  casas  duram  apenas 
d;ias  gerações,  diminue  o  patronato  dos  pobres,  e 
são  estes  obrigados  a  lançar-se  á  vida  de  mendi- 
gos; uns  por  inválidos, ,c  outros,  em  maior  nume- 
ro ,  por  ociosos. 

O  espectáculo  desta  miséria  ,  que  infesta  as  ruas 
c  as  rasas  ,  desperta  ,  revolta  e  ,  até  certo  ponto  , 
envergonha  a  classe  opulenta  :  e  quando  a  corru- 
pção.  que  de  ordinário  vai  progressivamente  ga- 
nhando terreno  ao  passo  que  a  civilisação  e  o  luxo  se 
desenvol\em  ,  faz  avultar  desmedidamente  o  nume- 
ro dos  mendigos,  cresce  nestes  a  desmoralisação  e  a 
audácia  ;  os  ricos  comprehendem  os  perigos  com  que 
os  ameaça  a  revoltosa  inveja  dos  pobres,  e  sentem 
a  necessidade  de  capitular  com  elles  ,  suavisando  , 
sem  a  remediar,  a  sua  indigência,  a  fim  de  os  con- 
servarem dependentes  e  submissos.  E  eis-aqui  n 
origem  do  pauperismo  ,  que  consiste  n'um  systema 
organisado  de  subsídios  fornecidos  pela  clnsse  opu- 
lenta ás  classes  indigentes,  debaixo  da  inspecção 
mais  ou  menos  directa  das  auctoridades  constituí- 
das. 

Três  symptomas  se  tem  seguido  na  organisação 
destas  instituições  de  beneficência  publica  :  umas 
vezes  Icm-se  creado  vastos  edificios  aonde  se  reco- 
lhem os  indigentes,  sem  mais  distiacção  que  a  dos 


336 


O   PAIVORA3IA. 


sexos;  e  sem  se  Ibes  impor  obrigação  de  trabalho: 
ealras  Tezes,  dislinguindo-se  ,  alem  dos  sexos  e 
das  idades,  a  capacidade  de  trabalhar,  icm-se  crea- 
do  hospícios  para  inválidos  e  casas  de  trabalho  pa- 
ra todos  os  mais  indigentes  ;  outras  vezes  .  emfim  , 
tem-se  preferido  distribuir  trabalhos  safficientemen- 
te  remunerados  aos  indigentes  válidos ,  e  soccorros 
gratuitos  aos  inválidos,  mas  tanto  uns  como  outros 
eoi  suas  casas. 

A  primeira  destas  três  sortes  d'instituições ,  es- 
ses asvjos  de  mendicidade ,  são  outros  tantos  focos 
de  imraoralidade  e  dissolução,  como  asylos  que  são 
da  preguiça  e  da  ociosidade. 

A  pratica  de  distribuir  tanto  os  trabalhos,  como 
os  subsídios  gratuitos  por  casa ,  seria  preferivel  a 
qualquer  outro  syslema  ,  se  se  não  tornasse  impra- 
ticável pelo  complicado  detalhe  da  administração  : 
lauto  mais  impossível  de  sustentar  quanto  fôr  mais 
rápido  o  progresso  da  indigência  :  pois  seja  qual 
íór  o  methodo  de  beneCcencia  que  se  adopte,  o  seu 
inevitável  effeito  é  de  augmentar  o  numero  dos  po- 
bres e  aggravar  os  males  da  indigência. 

Não  resta  pois  outra  opção,  e  é  forçoso  dar  a  pre- 
ferencia ao  segundo  syslema  creando  hospícios  pa- 
ra os  indigentes  absolutamente  inválidos ;  e  casas 
de  trabalho  para  aquelles  que  conservarem  ainda 
a  faculdade  de  grangearem  pelo  seu  trabalho  os 
meios  da  sua  subsistência  ou  ,  pelo  menos  ,  parte 
delles. 

Cumpre  porem  advertir  que  a  reunião  dos  indi- 
gentes nestas  casas  de  trabalho  está  sujeita  a  mui- 
tos e  mui  graves  inconvenientes ;  de  que  só  apon- 
taremos os  Ires  princípaes ,  não  nos  permiltindo  a 
estreiteza  deste  artigo  sermos  mais  extensos. 

O  homem,  postoque  naturalmente  sociável,  é  do- 
tado de  muitas  outras  paixões  diversas ,  de  que  re- 
sulta o  que  se  costuma  chamar  sympathias ,  e  anti- 
pathias,  compatibilidade  ou  incompatibilidade  de 
génios,  usos,  costumes,  princípios  moracs  e  reli- 
giosos entre  si  repugnantes ;  e  emfim  hábitos  c  mo- 
dos de  viver  inteiramente  disparatados  e  inconci- 
liáveis. Já  se  vê  pois  quão  grandes  e  inevitáveis 
desordens  são  de  recear  destas  forçosas  reuniões. 

O  segando  inconveniente  consiste  na  impossibili- 
dade de  reunir ,  sem  oífensa  da  moral  publica  ,  um 
certo  numero  de  famílias  no  mesmo  ediíicio  ou 
qualquer  outro  restricto  recinto.  Por  conseguinte , 
devendo  estes  estabelecimentos  conter  unicamente 
pessoas  solteiras  ou  viuvas,  quer  de  um,  quer  de 
outro  sexo ,  vem  a  ser  um  grande  obstáculo  ao  es- 
pirito de  família,  sem  o  qual  é  impossível  conce- 
ber uma  sociedade  regular. 

O  terceiro  inconveniente  das  casas  de  trabalho  é 
a  funesta  inOucncia  que  ellas  exercem  sobre  os 
preços  do  mercado  ,  assim  como  sobre  as  qualida- 
des dos  produttOB :  sabemos  que  os  regulamentos 
daqucllas  casas  podem  diminuir  ,  até  certo  ponto  , 
estes  dois  graves  inconvenientes ,  mas  não  os  po- 
dem extirpar,  nem  mesmo  reduzir  a  uma  dimensão 
que  o  seu  effeito  se  possa  reputar  indiflerente  para 
a  industria. 

Ponderados  x>ois  todos  estes  inconvenientes  dos 
diversos  systemas  de  beneficência  publica ;  parece- 
Dos  que  a  organisacão  do  trabalho  pela  maneira 
que  havemos  expendido  no  nosso  projecto  d'asso- 
ciação  das  classes  industriosas ,  ou  por  outro  mais 
bem  concertado  ,  seria  o  único  meio  de  suspender 
a  torrente  que  ameaça  a  agricultura  e  a  industria 
de  uma  prompta  e  total  ruína. 

Silvetlre  Pinheiro  Ferreira. 


TCMILO  PABA  Mb.   de   CHATEáUBBUKD. 

o  GEMO  inspirado,  que  elevou  ao  cbristianísmo  um 
dos  maiores  monumentos  intellectuaes ,  que  desta 
religião  tem  surgido  —  o  cantor  dos  martyres  —  o 
historiador  estudioso  e  profundo,  já  tem  preparado, 
na  terra  onde  nasceu  ,  um  asylo  para  os  seus  últi- 
mos restos.  Os  ossos  venerandos  de  Mr.  de  Cha- 
leaubriand  repousarão  no  cimo  de  uma  rocha  ,  á 
beira  do  mar,  e  á  sombra  da  cruz.  O  illustre  poe- 
ta toda  a  sua  vida  desejou  que  a  sua  sepultura  fos- 
se em  Saint-Maló,  cidade  onde  nasceu  aos  4  de  no- 
vembro do  anno  do  Senhor  de  1768.  Em  1828  com- 
rauDÍcou  este  seu  deseja  ao  curadlto  municipal  de 
Saint-Maló,  o  qual,  respondendo  a  um  pedido  que 
tanto  o  lisongeava  e  enobrecia  ,  se  oíTcreceu  para 
construir  o  tumulo  á  custa  da  municipalidade.  Es- 
te offereciraenlo ,  ainda  que  muito  honra  os  mem- 
bros do  comellio  munidjtal ,  dá  a  conhecer  que  el- 
les  não  comprehenderam  a  intenção  do  poeta  reli- 
gioso ,  a  qual  toda  se  revela  na  resposta  que  rece- 
beram de  Mr.  de  Chateaubriand  ,  e  é  a  seguinte : 
—  cEu  nunca  pertcndi ,  nem  ousaria  nunca  espe- 
rar, que  os  meus  concidadãos  se  encarregassem  das 
despezas  do  meu  tumulo.  Eu  só  pedia  que  me  ven- 
dessem uma  porção  de  terreno  no  lado  occidenlal 
da  Ilhota  de  Grand-Iiay ,  que  tivesse  20  pés  de 
comprimento  e  12  de  largura  ,  para  eu  mandar  cer- 
car de  ura  muro  rente  do  chão  ,  no  qual  assentaria 
uma  grade  de  pouca  altura  ,  e  que  serviria  de  res- 
guardar as  minhas  cinzas ,  mas  que  de  modo  ne- 
nhum podesse  ser  considerado  como  ornato..  Dentro 
do  espaço  guarnecido  por  esta  gradaria  devia  ser 
collocado  um  pedestal  de  granito  dos  rochedos  que 
cercam  a  praia ,  e  nesle  pedestal  se  havia  de  cra- 
var uma  cruz  de  ferro  sem  inscripção ,  nome ,  nem 
data.  A  cruz  diria  que  o  homem  que  jazia  aos  seus 
pés  era  um  chrislão  ,  e  l.into  bastaria  á  memoria 
desse  homem. «  Todos  estes  desejos  de  Mr.  de  Cha- 
teaubriand foram  realisados  ;  e  o  promontório  açou- 
tado pelas  ondas ,  e  que  tem  o  aspecto  de  um  tu- 
mulo ,  está  para  sempre  ligado  á  historia  maravi- 
lhosa do  espírito  humano.  —  Entre  as  forliCcações 
com  que  em  1G.52  o  guarneceram  ,  quando  a  Fran- 
ça temia  o  poder  de  Cromwel ,  vê-se  o  monumento 
simples  e  chrislão  ,  que  lerá  de  levar  á  posteridade 
a  memoria  do  novo  apostolo  do  cbrislianismo.  Não 
é  esta  a  primeira  vez  que  a  cruz  coroa  estes  ro- 
chedos ,  e  antes  de  1652  se  alevantava  sobre  uma 
ermida  de  S.  Oven ,  que  oulr'ora  fora  construída 
sob  a  invocação  de  St.'  Maria  do  Loureiro  —  hoje 
o  pensamento  sublime  de  um  grande  homem  a  er- 
gueu de  novo  nesse  pedregoso  pedestal ,  donde  a 
arrancaram  as  exigências  da  guerra.  Permitia  Deus 
que  Mr.  de  Chateaubriand  continue  por  muitos  an- 
nos  a  ver  o  seu  tumulo  ,  e  ainda  muitas  vezes  pos- 
sa ir  orar  ante  a  cruz  que  lembrará  aos  vindouros 
o  jazigo  do  seu  cadáver  !  — S.  J.  Ilibeiru  de  Sá. 


Pensamenio  de  Frederiro  2."  rei  da  Prusría.  —  O 
homem  ,  a  quem  se  não  mcller  em  cabeça  que  do 
céu  cahíu  na  terra  ,  para  quem  não  data  o  mundo 
tão  somente  do  dia  em  que  nasceu,  deve  ler  curio- 
sidade de  saber  o  que  tem  succedido  em  lodos  os 
tempos  e  povos.  .Se  por  indifTcrença  não  tomar  calor 
a  respeito  de  muitas  nações  grandes,  que  foram  al- 
vo da  sorte  ,  ínteressar-se-ha  ao  menos  no  que  toca 
ao  Estado  cm  que  habita ,  e  verá  com  prazer  as 
acções  de  seus  antepassados. 


% 


o  PA>'OR.lAIA. 


337 


MAHOKET  O  GCEHHEIRO. 


Peia  espontânea  abdicação  de  Amiirath  2.',  era 
1444,  foi  proclamado  imperador  dos  oUomanos  seu 
lilho  Mahomet  2.":  amotinados  porem  os  jaiiizaros  , 
que  mostraTam  corao  iiiconvenioiite  para  a  gover- 
nança a  idade  juvenil  do  príncipe,  viu-se  Amnralh 
obrigado  a  tomar  de  novo  o  regimen  do  estado  até 
a  sua  morte,  que  aconteceu  nos  princípios  de  1451; 
em  que  Mahomet  ,  contando  úi  annos  .  começou  a 
reinar  sem  contradicção.  Quebrou  este  as  tréguas 
que  estavam  pactuadas  com  o  imperador  bysantino, 
mandando  construir  uma  fortaleza  ua  margem  eu- 
ropea  do  Bosphoro  ,  fronteira  á  de  Auatoli-hissar  , 
que  seu  predecessor  Bajazeth  fizera  levatitar  ua 
costa  asiática  daquelle  estreito;  deste  modo  ficou 
dominador  absoluto  do  Bosphoro.  Queixou-se  de 
tal  facto  Constantino  Paleologo  .  imperador  de  By- 
sancio,  porem  Mahomet  respondeu-lhe  com  despre- 
zo ,  e  tratou  de  sujeitar  as  cidades  gregas  da  Pro- 
pontide  e  do  Euxino.  assolou  a  Thracia,  e  invadiu 
a  Morea.  A  línal .  lendo  reunido  um  exercito  ex- 
cessivamente numeroso  ,  que  alguns  asseveram  pns- 

OcTiBRO  2S— ISio. 


s.ir  de  trerenlos  mil  homens  .  com  formidável  arti- 
liiaria.  e  uma  frota  de  tiO  velas,  pòz  cerco  a  Cons- 
lantiuopola  em  abril  de  14o3  ;  durou  o  sitio  54 
dias,  e  a  cidade  foi  levada  d'assalto  poios  ottoma- 
nos  aos  '29  de  maio.  Constantino  morreu  valorosa- 
mente pelejando  na  brecha.  Houve  três  dias  de  sa- 
que e  matança  :  depois  Mahomet  restaurou  a  or- 
dem, soltou  muitos  prisioneiros,  concedeu  aos  con- 
quistados o  livre  exercício  de  sua  religião  doando- 
Ihes  para  esse  fim  amelade  das  igrejas  existentes ; 
as  mais  .  e  entre  ellas  a  principal  .  St.'  Sophia  .  fo- 
ram transformadas  em  mesquitas.  Mahomet  residiu 
perlo  de  Ires  annos  em  Conslantinopola  ,  e  no  bm 
deste  tempo  rccolheu-se  triumphanle  a  .\.driauopoli. 
ijue  era  a  corte  dos  sultões  otlomanos.  —  Em  i-»ob, 
invadida  a  Servia,  cercou  Belgrado;  mas  oppòi- 
se-lhe  e  o  desbaratou  João  Hunnyades.  nobre  hun- 
saro  .  regente  do  reino  na  ausência  do  rei  Ladis- 
I:iu  :  foi  o  primeiro  rever  que  as  armas  uialunneta- 
nas  solTreram  no  seu  progresso  pola  Europa  :  simul- 
taneamente seus  seneraes  furam  derrotados  nas  serra* 
2.'  Skkie.  —  Voi.  U. 


338 


O   PAINORAMA. 


da  Albânia  pelo  famoso  Scanderberg  :  todavia  os 
turcos  tomaram  Corinlho  e  a  Morea  ,  e  em  1461 
Trebizonda  ,  acabando  com  a  dynastia  dos  Comne- 
nos  ;  no  anno  immediato  Lesbos  e  outras  ilhas  do 
Archipelago  cahiram  cm  seu  poder.  Em  1462  con- 
quistaram a  Dosnia  ;  e  Mahomet  mandou  matar  o 
princi|)c  havendo-lhe  alliançado  falsarianiente  toda 
a  segurança.  O  orgulhoso  e  valente  sullão  viu  no- 
vamente anniquiladas  as  suas  tropas  em  batalha 
campal  ,  dada  por  Scanderberg  á  vista  das  mura- 
lhas de  Croia  :  comtudo  o  aguerrido  alhanez  per- 
deu pouco  a  pouco  as  planicies ,  c  recolhido  ao 
abrigo  das  montanhas,  bem  defendidas  pela  sua  pe- 
rícia 6  por  animosos  soldados  ,  morreu  antes  d'en- 
celnr  nova  campanha,  deixando  seu  filho  menor, 
João  Castrioto  ,  sob  a  tutella  do  senado  veneziano. 
A  illustre  senhoria  [como  era  costume  intitular  a 
poderosa  dominadora  do  Adriático]  mandou  pelos 
seus  accometter  e  espoliar  as  costas  de  Thracia  e 
da  Ásia  Menor,  e  varias  ilhas  do  Archipelago;  fi- 
zera sua  praça  forte  em  Negroponto,  no  mar  Egeu, 
mas  ahi  a  foi  combater  o  audaz  e  inquieto  .Maho- 
jnel ,  correndo  o  anno  de  1470;  o  governador  de- 
pois de  briosa  resistência  chegou  ao  apuro  de  ca- 
pitular e  entregar-se  á  fé  do  vencedor,  que  pro- 
metlcra  conservar-lhe  a  cabeça  :  Mahomet ,  infiel  e 
bárbaro  como  tantas  vezes  ,  mandou  que  fosse  sei-- 
rado  ao  meio  do  corpo.  —  Os  venezianos  por  medi- 
diação  de  seus  agentes  conimerciaes  incitaram  con- 
tra o  soberbo  turco  o  monarcha  da  Pérsia  ,  que  in- 
vadiu a  Ásia  Menor  em  1472.  Mahomet  correu  ao 
encontro  do  novo  inimigo,  e  na  batalha  de  Trebi- 
zonda o  pòz  em  fuga  ,  perseguindo-o  tenazmente  na 
retirada  e  expulsando-o  para  alem  do  Euphratos. — 
Em  147o  occupou  a  Crimea ,  que  fez  tributaria. 
Uahi  a  Ires  annos  enlrou  com  m<ão  armada  pela 
Dalmácia,  e  progredindo  peloFrioul  obrigou  os  ve- 
nezianos a  pedir  paz,  que  se  ajustou  em  janeiro 
de  1479  ,  e  pela  qual  cederam  elles ,  alem  de  Scu- 
tari ,  muitas  fortalezas  da  lllyria  ,  Albânia  e  Morea. 
Em  1480  desembarcaram  turcos  em  Otranto  e  met- 
teram  susto  a  toda  a  Itália  :  não  tiveram  ulteriores 
vantagens:  nesse  anno  os  mesmos  atlac.iram  também 
a  ilha  delihiidcs,  resisliram-lhc  porem  com  esforço 
c  felicidade  os  cavalleiros  de  Malta,  c  foi  este  me- 
inorando  cerco  assaz  glorioso  para  aquella  ordem 
illustre;  era  grão-inestre  Pedro  d'Aubusson.  Gran- 
demente irado  (içou  Mahomet  com  as  novas  deste 
desbarate;  e  tratando  de  ajuntar  gente,  navios,  e 
munições  para  cm  pessoa  capitanear  a  segunda  ten- 
tativa ,  saltcou-o  a  morte  em  Teggiar  na  Bythinia 
DO  mez  de  maio  de  1481.  Trasladaram-lhe  os  os- 
sos para  Constanlinopola  ,  e  pozcram-lhe  no  monu- 
mento epitaphio  pomposo  ,  em  que  é  digna  de  nota 
a  seguinte  phrase.  —  «Intentava  conquistar  lUiodes 
e  subjugar  a  valente  Itália. 

Foi  conquistador  bem  succedido  no  maior  nu- 
mero de  suas  eniprezas ;  cruel  como  quasi  todos  os 
guerreiros oltomauos  ;  mas  não  era  illiteralo  e  rude. 
como  pensam  muitos.  Conhecia  diversos  idiomas  , 
entre  elles  faltava  corrente  o  persa,  o  árabe,  e  o 
grego  commum  ;  era  dado  á  poesia  oriental ;  e  so- 
bresahia  no  estylo  epistolar:  muitas  de  suas  cartas 
foram  tradiizidas  em  latim  e  publicadas  por  Landi- 
ni  ,  em  Leão  ,  la'20.  Entre  os  turcos  ó  cognomina- 
do Mahomet  o  Magno  ,  o  conquistador.  Quem  pro- 
curar mais  noticias  a  respeito  de  sua  vida  e  feitos, 
tão  ligados  com  os  principaes  succcssos  do  seu  tem- 
po, hade  acha-las  na  Historia  dos  turcos  de  Know- 
Ics ,  e  na  Historia  do  impcrio  oltomano  de  Mignol. 


Apontamentos  para  a  Historia  dos  bens  da  coroa 
e  dos  fobaes. 


I. 


Ha  dois  annos  que  no  5.°  volume  do  Panorama  ap- 
pareceram  três  artigos  sobre  a  historia  dos  foraes 
em  Portugal  :  parecerá  pois  escusada  a  associação 
que,  segundo  a  epigraphe  que  acima  escrevemos, 
vamos  fazer  no  presente  trabalho  ,  destas  duas  es- 
pécies históricas  ,  com  o  fim  de  darmos  aos  leitores 
algumas  idéas  mais  averiguadas  sobre  matéria  que 
as  circumstancias  actuaes  toruam  do  maior  interes- 
se para  uma  grandissima  parte  dos  nossos  concida- 
dãos. Por  duas  rasõcs  ,  todavia,  ligámos  essas  en- 
tidades :  primeira,  porque  o  intento  com  que  re- 
digimos os  presentes  artigos  não  nos  consente  o  se- 
para-las :  segunda,  porque  o  que  neste  jornal  se 
escreveu  ha  dois  annos  c  até  certo  ponto  inexacto  ; 
inexacto  não  lauto  na  veracidade  dos  factos  como 
na  sua  apreciação  ,  ou  valor  histórico.  Ycse  que  o 
illustrado  redactor  daquelle  escriplo  seguiu  princi- 
palmente as  doutrinas  do  allemão  .Schéller  ,  auclor 
^ia  recenlissima  Historia  de  Portugal.  Era  o  gula 
mais  seguro  que  podia  .escolher  ;  mas  Schéffer  ap- 
plicou  o  seu  grande  engenho  histórico  aos  mate- 
riaes  que  lhes  oITereciam  os  nossos  melhores  livros, 
e  sobre  este  objecto  ,  força  é  dize-lo  ,  o  melhor  que 
possuímos  ainda  não  é  o  bom.  Assim  o  estrangeiro 
errou  porque  os  naturacs,  a  quem  o  achar  a  verda- 
de era  mais  fácil,  erraram  primeiro;  eclle  não  po- 
dia recorrer  á  principal  e  quasi  única  fonte  legiti- 
ma da  historia  —  os  archivos  do  paiz.  Ainda  ,  por- 
tanto ,  que  não  nos  fosse  necessário  para  o  objecto 
que  levámos  em  mira  o  tocar  de  novo  na  matéria 
dos  foraes,  o  fazc-lo  não  fora  inútil,  ao  menos  como 
rectificação  ao  que  naquelle  anterior  escripto  nos 
parece  menos  bem  avaliado. 

Dissemos  —  o  objecto  que  levámos  cm  mira:  —  de 
feito  ha  no  presente  trabalho  uma  intenção  grave. 
Os  acontecimentos  políticos  de  Portugal  trouxeram 
a  celebre  lei  chamada,  impropriamente  talvez  ,  dos 
foraes.  Esta  lei  alevantou  interesses  contra  interes- 
ses :  citámos  um  facto,  não  o  avaliámos,  porque 
nos  queremos  e  havemos  de  conservar  dentro  dos 
limites  deste  jornal  —  a  stricta  abnegação  de  poli- 
tica. A  lucta  de  interesses  produziu  as  disputas; 
mas  versando  estas  sobre  matéria  imperfcilamcnte 
conhecida  ,  as  opiniões  acerca  delia  tem  sido  exag- 
geradas  e  muitas  vezes  falsíssimas  em  todos  os  sen- 
tidos :  em  conversações  e  ,  o  que  mais  é  ,  na  im- 
prensa temos  ouvido  c  lido  as  cousas  mais  absurdas 
a  este  respeito  ;  e  havemo-nos  con\eiu'ido  de  que 
bem  poucos  vcem  a  que.-lão  á  sua  verdadeira  luz. 
É  por  isso  que  entendemos  seria  um  bom  serviço 
ao  paiz  recordar-lhe  essa  parte  da  nossa  historia 
económica,  deixando  aos  outros  tirar  as  illações  do 
passado  para  o  presente  e  futuro  ;  mas  tira-las  de 
premissas  verdadeiras,  e  não  deduzi-las  de  supposi- 
çòes  gratuitas  que  nunca  existiram  ,  ou  existiram 
de  um  modo  mui  diverso  daquelle  que  geralmente 
se  crê. 

Se  as  paixiícs  politicas  ,  ou  mal  entendidos  inte- 
resses fizerem  com  que  saiam  baldadas  as  nossas 
diligencias  para  generalisar  alguma  luz  sobre  uma 
questão  que  importa  á  justiça  ,  á  moral  ,  e  ainda  á 
utilidade  do  paiz,  fique  o  que  vamos  escrever  ao 
menos  como  incentivo  (lara  a  curiosidade  daquelles 
a  quem  resla  o  amor  das  velhas  cousas  da  pátria, 
amor  cuja  falta  é  indicio  certo  da  morte  da  nacio- 


o    PA]>ORAI>lA. 


339 


Dalidade  ,   e  por  consequência   do  estado  decadente 
e  da  ultima  mina  de  qualquer  puvo. 


A  monarchia  portngueza  nasceu  como  toil.is  as 
outras  do  sul  da  Europa  no  meio  das  luctas  da  ida- 
de-media  ,  posloque  em  epocha  mais  recente  que  o 
comnium  delias:  tronco  separado  da  sociedade  lics- 
panhola.  os  factos  qne  inlluiram  na  organisação  dos 
ditTerentes  estados  que  no  correr  dos  séculos  vie- 
ram a  Constituir  esta  ,  inQuirara  também  mais  ou 
menos  na  sua  organisação.  Assim  os  phenomenos  pe- 
culiares, que  distinguem  a  iodole  dos  demais  esta- 
dos da  Península  na  sua  infância,  distinguem  igual- 
mente o  nosso  Portugal.  Cumpre  examinar  destes 
os  que  actuaram  na  queslfio  de  que  nos  occupàmos 
para  podermos  entrar  nella  com  clareza  assentando 
os  seus  fundamentos  solides.  O  estado  da  proprie- 
dade é  o  mais  importante  ,  o»  antes  o  que  resume 
todos. 

Bem  curto  período  linha  decorrido  desde  que  o 
território  portuguez  se  libertara  do  dominio  árabe, 
quando  nasceu  a  nossa  monarchia  ;  os  reis  chris- 
tãos ,  successores  de  Pelaio  ,  tinham  gradualmente 
reconquistado  para  a  Europa  e  para  o  Evangelho 
uma  parte  delle  :  o  conde  Henrique  havia  prose- 
guido  na  mesma  empreza  com  feliz  successo ,  ao 
passo  que  lançava  os  alicerces  de  um  estado  inde- 
pendente: seu  filho  continuou  a  obra  dos  reis  de 
Leão  e  do  valoroso  conde  ,  econjunctamcnte  esta- 
beleceu essa  independência ,  que  no  governo  de 
Henrique  fora  apenas  uma  tentativa  :  passado  Um 
século  Portugal  tinha  alcançado  quasi  sem  dífleren- 
ça  alguma  os  limites  aciuaes.  O  meio  por  que  se 
chegou  a  este  resultado  foi  unicamente  um  —  a 
conquista  —  ou  por  outra,  a  substituição  do  do- 
minio christão  ao  dominio  musulmano. 

J!as  isto  aconteceu  n'uma  epocha  em  que  a  con- 
quista não  importava  a  mesma  idéa  que  signiíicára 
sete  ou  oito  séculos  antes,  qu.indo  as  raças  do  nor- 
te ,  invadindo  o  império  romano  ,  repartiam  entre 
si  nos  campos  de  batalha  os  membros  despedaça- 
dos daquellc  desmesurado  colosso.  Então  a  Iribu 
selvagem  da  Germânia  ou  da  Scandinavia  vinha  ap- 
possar-se  dos  campos  das  províncias  romanas :  o 
caracter  da  conquista  feita  pelos  homens  do  norte 
era  a  occupacão  da  propriedade  iudi\idual  dos  ven- 
cidos pelos  vencedores,  ou  ao  menos  a  divisão  del- 
ia. Os  bárbaros  não  se  contentavam  de  direitos  fis- 
caes  na  terra  :  queriam  a  posse  delia.  Foi  deste 
modo  que  os  burguodios  nas  Gallias,  e  os  visigodos 
na  Septimania  e  na  Hespanha  tomaram  para  si  dois 
terços  de  cada  propriedade  ,  os  herulos  na  Itália 
ura  terço  ,  e  assim  por  diante.  Os  árabes ,  porem  , 
vè-se  claramente  haverem  seguido  um  systema  di- 
verso; porque  eram  gentes  mais  ou  menos  civilisa- 
das ,  e  comprehendiam  como  uma  nação  pôde  sub- 
jugar e  encorporar  em  si  outra  sem  expropriar  o 
dominio  individual  da  (erra.  Aos  godo-romanos  que 
sujeitavam  á  ponta  da  lança  impunham  o  tributo 
de  ura  quinto  sobre  o  rendimento  da  terra,  aos 
que  se  lhes  submettiam  voluntariamente  impunham 
um  decimo;  a  isto  se  ajuntavam  alguns  outros  tri- 
butos como  certas  porções  de  fruclos  ,  medidas  de 
vinagre  ,  de  azeite  ,  &c.  mas  aquellas  eram  as  con- 
tribuições caracleristicas  do  fado  da  conquista.  De 
resto  os  vencedores  deixando  os  vencidos  na  mes- 
ma situação  em  que  os  tinham  encontrado  ,  respei- 
taram a  um  tempo  a  sua  crença ,   a  sua  proprieda- 


de .  e  o  que  mais  é ,  a  essência  e  a  forma  das  suas 
instituições  civis. 

Os  árabes  traziam  tamhem  ,  como  as  nações  sc- 
ptentrionaes  ,  no\os  povoadores  p.ira  as  provindas 
('oiii|uistadas  :  mas  as  famílias  africanas  não  \iuliam 
tomar  para  si  uma  parte  do  campo  ou  da  granja  cul- 
tivada pelo  godo-romano  :  nisto  eslava  a  dilTerença 
da  conquista  árabe.  Kcpartiam-se-lhes  as  terras  cu- 
jos donos  tinham  [lerecido  n'uma  lucta  longa  e  san- 
guinolenta ,  ou  se  haviam  acolhido  ás  serranias  das 
Astúrias;  povoavam-se  logarcs  ermos;  fumlavain-se 
novas  povoações,  e  o  agricultor  árabe  brevemente 
converiia  os  maninhos  dos  arredores  cm  prados, 
ferregiaes  e  vergéis: — assim  o  lavrador  e  proprie- 
tário christão,  em  vez  de  ser  espoliado,  recebia  en- 
sino do  seu  visinho  agareno  mais  instruído  c  in- 
dustrioso qi:e  elle.  As  rapinas  ,  oppressões  e  vio- 
lências praticadas  pelas  auctoridades  ou  pelos  par- 
ticulares eram  o  resultado  das  continuas  guerras  e 
dissensões  entre  os  próprios  conquistadores,  não  da 
falta  das  garantias  legaes  da  propriedade. 

Por  grosseiros  e  rudes  que  fossem  os  restaurado- 
res do  [)redominio  christão  na  Península;  por  atro- 
zes que  fossem  as  represálias  exercitadas  por  clles 
contra  os  mouros  ;  uma  grande  multidão  de  docu- 
mentos dessa  epocha  nos  prova  que  em  geral  a  pro- 
priedade dos  colonos  africanos,  árabes,  palestinos, 
egypcios  ,  que  tinham  vindo  estabeleccr-se  na  Pe- 
nínsula ,  foi  no  essencial  respeitada,  postoque  op- 
primida  pela  variedade  dos  impostos  feudaes  ,  que 
não  eram  também  muito  suaves  para  os  proprietá- 
rios christãos.  Como  succedcra  no  tempo  da  entra- 
da dos  árabes  ,  na  restauração  os  combates  ,  as  re- 
voltas ,  e  todos  os  actos  de  resistência  á  nova  or- 
dem de  cousas, — ou  os  crimes  políticos  [os  cri- 
mes políticos  são  mui  velhos],  restituíram  por  meio 
do  fisco  uma  grande  porção  do  solo  aos  netos  da- 
qucllcs  que  o  haviam  perdido.  È  este  o  facto  que 
importa  muito  para  a  historia  do  património  publi- 
co ,  ou  bens  de  coroa  ,  e  até  certo  ponto  para  a 
historia  da  origem  de  grande  parte  dos  municípios, 
e  das  suas  cartas  de  comuna  ou  ,  foraes. 

Portugal  constituiu-se  em  um  território  onde  es- 
ses factos  de  successivas  conquistas  se  haviam  con- 
sumado: apenas  uma  parle  do  sul  do  reino  foi  su- 
btrahida  ao  império  dos  rausulmanos  depois  do  nos- 
so primeiro  rei:  nos  fins  do  século  13."  a  restau- 
ração chrístaã  estava  completa  ,  sem  que  j.ímais 
houvesse  perdido  inteiramente  o  seu  espirito  de 
respeito  á  propriedade  individual.  Os  que  disseram 
que  todo  o  dominio  da  terra  nascera  entre  nós  da 
conquista  ,  parece  terem  ignorado  ou  esquecido  os 
successos  que  precederam  e  acompanharam  esse  fa- 
cto ,  e  o  modo  por  que ,  atravcz  de  todas  as  inva- 
sões desde  as  dos  bárbaros,  uma  notável  porção  do 
território  pertenceu  sempre  ao  domínio  pleno  de 
particulares,  ou,  para  nos  servirmos  d'uma  expres- 
são tomada  dos  paizes  de  feudalismo,  foi  sempre 
allodíal. 

De  feito  nesses  primeiros  tempos  da  monarchia 
havia  em  Portugal  três  espécies  de  proprietários  de 
terras  anteriores  a  ella  :  os  musarabes  ,  ou  descen- 
dentes dos  antigos  godos  ,  que  se  haviam  sujeitado 
aos  árabes,  os  netos  dos  colonos  africanos  e  asiáticos, 
e  os  filhos  e  sucessores  dos  vassallos  dos  reis  d'0- 
viedo  e  Leão  que  por  compras,  escambos,  doa- 
ções, arroteamentos,  cartas  de  povoação,  ou  outro 
qualquer  título  ,  e  principalmente  como  conquista- 
dores as  tinham  obtido  ,  cora  domínio  pleno  ,  sem 
caracter  nenhum  de  beneficio  nem  de  feudo.  Os  nos- 


340 


O   PANORAMA. 


íos  primeiros  reis  deviam  respeitar  a  cxisletieia  des- 
tas diversas  propriciiadcs  ;  e  inniiiiieravcis  exem- 
plos de  cunlratos  eelei)rado5  soljrc  lai  género  de 
iens  provam  evidenlemenie  que  assim  o  (iralica- 
ram  ,  sendo  o  que  se  possa  eilar  em  ('(jntrario  api'- 
nas  excepções  e  violências  nascidas  da  barbaridade 
c  incerleza  dos  tempos. 

Que  restava,  pois,  para  consliliiir  a  propriedade 
da  coroa  ou,  com  mais  rigorosa  expressão,  os  bens 
do  estado?  Exaclamenle  as  terras  que  se  achavam 
li'uma  situação  análoga  á  daquellas  que  os  arahes 
aproveitavam  para  estabelecer  Cíjlonias  dos  seus 
correligionários  ;  isto  c,  as  dos  mouros,  agora  ven- 
cidos ,  que  os  combates  coiilinuos,  e  a  des|)nvoa- 
ção  ,  resultado  de  guerras  d'exlcrniinio  ,  devia  dei- 
xar sem  donos  ;  alem  destas  as  terras  liscaes  dos 
íarracciíos  onde  existissem  ;  as  que  por  crimes  ou 
por  outro  qnalqucr  molivi>  análogo  podiam  perder 
para  o  fisco  os  particulares;  c  ultimamente  as  que 
fazia  cahir  no  domínio  do  estado  o  direito  de  ma- 
ninhadogo  ,  ou  maneria. 

O  maninhadegú  ou  maneria  era  o  direito  pelo 
qual  a  coroa  nas  terras  que  não  pertenciam  a  se- 
nhorio particular  herdava  os  bens  dos  villões  [vila- 
ni]  qne  morriam  sem  fillKiS.  Este  direito,  que  bem 
tarde  se  extinguiu  inlciramcntc,  fui  confundido  pe- 
los nossos  esfriplores  como  de  menos  munia  com 
•outros  vexames  que  opprimiam  nessa  epocha  o  ter- 
ceiro estado  ou  o  povo.  Todavia  ellc  teve  furçosa- 
mcnte  consequências  suciaes  muito  mais  graves  que 
outros,  que  mereceram  a  especial  attenção  dos  an- 
tiquários, pouco  felizes  geralmente  em  assignalar 
a  verdadeira  relação  c  influencia  de  cada  institui- 
ção ,  costume  ,  ou  lei  no  modo  d'c.\istir  do  corpo 
politico.  N'uma  epocha  cm  que  o  exercício  da  guer- 
ra era  a  primeira  occupação  dos  homens,  as  bata- 
lhas, as  invasões  ,  as  correrias  diárias,  os  recon- 
tros mais  m(jrliferos  que  hoje  pela  maior  frequên- 
cia dos  combales  corpo  a  corpo  ,  a  vida  dos  capli- 
Tos  meiKJS  respeitada  ,  as  escaladas  das  povoações 
mais  sanguínidentas  pela  ferocidade  dos  cuslunies  , 
aligmenlada  pelos  ódios  religiosos  ;  Iodas  essas  cou- 
sas deviam  trazer  a  morte  de  grande  numero  de 
mancebos  antes  de  terem  successores  ,  ou  deixando 
sem  clles  seus  pais,  e  alem  disso  causar  a  anniquí- 
lação  completa  de  famílias  inteiras  ;  a  isto  acces- 
centem-se  as  epidemias  e  contágios  ,  e  imagine-se 
quantas  propriedades  territoriaes  deviam  vir  ao  do- 
mínio da  coroa  pela  maneria  ;  por  esse  direito  que 
ia,  não  tomar  em  parte  o  producto  do  trabalho, 
pelos  impostos  ,  mas  absorver  os  bens  de  raiz  no 
momento  da  transmissão.  A  exempção  do  manínha- 
dego  não  é  um  dos  privilégios  mais  Iriviacs  nas 
cartas  de  povoação  ou  foraes  ,  e  sendo  tal  direito 
cxtincto  de  todo  só  no  reinado  de  D.  Pedro  1.°  ne- 
cessariamente serviu  muito  para  augmentar  o  pa- 
trimónio da  nação. 

O  cumulo  formado  por  todos  estes  elementos  di- 
versos constituía  ,  por  assim  dizer  ,  a  i)artc  fixa  dos 
haveres  do  estado  :  os  tributos  dos  municípios  cons- 
tituíam o  seu  rendimento  incerto  quasi  com  os  mes- 
mos caracteres  das  contribuições  modernas  ,  salvo 
o  serem  não  gcracs,  mas  locaes.  As  terras  da  coroa 
produziam  para  a  fazenda  publica  como  outra  qual- 
quer propriedade  particular  para  seu  dono,  ao  pas- 
io  que  a  renda  dos  tributos  impostos  por  foral , 
consistindo  não  só  nas  penas  dos  crimes ,  quasi 
sempre  pecuniárias  ainda  nos  mais  graves,  mas 
também  nos  direitos  tirados  princípalnjente  do  com- 
mcrcio  interno  c  da  industria  na  mais  kla  signifi- 


cação desta  palavra,  dependia  da  maior  ou  menor 
extensão  da  criminalidade  cm  que  deviam  influir 
poderiisamente  mil  (ausas  moraes;  —  do  movimen- 
to coinmercial  —  e  finalmente  das  variações  das  di- 
versas industrias,  a  mais  fixa  das  quaes  era  a  agrí- 
cola. .'Vssim  nos  primeiros  tempos  da  monarcbía  o 
estado  subsistia  como  um  proprietário ,  ou  como 
uma  família  particular  pelas  rendas  dos  seus  bens, 
e  ao  mesmo  tempo  como  uma  asssciação  pelas  con- 
tribuições dos  seus  membros,  sendo  para  este  fim 
consiilerados  só  como  laes  os  cidadãos,  ou  visinhos 
dos  muniiípíos  ou  concelhos. 

Uma  das  ciriumstancias  que  nunca  deve  csque- 
cer-nos,  sequizcrmos  desapaixonadamente  avaliar  a 
(]uestão  que  nos  occupa  ,  é  este  caracter  exclusivo 
lias  conlriliuiçóes.  No  estado  actual  dss  conheci- 
n)entos  históricos  é  inioiitestavel  que  a  classe  no- 
bre e  o  alto  clero  (•)  estavam  exemplos  delias  :  os 
territórios  coutados  c  honrados,  cujo  principal  ca- 
racter era  não  fazer  foro  algum  a  elrei ,  não  exis- 
tiam só  por  diplomas  de  privilegio,  existiam  tam- 
bém por  outros  títulos  ,  e  até  por  linhagem,  isto  é, 
por  pertencerem  a  uma  família  nobre  ,  direito  que 
chegou  a  produzir  o  amadigo  ,  expressão  que  indi- 
cava o  privilegio  de  se  estender  a  qualidade  de 
honradas  .is  propriedades  onde  se  creavam  os  filhos 
do  fidalgos,  e  ainda,  segundo  parece  de  alguns  do- 
cumentos ,  os  seus  cães  de  caça.  Os  bens  das  ca- 
thedraes  e  mosteiros  eram  igualmente  coutados ,  e 
por  consequência  exemplos  dos  tributos  para  o  rei, 
que  todos  como  dissemos  rccahiam  sobre  os  conce- 
Ihiis  ,  e  qne  se  achavam  consignados  nos  foraes. 

íí  das  feições  características  destes  que  nos  cum- 
pre agora  fallar. 

(Á.  Herculano.) 


Casa  do  Cip. 


Existiam  na  cidade  de  Burgos,  era  princípios  do 
século  passado  ,  as  ruínas  de  uma  casa  ao  pé  da 
eminência  em  que  assenta  o  caslello  antigo,  e  pou- 
co distante  da  igreja  cathedral ;  minas  visitadas  e 
respeitadas  pelos  amantes  da  gloria  da  península 
hispânica  ,  mas  que  ,  a  par  da  sorte  de  tantos  mo- 
numentos venerandos  ,  iam-se  pouco  a  pouco  des- 
vanecendo pelos  insultos  da  ignorância  ;  e  o  docu- 
mento histórico  desapparecia  ,  levando  cada  ura  as 
pedras  que  podia  c  destinando-as  a  edificações  ca- 
seiras ,  por  tal  forma  que  ao  desamparo  e  ao  des- 
prezo era  votada  uma  preciosa  memoria  ,  que  de- 
via servir  de  illustração  e  commentario  aos  fastos 
de  tempos  remotos.  —  Burgos,  que  para  perpetuar 
a  recordação  de  seus  filhos  illustres ,  soubera  e 
quizera  elevar  sumptuosos  monumentos  em  honra 
de  Fernão  Gonçalves,  de  Nuno  Rasura,  e  de  Lain 
Calvo,   esquecia-se  de  perservar  cuidadosa  a  casa  , 


(•)  Um  escii|il(ir  iKSso  ,  res|ieiliivel  por  nuiilos  lilulos  , 
reprova  iis  expressões  ile  baixo  e  alto  chro  cumo  france- 
zns.  E>tas  expressões  .são  evijcnipiiicnic  iiietaplioricas  ,  e 
.si-janus  licito  pensar  (jiie  as  iiutapliorns  não  tem  nação. 
Snppiínilo  porem  qrn;  li.nja  melaphnras  porliiirtiezas  e  nieta- 
pluiras  estrangeiras,  paicee-iios  (jiie  a  (iistincçrto  social  ccm- 
plela  (|iie  liavia  entre  clero  c  clero  na  jilade  media,  pur 
ncnlinnias  palavras  se  exprime  cem  mais  clareza  (lo  q;ie  piir 
nipic-llas,  e  em  nossa  liiimilile  (ipiíuài)  a  clareza  das  idcas 
iuípcrla  iim  ponco  mai.s  (|ne  es  primures  e  poulualidades  da 
linjíua.  VIcru  nobre  e  cirro  villóo,  uu  cliro  privilrgiurio  e 
}ifw  priviliijittdo,  seriam  dcnuminuçiles  pervenlura  mais  por- 
lnínezas,  mas  teriam  o  leve  defeito  do  serem  ,  em  muitas 
rela(;ões  ,  falsíssimas.  Isto  em  linpuislica  talvez  seja  indilTc- 
reule;  mus  cm  liisloria  c  algum  tanto  mais  grave. 


o   PANORA3IA. 


341 


o  solar ,  em  que  nascera  e  passara  a  meninice  o 
mais  afamado  de  seus  patricios  ,  o  invicto  guerrei- 
ro ,  Rodrigo  Dias  de  Ititar,  geralmente  conhecido 
pela  antonomásia  de  Cid  campeador,  terror  dos 
inimigos  da  sua  pátria  ,  c  nome  respeitável  ,  que 
sem  embargo  de  onlros  bastaria  para  immortalisar 
a  mui  nobre  capital  de  (".astella.  —  Kmfim  o  miini- 
cipio  daquclla  cidade  reconheceu  a  sua  incúria  .  e 
pelo  meiado  do  mesmo  século  mandou  erigir  a  me- 
moria ,  que  na  eslanipa  se  figura  ,  c  ainda  perma- 
nece ;  senão  pode  ella  competir  com  o  arco  ma- 
gnidco  de  Fernão  Tionçalves  ,  nem  com  a  porta  de 
St.*  Maria  ,  ao  menos,  singelamente  elegante,  ser- 
re para  denotar  o  berço  do  nobre  Rodrigo  de  Ei- 


var. É  fabricada  ,  segundo  referem  ,  com  os  mes- 
mos niateriaes  da  casa  do  Cid  :  nas  duas  pyrarai- 
des  lateraes  ,  que  são  de  cantaria  ,  vcem-se  as  ar- 
mas de  Burgos  ,  o  cor[)o  do  meio  tem  em  cima  o 
brazão  de  Itivar  ,  e  na  moldura  inferior  Ic-sc  a  se- 
guinte inscriprão  :  —  «IVcste  silio  leve  sua  casa  ,  c 
nasceu  no  anno  de  1020  Rodrigo  Dias  de  Vivar, 
chamado  o  Cid  campeador  :  morreu  cm  Valença  no 
anno  de  109!)  ;  e  foi  trasladado  o  seu  corpo  ao  mos- 
teiro de  Cardenha  ,  pro\imo  a  esta  cidade,  a  qual 
para  perpetuar  a  Icinliratiça  que  tem  do  Ião  escla- 
recido solar  de  um  filho  seu  c  heroc  burgalenst  , 
erigiu  sobre  as  antigas  minas  este  monumento ,  no 
anno  de  ilSí ,  reinando  Carlos  3.°» 


MONUDIEKTO  DO  CID. 


Esta  construcção  ,  ainda  que  simples  em  sua  fá- 
brica como  nos  materiaes  de  que  é  composta  ,  e 
até  no  lettreiro ,  que  indica  o  motivo  de  sua  inau- 
guração, é  bastante  para  manifestar  a  localidade 
onde  viu  a  luz  primeira  o  conquistador  de  Valen- 
ça ,  nome  que  bastou  para  em  cem  combales  re- 
cuarem c  fugirem  inumeráveis  hostes  rausulmanas. 
—  5Ias  :  parece  incrível  que  [diz  um  escriptor  hcs- 
panhol  de  nossos  dias]  quando  a  França  ,  a  Ale- 
manha e  até  a  Rússia  ,  á  força  de  grosso  dispên- 
dio levantara  estatuas  ,  e  arcos  de  trinmpho  ,  a 
seus  homens  illuslres,  Rurgss  veja  com  iiidilTerença 
os  rapazes  desmoronarem  o  único  testemunho  de 
gratidão  que  erguera  ao  valente  Bivar.  Serve  de 
contínuo  alvo  ás  pedradas  arremeçadas  por  pessoas 
atrevidas  e  estúpidas,  que  celebram  ás  gargalhadas 
o  gosto  de  terem  deslocado  o  maior  troço  de  pedra, 
ou  de  term  levado  algum  estilhaço  e  fragmento  dos 
escudos  ria  sua  terra  natal ,  ou  do  brazão  do  heroe 
seu  compatrício. 

Ao  desleixo  das  auctoridades  ,  á  decadência  do 
espirito  nacional  é  devida  em  toda  a  parte  a  perju- 
dicialissima  perda  de  memorias  archeologicas ;  as- 
saz deplorámos  o  muito  que  tínhamos  a  lamentar 
neste  ponto  em  o  nosso  reino  ;  felicitàmo-nos  po- 
rem de  que  em  grande  parte  o  mal  se  yai  reme- 


diando ,  e  os  povos  illustrados  por  homens  zelosos 
demonstram  mais  apreço  e  respeito  aos  resíduos 
monumentaes  da  gloria  dos  antepassados.  Mas  nova- 
mente declarámos  que  não  cessaremos  de  denun- 
ciar os  réus  de  quaesquer  devastações  e  profana- 
ções ,  que,  em  menosprezo  das  saãs  idéas  recente- 
mente avivadas  e  acolhidas,  se  praticarem  ou  por 
opulentos  acintosos  ,  ou  por  miseráveis  ignorantes. 


SCIOITCICIA  POLITICA. 

Regeneração  e  incremento  do  bem-público  fok  meio 
das  associações. 

Nenhum  philosopho  pôde  duvidar  dos  eminentes  ser- 
viços prestados  ao  mundo  pela  religião  de  Jesus 
Christo.  Como  instituição  religiosa  tem  constante- 
mente promovido  o  bem  da  humanidade  ;  =  como 
essencialmente  progressiva  e  liberal  concorreu  com 
as  suas  máximas  sublimes  para  a  emancipação  da 
sociedade  ;  e  sem  embargo  de  uma  lucta  de  dezoi^- 
to  séculos  quasi  assoma  o  dia  cm  que  n  moral  di- 
vina hade  ter  no  orbe  a  mais  extensa  o  completa 
iuiluencia. 

Em  que  consiste ,  pois ,  esta  moral  destiaada  a 


3i2 


O    PAWORA31A. 


tão  altos  fins?  Era  fnzer  o  homem  venturoso  prepa- 
rando-lhe  lienigno  futuro,  e  collocando-o  conio  in- 
telligencia  no  meio  tias  minas  de  todos  os  erros: 
á  guerra  que  a  miséria  concitou  ,  e  a  que  a  ueces- 
sidade  deu  permanência,  fará  ella  succedcr  uma 
paz  duradoura. 

Se  a  moral  religiosa  ,  que  tanto  prepondera  no 
espirito  do  século  actual,  fòr  coadjuvada  pelas  ins- 
tituições civis,  grandes  bens  colherá  a  sociedade 
humana;  e  os  vindouros  não  poderão  absolutamente 
condemnar  este  século  de  transição  ,  vendo  que  se 
lhe  preparou  a  ventura  ,  que  então  desfructarera. 

Com  elTeilo  que  deverá  esperar-se  da  miséria 
sem  esperança  d'allivio  —  da  sujeição  a  que  se  não 
conhece  termo,  quando  o  pensamento  livre  é  ator- 
mentado pelo  desejo  das  reformas  indiscretas?  A 
que  não  se  arrojará  um  povo  indignado  quando  sen- 
tir todo  o  pczo  da  abjecção?  Serão  as  leis  assaz  po- 
derosas para  lhe  abafar  as  queixas?  Haverá  precei- 
tos que  lhe  façam  supportar  sem  dòr  os  infortúnios 
que  o  cercam? 

Podereis  acaso  acccnder  de  novo  em  seus  cora- 
ções uma  fé  extincta  ,  inculcando-lhe  paciência  na 
dòr,  e  o  esquecimento  de  todos  os  males,  para  fins 
que  lhe  são  indilTerentes?  Sobre  que  cimentos  er- 
gueis o  bem  que  todo  o  homem  reunido  em  socie- 
dade tem  direito  de  reclamar?  Para  que  dividis  a 
humanidade  em  duas  classes  dislinctas,  se  tudo 
nos  aconselha  a  que  façamos  delia  ura  só  lodo? 

Mas  que  meios  cumpre  adoptar  para  f.izer  cessar 
o  quasi  estado  de  guerra  —  para  dar  ao  homem  o 
pão  que  lhe  é  devido  —  e  para  restabelecer  a  mo- 
ral e  com  ella  a  felicidade  publica? 

A  in.itrucruo  deve  ser  o  ponto  de  partida  ,  e  a 
base  em  que  hade  assentar  o  edifício  social.  i\ão 
nos  referimos  aqui  á  inslrucção  coliegial,  mas  sim 
á  que  destroe  e  anniquila  os  males  que  alliigem  a 
humanidade  e  dão  um  prazer  completo  aos  seus  ir- 
reconciliáveis inimigos.  Todos  os  meios ,  sem  ex- 
ceptuar os  rigorosos  ,  devera  ser  empregados  ,  para 
accordar  o  homem  da  sua  culposa  indillerença  :  — - 
o  tempo  urge,  e  a  demora  de  qualquer  remédio  é 
um  passo  para  o  abysmo.  Em  quanto  o  povo  não 
fòr  obrigado  a  recorrer  a  esta  fonte  de  prosperida- 
des ,  a  atonia  que  o  enfraquece  hade  sempre  au- 
gmenlar.  Assim  como  o  violentam  a  pagar  tributos 
exorbitantes,  a  obedecer  a  leis  que  por  insensatas 
enchem  muitas  vezes  de  amargura  os  corações  ge- 
nerosos ,  porque  o  não  obrigarão  a  dcsfructar  os 
beneficios  da  instruccão  ,  cujos  resultados  seriam 
sempre  vantajosos  á  sua  existência  social? 

Sem  instruccão  não  ha  homens  nem  verdadeira 
civilisação.  Que  industria  tem  prosperado  com  a 
ignorância?  Existem,  é  verdade,  thesouros  de  pre- 
ciosos conhecimentos  ;  —  mas  aproveitam  acaso  a 
quem  dcUcs  poderia  tirar  o  melhor  partido?  Sabe 
o  artista  o  que  lhe  é  indispensável  saber?  Possue  o 
agricultor  os  elementos  das  sciencias  necessários 
para  a  prosperidade  da  sua  útil  profissão?  Não:  — 
pelo  contrario  ,  dezenove  vigésimas  partes  da  popu- 
lação fcom  raras  excepções]  jazem  sepultadas  na 
mais  crassa  e  profunda  ignorância.  —  Sejamos  pois 
.solícitos  em  dissipar  a  nuvem  caliginosa  ,  pondo 
nas  mãos  de  todos  a  luz  que  a  lodos  deve  allu- 
miar. 

À  instrucíão  scgue-se  o  trabalho.  A  este  segundo 
grau  da  existência  social  ninguém  põe  objecção  , 
porque  todos  os  homens,  seja  qual  fòr  a  sua  jerar- 
chia  ,  lhe  conhecera  a  necessidade.  Mas  que  resul- 
tados tem  elle  dado  pelo  modo  por  que  está  orga- 


nisado?  De  um  lado  vemos  alguns  indivíduos  que 
possuem  fortunas  de  milhões  ;  do  outro  observámos 
uma  multidão  de  homens  victimas  da  miséria  que 
os  persegue  até  o  tumulo.  Vivem  lodos  os  homens 
do  seu  trabalho?  Podem  elles  satisfazer  ás  suas 
necessidades  e  da  família,  achando  na  velhice,  que 
lhe  entorpece  o  braço  ,  o  descanço  e  o  pão  a  que 
lhe  tem  dado  jus  o  trabalho? —  Não,  sem  du- 
vida. A  maior  parte  dos  homens  condemnada  a  ga- 
nhar de  dia  o  que  hade  comer  á  noite,  vive  mes- 
quinhamente ,  e  sem  esperanças  ,  ao  lado  dos  que 
abastados  e  poderosos  bimpam  de  fartos  e  regala- 
dos. Ah  !  temei  que  o  gigante  abatido  levante  um 
dia  a  cabeça,  e  que,  desenrolando  a  terrível  ban- 
deira da  necessidade,  reclame  com  o  ferro  alçado 
a  parte  que  lhe  compete  nesta  desigual  distribuição 
das  condições  humanas.  Para  evitar  estes  excessos 
criminosos  ,  bom  será  tomar  a  prudente  iniciativa  , 
creando  associações  nas  qiiaes  lodo  o  individuo  pos- 
sa achar  seuj  cuslo  a  parte  de  ventura  a  que  tem 
um  direito  incontroverso  (•). 

Á  palavra  associação  não  faltará  quem  julgue  que 
vamos  quebrar  lanças  pelo  sansimonianismo  ou  pha- 
lanstciisiifo ,  aconselhando  a  sua  adopção.  Quanto 
se  enganara  I  Destas  innovações  nenhum  interesse 
pôde  colher  a  humanidade  ,  por  isso  que  a  ella  e 
a  suas  paixões  e  necessidades  são  muito  alheias. 
Nada  pôde  induzir  o  homem  ao  sacrificio  da  sua 
individualidade,  e  menos  a  sojeitar-se  ,  por  vonta- 
de á  vida  cenobilica  ,  com  perda  de  uma  parte 
das  suas  commodidades,  e  abandono  da  grande  fa- 
mília a  que  elle  deve  e  quer  viver  ligado.  Tão  ou- 
sadas tentativas,  que  jamais  regenerarão  a  huma- 
nidade ,  só  provam  que  a  sociedade  lera  novas  pre- 
cisões que  é  mister  satisfazer. 

A  associação  que  imaginámos  é.  fundada  em  ba- 
ses mais  extensas  e  duradouras.  Deve  prover  a  Io- 
das as  necessidades  sem  lesar  a  liberdade  indivi- 
dual—  satisfazer  a  todos  os  interesses  sem  expor  a 
sociedade  ao  alvião  do  nivelador ,  nem  ao  punhal 
do  revolucionário  —  e  conter  a  torrente  era  sua  ori- 
gem ,  oppondo  uma  reraora  a  seus  estragos. 

rvão  pôde  du\idar-se  que  a  França  ,  cujo  vaslo  e 
fértil  terrilurio  poderia  dar  para  o  necessário  con- 
sumo, está  ainda  longe  de  gozar  este  bem.  E  o  con- 
seguirá ella  se  a  sociedade  continuar  a  seguir  a 
carreira  que  encetou?  Não  o  acreditámos.  A  des- 
membração  sempre  em  augmcnlo  das  propriedades, 
mingoando  os  recursos  do  colono  ,  oppõe-se  ao  pro- 
gresso real  da  agricultura  e  industria  ,  que  acha 
um  obstáculo  invencível  na  incúria  do  mesmo  co- 
lono. È  certo  que  alguns  proprietários  abastados 
continuam  no  systeraa  d'especulaeões ;  mas  delle 
pouco  tem  aproveitado  as  classes  inferiores ,  por 
consistir  apenas  em  algumas  cmprezas  avulsas ; 
proveitosas  ,  talvez  ,  a  um  pequeno  numero  ,  mas 
sem  resultado  para  o  resto.  Não  duvidámos  avan- 
çar que  cedo  ou  tarde  se  fraccionarão  de  tal  modo 
estas  grandes  propriedades  ,  que  a  cnchada  virá  a 
ser  um  instrumento  oneroso  ,  voltando  nós  por  um 
movimento  retrogrado  a  cultivar  a  terra  como  nos 
primeiros  tempos  da  civilisação.  lia  um  só  meio  de 
fugir  ao  rigor  desta  prophecia  sem  abolir  uma  lei 


(•)  Ao  aiiclor  (leste  arl.°  ,  que  exliahimos  de  um.i  obra 
iniíleza ,  poderemos  ap|)reseiilar  nuiilii-s  institutos  de  re- 
cente d.ita  cm  o  noss»  reino ,  e  o  aperfeiçoamento  de  ou- 
tros, (|iie  apesar  de  alguns  defeitos  ,  tendem  claramente  ao 
melhoramento  social,  e  dão  futuras  esperanças  liem  funda- 
das. Bom  é  comiudo  declamar  sempre  contra  os  vicios  ra- 
dicaes  que  destruem  as  aaçOes.  — Os  lili. 


o  PANORAMA. 


343 


necessária  ,  fecunda  em  grandes  resultados ,  nem 
atacar  a  liberdade  individual  e  interesses  sociacs 
que  jamais  se  ferem  impunemente.  Consiste  clle 
cm  organisar  uma  associarão  agrícola  em  cada  pro- 
víncia que  reúna  todas  as  propriedades,  seja  qual 
for  a  sua  extensão  respectiva  ,  administrando-as  os 
individues  nomeados  pelos  interessados  á  pluralida- 
de de  votos.  Expliquemo-nos  :  —  o  proprietário  de 
qualquer  torrão  viria  a  ser  membro  da  associação 
que  propomos.  —  O  valor  da  terra  calcular-se-hia 
sobre  o  preço  médio  do  produclo  annual  ,  descon- 
tadas as  despezas  da  cultura.  Encarrcgar-se-liia  a 
administração  geral  agrícola  a  um  conselho  eleito 
pelos  interessados  que  durasse  um  ou  dois  annos  , 
composto  de  director  ,  inspectores,  e  guardas;  os 
quaes  ,  alem  do  interesse  que  lhes  competiria  como 
proprietários,  preceberiam  um  ordenado  adequado 
ao  seu  trabalho.  Hegular-se-hia  o  preoo  do  jornal 
dos  trabalhadores  pelo  da  localidade,  podendo  es- 
tes ser  tirados  indistinctamente  dos  associados  e 
não  associados,  conforme  a  urgência  ;  dando-se  com- 
tudo  ,  cm  igualdade  de  circumstancias  ,  preferencia 
aos  primeiros.  Deste  modo  os  pequenos  proprietá- 
rios de  terras  gozariam  a  um  tempo  da  renda  das 
mesmas,  c  do  premio  do  seu  suor.  Qualquer  mem- 
bro da  associação  teria  direito  de  indagar  o  preço 
da  venda  dos  productos ,  compra  de  instrumentos  , 
c  mais  despezas  que  o  conselho  julgasse  necessárias. 
DiíTerenles  porções  de  terreno  assim  remidas  for- 
mariam um  todo  fácil  de  agricultar  ,  removendo  os 
inconvenientes  sempre  prejudiciaes  aos  colonos  me- 
nos abastados;  —  pôr-se-hiam  em  pratica  os  melho- 
res systemas  de  irrigação ;  e  ensaiar-se-hiara  me- 
lhorias, afolhamentos  ,  e  outros  methodos  a[iprova- 
dos  ,  subindo  a  renda  de  uma  terra  que  ao  princi- 
pio daria  2  por  100 ,  a  3  ,  4 ,  5  por  100 ,  e  ás  ve- 
zes mais. 

O  resultado  de  tudo  isto  seria  que  a  agricultura, 
que  por  toda  a  parle  se  acha  estacionaria  ,  fa- 
ria progressos  incalculáveis;  e  que  uma  instrucção 
mutua  angmentaria  a  somma  das  idéas  ,  destruindo 
os  preconceitos  e  incúria  que  se  oppunham  ao  seu 
desenvolvimento.  —  .Não  veríamos  negar  os  factos 
mais  notórios ;  e  quaesquer  ensaios  infructuosos  não 
desanimariam  o  emprehcndedor  ,  por  isso  que  sen- 
do os  sacrilicíos  reparliiios  entre  lodos  os  associa- 
dos pequena  parle  do  mal  caberia  a  cada  um  del- 
les.  Dir-nos-hão  porem: — quanto  se  tem  imagina- 
do é  a  favor  dos  proprietários  :  concederemos  que  o 
plano  proposto  é  realísavel  ,  e  que  melhoraria  a 
condição  dos  lavradores  :  —  mas  que  parle  teriam 
neste  bem  as  classes  industriosas,  e  a  dos  que  na- 
da possuem. 

A  isso  responderemos ,  que  a  propriedade  não 
consiste  só  em  bens  de  raiz,  e  que  no  braço  do  ar- 
tista existe  outra  não  menos  fecunda  c  valiosa.  O 
sabío  que  não  possue  uma  geira  de  terra  ,  e  cujos 
braços  são  ímproductivos  ,  deixa  acaso  de  ser  pro- 
prietário? A  tesoura  e  o  raartello  de  um,  o  saber 
eapenna  do  outro  ,  seriam  excellentes  bases  d'uraa 
fortuna  permanente  se  a  sociedade  estivesse  de  tal 
forma  constituída  que  a  ambos  podesse  promover 
interesses.  Para  estabelecer  uma  fabrica  carece-se 
de  consideráveis  capitães  ,  e  de  correr  muitas  ve- 
zes riscos  numerosos: — de  que  meios  se  deverá  lan- 
çar mão  para  fundir  interesses  tão  diversos  e  des- 
proporcionados como  os  que  existem  entre  o  artista 
e  o  mestre?  Deve  acaso  esperar-se  que  os  chefes 
de  grandes  estabeleciraenlos  reunam  em  interesse 
commum  os  seus  capitães  á  industria  dos  seus  ope- 


rários? Não  os  vemos,  pelo  contrario,  sempre  de 
mão  alçada  contra  qualquer  nova  fabrica  que  os  as- 
sombre? Não  se  servem  para  a  anniquílar  de  todos 
os  meios  e  sacrilicíos  ,  na  esperança  de  se  resarci- 
rem  com  usura  de  quaesquer  perdas? 

Em  quanto  as  cousas  estiverem  neste  pé  ,  fraco 
desejo  lerá  o  consumidor  c  o  artista  de  promover 
interesses  que  só  aproveitam  aos  grandes  capitalis- 
tas.—  Ha  todavia  um  meio  de  formar  necessário 
equilíbrio  evitando  que  a  sociedade  continue  a  ser 
considerada   como   uma   família    cujos  priniogcnitus 

devoram   o  património  dos  irmãos  mais  novos 

Consiste  elle  em  formar  associações  que  depois  de 
se  pagarem,  por  meio  dos  productos,  do  custo  da 
matéria  (irima  ,  e  dos  gastos  do  fabrico  ,  iirevenin- 
do  ao  mesmo  tempo  quaesquer  transtornos  ,  estabe- 
leçam um  systema  regular  sobre  o  modo  de  levan- 
tar ou  abaixar  os  jornaes.  Neste  caso  ,  porem  ,  de- 
ve attender-se  ao  principio  de  que  ao  operário  e 
artista  jamais  se  deve  arbitrar  um  salário  com  o 
qual  lhes  seja  impossível  manter-se  e  á  sua  famí- 
lia. É  assim  que  as  pessoas  affeiçoadas  ao  traba- 
lho ,  vendo-se  ,  sem  o  esperarem,  membros  de  tão 
útil  associação  ,  se  interessariam  por  tudo  qiianlo 
dissesse  respeito  aos  progressos  da  industria.  —  Ile- 
sultaría  daqui  um  augmento  considerável  na  fortu- 
na publica  ,  devido  assim  áquellas  causas,  como  á 
actividade  e  intelligencia  dos  operários;  e  a  so- 
ciedade se  não  contristaria  ao  contemplar  a  discór- 
dia que  muitas  vezes  reina  entre  o  dono  da  fabri- 
ca e  os  seus  subordinados. — Verdade  é  que  os  es- 
peculadores onzeneiros  não  se  cevariam  tão  facil- 
mente na  miséria  dos  desgraçados  ;  mas  tem  essa 
consideração  algum  pezo  quando  se  trata  do  bem 
geral?  Não  ha  entrar  em  duvida  que  a  reforma  é 
necessária:  mas  não  proseguiremos  nesta  questão, 
por  temermos  desafiar  a  ira  das  preoccupações  :  — 
no  entanto  convém  que  as  inlelligencias  perspica- 
zes ,  e  os  homens  d'eslado  meditem  bem  este  pon- 
to, porque  estando  talvez  próxima  a  epocha  cm  que 
necessariamente  hade  tomar-se  um  partido  ,  é  mais 
airoso  ceder  a  tempo  ,  do  que  esperar  pelas  conse- 
quências desastrosas  que  uma  longa  resistência  pro- 
duziria. 

Deste  modo  estabelecer-se-hia  a  economia  ,  sem 
a  qual  não  ha  futuro  venturoso,  nem  segurança  pa- 
ra o  homem  ;  e  nas  epochas  em  que  tivesse  au- 
gmento o  preço  do  salário  poderia  o  artista  e  jor- 
naleiro depositar,  sem  grande  estorvo,  uma  parte 
delle  nas  caixas  económicas  ,  precatando-se  assim 
contra  a  miséria  da  velhice.  E  se  c  certo  que  o 
mau  procedimento  e  desalinho  se  opporiam  á  pros- 
peridade de  alguns  individues ,  não  o  é  menos  que 
a  maior  parle  delles  seria  exemplar,  e  colheria  óp- 
timos resultados  da  medida  proposta.  As  caixas 
económicas,  que  só  tem  augnientado  a  fortuna  dos 
que  já  possuem  sufíicicntes  recursos,  tornar-sc-hiam 
proveitosas  aos  desgraçados  para  quem  ale  aqui 
tem  sido  inúteis,  por  lhes  não  perniillir  o  jornal 
que  percebem  depositar  nellas  quantia  alguma. — 
Verdade  é  que  lhes  reservais  o  pão  da  caridade, 
o  hospital,  e  a  tumba  da  misericórdia:  —  mas  são 
isso  providencias  com  que  se  deva  contar?  Não. — 
.4  sociedade  que  nada  mais  pôde  dar  ao  homem  é 
viciosa  ,  para  não  dizer  culpada^. 

Não  nos  sobra  espaço  para  entrarmos  em  mais 
largas  considerações.  —  Parece-nos  comtudo  haver- 
mos dito  assaz  para  quem  quizer  entender-nos  — 
para  quem  não  reputa  calamidade  horrível  tudo 
quanto  seja  fugir  das  veredas  já  trilhadas ,   alem 


344 


O   PANORAaiA. 


das  qiiaes  só  \êem  erros  e  desastres.  Dirigimo- 
nos  aos  homens  sérios: — esses  hãode  examinar  e 
estndar  as  nossas  Ihcorias  ;  c  longe  de  crimina-las, 
estamos  certos  que  farão  votos  para  que  se  rcali- 
sem.  —  Os  nossos  desejos  limilam-se  a  fortificar  os 
princípios  religiosos  e  restabelecer  a  moral  pnr 
meio  do  bem  do  maior  numero:  —  a  estreitar  cada 
\ez  mais  os  laços  que  unem  os  homens  entre  si, 
realisando  estas  hellas  palavras  da  escriptura  :  Àmai- 
vos  como  irmãos. 


Antiguidades. 

Santa  Maria  d'Ul. 

Quem  ao  ver  a  igreja  de  St."  Maria  d'Ul  [concelho 
do  Pinheiro  da  liemposta]  campear  elegante  e  for- 
mosa na  ladeira  suave  d'um  monte,  como  prince- 
za  adereçada,  entre  as  casas  que  lá  se  avistam  der- 
ramadas por  campos  e  envergonhadas  entre  pinhei- 
ros ,  dirá  que  nas  paredes  desse  templo  ,  tão  alvas , 
Ião  virgens  ainda  das  prostituições  dos  séculos,  es- 
ta alíixada  uma  pagina  veneranda  do  grande  livro 
do  passado?  E  comtudo  ella  lá  se  vè ,  como  um 
padrão  aos  brios  e  ao  valor  portugucz  ;  como  uma 
TOZ  de  ferro  gemedora  e  lúgubre,  sabida  do  san- 
tuário a  proclamar  o  passamento  dos  povos  venci- 
dos ,  cujo  senhorio  foi  transferido  por  ascendente 
d'heroismo  áquclles  corajosos  guerreiros ,  que  tra- 
çando a  sua  politica  com  a  ponta  da  lança  ,  e  com- 
prando tudo  a  troco  de  golpes  d 'espada  ,  atravessa- 
ram ,  como  raios  despedidos  das  mãos  de  Deus,  a 
arvorar  a  signa  da  cruz  sobre  as  ameias  do  pro- 
pheta  ;  d'ondc  —  vai  [lor  oito  séculos  —  só  a  pode 
derrubar  a  morte  d'um  rei  soldado,  para  de  novo 
flucluar  mais  galharda  e  Iriíiniphadura  !  —  Encele- 
aios  porem  nosso  caminho  ,  para  que  o  coração  nos 
não  arraste  insoffrido  aonde  não  quizeramos  nunca 
!er  ido  .... 

Está  pois  na  matriz  d'Ul  uma  pedra  em  que  se  lê  : 

=  HRE.  AVGVSTO  :  TRIBVNI 

=  .  XXVll.  COS.  XIII.  PATER. 

=  RA\1NVS.  AVGVSTALIS. 

Esta  pedra,  encontrada  ha  quarenta  annos  no  ali- 
cerce da  igreja  antiga  ,  foi  mandada  collocar  on- 
de hoje  existe  pelo  abbade  —  o  reverendo  Manuel 
Pereira  de  Campos.  Sc  altendermos  ao  lugar  do 
achado,  e  a  que  de  lá  também  sahiu  uma  colum- 
na  que  serve  de  esteio  na  ramada  do  pateo  da 
residência  ,  em  cuja  columna  se  distinguem  não 
poucas  jettras  e  alguns  traços  d'outras  quasi  apa- 
gadas; se  rellectirmos  no  que  adirmam  ,  de  terem 
achado  no  referido  sitio  uma  oulra  pedra  com  Ict- 
treiro ,  a  qual  ahi  deixaram  por  conveniente  á  no- 
va fabrica  cm  rasão  da  sua  excessiva  grandeza  ; 
concluiremos  talvez  sem  erro  que  os  fundadores 
da  demolida  matriz  accommodaram  a  seu  intento 
as  ruinas  d'alguns  cdilicios  romanos  ,  que  seriam 
de  não  pouca  magniliccncia  ,  a  julgarmos  delia  em 
vista  das  (irovas. 

Indo  por  diante  com  as  nossas  indagações,  vimos 
um  pedaço  de  colun)na  lisa  que  terá  obra  de  qua- 
tro |)aliiuis  em  conijirimeiíto  ,  e  um  g  meio  de  diâ- 
metro, apparecido  em  certa  escavação,  (jucm  afian- 
ija  o  mais  que  se  encontraria,  caso  a  escavação pro^ 


gredisse  —  principslmcnte  ,  lendo  sido  começada 
na  laiz  d' um  monte,  onde  a  lerra,  trazida  de  cima 
pelos  enxurros  e  por  outras  causas,  facilmente  en- 
cobriria algumas  ruinas  que  alli  existiam? 

A  sudoeste  da  matriz ,  e  em  distancia  de  tiro  de 
funda,  vé-se  o  logar  do  Castro,  que  desce  d'um 
outeiro  próximo  ao  rio  como  um  burgo  mal  povoa- 
do. Sluilas  pedras  c  tijolos  se  teem  ahi  encontrado 
soterrados  ,  que  indicam  o  grande  numero  de  edi- 
fícios que  o  occuparam  ,  e  ainda  lá  vimos  ura  pe- 
queno sitio  com  o  nome  de  corredoura,  onde  —  diz 
o  povo  —  exercitavam  os  mouros  suas  corridas  e 
outros  jogos  de  cavallo. 

Passando-se  o  rio  mais  abaixo  para  o  poente , 
sobe-se  o  monte  das  almas  da  moura,  que  é  desi- 
gnado nas  antigas  confrontações  d'algun5  prédios 
pelo  monte  das  Mamuinhas,  e  fica  a  cavalleiro  dos 
de  Figueiredo  de  Rei  e  do  Pinheiro  da  Bemposta. 
Por  um  alicerce  que  o  atravessa  desde  o  rio,  e  por 
certos  cabeços  artificiaes  que  tem  no  plano  ,  se  col- 
lige  que  seria  celebre  nas  conquistas  entre  mouros 
c  romanos. 

Contigua  a  este  monte  está  situada  para  o  norte 
a  pequena  aldèa  de  Adões  —  nome  que  parece  vir- 
Ihc  de  aduarcs  —  e  logo  a  de  Avenal  [avenalis]  aon- 
de se  encontra  sobre  um  pequeno  outeiro  a  casa 
do  paço  ,  habitada  por  um  Kmador.  Segue-se  de- 
pois a  freguezia  de  AJadail  ,  e  outro  monte  de  Cas- 
tro ,  junto  do  qual  —  dizem  —  houvera  rija  bata- 
lha, onde  chamam  Villa  Covo,  e  mais  rija,  meia 
légua  dahi  .  era  Rio  d'Ossos.  O  povo  conta  que  en- 
tre este  castro  e  o  d'UI  deixaram  os  mouros  escon- 
didas as  suas  preciosidades,  d'onde  vem  o  dizer-se  ; 

Entre  castro  e  castril 

Cá  deixaram  seu  ouril. 

IS.  M.  de  Soma  Mouto. 


Sinrjular  modo  de  obter  carta  d'alforria.  —  Um 
viajante  nosso  do  século  1C.°,  que  por  Chypre  fez 
caminho  para  a  Palestina,  referindo  algumas  parti- 
cularidades desta  ilha  conta  a  seguinte  pratica  ex- 
travagante.— 

«A  gente  popular  de  todo  este  reino  pela  maior 
parte  é  captiva  dos  senhores  das  cidades,  villas  e 
aldeias,  salvo  aquelles  que  por  alguma  via  teem 
privilegio   para   o  não   serem.    E  este   capliveiro  é 

cousa  de  muitos  annos Ura  costume  mui 

novo  vi  nesta  cidade  [Nicocia]  que  me  poz  em  ad- 
miração :  o  qual  é  que,  indo  cm  um  dia  por  uma 
rua  ,  vi  levar  a  enterrar  á  igreja  um  fidalgo  mui 
principal ,  e  iam  com  elle  todos  os  seus  parentes  e 
amigos,  e  diante  os  escravos  e  escravas,  os  quaes 
levavam  pelas  rédeas  quatro  ou  cinco  cavallos,  e 
dois  machos,  e  todos  cobertos  dedo;  chegando 
ao  alpendre  da  igreja  ,  subitamente  sahirara  delia 
os  clérigos  com  grandes  troços  de  pau  nas  mãos  e 
começaram  de  dar  nos  escravos  e  escravas  traba- 
lhando pelos  prender,  como  prenderam  um  ou  dois, 
e  os  outros  com  os  cavallos  fugiram  ;  fiquei  eu  ad- 
mirado de  ver  um  tão  súbito  desatino,  a  meu  pa- 
recer ,  e  depois  da  cousa  quieta  perguntei  a  signi- 
ficação delia  :  disseram-me  ser  costume  naqucUa 
terra  ,  quando  fallecia  alguma  pessoa  nobre  e  rica, 
irem  diante  lodos  seus  escravos  e  escravas,  caval- 
los c  toda  outra  cavalgadura,  até  a  porta  da  igre- 
ja, como  eu  vira  aquelles;  e  que  sahindo  os  clé- 
rigos com  paus,  os  escravos  e  cavalgaduras  que 
podiam  tomar  eram  seus  :  e  os  outros  ficavam  livres 
e  forros.— i^r.  Paniateúo  d' Aveiro.  IHner,  cap.  14." 


97 


o  PANORAMA. 


3i5 


os  MARAGÂTOS. 


Trajos  e  .noivados  desta  tbibit  encorpobada  na 
grande  família  hespanhola. 

Se  não  tivéssemos  fallado  dos  inaragalos  ,  dando  a 
necessária  noticia  a  pag.  174  do  vol.  1.°,  Irataria- 
inos  agora  mais  de  espaço  desta  casta  singular,  que, 
não  obstante  ter  pousada  nos  confins  da  Castella, 
nos  montes  de  Astorga  ,  quasi  á  beira  de  duas  es- 
tradas ,  uma  real  ,  e  outra  mui  frequentada  ;  não 
obstante  manter  trafico  activo  e  contínuo  em  diver- 
sas províncias  da  peninsula  ;  tem  podido  subtrahir- 
se  ao  movimento  da  civilisação  ,  conservar  intacta 
a  herança  dos  hábitos  ,  crenças  e  ordem  social  de 
seus  avós.  Distinctos  na  Hespanha,  como  os  judeus 
c  os  ciganos  por  toda  a  Europa  ,  levara  pelo  com- 
mum  sobeja  vantagem  a  estes,  considerando-os  mo- 
ralmente. 

Seus  costumes  ficara  relatados  no  artigo  supraci- 
tado ;  cumpre  todavia  rectificar  algumas  particula- 
ridades quanto  ao  vestuário  ,  que  a  estampa  mos- 
tra ,   e  em  geral  é  o  seguinte.  —  As  mulheres  cora- 

NOYEMBRO   4 1843. 


põem  ocabello  em  duas  tranças  pendentes  aos  lados 
da  cara  ,  e  bastante  compridas  ;  ás  vezes  amarram 
lenço  na  cabeça  :  cingem  o  pescoço  de  cordão  ou 
collar  e  sempre  d'um  grosso  rosário,  tudo  em  varias 
voltas;  vestem  roupinhas,  e  camisa  bordada  adian- 
te, saia  de  panno  tosco  e  esbranquiçado,  o  qual  é  a 
principal  industria  da  terra  ,  e  um  avental  prezo  á 
cinta,  e  outro  em  tudo  similhanle  ,  cabido  poste- 
riormente e  pelos  quadris  abaixo.  Alem  disto  tem 
por  enfeite  mangas  justas  ao  braço  pespontadas  de 
cores.  As  casadas  vão  de  manto  á  missa  ,  e  as  sol- 
teiras com  seu  dengue  ou  mantilha  de  tecido  ordi- 
nário e  franja  encarnada.  O  trajo  do  maragato  cora- 
põe-se  do  chapéu  de  abas  largas  e  copa  chata  [e 
não  pyramida!  como  de  outros  almocreves]  com  seu 
trancelim  de  seda  ao  redor,  camisola,  colete  de  pel- 
les ,  jaleco,  camisa  de  colarinho  bordado ,  cinto, 
bragas  ,  polainas  e  çapatos. 

Tma  cereroonia  que  pôde  dar  a  idéa  mais  clara 
do  caracter  original  desta  gente  é  a  dos  casamen- 
tos    e  por  isso  a  não  ommittiremos.  —  Facilmente 

2.*  Sbrie.  —  Vol.  II. 


3ÍÕ 


O   TANOIIAMA. 


supporão  os  leitores,  qiic  n'unia  terra  cm  que  se 
raanifoslam  costumes  patriarcliaes  a  cada  passo  ,  a 
vontarlc  dos  filhos  ó  cm  lodo  o  modo  iiulla  ,  c  que 
os  pais  dispõem  da  sorlc  da  prole  cm  respeito  a 
seus  interesses  e  idade.  ])c  raro  se  ouvirá  dizer  cm 
povo  de  niaragalos  que  uma  donzella  ainelliou  ante 
o  altar  com  o  seu  futuro  companheiro  sem  levar 
por  escudo  a  benção  paterna.  Mas  tratemos  do  cc- 
rcmonial  c  etiquetas  cm  laes  casos  requeridas. 

Chegada  a  epocha  cm  que  os  pais  tom  concorda- 
do que  se  hade  celehrar  o  matrimonio  de  seus  fi- 
lhos ,  o  pai  do  noivo  o  este  cncaminham-se  a  casa 
da  futura  esposa  ,  c  ó  pedida  a  miio  da  dunzella 
com  todas  as  formalidades  ,  sem  que  nenhum  dos 
coulrahcntcs  [os  noivos]  entrem  cm  conversação: 
jnas  como  laes  casos  já  cslão  previamente  decidi- 
dos e  ajustados  entre  as  duas  famílias  ,  apenas  c 
mera  fórmula  este  passo;  cm  seguida  ,  d'anil)as  as 
partes  tratam  de  comprar  os  presentes  nupciaes , 
que  consistem  nos  vestidos  do  noivado,  segundo  o 
trajo  nacional. 

Chega  emfim  a  véspera  das  vodas  ,  c  de  tarde  se 
examinam  de  doutrina  e  confessam  os  noivos  ,  reti- 
rando-sc  depois  a  seus  respectivos  domicilios,   sem 
que  assistam  á  ceia,  com  que  se  regalam  os  padri- 
nhos nessa  mesma  noite.  Ao  amanhecer  do  seguinle 
dia  corre   o  gaiteiro  lodo   o  logar  locando  a  alvora- 
da ,    c  chamando   ao  almoço  lodos   os  convidados  á 
festa,  rinda  a  refeição  e  ouvida  a  missa  ,  o  pai  da 
noiva,   o  padrinho  c  mais  convidados  varões  diri- 
gem-se  a  casa  do  mancebo,  precedidos  da  gaila  de 
folie   e   dos  moços  solteiros  amigos   do  rapaz  ,   que 
vão  disparando  ,   como   salvas,   as  suas  clavinas  e 
espingardas   de  caça.   Assim  que  enlram   na  casa  , 
o  noivo   ajoelha  ,    recebe  com  mostras   de  compun- 
ção  a  benção  paternal  ,   c  depois  calado  e  modesto 
no  moio  do  concurso  c  ao  lado  do  padrinho  deman- 
da  a  habitação  da  donzella  :    as  raparigas  solteiras 
amigas   desla  cslão   á  porta  entoando  cantigas  alhi- 
sivas  ás  nupeias  c  aos  méritos  dos  conlrahentes,  al- 
gumas  das  qiiaes   tem  graça  na  sua  nativa  singele- 
za ;  no  acto  de  sahir  para  a  igreja  ,  lõia  lambem  á 
noiva  ,    deliulJKida  em  lagrimas  ,    receber  a  benção 
de  seus   pois.    Aai    adianto   o  noivo   c  sua  comitiva 
em  larga   distancia   do  arompaiihamento   feminino, 
que  conduz   a  noiva  rebuçada  na  mantilha  ,    e  que 
não   descontinua   em  seus  cantares  até   a  porta   da 
igreja.  Aqui  os  espera  im  guardavcnto  o  cura  ,  ce- 
lebra-se  o  rito  eccicsiastico  ,    Irocam-se  os  anéis  ,  c 
pcrmulam-se  as  arrhas  ou  presentes.  Dila  a  missa  , 
sahc  a  gente   pela  mesma  ordem  com  que  entrou  , 
só  com   a  diirerença   de   que   o  noivo   com   os  seus 
param   no  adro  para  verem  correr  o  bolo  do  padri- 
nho;  isto  é,  uma  corrida  a  pé  e  á  competência,  na 
qual   o  melhor   corre<l()r  ganha    a  testada   do  bolo  , 
sendo  o  resto  repartido  pelos  circumstanles  em  niiu- 
dissimos  bocados.    Seguem  para  a  casa  das  vodas  o 
já   encontram   a  desposada    sentada   á    porta   n'uma 
cadeira    ataviada   com   todo   o  fausto   que    permittc 
seus  lòres ,    com   a  madrinha   a  làtere   e  coberto  o 
rosto  ;    o  marido  toma  logar  n'oulra  cadeira  iMcpa- 
rada  ,  c  presenceiam  as  danças  com  que  a  mocida- 
de da  aldeia   os  festeja;    cessando   os  bailes,  entra 
lodo  o  mundo  para  comer  ,    deixando  á  porta  a  an- 
terior  gravidade   e  compostura  ,    e  dando-se   á  ale- 
gria qne  tão  bem  quadra   á  occasião.    Á  sobremeza 
toma  o  padrinho  un)a  salva  de  prata  ,   deita-lhe  al- 
gumas moedas  c  vai  cm  giro  pedindo   aos  convida- 
dos ,    e  ninguém   se   nega    a  contribuir   do  seu    pe- 
cúlio.   A  aia  da  noiva  ,   amiga  qnc  a   enfeitou  c 


acompaidiou  ,  pede  rocas  ,  fusos ,  agulhas ,  c  uten- 
sílios similhanles  ;  os  pagens  do  noivo  lambem  re- 
querem para  o  seu  amigo.  —  Levantam-se  logo, 
não  as  toalhas,  porque  a  mcza  fica  posta  lodoaquel- 
le  dia,  mas  os  convidados ;  então  a  noiva  dança 
com  o  marido  ,  e  no  entanto  os  pagens  vão  passear 
a  povoação  exigindo  galinhas  para  os  rcccm-casa- 
dos  ,  e  se  lh'as  não  derem  de  vontade  Icem  direi- 
to de  as  tomar  á  força.  —  l\ecolhem-sc  a  dormir; 
mas  no  dia  immcdiato  ainda  ha  festim  ,  e  corrc-se 
cntíio  o  bolo,  que  dá  a  madrinha  ,  quasi  pela  mes- 
ma forma  que  no  dia  antecedente  :  ha  banquete  e 
danças  até  que  deixam  repousar  e  proseguir  em  sua 
vida  o  novo  par,  penhor  da  futura  propagação  dos 
niaragalos. 


Estudos  Mobaes. 
II. 

O  Parodio  d' Aldeia. 


Uma  das  cousas  que  nas  recordações  da  juventude 
ainda  espira  para  mim  poesia  e  saudade  é  um  ve- 
lho prior  d'aldèa  que  conheci  na  minha  meninice. 
Hoje  Ião  bondosos ,  Ião  alegres ,  tão  veneráveis , 
ha-os  por  certo  ahi  —  e  muitos  ;  — cu  é  que  já  não 
sei  conhece-los.  A  aureola  ,  que  então  rodeava  as 
caãs  do  sacerdote  ancião  ,  dcsvaneceu-se  pouco  a 
pouco  —  desvancceu-a  a  experiência  do  mundo  co- 
mo tantas  mil  crenças  e  imaginações  de  oulr'ora  ! 
—  Klle  morreu  já  ,  por  certo  ;  mas  vivo  que  fosse  , 
eu  não  sentiria  ao  ve-lo  ,  ao  fallar-lhe  ,  aquclla  es- 
pécie de  alegria  limida  ,  de  confiança  receosa  que 
nesse  tempo  o  bom  do  velho  me  inspirava.  Pare- 
cia-me  que  estando  ao  pó  dellc  eslava  mais  perto 
de  Deus,  cujo  valido,  i)or  assim  dizer,  era  o  1'.' 
prior.  Não  sabia  o  sacerdote  essalingua  que  cu  cria 
fallar-se  no  céu  —  o  latim,  que  então  era  para  mim 
cousa  mysleriosa  e  santa?  Não  trajava  ás  vezes 
os  trajos  da  corte  celeste  —  o  amiclo  ,  a  casula  , 
o  pluvial  ,  Cum  que  estavam  vestidos  alginis  vultos 
d'anjos  pintados  em  Ires  ou  quatro  antiquíssimos 
quadros  do  presbitério?  Quando  nas  suas  praticas  , 
depois  da  missa  do  dia  ,  narrava  os  gozos  da  bem- 
aventurança  ,  os  tormentos  do  purgatório,  e  os  tra- 
tos intoleráveis  do  inferno  ,  não  juraria  qualquer 
que  elle  já  peregrinara  largos  annos  alem  do  sc- 
pulchro,  ou  que  voz  de  cima  lhe  revelava  lanlas 
maravilhas  c  tão  solemncs  terrores?  Evidentemente 
o  velho  clérigo  estava  muito  mais  perlo  dos  de- 
graus do  tiirono  divino  que  toda  a  outra  gente , 
e,  por  me  servir  da  linguagem  politica,  exercia 
cm  nome  do  céu  uma  dcIeg.Tção  na  terra:  era  uma 
cs|)ccie  i\c  iiiissus  doiiiinieus  da  Pro\  idencia.  H  quan- 
do clle,  apesar  dos  meus  tenros  annos,  me  escolhia 
para  acoljto  ,  para  estafar  a  porção  de  latim  do 
missal  ,  que  as  rubricas  incxora\eis  subtrahiani  ao 
seu  império,  sorrÍMtn-nie  as  esperanças  algum  tan- 
to vaidosas  de  obter  de  Deus  deferinjcnlo  ás  mi- 
nhas perlenções  infantis  —  como  costumam  sorrir  ao 
requerente,  a  quem  deputado  de  grande  conta  mos- 
tra familiaridade  na  presença  de  omnipotente  mi- 
nistro. 

Hoje  o  latim  do  padre  prior  parccer-me-hia  um 
tanto  bárbaro  ,  e  talvez  barbarissima  a  sua  prosó- 
dia :  nas  vestes  saccrdolacs  acharia  os  trajos  roma- 
nos do  império  atravessando,  immulaveis  como  a 
igreja  ,  por  entre  as  transformações  da  moda  c  do 
luxo  ;   nos  quadros    do  presbitério    riria  da   igno- 


o  PANORAMA. 


ai-i 


rancía  e  mau  gosto  do  pobre  pintor  ;  c  nas  descri- 
pç(")cs  das  venturas  e  torn)cntos  da  ontra  \ida  des- 
cubriría  uniiMnieiUe  iinia  incarnação  grosseira  cm 
imagens  tnateriacs  das  revelações  profundas  do  es- 
piritualismo clirislão.  t  qnc  nes.-e  tempo  tudo  me 
chegava  aos  olhos  da  alma  alumiado  .  risonho  ,  va- 
riegado ,  porque  tudo  transparecia  atravez  do  pris- 
ma de  sete  cores  —  a  innocencia  singela  e  crédula 
da  infância  ;  c  hoje  tudo  me  parece  como  a  folha 
que  cahiu  da  arvore  no  outono  ,  murcho  e  desbota- 
do passando  alravcz  da  atmosphcra  nevoenta  e  tris- 
te da  sciencia  e  do  orgulho.  Então  o  velho  parocho 
affigurava-sc  mais  que  um  homem  ;  hoje  na  escala 
das  desigualdades  humanas  provavelmente  só  acha- 
ria para  elle  um  bem  modesto  logar. 

A  aldèa  em  que  o  bom  do  clérigo  pastoreava  o 
rebanho  espiritual  linha  seu  assento  na  falda  d'um 
monte,  e  pouco  inferior  a  ella  dilatava-se  uma  vei- 
ga ,  que  ao  longe — lá  bastante  ao  longe  —  ia  ba- 
ter no  mar.  No  alto  da  povoação  ficava  o  presbité- 
rio. Era  a  igreja,  segundo  hoje  se  me  allignra  — 
e  tenho-a  bem  presente  —  daquclle  gosto  duvidoso 
entre  a  archilectura  christaã  que  expirava  ,  e  a  da 
restauração  romana  ,  que  ainda  se  não  comprehen- 
dia  :  era  um  desses  templosinhos  construidos  nos 
fins  do  reinado  da  D.  Manuel  c  principios  do  de 
D.  João  3.°,  de  que  tão  grande  numero  resta  ain- 
da pelas  parochias  de  Portugal,  e  que  são  mais  um 
argumento  de  que  os  nobres  conquistadores  da  ín- 
dia, donatários  das  terras  e  padroeiros  das  igrejas, 
não  voltavam  do  oriente  com  as  mãos  vazias.  A  de- 
voção nesses  tempos  era  um  objecto  de  luxo  :  edi- 
ficar uma  igreja  ou  uma  capclla  equivalia  a  ter  ho- 
je um  camarote  cm  S.  Carlos,  ou  um  cocheiro  com 
estrigas  de  linho  na  cabeça  e  chapéu  triangular. 

A  portada  da  igreja  de  arco  (ricentrico,  firmado 
era  pilares  polystjios  de  meio  relevo  .  era  o  mais 
claro  testemunho  da  idade  provecta  do  presbitério. 
A  residência  parochial  ,  originariamente  do  mesmo 
estylo  ,  eslava  j.i  civilisada:  uma  porta  rectangular 
substituíra  a  antiga.  Esquadriadas  estavam  lambem 
as  duas  janellas  do  sobrado,  de  dilTercntes  dimen- 
sões, e  affasladas  uma  da  outra  ;  e  nos  seus  postigos 
da  esquerda  se  via  o  conforto  moderno  das  vidraças. 
Não  quero  dizer  com  este  elogio  á  morada  do  pa- 
dre prior  que  a  igreja  linha  resistido,  teimosa  co- 
mo um  velho  caturra  ,  aos  progressos  da  civilisa- 
ção.  Pelo  contrario.  Eslava  mais  alindada  ainda. 
Uma  irmandade,  ou  não  sei  quem,  que  entendia  na 
fabrica  ,  havia  pintado  d'ochre  tudo  o  que  era  pe- 
dra ,  de  vermelhão  tudo  o  que  era  azulejo.  As  ca- 
marás municipaes  das  grandes  cidades,  os  cónegos 
das  collegiadas  e  ses  ainda  não  passaram  do  ochre; 
e  uma  pobre  irmandade  da  aldèa  jd  tinha  ha  vinte 
annos  vencido  a  meta  a  que  apenas  hoje  chegam  o 
municipio  e  a  cathedral. 

O  que  ,  porem  ,  escapou  ao  ochre  c  vermelhão 
dos  mezarios  do  burgo  foram  dois  seculares  e  for- 
mosos plátanos  que  sombreavam  o  portal  do  presbi- 
tério :  na  febre  amarella  ,  que  grassa  tão  furiosa 
pelo  senso  eslhetico  das  nossas  aucloridadcs  popu- 
lares e  dos  nossos  dignatarios  da  igreja  ,  admira 
que  tenha  esquecido  estender  o  beneficio  da  caia- 
dura  gemada  aos  troncos  rugosos  c  carrancudos  das 
velhas  arvores,  que  rodeam  os  edifícios  ou  as  pra- 
ças. Verdade  é  que  lodos  os  dias  alguma  desaba 
sob  os  golpes  do  machado.  Isto  é  melhor  ;  mas  por- 
que não  haveis  de  remoçar  as  que  vão  escapando 
com  as  lindezas  e  alegrias  canonico-municipaes? 

Bellos   e  Tcncraveis  eraiu  os  dois  plátanos'.  —  O 


adro  cubriara-no  lodo  com  as  suas  sombras  fecha- 
das ,  e  só  pela  volta  da  tarde  ,  principalmente  no 
outono  ,  é  que  algumas  rcsteas  açafroadas  do  sol 
no  poente  se  estiravam  por  debaixo  delias  e  lá  iam 
bater  frouxas  no  limiar  da  igroja  pulido  do  contí- 
nuo perpassar,  e  na  porta  de  um  vermelho  desbo- 
tado, onde  nesse  tempo  começavam  a  alvejar  os  re- 
mendos brancos  com  que  as  revoluções  converte- 
ram os  áditos  dos  templos  em  pelourinhos  eleito- 
ra es. 

A  entrada  do  adro  alevantava-se  uma  grande  cruz 
de  madeira  pintada  de  preto  ,  em  cuja  haste  mãos 
devotas  tiidiam  atado  um  ramo  de  flores,  e  este  ra- 
mo ,  no  meio  do  qual  havia  um  pé  de  perpetuas, 
era  a  imagem  das  vaidades  do  mundo  c  da  religião 
(lo  calvário  iramutavel  no  meio  delias.  As  outras 
lloros  linhara-nas  mirrado  os  arilores  do  estio  r  so 
restavam  do  morto  ramilhcte  as  immarcessiveis  per- 
petuas. 

Era  n'um  poial  que  servia  de  base  á  cruz  ,  onde 
áquella  hora  do  pòr  do  sol  o  padre  prior  vinha  mui- 
tas vezes  seiítar-se  ;  c  alli  estava  tempo  esquecido, 
ora  alongando  os  olhos  pelas  solidões  do  mar  ,  que 
lá  embaixo  no  fundo  do  extenso  valle  quebrava  nas 
rochas  ,  ora  traçando  atlentamente  na  terra  com  a 
sua  grande  bengala  de  castão  de  marfim  diversas 
figuras  ,  se  geométricas  não  o  sei  dizer  ,  porque  ho- 
je não  creio  lanto  na  geometria  do  padre  prior  co- 
mo então  cria  nas  suas  terríveis  revelações  do  ou- 
tro mundo  tiradas  do  Sprculum  Vilac.  O  que,  po- 
rem, eu  sentia  tão  bem  como  hoje,  sem  então  o  sa- 
ber explicar,  era  a  suave  e  profunda  poesia  qne 
respirava  esse  quadro  do  velho  sacerdote  junto  do 
symholo  religioso  ,  áquella  luz  moribunda  da  ulti- 
ma hora  do  dia  ,  em  que  uma  certa  saudade  me- 
lancholica  vem  como  percursora  da  noite  pousar- 
nos  sobre  o  coração.  Não  o  imaginava  nesse  tempo, 
mas  imagino  agora  por  onde  vaguearia  a  mente  do 
velho  clérigo  em  quanto  a  bengala  iad'um  para  ou- 
tro lado  cruzando  linhas  tortuosas  e  incertas.  Os  úl- 
timos instantes  de  moribundo  ,  os  qnacs  elle  tinha 
adoçado  com  as  consolações  da  fé  :  a  esmola  tirada 
da  escaca  côngrua  para  enxugar  lagrymas  de  viuvas 
e  de  orphãos  ;  os  conselhos  paternaes  dados  á  moci- 
dade ,  salva  assim  por  elle  de  largos  dias  de  re- 
morsos e  amargura  ;  os  ódios  convertidos  em  perdão 
entre  inimigos  ;  as  dissensões  domeslicas  pacifica- 
das pela  conciliação  do  pastor;  todo  o  bem,  em- 
fim  ,  que  por  trinta  ou  quarenta  annos  elle  havia 
semeado  na  aldèa  desde  as  ultimas  casinhas  de  col- 
mo que  alvejavam  caiadas  na  orla  pallida  dos  cam- 
pos até  o  altar  do  presbilcrio ,  fructificava  talvez 
ante  os  olhos  da  sua  alma  nesses  momentos  d'exlasi 
em  rica  seara  d'esperanças,  cujos  fructos  cnthesou- 
rava  no  céu.  Depois  a  cruz  hasteada  junto  delle 
lhe  viria  lembrar  o  nada  das  diligencias  que  em- 
pregara ,  dos  sacrificios  que  fizera  para  verter  al- 
gum bálsamo  de  ventura  nas  chagas  dolorosas  da 
vida  ;  para  remir  da  perdição  as  ovelhas  transvia- 
das do  pobre  rebanho  que  lhe  fora  confiado.  A  cruz 
negra  no  seu  eloquente  silencio  contava-lhe  sacrifi- 
cioç  infinitamente  mais  árduos  que  os  dcUe  ,  feitos 
não  a  pró  d'uma  aldèa  ou  de  um  povo  ,  mas  para 
remir  o  genero-humano.  Por  isso  lhe  via  ás  vezes 
deixar  pender  a  fronte  calva  sobre  o  peito  e  tomar- 
Ihe  o  rosto  uma  expressão  singular ,  inexplicável 
nessa  epocha  para  mim  ,  mas  que  era  o  desalento 
que  lhe  gerava  no  espirito  a  terrível  comparação 
das  suas  acções  com  as  do  Supplieíado  do  Calvá- 
rio ,  ao  qual  tomava  por  modelo,  e  que  jurara  irai- 


348 


O   PANORAMA. 


lar.  Muitas  vezes  espanlava-me  de  que  se  conser- 
vasse assim  engolfado  em  seus  pensamentos  até  que 
o  sino  das  avemnrias  o  vinha  despertar  ;  c  na  mi- 
nha alegria  da  inTancia,  vendo-o  tão  triste  e  carran- 
cudo, pensava  comigo,  que  o  padre  prior  se  ia  tor- 
nando com  a  idade  tonto  e  aborrido.  Todavia  ,  era 
que  o  bom  velho  nesses  momentos  de  meditação 
volvia  alraz  os  olhos  para  os  caminhos  da  sua  vi- 
da ,  onde  esperava  achar  alguns  vestígios  brilhan- 
tes d'obras  virtuosas ;  mas  esses  caminhos,  sumidos 
na  penumbra  da  cruz  ,  não  os  percebia  senão  como 
uma  nuvcmsinha  escura  e  duvidosa  atravez  da  luz 
immorlal  das  virtudes  e  dos  benefícios  do  Chiislo. 

Ao  tocar  ,  porem  ,  das  avemarias  todas  aquellas 
imaginações  desconsoladas  ,  se  elle  as  tinha  como 
hoje  creio  ,  desappareciam  por  um  movimento  ha- 
bitual do  espirito  e  do  corpo  ;  este  para  se  erguer  , 
aquelie  para  orar.  Sobraçada  a  bengala  ,  era  pó, 
com  as  mãos  postas,  segurando  ao  mesmo  tempo 
entre  cilas  o  seu  chapéu  de  três  ventos  ,  com  a  ca- 
beça um  pouco  inclinada  para  o  chão,  o  padre  prior 
murmurava  cm  voz  baixa  aquella  tão  poética  ora- 
ção do  despedir  do  dia.  Os  trabalhadores  que  vol- 
tando das  fadigas  do  campo  acontecia  passarem  por 
abi  nessa  occasião  ,  descobriam-se  também  ,  e  cn- 
coslando-se  ao  encinho  ou  á  enxada  punham  as  mãos 
e  rezavam  até  que  o  reverendo  acabando  os  latinó- 
rios ,  que  elles  iam  repelindo  em  vulgar  ,  lhes  di- 
zia : — Boas  noites,  rapazes:  vá  a  cobrir.  Eosganha- 
pães  cobriam-se  ,  respondendo  :  — Guardeo-o  Deus  , 
padre  prior:  —  c  partiam  :  e  elle  assentava-se  ou- 
tra vez  a  olhar  para  o  poente,  onde  o  sol  que  se  af- 
fundíra  no  mar  deixava  entre  si  e  a  noite  ,  prcci- 
pitando-se  apoz  elle  das  alturas  do  céu,  uma  barra 
de  vermelhidão  e  ouro  ,  que  se  estirava  para  um  e 
outro  lado  do  horisonte  como  tentando  embargar  o 
caminho  ás  trevas.  E  alli  estava  scismando  até  que 
a  lia  Jeronima  alçava  meia  adufa  de  uma  janella 
baixa  ,  que  dava  claridade  á  cozinha  ,  e  o  chamava 
para  a  ceia  ,  ao  que  promptamenle  obedecia  ;  por- 
que cumpre  advertir  que  o  padre  prior  não  só  res- 
peitava á  carga  cerrada  todas  as  tradições  do  ca- 
Iholicismo  romano;  mas  também  a  sabedoria  tradi- 
cional do  povo,  que  neste  capitulo  de  ceia  reza  que 
deve  ser  papada  sem  sol,  sem  luz,  e  sem  moscas — 
momento  fugitivo  do  expirar  do  dia  ,  que  não  cons- 
ta deixasse  jamais  passar  por  alto  a  boa  da  tia  Je- 
ronima. 

Nunca  me  ha-de  esquecer  aquella  hora  na  aldéa, 
a  luz  crepuscular  da  atmosphera  ,  as  gelosias  dos 
aposentas  inferiores  da  residência  parochial ,  c  a 
santa  velha  da  tia  Jeronima  que  leria  proporciona- 
do mais  um  capitulo  a  Chaleaubriand  sobre  a  poe- 
sia das  usanças  christaãs,  se  esse  illuslre  cscri- 
ptor  houvesse  uma  vez  saboreado  as  filhozes  que 
ella  compunha  para  celebrar  o  Carnaval ;  —  e  os 
seus  bolos  da  Natividade  —  e  a  sua  olha  e  o  seu 
anho  assado  da  Paschoa.  Não!  —  Saudados  de  tudo 
isso,  durante  a  minha  vida  inteira  ,  em  qualquer 
fortuna  ,  no  meio  das  mais  graves  cogitações  ,  nun- 
ca hci-dc  affastar-vos  im|)acientc  quando  vierdes  , 
como  crcança  travessa,  baralbar-me  um  periodo  de 
trabalhada  prosa,  ou  aleijar-mc  com  um  verso  par- 
vo uma  cstrophe  son"ri\el.  Vinde,  meus  amores  an- 
tigos, que  para  vós  esta  fronte  não  saberá  arrugar- 
sc  ;  esta  boca  não  terá  esses  monosjllabus  duros  e 
gelados  com  que  se  rcpellem  importunações  d'in- 
dilTorenles.  Vinde,  e  demorai-vos  comigo,  e  pai- 
rai por  uma  hora  ,  por  um  dia  ,  [lor  uma  semana  , 
que  vos  escutarei   sempre  sorrindo ;   e  quando  fòr 


ao  sol  posto  que  os  ouvidos  da  minha  aluía  vos  ou- 
çam reproduzir  vivas,  harmoniosas,  melaucholicas 
as  lentas  badaladas  das  avemarias  ,  não  como  ago- 
ra as  ouço  ás  vezes  no  meio  do  ruido  confuso  ,  ás- 
pero ,  estridente  do  povoado ;  mas  partindo  da  al- 
deã ainda  deserta  dos  seus  moradores  ,  rolando  pe- 
la veiga  ,  esperguiçando-se  pelo  prado  ,  rumorejan- 
do pelas  quebradas  da  encosta  ou  pelo  pinhal  do 
cabeço  ,  e  indo  morrer  lá  muito  ao  longe  nas  toa- 
das duvidosas  de  uma  cantiga  de  lavadeiras,  ou  no 
tinir  das  campainhas  de  um  rebanho  de  ovelhas, 
que  se  encaminham  para  o  aprisco  ao  sibillar  do 
pastor.  Rcpcti-m'as  assim,  puras,  campestres,  vi- 
bradas u'um  ar  puro  e  sonoro,  livres  por  um  ho- 
risonte immenso ,  e  tcr-me-heis  despertado  ura  af- 
fccto  consolador  ,  o  qual  valerá  mais  que  todas  as 
ambições,  que  todos  os  contentamentos,  que  todas 
as  esperanças  do  mundo. 

Tem-se  discutido  os  sinos — como  se  discute  quan- 
to ha  no  Universo.  Desde  a  existência  objectiva  ou 
material  deste  inundo  até  a  legitimidade  do  choca- 
lho pendurado  ao  pescoço  da  cabra  retouçando  pe- 
las ruas  de  qualquer  capital ,  que  resta  ainda  ahi 
para  se  lhe  trazerem  á  praça  os  prós  c  os  contras? 
Das  delinições  possiveis  do  homem  uma  só  é  verda- 
deira :  o  homem  é  o  animal  que  disputa.  Os  sinos 
tem  tido  amigos  e  inimigos:  e  porque?  —  Pela 
mesma  rasão  ,  porque  sobre  tudo  ha  duas  opiniões 
contradictorias.  É  que  tudo  tem  duas  faces  diversas. 
O  vento  sul  é  meigo  para  a  arvore  que  veceja  no 
recosto  septentrional  da  montanha,  c  açoule  da  que 
vegeta  no  pendor  opposto  :  o  norte  é  o  supplicio  da 
primeira,  e  grato  para  a  segunda.  Nisto  está  cifra- 
da a  historia  das  contradicções  humanas. 

Os  sinos  coUocados  em  campanário  de  parochia 
aldcaã,  ou  de  mosteiro  solitário,  são  uma  cousa  poé- 
tica e  santa  :  os  sinos  pendurados  nas  torres  garri- 
das das  garridíssimas  igrejas  das  cidades  de  hoje 
são  uma  cousa  estúpida  e  mesquinha.  O  sino  é  um 
instrumento  aceorde  com  as  vastas  harmonias  das 
serras  e  dos  descampados.  Assim  como  o  órgão  foi 
feito  para  rcloar  pelas  arcarias  profundas  de  uma 
calhedral  golhica  ,  para  vibrar  na  atmosphera  mal 
allumiada  pelas  frestas  estreitas  e  ogivaes  ,  do  mes- 
mo modo  o  sino  fui  perfilhado  pelo  cbrislianismo 
para  convocar  os  seus  humildes  sectários  occupa- 
dos  nos  trabalhos  campestres.  Quando  se  associou 
o  sino  ao  culto?  Ignoramo-lo:  ignoramo-lo  porque 
foi  a  religião  serva  e  perseguida  que  o  santificou  : 
e  quando  os  poderosos  da  terra  a  acccitaram  para 
si  então  entrou  elle  nas  cidades  soberbas.  Lá  con- 
verteu-se  n'uma  cousa  insignificante  e  impertinen- 
te. É  mais  um  ruido  intolerável  para  ajuntar  aos 
outros  ruidos  discordes  que  troam  por  essas  ruas 
e  praças.  O  sino  ,  tornado  cortezão  e  fidalgo  ,  é  si- 
milhante  ao  órgão  trazido  para  o  aposento  do  bai- 
le ,  ou  ,  o  que  vale  quasi  o  mesmo  ,  para  essas  sa- 
las ao  divino,  bonilas,  vaidosas,  douradinhas,  que 
insensatos  edificam  para  as  admirações  de  parvos. 

E  com  estas  digressões  esquecenio-nos  do  padre 
prior.  Não  imporia.  Deixa-lo  cear  em  paz,  e  rezar 
o  breviário.  Eram  estas,  enlre  outras,  duas  phases 
graves  e  serias  de  lodos  os  seus  dias.  Depois  ,  em 
quanto  a  velha  Jeronima  punha  em  ordem  a  casa  , 
elle  \icgava  cm  um  livro  de  pequena  estante  que 
lhe  ficava  á  cahecciía  ,  e  lia  ou  uma  lenda  pia  do 
Mos-Sanctorum  de  Rosário  ,  ou  um  trecho  daquel- 
las  grandes  historias  de  Fr.  Bernardo  de  Brito  , 
até  que  o  somno  tranquillo  de  uma  boa  e  saã  cons- 
ciência npcrlando-lhc  com  os  dedos  rosados  as  pai- 


o   PANORAMA. 


340 


pebras  ,  o  enlro^nva  aos  sonhos  plácidos  que  só  a 
alvoradn  vinha  inlcrrompcr  ,  quando  o  pcrifjo  emi- 
nente de  alguma  das  suas  ovelhas  o  não  obrigava 
a  cr!,'ucr-sc  alia  noile  ,  ao  som  do  resmungar  mal- 
solTrido  e,  alé  ccrlo  ponto,  impio  da  tia  Jeroiiima. 
No  horisonte  limpo  c  sereno  destas  duas  vidas  in- 
nocentes  —  destes  Philemon  c  líaucis,  celih.itarios, 
que  amparados  um  no  outro  iam  peregrinando  con- 
tentes para  o  sepulchro  ,  havia  um  ponto  negro  c 
triste.  O  rendimento  da  parochia  não  consentia  que 
o  padre  prior  possuísse  essa  espécie  de  ilola  ín  sa- 
eris  ,  de  servo  de  gleba  sacerdotal ,  chamado  o  pa- 
dre cura.  As  ventanias,  as  chuvas,  as  noitadas 
alrarcz  das  serras  revertiam  como  a  côngrua  e  os 
benesses  em  beneficio  ,  se  não  do  corpo  ,  ao  menos 
da  alma  do  reverendo  prior. 

A  sua  côngrua  era  maravilhosamente  estilica  :  o 
grosso  dos  dizimos  da  parochia  jogava-os  á  risca 
todas  as  noites  em  tertúlias  um  digno  commendador 
não  sei  de  que  ordem.  Ai  ,  —  a  extincção  dos  dizi- 
mos foi  a  morte  da  religião  I 

(Coníinuar-sc-ha.) 
(A.  Herculano) . 


Mercenário  pregão  ile  cego  andante. 
Bocage. 

Se  possuíssemos  o  donoso  chiste  ,  a  veia  cómica 
de  alguns  cscriplores  nossos,  como  Francisco  Ma- 
nuel e  o  V.'  Macedo  ,  se  podcssemos  receber  ins- 
pirações fecundas  da  lição  dos  jovialissimos  Cer- 
vantes e  Quevedo  ;  e  se  com  estes  dotes  nos  fosse 
permittido  pela  gravidade  deste  Jornal  dar  largas 
á  torrente  dos  gracejos  ;  que  opportuna  occasião  se 
offerecia,  á  vista  da  gravura  precedente,  para  des- 
franzir a  testa  carrancuda  de  alguns  leitores  hypo- 
condriacos  !  Em  vez  de  muitas  pJnjsiologias  semsa- 
bor,  não  escapando  a  do  diabo,  que  por  ahi  se  im- 
pingem em  folhetos  francezes ,  daríamos  a  physio- 


nmiia  ,   a  táctica  ,   c   os  palavrosos  pregões  do  cego 
aiidaulc. 

F.íta  casta  de  vendedores  ,  bufurinheiros  do  sorti- 
mento das  imprensas  consumidoras  de  papel  pardo, 
antes  de  se  habituar  o  nosso  vulgo  ás  novas  de  ba- 
talhas campacs  e  de  protocolos  diplomáticos  ,  em- 
pregavam toda  a  sua  especularão  na  lilteralura  des- 
montada do  barbante,  suspenso  aos  cautos  das  encru- 
zilhadas,  e  que  clles  levavam  a  passear  pelas  ruas 
desta  nobre  e  leal  Lisboa  ,  e  depois  transportavam 
,ns  aldeias  ,  onde  os  mancebos  e  os  velhos  ,  a  don- 
zclla  sensível  e  a  senhora  idosa,  ora  se  enterneciam, 
ora  folgavam,  com  a  v.íria  fortuna  da  princeza  Afa- 
galona  e  os  desvarios  de  Hoberto  do  Diabo,  ou  com 
os  ditos  da  lagarella  Theodora  c  os  chascos  do  mal 
criado  Bcrtholdo  :  os  entremezes,  os  autos  de  Bal- 
thazarDias,  as  relações  de  bicharocos  estranhos  e 
de  sonhados  phcnomenos  singulares  ,  completavam 
a  lista  bibliographica  do  cego  andante,  augmenta- 
da  ,  somente  em  fins  de  cada  anno  e  primícias  do 
novo  ,  com  o  livro  por  suas  innumeravcis  edições 
eterno  desespero  dos  andores  ávidos  do  fama  ,  a 
periódica  e  sempre  consultada  fulhinha. 

Depois  que  todo  o  povo  lè  e  trata  argumentos  e 
factos  políticos  ,  mudaram  de  rumo  [salvo  a  gazeta 
annual  dos  dias  santos,  jubileus,  e  phases  lunaresj 
os  ambulantes  extrahidores  das  edições  do  Alcobia 
e  dos  repertórios  ,  e  arvoraram-se  clamorosos  pre- 
goeiros, por  ura  ou  mais  vinténs,  do  jornal  da  tarde; 
queremos  dizer  [e  Deus  nos  livre  de  boquejar  era 
supplementos]  da  folha  avulsa  que  transcreve  dos 
periódicos  da  raanhaã  a  noticia  mais  fresquinha,  ou 
de  rara  maravilha  ,  ou  de  calastrophe  natural ,  ou 
de  estrondoso  crime  ,  ou  de  relevante  successo  po- 
litico; que  na  falta  de  taes  assumptos  copia  algum 
discurso  appetitoso  da  polemica  reinante  na  qua- 
dra ;  ou  que  ,  quando  de  tudo  se  vò  desamparada  , 
suppre-se  de  trovas  de  pé  quebrado  ao  canicidio  e 
á  limpeza  das  ruas,  accommcltendo  as  posturas  mu- 
nicípaes. 

Para  esta  segunda  epocha  do  giro  do  cego  an- 
dante ,  já  usurpado  por  traficantes  dotados  de  boa- 
vista  ,  é  que  eu  queria  o  sal  attico  do  inventor  de 
D.  Quixote  ;  e  veriam  que  folheto  que  sahia  des- 
bancando toda  a  estirada  collecção  das  plnjsiolorjias. 
No  entanto  ficaremos  com  os  desejos  até  que  pelo 
menos  surja  algum  novo  Tolentino  ou  Bocage  ,  que 
encha  este  vão  nas  litterarías  campinas. 


Igreja  de  Santa  Maria  do  Olivai  ,  matriz  de  todas 

AS  OITBAS  IGREJAS  DA  OhDEM   DE   CuRlSTO. 

Este  venerando  santuário  é  coevo  com  a  fundação 
do  convento  e  caslello  dos  Templários  cm  Thoniar. 
De  sua  construcção  primitiva  apenas  lhe  resta  o 
frontispício  ,  ou  fachada  voltada  ao  poente  ,  fazendo 
como  correspondência  áquelles  convento  e  castello 
que  olham  ao  nascente;  assentados  estes  sobre  um 
despenhado  monte  sobranceiro  á  villa  na  margeai 
direita  do  rio  Nabão;  aquelle  n'uma  pequena  pla- 
nície ,  levantada  com  declive  doce  ,  na  margem  es- 
querda. Distam  entro  si  estes  edificios  um  quarto 
de  Icgua  ou  ainda  menos  ,  ficando-lhes  a  povoação 
da  villa  de  permeio;  eommunicam-se  pela  ponte  ile 
Thomar,  que  snppômos  da  mesma  data.  Muita  cou- 
sa se  tem  dito  da  antiguidade  do  sitio;  da  cidade 
de  Nabancia  ,  ahi  assentada  nos  tempos  gothicos  ; 
do  conde  ou  governador  do  território  ,  Castivaldo  , 
e  de  seu  fiUio  BrUahh ;  da  santidade  e  martyrio  da 


350 


O   PANORAMA. 


Virgem  S(.°  Iria  ,  ou  Irene;  c  do  mosteiro  de  be- 
nedicliiios  que  ali  liavia  ,  cncoslado  ao  mesmo  anli- 
go  santuário  ;  liem  como  faliam  de  outro  mosteiro  , 
situado  um  pouco  acima  na  embocadura  do  rio  lif- 
fon  que  desagua  no  Nabão  ,  onde  era  prelado  o  ab- 
bade  Selio  ,  lio  daquella  santa.  Nós  presàmos  e  ve- 
nerámos estas  antigas  e  devotas  tradições,  que  cons- 
tituem uma  bella  porção  da  vida  sentimental  das 
nações.  Ainda  bem  que  não  são  estas  de  que  tratá- 
mos desappoiadas  de  provas  respeitáveis:  ahi  está 
a  notável  villa  de  Santarém  com  seus  nomes  clássi- 
cos trocados  em  memoria  do  sepulchro  de  St.°  Ire- 
ne ;  ahi  ,  na  villa  de  Thomar  ,  notável  também  ,  o 
mosteiro  antiquíssimo  de  St."  Iria,  de  religiosas  cla- 
ristas  ;  o  pego  onde  foi  arrojado  o  corpo  marlyrisa- 
do  da  mesma  santa  ;  e  a  tradição  constante  ,  con- 
servada na  memoria  dos  homens  ,  nas  lendas  .  no 
breviário  ulisyponcnsc,  enos  martyrologios  daslles- 
panhas  (•). 

Da  cidade  de  Nabancia  nos  fallecem  monumentos 
históricos:  o  nome  indica  povoação  romana  ;  mas 
nem  nos  auctores  latinos ,  nem  nos  escriptos  dos 
tempos  gothicos  chegaram  até  nós  provas  de  certe- 
za. Apenas  por  toda  aquclla  área  ,  que  se  estende 
em  volta  do  templo  de  St.'  Maria  do  Olival,  se  en- 
contram vestígios  e  relíquias  de  velhas  construc- 
eões  apagadas,  lagcs  afeiçoadas,  tijolos,  moedas 
mesmo,  de  que  vimos  algumas  de  cobre  dos  reis 
godos.  Nossos  antiquários  dizem  que  quando  os  ára- 
bes entraram  na  Lusitânia  gothica  na  primeira  quar- 
ta parte  do  século  8.°  ainda  o  rio  Nabão  conserva- 
va seu  nome;  mas  que  aquclles  fanáticos  conquis- 
tadores comprazendo-sc  em  mudar  e  trocar  as  de- 
nominações antigas  por  outras  accomodadas  ás  pro- 
pricdailes  locaes,  conforme  o  costume  oriental,  cha- 
maram ao  Nabão —  Titamar  —  que  quer  dizer  aguas 
claras.  Daqui  vem  que  aquella  passagem  da  cliro- 
nica  golhica  :  =  Era  1173  [anno  de  Christo  1135] 
infortuninm  super  chrislianos  in  Thamar^sc  hade 
entender  ,  segundo  a  opinião  dos  mais  críticos  ,  não 
de  alguma  povoação  christaã  que  ahi  houvesse  en- 
tão, mas  do  local  próximo  ao  rio  ;  como  dizendo  =; 
que  junto  ao  rio  Nabão  acontecera  mal  ao  chris- 
tão.  = 

Em  verdade  que  nenhum  indicio  temos  de  haver 
ahi  povoação  alguma  christaã  ou  mourisca  por  esse 
tempo  ,  nem  ainda  24  annos  depois  ,  quando  o  mes- 
tre do  templo,  D.  r.ualdim  Paes,  entrou  no  vasto 
território  de  sua  doação  para  fundar  a  cabeça  e  ba- 
]iado  da  sua  ordem  cm  1'ortugal.  .\s  avessas  nem 
dos  letreiros  que  restam  desse  tempo,  como  já 
deixámos  apontado  n'outro  cscripto  ,  nem  do  foral 
dado  á  villa  de  Thomar  pelo  dilo  mestre,  apparece 
outra  cousa  mais  do  que  uma  inteira  c  nova  funda- 
ção. Concluindo-sc  daqui ,  segundo  nosso  modo  de 
ver  ,  e  depois  de  muito  examinar  ,  que  a  igreja  de 
St."  Maria  do  Olival ,  escolhida  para  oratório  ,  ca- 
pella  ,  e  jazigo  dos  mestres  e  cavalleiros  do  tem- 
plo ,  fora  uma  nova  c  moderna  construcção  do  so- 
Itrcdito  D.Gualdim,  que  ahi  dispoz  sua  sepultura, 
e  ahi  foi  enterrado  ,  como  logo  mostraremos. 

Que  rasão  haveria  porem  para  preferir  esse  local 

(•)  Os  curiosos  (|ue  qiiizcrem  cnfroiiliar-se  iieslas  inte- 
ressantes narrações  podem  consnllar  Brito  na  P.*  2.*  da 
Monarch.  Lusil.  h."  G."  paj.  24;  —  I^r.  Di»?o  do  Rosá- 
rio, n.i  villa  que  corapuz  de  St."  Iiia.  e  o  Marlyrolofio  Lu- 
sitano:—  e  dos  eslraníjeiros  ,  Iltioscas  do  Snnrl/s  Hispan. 
e  Mariot.  ao  mesmo  ass\Mnplo.  O  mailyrio  de  St."  Iria, 
aconleciílo  cm  tempos  do  rei  Ilecesviriltio  por  meado  do  sé- 
culo 7°,  Icm  o  dobrado  interesse,  relieioso  e  arclieologico. 
Jfo  meio  dna  trevas  qualcjiier  fraca  luz  é  d'a]iroveilar. 


afTastado  do  convento  e  castello  ,  separado  por  um 
rio  ,  e  exposto  ás  contingências  das  invasões  mou- 
riscas ,  antes  alli  do  que  dentro  do  recinto  murado 
c  acastcllado  do  convento  ou  próximo  delle,  e  aco- 
bertado pela  fortaleza?  Aqui  forçoso  é  recorrer  ás 
recordações  religiosas,  ás  tradições  venerandas  que 
então  duravam  mais  vivas  sobre  a  relevância  e  san- 
tidade do  logar.  O  mestre  do  templo  havia  abando- 
nado o  antigo  castello  de  Ceras,  único  em  pé  en- 
tre muitos  comprehendidos  no  aro  de  sua  doação, 
por  estar  mal  situado,  em  ponto  menos  central,  em 
paiz  çáfaro  e  infruclifero  ;  alguém  lhe  veio  indicar 
a  fresca  c  deliciosa  abrigada  de  Thomar  ,  e  o  pico 
dominante  em  que  levantou  o  castello  ;  mas  para  o 
culto  religioso,  para  recolher  as  cinzas  dos  illus- 
Ires  guerreiros  da  fé  não  podia  passar  por  alto  so- 
bre as  venerandas  ruínas  que  lhe  ficavam  frontei- 
ras. Alli  naqucllc  sitio  jazeriam  naturalmente  ain- 
da as  rclíi]uías  do  antigo  mosteiro  dos  benedictinos 
dos  tempos  gothicos,  desmoronado  pelo  tempo  ou 
arrasado  [lelos  mouros  ,  e  pelo  lluxo  c  influxo  das 
conquistas  dos  reis  de  Leão  ,  e  dos  musulmanos  ; 
alli,  quem  sabe?  duraria  ainda  a  pequena  igreja 
ou  capellinba  de  S.  Perofins  que,  como  abaixo  ve- 
remos, existia  encostada  á  igreja  actual  de  S." Ma- 
ria ,  nos  princípios  do  século  13.°,  e  que  talvez 
subsistisse  aquella  em  que  o  inconsiderado  Britaldo 
viu,  assistindo  aos  ollícios  divinos,  a  virgem  for- 
mosa St.'  Iria  ,  acompanhada  de  suas  devotas  tias  , 
Casta  c  Júlia.  Alli  ,  cmPim  ,  estavam  como  vincula- 
das as  tradições  respeitáveis  para  homens  que  se 
diziam  soldados  do  templo  de  Salomão,  e  que  alli 
vinham  estabelecer  a  cabeça  da  sua  ordem  reli- 
giosa. 

(Conlinuar-se-ha). 


EGOlTOKIii  ECHSSílCIA. 

Aproveilamenlo   das  folhas  scccas  para  riutrição  do$ 
animaes. 

Em  um  dos  numeres  do:^/oiírí!a/  dcs  Connaissan- 
ces  Utilcs  =  pertencente  ao  corrente  anno  ,  lemos 
um  breve  artigo  em  que  Mr.  F.  W'argnier  en- 
sina o  modo  de  aproveitar  as  folhas  das  arvores  pa- 
ra alimentar  as  vaccas  durante  o  inverno:  a  vulga- 
risação  desta  maneira  de  remediar  o  damno  que  a 
falta  de  forragens  costuma  trazer,  pareceu-nos  que 
seria  de  muita  utilidade  para  a  grande  parte  dos 
nossos  compatriotas  que  vivem  da  lavoura,  e  foi  es- 
te motivo  porque  nos  resolvemos  a  trasladar  para 
este  jornal  o  que  de  mais  interessante  encontrámos 
no  citado  artigo. — As  folhas  que  se  podem  empre- 
gar com  mais  vantagem  são  as  da  macieira  ,  da  pe- 
reira ,  do  álamo  ,  do  olmeiro  e  as  das  parreiras  , 
as  quaes  é  possível  recolher  sem  esperar  que  che- 
guem a  cahir,  pois  se  podem  colher  acabada  a  vin- 
dima :  o  perfume  que  no  outono  costuma  existir  nos 
pomares,  e  que  é  produzido  pelas  folhas  que  se 
vão  separando  dos  troncos ,  prova  que  estas  folhas 
possuem  ainda  bastante  da  sua  propriedade  nutrien- 
te ,  a  qual  pôde  ser  empregada  com  m\iita  vanta- 
gem ,  se  as  colherem  logo  que  se  desprendem  da 
arvore.  Quanto  ao  modo  como  as  folhas  hãode  ser- 
vir para  alimentar  as  vaccas,  quasi  que  nos  servi- 
remos das  mesmas  expressões  de  Mr.  Wargnier.  É 
sabido  que  no  verão  comem  as  folhas  verdes  ,  e  a 
experiência  tem  mostrado  que  no  inverno  as  comem 
scccas.  Uma  destas  expericncias,  e  que  deu  óptimo 


li 


o   PANORAIklA. 


3ol 


resultado  ,  foi  feita  no  inverno  de  1842 ,  no  qual 
houve  muita  falta  de  forragens,  c  misturarani-sc  as 
folhas  cahidas  cora  sêmeas  c  agua  quente  ,  c  com 
este  alimento  se  sustentou  uma  vacca  todo  o  inver- 
no —  cmprega-sc  a  agua  quente  para  misturar  as 
folhas  seccas  com  as  sêmeas,  porque  a  agua  estan- 
do a  uma  temperatura  elevada  ,  tem  a  propriedade 
de  restituir  ás  folhas  parte  do  seu  viço  —  e  dos  po- 
mares devem-se  apanhar  todos  os  dias  as  folhas 
que  forem  cahindo  ,  para  que  a  chuva  as  não  enso- 
pe, pois  muito  convém  que  estejam  o  mais  seccas 
que  fòr  possível  —  quando  estão  muito  molhadas 
nem  tem  sahor  ,  nem  podem  nutrir  :  depois  d'apa- 
nhadas  scccam-sc  ao  sol  espalhadas  em  pannos  pa- 
ra mais  facilmente  se  poderem  transportar.  Vara  as 
folhas  servirem  de  alimento  proveitoso  raisturam-sc 
cora  sêmeas  c  depois  deita-se-lhc  a  agua  quente  o 
mistura-se  tudo  muito  bem  [■■-'.  As  vaccas  sustenta- 
das deste  modo  ,  diz  Mr.  NVargnier  ,  são  robustas 
c  comem  bem.  —  As  folhas  seccas  podem  também 
servir  para  alimentar  cavallos  e  porcos;  mas  neste 
caso  devem  estar  de  molho  pelo  espaço  de  algumas 
horas  em  agua  quente  e  salgada  ;  quando  se  tiram 
põem-sc  a  escorrer  sobre  uma  grade  feita  de  vides, 
e  póde-sc  aproveitar  a  agua  para  outra  vez,  de  mo- 
do que  a  despeza  liça  sendo  insignificante.  Se  de- 
pois desta  operação  ainda  as  folhas  estiverem  mui- 
to húmidas  bota-se-lhc  alguns  punhados  de  farinha 
deavêa:  e  depois  de  assim  ficarem  preparadas  guar- 
dam-se  sobre  palha  e  duram  oito  dias  em  estado  de 
poderem  ser  ministradas  como  boa  ração  tanto  aos 
cavallos  como  aos  porcos.  Muito  estimaremos  que  os 
nossos  lavradores  pensem  sobre  o  que  succiuiamen- 
te  temos  exposto  ,  e  que  por  certo  era  matéria  pa- 
ra muito  desenvolvimento. 

S.  J.  liibeiro  de  Sá. 


Tallevrand. 

[Conchiiílo  de  pag.  c3'á.] 

Napoleão  elevado  ao  poder  soube  aproveitar  a  sa- 
gacidade e  préstimo  politico  de  Tallevrand  :  ambos 
se  escandalisaram  e  aborreceram  das  exaggerações. 
desvarios  e  ferocidade  da  formidável  revolução,  em 
que  por  differentes  modos  se  acharam  empenhados, 
e  que  contribuiu  não  pouco  para  o  engrandecimen- 
lo  de  ambos  ;  superiores  aos  seus  contemporâneos  , 
reais  homens  d'esta(io  praticamente  do  que  fabri- 
cantes de  constituições,  rejeitaram  as  quimeras  dos 
visionários,  e,  vigiando  e  estudando  as  circumslan- 
cias  ,  converteram  quasi  sempre  cm  proveito  pró- 
prio os  resultados  ,  que  ou  preveram  ,  ou  desde  o 
principio  do  movimento  tinham  encaminhado.  No- 
te-se  porem  que  se  na  ambição  de  gloria  e  mando 
os  podemos  suppòr  iguaes,  o  ministro,  conservando- 
se  em  logares  subalternos ,  gozou  largamente  os 
fruclos  de  seus  trabalhos,  ao  passo  que  o  guerrei- 
ro, que  se  abalançou  a  cingir  o  diadema,  teve  que 
descer  do  fastígio  da  grandeza  ,   que  era  ,    para  as- 

(•)  Nus  lerrilorios  vinhateiros  do  nosso  reino,  desde 
tempo  imniemorial ,  se  guanla  para  os  gados  o  bagaço  das 
Hvas.  Põe-se  a  seccar  nas  eiras ,  mexendu-o  para  (pie  nao 
fermente  e  arla,  e  com  o  encinho  de  denles  :iperlailos  se- 
para-se  da  bnganlia  ou  grainha  o  fulhèlh).  Esie ,  que  é  a 
pellicula  dos  bagos  ,  sendo  misturado  com  farelos  e  agua  I 
quente  é  óptima  ração  no  inverno  para  as  cavalgad.iras:  a  ' 
baganha  quer  em  crão,  quer  moída  e  raislurada  na  laiadu- 
ra ,  engorda  muito  os  |>orco8. — Assíia  se  aproveitara  os  re- 
sidw.s  dos  lagares.  —  Os  RR. 


sim  dizermos,  um  estado  violento,  não  para  o  seti 
génio,  mas  cm  relação  á  sua  primeira  condição  ;  foi 
também  por  isso  o  soldado  coroado  mais  alvo  d'in- 
vejas  e  rancores  que  o  manhoso  diplomático. 

Nade  também  observar-se  que  em  quanto  vive- 
ram em  reciproca  boa  intelligencia  ,  c  Talleyrand 
occupou  o  logar  de  ministro  ,  correu  a  epocha  dos 
prosperes  succcssos  para  Napoleão.  A  concordata 
cora  o  papa  foi  uma  das  bases  principaes  do  impé- 
rio ;  Tallevrand  levou  a  cabo  esta  negociação.  O 
tratado  de  Luneville  que  secularisou  os  principa- 
dos ecclesiaslicos  d'Alemanha;  o  de  Amiens  que 
reconheceu  parte  das  conquistas  da  França  e  a  no- 
va forma  dada  pela  revolução  aos  estados  contincn- 
laes  ;  a  convenção  de  Leão  que  organisou  a  repu- 
blica cisalpina  ;  todos  furam  desígnios  políticos  de 
Talleyrand.  E  o  ministro  tinha  a  consciência  da  sua 
valia  e  preponderância  ,  por  quanto  em  ISOl  ,  ven- 
do-sc  precisado  a  ir  tomar  as  aguas  míucraes  de 
Bourbon-rArchambaud  ,  escrevia  de  lá  a  Lonapar- 
te  :  «Pèza-me  ter  que  me  apartar  da  vossa  pessoa 
por  algum  tempo,  porque  a  dedicação  com  que  me 
entrego  aos  vossos  grandes  projectos  conlribue  pa- 
ra que  se  ellcs  cumpram.»  —  Depois  da  batalha  de 
Ulm  appresentou  ao  imperador  um  alvitre  para  cer- 
cear o  poder  austríaco  ,  unindo  o  Tyrol  á  republi- 
ca helvética  ,  e  erigindo  estado  democrático  e  in- 
dependente o  território  veneziano  ,  interposto  entre 
o  reino  dTtalia  c  os  domínios  d'Auslria  ;  e  propu- 
nha conciliar  o  assentimento  desta  ultima  potencia, 
ccdendo-lhe  inteiramente  a  Moldávia,  Valaquia  , 
Bessarabia  ,  c  a  parte  seplenlríonal  da  Bélgica.  As 
vaniagens  que  desta  disposição  intentava  derivar 
eram  remover  a  .\uslria  de  intervir  dentro  da  cs- 
phera  da  iniluencia  franceza  ,  mas  sem  a  hostilísar 
a  ponto  de  a  fazer  ciosa  e  declarada  inimiga  ;  e  ao 
mesmo  tempo  fundar  no  levante  uma  potencia  mais 
apta  que  a  Turquia  a  manter  o  equilíbrio  europeu 
com  a  Rússia.  Napoleão  desattendeu  esta  proposta  ; 
Talleyrand  repclíu-a  ,  depois  da  batalha  d'Auster- 
lilz  ,  mas  do  mesmo  modo  sem  cfrcilo:  qualquer 
lielles  ateimava  como  jiodía  ;  e  sabido  é  que  Bona- 
parte qucíxava-se  da  pertinaz  insistência  do  minis- 
tro nas  propostas  que  julgava  importantes  ;  c  que 
Talleyrand  fallava  do  imperador  como  de  homem  , 
a  quem  se  não  podia  seoir  porque  não  dava  ouvi- 
dos a  pareceres  e  conselhos.  É  cousa  assentada  que 
desta  diíTerença  d'opiníão  datou  a  tibieza  do  mi- 
nistro ató  que  largou  a  pasta  dos  negócios  estran- 
geiros aos  nove  d'agosto  de  1807.  O  estadista  era 
mais  especulador  que  o  guerreiro  :  e  se  principiou 
a  orígínar-se  dcsaflfiíção  entre  elles ,  cumiudo  os 
cargos  da  corte  qucTalleyrand,  já  feito primipe  de 
Benevento ,  exercitava,  não  o  arredaram  inteira- 
mente desta  ;  c  o  desafogo  consistia  nos  eppigram- 
mas  e  censuras  que  jogavam  um  contra  o  outro  ena 
ausência  em  particulares  companhias  ;  dictos  ane- 
cdotícos  de  que  estão  cheias  as  memorias  contem- 
porâneas. Diga-se  o  que  se  disser,  examínnda  a 
historia,  vc-se  que  Bonaparte  esteve  por  algom  tem- 
po sujeito  a  certa  tutela  politica  de  Talleyrand  : 
quando  se  emancipou  e  a  sacudiu  ,  o  diplomático 
não  lhe  perdoou  o  arrojo  e  desde  então  começou  a 
mínar-lhe  o  poder  :  é  indubitável  que  foi  quem  mais 
contribuiu  no  senado  para  a  exclusão  de  Bonapar- 
te ,  quando  os  alliados  invadiram  a  França.  Díz-se 
também  que  o  príncipe  de  Benevento  se  oppnzera 
á  ínv,Tsão  da  Ilespanha  ,  como  depois  combatera  a 
malfadada  jornada  da  Rússia  :  mas  quão  fácil  é  ap- 
plicar  prophecias  aos  succcssos,  quando  ellas  se  dí- 


352 


O  PANORAMA. 


vulgam  depois  de  realisados  csles !  Para  se  lhe 
agradecer ,  não  havia  apparecer  a  assignatura  Tal- 
Icyrand  no  tratado  secreto,  posterior  á  conferencia 
de  Tilsit.  Talleyrand  foi  o  custode  de  Fernando,  e 
mais  priucipcs  hespanhoes  em  Valencey. — Toda- 
via é  certo  que  em  1823  protestou  contra  a  inter- 
ferência da  França  na  questões  internas  da  Hespa- 
nha. 

Em  1814  estava  nomeado  membro  da  regência, 
mas  não  compareceu  em  Blois  ,  porque  foi  detido 
pela  guarda  nacional  nas  barreiras  de  Paris ,  suc- 
cesso  de  que  se  não  agastou  muito,  e  sccna  que, 
na  opinião  de  muitos,  fura  com  antecedência  pre- 
parada de  accordo  com  o  actor  principal.  Em  sum- 
ma  ,  Alexandre,  czar  da  Rússia  ,  hospedou-se  em 
casa  de  Tallejrand  na  capital  da  França  ;  ahi  se 
decidiu  definitivamente  a  abdicação  de  IJonaparle  , 
e  a  entrada  de  Luiz  18." —  As  palavras  que  as  Me- 
morias de  Bourrienc  attribuem  a  Talleyrand  ,  pro- 
feridas nessas  conjuncturas  em  certa  conversação  par- 
ticular, talvez  que  sejam  genuínas:  dizem  assim: 
—  Não  ha  alternativa;  escolher  Napoleão  ou  Luiz 
18.°  Abaixo  de  Napoleão,  não  ha  um  só  que  por 
qualidades  pessoacs  mereça  c  possa  reter  no  seu 
partido  meia  dúzia  d'homens  sensatos.  É  preciso 
uma  opinião  politica  ,  que  dè  consistência  ao  novo 
governo  ,  seja  qual  for  ;  e  Luiz  18.°  representa  ura 
principio,  uma  opinião.  Anão  ser  algum  destes 
dois,  ó  mister  traçar  um  enredo,  e  eu  não  sei  que 
se  possa  armar  e  com  tal  força  que  haja  de  susten- 
tar aquelle  corpo  ou  pessoa,  a  quem  pertendam  con- 
ferir o  governo.»  —  Forçoso  é  confessar  que  nessa 
crise  o  habi!  diplomático  poz  as  maiores  diligen- 
cias para  conservar  c  manter  na  França  a  formula 
monarchico-representativa  ,  ou  governo  constitucio- 
nal, como  outros  publicistas  lhe  chamam  :  que  acon- 
selhou a  carta  ao  rei  ,  e  que  junto  deste  ,  quando 
o  prisioneiro  evadido  d' Elba  pòz  de  novo  pé  no  so- 
lo francez  ,  diclou  a  celebre  proclamação  de  Cam- 
Lray  ,  na  qual  Luiz  confessava  os  erros  commetti- 
dos  cm  1814  e  promettia  repara-los :  vimos  que 
muito  depois  foi  estrénuo  defensor  da  liberdade  da 
imprensa  contra  a  censura  ;  causa  que  talvez  o  ar- 
redou de  brilhar  na  còrle  de  Carlos  10.°,  não  obs- 
tante o  respeito  e  consideração  com  que  era  tratado. 

Em  1814  ,  tendo  já  abandonado  inteiramente  Na- 
poleão ,  foi  outra  vez  nomeado  ministro  dos  negó- 
cios estrangeiros,  e  também  par  de  França  com  o 
titulo  de  príncipe  de  Talleyrand  ;  foi  depois  envia- 
do ao  congresso  de  \'ienna  como  plenipotenciário 
francez  :  e  quando  Napoleão  voltou  d'Elba  para  re- 
conquistar a  França,  no  praso  nomeado  os  cem  dias, 
passou-se  a  Gand  a  juntar-so  a  Luiz  18.°,  e  cora 
cUe  voltou  a  Paris,  decidida  a  batalha  de  Water- 
loo  ,  com  o  titulo  de  presidente  do  conselho  de  mi- 
nistros, que  dahi  a  pouco  renunciou.  Desde  então, 
postoque  sempre  espreitado  e  temido  pela  opinião 
publica  e  mais  ainda  pelo  governo  dos  Bourbons , 
não  deixou  de  conservar  sob  capa  muita  influencia 
nos  negócios  públicos  do  seu  paiz,  nem  de  ser  con- 
sultado pelos  estadistas  d'outros  reinos  ,  com  quem 
mantinha  particulares  relações.  Na  revolução  de  ju- 
lho de  1830  achou-sc  naturalmente  collocado  ao 
lado  de  Luiz  Filippe  ,  proclamado  rei  dos  france- 
zes  :  por  fim  nomeado  embaixador  á  Inglaterra  ad- 
quiriu o  reconhecimento  do  novo  regimen  da  Fran- 
ça ,  realisou  o  seu  antigo  pensamento  da  quadru- 
pla alliança  meridional  ,  e  veio  de  Londres  des- 
cançar  para  o  seu  palácio  de  Valencey.  Morreu 
aos  20  de  maio  de  1838,  com  oitenta   e  quatro 


annos  de  idade.  —  A  vida  publica  deste  homem 
singular  ,  como  a  historia  de  Napoleão  ,  apesar  de 
numerosos  c  contradictorios  cscriptos  ,  ainda  está 
por  escrever  ;  e  por  muito  tempo  serão  incompletas 
as  noticias  e  imperfeitos  os  juizes,  que  os  prelos, 
a  respeito  d'ambos ,  transmitlirem  ao  publico  quer 
para  pasto  da  curiosidade,  quer  para  o  estudo  dos 
philosopbos  moralistas. 


O   THEATHO    NA    ChINA. 


O  DRAMA  ,  entre  os  chinas,  não  comprehcnde  um 
só  feito  ou  acção  única  ,  mas  abraça  toda  a  vida 
do  heroe  ou  prologonista  du  nascimento  até  a  mor- 
te :  ca  modo  de  biogra[>hia  posta  em  dialogo  ,  re- 
partida cm  mais  ou  menos  partes  :  a  cada  uma  des- 
tas secções  precede  um  prologo  ;  e  o  actor  assim 
que  sahe  ao  tablado  explica  como  se  chama  na  co- 
media e  qual  é  o  caracter  e  papel  que  representa  : 
frequentes  vezes  o  mesmo  actor  preenche  diversos 
papeis,  circurastancia  que  muito  concorre  para  des- 
fazer a  illusão.  Nos  movimentos  apaixonados  o  ac- 
tor deixa  de  recitar  e  exprime  os  affcctos  cantando  ; 
musica  estrepitosa  acompanha  aquelles  trechos  lyri- 
cos  ,  cscriptos  cm  verso  ,  que  de  algum  modo  que- 
rem arremedar  a  opera  europea. 

Só  na  capital  e  em  algumas  cidades  consideráveis 
ha  theatros  regulares  :  companhias  ambulantes  ga- 
nham sua  vida  representando  em  festas  e  banque- 
tes. Quando  os  convidados  vão  sentar-se  á  meza  , 
entram  na  casa  do  jantar  três  ou  quatro  cómicos 
vestidos  ricamente  ,  os  quaes  ,  feitas  quatro  hurai- 
lissimas  saudações,  põem  na  mão  da  pessoa  de  mais 
respeito  entre  os  circumstantcs  um  livro  em  que 
estão  escriptos  com  lettras  douradas  os  titulos  de 
50  ou  60  peças  dramáticas,  que  é  tudo  o  repertó- 
rio da  companhia  :  o  livro  passa  de  mão  em  mão 
ató  que  o  presidente  da  meza  assignala  o  drama 
que  escolheu.  —  A  representação  faz-se  na  mesma 
sala,  occupando  os  actores  o  espaço  que  medeia  en- 
tre as  mczas ,  pelo  communi  diípostas  em  duas  or- 
dens. 

Nas  grandes  solemnidades  e  procissões  publicas 
erigem-se  tablados  nas  ruas,  em  que  tem  logar  os 
laes  autos  desde  a  manhaã  até  o  anoitecer. 

Qualquer  auclor  chim  ,  que  logre  alguma  repu- 
tação ,  não  escreve  para  o  Ihealro.  Já  um  impera- 
dor vedou  severamente  aos  mandarins  concorrer 
áquellcs  espectáculos  ;  prohibição  em  nossos  tem- 
pos renovada.  O  ofíicial  tártaro  que  cubica  ir  á 
opera  hade  despojar-se  das  insígnias  da  sua  classe. 

Os  periódicos  chinas  inserem  cuidadosamente  to- 
dos os  rasgos  honrosos  para  os  costumes  e  caracter 
da  nação  ;  mas  cx|iõr-se-hia  a  penas  mui  ásperas  o 
redactor  que  se  atrevesse  a  descrever  qualquer  re- 
presentação theatral ,  ou  fizesse  a  mínima  allusão 
ao  acolhimento  de  alguma  composição  nova  desse 
género. 

As  SUSPEITAS  são  entre  as  nossas  cogitações  como  os 
morcegos  entre  os  pássaros;  aquelles  só  voam  quan- 
do anoitece,  cilas  obscurecem  o  entendimento :  de- 
vem ser  desattendidas  ou  pelo  menos  bem  reprimi- 
das, porque  roubam  o  tempo  e  a  attenção,  que  de- 
vemos empregar  nos  negócios  da  vida  ,  e  por  sua 
causa  se  perdem  amigos.  Alem  de  outras  malfeito- 
rias as  suspeitas  inclinam  os  príncipes  para  a  tyran- 
nia  ,  os  maridos  ao  ciúme  ,  e  dispõem  os  homens 
sensatos  para  a  irresolução  e  melancholía. — Bacon. 


98 


o  PANORAI\IA. 


3õ3 


O   C3STEI.I.O    DS   CHARI. 


O  ciSTELLO,  cujas  ruiiias  procurámos  \ingar  das  in- 
jurias do  lempo  ,  não  foi  torreão  de  godos,  ílagello 
de  território  ,  e  terror  de  visiiihos  em  tempos  feu- 
daes,  porque  se  o  fora,  por  muito  que  respeitemos 
a  antiguidade  ,  não  empregaríamos  a  nossa  penna 
cm  Conservar  memorias  ,  que  por  bem  e  honra  da 
humanidade  importa  deixar  sepultadas  em  profun- 
do esquecimento  ;  foi,  pelo  contrario ,  abrigo  da 
innocencia  ,  asylo  de  desvalidos  ,  soccorro  de  ne- 
cessitados :  foi  sanctuario  da  honra  e  brio  ,  e  de 
Iodas  as  virtudes  publicas  e  domesticas:  e  quando 
os  exemplos  vivos  destas  andam  tão  raros  ,  convém 
ressuscitar  os  mortos,  e  levantar  do  pó  da  terra  um 
biado  forte  que  clamando  =  ««o  moíic/ics  as  minhas 
(■!í!3as==  desperte  em  parentes,  amigos,  visinhos  e 
concidadãos  sentimentos  amortecidos  ,  e  reconduza 
ao  caminho  da  virtude  corações  extraviados. 

A  dez  léguas  da  cidade  do  Porto ,  pelo  Douro 
acima ,  e  quatro  abaixo  de  Lamego ,  levantou  a 
natureza  ,  sobre  a  margem  esquerda  daquelle  rio  , 
um  monte  que  ainda  hoje  é  conhecido  com  o  nome 
de  V  MotUe-(lc-muro»  com  que  Rezende  o  designa 
no  Liv.  1.°  das  suas  antiguidades:  está  collocado 
no  meio  das  serras  do  Craslo  c  Arouca  ,  e  tão  so- 
branceiro a  ellas  que  bem  púdc  ser  considerado  co- 
mo cabeça  de  todas  ;  na  parte  mais  elevada  delle  , 
que  tem  o  nome  de  «  Pirneval «  e  no  lado  do  nor- 
te ,  tem  origem  um  regalo  conhecido  desde  antigos 
tempos  pelo  nome  de  «  Bestanca  >>  o  qual  correndo 
por  espaço  de  duas  léguas  de  sul  para  norte  ,  en- 
tre os  concelhos  de  Ferreiros  no  nascente  ,  e  Ten- 
daes  e  Sinfães  ao  poente  ,  vai  desaguar  no  Douro 
entre  as  povoações  de  Porto-antigo  e  Souto-do-rio. 

Na  margem  direita  deste  regato  ,  a  uma  Icgua 
abaiso  da  sua  origem  ,  está  collocado  o  castello  ou 
torre  de  Cham  ,  em  sitio  tão  agreste  e  escabroso 
que   mais  parece  destinado   para  covil   de  feras  do 

Novembro  1 1  —  1813. 


que  para  habitação  de  homens.  As  aguas  das  chu- 
vas ,  e  a  neve  ,  que  em  grande  parte  do  anno  co- 
bre o  Perneval  ,  correndo  com  grande  Ímpeto  pela 
ladeira  delle  a  juntarem-se  no  Uestança,  tem  esca- 
vado a  terra  e  formado  profundos  valles  ,  ou  antes 
cavernas  por  entre  as  enormes  massas  de  granito  , 
que  deixaram  descobertas  e  levantadas  umas  em 
forma  de  torres  c  castellos  ,  outras  como  dependu- 
radas sobre  os  valles  e  regato.  As  silvas  ,  urzes  e 
carvalhos  ,  e  outros  arbustos  e  arvores  silvestres  , 
tendo-se  apossado  dcUes  ,  e  estendendo-se  aos  val- 
les ,  tem  tornado  tudo  espessas  brenhas  inaccessi- 
veis  a  pés  humanos,  e  só  morada  de  lobos,  de  bu- 
fos e  outras  aves  de  rapina.  O  Bestança  correndo 
ora  despenhado  ,  ora  entalado  por  entre  enormes 
penedos  que  lhe  formam  as  margens  o  leito,  levan- 
ta um  medonho  ruido  ,  que  repercutido  nessas  ca- 
vernas se  faz  ouvir  ao  longe  com  horrível  estrondo. 
O  remanso  que  faz  nos  poços  e  furnas  que  tem  for- 
mado nos  intervalos  das  rochas,  cm  logar  de  ama- 
ciar a  braveza  deste  aspecto  ,  ainda  augmcnla  mais 
o  seu  horror,  porque  a  profundidade  delias  e  a 
sombra  d'annosas  arvores  que  as  cobrem  ,  loriiau- 
do-as  inacccssiveis  á  luz  solar,  e,  quasí  ,  á  luz  di- 
fuza  ,  apprescntam  á  imaginação  extraviada  pelo 
horror  das  trevas  ,  um  insonda\cl  abysmo  ;  e  c  por 
isso  que  o  vulgo  ,  sempre  disposto  a  abraçar  o  ma- 
ravilhoso ,  tem  fabulado  casos  de  nadadores  ,  que 
arriijando-se  a  tentar  aquelles  abysmos  ,  encontra- 
ram mouras  ,  serpes  e  dragões  guardando  palácios 
e  Ihesouros  encantados.  Oh  '.  que  sublimes  ideas 
despertam  estes  lúgubres  logares  a  par  da  doce 
melancholia  que  infundem  n'alma.  Se  vísseis  os 
pobres  enles   que  habitam   toscas   e  rudes   cabanas 

junto  a  esse  castello '. alli  encontramos  um  nnna- 

gcnario  arrastrando  pelo  asqueroso  campo  da  misé- 
ria o  pezado  fardo  dos  annos,    e   ao  rogarmos-lhc 

2."  Serie.  —  Vol.  II. 


3o4 


O  PANORAMA. 


algumas  informações   sobre   a  lorre  de  Cham  ,   le- 
vanta o  rugoso  cncoircado  coUo  ,    e  apontando  com 
o  tremulo  dedo  da  mão  direita  ,    cm  quanto  com  a 
esquerda  limpava  uma  lagrima  de  saudade  que  lhe 
corria  ao  longo  da  enrugada  ressequida  face  «alli, 
nos  diz  clle  ,   na  juvenil  idade  servi   a  honra   c  a 
virtude,  alli  vivi  por  csparo  de  dezescte  annos  no 
regaço  da  cândida  innocencia  ,   porque  o  Sr.  José 
António  Pinto  ,  ultimo  legitimo  descendente  d'esse 
tronco,  que  habitou  aquella  torre,  jamais  arredou 
um  passo  do  trilho  de  seus  maiores  ;   foi  essa  alma 
pura   e  nobre  quem   me  alimentou  até  essa  idade  ; 
fui  depois  defender  a  minha  pátria  dos  inimigos  que 
a  dilaceravam  ,   servi-a  por  espaço  de  trinta  e  seis 
annos  com   as  armas   na  mão  ,    c  em  paga  d'cstes 
serviços,   em  troco   de  tantos  trabalhos,  perigos  c 
privações  ,  recebi  uma  baixa  ,  e  vim  para  estes  sí- 
tios empregar   os  restos  de  minhas  quasi  exhaustas 
forças   em  combater  com  o  mais  feroz  inimigo   da 
humanidade  — a  fome  e  a  miséria—  e  chorar  nas 
horas  d'algum  descanso  ,   recostado  á  sombra  d'a- 
quellas  paredes  ,   a  morte  do  meu  berafeitor  :   ah  ! 
quantas  vezes  ,   sentados  ambos  sobre  aquellas  la- 
gos ,  junto  áqnelle  annoso  cypreste  ,   elle  me  dizia 
com  ternura  de  pai :  —  «Tu  já  estás  era  idade  de 
poder  conhecer  o  mundo  e  pezar  bem  as  reQexões 
que  íou  fazer-le ;  sabe  pois  que  elle  já  não  c  o  que 
foi  no  tempo  dos  meus  maiores,  e  ainda  na  minha 
juventude  ;  os  homens  hoje  já  vão  declinando  mui- 
to da  brilhante  estrada   da  honra  e  da  virtude  que 
os  nossos  antepassados   nos  deixaram    tão  bem   tri- 
lhada ,    e  eu  prevejo  uma  cpocha   em  que   o  luxo, 
o  desprezo  da  religião  ,    a  desmoralisação   e  corru- 
pção dos  costumes  levarão  a  nossa  pátria  ás  bordas 
do  abysmo  ;    foge  ,    eu  to  rogo  ,    por  esse  Deus  que 
nos  está  vendo  e  ouvindo  ,  foge  essa  errada  vereda 
que  elles  vão  seguindo  ,   e  nunca  te  desvies  do  ca- 
minho da  honra  que  te  tenho  feito  conhecer  duran- 
te o  tempo  da  tua  educação  ;  embora  por  isso  sejas 
desprezado  pelos  portuguezes  corrompidos  ,    porque 
os   probos  bemdirão   o   teu   procedimento.    Aquelle 
que  tem   na  sua    mão   os  destinos   dos  homens   pre- 
miará tuas  acções...»  —  Oh  1  e  como  elle  me  fallou 
verdade  I    permitia   o  céu  que  ao  menos   se  verifi- 
que a  ultima  parle  do  seu  discurso...   Aqui  o  po- 
bre velho   não  pòdc  continuar  ,  rompeu  cm  copioso 
pranto,  e  nós,  por  mais  o  não  mortificarmos,  dei- 
xamo-lo ,   depois  de  lhe  dizermos  algumas  palavras 
consoladoras ,  e  dirigimo-nos  ao  castcllo.    !Vão  des- 
diz  clle   da  aspereza    do  sitio  :    é  obra    de  mui   re- 
motos séculos.  EdificTdo  no  meio  dacollina  da  mar- 
gem direita  do  Uestança  ,  tem  por  base  uma  rocha, 
('  quasi  quadrado  ,  e  terá  ue  comprimento  por  cada 
lado  vinte  palmos  pouco  mais   ou  menos  ,   e  ainda 
conserva  sele  ameias  nos  dois  lados  do  poente  ,  que 
a  estampa  appresenta  :  a  janella  ,  que  na  mesma  se 
vè  ,  é  obra  moiicrna  ,    e  na  parte  interior,    ao  nor- 
te ,  tem  uma  porta  em  forma  d'arco  que  commuiii- 
ca  com  uma  escada  estreita   c  em  caracol ,   a  qual 
dava  sabida  por  outra  porta  ,  ao  nascente,  do  mes- 
mo formato  que   a  primeira  ,    c  sòhre  esta  ,   e  pela 
parte  exterior,   ha  uma  inseripção  que  por  gasta  já 
não   é  possível  lèr-se  :    toda    a  casa    que   ora  cxiíte 
contigua   ao  caslello  é  de  construcção  mais  moder- 
na, e  na  extremidade  delia,  opposta  ao  castcllo,  ha 
uma  capella  em  cujo  retábulo  existe  a  seguinte  ins- 
eripção — 

Esta  capella  vunulou  fazer  Franriscn  de  Oli- 
veira c  Ilrilo  c  sua  mul/icr  habel  rinia  da 
Costa.  1671. 


Por  cima  da  porta  desta  capella  estavam  ha  pou- 
cos annos  as  armas  da  casa  ,  de  que  hoje  só  existe 
a  pedra  com  os  cinco  crecentes  ,  c  que  está  fazen- 
do parte  d'uma  pequena  parede!  !  Todo  este  edifi- 
cio  é  dominado  no  nascente  pelo  monto  denomina- 
do Matla  da  Seara,  no  poente  e  na  margem  esquer- 
da do  Bestança  pelo  monte  dus  Faiõcs  ,  ao  sul  pe- 
lo monte  Soutcllo ,  e  ao  norte  pelo  chamado  Matla 
d'  Amanha . 

Foi  este  pobre  e  mesquinho  aposento  o  berço  e 
solar  da  família  dos  Pintos,  que  o  condo  D.  Pedro, 
no  seu  Nobiliário,  denomina  de  Riba-Bestança  ,  as- 
sim como  a  d'Egas  Moniz  era  denominada  de  Riba- 
Bouro,  pelo  paço  e  (erras  que  possuia  nas  margens 
d'este  rio.  Jlas  não  é  por  tal  aposento  que  devemos 
julgar  da  grandeza  e  consideração  daquclla  famí- 
lia, porque  a  singeleza  e  sobriedade  de  nossos  maio- 
res desconhecia  o  luxo  das  cidades  e  palácios  ;  e 
obrigados  a  defenderem-sc  a  cada  momento  de  re- 
petidas correrias  c  incursões  de  inimigos  ,  prefe- 
riam os  escabrosos  alcantilados  serros  aos  campos 
abertos  e  planos,  antepondo  assim  a  segurança,  que 
é  a  primeira  necessidade  da  natureza  ,  aos  regalos 
e  mimos,  que  o  são  da  moleza  e  ociosidade.  Assim 
Egas  Mouiz  teve  morada  na  quinta  de  Cresconhe , 
cm  S.  Thiago  de  Piães,  situada  nas  fraldas  da  ser- 
ra da  Tranqueira  ,  que  também  c  um  ramo  da  de 
Monte-Muro  ,  e  D.  Mendo  de  Gondar  no  paço  d'es- 
te  nome  ,  no  concelho  de  Gestaco  ,  que  é  na  serra 
do  Marão.  D'este  D.  Mendo  de  Gondar  ,  que  veio 
das  Astúrias  com  o  conde  D.Henrique,  e  de  quem 
o  conde  D.Pedro  diz  —  que  era  muito  bom  e  hon- 
rado—  que  para  os  lermos  cm  que  falia  o  conde 
não  é  pequeno  elogio;  descende,  segundo  elle,  a 
família  dos  Pintos  por  seu  filho  D.  Egas  Mendes, 
que  casou  com  D.  Maior  Paes  Pinlo  fdha  de  Payo 
Soares  Pinlo  ,  morador  na  quinla  do  Paço  junto  ao 
caslello  de  St."  Maria,  aonde  hoje  é  a  villa  da  Fei- 
ra ,  e  leve  delia  Ruy  Viegas  Pinto,  de  quem  nas- 
ceu Gonçalo  Uodrigues  Pinto  ,  que  viveu  em  Uiba- 
Bestança  ,  na  torre  de  Cham  ,  concelho  de  Ferrei- 
ros ,  em  tempo  de  D.  Afibnso  2.°  e  D.  Sancho  2.°, 
como  SC  vê  das  inquirições  d'elrei  D.  Allbnso  3.°; 
o  nella  continuaram  seus  descendentes. 

Outros,  como  refere  Brandão  na  Monarchia  Lu- 
sitana ,  Part.  3.'  Liv.  8."  cap.  31  ,  dizem  que  os 
fidalgos  Pintos  foram  um  ramo  dos  Sonsas,  o  qual 
começou  em  D.  João  (iarcia  de  Sousa  ,  neto  do 
conde  D.  Mendo,  chamado  o  Sousão  ,  e  que  fora 
denominado  — Pinto —  por  suas  muitas  perfeições 
naturaes  ,  e  genlileza.  Como  quer  que  seja  ,  o  con- 
de D.  Pedro  falia  de  Vasco  Pinto  [que  viveu  cm 
Uiba-Bestança  ,  c  foi  senhor  da  torre  de  Cham  e 
paço  de  Covellas]  e  de  seus  irmãos,  com  termos 
de  grande  consideração  ;  o  na  Torre-do-Tombo ,  no 
Liv.  dos  privilégios  do  anno  de  153Í-,  segundo  re- 
fere a  Historia  Genealog.  da  C.  U.  noLiv.<).°  cap. 
20,  existe  uma  casta  de  brasão  d'armas,  cm  que 
se  diz  que  Gonçalo  Pinto  fora  alferes  mór  do  du- 
que de  Bragança  ,  que  era  fidalgo  muito  honrado, 
da  geração  dos  Pintos.  Sendo  dado  ao  duque  de  Bra- 
gança, D.  Fernando,  o  julgado  de  Ferreiros  por  D. 
.\ITonso  5.°,  e  coufirnindo  em  seus  successores  por 
carta  datada  em  ISestello  aos  15  d'agoslo  de  1171, 
os  Pintos,  que  eram  moradores  daquclle  julgado  , 
cuiraram  no  serviço  da  diia  rasa,  e  tal  o  fizeram 
que  mereceram  occupar  não  só  aquelle  emprego  de 
alferes-mór  ,  senão  lambem  de  veador  ,  camareiro, 
c  nutres,  porque  nclla  havia  os  mesmos  da  corte: 
obtiveram  a  alcaidaria-mór  de  Chaves  c  Monlalc- 


o  PANORAMA. 


35S 


gre  ,  ns  commendas  de  S.  Salvador  d'Elvas,  c  S. 
Marlinlio  de  Riii\ãcs,  e  o  lucsmo  senhorio  de  Fer- 
reiros, que  ora  o  seu  solar,  c  que  por  isso  fui  cou- 
tado e  honrado. 

5las  ainda  quando  ii.tío  tivéssemos  testemunhos 
tacs  da  consideração  daqnolla  familia,  a  avidez  com 
que  a  maior  parte  das  daquelle  concelho  e  dos  vi- 
sinhos  procura  aparentar-se  com  cila  c  apropriar- 
se  o  sohrenome  de  —  1'iiUo  —  que  raro  é  encontrar 
ainda  hoje  alli  quem  o  não  tenha  adoptado,  seriam 
indícios  bastantes  e  claros  da  consideração  e  esti- 
ma que  mereceram  os  que  lhe  deram  origem  por 
suas  virtudes  publicas  e  particulares.  Não  basla 
porem  tomar  o  nome ,  é  necessário  merecc-lo  imi- 
tando-os  ,  e  se  este  escripto  servir  d'cslimulo  i>ara 
isso,  daremos  por  bem  empregado  o  nosso  trabalho. 
Joaquim  de  St."  Clara  Smza  Pinlu. 


Apontamextos  paua  a  historia  dos  bens  da  coròa 
k  dos  foraes. 


II. 


QfEM  correr  os  livros  dos  nossos  escriptores  que 
trataram  dos  começos  da  monarchia ,  achará  em 
quasi  todos  uma  definição  ou  antes  dcscripção'  da 
cousa  que  segundo  ellcs  se  bade  entender  pela  pa- 
lavra Foral.  Essas  definições ,  bem  que  ás  vezes  se 
approximcm  um  pouco  da  verdade,  são  sempre  mais 
ou  menos  incompletas,  demasiadas,  ou  falsas;  por- 
que realmente  nunca  se  altendeu  bem  aoscaracleres 
dislinctivos  desta  importanlissinia  espécie  de  diplo- 
mas ,  de  que  felizmente  nos  restam  muitos  cente- 
nares ,  e  que  são  a  funte  mais  rica  ,  ou  antes  quasi 
a  única  ,  da  historia  municipal  e  por  consequência 
da  historia  da  classe  a  que  no  simulachro  de  re- 
presentação nacional  dos  tempos  do  absolutismo  se 
chamou  Braço  do  Povo  ,  c  a  que  os  francezes  cha- 
mavam terceiro  estado. 

O  primeiro  erro  que  tem  havido  ,  quanto  a  nós , 
no  definir  os  foraes,  c  o  pertcnder  inclui-los  todos 
em  uma  única  formula.  Daqui  nasceu  confundirem- 
se  as  diversas  espécies  de  cartas  ou  diplomas  a  que 
antes  dos  fins  do  século  13."  se  chamou  fórum,  fo- 
ros, e  depois  foral.  Escrevendo  em  cpochas  em  que 
o  valor  das  palavras  estava  já  fixado,  os  que  trata- 
ram de  similhante  objecto  esqueccram-sc  de  que  no 
século  12.°  ou  13.°,  cm  que  as  idéas  eram  limita- 
das e  confusas,  e  muilo  mais  as  linguas  que  então 
passavam  por  um  periodo  de  transformação  ;  es- 
qucceram-sc  ,  dizemos,  de  que  o  mais  diilicultoso 
mister  de  quem  csUida  as  insliluições  e  os  fados 
desses  séculos  é  o  não  se  deixar  enganar  por  ex- 
pressões variáveis  de  dois  modos,  ou  porque  upr.a 
denominarão  se  applicava  a  differentes  objectos,  ou 
porque  um  objecto  tinha  diílerentes  denominações. 
As  palavras /'orioíi ,  foros,  bonos  foros  ,  l;arla  firmi- 
tudinis  et  stabilHatis  ,  foral ,  estavam  justamente  no 
caso  da  primeira  hypolhese. 

Outro  erro  em  nosso  entender  tem  havido  no  ap- 
prcciar  os  foraes,  eco  imaginar  que  os  redactores 
e  promulgadorcs  desses  diplomas  tinham  idéas  pre- 
cisas e  completas  sobre  a  natureza  da  sociedade,  e 
que  distinguiam  rigorosamente  o  direito  publico  do 
civil  ,  o  systema  de  administração  o  fazenda  do 
exercicio  do  poder  judicial ,  o  ecclesiastico  do  mi- 
litar, os  diversos  modos  de  possuir,  &c.  Xada  dis- 
so, porem,  acontecia:  as  instituições,  como  as 
idéas,   íluctuavam  indecisas ,    lutavam,    compene- 


travam-se.  Quem  intentasse  dizer:  —  «tal  facto  so- 
cial era  deste  modo  em  todos  os  logares  ,  cm  Iodas 
as  circunistanciasi)  —  nunca  poderia  estabelecer  ura 
só  ponto  da  hisloria  da  sociedade;  porque  nem  um 
só  deixaria  de  lhe  ofrerecer  um  certo  numero  d'ex- 
cepções  ,  e  se  pretendesse  concilia-las,  forçosamen- 
te apprescnlaria  a  questão  a  uma  luz  falsa  c  eon- 
tradicUiria.  Atrever-se  a  desprezar  é  talvez  a  pri- 
meira qualidade  de  quem  esluda  o  passado  :  tanto 
o  excesso  como  a  falta  delia  podem  produzir  con- 
sequências graves  na  appreciação  das  cousas  desses 
tempos.  A  didiculdade  de  fugir  a  erros  de  simi- 
Ihaiile  espécie  tem-os  tornado  demasiadamente  com- 
nuins. 

Para  conhecer  pois  o  que  eram  os  foraes  deve-se 
altcnder  não  só  ás  suas  circuinslaiicias  pred  iminan- 
tes  ou  caracterislicas  ,  mas  lambem  ás  variedades 
que  nestas  apiiarccem  ;  é  islo  o  que  procuraremos 
fazer. 

A  principal  espécie  de  foraes  são  as  cartas  de 
povoação  em  que  se  estabeleceram  a  existência,  e  as 
relações  dessas  sociedades  elementares  chamadas 
concelhns  com  a  sociedade  complexa  c  geral  chama- 
da nação  ou  com  os  seus  agentes,  incluindo  debai- 
xo desta  denominação  o  mesmo  rei.  A  tal  espécie 
pcrlence  o  máximo  numero  daquellcs  diplomas  ;  e 
ó  csla  a  idca  que  em  regra  devemos  ligar  á  pala- 
vra foral. 

A  segunda  espécie  c  a  daquellcs  que  eram  ver- 
dadeiras leis  civis  ou  criminaes  dadas  a  um  conce- 
lho que  já  existia  ou  se  formava  de  uovo ,  e  a  que 
faltavam  coilumcs  ou  leis  consuetudinárias  (jue  re- 
gulassem os  direitos  e  obrigações  reciprocas  dos  in- 
divíduos, ou  esses  costumes  fossem  tacs  que  se  tor- 
nasse necessário  reforma-los  para  se  eslabclecer  a 
ordem  e  a  paz  dentro  do  raunicipio.  Esta  espécie 
de  foraes  é  a  menos  vulgar. 

A  terceira  espécie  ó  a  daquellcs  que  eram  sim- 
ples afforamcntos  feitos  collectivamente  ,  ou  por  ti- 
tulo genérico  ,  a  um  numero  d'individuos  ,  deter- 
minado ou  não,  em  que  se  estipulava  o  foro  ou  pen- 
são que  cada  morador  devia  pagar  ao  senhor  do 
terreno,  quer  este  fosse  o  estado  [terras  da  coroa], 
quer  o  rei  [reguengos],  quer  particular  [herdaraen- 
tos].  Esla  espécie,  que  se  alTasla  quasi  inteiramen- 
te da  formula  ordinária  dos  foraes  ,  c  mais  com- 
mum  que  a  antecedente.  Em  geral  os  foraes  das 
povoações  reguengas  pertencem  a  esta  divisão. 

Uma  quarta  espécie  de  foraes  lemos  encontrado 
que  não  pertencendo  propriamente  a  nenhuma  das 
anleccdenles  pode  dizer-se  que  peflencera  a  todas  , 
porque  todas,  e  principalmente  a  primeira  e  segun- 
da ,  predominam  nelles  com  igual  força.  Esses  fo- 
raes parecem  ler  sido  destinados  não  a  constituir 
ou  restaurar  um  município,  nora  a  supprir  a  falta 
de  costumes  tradicionaes  que  servissem  de  direito 
civil  local ,  nem  finalmente  a  fixar  a  propriedade 
indiíidual  por  via  de  uma  carta  d'emphyteuse,  mas 
a  remover  a  desordem  nascida  da  má  organisação 
anterior  disso  ludo  ,  ou  da  tyrannia  e  violência  do 
senhor  da  terra  [donatário]  ,  ou  da  barbaria  e  dc- 
scnfreamcnto  dos  habilantes  ,  ou  de  tudo  isto  jun- 
to.  Similhantes  foraes  não  são  raros. 

Estas  são  as  espécies  em  que  uos  parece  dever 
dividir-se  a  grande  collecção  de  diplomas  que  exis- 
tem nos  archivos  do  reino  sob  a  denominação  de 
foraes.  Sujeitando-as  a  uma  classificação  moderna 
pi)der-se-hiam  considerar  os  primeiros  como  o  pa- 
cto social ,  a  constituição  politica  ,  digamos  assim  , 
dos  municípios,   mas  com  a  circumslancia  de  ligar 


356 


O  PANORAMA. 


estes  ao  corpo  moral ,  em  ciijo  grémio  se  conti- 
nham ;  os  segundos  como  leis  civis  locaes  ;  os  ter- 
ceiros como  um  género  d'emphyteuse  ou  empraza- 
mento ,  em  que  os  empliyteutas  adquiriam  o  domi' 
nio  útil  por  um  titulo  cullcctivo,  ficando  ao  povoa- 
dor, ou  encarregado  de  tornar  cíTectivo  o  empraza- 
mento ,  o  distribuir  c  demarcar  a  propriedade  de 
cada  um  dos  moradores  ,  cujo  numero  ora  se  indi- 
ca ora  não  no  furai  ;  os  quartos  ,  eniíim  ,  como  ura 
Composto  de  tudo  isso  ,  mas  monstruoso  e  incom- 
pleto. 

IVão  esqueça  ,  porem  ,  o  que  dissemos  :  est.is  ca- 
racterísticas de  cada  uma  das  espécies  não  são  ex- 
clusivas :  ;is  vezes  disposições  civis  ou  criminaes  ap- 
parecem  incluídas  na  constituição  municipal  sem 
que  ahi  viessem  para  estabelecer  alguma  relação 
entre  o  concelho  e  o  eslado  ;  assim  como  nos  foracs 
de  legislação  civil  se  vêem  disposições  verdadeira- 
mente reguladoras  d'algumas  daquellas  relações,  c 
o  mesmo  nos  foraes-emprazamentos.  O  hahito  de 
estudar  similhaiiles  documentos  e  cerlo  tacto  his- 
tórico c  que  pude  habilitar  qualquer  a  descriminar 
o  caracter  próprio  de  cada  um  dellcs. 

Sendo  o  nosso  intuito  considerar  os  furaes  prin- 
cipalmente em  relação  á  economia  gerai  do  estado 
trataremos  com  preferencia  dos  da  primeira  espé- 
cie ,  e  por  isso  todas  as  vezes  que  repetirmos  a  pa- 
lavra foral  entenda-se  que  alludiraos  a  ella. 

Teni-sc  dito  que  os  furaes  eram  a  legislação  dos 
concelhos;  e  até  que  houve  uma  epocha  em  que 
foram  as  únicas  leis  do  paiz.  Similhantes  opiniões 
são  ainda  hoje  triíiaes,  e  todavia  hasta  conside- 
rarmos as  condições  necessárias  para  a  existência 
de  uma  nação  ,  allcndermos  ás  disposições  que  se 
achara  no  commum  desles  diplomas  ,  e  finalmente 
lembrarmo-nos  da  situação  híerarchica  ,  do  modo 
de  ser  especial  e  exclusivo  de  cada  classe  da  so- 
ciedade ,  príncipalmenle  nos  dois  primeiros  sécu- 
los da  monarchia  ,  para  conhecermos  o  infundado  e 
até  o  impossível  de  tacs  opiniões.  A  verdade  do  que 
dizemos  breve  teremos  occasião  de  prova-la. 

Qual  seria  o  pensamento  que  presidiu  á  promul- 
gação dos  furaes?  A  resposta  a  esta  pergunta  deve 
esclarecer-nos  sobre  a  sua  verdadeira  natureza. 

N'um  paiz  assolado  por  guerras  de  religião  e  de 
raça  muitas  povoações  antigas  estavam  reduzidas , 
ao  constituír-se  a  monarchia  ,  a  um  montão  de  ruí- 
nas ;  e  SC  nem  as  maiores  e  melhores  escapavam 
[como  nos  consta  de  Braga  e  de  outras  cidades  em 
tempo  do  conde  Henrique]  muito  mais  devia  ser  es- 
sa a  sorte  dos  logares  abertos  e  mal  defendidos. 
Tratava-se  pois  de  fazer  renascer  das  suas  cinzas  as 
antigas  povoações,  c  de  crear  outras  novas,  attra- 
hindo  para  aquellcs  centros  famílias  que  edificas- 
sem os  burgos  e  aldeias  e  cuUi\ assem  os  eami)os. 
Sías  para  que  se  fazia  isto?  Porque  se  não  iam  bus- 
car á  hoste,  ou  exercito,  todos  os  homens  de  guer- 
ra ,  e  não  se  lhes  distribuía  o  território  como  hon- 
ras, coutos,  ou  prestamos,  para  as  cultivarem  com 
os  solarengos  ,  com  os  captivos  mouros  ,  e  com  os 
servos  de  creação  jhomines  de  crealione],  mais  vul- 
garmente conhecidos  pela  denominação  de  malados 
[homines  de  maladia]  ,  ou  ,  emfim  ,  para  evitar  os 
inconvenientes  económicos  que  ,  segundo  ao  diante 
veremos  ,  resultavam  no  distribuir  as  terras  pelos 
miiite.i  [cavallciros]  porque  não  se  preferia  o  sys- 
lema  da  terceira  espécie  de  furaes,  que  não  passa- 
vam de  afforamenlos  colleclivos  e  por  isso  não  ti- 
nham o  mesmo  caracter?  Porque  se  restaurava  até 
certo  ponto   a  organisação  das  províncias  romanas, 


essencialmente  municipal?  O  que  se  casava  mais 
naturalmente  com  o  espírito  da  epocha  era  o  me- 
thodo  contrario  :  as  influencias  do  feudalismo  eram 
enérgicas  entre  nós  no  berço  da  monarchia  ;  os  de- 
legados do  poder  real  e  os  [lossuidores  de  terras 
da  coroa  prucuraiam  dar  aos  seus  cargos  e  presta- 
mos,  que  não  passavam,  aquellcs  de  delegações, 
estes  de  verdadeiros  benefícios  ,  o  caracter  de  feu- 
dos. E  todavia  o  progresso  do  systema  opposto  foi 
rápido  e  espantoso:  nu  fim  do  reinado  de  D.  AlTon- 
so  3.°  Portugal  estava  coberto  de  concelhos.  Ao 
passo  que  nos  paizcs  essencialmente  feudaes  estas 
pequenas  republicas  quasí  sempre  se  formavam  pe- 
la revolta  e  no  meio  de  grandes  lulas,  entre  nós 
realmente  aconteceu  o  que  Mr.  Tbíerry  nega,  e 
mostra  ser  uma  opinião  falsa  rclaíivamenle  á  Fran- 
ça ;  isto  é,  foram  principalmente  instituídas  por  es- 
pontânea vontade  do  rei,  ainda  que  não  faltem  fun- 
damentos para  crer  que  algumas  das  mais  antigas 
cartas  de  communs  ou  foraes  ,  e  entre  estes  o  de 
Coimbra  em  tempo  do  conde  Henrique,  se  obtive- 
ram por  violência  ,  e  depois  de  uma  luta  em  que 
a  aucturidadc  soberana  não  levou  a  melhoria.  E 
quando  outras  provas  não  houvesse  de  que  nestas 
partes  da  Península  lambem  as  conjurações  ou  ligas 
de  burguezes,  chamadas  enlre  nós  irmandades  [ger- 
manitales]  ,  arrancaram  á  força  ,  como  em  França  , 
privilégios  e  franquezas  aos  senhores  ,  bastará  lem- 
brarmonos  da  historia  de  Compostella  ,  no  tempo 
de  Diogo  Gelmirez,  para  conhecermos  perfeitamen- 
te a  identidade  desses  movimentos  populares  em 
um  e  outro  paiz. 

Mas  os  vestígios  desses  factos  ,  que  por  uma 
coincidência  singular  apparecem  quasí  exclusiva- 
mente praticados  nas  cidades  episcopaes  ,  ou  por 
outra  ,  dirigidos  conlra  o  allo-clero,  classe  a  mais 
poderosa,  enlre  a  qual  e  o  rei  também  havia  guer- 
ra mortal;  —  similhanles  vestígios,  dizemos,  fal- 
tam de  todo  no  tempo  de  D.  Affonso  .3.°,  e  é  jus- 
tamente do  reinado  daquclle  príncipe  que  nós  te- 
mos mais  foraes  ,  talvez  ,  do  que  de  todos  os  outros 
reinados  juntos. 

Para  estas  tendências  ,  apparentemenle  mais  po- 
pulares que  feudaes  da  parte  do  poder  central,  hou- 
ve por  certo  motivos.  Se  podermos  attingir  quaes 
fossem  teremos  meios  de  achar  o  pensamento  geral 
dos  foraes,  e  de  por  elle  avaliar  os  caracteres  des- 
tes que  deviam  dirigir-se  a  preencher  as  indica- 
ções daquellas  mesmas  causas  por  que  se  promul- 
gavam. Nós  cremos  que  diversos  motivos  se  deram 
eflectivamentc  para  este  incremento  rápido  dos  mu- 
nícipíos. 

Que  houve  uma  rasão  politica  da  parle  do  ele- 
mento monarchico  —  do  poder  real  —  para  formar 
aquellas  agglomeraçõcs  de  população  plebea  ,  pare- 
ce-nos  incontestável:  o  alto-clero  —  o  mais  terrível 
adversário  da  monarchia  no  iirimeiro  período  da 
nossa  historia  —  estava  por  muitos  modos  ligado 
com  a  nobreza  —  ligado  sobretudo  porque,  em  re- 
lação aos  privilégios  e  á  propriedade,  estas  duas 
classes  eram  idênticas  :  ambas  possuíam  castellos  e 
senhorios,  coutados  e  honrados;  ambas  tinham  pres- 
tamos da  coroa  ;  ambas  se  compunham  de  homens 
de  guerra  ou  os  capitaneavam  ,  porque  em  geral  os 
bispos  eram  mais  expertos  em  provar  armaduras  e 
menear  armas  (|ue  em  entender  o  evangelho  :  a 
sciencia  nas  cathedracs  era  cousa  mui  secundaria  ; 
tinha  o  que  quer  que  era  de  monástica  e  rasteira  , 
c  os  bispos  e  os  seus  cabidos  occupavam-sc  mais 
dos  negócios  terrenos  que  das  cousas  do  céu. 


o  PAl\OR\3IA. 


357 


A  esta  identidade  de  situarão  ,  que  forçosamente 
havia  do  approximar  as  duas  classes  ,  c  por  isso 
fortalecer  uma  pela  outra  ,  accrescia  que  por  igno- 
rante que  fosse  o  clero  ,  comparado  com  a  nobreza 
mergulhada  na  mais  crassa  hnrliaria  ,  ainda  se  po- 
dia chamar  illiistrado.  Alem  disso  a  fidalguia  ,  no 
seu  estado  natural  do  hostilidade  com  o  rei  ,  tinha 
de  soccorrer-se  unicamente  ás  próprias  forças ,  ti- 
rar da  própria  intelligcncia  e  vontade  as  doutrinas 
e  meios  de  se  conservar  forte  e  unida  :  o  clero,  po- 
rem ,  CDCostava-se  a  uma  columna  inabalável  —  as 
doutrinas ,  a  energia  ,  e  a  illustração  da  cúria  ro- 
mana, immensa  para  aquelles  séculos  ;  porque  nun- 
ca na  cadeira  primaz  de  líoma  se  assentou  uma  se- 
rie de  homens  tão  grandes  como  os  que  ,  não  pre- 
sidiram, mas  governaram  o  orbe  catholico,  no  pri- 
meiro periodo  da  nossa  historia.  Assim  o  rei  tinha 
de  sustentar  um  duro  combale  com  a  cleresia,  sem 
que  podcsso  contar  com  a  nobreza  ,  salvo  com  um 
ou  outro  individuo  que  se  inclinava  para  elle  por 
interesses  especiaes ,  que  ás  vezes  não  eram  dos 
mais  licilos  e  honrosos. 

Restava  o  povo.  Apesar  da  crença  viva  ,  da  su- 
perstição ,  e  até  do  fanatismo  das  turbas  naquellas 
eras  ,  o  povo  não  respeitava  o  clero.  Um  phenorae- 
no,  ou  que  se  não  tem  observado  ,  ou  a  que  se  não 
deu  a  devida  importância,  é  a  dislincção  que  o  po- 
vo fazia  entro  as  crenças  religiosas  ,  e  os  ministros 
do  culto — distincção  clara  e  precisa  que  resulta  de 
mil  factos.  De  sei;  ódio  contra  os  dignatarios  da 
igreja  ha  provas  irrecusáveis ,  mais  evidentes  do 
que  do  ódio  contra  a  nobreza.  E  porque?  Porque  a 
má  vontade  que  tinha  aos  nobres  não  podia  resfol- 
gar :  contra  elles  achava-se  cm  campo  só:  a  guer- 
ra do  rei  á  fidalguia  era  uma  necessidade  de  situa- 
ção ;  o  elemento  aristocrático  embaraçava  oprogres- 
so  da  unidade  monarchica  ;  mas  o  combato  dos  dois 
elementos  era  vagaroso  c  surdo  ;  pelejava-sc  nas 
trevas  ;  as  multidões  não  o  viam  nem  sentiam  ;  e 
quando  algum  dos  fados  em  que  elie  se  revelava 
era  de  tal  natureza  que  cilas  o  comprehendessem  , 
altribuiam-no  a  dissensões  individuaes  e  não  alcan- 
çavam que  pertencesse  a  uma  Inta  complexa  de 
classe.  A  guerra  ,  porem  ,  da  cleresia  era  estrepi- 
tosa :  as  batalhas  succediam  ás  batalhas :  o  povo 
palpava  ,  por  assim  dizer  ,  as  armas  dos  contendo- 
res ,  ouvia  o  som  dos  recontros  ,  e  balia  as  palmas 
ao  rei  que  o  vingava  da  metade  ,  não  peior  ,  mas 
mais  poderosa,  dos  seus  oppressorcs. 

Entre  diversos  acontecimentos  daquella  epocha  , 
análogos  ao  que  vamos  apontar,  nenhum  melhor  do 
que  elle  prova  que  tal  era  o  estado  das  cousas.  Fal- 
íamos das  dissensões  do  violento  D.  Sancho  1.°  com 
o  bispo  do  Porto,  D.  Martinho  2.°  ,  dissensões  de 
que  D.  Rodrigo  da  Cunha  falia  como  passadas  en- 
tre os  burguezcs  e  o  prelado  ,  mas  que  foram  ver- 
dadeiramente com  o  rei.  O  papa  Innocencio  3."  nos 
refere  miudamente  a  historia  dessa  lula  atroz  e  te- 
naz, suscitada  pelas  elcrnas'questões  de  jurisdicçucs 
e  tributos  entre  a  monarchia  e  o  clero  ,  e  renovada 
pela  desapprovação  do  bispo  ao  casamento  do  infan- 
te D.  Alíonso  [.\ffonso  2.°]  Da  bulia  relativa  a  este 
negocio  se  vc  que  eirei  lançou  o  povo  —  perdoe-se- 
nos  a  expressão  —  como  ura  mnslim  raivoso  contra 
o  bispo  e  o  cabido  ,  e  que  o  povo  cumpriu  ,  alem 
do  que  se  poderia  desejar,  as  intenções  d'elrei  (•). 

(•)  A  liistoria  desle  drama  popular  que  nào  calie  aqui, 
reservanio-la  para  um  Irabalho  mais  vasto,  a  que  hoje  i]ua- 
si  exclusivamenle  cansaa;ràmos  as  nossas  vigílias  —  os  Estu- 
dos sobre  a  idade  media  porhigueza- 


A  excommunhão  vibrou-se  do  alto  do  sólio  papal 
Sobre  a  cabeça  de  D.  Sancho  c  sobre  as  cabeças  de 
alguns  burguczes  ol)scuros  —  o  rei  nivelou-se  com 
a  plebe,  —  circumstancia  singular  que  mostra  que 
nos  comliatos  com  o  bispo  o  povo  não  fora  apenas 
um  instrumento  cego  c  dehil  :  Innocencio  3."  não 
costumava  f.izcr  vergar  as  cervizes  senão  dos  fortes 
e  altivos  :  desprezava  os  instrumentos  das  violências 
e  tyrannias  ,  e  não  nos  consta  excommungassc  os 
saiões  ou  algozes  que  por  mandado  do  mesmo  D. 
Sancho  arrancaram  os  olhos  ao  clero  de  Coimbra. 
Entre  os  populares  fulminados  na  bulia  lá  se  des- 
cobre um  nome  que  por  si  só  revela  a  existência 
d'um  desses  homens  enérgicos  qtic  costumara  sur- 
gir no  meio  das  turbas  agitadas  e  as  dirigera,  c  são 
durante  algum  tempo  os  seus  Ídolos,  até  que  por 
via  de  regra  ellas  próprias  ou  os  annullam  ou  os 
esmagam.  Chamava-sc  o  burguez  criminoso  Pedro 
Feuíhim-Tirou  ,  denominação  estranha  e  insólita,  se 
a  tomar-mos  como  appelliilo  ,  mas  de  grande  signi- 
ficação ,  se  a  quizermos  olhar  como  uma  destas  al- 
cunhas em  que  o  povo  usa  resumir  pela  circums- 
tancia mnis  proeminente  da  vida  dos  indivíduos  a 
biograpbia  e  o  caracter  dclles.  Pedro,  aquém  o 
vulgacho  denominara  Feudo-tirou  [tirou  o  feudo,  o 
senhorio  .  a  oppressão]  ,  era  porventura  um  0'Con- 
ncll  municipal  do  scculo  13.°,  um  grande  agita- 
dor, sobre  cuja  memoria  as  chronicas  escriptas  nos 
paços  e  nos  mosteiros  chumbaram  a  lagem  do  es- 
quecimento ,  6  que  a  historia  moderna  tem  quasi 
de  adivinhar  nas  palavras  e  nas  allusões  obscuras 
dos  velhos  diplomas. 

Havia  ,  portanto  ,  uma  rasão  politica  para  o  es- 
tabelecimento dos  concelhos  :  o  rei  achava  nelles 
seus  naturaes  alliados.  Que  esta  rasão  fosse  um  cal- 
culo ,  uma  idca  clara  e  precisa  ,  um  systema  fixo 
dos  primeiros  reis,  não  o  diremos — e  até  duvidá- 
mos muito  disso.  5Ias  era  ao  menos  um  instincío  ; 
instincto  que  as  lutas  com  o  allo-clero  e  as  resis- 
tências da  fidalguia  deviam  todos  os  dias  despertar. 
Assim  a  promulgação  dos  furaes  ,  isto  é,  a  institui- 
ção dos  concelhos  ,  torna-se  cada  vez  mais  frequen- 
te, ao  passo  que  os  reis  se  habilitam  para  terminar 
por  uma  composição  vantajosa  a  guerra  ecclesias- 
tica,  e  para  começar  a  grande  ompreza  da  sujeição 
da  aristocracia  secular. 

O  reinado  de  D.  Aílbnso  3.°  é  o  que  mais  corro- 
bora o  nosso  pensamento  ,  c  o  põe  a  uma  grande 
I  luz  :  D.  Affonso  obtivera  a  coroa  das  mãos  do  alto- 
clero  ,  e  nesta  classe  devia  buscar  seu  arrimo.  To- 
davia o  coude  de  Rolonha  não  ignorava  porque  pre- 
ço se  lhe  pertendia  vender  a  posse  do  throno  ,  o 
desde  a  concordata  de  Paris  mostrara  que  a  inten- 
ção de  o  pagar  não  era  muito  vehemente.  De  feito  , 
logo  que  se  viu  pacifico  senhor  do  paiz  continuou 
a  guerra  ecciesiastica  sem  diminuir  ponto  da  ener- 
gia de  seus  antecessores.  Com  menos  relações  en- 
tre os  membros  da  fidalguia  ,  vivos  ainda  os  ódios 
dos  parciaes  de  D.  Sancho  2.°,  elle  devia  forçosa- 
mente recorrer  ás  mesmas  allianças  populares  dos 
seus  antecessores  ,  e  recorrer  com  muito  mais  acti- 
vidade do  que  elles.  Foi  o  que  succedcu  ,  quanto  a 
nós  ;  c  a  multiplicidade  espantosa  de  foraes  conce- 
didos por  este  príncipe,  parece-nos  nascer  mais  des- 
sa causa,  que  da  necessidade  de  povoar,  porque, 
como  já  dissemos  ,  não  menos  possível ,  e  mais  na- 
tural segundo  as  idéas  do  tempo,  era  o  systema 
dos  prestamos  e  o  das  pobras,  ou  concessão  de  por- 
ções do  território  por  emprazamentos,  do  que  o  es- 
tabelecimento dos  concelhos. 


358 


O   PANORAMA. 


E  depois  não  vinha  o  conde  de  Bolonha  de  um 
paiz  ,  a  França  ,  onde  restrugiam  ainda  as  revoltas 
populares  ,  suhreliido  no  norte  ,  e  a  formação  das 
communs?  Teria  sido  para  elle  inteiramente  inútil 
o  espectáculo  dessas  contendas  ,  que.  como  obser- 
va Mr.  Thierrj  ,  eram  quasi  exclusivamente  entre 
o  clero  feudal  e  os  burguezes ,  cuja  força  ellas 
provavam?  Preparando-se  para  resgatar  pela  força 
o  throno  que  obtivera  com  manha  ,  devia  acaso  es- 
quecer-se  de  arma  tão  forte  e  experimentada?  E 
não  apparece  nisto  tudo  uma  explicação  plausível 
das  tendências  miinicipaes  do  seu  reinado,  tendên- 
cias para  as  quaes  não  será  fácil  encontrar  outra 
Tasão  ])olilica  ,  assaz  satisfactoria? 

Temos  assim  achado  uma  causa  para  a  institui- 
ção dos  concelhos :  veremos  depois  se  ella  apparece 
actuando  nas  disposições  dos  foraes,  o  que  servirá 
para  a  demonstrar  a  posteriori.  Chegaremos  por  es- 
se modo  a  uma  conclusão  inteiramente  opposta  ao 
principio  de  que  parece  partir-se  no  artigo  publi 
cado  no  S.°  volume  deste  Jornal  relativamente  aos 
foraes  ,  isto  é  ,  que  foi  o  clero  quem  promoveu  o 
estabelecimento  dos  concelhos.  Alem  de  desconhe- 
cermos a  existência  de  monumentos  históricos  que 
nos  auclorisem  a  assim  pensar ,  as  considerações 
que  fizemos  indicam  inteiramente  o  contrario. 

Se  não  nos  enganámos  ,  o  motivo  destas  differcn- 
ças  capitães  c  fácil  de  conhecer.  Desde  que  se  pu- 
blicaram as  Memorias  de  A.  C.  do  Amaral  hão  si- 
do Citas  quasi  a  única  fonte  de  quanto  se  tem  es- 
cripto  ,  tanto  no  paiz  como  fora  delle  ,  acerca  da 
sociedade  portugueza  primitiva.  Sem  desprezar  os 
uleis  trabalhos  daquelle  sábio  académico  ,  é  incon- 
testável que  elle  nem  sempre  tirou  as  verdadeiras 
conclusões  históricas  dos  documentos  que  consultou, 
e  que  sobretudo  desconheceu  o  modo  de  ser  da  ida- 
de media  ,  ou  ,  para  nos  servir-mos  d'um  neologis- 
mo ,  a  sua  còr  local  (::).  No  que  diz  quando  trata 
dos  foraes  parece  considerar  como  primeira  espécie 
os  dados  por  particulares,  e  entre  estes  figuram  prin- 
cipalmente os  das  ordens  de  monges  cavalleiros,  os 
de  bispos  o  os  de  abbadcs,  fazendo  só  depois  men- 
ção dos  promulgados  pelos  reis;  e  talvez  daqui  nas- 
cesse o  não  se  ver  o  facto  á  sua  verdadeira  luz. 

Todavia  aquellcs  foraes  particulares  ou  !ião  pas- 
sam d'cmprazamonlos  collectivos  ,  ou  são  concedi- 
dos pelos  donatários  da  coroa  como  representantes 
do  rei,  pelos  governadores  dos  districtos,  castellos, 
e  logares  [Icnmlcs]  ,  o  pelos  povoadores  delegados 
ad  hoc  para  inslituirem  o  município  cuja  carta  re- 
digiram. O  verdadeiro  foral,  a  carta  da  commura 
que  fazia  existir  o  concelho  como  entidade  politica, 
partia  do  rei  :  só  delle  podia  parlir.  Fosse  quem 
quer  que  fosse  o  promulgador  do  foral ,  chame  el- 
le até  no  preambulo  do  diploma  ao  território  do 
concelho  instituído  propriedade  sua  (mear.i  hcrcdi- 
talem)  ,  esse  homem  não  era  mais  que  um  repre- 
sentante do  príncipe  ,  exercitava  apenas  uma  dele- 
gação. Ainda  que  a  natureza  dos  foraes  em  Leão  c 
r.astella  seja  diversa  em  muitas  cousas  da  dos  nos- 
sos ,  esta  condição  era  em  ambos  os  paizes  a  mes- 
ma, c  os  cscriptores  portuguczes  deviam  ter  pre- 
sente a  opinião  fundamenta<ln  de  SIartinez  Marina 
a  similhante  respeito. 

(::)  Para  prova  basta  lembr,irmo-nos  de  quão  grave- 
mente elle  ilisciiliii  .se.  a  monaictii.a  fui  na  sua  origem  abso- 
luta 011  niixla,  sem  examinar  primeiro  ."ie  iiiuinelles  lenipos 
havia  a  minima  pussibilidadc  de.'sas  dislincrõos  de  direito 
liolilicn.  Siaiillianle  qiieslão  equivaleria  a  disputar  se  nesse 
tempo  liavia  censura  on  imprensa  livre. 


Mas  ao  que  sobretudo  lhes  cumpria  attender  era 
aos  próprios  foraes.  Nestes  se  acham  as  provas  de 
que  ainda  os  que  mais  parecem  ser  espontaneamen- 
te concedidos  por  particulares  em  território  parti- 
cular dimannm  do  poder  central ;  são  actos  cujo 
auctor  se  ha-de  subentender  que  é  o  rei.  Citaremos 
um  foral  impresso  (•)  c  conhecido,  em  que  se  de- 
monstra evidentemente  a  nossa  proposição  como  nos 
outros  análogos.  É  o  foral  dado  por  Gil  Martins  e 
sua  mulher  á  que  elles  chamam  sua  propriedade 
fnostra  hercílitate)  de  Tcrena.  Concedem-lhe  foro  e 
costumes  d'Evora,  e  ahi  regulam  os  direitos  reaes, 
como  ,  o  fossado  ,  ou  serviço  das  correrias  milita- 
res ,  e  as  calumnias  ,  ou  coimas  dos  crimes  ,  per- 
tencentes ao  fisco  ;  igualam  no  foro  judicial  os  ca- 
valleiros villões  de  Tercna  aos  ricos-homens  e  in- 
f.inçõcs  de  Portugal,  e  os  peões  aos  cavalleiros  vil- 
lões d'o!íírrt.s-  terras;  ordenam  que  tendo  os  de  Te- 
rcna demanda  com  alguém  de  outra  terra  ,  a  causa 
se  decida  jior  inquérito  ou  combate  judicial  (retoj, 
e  que  se  alguém  vier  de  fora  á  vilía  tirar  vinho  ou 
mantimentos,  e  ahi  assassinarem  ou  ferirem  aos pa- 
rcJites  do  morto  não  firjue  o  homizio  ,  isto  é  ,  a  acção 
de  revindicta  ,  ou  o  direito  de  matarem  o  assassi- 
no ,  direito  commura  nesse  tempo  ;  retém  finalmen- 
te para  si  os  reguengos  [a  propriedade  patrimonial 
do  rei],  as  matas,  &c.  —  Como  é  possível  deixar 
de  ver  um  simples  donatário  ou  préstameiro  nesse 
Gil  Martins  que  dispõe  dos  serviços  militares  e  das 
coimas,  tira  direitos  a  estranhos,  dá  privilégios  aos 
seus  súbditos  nos  tribunaes,  c  reserva  para  si  bens 
patrimoniaes  do  rei?  Quem  pôde  admittir  o  irrisó- 
rio absurdo  de  que  os  nobres  de  Portugal  acccita- 
riam  por  seus  iguaes  em  juizo  os  villões  de  Terc- 
na porque  assim  o  mandava  Gil  Martins,  ou  de  que 
os  parentes  de  um  estranho  assassinado  por  esses 
mesmos  villões  poriam  de  parte  o  seu  direito  de 
revindicta  porque  elle  o  ordenava  ?  Sem  o  sacrifi- 
cio   do  senso  commum  tal  supposição  é  impossível. 

A  verdade  é  que  só  uma  auctoridade  que  se  es- 
tendesse por  todo  o  paiz  podia  ordenar  as  relações 
de  um  município  com  os  municípios  ou  indivíduos 
estranhos.  Ouando  cm  alguns  destes  foraes  se  exem- 
plam os  habitantes  de  um  concelho  de  pagar  por- 
tagem por  todo  o  reino,  esíe  pri\ilcgio  vai  affectar 
não  só  a  fazenda  publica  mas  direitos  particula- 
res (")  ;  c  supponha-sc  qual  se  quizer  a  extensão 
do  poder  dos  senhorios  de  terras  ,  c  da  nobreza  e 
alto-clcro  nas  suas  honras,  será  sempre  ridículo 
pensar  que  o  rei  ,  ou  os  outros  nobres  e  prelados 
deixassem  sabir  a  acção  desse  poder  dos  limites  do 
respectivo  território. 

Voltemos,  porem,  ao  nosso  assumpto,  de  que 
um  pouco  nos  alongámos  postoque  não  inutilmente. 

A  segunda  causa  que  devia  obrigar  o  poder  cen- 
tral a  promover  a  creação  dos  municípios  era  a  fa- 
zenda publica  ,  as  necessidades  pecuniárias  does- 
tado :  para  avaliar  a  acção  desta  causa  é  preciso 
tornar  a  dizer  alguma  cousa  sobre  a  propriedade 
publica  ou  bens  da  coroa  ,  cujos  proventos  eram 
poucos,  ao  passo  que  as  contribuições  de  foral  os 
vinham  amplamente  supprir.  A  questão  da  fazenda 
prcndc-sc  com  toda  a  machiiia  da  organisação  so- 
cial ,  e  por  ella  chegaremos  talvez  a  descobrir  as 
outras  características  esscnciacs  das  instituições  de 
município.  —  (Conlinuar-se-ha).  —  fA.  Hereulaiw\ 

(.)     Na  Monnrch.  Lus.  I>.  6."  pag.  r>58—  1.^  o<li<;. 

(••)  Por  muitos  foraos  o  teiço  do  Iribulo  de  barreiras 
que  impavam  as  pessoas  pertencia  ao  siiiis  licspes .  áquel- 
les  que  lhes  davam  ;asalhado  na  povoaç.lo. 


o  PANORAMA. 


3u9 


MORTE   BE   VIRIATO. 


Prosperava  a  potencia  dos  romauos , 
Que  em  terra  e  mar  extiacta  e  fracaçada 
Tinha  a  Pena  (•)  ,  que  teve  largos  annos 
De  He.-pauha  a  maior  parle  avassallada : 

9> 

Já  da  altiva  opulência  de  Carthago 
Só  o  triste  cadáver  ensinava 
Como  ás  maiores  com  maior  estrago 
A  inconstante  fortuna  castigava, 
Nos  vestigios  do  celebre  areoimgo  , 
Já  feitos  brenhas,  feras  alojava; 
Que  onde  acabam  senados  divididos 
Se  vem  a  conservar  brutos  unidos- 

A  belligera  Roma  que  estivera 
Em  vésperas  de  ver-se  qual  a  via , 
Estimulada  de  que  soccorrèra 
Hespanha  tantas  vezes  Berbéria  , 
Commercios .  matrimonies  considera 
Que  entre  Carthago  e  Lusitânia  havia, 
E  resuscita  destes  parentescos 
Os  ódios  velhos  e  os  estragos  frescos. 


13.* 
Dezoito  lustros  de  annos  pelejando, 
Toda  a  potencia  bellica  romana 
Não  pode  ,  já  perdendo  ,  já  ganhando  , 
Acabar  de  render  a  lusitana , 
Quando  do  centro  (qne  ditoso!)  quando 
Da  Bíira  (ó  Beira  eoi  tudo  soberana  ! ) 
Viriato  empunhou  (ventura  e.-tranha!) 
O  cajado,  que  fui  sceptro  d'Hespanha. 

14. 'i 
A  fama  ,  que  em  .=eu  templo  o  engrandece  , 
Pai  e  mài  uesa  a  íàlho  tào  altivo  , 


A  i»cteneia  ou  republica  carlliagiucza. 


E  com  rasão  porque  de  ambos  carece 
Quem  de  suas  obras  foi  filho  adoptivo  : 
Não  lhe  nei;a  a  nação  ,  jicrque  merece 
Ser  coUocada  em  seu  eferno  archivo  : 
Todo  foi  poriuguez  no  esforço  e  manha  . 
Sem  ler  mistura  de  nação  estranha. 

Jirittt.  Trágico.  Potma  de  Vraz  Gar- 
ria de  Mascarenhas.   Cant.  1 .'' 

^'iRiATo  floreccii  pelos  annos  loO  antes  da  era  ebris- 
laã.  Então  ,  os  carlhaginezes  e  os  romanos  cm  luta 
encarniçada  contendiam  sobre  a  posse  da  península 
hispânica  :  aquclles  ,  desfruclondo  vasta  porção  de 
território,  que  ninguém  anles  liavia  pisado,  eram 
os  primeiros  possuidores  das  llespanhas  ;  mas  veio 
dispular-lhes  o  domínio  a  sua  rival  constante,  a  so- 
berba Konia.  Oppozeram-se  capitães  valorosos  aos 
novos  invasores,  principalmente  Annibal  (»)  que 
pactuando  allianra  cora  os  povos  da  nossa  Lusitâ- 
nia ,  deites  tirou  intrépida  soldadesca  que  reuniu 
aos  seus  africanos;  e  depois  de  resistir  na  Penínsu- 
la e  defcndc-la  foi  tomar  a  ollensiva  levando  a  guer- 
ra ao  coração  da  Itália.  A  ousada  passagem  do.- 
Pyrenéus,  'da  Gallia  e  dos  Alpes,  os  triumphos  do 
Tessino  ,  de  Trcbía  .  de  Trasimeno ,  e  a  final  a  ce- 
leberríma  batalha  de  Cannas  ,  encheram  d'eppanto 
e  terror  a  cidade  de  Uoraulo  ;  os  lusitanos  auxilia- 
dores das  armas  carlhaginezas  ,  capitaneados  pelo 
primeiro  Viriato  ,  eram  principalmcnle  dos  vetões  , 
turdulos  e  celtas,  que  habitavam  a  Estremadura  e 
o  Alemtejo.  —  Quando  porem  o  povo  romano,  mais 
admirável  nas  grandes  calamidades  que  nos  dias 
das  victorias,  reassumindo  toda  a  energia  e  acti- 
vidade  ,  rechaçou  os  contrários  .  c  para  cortar-lhes 
(,•)     Vid.  pag.  260  deste  vol. 


300 


O  PANORAMA. 


CS  progressos  enviou  á  Hespanha  as  suas  legiões  : 
assim  que  ellas  dislrahiram  os  naturaes  da  alliança 
cora  os  africanos,  e  obstaram  aos  reforços  e  soccor- 
ros  que  estes  recebiam  da  Peninsula  ,  certa  foi  a 
ruina  de  Cartbago  ,  que  viu  suas  tropas  atenuadas 
c  vencidas  pelos  Scipiões  ,  e  teve  de  largar  a  Itá- 
lia e  por  fim  ceder  a  Hespanha  ,  que  fui  preza  dos 
romanos.  Até  alii  as  regiões  áquem  dos  1'yrenéus 
tinham  sido  os  campos  em  que  tão  poderosos  com- 
petidores guerreavam  pelos  interesses  próprios ;  e 
os  naturaes  ,  divididos  em  parcialidades  ,  reci|)ro- 
camcnte  se  destruiam  ,  ora  a  pró  de  Uoma  ,  ora  de 
Carlhago  ,  sem  que  alguém  erguesse  voz  pela  pá- 
tria opprimida  por  estrangeiros.  Não  bastavam  a 
desperlar-lhes  o  valor  o  sentimento  da  nacionalida- 
de vilipendiada  ,  as  lyrannias  e  violências  dos  go- 
vernadores estranhos  e  a  avareza  com  que  manda- 
vam suas  galés  carregadas  dos  Ihesouros  ,  que  tão 
prodigamente  a  natureza  derramou  no  solo  penin- 
sular. Até  que  convertida  toda  a  Hespanha  em  pro- 
víncia consular,  e  intolerável  cada  vez  mais  o  ju- 
go dos  intrusos,  um  só  homem  lhes  refreou  a  au- 
dácia e  ambição  ;  deliberou-se  um  só  a  vingar  tan- 
tos ultrages  e  a  recuperar  a  perdida  liberdade:  es- 
se homem  fui  o  segundo  Viriato.  —  Nasceu  na  Lu- 
sitânia, e  passou  os  primeiros  dias  da  juventude 
obscuramente  na  tranquilla  occupação  de  pastorear 
gado  :  parece  que  não  era  chegado  a  idade  c  occa- 
sião  de  manifestar  a  sua  intrepidez  ,  mas  de  algum 
modo  anteeipou-a  e  deu-se  a  conhecer  ao  mundo. 
Não  lhe  soffria  o  animo  observar  pacientemente  o 
latrocínio  dos  dominadores  ,  pelo  que  largando  al- 
gumas vezes  o  cajado  e  pondo-se  á  testa  de  outros 
descontentes,  que  do  mesmo  modo  ardiam  em  de- 
sejos de  vingança  ,  sahia  ao  encontro  dos  inimigos  , 
e  quasi  sem  mais  armas  que  a  desesperação  arre- 
batava-lhes  os  espólios  que  levavam.  Assim  foi  cres- 
cendo em  audácia  e  destreza  ,  augmentando-se  de 
dia  para  dia  o  numero  dos  que  se  encorporavam 
nas  fileiras,  de  qué  era  caudilho:  e  apenas  pode 
organisar  corpo  regular  de  tropas  appresentou-se 
em  campanha  abertamente. 

A  primeira  façanha  de  Viriato  fui  attrabir  o  exer- 
cito inimigo  a  uma  emboscada  ,  onde  o  destroçou 
completamente.  Grandíssimo  pasmo  houve  cm  Ro- 
ma ao  saber-se  que  um  troço  de  bandoleiros  [que 
assim  appellidavam  os  soldados  de  Viriato]  haviam 
desfeito  as  hostes  dos  cônsules  Cornelio  Lentulo  ,  e 
c  Lúcio  Jlummio  ,  e  se  iam  assenhoreando  da  Lu- 
sitânia ,  apoz  quatro  assignaladas  batalhas  :  reuni- 
ram pois  as  tropas  mais  veteranas  e  aguerridas,  e 
mandadas  pelo  pretor  da  Hespanha  ulterior  as  en- 
viaram contra  Viriato.  Esto  hcroe  sahiu  a  campo  e 
desbaratou-as  ,  tomando  prisioneiro  o  commandan- 
te  :  neste  canto  do  occidente  desfechou  contra  a  po- 
derosa Roma  golpes  mortaes ,  destroçou-lhe  cinco 
exércitos  causando-lhe  a  perda  dos  melhores  solda- 
dos e  de  afamados  capitães.  Mctcllo,  que  passou  a 
Hespanha  com  os  valentes  que  restavam  á  orgulho- 
sa republica  ,  não  conseguiu  oppòr  diques  ás  victo- 
rias  do  lusitano  ,  e  deixando-o  de  posse  do  territó- 
rio firmou  uma  capitulação  vergonhosa  para  o  se- 
nado romano  :  este  por  sua  altivez  não  approvou  o 
acto  do  general  ,  por  não  dar  animo  ás  outras  pro- 
víncias da  Hespanha  para  sacudir  o  jugo,  imitan- 
do o  nobre  arrojo  dos  portuguezes  :  deu  o  feito  por 
nullo  e  nomeou  novo  general  que  proseguisse  na 
guerra  ;  mas  não  havia  em  Roma  quem  ousasse 
marchar  contra  Viriato.  Então  se  fizeram  alistamen- 
tos forrados ,  requereram-sc  dos  alliados  os  contin- 


gentes auxiliadores,  acerescentou-se  o  numero  das 
legiões.  Quinto  Pompeo  ,  passando  á  Hespanha  com 
este  ultimo  e  jioderoso  reforço  ,  appresentou-se  na 
frente  de  Viriato  ,  para  reparar  as  affrontas  que  ti- 
nham soffrido  as  armas  da  republica. 

Chegou  o  dia  do  combate  ,  e  os  nossos ,  recolhi- 
dos em  seu  acampamento  ,  não  mostravam  signaes 
de  atacar  :  esperavam  sem  duvida  a  presença  do 
homem  que  sempre  os  guiava  á  victoria  ,  queriam 
escutar  o  breve  discurso  que  lhes  inspirava  o  amor 
da  pátria  ,  e  ouvir  as  suas  ordens.  —  Succediam-se 
minutos  a  minutos  ,  e  os  soldados  ,  de  olhos  fitos 
na  barraca  do  general ,  só  os  desviavam  para  ob- 
servar o  nascimento  do  sol  acima  do  horisonte.  Co- 
meçou a  espalhar-se  por  lodo  o  campo  um  presen- 
tiraento  vago  e  funesto,  um  desses  rumores  que  pa- 
recem sabidos  das  entranhas  da  terra,  tanta  é  a  ce- 
leridade com  que  se  communicam  ,  e  tão  inexpli- 
cável ó  a  sua  origem.  Nada  foi  capaz  de  conter  os 
soldados,  e  no  meio  do  sussurro  entrara  a  lenda  do 
seu  capitão.  Que  sanguento  e  horrível  espectáculo 
se  lhes  ofTerece  !  Viriato  jaz  sem  vida  .  .  .  fora  trai- 
doramente  assassinado  ;  testemunha  do  delicio  era 
o  exangue  cadáver  sobre  o  leito  e  crivado  de  pu- 
nhaladas. Que  desesperação  a  daquelles  guerreiros, 
que  não  poderam  defende-lo  ,  nem  preserva-lo  1  — 
«Que  será  da  nossa  terra  ,  viuva  do  seu  mais  he- 
róico deffensor?  —  exclamavam  chorosos  e  lastima- 
dos.—  Gloria  a  li,  Viriato,  que  pela  pátria  mor- 
restes ;  que  foi  mister  a  traição  tenebrosa  para  aca- 
bar com  teu  valor  1  A  nós  cabe  a  amargura  da 
saudade,  e  a  triste  consolação  de  louvar  teus  mé- 
ritos e  de  chorar-te.  —  «A  nós  cabe  o  dever  e  a 
honra  de  vinga-lo»  vozeou  o  maior  numero  ;  e  re- 
bentou a  explosão  confusa  de  soluços  ,  imprecações 
e  ameaças:  fervia  a  cólera  em  lodos  os  corações; 
e  os  militares  meneando  com  violência  as  armas  re- 
queriam que  os  guiassem  ao  combate.  Pelejaram 
sim  e  valentes  ,  mas  sem  ordem  ,  sem  a  voz  e  o 
exemplo  do  idolatrado  capitão  ,  c  succumbiram  ao 
numero  e  á  fatalidade.  Os  que  poderiam  substituir 
Viriato  no  mundo  do  exercito,  (•;  eram  os  próprios 
que  lhe  cravaram  o  ferro  no  coração  ,  comprados 
pela  perlidia  do  astucioso  romano  ,  que  não  poden- 
do vencer  pelo  esforço  e  pericia  militar ,  recorreu 
á  traição  ,  á  cobardia. 

Assim  acabou  Viriato  ,  e  por  sua  morte  voltou 
de  novo  o  jugo  romano  á  península  quebrantada. 
Morreu  antes  do  complemento  de  suas  heróicas  em- 
prezas  ;  mas  a  posteridade  conserva  a  recordação 
da  sua  gloria. 


Refeiík  o  grego  .\galhias,  historiador  de  Justiniano, 
um  bárbaro  uso  dos  Persas. —  Quando  algum  solda- 
do era  accomraeltido  de  enfermidade  perigosa  ,  se- 
paravam-no  dos  camaradas,  e  opunham  era  descam- 
pado ,  dcixando-lhe  diminuto  iirovimculo  de  pão  e 
agua  ,  e  um  pau  para  se  defender  das  feras  se  pu- 
desse, li  bera  de  crer  quantos  pereceriam  ^ictiraas 
de  tão  deshumana  prática  ,  que  sem  duvida  tinha 
fundamento  n'algum  ponto  de  crença,  porque  os  que 
escapavam  não  entravam  na  coramunidade  dos  homens 
sem  que  pelos  magos  [os  sacerdotes  sectários  deZo- 
roastro]  fossem  purificados. 


Os  erros  lambem  instruem:  ha  muita  gente  rica  de 
seus  próprios  desenganos. 


(•)     Braz  Garcia   no  tecido   do  sen    poema    introduz  iiii» 
eslranjeiro.'!  que  perpetraram  o  asaassinio. 


í)9 


o  PANORA3IA. 


361 


HAEITAWTES    DAS   CARTARIAS. 


Deixando  as  picturescas  e  ferieis  praias  do  meío- 
dia  da  Hespanha  ,  era  direcção  qiiasi  recta  para  a 
America  do  Sul  ,  se  o  navegante  dirigir  a  derrota 
um  tanto  sobre  a  esquerda  ,  como  é  costume  em 
taes  expedições  maritimas  ,  e  cruzar  os  mares  d'A- 
frica  a  igual  distancia  da  ilha  da  Madeira  c  do  ca- 
bo Mogador  ,  passando  pelo  moio,  dentro  em  pou- 
co avistará  na  distancia  de  obra  de  40  léguas,  mas 
na  linha  do  seu  ru;no  ,  um  pincaro  escuro  ,  que 
surgindo  á  medida  da  approximação  do  navio  ,  os- 
tentará em  breve  as  robustas  formas  de  um  volcão 
magestoso  ,  que  campèa  sobre  o  mar  ,  que  o  cerca  , 
com  a  estatua  colossal  de  duas  mil  toczas.  Prose- 
guindo  ,  achará  o  viajante  este  pico  rodeado  d'um 
pequeno  archipelago,  e  depois  de  abandonar  á  es- 
querda dois  ilhéus  e  duas  ilhas  mais  avultadas,  e  á 
direita  divisando  oulra  de  medianas  dimensões,  dará 
fundo  no  bellissinio  porto  de  mar,  denominado  Si." 
Cruz  de  Tenerife,  sem  que  se  lhe  escondam  as  cos- 
tas de  uma  ilha  visinha  que  apparece  um  tanto  mais 
para  alem  e  sobre  a  esquerda  ,  não  podendo  porem 
ver  outras  duas  occulladas  pelo  porto  era  que  aca- 
ba de  deitar  ferro. 

Já  o  leitor  terá  comprehendido  que  são  as  Caná- 
rias as  que  formara  este  espectáculo  ;   c  com  effeito 

NovE.«3HO  18  —  18^3. 


são  Clara,  Graciosa,  Faente-ventura  {■)  c  Lançarote 
as  que  o  navegante  avistou  primeiro;  Patina  a  que 
mais  ao  longe  divisou  á  direita;  Canária  a  que  ao 
chegar  a  St.^Cruzvia  mais  internada,  mas  próxima 
a  esta  ;  Gomera  e  Frrro  as  outras  que  Tenerife  lhe 
não  deixava  descobrir.  Este  arcliii)elago  ,  situado  a 
280  léguas  de  Hespanha  e  40  da  costa  d'Africa  ,  é 
uma  jóia  preciosa  da  coroa  hespanhola  ,  assaz  des- 
conhecida aos  habitantes  da  sua  metrópole;  paiz 
outr'ora  afortunado  (::),  ao  presente  decaindo  c 
unicamente  entregue  a  seus  recursos ;  solo  que  a 
natureza  profusamente  adornou  com  lodos  os  seus 
atavios  e  formosuras. 

Propozemo-nos  tratar  destas  ilhas  importantes  ,  e 
tomámos  por  guia  seguro  ura  escriptor  hespanhol , 
o  Sr.  J.  M.  Anlequera. 

Os  habitantes  são  em  geral  bem  parecidos  ,  de 
génio  amável  e  franco  ,  hospedeiros  e  festivos  ,  e 
de  boas  qualidades  moraes  :  a  estes  dotes  juntam 
demais  as  mulheres  certa  ingenuidade  e  natural 
graça  ,  que  muito  agrada  ;  e  as  de  classe  elevada 
devem    equiparar-se    ás    das    sociedades   escolhidas 

(•)      Que  iiiiiiliis  chamam  Furlaicnlnia. 
{::)      Forlu/ialfc  insula: :   jul;.'a-se    que    são  estas    as  H/ms 
fortinosas  da  antiguidade- 

2."  Serie.  — VoL.  II. 


362 


O  PAISORAMA. 


da  Europa  :  a  mocidade  c  ágil ,  esperta  ,  e  de  mui- 
ta penetraçiío  ,  de  que  lem  dado  provas  os  mance- 
bos que  tem  vindo  a  Hcspanha  seguir  varias  car- 
reiras ;  a  educação  das  scnlioras  c  bastante  esme- 
rada ,  sobretudo  nas  cidades  marítimas  ,  e  inteira- 
mente á  maneira  ingleza  ;  porque  assim  neste  ra- 
mo ,  como  no  comraercio  e  até  em  costumes  e  tra- 
to ,  os  canaricnses  tomaram  muito  da  nação  britan- 
nica,  havendo  nos  portos  destas  ilhas  numerosos  in- 
glezes  ,  que  mantém  estreitas  relações  com  os  ha- 
bitantes, e  que  se  aproveitam  dos  cxcellcnles  e  ba- 
ralissimos  géneros  da  terra,  com  a  sagacidade  que 
todos  lhes  conhecem. 

Os  trages  das  pessoas  mais  abastadas  e  polidas 
são  em  tudo  sirailhantes  aos  europeus  :  nas  aldèas 
e  gente  de  baixa  coniição  no!am-se  algumas  sin- 
gularidades ,  de  que  se  fará  idéa  pela  estampa  ad- 
junta a  este  artigo  :  para  um  dos  n."  inimediatos 
reservámos  a  noticia  dos  aborígenes  deste  archipe- 
lago. 


Estudos  Mobaes. 
II. 

O  Parocho  da  Aldeia. 

(CoiUinuado  de   pag.  519.) 


A  VIDA  do  velho  prior  passava  na  verdade  dura  e 
trabalhosa  '.  Como  todas  as  cousas  deste  mundo  o 
egoismo  da  tia  Jeronima  não  era  acibado  e  comple- 
to, ou  ,  para  fallarmos  em  estylo  de  philosophia  fi- 
dalga ,  não  era  absoluto.  O  limitado  e  imperfeito  c 
o  signal  que  o  Creador  estampou  na  fronte  do  ho- 
mem e  na  face  da  terra  para  nos  recordar  a  todo  o 
instante  a  nossa  origem  ;  é  a  barreira  que  ello  alc- 
vantou  diante  deste  grande  myslerio  de  energia  c 
de  audácia  chamado  a  intelligcncia.  Sabedoria,  for- 
ça ,  paixões,  affectos,  tudo  lem  um  horisonte  com- 
mensuravel  —  horisonte  para  as  virtudes  como  para 
os  vicios ,  horisonte  para  o  contentamento  como  pa- 
ra a  dòr.  O  espirito  mede  e  abrange  o  que  ha  mais 
vasto  e  profundo  ;  os  ermos  ,  os  mares  ,  o  coração 
humano;  porque  ao  cabo  disso  tudo  está  o  finito. 
Imnicnsa  ,  eterna,  absoluta,  so  ha  uma  idéa,  que 
está  fora  do  universo.  Esta  é  a  idéa  de  Deus. 

Por  isso  ;  grande  é  somente  Deus ! 

Mas  dizia  eu  que  o  egoismo  da  tia  Jeronima  era 
incompleto  :  digo  mais  :  era  incomplelissimo.  Quan- 
do o  sacristão  vinha  alta  noite  quebrar  o  dormir 
risonho  e  variamente  resonado  do  padre  prior  ;  quan- 
do á  voz  roufenha  do  osliario  aldcião  despertando 
o  pastor  para  ir  levar  as  consolações  extremas  á  ove- 
lha moribunda  e  tira-la  ja  porventura  dos  dentes  e 
garras  do  cão  tinhoso,  se  ajuntava  o  trovejar  ao 
longe  da  tempestade  ,  o  fustigar  da  chuva  nas  vi- 
draças progressivas  das  meias  janellas  ,  e  o  rama- 
Ihar  da  ventania  nos  dois  plátanos  do  adro,  era  sem 
duvida  que  o  resmungar  da  tia  Jeronima  ,  appare- 
cendo  da  banda  da  sua  pocilga  com  a  candeia  mor- 
tiça na  mão  c  as  roupinhas  vermelhas  do  envez,  li- 
nha o  que  quer  que  fosse  repugnante  e  vil.  A  boa 
da  velha  pensava  acaso  que  a  morte  não  seria  Ião 
descortez  que  negasse  ao  espirito  do  pobre  moribun- 
do o  tempo  necessário  para  [loder,  ao  abandonar  o 
corpo,  subir  como  chammasinha  Icnue,  e  galgar  pa- 
ra o  céu  sobre  ura  raio  do  sol  nascente?  l'ódc  ser 
que  sim.  Não  seria  ,  porem  ,  antes  ,  que  cila  prefe- 
risse o  deixar  frigir  |)or  alguns  séculos  nas  caldei- 
ras do  purgatório  aquelhi  almasinha  christaã,   lar- 


gando a  sua  veste  mortal  sem  os  últimos  sacramen- 
tos ,  á  necessidade  de  erguer-se  por  noite  fria  e 
tempestuosa  para  tomar  nos  hombros  uma  parte  da 
cruz  do  ministério  parochial?  Também  isto  pode  ser. 
O  que  se  passava  no  abysmo  da  sua  consciência 
cousa  era  que  cila  não  revelava  a  ninguém  ;  mas 
em  todo  o  caso  era  um  pensamento  egoista. 

Todavia  é  preciso  confessar  que  com  elle  se  mis- 
turava um  sentimento  puro  e  nobre  :  dizia-o  esse 
cuidado  pressuroso  com  que  a  tia  Jeronima  trazia  as 
bolas  de  cor  térrea  ,  o  bernco  de  saragoça,  o  capo- 
te de  barregana,  o  chapeirão  oleado,  e  a  aguarden- 
te de  ginjas,  sem  um  copo  da  qual  o  prior  não  ou- 
saria transpor  o  limiar  da  porta  ,  e  investir  com  as 
fúrias  da  noite  proccllosa  ;  diziam-no  aattcnçãocom 
que  mirava  se  elle  ia  agasalhado  ,  e  as  mil  vezes 
repelidas  ponderações  hygienicas  que  lhe  fazia,  com 
admirável  volubilidade  delingua.  Aaffeição  da  san- 
ta velha  mostrava-sc  em  tudo  isso  viva  e  sincera  ; 
e  o  seu  rcsmonear  ,  que  no  meio  das  idas  e  das 
voltas,  e  do  perguntar  e  do  responder,  ia  rareando 
e  abatendo  como  o  assobio  do  furacão  pelo  valle  , 
perdia  gradualmente  a  expressão  d'cgoismo  e  con- 
verlia-se  pouco  a  pouco  n'um  pensamento  moral. 

E  o  padre  prior  calladol  —  Callado  enfiava  as 
botas  ;  envergava  o  gabiuardo  ;  cubria-se  com  o  ca- 
pote; punha  o  amplo  sombreiro;  enchia  um  copi- 
nho do  exccllcnte  cordial  que  a  boa  da  ama  lhe 
havia  postodiantc;  virava-o  d'umgolpe;  fazia  uma 
visngcm  fechando  os  olhos  com  força  e  estendendo 
os  beiços;  dava  um  estallido  com  a  lingua  no  céu 
da  boca  ;  exprimia  o  íntimo  conforto  que  nelle  ge- 
rara o  ethereo  licor  com  um  brrrahhh  prolongado  ; 
estendia  a  pequena  taça  ,  cheia  de  novo,  ao  sacris- 
tão ,  que  ,  mestre  nos  eslylos  de  cortczia  como  nas 
ccrcmonias  ecclesíaslicas,  se  curvava  formando  com 
o  corpo  um  angulo  obtuso  de  1-ío  graus  despresa- 
das  as  fracções  ,  c  arqueando  o  braço  para  levar  o 
copo  á  boca  sequiosa,  como  se  curva  e  arquea  um 
perahilho  de  guedelhas  sansimonianas  c  miolos  d'a- 
gua  chilra,  ao  conduzir  em  sala  de  baile  a  deusa 
dos  seus  afifeclos  de  vintequatro  horas  ao  meio  do 
turbilhão  doudo  c  [pcrdoe-se-nos  a  blasphcmia]  um 
tanto  parvo  das  valsas  e  contradanças. 

Dciiois  duas  palavras  magicas  sabiam  da  boca  do 
reverendo  pastor:  —  «Até  logo!»  O  seu  effeito  era 
instantâneo  :  o  sacristão  pegando  n'uma  lanterna 
com  as  chaves  da  igreja  na  mão  encamiidiava-se  pa- 
ra lá  seguido  do  padre  prior:  a  lia  Jeronima  fecha- 
va a  porta  apoz  elles;  e  como  se  o  tentador  esti- 
vesse esperando  por  esse  momento,  Iravava-lhe  no- 
\amcnte  do  espirito,  e  oresniuinhar  da  impaciência 
recomeçava  em  breve,  accompanhado  do  ranger  do 
linho  na  roca  c  do  espirrar  da  candeia  a  espaços  , 
e  do  respiro  asthniatico  do  nédio  galo  do  presbité- 
rio, que  enroscado  na  lareira,  abria  de  quando  em 
quando  os  olhos  amortecidos,  e  osccrrava  logo  com 
philosophica  indilTorença,  cm  quanto  a  lia  Jeronima 
esperava  por  seu  velho  amo,  c  se  lhe  apertava  o 
coração  sentindo  o  temporal  que  passava  lá  1'óra  ,  e 
lenibrando-se  de  que  o  enfermo  poderia  ter  guar- 
dado para  hora  mais  decente  c  comraoda  a  agonia 
do  passamento. 

li  pela  serra  fora,  caminho  do  casal  remoto,  vai 
o  velho  prior:  adiante  o  sacristão  com  a  lanterna  c 
a  ambula  da  extrema  nnrção  ,  e  elle  atraz  com  o 
cibório.  As  poças  d'agua  refiectem  essa  débil  cla- 
ridade que  as  alhimia,  e  fazem  um  continuo  plach, 
plach  ,  debaixo  dos  pés  dos  dois  caminhantes  cujo 
passo  appressam   as  cordas  de  chuva  balidas  peles 


o  PANORAMA. 


363 


furacões  do  sudoeste.  Os  pinheiros  baloucando-se 
gemem  trislemeiíle,  e  os  enxurros  estrepilando  pe- 
los córregos  tiram  com  elles  uma  toada  soturna. 
No  céu  profundainenlc  negro  não  appareee  uma  cs- 
trella  ; — nu  terra  ao  longe,  bem  ao  longe,  não  se 


henzendo-se  ao  ouvir  piar  algum  mocho.    E  depois 


de  se  deitar   e  adormecer   sonhava  .  , 


com  que : 


Com  as  combinações  infinitas  da  matéria  eterna  de 
que  deve,  sigundo  as  boas  doutrinas,  ter  rebentado 
o  universo?  —  Não  !  —  Sonhava  com   as  penas  do 


descortina  uma  luz.  A  natureza  debale-se  comsigo  inferno;  e  ao  acordar  pela  manhaã  com  dclUixo,  pc- 
mesma  :   tudo  dorme  entretanto  nos  cazaes  c  na  ai-  I  dia  conlissão  e  sacramentos. 

deia  ,  salvo  o  vellio  |)arocho  e  a  familia  daquclle  I  Já  lá  vão  vinte  annos  !  Bom  tempo  era  esse  —  ao 
que  em  transes  mortaes  espera  o  representante  do  i  menos  para  mim  que  ainda  nem  sabia  da  existência 
Christo  que  llie  traga  as  derradeiras  consolações  c  i  do  animal  chamado  philosopho  ,  classiíica>el  entre 
esperanças,  tntre  a  philantropia  humana  e  as  ago-  j  os  rodeiilia  —  pelo  medroso  e  damninho. —  Em  vin- 
uias  extremas  dus  pequenos  e  humildes  a  noite  e  |  te  annos  que  voltas  tem  dado  o  mundo!  —  Aquella 
a  lempest.ide  ergueram  uma  barreira  quasi  insupc-  j  espécie  vai-se  acabando  de  todo.  .\uctores  decome- 
ravel  :  esta  barreira  desapparece  ,  porem  ,  diante  dias  aprcssai-vos  I  Antes  que  se  perca  o  lypo,  levai 
da  charidade  que   a  todos  nós  ensina  o  evangelho,  i  o  incrédulo  á  scetia.    Dai-nos  algumas  noites  de  rir 


e  que  ao  parocho  impõe  como  dever  imprescripti- 
vel  a  sua  missão  sacerdotal  e  o  seu  caracter  de  pai 
dos  pobres  e  dos  aflligidos. 

A  esta  mesma  hora  ,  em  que  o  velho  prior  assim 
vagueava  por  sendas  alpestres  exposto  ás  inclemên- 
cias de  noite  iuvernosa,  talvez  em  aposento  bem  res- 
guardado ,  no  fim  de  ceia  brilhante,  entre  as  laças 
cheias  de  vinhos  generosos  ,  no  meio  de  mulheres 
formosas  e  voluptuarias  ,  embriagado  era  todos  os 
deleites  dos  sentidos  ,  algum  famoso  espirito  forte 
cirzia  remendos  das  dissertações  soporiferas  d'HoI- 
bach  ou  de  Diderot  ,  e  dissertava  profunda  e  veri- 
dicamenle  sobre  a  mandriice,  cgoismo ,  e  cubica 
do  clero,  ou  carpia  a  superstição  do  povo,  que, 
segundo  a  bcmdita  eschola  da  encrclopcdia  ,  para 
ser  completanicnle  feliz  de  nada  mais  precisa  do 
que  de  abandonar  as  crenças  do  christianismo  ,  e 
de  amaldiçoar  as  esperanças  de  Deus,  o  conforto 
único    da  sua  vida   de  miséria  ,    de  trabalho   c   de 


doudo  c  inextinguivel. 

Os  dias  do  padre  prior  corriam  assim  placida- 
mente  para  o  seu  viver  ínlimo  ,  posto  que  o  duro 
mister  de  parocho  lhe  entenebrecesse  muitas  vezes 
os  horisontcs  da  vida  material.  E  que  importava  , 
se  todos  na  aldeia  lhe  queriam  bem  ;  se  todos  o 
acatavam  como  a  summa  bondade  e  ,  o  qne  não  é 
menos,  como  a  summa  inlelligencia  da  parochia ? 
Até  o  barbeiro  ,  o  próprio  barbeiro  ,  homem  enten- 
dido e  grave  em  maiorias  de  eloquência  sagrada  , 
não  constava  houvesse  jamais  torcido  o  nariz  ás  pra- 
ticas e  sermões  do  padre  prior,  que  elle  ,  com  a 
mão  sobre  a  consciência  ,  punha  acima  dos  melho- 
res de  freiXimolheo  —  um  fradalhão  arrabido,  cou- 
sa brava  em  grilarias  ao  divino,  que  por  via  de  re- 
gra se  incumbia  das  domingas  de  quaresma  naqucl- 
la  freguezia  e  nas  circumvisinhas  com  acceilaçâo  e 
applauso  universal  do  auditório;  mas  cuja  fama  era 
oITuscada   pelos  períodos   singellos   do  velho    saccr- 


amargura.  E  naturalmente  os  neophitos  d'aquella  1  dote,  repassados  de  uncção ,  e  daquella  eloquência 
philosophia  extasiavam-se  em  redor  do  sábio  philan-  de  missionário  que  apesar  de  rude  lá  vai  fazer  vi- 
tropo  que  impando  de  iguarias  delicadas  ,  de  vi-  !  brar  o  coração  do  povo,  affinado  pela  crença  viva  , 
nhos  custosos  e  de  grossa  sciencia,  só  lamentava  a  como  a  harmonia  que  se  tira  das  cordas  de  dois 
ignorância  d'aquelles  a  quem  muitas  vezes  faltava    instrumentos  unisonos. 


então,  falta  hoje,  e  faltará  de  futuro  ura  bocado 
de  pão  negro  para  matar  a  fome  ;  extasiavam-se  al- 
li  diante  da  sensualidade  e  bruteza  de  ura  insensa- 
to vanglorioso,  em  quanto  a  virtude  do  velho  cléri- 
go, exercitada  nos  desvios  dos  montes  e  no  silencio 
da  noite  ,  não  tinha  por  testemunhas  mais  que  ura 
céu  húmido  e  cerrado,  e  o  vulto  impetuoso  e  bra- 
inidor  da  ventania  ;  mas  que  em  vez  das  lisonjarias 
de  parvos  tinha  para  oapplaudir  a  voz  sincera,  con- 
soladora e  santa  da  própria  consciência. 

Havia,  porem,  no  fira  de  tudo  uma  differença  en- 
tre o  homem  do  evangelho,  e  da  falsa  sciencia.  Era 
o  systema  das  compensações.  O  padre  prior,  de- 
pois de  cumprir  com  o  seu  dever  voltava  ao  prcs- 
bytcrio  tranquillamcnte  :  tirava  o  capote  alagado  , 
despia  o  gabinardo  felpudo  ,  sacudia  a  uma  distan- 
cia rasoavel  as  ponderosas  botas  ,  e  enfiando-se  en- 
tre os  grosseiros  Icnçoes  atava  o  fio  do  sonino  no 
ponto  em  que  o  deixara  ;  e  emballado  brandamen- 
te por  sonhos  appraziveis  só  acordava  sol  nado  e  al- 
to ao  bradar  da  tia  Jeronima,  e  ao  cheiro  da  açor- 
da fumegante,  almoço  que,  como  tudo  o  que  era 
consagrado  pelos  séculos  c  pela  tradição,  elle  pro- 
fundamente respeitava. 

E  o  nosso  philosopho?  O  philosopho  rccolhendo- 
se  alta  noite  para  a  sua  pocilga  dincredulidade,  ia 
todo  o  caminho  provando  a  si  mesmo  que  não  ha 
diabos  no  mundo  .  nem  alma  ,  nem  talvez  Deus  ; 
mas  sentindo  arripiarem-se-lhe  os  cabellos  ao  ver 
dançar  a  phosphorcscencia  d'alsum  mamei — rezando 
o  credo  em  cruz  ao  passar  por  algum  cemitério  — 


Agora  porisso  ,  —  o  que  será  feito  de  frei  Timc- 
theo?  '.  Era  naquelle  tempo  ura  frade  guapo  e  alen- 
tado I  O  que  será  feito  dclle?  Se  ainda  vive,  tira- 
ram-lhe  o  burel  e  a  corda  d'espnrlo  — o  seu  capi- 
tal ;  —  vcnderam-lhe  o  convento  —  o  seu  tonel  de 
Diógenes; — prohibiram-lhe  o  capuz  c  as  sandálias 
—  o  seu  direito  inauferivel  de  andar  trajado  como 
lhe  aprouvesse  :  —  e  mandaram-no  ,  desarmado  de 
tudo  isso  ,  pedir  para  o  mendigo  a  esmola  que  se 
dava  ao  burel  ,  ao  esparto  ,  ao  convento  ,  ao  capuz 
e  ás  sandálias.  Bom  passaporte  para  frei  Timotheo 
transitar  pela  valia  plebca  do  cemitério  nos  braços 
mórbidos  e  suavíssimos  da  fome  '.  —  Foi  um  pro- 
gresso de  civilisação  que  se  completou  pelo  lado 
moral  com  o  augraento  das  ioterias  ,  das  casas  de 
cambio  ,  e  das  traducções  de  novellas  e  dramas 
francezes.  Cemaventurada  a  tão  esperta  nação  que 
assim  comprchende  o  espirito  do  presente  século! 

Duas  cousas,  porem,  mais  que  as  práticas  e  ser- 
mões, serviam  para  engrandecer  e  glorificar  o  padre 
prior  não  só  diante  dos  homens  mas  também  diante 
de  Deus.  Era  a  primeira  o  incansável  zelo  com  que 
se  applicava  a  apaziguar  as  rixas,  a  estabelecer  a 
concórdia  domestica  ,  a  pregar  o  trabalho ,  a  guer- 
rear a  embriaguez  ,  e  sobre  tudo  a  santificar  pelo 
cazameuto  as  affeições  illicitas  :  era  a  segunda  o 
fervor  modesto  e  o  innocenle  luxo  com  que  procu- 
rava celebrar  as  festas  religiosas,  principalmente  a 
de  S.  Pantaleão,  orago  da  freguezia  e  de  quem  tan- 
to os  aldeões  como  o  velho  presbytero  criam  airica- 
daraenlc  possuir  oroeiacarpo  da  mão  direita,  oqu.il 


364 


O  PANORAMA. 


devia  ser  de  outro  saiilo  ,  ou  não-santo  ,  se  acere-  jbaixo  de  chave  S.Panlalcão  in  Iclum  sem  lhe  faltar 
ditarmos  cu  cá  pela  minha  parte  accrcdito]  os  pa-  |  dedo  de  pé  nem  de  mão  —  quanto  mais  nm  mela- 
rochianos  da  sé  do  Porto,  que  se  gabam  de  ter  de-  1  carpo  inteirinho.  (Cnntimtar-se-lia.) 

fA.   Herculano). 


O  coras  90  cid. 


N'cMA  das  salas  a  que  dá  entrada  a  crasla  da  sé  de 
Burgos  se  vé  ,  sustentado  por  enormes  varões  de 
íerro  ,  e  pendente  d'uma  cadeia  do  mesmo  metal, 
um  fortíssimo  cofre  ou  arca  de  madeira,  que  pare- 
ce ser  de  álamo  negro  ,  bastante  carunchoso  ,  de 
tosco  feitio  ,  c  guarnecido  tudo  de  barras  e  argolas 
de  ferro;  três  robustas  fechaduras  o  resguardam; 
a  tampa  é  maciça  e  de  uma  só  prancha  :  indica  as- 
sim pela  íórma  ,  como  pelo  estado  em  que  se  acha 
e  pelo  grosseiro  dos  matcriaes  ,  pertencer  a  remota 
antiguidade.  Tem  as  segiiiiílcs  dimensões  :  seis  pal- 
mos de  comprido  por  três  de  largo,  c  dois  e  meio 
de  altura. 

Tradição  constante  allirma  haver  sido  o  dono  da- 
quelle  cofre  o  Cid  Campeador  (•).  Refere-se  que 
vcndo-se  escaco  de  meios  pecuniários  este  guerrei- 
ro ,  quando  intentava  uma  expedição  contra  Valên- 
cia, pediu  a  uns  judeus  unia  considerável  quantia, 
e  deu-Ihes  em  penhor  uns  cofres,  que  lhes  disse 
estarem  cheios  de  ouro  c  jóias  ricas  ,  mas  que  na 
realidade  só  estavam  atulhados  de  sei.xos,  posto  que 
tapados  por  cima  com  riquíssimas  telas.  Os  hebreus, 
confiados  na  boa-fé  doheroe,  contenlaram-se  cm  vèr 
os  pannos  ,  sem  descubrir  para  examinar  o  resto  , 
e  prestaram  o  dinheiro  pedido,  o  qual  lhe  foi  reli- 
giosamenle  pago  assim  que  o  Cam|ieador  ganhou 
uma  batalha  contra  os  mouros,  na  qual  tomou  pre- 
ciosos despojos.  Será  este  um  dos  cofres  ,  que  ser- 
viram naquelle  estratagema  ?  Questão  é  que  não  po- 
demos resolver  ;  todavia  esta  anligualha  é  veneran- 
da pela  tradição  nacional. 

Di/,-se  que  ao  passar  Fernando  7."  por  IJurgos  , 
quando  voltava  da  Catalunha  ,  o  cabido  fez  arrear 
o  cofre  ,  e  abrindo-o  achou-se  dentro  uma  espada  , 
que  por  ser  maior  que  o  com[)rimcnlo  da  arca  esta- 
va atravessada  de  canto  a  canto  :  circumslancia  es- 
ta que  também  nada  explica. 


(•)     ViJ.  a  pag.  340  do  preseulc  vul. 


Igbeja  de  Santa  Maria  do  Olivaí  ,  MAini/  de  todas 

AS   Ol'TUAS   IGREJAS  DA   OrDEM   DE   ChKISTO. 


J[. 


DissESíos  que  a  fachada  da  igreja  era  coeva  do  cas- 
lello  e  convento,  e  eis-aqui  as  rasões  cm  que  nos 
fundámos.  Nós  não  podemos  asseverar  cousa  algu- 
ma com  certeza  sobre  a  cnpacidade  primitiva  da 
igreja  ;  sabemos  pelo  Tombo  que  clrei  D.  Jlanuel  a 
reparou  e  fez  uhi  notáveis  allerações  ;  e  que  D.  João 
3."  lho  accrescentou  as  capellns  interiores  ,  e  pro- 
vavelmente também  a  capella-mór  ,  ainda  hoje  mui 
pequena  ,  para  onde  se  passaram  alguns  dos  jazigos 
que  então  furam  desalojados  de  seu  logar.  Se  ava- 
liarmos porem  pela  altura  pouco  considerável  do 
seu  frontispício  e  estreita  dimensão  de  sua  largura, 
a  igreja  devia  ser  de  pequena  amplitude.  O  fron- 
tispício ó  gothico  ;  parede  grossíssima  de  boa  can- 
taria lavrada  ;  a  porta  cm  arcada  ponleaguda  guar- 
necida de  muitas  e  nuii  delgadas  columnasinhas , 
sem  ornato  nem  nichos  para  estai  nas,  como  foi  usa- 
do mais  tarde  na  archilectura  golhico-sarracena. 
Por  cima  da  porta  e  dando  luz  para  o  coro  está  um 
bcllo  ,  transparente  ,  grande  c  delicado  florão  ,  per- 
feitamente circular,  de  cujo  centro,  como  de  ura 
ponto  ,  sahem  para  a  circumferencia  vários  c  amiu- 
dados raios  feitos  de  fina  pedra  ,  formando  os  en- 
caixes rendilhados  das  vidraças  com  lavores  c  ara- 
bescos ;  lindo  e  muito  elegante  composto.  É  a  úni- 
ca couslrucção  delicada  ,  e  de  mais  apurado  gosto 
que  ahi  se  vè.  Pareceu-nos  ao  principio  ,  pelo  fino 
e  acabado  desta  fresta  ou  florão  ,  que  poderia  ser 
de  data  mais  moderna  ,  e  até  quizemos  concerta-lo 
com  as  reparações  e  melhoramcnlos  d'clrei  D.  Ma- 
nuel :  depressa  porem  nos  desenganámos  dessa  lem- 
brança ,  vendo  que  não  ha  hi  as  espheras  que  mar- 
cam as  obras  deste  soberano,  nem  indicio  o  mais 
ligeiro  de  ser  obra   encaixada   de  novo  ,   e  melhor 


o   PANORA3IA. 


365 


ainda  por  ahi  estar  pegado  e  c^ccllenleracnle  ins- 
culpido ua  pedra  o  emblema  a  que  chamámos  o  si- 
i/num  Salomniiis,  que  evidentemeiíle  demonstra  cons- 
trucção  lemplaria  ,  a  que  ó  allusívo  aquclle  sym- 
bolo. 

1'ara  entrar  na  igreja,  quer  pela  porta  principal, 
quer  pela  única  travessa  ,  situada  ao  norte  ,  des- 
cem-se  actualmente  sete  degraus  ,  prova  manifesta 
que  o  terreno  adjacente  levantara  consideravelmen- 
te :  devendo  notar-se  que  a  igreja  está  eililicada  em 
alto ,  que  não  ha  iii  escorrimento  de  terras ,  nem 
aiUnião  d'agnas,  que  ahi  não  chegam;  e  por  tan- 
to similhanle  aterro  não  pode  proceder  senão  do 
grupo  de  capellas,  casas  e  monumentos  vários,  que 
cercavam  a  igreja  nos  primeiros  séculos  da  monar- 
chia  ,  e  que  pouco  c  pouco  foram  desabando  pelo 
tempo,  ou  demolindo-se  pelos  homens;  sendo  os 
últimos  varridos  daiii  ha  poucos  annos,  como  abai- 
xo SC  verá. 

.\o  meio  das  devastações  antigas  e  modernas  e 
da  perda  do  cartório  ,  ficou  ao  menos  intacto  ,  por 
uma  casualidade  feliz,  o  Tombo  da  ordem  deChris- 
to,  supposto  seja  d'uma  data  mais  recente,  pois  foi 
feito  pelo  doutor  1'edralvares  ,  de  mandado  d'elrei 
D.  João  3.°  Xão  nos  foi  possivel  ver  este  curiosís- 
simo documento  ;  porem  devemos  á  benevolência  e 
curiosidade  patriótica  d'um  palricio  da  villa  de 
Tbomar  ,  que  o  leu  e  percorreu  ,  as  noticias  inte- 
ressantes que  aqui  vamos  consignar  (»j.  O  sobredi- 
to Pcdralvares  personagem  devia  ser  da  ordem  de 
Christo  ,  ouvidor  talvez  ,  porque  se  lhe  deu  sepul- 
tura dentro  da  igreja.  Começa  elle  por  escrever  , 
que  aquella  igreja  de  Si.'  Jlaria  do  Olival  havia 
sido  construída  para  mosteiro  de  monjcs  negros  no 
anno  de  Christo  G.33  ,  em  tempos  de  St.''  Iria  ;  que 
depois  o  Ocou  sendo  de  templários  portuguezes,  e 
que  dentro  e  fora  delia  estavam  jazigos  de  grandes 
personagens.  Deixemos  por  ora  os  monumentos  se- 
pulchraes ,  continuemos  com  a  igreja  c  suas  capei- 
las  ,  e  com  outros  edifícios  exteriores  áquclla. 

Consta  pois  do  raesmo Tombo  que  no  tempo  d'el- 
rei  D.  Manuel  se  fizeram  grandes  obras  na  mesma 
igreja  :  refurmou-se  inteiramente  o  tecto;  fez-se  ser- 
ventia para  o  coro,  que  antes  era  por  fura,  vendo- 
se  ainda  hoje  as  marcas  do  escadorio  que  para  el- 
le conduzia  ,  encostado  á  fachada  para  o  lado  do 
norte.  Por  esse  tempo  e  occasião  se  tiraram  dois 
elegantes  túmulos  chamados  dos  lamareis  ,  que  es- 
tavam encostados  á  entrada  da  igreja.  No  tempo 
d'elrei  D.  João  3."  foram  construídas  as  cinco  ca- 
pellas interiores  do  lado  do  sul,  provavelmente  pa- 
ra dar-lhe  maior  amplidão,  e  talvez  por  devoção 
aos  santos  a  que  foram  dedicadas.  Infelizmente  po- 
rem este  grande  incremento  que  se  deu  ao  templo 
foi  uma  calamidade  para  a  historia  e  para  as  ar- 
tes ,  porque  se  desmancharam  os  nioimentos  que 
estavam  junto  ás  paredes  desse  lado  ,  desaparece- 
ram as  campas  com  suas  inscripções  ,  desalojaram- 
se  as  relíquias  para  as  transportar  a  outros  sítios  , 
e  apagou-se  a  memoria  de  muitas  delias.  Uma  con- 
fusa e  vaga  notícia  ficou  consignada  nas  historias  e 
na  tradição  popular  de  que  naquella  igreja  estavam 
sepultados  todos  os  mestres  dos  templários  em  Por- 
tugal ,  e  os  primeiros  trcs  da  ordem  de  Christo  , 
porem  assígnar-ihes  o  local  da  sepultura  nãu  era 
isso  dado  a  alguém,  porque  desappareceu  tudo  [á 
excepção   de  um   só^  com    a  mais  barbara   e  deses- 

(•)     O  Sr-    PeJro   de  Roure  Pietra,    mancebo   tio  zelo- 
so ,  quauto  amigo  da  gloria  nacional. 


perada  crueldade.  Devemos  pois  muito  ao  auclor 
daquelle  escrípto  [o  do  Tombo  da  ordem  de  Chris- 
to] ,  que  parece  não  viu  já  aqucllcs  monumentos, 
porem  lembrou-se  de  mencionar  as  informações  que 
encontrou  ,  algumas  das  quacs  coratudo  precisam 
rectificação  ,  como  mostraremos.  A  igreja  devia  ter 
sido  pouco  vasta  ,  singela  na  sua  primitiva  cons- 
trucção  e  decoração,  conforme  aos  costumes  simples 
daquelles  tempos.  Faltando-lhc  todas  as  capellas 
interiores  que  .  como  dissemos  ,  são  do  meado  do 
século  1G.°,  teria  provavelmente,  alem  do  altar  c 
pequena  capella-mór  ,  talvez  mais  dois  altares  no 
cruzeiro;  ficava-lhc  a  sacristia  ao  norte,  que  por 
ser  húmida  c  mal  conítruida  se  passou  ao  sul  nos 
tempos  também  d'clreí  D.  João  3."  Tinha  seu  curo 
de  cima  com  entrada  exterior;  ao  lado,  para  o  sul, 
a  casa  do  prior  ou  vigário  que  administrava  e  pre- 
sidia ao  culto  como  parocho  da  povoação  da  >illa, 
com  sua  cerca  de  fraca  importância,  se  a  avaliar- 
mos pelo  que  hoje  ahi  se  vè. 

Um  alpendre  cobria  e  guarnecia  a  entrada  prin- 
cipal,  segundo  o  costume  daquelles  tempos  primi- 
;  tivos  ,  em  que  todas  as  coustrucções  pias  eram  pa- 
ra commodídade  do  serviço  religioso  ,  e  pouco  im- 
portavam ostentações  nem  simetrias  d"archilectura. 
Este  alpendre,  ou  galilé,  como  lhe  chamavam,  era 
destinado  a  abrigar  os  pobres  c  peregrinos  que  ahi 
se  acoutavam  ;  servia  para  pregar  ao  povo  em  occa- 
siões  de  grande  concurso  ;  e  para  adminiilrar  jus- 
tiça, porque  ahi  estava  a  cadeira  ou  seda  de  pedra 
do  alvasíl  ou  juiz  ,  posto  pelos  freires  ,  senhores  da 
juriidicção  ci\il  e  criminal  no  seu  aro  dominial,  bem 
como  o  eram  da  ecclesiastica.  O  raesmo  Tombo  con- 
signa outra  antigualha  mui  curiosa  ,  qual  é  a  de 
haver  ahi  próximo  um  púlpito  exterior  donde  se 
pregava  não  só  á  multidão  quando  afluía  ,  mas  pa- 
ra que  os  mouros  e  judeus  conversos  podesscm  ou- 
vir a  doutrina  chrístaã  e  cathechese  antes  de  pode- 
rem entrar  na  igreja  pelo  baptismo  e  admissão  so- 
lemne  ao  catholicismo. 

A  torre  dos  sinos  que  hoje  se  vè  em  face  da  fa- 
chada e  porta  principal  da  igreja  ,  diz  o  raesmo  es- 
crípto ,  que  fora  alteada  para  essa  serventia  por  el- 
rei  D.  João  3."  Não  duvidamos  que  esta  destinação 
se  lhe  desse  nesse  tempo  ;  mas  outra  devia  ter  sido 
a  idéa  que  presidiu  prímílivamcnle  á  sua  construc- 
ção.  É  ella  ,  como  ainda  hoje  se  vè  ,  uma  torre  go- 
thíca  ,  forte  de  muros,  com  uma  única  pequena 
porta  do  mesmo  gosto  ,  tudo  de  cantaria  tosca.  Is- 
to, e  o  ser  um  pouco  afastada  da  igreja,  indica  se- 
ria destinada  a  recolher  e  refugiar  os  freires,  que 
ahi  residissem  no  serviço  da  igreja  ,  d'uma  repen- 
tina correria  de  mouros.  Tal  era  o  costume  e  a 
prevenção  usada  naquelle  tempo  ;  pois  sabemos  que 
elrei  D.  Affonso  Henriques  mandara  construir  era 
Santa  Cruz  de  Coimbra  uma  torre  para  segurança 
dos  pa<lres,  companheiros  e  successores  do  arcedia- 
go D.  Tcllo  ,  a  qnal  depois  foi  convertida  em  torre 
dos  sinos  como  hoje  é;  e  o  castello  d'Alcobaça  não 
teve  outra  origem  senão  a  de  abrigar  e  defender  de 
iguaes  contingências  os  monges  cistercienses.  O  lu- 
xo dos  grandes  sinos,  e  de  seus  elevados  e  syme- 
tricos  campanários  ,  foi  posterior  de  muitos  annos. 

A  devoção  dos  fieis  ao  santuário  de  St."  Maria 
do  Olival  .  c  a  relevância  dos  cavalieiros  do  templo 
que  o  administravam  ,  a  riqueza  c  preponderância 
da  ordem  de  Christo  que  lhes  succedeu,  foram  pou- 
co e  pouco  multiiilicando  alli  as  coustrucções  pias, 
de  que  vamos  dar  noticia. 

(  Con(inuar-se-ha  J . 


3C6 


O   PANORAMA. 


o    PASSEIO    DA    PlIANTASMA. 

Legenda  do  século  1G.° 

Corria  o  século  decimo-scxio.  A  Europa  comeravn 
a  accorJar  do  prolongado  somno  da  ignorância  cm 
que  tanto  tempo  jazera  ;  porem  esse  primeiro  esfor- 
ço da  intelligencia,  esse  primeiro  vislumljre  da  cla- 
ridade, em  relarão  ;ís  massas  contemporâneas  tal- 
vez ,  longe  de  ser  um  beneficio,  podesse  contar-se 
como  uma  causa  mais  de  calamidade  e  dissolução. 
Proveitoso  e  útil  ,  como  era  forçoso  o  fosse  ,  foi  el- 
le  primeiro  raio  de  luz,  por  isso  que  preparou  os 
mais  agigantados  progressos  dos  séculos  vindouros; 
na  actualidade  porem  ,  como  em  todas  as  epochas 
de  transição,  licito  é  ao  philosoplio  duvidar  se  clas- 
sifique como  prospero  e  bcmfnzejo  ,  se  como  funes- 
to e  malfeitor,  o  primeiro  despertar  das  rudes  intel- 
ligencias  da  idade  media. 

Filha  do  claustro  ,  do  claustro  monachal  e  faná- 
tico ,  trouxe  comsigo  a  primeira  tentativa  o  cunho 
da  sua  origem.  Foram  os  primeiros  ensaios  as  com- 
plicadas o  metnphysicas  questões  de  religião  ,  que 
espalhando-se  do  claustro  n'um  mundo  lodo  d'igno- 
rancia  e  barbaridade  ,  accenderam  em  todos  o  fa- 
natismo o  mais  feroz  ;  e  as  guerras  de  religião  pe- 
lo menos  tão  cruentas  e  por  certo  mais  teimosas  e 
geraes  que  as  da  ambição  até  alli  guerreadas  ;  por 
isso  que  ao  rancor  dos  partidos,  á  cobiça  e  sede  do 
mando  e  demais  impulsos  motores  destas  uniam  a 
intolerância  e  a  sevícia  que  lhes  foi  própria  ;  amea- 
çaram por  um  momento  a  Europa  de  tornar  a  pre- 
cipita-la no  abysmo  de  barbaria  ,  do  qual  apenas 
começava  a  antever  o  termo  c  a  sabida. 

Longe  de  melhorar  os  costumes  ,  de  moralisar  os 
ânimos  da  epocha  ,  foram  os  primeiros  efleilos  de 
taes  contendas  pcorar  uns  e  a  completa  desmora- 
lisação  de  outra.  Um  sccpticismo  atroz  ,  por  isso 
que  nem  sequer  se  apoiava  nas  theorias  de  uma 
philosophia,  que  mais  tardo  somente  veio,  senão  de 
lodo  ao  menos  em  parle  ,  ,  conter  os  seus  sectários 
nos  limites  da  moralidade  absoluta  ,  veio  abalar  to- 
das as  crenças  ;  e  especialmente  nos  grandes  da- 
quella  era  apparece  cm  toda  a  sua  fealdade  a  ne- 
nhuma fé  nas  cousas  divinas  ou  humanas,  o  des- 
conhecimento total  de  todo  o  direito  ;  e  o  quadro 
histórico  do  século  decimo-scxto ,  apprescnta  nos 
contos  de  sangue  e  assassínios  sem  fim,  despidos  de 
toda  aquella  tinta  de  poesia  e  do  um  certo  mages- 
toso,  que  apprescnta  o  dos  séculos  precedentes,  on- 
de o  espirito  cavalheiresco  ,  a  exaltação  religiosa  , 
bem  ou  mal  interpretadas  por  heroes  inteiramente 
destituídos  do  illusl ração,  faz  ao  menos  nascer  uma 
syinpathia  ,  um  sentimento  de  admiração  cnthusias- 
tica  por  esses  hoits  tempos  que  já  foram. 

As  theorias  governativas  daquella  epocha  acham- 
se  desenvolvidas  no  infernal  systema  de  Machiavcl. 
A  força  Iriumpha  constantemente  sobre  a  justiça  e 
a  rectidão ,  como  nas  eras  de  ferro  recem-passa- 
das  ;  porem  o  ponto  de  honra,  o  amor  da  gloria,  que 
douravam  as  cruezas  de  então,  já  não  são  proclama- 
dos no  pendão  dos  cavalleiros  ,  na  lide  dos  cam- 
peões ,  o  interesse  ,  a  avidez  ,  a  má  fé  são  accla- 
madas  sem  pudor  pelos  grandes,  e  o  fanatismo  dos 
soldados ,  o  rancor  das  seitas ,  fazem  do  quadro 
histórico  um  verdadeiro  tecido  de  horrores  c  con- 
fusão ,  destituído  de  interesse  c  de  belleza  para  o  ' 
leitor  sensível. 

Comtudo  não  deixa  o  século  decimo-scxto  de  ap- 
prescnlar  excepções  á  physíonomía  geral.   Um  sen-  i 


timcnlo ,  senão  novo  ,  ao  menos  até  então  compri- 
mido e  quasi  reduzi<io  ao  silencio  ,  começa  a  ani- 
mar os  homens  daquella  idade.  A  par  das  sophisti- 
cas  discussões  dos  theclogos  ,  ao  som  do  tinir  das 
armas  dos  guerreiros,  ao  clarão  das  fogueiras  do 
fanatismo  ,  corporações  inteiras  ,  cidades  e  até  uma 
nação,  a  helvética,  appresenlam  a  atitude  verda- 
deiramente interessante  do  povo  pelejando  pelos  seus 
direitos,  da  humanidade  reclamando  os  seus  foros 
perdidos  ,  e  é  no  meio  das  invasões  das  contendas 
sem  fim  e  sem  motivo  outro  que  a  cobiça  dos  pode- 
rosos, que  os  cantões  pastoraes  da  Suissa  por  uma 
parte,  as  cidades  livres  da  Alem;uiha  e  algumas 
da  Itália  pela  outra,  mostram  o  intuito  generoso, 
desenvolvido  com  a  politica  mais  refinada  ,  de  re- 
\ indicar  a  sua  posição  própria  e  independente,  de 
aproveitar  para  a  confirmarão  dos  seus  foros  as  dis- 
sidências ,  as  paixões,  a  cegueira  dos  grandes  op- 
pressoros. 

Genebra  sobresahe  entre  estes  primeiros  baluar- 
tes da  liberdade  ,  não  só  pelo  valor  dos  seus  de- 
fensores ,  como  pela  sabe<ioria  dos  que  dirigem  sua 
defeza.  Com  uma  firmeza  e  uma  obstinação  verda- 
deiramente heróicas  guarda  a  independência  contra 
as  armas  combinadas  de  três  potentados  ,  qual  o 
imperador  de  Alemanha  ,  o  rei  de  França  e  o  du- 
que de  Saboya  ,  seu  inimigo  natural.  Combinam-se 
nas  almas  dos  seus  cidadãos  o  amor  da  libcrdadt^de 
eras  mais  recentes  com  o  fanatismo  religioso  pró- 
prio da  era  a  que  alludimos;  porque  não  devemos 
olhar  os  republicanos  de  então  exemplos  da  paixão 
da  idade;  fanáticos  a  par  dos  fanáticos  contra  quem 
lutavam,  os  discípulos  de  Calvino  ,  se  não  lhes  fal- 
tara a  força  e  o  poder  do  numero  ,  houveram  por 
certo  convertido  contra  seus  contrários  essas  mes- 
mas perseguições,  essas  mesmas  fogueiras,  que  sof- 
fríam  ,  e  que  tão  amargamente  lançavam  em  rosto 
aos  proselytos  mais  poderosos  da  igreja  romana. 

I.onga  e  áspera  fbi  a  contenda.  Foi  Genebra  pa- 
ra os  protestantes  da  Alemanha  o  que  mais  tarde  e 
com  menos  fortuna  foi  a  líochella  para  os  france- 
zes ,  e  contra  os  seus  muros  vieram  quebrar-se  de- 
balde o  poderio  das  três  potencias  ,  as  iras  roma- 
nas ,  a  intolerância  c  perseguição  ,  e  as  fúrias  dos 
soldados  do  despotismo. 

Não  é  nosso  fira  relatar  os  innumeros  combates 
batalhados  ante  a  cidadella  da  reforma  ,  entre  os 
fanáticos  de  uma  e  de  outra  crença.  Vamos  segmen- 
te pôr  na  presença  dos  nossos  leitores  uma  tradi- 
ção ,  que  ,  pelas  circumstancias  romanescas  que  a 
revestem  ,  nos  parece  própria  a  entreter  a  imagi- 
nação ;  pela  sua  natureza  própria  a  niostrar-nos  o 
caracter  daquella  idade,  em  que  predomina  a  pai- 
xão do  século,  a  paixão  das  republicas  formadas 
sob  a  lei  da  reforma  ,  fanatismo  c  liberdade  ,  su- 
perior a  todas  as  outras  considerações ,  ao  próprio 
sentimento  do  amor  ,  tão  poderoso  em  peito  femi- 
nil ;  c  finalmente  acompanhada  do  maravilhoso  ,  do 
sobrenatural ,  do  terrível ,  associados  ás  legendas 
daquelle  tempo  supersticioso,  e  que  ainda  hoje  in- 
fluem nas  idcas  dos  povos,  no  meio  da  civilisação 
actual ,  ainda  na  presença  do  espantoso  desenvolvi- 
mento das  luzes  e  da  rasão  no  nosso  século. 

Entre  os  mais  acérrimos  perseguidores  da  refor- 
ma contavam  os  discípulos  de  Calvino  um  prínci- 
pe a  quem  talentos  extraordinários  .  actividade  de 
espirito  sem  par,  e  uma  má  fé  commum  a  todos  os 
potentados  da  epocha,  dirigida  com  uma  intelligen- 
cia acima  do  vulgar,  grangearam  o  appellido  de 
grande.  Era  Carlos  Manuel,  duque  de  Saboya,  não 


o  PANORAMA. 


3G7 


só  pelas  rasõcs  de  crença  e  sua  alliança  com  as  po- 
Icncins  catholicns,  mas  lambem  pela  sua  proximi- 
dade aos  limites  de  (ícnebra  ,  o  mais  temível  dos 
contendores  ,  o  mais  interessado  na  queda  da  cida- 
de ,  e  aquelle  cuja  presença  contínua  mais  incom- 
niodava  os  seus  moradores.  Tréguas  mais  ou  menos 
duradouras  suspendiam  por  vezes  a  guerra  aberta 
entre  os  dois  visinlios  ;  porem  a  má  fé  do  tempo 
não  pcrmitlia  o  inteiro  descanço  nos  tratados,  e  o 
duque  tanto  na  paz  como  na  guerra  cnticlinlia  cons- 
tantemente na  fronteira  um  exercito  de  observação, 
prompto  a  violar  a  suspensão  proracltida  de  hostili- 
dades ,  na  primeira  occasião  que  se  oflerecesse  de 
o  poder  fazer  com  vanlngem. 

Commandava  [na  epocha  a  que  se  refere  a  nossa 
narração]  os  exércitos  do  duque  de  Saboya  o  conde 
de  Martigny,  um  dos  generaes  mais  babeis  do  seu 
tempo.  Eustacbio  de  Beauvoisin  por  parte  dos  re- 
publicanos commandava  a  guarnição  da  cidade,  c 
apesar  de  uma  paz  solemncmente  jurada  entre  os 
dois  contendores,  nenhum  dos  chefes,  nenhum  mes- 
mo dos  soldados  deixavam  d'espreitar  a  occasião  de 
mutuamente  se  sorprendcrem.  Os  saboyanos  com 
tudo ,  mais  disciplinados ,  não  passaram  nos  co- 
meços da  trégua  de  alguns  insultos  ,  de  algumas 
provocaçiães  dirigidas  quasi  sempre  contra  os  após- 
tolos da  reforma,  cujo  vestuário  e  maneiras,  afie- 
ctadamenle  seíeros  e  simples,  mais  provocavam  o 
cscarnco  do  que  o  ódio  dos  soldados  de  um  senhor 
poderoso  c  opulento  ,  qual  era  o  duque.  Porem  a 
provocações  desta  espécie  respondiam  os  novos  con- 
vertidos com  amargas  represálias.  Apesar  da  boa 
guarda  e  vigilância  do  exercito  de  jMartigny,  par- 
tidos da  gente  de  lícauvoisin  entravam  continua- 
mente as  fronteiras  catholicas,  e  alli  vingavam  nos 
cruzeiros  das  estradas  ,  nos  nichos  dos  santos  ex- 
postos á  devoção  publica  nos  caminhos  reacs  ,  as 
injurias  feitas  aos  seus  missionários  ,  e  mais  d'uma 
vez  correu  o  sangue  catholico  ,  quando  sorprendi- 
das  nas  capellas  dos  campos  as  irmandades  devotas, 
celebrando  alguma  festa  em  louvor  do  santo  pa- 
droeiro, os  protestantes  derrubando  o  altar ,  cal- 
cando aos  pés  a  imagem  do  santo ,  derramando  o 
óleo  da  alampada  sagrada,  completavam  comoassas- 
sinio  do  sacerdote  e  dos  adoradores  a  sacrílega  pro- 
fanação. O  conde  de  Martigny  pela  sua  parte  não 
perdoava  a  algum  dos  fautores  de  lacs  actos,  quan- 
do ,  como  ás  vezes  acontecera  ,  caliiain  nas  mãos 
dos  seus  soldados ,  e  no  logar  mesmo  onde  uma 
cruz  fora  abatida,  arrojado  um  altar,  violado  um 
recinto  sagrado  ,  erigia  o  general  uma  forca  ,  onde 
á  falta  do  réu  muitas  vezes  o  inuocentc  attestava  a 
injuria  e  a  vingança  do  chefe  irritado.  \  inexorá- 
vel severidade  com  que  líartigny  seguia  este  modo 
cruento  de  retaliação  ,  bavia-o  tornado  para  a  com- 
munidade  de  Genebra  o  objecto  da  maior  execra- 
ção ,  c  cm  suas  orações  publicas  ,  nas  praticas  com 
que  concluíam  o  serviço  de  sua  seita,  repartia  Mar- 
tigny com  o  demónio  e  o  papa  anteclirísto  as  mal- 
dições dos  devotos  protestantes. 

Apesar  destas  scenas  cruentas  continuavam  os  ha- 
Ijítantes  de  Genebra  as  suas  excursões  pacificas  so- 
bre o  formoso  lago,  de  que  a  cidade  tira  o  seu  no- 
me. As  pessoas  de  todas  as  idades  ,  de  lodos  os  se- 
xos enlregavam-se  ,  como  ainda  hoje  ,  sem  temor 
ou  receio  ás  leves  embarcações  que  coalhavam  o 
Soberbo  lago.  Nas  noites  de  luar  prinoipalmenle , 
nm  sem  nunu-ro  de  velas  brancas  rellcctiara  os  raios 
do  astro  luminoso  ,  em  quanto  dos  ligeiros  barcos 
subiam  ao  ar  hyranos  de  harmonia  ,   vozes  as  roais 


j  das  vezes  femininas ,  cantando  ora  a  belleza  das 
I  aguas  que  percorriam,  ora  as  proezas  dos  campeões 

da  liberdade  e  da  fé. 

I      N'uma  destas  noites,   entre  os  barcos  que  gra- 

I  ciosos  passam  e  repassam  sobre   a  límpida  supcrfi- 

;  cie,  nas  proximidades  de  Genebra,  um  batel  mais 

atrevido  sahindo  da  esteira  commum  approximava- 

se  á  margem  inimiga  da  Saboya.  l'odia  á  claridade 

da  lua  dívisar-se  em  pé  no  batel   a  única  figura  de 

uma  donzella  delicada;   em  quanto  na  margem  a 

que  parecia   dirigir-se  ,   um  pouco  acima   da  aidéa 

de  Clàse  ,   em  pé  ,   e  como  ancioso  contemplando  a 

audaz  navegadora,    se  divisava   um  soldado,    cujo 

uniforme  era  o  do  exercito  do  duque  de  Saboya. 

A  nauta  locou  a  margem.  Saltou  ligeira  era  ter- 
ra. «Cara  Isabel  I »  diz-lhe  o  soldado  cingindo-a 
em  seus  braços  amantes.  «Graças  mil  te  devo,  al- 
ma cândida  e  generosa  ,  pela  entrevista  a  que  vens 
com  tanta  conliança.  Muito  a  desejei  eu  ...  .  e  se 
ora  souberes  que  treno  vendo  chegada  a  hora  de- 
sejada ....  talvez  cuides  que  a  alegria  ,  o  conten- 
tamento perturbaram  o  juízo  do  teu  amante;  porem 
não.  .  .  .  Tremo  ....  porque  não  é  a  um  anjo  como 
tu  ...  .  nem  á  luz  pura  do  astro  que  nos  allumia 
neste  instante,  que  deveria  cu  soltar  as  idéas  in- 
fernaes  que  sinto  no  peito  !....»  Dizendo  assim  , 
uma  nuvem  negra  como  que  passava  sobre  a  fronte 
naturalmente  morena  do  soldado  ....  assustada  a 
donzella  aparta-se  dos  braços  do  amante  que  a  não 
relera '.....  e  ao  vè-lo  assim  tão  severo  ,  tão  dei- 
xado da  costumada  meiguice,  um  pensamento  de 
dòr  ,  um  pensamento  de  receio  assaltara-lhe  o  pei- 
to ,  cuida  que  foi  trahida  ,  que  outro  amor  invadiu 
o  logar  que  ella  occupava  na  alma  ardente  do  sol- 
dado ,  e  com  nma  espécie  de  frenesi:  «Que  di- 
zes !  c  para  isto ,  molina  de  mim  ,  atravessei  o  la- 
go I  para  isto  incorri  eu  a  cólera  dos  meus  ;  violei 
os  meus  deveres  ;  .  .  .  menoscabei  a  minha  lei  .... 
e  o  ingrato  por  quem  tanto  arrisquei  ....  pertende 
hoje  romper  os  votos  sagrados  !....»«  Nunca  »  in- 
terrompe o  Soldado,  c  volve  a  apertar  a  donzella 
nos  braços  amorosos;  em  quanto  mais  dcscançada 
a  joven  discípula  de  Calvíno,  encostando  no  hom- 
bio  do  amante  a  loura  frente  ,  enxuga  o  pranto  da 
suspeita  ha  pouco  vertido.  «Nunca»  interrompe 
com  força  o  soldado  «deixarei  eu  de  adorar-te.  Em 
qaanto  Deus  me  conservar  a  existência  ,  tua  hade 
ser  sempre.  Porem,  minha  Isabel,  esta  i)az  enga- 
nadora, em  que  talvez  acreditas,  ó  um  precipício 
encoberto  cm  que  tem  de  ?orver-se  a  crédula  inno- 
cencia  dos  que  nella  confiam.  Fortes  são  as  mura- 
lhas da  lua  terra  ,  fortes  e  leacs  as  armas  dos  seus 
defensores  ....  mas  lambem  lhe  chegou  a  sua  ho- 
ra ,  e  o  progresso  da  destruição  liade  ser  certo  c 
secreto  ,  como  o  curso  do  vosso  Rhodano  que  se 
esconde  debaixo  das  rochas  da  montanha  para  ap- 
pareccr  depois  mais  forte,  mais  magestoso.»  E  o 
soldado  parou  aqui.  Uma  inquietação  visível  maní- 
feslava-se  no  seu  rosto  ,  e  os  seus  olhos  fixos  ora 
na  sua  amada,  ora  nas  distantes  torres  de  Gene- 
bra ,  pareciam  exprimir  o  seu  cuidado  naquella  .  e 
a  sua  certeza  da  ruína  da  piíraeíra.  Não  menos  agi- 
tada está  a  donzella.  O  pai  ,  a  pátria  ,  a  fé  ,  tudo 
lhe  occorre  a  par  do  amor  que  a  prende  ao  inimi- 
go. Vertem  seus  olhos  amargo  pranto.  «Negros  são 
os  teus  vaticínios.  Deus  os  affaste  da  nossa  cida- 
de.» «Nem  Deus  poderá  salva-la.»  —  «Sobre  ella 
vigia  Beauvoisin.»  —  «Nem  vigilância,  nem  va- 
lor» continua  o  soldado  com  Ioda  a  expressão  do 
amor,   «Isabel,   a  Iraífão  habita   os  >0í50S  muros. 


3G8 


O  PANORAMA. 


Amanhaã  o  sangue  inundará  as  ruas  de  Genebra. 
A  espada  do  soldado  cortará  pelos  teus  concida- 
dãos mais  duros  que  as  próprias  muralhas  em  que 
píjem  sua  confiança  ,  por  esses  corações  mais  frios 
(Io  que  o  lago  que  os  defende.»  Dm  sorriso  d'odio 
e  rancor  satisfeito  passou  um  momento  sohre  os  la- 
l)ios  do  soldado ;  mas  ao  ver  as  lagryraas  da  linda 
Isabel  sentiu-se  coramovido.  «Foge  tu  ,  meu  amor. 
— Vem  comigo — vem  comigo  habitar  as  bellas  pla- 
nicics  da  minha  Itália....»  —  «Thcodoro,  esque- 
ces a  quem  falias.  A  filha  do  Beauvoisin  não  liadc 
desamparar  o  pai  na  hora  do  perigo.  A  discipula 
de  Calvino  não  bade  desamparar  os  muros  da  sua 
pátria  quando  o  sangue  correr  nas  suas  praças  e  a 
traição  passear  suas  ruas.»  —  «Teu  pai  será  por 
mim  defendido.  As  suas  caãs  serão  respeitadas. 
liem  sabes  que  nunca  jurei  em  vão  —  lenho  poder 
para  salva-lo.»  «  Meu  pai  aborrece  o  infiel.  Ainda 
que  a  espada  da  morte  visse  apontada  sobre  o  pei- 
to ,  correria  ante  o  golpe  ,  mais  depressa  do  que 
acceitára  a  protecção  d'um  soldado  de  Slailigny.» 
E  mais  rápida  que  a  gazella  ,  Isabel  saltou  no  es- 
quife. ...  O  soldado  quer  demora-la.  Já  o  batel  to- 
cou o  meio  do  lago  ,  e  o  saboyano  viu  ,  de  cima  da 
penedia  ,  tocar  a  margem  oppobla  aquellc  barco  , 
assim- carregado  dos  seus  segredos,  das  suas  espe- 
ranças. 

«Cão  de  mim  !  »  exclamou  o  mancebo,  cntranban- 
do-se  na  floresta  visinha  da  costa.  «Cão  de  mira, 
que  fui  talvez  revelar  ao  inimigo  o  mais  bcllo  es- 
tratagema ....  o  fructo  de  longas  meditações  !  .  .  . 
o  que  devia  por  uma  vez  entregar-mc  aquella  cida- 
de descrida  !  » 

O  resto  pertence  ú  historia.  Marligny  ,  confiado 
nas  suas  jiraticas  no  interior  de  Genebra  ,  atacou 
naquella  mesma  noite  a  cidade.  Em  vez  do  soccgo 
e  da  imprevidência  que  esperava  ,  encontrou  Deau- 
voisin  apercebido.  Gente  armada  sobre  os  muros  : 
reservas  dispostas  nas  ruas  ,  proniplas  a  repcllir  o 
ataque.  A  derrota  dos  saboyauos  foi  completa  ,  e  o 
próprio  conde  de  Martigny  cahiu  prisioneiro  ,  nas 
mãos  de  seus  cruéis  inimigos  ,  com  mais  de  du- 
zentos saboyanos  ,  fiòr  do  seu  exercito. 

llepicavam  os  sinos  nas  torres  de  Genebra.  So- 
Liam  ao  céu  as  gritos  de  exaltação.  O  povo  accu- 
mulava-se  nas  ruas  que  conduzem  á  praça  princi- 
pal. Senhoras  primorosamente  enfeitadas  occupa- 
vam  as  janellas,  todos  os  olhos  estavam  attentos  no 
alto  patíbulo  que  se  erguia  no  meio  da  praça,  aon- 
de ,  cora  centenares  dos  seus  ,  devia  o  infeliz  Mar- 
tigny expiar  as  sevícias  que  n'outro  tempo  exerce- 
ra contra  os  seus  actuaes  vencedores.  A  milícia  da 
cidade  ,  formada  em  torno  do  patíbulo  ,  aguardava  , 
com  a  anciedade  cruenta  do  ódio,  a  illustre  ^icti- 
ma  do  ultimo  combate.  Beauvoisin  ,  a  cavallo  em 
frente  dos  seus  ,  distinguia-sc  mais  pela  simplici- 
dade severa  do  seu  trage  ,  do  que  pelas  insígnias 
grosseiras  do  cominando  que  o  adornavam.  Com 
olhos  severos  filava  a  janella  onde  sua  austera  au- 
ctoridade  retinha  a  filha  infeliz,  a  sensível  Isabel, 
que  debalde  quizera  subtrahir-se  ao  espectáculo 
que  ia  ter  logar. 

A  final  apparecc  o  fúnebre  cortejo.  Marligny,  no 
meio  dos  prisioneiros  ,  com  o  uniforme  de  general 
c  a  estrella  no  peito,  caminha  para  a  morte  ,  como 
outr'ora  caminhara  para  a  victoria.  —  I'recipita-se 
o  povo  ante  os  prisioneiros.  Imprecações  fanáticas 
saúdam  a  viclima.  Pararemos  aqui.  No  soberbo  ini- 
migo ,  ora  prostrado  ,  reconheceu  a  filha  de  Beau- 
voisiu  o  soldado  da  margem  do  Clàse,   o  Thcodoro, 


a  quem  deu  o  seu  coração.  ...  Ha  momentos  cm 
que  a  rasão  cede  ao  pezo  da  dòr  ,  em  que  a  cons- 
ciência desampara  a  alma  prompta  a  partir  ;  por- 
que o  homem,  em  tudo  mesquinho,  até  na  facul- 
dade de  solfrer  ,  não  basta  a  tamanhas  maguas. 

Isabel  ainda  sobreviveu  ao  seu  amante  doze  me- 
zcs.  Doze  mezes  viveu  a  infeliz  iiHim  estado  d'alíe- 
nação  completa.  Rccusou-se  conslantcraente  a  toda 
conimunicação  com  suas  antigas  relações.  O  pró- 
prio Beauvoisin  ensaiou  debalde  arranca-la  ao  seu 
obstinado  silencio.  A  \ista  do  pai  já  não  excita  na 
donzella  os  antigos  affeclos  do  amor  e  do  respeito. 
Aparla-o  de  si  com  horror  visível.  Todas  as  noites, 
á  hora  costumada  ,  Isabel  emprehende  a  sua  nave- 
gação á  margem  do  Clàse.  Allí  permanece  de  joe- 
lhos parte  da  noite,  como  de|)recanuo  a  sombra  do 
sen  amante.  Tma  noite  ,  o  frágil  batel  ,  em  vez  de 
dírigir-se  para  a  margem  da  cidade,  levado  da  cor- 
rente, entrou  no  Hhodano,  onde  se  sumiu  para  sem- 
pre ,  com  a  nauta  infeliz. 

Ainda  hoje  conservara  os  barqueiros  do  lago  a 
traiição  do  conto  molancbelico.  Delialde  promette- 
ria  o  viajante  sominas  avultadas  para  ,  á  meia  noi- 
te ,  atravessar  o  lago  cm  direcção  ao  Clàse.  O  te- 
merário que  áquella  hora  se  approximasse  da  mar- 
gem fadada  encontraria  o  batel  da  phantasma.  To- 
das as  noites  sabe  de  Genebra,  e  com  espantosa  ra- 
pidez se  dirige  á  margem  saboyaua  ,  sempre  direi- 
to ao  Clàse  ,  qualquer  que  seja  a  |>arte  donde  so- 
[ira  o  vento.  O  seu  amante  é  fatal  ans  navegantes. 
Muitas  vezes  ouvirauí  os  aldeões  vísinhos  da  pene- 
dia os  altos  clamores  da  virgem  prostrada  sobre  o 
rochedo ;  muitos  a  viram  antes  da  hora  da  alva 
voher  ao  seu  batel ,  e  sumir-se  com  ellc  nas  pro- 
fundas agnas  do  rio  ,  e  o  pescador  do  I<lgo  conser- 
va com  um  temor  supersticioso  a  legenda  do  —  Pas- 
seio da  Phantasma. — 

Fmiandu  Luiz  Mousinho  de  Albuquerque . 


\as  pro\ineías  mais  frias  do  nosso  reino  e  do  visi- 
nho  é  constante  o  uso  de  aquecer  Aolrnsciro  duran- 
te a  estação  rigorosa  ;  brasa  c  palavra  ccmmum  ás 
duas  linguagens  hispânicas  ,  e  Covarrubias  pcrlen- 
de  que  ella  proveio  do  grego  bras  que  diz  tanto  co- 
mo o  verbo  latino  cbidlio  que  significa  fcivcr.  Seja 
porem  qual  for  a  etyraologia  do  nome  ,  a  causa  e 
origem  do  brazeiro  foi  a  notória  precisão  de  res- 
guardar do  frio  :  e  quem  o  seu  inventor?  .  .  .  Nova 
questão,  tão  inútil  como  a  primeira,  mas  a  que 
lambem  se  pôde  responder  com  desembaraço  : — foi 
o  primeiro  que  teve  frio;  e  pouco  importa  saber-lhe 
o  nome. —  Se  o  pai  do  género  humano  conheceu  a 
industria  de  aceender  lume,  devia  ser  elle  o  inven- 
tor daquelle  conimodo  :  assim  o  prova  jovialmente 
ura  eseríptor  faceto. —  Adão  ficou  sujeito  pelo  pec- 
cado  a  todas  as  misérias,  desde  a  desgraçada  golo- 
sina  a  que  arranchou  com  sua  mulher  :  —  é  certo 
que  uma  destas  misérias  foi  o  frio  :  —  erffo  nosso 
pai  .\dão  ,  por  ser  o  primeiro  que  teve  frio  ,  foi 
sem  du\ída  o  inventor  do  brazeiro,  de  que  se  apro- 
veilnm  aquelles  da  sua  posteridade  ,  que  tem  di- 
nheiro para  a  lenha,  c  tempo  coccasião  de  se  aque- 
cerem. 


A  verdadeira  sabedoria  não  é  presumpçosa  :  o  sá- 
bio duvida  muitas  vezes ,  e  não  poucas  muda  de 
parecer  antes  de  resolver-se  a  obrar;  o  néscio  é 
fátuo  ,  teimoso  e  nunca  duvida  ,  tudo  conhece  me- 
nos a  sua  ignorância.  —  LorU  Chesterfietd. 


100 


o  PANORAMA. 


369 


RAPHAEI.  SUBBINO. 


Temos  feito  conhecer  algumas  das  obras  pictóricas 
deste  insigne  mestre  ,  que  foi  arrebatado  pela  mor- 
te na  ílôr  da  idade  e  que  assim  mesmo  deixou  gran- 
de numero  de  quadros  de  assombrosa  perfeição.  Da- 
remos agora  noticia  succin!a  da  sua  curta  vida.  È 
geralmente  denominado  d'Urbino,  por  ser  natural 
desta  cidade  dos  Estados  pontificios;  mas  o  seu  ap- 
pellido  de  família  é  Sanzio  ;  seu  pai  foi  pintor  de 
merecimento  ,  e  ainda  existem  obras  delle  ,  nomea- 
damente o  painel  n.°  21o,  i."  divisão,  na  galeria 
de  Berlim,  o  qual  6  de  considerável  belleza,  posto- 
que  de  colorido  frouxo. 

Nasceu  Raphael  na  sexta  feira  santa  de  1483  , 
que  nesse  anno  cahiu  a  28  de  marro  ,  e  falleceu 
n'outra  sexta  feira  santa  ,  6  d'abril  de  1520  ,  em 
consequência  de  um  attaque  febril.  Tomou  de  seu 
pai  os  primeiros  rudimentos  da  arte  ,  mas  cedo  o 
levaram  a  Perugia  ,  dando-lhe  por  mestre  o  mais 
distincto  professor  da  epocha  ,  Pedro  Vanucci ,  por 
antonomásia  o  Periigino. 

Nos  primeiros  annos  do  século  16."  era  Florença 
o  foco  de  que  partiu  a  revolução  que  mudou  o  es- 
tado das  Bellas-artes  :  Leonardo  da  Vinci ,  natural 
desta  cidade,  achava-se  no  apogeu  da  sua  reputa- 
ção; distinguiam-se  as  suas  obras  por  um  trabalho 
que  era  muito  estudado  ,  porem  mais  gracioso  que 
o  dos  artistas  que  o  haviam  precedido  ;  abria  elle 
nova  senda  aos  discípulos  da  pintura.  Miguel  An- 
gelo no  vigor  da  mocidade  ,   até   ahi  distincto   só- 

NOYEUBRO  2o —  1843. 


mente  pelo  seu  exímio  cinzel ,  excedeu  repentina- 
mente Leonardo,  appresentando  o  cartão  da  Guerra 
de  Piza  ,  no  qual  o  estudo  da  anatomia  e  o  arrojo 
particular  do  seu  talento  lhe  permittiram  ostentar 
quanto  de  maravilhoso  e  mais  difíicíl  e  profundo 
encerra  a  sciencia  do  desenho.  —  Uaphael,  que  em 
Perugia  aprendera  as  noções  da  arte  singela  e  reli- 
giosa da  idade  media  ,  comprehendeu  a  necessida- 
de de  aproveitar-se  da  novidade  com  que  a  pintura 
adquiria  realce  :  foi  portanto  á  corte  dos  Medíeis 
continuar  seu  estudo.  Por  grandes  que  fossem  os 
seus  desejos  de  se  pôr  logo  a  par  dos  progressos, 
que  observava  ,  os  numerosos  painéis  que  por  esse 
tempo  acabou  ainda  mostram  o  cunho  fiel  das  im- 
pressões recebidas  na  eschola  do  Perugino  :  ha  so- 
briedade na  composição  demasiado  singela  ,  a  gra- 
duação dos  toques  niraiamcnle  pronunciada,  a  exacti- 
dão bastante  secca  no  desenho,  mas  a  brandura  das 
expressões  causa  suspensão  e  embeleco  :  6  o  que 
chamam  o  primeiro  estylo  de  Uaphael  ,  c  ha  quem 
o  prefira  ao  que  elle  depois  adoptou.  Fortificado 
com  os  fructos  de  applicação  assídua  ,  que  tanto 
ajudava  a  transcendência  de  seu  immorlal  engenho, 
dispõz-se  a  lutar  com  Leonardo  da  Vinci  e  Miguel 
Angelo  no  próprio  Iheatro  em  que  eram  laureados. 
Sollicitava  obras  dignas  de  supportar  comparação 
com  as  daquelles  mestres,  quando  foi  chamado  a 
Roma.  O  pontífice  Júlio  2.°,  soberano  de  vastas  con- 
cepções e  dotado  de  estremadas  qualidade  politi- 
2.*  Serie.  —  Vol.  II. 


370 


O  PANORAMA. 


cas  ,  quiz  que  o  esplendor ,  que  rodeava  a  santa  se 
era  virtude  de  seus  talentos  d'homem  d'cstado,  so- 
bresahisse  com  obras  de  século  ,  filhas  do  esmero 
e  do  prestigio  das  artes  :  confiou  a  Bramante  ,  seu 
architecto  ,  o  encargo  de  levantar  templos  e  palá- 
cios ,  que  equiparassem  a  altura  de  seus  grandes 
desígnios  politicos.  Bramante  fez  que  viesse  a  Ro- 
ma llaphael ,  que  era  seu  parente  ,  então  de  idade 
de  23  annos.  O  pintor  foi  benevolamente  recebido 
pelo  papa  ,  que  llie  incumbiu  as  decorações  do  Va- 
ticano, e  lhe  mandou  começar  sem  dilação  pela  sa- 
la que  chamam  delia  Scgnnlura.  Já  tinha  grangea- 
do  Raphacl  por  seus  anteriores  quadros  nome  vivi- 
douro  ;  mas  pintando  esta  sala  collocou-se  superior 
a  Ioda  a  comparação.  O  seu  engenho  foi  daquelles 
rarissimos  presentes  que  a  Providencia  concede  n 
humanidade  cora  intervallos  longos  e  só  a  indivi- 
duos  privilegiados.  Pcrmitta-se-nos  ,  sem  embargo 
disso,  interrogar  segredos  e  explicar  effeitos.  Se 
Raphael  adquiriu  gloria  que  o  elevou  acima  de  seus 
contemporâneos,  foi  por  ter  simultaneamente  repre- 
sentado as  duas  tendências  do  seu  século.  Miguel 
Angelo  é  talvez  mais  original  que  llaphael  ;  nada 
tomou  do  alheio  ;  mas  llaphael  fez  consistir  toda  a 
sua  fama  em  levar  ao  ultimo  grau  de  perfeição  to- 
das as  cxccllentes  qualidades  de  seus  rivaes.  Mi- 
guel Angelo  é  um  colosso  de  força  e  magestade  ,  c 
raros  homens  mereceram  como  elle  o  epithelo  de 
creador  :  mas  Raphacl  é  a  expressão  mais  completa 
do  seu  tempo  :  tomou  do  século  em  que  viveu  aquel- 
las  santidades  sinceras  ,  recebeu  delle  o  amor  e  o 
estudo  da  antiguidade,  tem  como  elle  a  mistura  de 
christão  e  pagão  ,  de  religioso  e  philosopho  :  dahi 
vera  agradar  cm  todas  as  eras  ,  e  a  sua  coroa  de 
gloria  c  immarcescivel  auxiliada  por  uma  suavida- 
de de  pincel  que  podemos  dizer  lhe  nascia  do  co- 
ração. 

Concluída  a  primeira  sala  do  Vaticano  occupou 
seu  talento  fértil  n'uma  grande  porção  de  obras, 
durante  os  últimos  doze  annos  da  sua  vida,  em  nu- 
mero tal  que  move  a  geral  admiração  :  verdade  é 
que  o  ajudavam  seus  discípulos,  em  meio  dosquaes 
vivia  como  n'uma  espécie  de  corte  com  toda  a  pom- 
pa e  reverencia  de  príncipe.  Júlio  Romano,  Fran- 
cisco Penni  ,  João  de  Udino  ,  e  outros  muitos  tra- 
balharam ás  ordens  e  sob  as  inspirações  de  Raphael. 

—  Leão  10."  que  succedcu  a  JuIio  2.°  na  Cadeira 
de  S.  Pedro  não  o  tratou  com  menos  dislincção  , 
fè-Io  succcssor  de  Bramante  ,  deu-lhe  a  inspecção 
das  antiguidades  ,  que  se  descobriam  pertencentes 
á  Roma  antiga  ;  não  podia  haver  cargo  mais  ade- 
quado ás  propensões  do  artista  ;  diz  um  auctor  con- 
temporâneo que  ninguém  melhor  conhecia  a  Roma 
Telha  ,  e  que  uma  prova  do  quanto  presára  a  arte 
greco-romana  está  nos  quadros  da  Galalca  e  da  fá- 
hula  de  Psichc  ,  que  pintou  na  palácio  do  rico  ne- 
gociante, Agostinho  Chigi  ,  situado  alem  do  Tihre. 

—  O  typo  ideal  da  Santa  Virgem  ,  reproduzido  em 
tantas  obras  primorosas,  é  dos  maiores  brazões  de 
Raphael,  em  que  não  insistiremos  por  muito  conhe- 
cido.—  O  quadro  da  Transfiguração  de  que  já  le- 
mos fallado  (•)  é  a  obra  prima  e  a  derradeira  des- 
te pasmoso  talento,  que  marca  o  seu  terceiro  esty- 
lo  ,  o  non  plus  xdlra  da  perfeição  :  esta  concepção 
sublime  inspirou  a  Vasari,  discipulo  de  Miguel  An- 
gelo, as  palavras  seguintes:  —  Esla  ultima  balisa 
da  pintura  assignala  também  o  ultimo  termo  da  vi- 
da do  pintor. 


(•)     Vid.  a  pag,  305  do  yol.  1.°  desta  Serie. 


Apontamentos  para  a  Historia  dos  bens  da  coroa 
E  dos  foraes. 


III. 


Dissemos  antes  quaes  eram  os  elementos  que  faziam 
subsistir  e  engrossar  o  cumulo  dos  bens  de  raiz  de 
que  se  compunha  o  património  fixo  do  estado.  Esse 
cumulo,  que  já  existia  na  occasião  em  que  se  es- 
tabeleceu a  independência  de  Portugal  ,  porque  os 
que  possuia  a  coroa  leoneza  no  território  desta  pro- 
víncia passaram  com  esse  território  para  os  seus 
novos  senhores  ,  cresceu  forçosamente  com  rapidez 
pelas  conquistas  dos  nossos  primeiros  reis  e  pelos 
modos  de  adquisição  que  anteriormente  indicámos. 
Mas  se  essas  causas  tendiam  activamente  para  o  au- 
gmento  da  propriedade  fiscal,  outras  havia  não  me- 
nos poderosas  para  reduzir  ,  não  o  seu  valor  como 
capital,  porque  estes  bens  não  podiam  ser  alheados 
perpetuamente,  mas  o  seu  valor  como  fonte  de  ren- 
dimento publico  ;  porque  orei  tinha  o  direito  de 
os  converter  cm  prestamos  ( pracslmomum  ,  apresía- 
mo,  e  dahi  cmprcsíimoj  e  fazer  dellcs  mercê  por  um 
praso  indeterminado.  Este  direito  facilitava  o  cami- 
nho á  cobiça  dos  ccclcsiasticos  e  dos  nobres.  A  ne- 
cessidade que  os  reis  tinham  de  simular  piedosa  li- 
beralidade para  com  a  igreja,  quando  eram  os  rnais 
fracos  e  não  podiam  conter  pela  força  o  alto-clero  , 
ou  quando,  visinhos  da  morte,  os  terrores  do  inferno 
e  talvez  antes  osreceius  de  deixar  vacillante  o  Ihrono 
ao  seu  succcssor  ,  os  moviam  a  desbaratar  com  mão 
larga  em  beneficio  da  igreja  o  património  publico  , 
para  remirem  passadas  violências ;  esta  necessidade  , 
dizemos  ,  era  o  principal  sorvedouro  dos  bens  da 
coroa.  O  estado  contínuo  de  guerra  era  o  segundo. 
Não  contentes  das  óptimas  soiidalas ,  dos  cxcellen- 
tes  soldos  que  venciam  para  servirem  com  homens 
d'armas  na  hoste  real,  os  fidalgos  obtinham  por  lo- 
dos os  modos  os  prestamos  que  escapavam  ao  cle- 
ro. Assim,  diminuídas  ou  antes  anniquiladas  as 
rendas  publicas  provenientes  immedialamente  da 
terra,  a  única  maneira  de  as  snpprír  —  de  poder 
pagar  essas  mesmas  óptimas  solidatas  aos  nobres  , 
pouco  resolvidos  a  morrerem  gratnílamcnle  pela 
cruz  e  pela  pátria — era  ir  buscar  os  tributos  do 
município.  Daqui  devia  provir  por  força  maior  o 
rápido  augmento  na  promulgação  dos  foraes  ,  e  o 
serem  as  disposições  ncllcs  contidas  exaradas  por 
tal  arte  ,  que  o  concelho  pagasse  cm  serviços  pes- 
soacs,  cm  géneros  ,  c  cm  dinheiro  [espécies  de  tri- 
buto diversas  no  accidcntal ,  mas  na  essência  idên- 
ticas] as  maiores  contribuições  possíveis.  Do  exame 
das  cartas  de  foral,  das  doações  e  dos  mais  documen- 
tos do  primeiro  período  da  sociedade  portugueza  re- 
sulta evidentemente  a  acção  capital  desta  causa  na 
instíluíção  dos  concelhos,  mas  nenhum  talvez  melhor 
dá  idéa  do  empobrecimento  do  liecábedo  Rcgni  — 
dos  haveres  palrimoníacs  da  nação  ,  logo  no  berço 
da  monarchia  —  do  que  uma  das  varias  bulias  rela- 
tivas a  Portugal  no  reinado  de  D.  Sancho  1.°  (1). 
Neste  diploma  o  papa  rcfcre-se  a  uma  carta  que  D. 
Sancho  lhe  dirigira  ,  enérgica  c  até  brutal  ,  a  ponto 
que  o  audaz  c  violento  Innoceiuío  3.°  parece  que- 
rer na  sua  resposta  suavísar  as  expressões  altivas  e 
ameaçadoras  de  que  usa,  segundo  o  estylo  da  chan- 
ccUaria  romana  naquclle  século.  Entre  outras  cou- 
sas dessa  carta,  que  não  vem  para  o  nosso  intento, 

(])  Bulia  ()i!  Innoceiício  3."  —  Si  diligentcr  —  Clc  23 
lie  fevereiro  ile  1211 — cm  Baliiz.  E|).  liiii.  3.°  Lib  XIV 
Ep.  8  c  em  Asiiirrc  Collccl.  Concil.  T.  5.  p.  158. 


o   PANORAMA. 


371 


c  Dolavcl  um  periodo  transcripto  pelo  papa  ,  que  , 
como  era  natural  ,  o  laxa  de  cihalar  herética  jicrfi- 
dia.  Ahi  lhe  dizia  D.  Sanciío,  que  não  havia  mudo 
melhor  de  quebrantar  ou  diminuir  as  mostras  de 
luxo  e  sobcrha  dos  liypocritas  (ii  qui  religiunem  si- 
mulani)  ,  priíicipaluiciite  dos  prelados  e  clérigos , 
do  que  tirar-lhes  os  motivos  disso  —  a  demasiada 
fuperabtindancia  de  bens  temporaes,  que  tinham  del- 
ia c  de  seu  pai ,  com  grave  damno  do  reino  c  dos 
suceessorcs  da  coroa,  c  distribuir  esses  bens  por  seus 
filhos  c  pelos  defensores  do  estado  ,  faltos  muitas 
vezes  do  necessário.  Estas  expressões  de  D.  Sancho, 
ou  antes  do  seu  chanceller,  pintam  cora  vivas  co- 
res o  estado  dos  bens  da  coroa  naquella  epocha  ,  e 
mostrara  como,  ao  passo  que  o  clero  devorava  a 
maior  e  melhor  porção  delles,  a  fidalguia  que  acha- 
va um  quinhão  diminuto  no  que  lhe  restava  ,  não 
deixaria  de  approvar  que  elrei  fizesse  mais  igual 
divisão  da  preza. 

Esta  cubica  dos  poderosos  era  tal,  e  tal  a  pre- 
cisão em  que  os  reis  se  viam  de  a  satisfazer,  que 
os  próprios  tributos  dos  municípios  se  converteram 
logo,  até  certo  ponto,  em  prestamos.  iSos  foraes  sup- 
põe-se  por  via  de  regra  a  existência  de  um  senlwr 
da  terra  :  as  instituições  municipaes  ,  porem  ,  nem 
creavam  ,  nem  tornavam  necessária  essa  entidade 
como  elemento  orgânico  :  o  rei  que  constituía  o 
concelho,  muitas  vezes  n'um  ermo,  ou  n'uma  an- 
tiga povoação  destruída  até  os  fundamentos,  que 
os  novos  moradores  deviam  reedificar,  e  cultivar- 
Ihe  o  alfoz,  era  o  senhor  natural  dessa  povoação. 
E  todavia  ,  na  carta  que  vai ,  por  assim  dizer  ,  ti- 
rar do  nada  um  município  ,  apparecem  logo  previs- 
tos os  deveres  e  direitos  dos  villõcs  para  com  um 
donatário  ;  para  com  um  representante  do  prínci- 
pe ;  para  com  o  sénior  terrae.  Esta  circumstancia 
que  prova?  Que  esse  facto  era  trivialissimo,  e  qua- 
si  constante.  Mas  quando  ainda  isso  fosse  duvi- 
doso ,  os  mesmos  foraes  no-lo  provariam  do  modo 
mais  incontestável:  n'alguns  delles  —  não  é  gran- 
de o  seu  numero  —  apparece  a  condição  de  nunca 
a  terra  ter  por  senhor  senão  o  próprio  rei  ou  um  fi- 
lho seu  ,  ou  outrem  que  os  villões  approvem  (2]  ,  o 
que  mostra,  que  só  por  excepção,  parte  das  contri- 
buições raunicipaes  deixavam  de  correr  para  o  sor- 
vedouro das  classes  aristocráticas. 

Se  ,  porem  ,  pela  natureza  da  organisação  muni- 
cipal  não   podemos   achar   a  rasão   desta  existência 

(2)  A.  C.  do  Aoiaral  e  J.  A.  de  Figueiredo  confundi- 
ram este  privilegio  especial  dado  a  alguns  concelhos  com  o 
privilegio  das  behetrias.  Qual  fosse  a  origem  das  beheirias 
não  será  fácil  dizer  com  certeza.  Talvez  a  opinião  de  J.  P. 
Ribeiro  de  que  foram  povoações  que  por  si  próprias  sacu- 
diram o  jugo  dos  mouros,  seja  a  mais  plausível.  E'  notável, 
porem,  que  elle  mesmo  acceilasse  a  opinião  de  Figueiredo 
c  Amaral.  As  behetrias  tinham  direito  de  escolher  senhor; 
mas  nestes  concelhos  devia  sè-lo  o  rei,  ou  seu  filho,  e  a  que- 
rerem pòr-lheoutro,  era  necessário  que  oconcelho  o  acceitas- 
se.  Evidentemenie  o  qiii  eos  giusieriiis ,  ou  quem  coiiciliiis 
roluerit  significa  isto;  aliás  o  arlijo  do  foral  seria  absurdo 
por  inexequível.  O  privilegio  da  eleição  nas  beheirias  sup- 
põe-se  absoluto  e  sem  restricções  :  pelo  contrario  nestes 
concelhos  o  ser  o  rei  ou  seu  filho  o  senhor  conslilue  o  pri- 
vilcio ,  e  a  eleição  ou  approvação  dos  villõcs  para  ser  ou- 
trem donatário  é  uma  restricção  do  princípio.  O  que  signi- 
ficaria o  privilegio  de  behetria  —  a  absoluta  liberdade  elei- 
toral—  se  os  reis  quízessem  ser  constantemente  os  seniores? 
Os  escríplores  já  cilados  admíram-se  de  que  as  terras ,  que 
ainda  nos  fins  do  século  15.°  ou  principins  do  16.°  goza- 
vam o  direito  de  beht-trias  ,  não  fossem  nenhuns  daquelles 
concelhos  que  por  foral  haviam  o  privilegio  de  ter  o  rei  por 
senhor:  era  juslamenle  isto  que  os  devia  allumiar  para  ve- 
rem que  se  enganavam  confundindo  essas  duas  espécies. 


de  um  senhor  ao  lado  de  cada  concelho  que  nasce, 
achamo-la,  loda>ia,  em  grande  parte  na  Índole  mi- 
litar do  paiz.  O  systema  predominante  da  guerra 
entre  árabes  c  christãos  ,  c  principalmente  entre  os 
últimos,  era  d'assaltos  c  correrias  repentinas,  co- 
nhecidos pelos  nomes  de  arrancada  ,  alijara  ,  £fe.  : 
daqui  nascia  a  necessidade  de  construir  um  castel- 
lo  ,  uma  fortificação  onde  quer  que  se  estabelecia 
um  logar  ou  \illa,  principalmente  naquelles  dislri- 
ctos  limitrophcs  com  provincias  d'iiiimigos.  Esse 
castello  dava-se  a  governar  e  defender  a  um  caval- 
leiro  com  o  titulo  d'a!caidc  ,  titulo  que  recebemos 
do  cargo  análogo  entre  os  árabes ,  abandonando  a 
denominação  romana,  c  mais  antiga  (3)  de  muni- 
ceps  ,  que  na  idade  media  tomara  a  significação  de 
casteítanus  ou  capitão  de  fortaleza  ,  se  não  é  que  o 
municeps  indicava  antes  uma  espécie,  o  castellciro 
da  povoação  acastcllada  de  um  municipio.  Naquel- 
les concelhos  em  que  por  foral  só  o  rei  ou  seu  fi- 
lho podia  ser  senhor,  as  regilias  deste  municeps  ou 
alcaide  deviam  ser  mui  limitadas,  e  reduzir-se  tal- 
vez ,  pouco  mais  ou  menos  ,  ás  do  moderno  gover- 
nador de  uma  fortaleza  ;  mas  nos  demais  nada  era 
mais  fácil,  mais  natural,  do  que  o  rei  dar  em  prcs- 
tamo  uma  parte  dos  direitos  e  rendas,  que  dahi  lhe 
provinham  pela  carta  de  foro  ou  pacto  municipal, 
ao  nobre  cavalleiro  que  se  encarregava  cora  os  seus 
homens  d'armas  de  vigiar  pela  segurança  da  povoa- 
ção nascente.  Este  alcaide  vinha  por  similhante  mo- 
do a  ser  um  verdadeiro  donatário,  um  sénior,  que, 
porventura  ,  não  recebia  soldo  ,  o  que  ainda  ignorá- 
mos ,  por  um  serviço  militar  não  menos  arriscado 
e  trabalhoso  que  o  do  donatário  de  terras  da  coroa, 
que  o  recebia ,  para  seguir  nas  batalhas  a  hoste 
real. 

Temos  dito  parle  das  contribuições ,  i)arte  do-s 
tributos  e  rendas,  porque  os  serviços  pessoaes  im- 
postos nas  cartas  de  foro  eram  por  via  de  regra 
de  natureza  tal  que  não  podiam  aproveitar  ao  do- 
natário ,  ou  sénior.  Assim  a  adua  ,  ou  obrigação  de 
trabalhar  nas  obras  dos  castcUos  e  muralhas,  a 
hoste,  o  fossado,  o  appeUido ,  as  atalaias,  as  guar- 
das que  constituíam  as  difTerentes  variedades  do 
serviço  militar,  e  alem  disto  algumas  penas  pecu- 
niárias ,  que  ás  vezes  no  próprio  foral  ficavam  ex- 
pressamente reservadas  para  o  fisco  ;  estes  impostos 
e  outros  análogos  esquivavam-se  pela  sua  natureza 
á  insaciabilidade  dos  fidalgos;  mas  como  elles  po- 
diam converter  o  resto  em  utilidade  particular,  por 
esse  motivo  talvez  não  apparecem  entre  nós  resis- 
tências aristocráticas  á  creação  dos  communs  ,  nem 
essas  luctas  de  morte  de  que  a  França  nos  offerece 
tão  repetidos  exemplos. 

Alludimos  ao  serviço  militar  dos  concelhos.  Nes- 
te serviço  está  ,   quanto  a  nós  ,   a  terceira  causa  ca- 
pital daellicacia  sempre  progressiva  dos  reis  na  or- 
ganisação de  um  vasto  systema  municipal.   Para  se 
entender  a  importância  daquclle  serviço  ,  importân- 
cia não  menos  politica  do  que  militar,  é  necessário 
ter  uma  idéa  clara   do  modo  de  ser  da  sociedade 
geral,  e  da  sociedade  particular  chamada  concelho. 
Muitas  vezes,  fallando  da  idade  media  portugue- 
za,   costumámos  ser\ir-nos  da  expressão  tempos  fexí- 
daes :   estas  palavras  Icem-se   em  escriptos  graves  , 
retumbam   dentro   do  parlamento  ,    e  quantas   vezes 
nós  mesmos  as  teremos  escriplo  e  repetido !   Toda- 
via   em    relação   ao   velho  Portugal   não   ha   pbrase 
I       (3)     Esla   denominação  ainda    é  frequente    ua   Historia 
I  Compostellana  para  significar   o  governador  ou  alcaidea!'.r 
'  de  um  castello  ou  p'  voação. 


372 


O  1*A]V0RAMA. 


mais  inexacta.  Não  é  um  dcsar  ,  um  nome  deshon- 
roso  qne  nós  queiramos  aqui  apagar  na  fronte  do 
passado:  —  o  feudalismo  foi  um  meio  de  progresso, 
um  elemento  de  ordem  ,  c  por  consequência  um 
bem,  em  quanto  a  civilisação  precisou  dcllc  :  o  nos- 
so intento  é  rectificar  um  grande  erro  histórico  en- 
raizado até  em  bons  espíritos.  Emhora  muitos  cos- 
tumes dos  paizes  da  fcudalidade  se  introduzissem 
entre  nós:  a  essência  da  organisação  feudal  nunca 
\ingou  na  sociedade  portiigneza  :  oppunha-sc-lhe  a 
Índole  delia.  X  demonstração  é  fácil. 

Os  dois  caracteres  prineipaes  dos  feudos  eram  a 
perpetuidade  do  domínio  dcllcs  no  feudatario  e  nos 
seus  suceessores  ,  e  a  obrigação  do  serviço  militar 
para  com  o  suzerano  :  o  feudalismo  apprescntava  as 
jerarchias  de  suzeranos  ,  feudatarios  e  subfeudata- 
rios  ;  e  Iodas  as  propriedades  de  certa  importância  , 
ainda  as  que  eram  d'antes  livres  ou  allodiaes  se 
converteram  gradualmente  cm  feudos.  A  fcudalida- 
de devorou  tudo  nos  paizes  onde  existiu  ,  e  foi  a 
própria  essência  da  sociedade.  Ahi  ,  quasi  que  o 
ser  homem  livre  era  ser  nobre,  e  a  nobreza,  amol- 
dando-se  ,  por  assim  dizer,  a  este  pensamento  e  ás 
varias  situações  dos  indivíduos ,  subdividia-se  em 
grande  numero  de  graus.  Mas  estes  não  se  pren- 
diam uns  aos  outros  senão  pelo  serviço  militar:  sa- 
tisfeita essa  condição,  o  feudatario  era  senhor  abso- 
luto dentro  das  suas  possessões,  e  ninguém  o  po- 
dia privar  delias  ,  nem  aos  seus  herdeiros ,  ao  me- 
nos nos  limites  da  stricta  legalidade. 

Estes  caracteres ,  porem  ,  do  serviço  militar  e  da 
perpetuidade  de  successão  faltavam  entre  nós  nas 
terras  dos  nobres  ,  muitas  das  quaes  eram  verda- 
deiramente patrimoniaes  ,  ao  passo  qne  outras  per- 
tenciam á  coroa  ;  mas  nem  estas  podiam  ser  dadas 
como  feudos,  nem  aquellas  ,  por  consequência,  vi- 
rem tomar  um  caracter  que  faltava  nas  próprias 
terras  dos  donatários  da  coroa. 

Á  perpetuidade  das  doações  ,  ao  menos  no  pri- 
meiro período  da  nossa  historia  ,  oppunha-se  o  di- 
reito constitucional  do  paiz  —  a  inalíeníbilídade  do 
património  do  estado;  porque  esse  direito  era  o 
mesmo  que  recebêramos  de  Leão.  J.  P.  Ribeiro  , 
n'um  escrípto  em  que  fora  conveniente  ao  seu  pro- 
pósito a  doutrina  contraria,  o  reconheceu,  nem  po- 
deria nega-lo  (4).  Desde  o  reinado  de  D.  AlTonsoS." 
appareceu  a  necessidade  das  confirmações  de  rei  a 
rei ,  as  quaes  não  são  mais  do  que  o  resultado  da 
jurisprudência  constitucional  ,  e  assim  achámos  não 
interrompido  o  direito  de  reversão  dos  bens  da  co- 
roa ,  quer  estes  fossem  de  raiz  ,  quer  rendas  ,  cen- 
sos ,  ou  qnaesqiicr  direitos  reaes.  E  postoque  si- 
milhantes  reversões  se  não  realisassem  vulgarmen- 
te ,  ainda  nos  resta  o  diploma  pelo  qual  D.  Diniz 
revogou  as  mercês  inotliciosas  que  fizera  na  sua 
primeira  mocidade. 

A  outra  condição  caracterislica  ,  sem  a  qual  se 
não  concebe  a  existência  do  feudalismo  ,  é  a  das 
obrigações  de  serviço  militar  do  feudatario  para 
cora  o  suzerano  em  virtude  do  seu  dominio  da  ter- 
ra ;  quer  esta  fosse  originariamente  allodial  ou  li- 
vre ,  e  o  possuidor  a  infeudasse  a  algum  nobre  po- 
deroso ,  ou  ao  rei  ,  para  que  o  amparasse  ;  ou  fos- 
se realmente  havida  destes  por  titulo  de  fendo.  Es- 
sa condição  falta  ,  porem  ,  no  modo  de  possuir  das 
classes  nobres  de  Portugal. 

A  propriedade  aristocrática  no  primeiro  periodo 
da  missa  historia  podia  ser  de  dois  modos  —  ou  pa- 

(4)     Itijlixõc^  Hist.   P.  1."  p.  97 Quanto  a  LeSo, 

vide  Marina  —  Ensaijo  J  71  e  seg. 


trimonial  ou  regalenga  ,  isto  c,  da  coroa.  Em  um 
e  outro  caso  essas  propriedades  eram  privilegiadas, 
e  este  privilegio  consistia  em  serem  honradas  ou 
coutadas.  E  quaes  vinham  a  ser  os  caracteres  dos 
Coutos  e  Honras?  O  estarem  exemptos  do  serviço 
militar  e  dos  tributos  reaes.  Innuraeraveis  docu- 
mentos coevos  o  fazem  conhecer;  mas  ura  sobre  to- 
dos o  leva  á  evidencia:  o  próprio  rei  —  [D.  Diniz] 
define  esses  privilégios.  «Coutar  uma  terra  —  dizia 
elle  —  é  escusar  os  seus  moradores  do  hoste,  e  de 
fossado,  e  de  foro  ,  e  toda  a  peita  (5).»  Quatro  ex- 
pressões que  abrangem  todos  os  tributos;  —  servi- 
ço militar  (hoste  e  fossado)  —  contribuições  em  di- 
nheiro ou  géneros  (foro)  —  penas  pecuniárias  ou 
calmnpnias  (peita). 

Esta  definição  de  Couto  é  extensiva  á  Honra,  que 
A.  C.  do  -Vmaral  provou  ser  a  mesma  cousa  que  o 
Conto,  quanto  á  identidade  dos  privilégios.  Dizemos 
quanto  á  iilenlidade  dos  privilégios,  porque  a  nossa 
opinião  ó  que  as  suas  origens  eram  diversas ,  e  que 
alem  disso  a  denominação  d'IIonra  era  mais  vaga  , 
estendendo-se  ás  propriedades  dos  cavalleiros  vil- 
lões  ,  do  que  se  encontram  provas  a  cada  passo  nos 
foraes,  vindo  assim  muitas  vezes  a  ser  synonimo  da 
palavra  cavnllaria  ,  que  em  um  dos  seus  vários  si- 
gnificados representava  em  geral  as  propriedades 
privilegiadas  por  qualquer  espécie  de  nobreza  mi- 
litar. 

Pelo  que  loca  á  dilTerença  d'origcra  ,  se  não  nos 
enganámos  ,  o  Couto  procedia  de  um  acto  especial 
do  rei,  que  privilegiava  um  território  ou  herdamen- 
to,  e  a  Honra  adquiria  esta  qualidade  mais  pelo  sim- 
ples facto  de  pertencer  a  um  nobre  do  que  por  mer- 
cê do  rei.  Os  abusos  iutoleraveis  ,  a  que  este  sys- 
tema  desordenado  de  privilegiar  a  terra  deu  azo  , 
suscitaram  as  severas  providencias  de  D.  Diniz  que 
remediaram  esses  abusos  quanto  ao  futuro,  mas 
deixaram  subsistir  os  resultados  que  haviam  produ- 
zido na  primeira  epocha  histórica  ,  isto  é  ,  até  os 
fins  do  século  1.3.° — O  complexo  daquollas  provi- 
dencias é  talvez  a  coUccção  mais  importante  de  mo- 
numentos paia  o  estudo  do  modo  de  ser  da  proprie- 
dade entre  as  altas  classes  nus  tempos  primordiaes 
da  monarchia  [(>)• 

Vemos,  pois,  que  quaesquer  terras  possuídas 
pela  aristocracia  secular  e  ecclesiastica  eram  de 
uma  natureza  opposta  ás  condições  capitães  dos 
feudos.  A  exempção  do  serviço  militar  deduzida 
dessa  natureza  tinha  graves  consequências.  Era  a 
primeira  que  os  bens  da  coroa  distribuídos  com 
mão-larga  pela  nobreza  e  pelo  clero  não  serviam 
para  augmentar  a  força  publica  do  paiz  ;  era  a  se- 
gunda que  para  obter  o  serviço  milil;ir  dos  fidalgos 
c  dos  seus  acostados  ou  homens  d'armas  ,  serviço 
importante  pela  pericia  c  valor  desta  casta  illustre, 
cumpria  estabelecer-lhes  estipêndios  que  haviam  de 
sahir  ,  como  já  vimos  ,  desse  mesmo  tão  defecado 
património  publico  ;  era  a  terceira  a  necessidade 
de  crear  uma  milicia  gratuita,  que  podesse  supprir 
a  falta  dos  homens  d'armas  estipcndiarios  ,  quando 
os  meios  da  fazenda  não  chegassem  para  lhes  pagar 
largamente,  e  que  ao  mesmo  tempo  servissem  de 
elemento  de  equilíbrio  contra  a  força  da  aristocra- 
cia ;  porque  naqucUcs  tempos  bárbaros  ,  como  em 
lodos  os  governos  péssimos  ,  e  nas  sociedades  mal 
constituidas  ,  os  elementos  d'equilibrio  e  de  ordem 

(5)  Liv.    3."   (la   Chancell.    de  D.  Diniz   f.    7'2  —  nas 
Meni.  da  Acad.  T.  fi ."  P.  2.»  p.  120. 

(6)  -ichani-se  pulilicadas  nasMemorias  para  aHisl.  das 
Inquirições. 


o  PANORAMA. 


373 


Tão-se  procurar  sempre  na  forra  bruta  da  soldades- 
ca ,  com  preferencia  aos  principies  da  forra  moral. 

Eis  porque  dissemos  ha  pouco  que  cm  nosso  en- 
tender a  terceira  causa  capital  da  clTicacia  com  que 
os  reis  trabalharam  por  multiplicar  as  existências 
municipaes  foi  a  importância  de  organisar  o  servi- 
ço militar.  Esta  organisação,  feita  em  proveito  do 
poder  central,  linha  tamljcm,  como  dissemos,  uma 
importância  politica,  que  não  é  possível  desconhecer. 

As  causas  ,  pois ,  que  desenvolvemos  com  mais 
alguma  extensão,  e  a  que  attrilmimos  o  rápido  in- 
cremento dos  concelhos  ,  são  três  principalmente  : 
—  o  instinclo  de  fortalecer  o  povo  como  alliado  na- 
tural da  coroa  contra  as  classes  aristocráticas,  e  em 
especial  contra  o  clero:  —  a  necessidade  de  crear 
uma  fonte  de  rendimentos  que  permittissc  o  desba- 
rato dos  bens  da  coroa  :  —  e  ,  emfim  ,  a  conveniên- 
cia de  instituir  uma  milícia  que  supprisse  a  falta 
da  milícia  feudal.  Quanto  ás  causas  moraes,  ás  con- 
siderações piedosas  ,  e  de  amor  da  prosperidade  da 
nação ,  que  se  lèera  nos  bondosos  escriplores  de 
cousas  históricas ,  com  magoa  confessámos  que  a 
nossa  consciência,  involuntariamente  incrédula,  não 
tem  energia  bastante  para  os  ir  buscar  ás  paginas 
innocentes  desses  cscriptores,  e  aos  preâmbulos  pom- 
posos dos  foraes,  onde,  na  verdade,  tão  santos  mo- 
tivos e  considerações  se  encontram  ás  vezes.  Feli- 
zes aquelles  que  podem  ver  as  cousas  da  idade  me- 
dia por  esse  prisma  de  sete  cores!  A  imagem  que 
se  lhes  representa  aos  olhos,  se  não  é  verdadeira  , 
c  ao  menos  apprazivel.  Os  sonhos  deleitosos  são 
bons  ;  bons  até  quando  são  sonhos  de  homem  acor- 
dado. 

Examinemos  agora  os  municípios  no  seu  modo 
d'existir  interno,  e  vejamos  como  elles  correspon- 
diam ás  causas  que  os  Gzeram  nascer. 

(Cotítinuar-se-ha  ) . 
(À.  Uerculano). 


CCLTCBA  DA  TIJÍHA. 

Ba  póda. 

Apegar  da  docilidade  com  que  a  vinha  em  nossos 
climas  corresponde  ao  afan  do  cultor  ,  não  melho- 
rarão os  fructos  ,  nem  por  consequência  seus  resul- 
tados ,  os  vinhos  ,  sem  que  os  proprietários  e  seus 
caseiros  attendam  muito  á  qualidade  do  terreno  c 
das  espécies  que  lhe  convém  ,  á  temperatura  e  ex- 
posição ,  e  a  outros  accidentes:  alem  disto  a  póda, 
que  muitos  praticam  brutalmente,  é  neste  ramo 
operação  essencial  e  digna  de  séria  attencão;  por- 
que dirigida  com  acerto  e  marcando  a  altura  cor- 
respondente a  cada  vide  aperfeiçoará  a  madureza 
dos  fructos  e  a  qualidade  dos  suecos  ,  ponto  de 
maior  interesse  ainda  que  difiicil  de  acclarar.  Con- 
tinua-se  todavia  a  prestar  ridícula  homenagem  ao 
inOuxo  da  lua  para  fazer-se  essa  operação  sem  olha- 
rem para  o  momento  mais  favorável  de  verifica-la  , 
o  qual  a  mesma  planta  indica  ,  e  é  quando  começa 
o  primeiro  movimento  de  seus  líquidos ,  ou  seiba  ; 
regra  geral  para  todos  os  paízes.  Variará  o  tempo 
segundo  os  climas  ;  mas  quando  a  planta  principia 
a  formar  os  gomos  ou  olhos  ,  então  se  hade  prati- 
car a  póda.  Fazendo-se  antes,  a  natureza  não  pôde 
acudir  á  cicatrisação  dos  golpes  e  expõe-se  o  vege- 
tal a  perecer;  se  é  feita  mais  tarde  sobrevem  flu- 
xos dos  suecos  e  até  a  desorganisação  da  planta.  .4 


operação  da  póda  funda-se  n'alguns  princípios  que 
o  cultor  deve  ter  presentes.  O  sueco  nutriente  sobe 
das  raízes  ás  varas  o  mais  verticalmente  que  é  pos- 
sível ,  accumulando-sc  nos  braços  rectos  com  de- 
trimento dos  outros :  as  varas  a  que  aUuc  abundan- 
te seiba  produzem  muita  lenha  e  pouco  fruclo  ;  pe- 
lo contrario  aquellas  a  que  não  acode  tanta.  Toda 
a  vara  velha  não  dá  olho  ou  gòmmo  ,  senão  obri- 
gada [lela  póda.  I'ara  esta  operação  trata  o  agricul- 
tor de  que  a  seiba  \{i  distribuída  com  justo  equilí- 
brio ,  evitando  que  saiam  varas  parasitas ,  que  em 
grande  uumero  na  cepa  ostentariam  louçaã  vegeta- 
ção mas  com  pouco  producto.  .\  videira  abandona- 
da a  si  daria  raros  c  maus  cachos;  podada  llorecc 
e  fructilica  melhor  e  successívanicnte.  Hade  fazer- 
se  a  póda  em  dia  sereno  e  tempo  enxuto  ,  com  os 
cortes  oblíquos,  e\itando  os  talhos  inúteis  por  pe- 
quenos que  sejam.  —  Para  diante  desenvolveremos 
a  pratica  ,  cora  auxilio  dos  nossos  escriptores,  que 
desta  cultura  trataram. 

È  sabido  que  a  bacellada  se  não  póda,  para  dei- 
xa-la arreigar-se  e  desenvolver-se  :  porem  ao  se- 
gundo anno  póda-se  mui  rente  acima  do  olho  ou 
gómmo  mais  próximo  á  terra  ,  segando  ao  mesmo 
tempo  todos  os  sarmentos.  Na  estampa  ,  que  in- 
cluímos neste  logar  ,  a  figura  do  lado  direito  desta 
columna  mostra  os  lançamentos  desenvolvidos,  con- 
sequência desta  póda  primeira: 


A  segunda  póda  ,  isto  é  a  do  terceiro  anno  ,  de- 
ve ser  menos  rente  do  que  a  anterior  ,  e  effectua- 
se  acima  do  primeiro  ,  segundo,  ou  terceiro  olho 
ou  borbulha  ,  segundo  a  força  da  videira  :  todos  os 
demais  olhos  são  rejeitados  por  inúteis  :  vid.  afi- 
gura 2.'  immediata  á  esquerda  da  1."  na  pequena 
lamina,  que  inserimos  acima  :  a  3.°  figura  demons- 
tra os  rebentões  que  dahi  procedem  :  nesta  cpocha 
se  deixam  as  esperas  a  que  n'alguns  sítios  chamam 
fiadores  ,  e  n'outros  guardas ,  para  o  caso  que  pe- 
reça a  vara  com  qne  se  conta  ;  então  é  damnosa  a 
operação  de  desparrar  ou  desfolhar,  no  tempo  cm 
que  isto  se  costuma. 

A  terceira  póda  pralica-se  acima  dos  primeiros  , 
segundos  ,  ou  terceiros  olhos  dos  lançamentos  que 
resultarem  do  anno  precedente  [figura  4.'  da  mes- 
ma estampa]  tem  por  objecto  formar  a  cabeça  da 
videira,  as  varas  mães,  ou  varas  mestras  como  é 
uso  chamar-lhes  :  podem  estas  variar  de  numero  , 
conforme  as  circumstancias  ;  mas  nunca  passarão 
de  quatro  ou  cinco. 

A  quarta  póda  faz-se  nas  vides  da  caljeca  da 
videira  ;  supprímem-se  todos  os  olhos  menos  o  pri- 
!  meiro  ,  e  igualmente  quantos  renovos  brotarem  das 
raizes :  figura  primeira  á  direita ,  na  seguinte  es- 
tampa. 


374 


O   PANORAMA. 


Quinta  poda  :  formação  completa  da  cabeça  da 
Tideira  [figura  que  se  vò  a  esquerda].  O  trabalho 
de  esfolhar  ou  desparrar  sahe  bem  em  alguns  cli- 
mas para  apressar  e  melhorar  a  maturidade  da 
ura  ;  mas  só  se  hade  applicar  ás  plantas  vigorosas 
e  mui  próximas  a  outras. 

Ao  chegar  a  videira  ao  sexto  atino  de  sua  plan- 
iação  ,  que  ó  o  quinto  da  poda  ,  deve  achar-se  com 
todas  as  partes  que  a  constituem  perfeita.  —  Dire- 
Jnos  dos  cuidados  que  se  lhe  hãode  prestar  para  o 
diante. 

(Continuar-sc-haJ. 


Igreja  de  Santa  Mahia  do  Olival,  matriz  de  todas 
AS  outras  igrejas  da  Ordem  de  Christo. 


m. 


Quando  se  lê  nas  historias  pátrias  que  a  igreja  de 
St.'  Maria  do  Olival  fora  primitivamente  templo  de 
monges  benedictinos  no  7.°  século  da  era  christaã  , 
memorável  por  ser  aquelle  em  que  a  virgem  por- 
tugueza  ,  St."  Jria  ,  ia  consagrar  a  Deus  seus  votos 
ferventes,  e  aquella  coragem  heróica  que  a  fez  pre- 
ferir a  perseguição  e  o  martyrio  aos  favores  e  es- 
plendor d'um  thalamo  illustre  ;  quando  se  recorda, 
dizemos,  que  foi  basílica  de  uma  ordem  famosa,  da 
irilhanlc  cavallaria  do  templo  ;  fundada  e  ampla- 
mente dotada  pelo  fundador  da  monarchia  ;  e  de- 
pois cabeça  e  matriz  da  outra  poderosíssima  e  re- 
levantíssima ordem  de  Christo  ,  em  que  seus  mes- 
tres eram  príncipes  e  reis  ,  como  ainda  hoje  são  ; 
admiração  e  assombro  deve  causar  que  cm  lognr 
«rum  templo  vasto  ,  magnifico  e  opulento  encontre- 
mos uma  pequena  e  pobre  igreja  ,  desamparada  no 
meio  d'uma  solidão  d'enluIhos,  sem  vestígios  outros 
de  sua  antiga  origem  mais  do  que  uma  tosca  e  negra 
lorre  golhíca  coroada  de  sinos  mui  conimuns  em 
mesquinho  e  rústico  campanário  !  =  Pois  c  esta  , 
exclamariam  alii  os  curiosos  levados  pela  lição  dos 
historiadores,  é  esla  ,  na  apparencia  ,  igreja  de  pa- 
rochia  aldeaã,  aquella  celebrada  basílica  da  ordem 
ilc  Christo  ,  matriz  de  todas  as  igrejas  das  conquis- 
tas nas  Ilhas,  na  Africa,  na  Ásia  c  no  Brasil!  É 
aqui  onde  celebravam  suas  festas  e  commemorações 
gloriosas  os  prelados  do  convento  de  Thomar ,  os 
quasi  bispos,  administradores  do  seu  vasto  e  po- 
voadissímo  exempto  ,  os  chefes  ecclesiasticos  da  ca- 
Tallaria  de  Christo  no  reino  c  nas  colónias !  Foi 
nqui  onde  tiveram  seu  illustre  jazigo  um  D.  Gual- 
dira  Paes  c  demais  mestres  templários,  os  compa- 
nheiros dos  reis  nas  batalhas ;  e  depois  destes  mui- 
tos de  seus  sucecssores ,  não  menos  lienemeritos  , 
e  porventura  que  nuiito   moís  venturosos,  os  mes- 


tres, dignatarios  e  cavalleiros  da  ordem  de  Chris- 
to !  E  onde  jaziam  suas  honradas  relíquias  ,  onde 
estão  esses  respeitáveis  lavores  e  debuxos  de  suas 
campas,  a  espada  templaria ,  os  brazões  de  suas 
armas  ,  as  cruzes  de  Christo  ,  os  letreiros  gothicos 
que  nos  apontassem  seus  nomes?  Sic  pertransiit? 

Pequena  e  acanhada,  desigual  ao  seu  objecto  e 
a  suas  glorias,  era  com  effcito  a  igreja  de  St."  Ala- 
ria do  Olival  :  mas  o  que  ahi  minguava  em  grande- 
za era  compensado  no  grupo,  e  quasi  labyrintho  de 
outras  muitas  pequenas  igrejas  ,  oratórios,  ou  ca- 
pellas  que  a  cercavam  :  parecendo  que  com  religio- 
so acatamento  cada  um  dos  fundadores  e  devotos, 
sem  atrever-se  a  tocar  no  antigo  venerando  santuá- 
rio, se  comprazeu  em  accrescentar  ao  redor  delle 
uma  nova  construcção  religiosa,  como  para  com- 
pensar a  deficiência  daquelle.  Assignar  a  cada  uma 
destas  conslrucções,  hoje  desapparecidas,  suas  epo- 
chas  e  seus  andores  não  é  tarefa  de  fácil  ou  possí- 
vel averiguação  :  nossos  antigos  eram  menos  escre- 
vinhadores do  que  edificadores  e  constructores  ,  e 
a  incúria  fez  o  resto.  As  poucas  noticias  que  colhe- 
mos ,  segundo  as  dá  o  livro  do  Tombo ,  são  as  se- 
guintes : 

1."  Igreja  ou  capella  de  S.  Perofins.  Suppõe-se 
que  esta  era  a  da  primitiva  ,  orago  do  mosteiro  de 
monges  benedictinos ,  a  mesma  que  era  parochia 
da  antiga  Nabancia  ,  onde  frequenlava  o  culto  St." 
Iria.  Parece  que  depois  de  varia  fortuna  a  reedifi- 
cou Filippe  2.°  de  Castella  ,  e  pertende  o  livro  do 
Tombo  que  uma  lapide  ,  posta  sobre  a  porta  prin- 
cipal delia  ,  attestava  em  letreiro  sua  origem  an- 
tiga. 

2.°  Igreja  ou  capella  deS.  Miguel,  maior  e  mais 
bem  construída  que  todas  as  demais;  foi  demolida 
sendo  vigário  D.  Diogo  Pinheiro ,  qne  depois  foi 
nomeado  bispo  do  Funchal  :  estava  situada  ao  poen- 
te da  igreja  de  St."  Maria.  Sendo  D.  Prior  de  Tho- 
mar D.  Diogo  da  Gama  em  tempos  d'elrci  D.  João 
2.°,  com  a  pedraria  da  tal  capella  se  construíram 
umas  casarias  [diz  o  Tombo]  ahi  perto  que  serviam 
de  recreio  aos  freires.  Em  compensação  daquella 
capella  demolida  mandou  o  mesmo  D.  Prior  cons- 
truir outra,  pegada  ás  ditas  casarias,  da  mesma  in- 
vocação de  S.  Miguel ,  pequenina  mas  primorosa 
de  arcliitectura  ,  a  qual  ainda  hoje  existe  em  pé 
mas  arruinada  e  deturpada  ,  quasi  enterrada  entre 
silvas  na  Insoa  ou  Horta  das  Freiras  ,  ahi  pegada 
ao  rio  Nabão. 

3."  Capella  de  St."  Maria  Magdalena  ,  quasi  en- 
costada á  igreja  de  St."  Maria  do  Olival  ,  do  lado 
do  norte.  Esta  antiga  lindíssima  capella  foi  demo- 
lida cm  18Í0.  Por  essa  occasião  pereceram  os  tú- 
mulos antigos  que  ahi  havia  ,  e  até  as  lapides  com 
suas  inscripções  foram  embutidas  [segundo  diz  o 
nosso  informador]  no  muro  do  novo  cemitério.  Pelo 
mesmo  tempo  se  demoliu  aquelloutra  capella  de  S. 
Perofins  ,  onde  se  encontrou  uma  lapide  encaixada 
na  parede,  de  palmo  em  quadro  ,  onde  estava  es- 
cripto  : 

=  C.°  [ou  o.°]  Xonas  maii  ohiit  Garcia  Bermudes 
ciii  beata  sit  rcquies  anno  1232.  =  Nós  encontrámos 
o  nome  deste  cavalleiro  acompanhando  a  ccJrte  d'cl- 
rei  D.  AfTonso  2.°  e  confirmando  uma  doação  real 
na  era  de  12W.  Mon.  Lusit.  P.=  í."  L.  13  cap.  1.' 
O  lombo  antigo,  faltando  das  demolições  e  rc- 
construcções  do  tempo  dos  dois  soberanos,  D.  Ma- 
nuel c  D.  João  3.°,  c  da  salvagcria  com  que  foram 
maltratados  os  túmulos  e  conslrucções  antigas ,  cm 


o  PANORAMA. 


375 


que  cnlravam  aqticllas  antigualhas  exteriores  que 
acima  apontámos  ,  diz  que  por  esse  tempo  se  arra- 
saram umas  casarias  que  estavam  juntas  á  igreja  , 
que  se  dizia  serem  edificadas  precisamente  no  lo- 
gar  do  antigo  convento  c  de  sua  clnustra  primitiva. 
=  t  para  lamentar,  accrcsccnta  o  auctor  do  Tom- 
bo ,  que  se  destruisscm  tantas  antiguidades  ,  tantas 
bellezas  ;  o  que  devia  ser  por  ignorância  dos  mes- 
tres e  descuido  dos  vedores.  Ahi  existia  também 
uma  capella  inslituida  por  D.  Estevão  Peres  ICspi- 
nel  (*),  que  totalmente  dcsnpparoceu.  Mas  csla  des- 
truição se  fez  sem  licença  d"clrci  ,  c  com  mnila 
differença  do  que  praticou  no  convento  de  Clirislo 
Fr.  .\ntonio  de  Lisboa  ,  quando  presidiu  ;í  reforma 
da  igreja  do  convento  ,  fazendo  mudar  com  cuida- 
do os  monumentos  do  mestre  D.  Lopo  Dias  de  Sou- 
sa, e  outros  da  antiga  capella  do  Scnbor  da  Ciraca, 
que  se  demoliu  para  a  de  St."  Maria  do  Castello, 
onde  ainda  existem  mutilados.  = 

Vè-sc  de  todas  estas  memorias  que  a  igreja  de 
St."  Maria  do  Olival,  hoje  desamparada  e  só  [se  ex- 
ceptuarmos uma  pequena  e  mesquinha  casa  ou  ca- 
sebre com  pequenina  cerca  encostada  á  esquina  do 
lado  do  meio  dia,  que  snppòmos  seria  para  o  guar- 
da ou  sacristão  do  templo],  fora  antigamente  acom- 
panhada e  rodeada  de  capellas ,  casarias  ,  túmulos 
exteriores  a  esses  logares  sagrados  ,  alem  das  casa- 
rias do  antigo  convento.  Nos  Ires  primeiros  séculos 
da  monarchia  ,  dominando  a  devoção  e  espirito  de 
cavallnria  ,  muitos  dos  grandes  senhores  procura- 
vam deixar  depois  de  si  estes  monumentos  de  pie- 
dade, e  jazigo  chrislão  para  suas  cinzas. 

( Ctíncluir-sc-ha .  I 


O  ECLIPSE  DO  SOL  DE  8   DE   JILHO   DE    184á. 

L 

Ha  certos  phenomenos  que,  alem  da  sua  importân- 
cia considerados  em  relação  aos  progressos  das  scien- 
cias  ,  são  dignos  da  maior  allenção  pelo  modo  evi- 
dente cora  que  vêem  confirmar,  ou  pòr  em  duvida 
a  veracidade  de  muitos  princípios  srienlificos.  Es- 
tes phenomenos  quasi  sempre  exigem  novos  estu- 
dos ,  ao  mesmo  tempo  que  são  uma  avaliação  rigo- 
rosa dos  resultados  que  o  espirito  humano  tem  ti- 
rado do  estudo  e  da  observarão  até  a  epocha  do  seu 
apparccimento.  —  Esta  epocha  pre^ista  pela  scien- 
cia  é  geralmente  esperada  com  ancicdade  ;  e  pelos 
que  a  marcaram  é  desejada  com  uma  desconfiança 
occulta ,  com  um  receio,  do  qual  muitas  vezes,  ou 
sempre  desconhecem  a  origem;  mas  esse  receio , 
ou  a  desconfiança  revela  a  pequenez  dos  maiores 
recursos  da  intellectualidade  ,  que  se  tornam  inde- 
cisos e  descrentes  de  si  mesmos  ,  logo  que  depen- 
dem da  immensidade  e  omnipotência  do  Creador. 
A  sciencia  tem  chegado  a  um  estado  tal  de  progres- 
so, que  esta  desconfiança  e  indecisão  podem  tornar- 
se  sensíveis  por  uma  dilfcrença  de  instantes.  —  O 
eclipse  annunciado  pelos  astrónomos  para  8  de  ju- 
lho de  1812,  era  um  destes  phenomenos  que  pou- 
cas vezes  se  repetem  com  todo  o  desenvolvimento 
possível ,  e  que  teem  grande  inDuencia  no  futuro 
da  sciencia.   Os  homens  que  neste  século  mais  se 

(•)  Este  D.  Estevão  Pires  Espinhei  foi  coniraendador 
da  commenda  de  Sanlaiem  ,  de  que  era  cabeça  a  igreja  de 
Santiago ,  pertencente  a  templários  :  assisnoii  com  muitos 
outros  ilignalarios  da  ordem  n'unia  acquisii;ào  do  mestre  D. 
Marlim  Martins,  no  anno  de  1S62.  Munarch.  Lusit  P.  5.° 
L.   16  cap.  22. 


teem  entregado  ao  estudo  sublime  da  astronomia , 
tinham  com  antecedência  preparado  todos  os  meios 
que  podiam  auxiliar  as  observações  que  deviam  fa- 
zer :  a  estes  meios  filhos  da  arte  j'unlaram-se  os 
grandes  recursos  que  a  natureza  possue,  que  todos 
concorreram  para  se  observar  com  a  maior  perfei- 
ção tão  importante  phcnomcno.  Muitos  trabalhos  ri- 
cos de  sciencia  c  de  factos  nasceram  dessas  obser- 
vações. Em  Portugal  não  sabemos  o  que  se  fez: 
mas  custa-nos  a  crer  que  se  não  fizesse  nada  ;  to- 
davia assim  parece  que  o  deveríamos  julgar  ;  por- 
que se  alguns  trabalhos  existem  a  tal  respeito,  por 
certo  que  ainda  não  vieram  á  luz  :  c  deste  facto  se 
pôde  deduzir  que,  ou  esses  trabalhos  são  tão  sabia- 
mente elaborados  que  o  publico  os  não  poderia  com- 
prehcnder  ,  ou  tão  insignificantes  c  imperfeitos  que 
só  merecem  o  esquecimento.  Seria  muito  convenien- 
te que  os  homens  de  saber,  que  por  mcrcè  de  Deus 
ainda  possuímos,  evitassem  que  fora  de  Portugal  se 
possam  deduzir  taes  consequências  do  nosso  silen- 
cio acerca  dos  acontecimentos  que  mais  põem  cm 
movimento  todo  o  mundo  scicnlífico. 

Entre  alguns  escriplos  que  temos  lido,  e  em  que 
se  trata  deste  eclijise  ,  parece  nos  que  as  observa- 
ções de  Mr.Pinaud  e  Boigirand  são  muito  merece- 
doras de  serem  vulgarisadas  pela  simplicidade  com 
que  sao  apresentadas  ,  c  exactidão  com  que  incul- 
cam ser  feitas.  Estas  observações  foram  lidas  na 
academia  das  scíencias  de  Tauloiisc ;  e  foram  feitas 
no  eirado  de  uma  das  torres  da  cathcdral  de  Saint- 
Jusl.  Os  instrumentos  empregados  foram  três  óculos 
astronómicos  ,  um  telescópio  de  Grcgory,  um  thcr- 
momelro  cenlrigrado,  dois  polariscopios,  c  os  cbro- 
nometros  e  vidros  corados  de  differente  espessura 
que  eram  indispensáveis  para  se  completarem  as 
observações.  —  A  natureza,  como  já  dissemos,  con- 
correu para  que  o  phenomcno  podesso  ser  visto  do 
melhor  modo  possível.  O  sol  despontando  no  hori- 
sonte  ás  4  horas,  23  minutos  e  3t»  segundos  encheu 
a  abobada  celeste  com  a  luz  pura  e  brilhante  de  um 
dos  mais  formosos  dias  de  estio  ,  cm  que  nem  uma 
ligeira  nuvem  mancha  esse  azul  do  firmamento,  que 
não  tem  na  terra  uma  cór  que  o  possa  imitar;  esse 
azul  luminoso  que  c  como  uma  imagem  do  infinito, 
e  atravcz  do  qual  a  idóa  se  perde  como  a  vista  :  sú 
nos  primeiros  instantes  em  que  o  astro  da  luz  asso- 
mava no  horisonte,  é  que  algumas  transparentes  nu- 
vens lhe  quebraram  o  esplendor:  mas  esses  mesmos 
raios  brilhantes  que  as  interceptaram  ,  se  dissipa- 
ram ,  e  o  sol  raiou  com  todo  o  seu  brilhantismo  :  c 
vinte  e  sele  minutos  depois  do  nascimento  do  sol 
começou  o  eclipse.  Para  darmos  aos  nossos  leitores 
uma  idéa  approxiraada  deste  phcnomcno  extrahircmo» 
dos  escriptos  em  que  já  faltámos  de  Mr.  Pinaud  c 
Boigirand  o  que  nos  parece  mais  próprio  para  este 
eíTeito.  «As  4  horas,  30  minutos  e  15  segundos  a 
extremidade  oriental  da  lua  cortou  o  disco  Occiden- 
tal do  disco  solar  na  região  noroeste,  41  graus  á 
direita  do  diâmetro  vertical  ,  c  o  astro  cciipsantc 
com  um  movimento  uniforme  caminhou  de  noroeste 
a  sudoeste.  As  5  horas,  42  minutos  c  34  segundos 
a  parle  visível  do  sol  formava  um  crescente  cujas 
extremidades  se  tornavam  cada  vez  mais  finas  e  del- 
gadas. A  regularidade  dos  contornos  do  crescente 
começou  a  ser  alterada  por  muitos  recortes  escuros 
e  móveis,  dos  quaes  era  impossível  determinar  o 
numero  e  a  altura  ;  sendo  uma  das  causas  que  mais 
se  oppunha  a  este  fim  a  agitação  das  ondulações  que 
sulcavam  os  lados  do  cresceule  ,  nas  extremidades 
da  qual  appareciam  estrias  escuras :   alguns  segun- 


376 


O  PANORAMA. 


dos  depois  já  o  disco  da  lua  tinha  inteiramente  en- 
cuberto  o  sol ,  e  ás  5  horas,  í-S  minutos  c  13  se- 
gundos o  eclipse  era  total.  Antes  de  appresenlarmos 
os  bellos  phcnonienos  que  tiveram  logar  cm  quanto 
o  sol  estava  inteiramenle  occullo  ,  terminemos  esta 
curta  enumerarão  das  diversas  phases  do  eclipse  , 
o  qual  deixou  de  ser  total  ás  S  horas  ,  43  minutos 
e  11  segundos.  Durou  em  Narbonne  um  minuto  e 
S8  segundos.  Assim  que  o  lado  occidcntal  do  sol 
surgiu  de  sob  o  disco  da  lua  ,  a  escuridão  foi  dis- 
sipada pela  intensa  luz  que  abrilhantava  esse  lado; 
depois  tornou  a  apparecer  um  crescente  débil  na 
direcção  du  noroeste,  absorveram-se  os  recortes  mó- 
veis ,  estrias  muilo  visíveis  como  já  se  haviam  ob- 
servado. Ao  passo  que  o  crescente  augmcnlou  ,  di- 
minuiu o  numero  dos  recortes  ,  e  uns  ligamentos 
escuros  que  pareciam  unir  os  dois  lados  do  crescen- 
te dcsapparecerani  no  fim  do  20  a  2o  segundos.  Fi- 
nalmente a  sombra  que  a  lua  tinha  projectado  so- 
bre o  sol,  c  que  parecia  um  véu,  foi  desapparecen- 
do  com  uma  lentidão  magestosa  ,  e  o  eclipse  aca- 
bou ás  6  horas  ,  42  minutos  e  40  segundos.  A  sua 
duração  total  foi  de  1  hora,  32  minutos  e  25  se- 
gundos. (Conchtir-se-ha.J 

S.  J.  Ribeiro  de  Sá. 


De  la  Cosmogonic  de  Moisc   comparée  au.v  faits  gco- 
logiqucs  par  Mareei  de  Sevre. 

Dizionario  di  Erudizioni  Slurico-Ecchsiastico  da  S. 
Piítro  fino  ai  noslre  giorni  ,  da  Caetano  JHoroni. 

Das  ruinas  do  erro  surge  a  cruz  ,  como  surgiu  das 
ruiuas  do  mais  poderoso  império  do  mundo.  —  A 
sciencia  vai  dissipando  as  trevas  ,  com  que  o  des- 
crer do  século  passado  e  a  inditlcrença  do  século 
actual  haviam  cercado  a  humanidade.  Um  grande 
pensamento  se  debate  entre  o  fanatismo  e  a  here- 
sia ;  em  quanto  este  pensamento  não  vencer  estes 
dois  erros  os  povos  não  serão  felizes.  —  Grande  e 
nobre  é  a  missão  do  homem,  que,  ao  passar  por  so- 
bre este  mundo  de  transição  ,  não  pôde  ser  indifle- 
rente  aos  soffrimenlos  do  género  humano.  —  Bem 
vindos  são  a  este  valle  de  lagrimas  os  que  tão  chris- 
taãmente  vivem  cora  seus  irmãos  ;  c  ouvirão  as  ora- 
ções solcmnes  em  que  se  repetem  as  santas  palavras 
do  Evangelho  :  —  Gloria  in  excelsis  Deo  cl  in  ter- 
ra pax  huiniiiibus  lona;  volunlatis  —  e  também  a 
nossa  voz  débil  e  humilde  repetirá  estas  sublimes 
expressões  vendo  esses  homens  erguer  a  sua  voz 
em  favor  da  religião  que  tanto  lemos  visto  despre- 
zar ,  e  contra  os  abusos  com  que  em  outras  eras 
a  pertenderam  envolver  falsos  chrislãos.  —  Uma 
nova  edição  da  obra  preciosíssima  de  Mr.  Mareei 
de  Sevre  acaba  de  sahir  a  lume  —  essa  obra  c  um 
dos  mais  enérgicos  e  altos  brados  que  a  sciencia 
tem  soltado  em  favor  da  religião  chrístaã  ;  ainda 
que  a  obra  de  Mr.  Mareei  não  deva  obrigar-nos  a 
ser  ingratos  para  cora  muitos  outros  escriptores  ,  e 
principalmente  para  com  Wiseman  ,  que  no  seu  = 
Discurso  acerca  das  relações  que  existem  entre  a 
Sciencia  e  a  lleligião  revelada  =;  tratou  magistral- 
mente o  importantíssimo  assumpto  de  que  trata  o 
livro ,  cuja  segunda  edição  annunciàmos  com  a 
maior  satisfação  ;  devemos  declarar  que  o  modo  co- 
uio  Mr.  de  Sevre  considerou  esta  questão  torna  o 


seu   livro  preferível  a  quantos  em  tal  matéria   se 
hajam  escripto  (•). 

A  segunda  obra  que  annunciàmos ,  e  da  qual 
não  consta  que  exista  um  só  exemplar  em  Portu- 
gal ,  está  por  tal  modo  elogiada  no  Boletim  lít- 
terario  de  um  dos  melhores  jornaes  da  França 
[falíamos  da  Uevísta  do  Meío-Día]  que  não  pode- 
mos deixar  de  considerar  esta  obra  como  uma  das 
mais  vastas  concepções  do  século  em  que  vive- 
mos—  «O  Dizionario  di  Erudizioni  Storico-Eccle- 
siastico»  —  já  conta  20  volumes  e  ainda  não  ter- 
minou a  leltra  E ;  e  resume  o  estudo  das  relações 
que  tem  existido  entre  Roma  christaã  e  a  socieda- 
de antiga  e  moderna.  —  Esperámos  que  a  nossa  Bl- 
bliotheca  Publica  fará  as  possíveis  diligencias  para 
possuir  um  exemplar  de  obra  de  tanta  transcen- 
dência. 

S,  J.  Ribeiro  de  Sá. 


Pintor  de  género  singular.  —  No  presente  século 
viveu  ura  pintor  suisso,  por  nome  Godofrcdo  Mind, 
que  era  vulgarmente  denominado  o  llaphael  dos 
gatos,  porque  ainda  ninguém  melhor  reproduziu  os 
rasgos  característicos  da  raça  felina  :  represenla- 
va-os  ora  cm  grupos  ora  individualmente  ,  expri- 
mindo no  mór  auge  de  naturalidade  aquella  mescla 
de  audácia  e  sujeição  ,  de  placidez  e  de  má  fé  , 
por  que  tanto  se  distinguem  os  gatos  ;  era  incom- 
parável na  vivacidade  das  scenas  das  famílias  de 
gatinhos ,  variando  as  posturas  destes  espertos  ani- 
macs  em  seus  brinquedos.  Basta  dizer  que  por  ul- 
timo já  não  pintava  outra  cousa  ,  e  que  os  estran- 
geiros, que  frequentavam  Berne  onde  residia,  presa- 
vam  muitíssimo  obter  algum  desenho  desta  natureza. 

Esta  propensão  e  gòslo  nasciam  da  grande  esti- 
mação que  Mind  fazia  dos  galos  :  e  os  seus  ,  que 
não  eram  poucos  ,  tinham  regalado  e  cauteloso  tra- 
tamento ;  com  elles  se  entrelinha  e  desenfadava  :  e 
note-se  que  este  homem  era  de  génio ,  postoque 
nada  grosseiro,  mui  pouco  social.  —  Quando  as 
auctoridades  da  republica  bernense  ,  receosas  dos 
declarados  symptomas  de  hydrophobia  ,  que  se  ma- 
nifestaram nos  gatos  da  cidade  ,  no  anno  de  1809  , 
mandaram  extermina-los ,  conseguiu  Mind  evitar 
que  se  daranasera  os  que  lhe  pertenciam,  e  conser- 
vou-os;  todavia  pcnalisou-se  grandemenle  com  a 
matança ,  que  passou  de  800  gatos  imniolados  á 
segurança  publica. 

Quanto  pintava  neste  género  ,  tão  exquisitamentc 
peculiar  ,  tudo  extrahia  ;  e  não  podia  satisfazer  ás 
muitas  encommendas  da  mesma  espécie,  que  amiu- 
dada e  successivamcnte  lhe  faziam.  —  Mind  mor- 
reu ha  poucos  annos. 


Se  tão  somente  a  intelligencia  nos  governara,  fô- 
ramos anjos:  se  o  coração,  não  tivéramos  senão  pai- 
xões cegas  e  desenfreadas. 

Começámos  a  viver  pelo  sentimento  ;  acabámos 
pelo  pensamento. 

T.  A.  Craveiro. 


(•)  O  auclor  deste  artigo  ja  deu  uma  prova  do  quanto 
esta  i;rave  matéria  tem  sido  objecto  dos  seus  estudos :  poij 
no  livro  =  A  Desmorali-sação  e  o  Século  =  era  o  Fra- 
cmeulo  4.°,  quando  nota  algumas  das  tendências  anti-mo- 
raes  desta  epoclia ,  desenvolveu  quanto  caliia  nos  limites  do 
seu  opúsculo  a  opinião  em  que  está  (conforme  á  ile  homens 
sapientissimos]  de  que  a  sciencia  confirma  a  verdade  da  Bí- 
blia.—Os  RR. 


101 


o  PANORA3IA. 


377 


^A     '-  '\ 


FAZiACIO  DA  GRANJA. 


A  VIME  léguas  '^']  de  dislaucia  de  Madrid,  em  si- 
tio por  exlrcmo  moiUiioso,  a  duas  léguas  de  Segó- 
via, havia  anliganicnle  um  palácio,  ou  casa  real 
de  campo  ,  chamada  Valsain  ,  recnmmendavel  pe- 
las maltas  que  occupavam  esse  districto,  pela  mór 
parte  soulos  e  pinhacs  ,  e  outra  espessura  própria 
á  creação  da  caça  grossa  ,  como  veados  ,  gamos  , 
javardos ,  &c.  que  era  lodos  os  lempos ,  e  então 
mais  que  presentemente,  foi  recrearão  de  príncipes 
e  senhores.  Carlos  -2.'  frequentava  muito  esle  reti- 
ro ;  e  n'um  dia,  ao  voltar  a  Jladrid,  viu  que  ardia 
o  palácio  ,  e  com  effeito  apesar  dos  soccorros  com 
que  lhe  acudiram  coiisumiu-se  todo  o  lado  do  poen- 
te. A  pouca  distancia  de  Valsain  linhara  os  frades 
jeronymos  uma  granja  ,  que  pelos  reis  catliolicos 
lhes  fura  dada  depois  da  conquista  de  Granada,  e 
cuja  situarão  era  mais  adaptada  a  um  palácio  que 
a  de  Valsain. 

Filippe  o."  gostou  daquella  fazenda  e  comprou  o 
terreno  aos  religiosos  ,  para  construir  a  regia  man- 
são campestre,  denominada  real  sitio  de  S.  Ildefon- 
so ,  postoque  de  sua  origem  permaneça  no  vulgar  o 
nome  de  Granja.  —  X  muita  distancia  se  avistam 
as  serras;  ao  sahir  de  Segóvia  di\isa-se  o  palácio, 
que  é  na  apparencia  de  pouca  importância  :  porem 
logo  que  o  caminhante  se  avisinha  admira-se  da 
visla  picturesca  da  siluação.  Quizeram  na  arcbi- 
tcctura  arremedar  Versnilles  ;  mas  o  desígnio  dessa 
primeira  fabrica  não  lhe  dava  primor  nem  valia. 
Fernando  G.°  edificou  depois  as  galerias,  os  quar- 
tos principaes  alto  e  baixo  ,  e  fez  de  novo  a  entra- 
da principal.  Carlos  3.°  e  seu  successor  ajuntaram 
outras  obras,  que  melhoraram  o  edifício,  ainda  que 
no  todo  não  ha  a  grandeza  ,  que  pode  alguém  espe- 
rar da  famosa  Granja,  campo  de  tão  notáveis  acon- 
tecimentos políticos.  Fora  de  duvida  que  tem  mui- 
tas acommodações  para  reaes  personagens  ;  mas  o 
seu  principal  titulo  á  admiração  dos  curiosos  en- 
tendedores consiste  nas  estatuas  e  pinturas;  e  nin- 
guém pensará  ao  ver  o  medíocre  aspecto  da  casa 
que  dentro  delia  existem  obras  de  tanto  preço.  Os 
jardins  são  sumptuosos,  todavia  os  economistas  hes- 
panhoes  laslimam-se  de  que  se  consumissem  nestas 
obras  de  puro  recreio  noventa  milhões  de  cruzados, 

(•)     A  legua  conimum  corresponde  a  3:040  l)raças  porl. 

Lezeubro  2—184-3. 


carecendo  o  reino  de  estradas  ,  da  canalisação  de 
rios,  e  de  muitos  trabalhos  e  eslabelecimenlos  de 
summa  importância. 

A  cuslosa  fabrica  das  fontes  e  jardins  rcmalou-se 
no  meado  do  século  passado,  sendo  a  cascata  a 
parte  mais  dislincta  ,  o  objecto  principal  em  frente 
da  real  habitação.  Havia  um  arroio  de  aguas  cris- 
tallinas ,  que  descendo  da  montanha  serpeava  no 
valle  :  converleram-no  em  ura  famoso  canal  desde 
a  fonte  de  Andromeda  alé  nm  tanque  ,  a  que  pela 
nimia  extensão  chamam  o  mar  ,  fortificado  de  mui 
grosso  paredão  ,  e  com  uma  rua  em  todo  o  compri- 
mento :  delle  se  derivam  as  aguas  por  conductos  de 
ferro  fundido  ,  de  vários  diâmetros  ,  para  as  outras 
fontes.  A  riqueza  da  Granja  eslá  nestas  obras  by- 
daulicas ;  a  profusão  de  escuipturas,  a  arle  do  en- 
genheiro conlribuiram  para  as  fazer  celebres. 


Ao   CABO    DE  OITO   AX.NOS   SÓ    A  .NOVA  DE  QUE   MORRKBA. 


[1621] 


■Aqui  o  apertar   com   novas  penitencias, 
e  bradar  por  misericórdia. 

Fr.  LiUiz  fie  Sousa  —  Hist .    de  .V. 
Dom.  L.°  a."  cap.  15.° 


cap. 


I. 


Era  um  dia  de  maio  ,  muito  aprazível  c  todo  tão 
formoso  que  parecia  annunciar  algum  prodígio  do 
céu.  O  ar  limpo  e  sereno,  os  passarinhos  cantando 
docemente  ao  longe  entre  os  ramos  vestidos  de  fo- 
lhas ,  sobretudo  a  relva  matizada  de  flores,  como 
um  tapete  de  traça  angélica  desdobrado  e  estendi- 
do no  chão,  enfeitiçavam  por  tal  arle  os  sentidos 
que  a  alma  se  ia  toda  apoz  elles  d'alcgre  c  seduzi- 
da. Mas  —  quem  o  crera!  —  no  meio  de  tanio  que 
para  contentaraenlo  havia  na  terra,  alguera  chorava, 
e  chorava  torrentes,  porque  se  ouvia  o  tora  á'um 
sino  a  dobrar,  que  nunca  bateu  só  ás  portas  do  co- 
ração ,  mas  sempre  em  companhia  de  logrymas  ,  e 
dequanto  o  homem  tem  de  mais  lastimoso  e  triste 
para  exprimir  a  sua  viva  dór.  —  .\té   o  desavenlu- 

2.'  Serie,  —  Vol.  II. 


378 


O  PANORAMA. 


rado ,  para  quem  só  houveram  rostos  carregados  e 
ademancs  de  desprezo  quando  mostrava  a  sua  gran- 
de mingoa  estampada  na  face  amarellenta  e  desfei- 
ta ,  e  pedia  uma  migallia  de  pão  para  manlcnca ; 
até  esse  ,  ao  passar  do  leito  da  rua  para  a  cova  , 
amortalhado  nos  trapos  do  seu  vestido  ,  lá  recebe 
algumas  lagrymas  de  quem  lhe  reza  um  responso- 
rio  á  horda  da  campa  ,  ou  de  quem  o  cohre  de  pu- 
nhados de  terra  —  que  c  para  muito  doer  ,  e  até 
capaz  de  estalar  uma  pedra,  tanto  desamparo  na  vi- 
da e  na  morte  ! 

E  o  tocar  era  para  as  bandas  do  Tejo  traz  a  gra- 
de miúda  d'um  campanário,  como  voz  de  filha  que 
já  não  tem  mãi,  e  ajoelhada  á  porta  da  casa  do  Se- 
nhor escondeu  a  fronte  na  capa  para  melhor  se  car- 
pir e  desafogar.  Passavam  por  alli  homens ,  mulhe- 
res e  meninos  ,  ia  e  vinha  muita  gente  ,  e  ninguém 
fazia  caso.  —  Era  que  o  mundo  os  levava  arrebata- 
dos no  Ímpeto  da  sua  corrente  sem  lhes  dar  azo  de 
atracar  ao  salgueiro  da  margem  ,  e  no  parecer  per- 
didos todos  sem  remédio.  No  entanto  um  bando  de 
innocenles  pombas  ,  sumidas  ao  açor  maldito  ,  ge- 
mia sobre  a  companheira  extincta  que  se  fora  a  ci- 
las demandar  abrigo  e  refugio  consolador.  «Tem  a 
pelle  pegada  aos  ossos  !  .  .  .  foi  marlyr  da  peniten- 
cia !...  » —  assim  diziam  todas,  e  os  olhos  como 
fontes  alagavam  os  tijolos. 

II. 

Que  solemne  ,  terna  e  piedosa  ,  é  a  mãi  de  todos 
no  encommendar  ao  Allissimo  o  filho  que  lhe  ex- 
pirou nos  braços,  Ha  nessas  rogações  do  propheta  , 
nesse  dorido  lastimar  de  Job,  nessa  toada  funcbre, 
tantas  harmonias  de  consolação  e  dor  que  o  coração 
gotejando  sangue  adormece  aos  pés  da  cruz  affoga- 
do  pur  delicias  do  céu.  —  Por  isso  as  lagrymas  es- 
tancam. 

N'um  estrado  humilde  pousava  o  esquife  ;  den- 
tro um  cadáver  de  mulher  envolto  em  túnica  po- 
bre :  um  véu  lhe  cingia  a  cabeça  ,  e  descendo  co- 
bria-lhe  com  as  pontas  os  hombros  ,  peito  ,  e  quasi 
inteiro  o  rosto.  Tinha  as  mãos  erguidas  e  tão  com- 
postas como  se  estivera  viva  —  tal  era  ainda  a  fa- 
cilidade daquellcs  membros  regelados  para  os  há- 
bitos extinclos! — e  seus  lábios,  contrahidos  doce- 
mente ao  despedir  a  alma,  sorriam  para  o  alto,  lá 
para  onde  ella  seguira  seu  caminho  direito.  Duas 
alas  de  virgens  amortalhadas  de  igual  modo  entoa- 
vam os  cânticos  das  rogações  extremas  ,  e  nas  pau- 
sas do  alternar  piedoso  como  que  sentiam  uns  bra- 
dos de  ferro  sabidos  daquella  boca  fria:  nlrmaãs, 
apressiii-vos  em  dar-me  á  terra  ,  que  haveis  mister 
este  leito  despejado  .  .  .  talvez  hoje.  .  .  »  E  uma  gri- 
la repentina  nos  degraus  do  throno  cm  que  está  as- 
sentado o  Juiz  dos  vivos  e  dos  mortos:  «Senhor, 
não  me  arguas  no  teu  furor  :  nem  me  arrebates  na 
lua  ira  !  .  .  .  Eu  lavarei  todas  as  noites  o  meu  lei- 
to ,  regarei  o  meu  estrado  com  minhas  lagrymas  I 
.  .  Ai  de  mim  ,  Senhor,  porque  eu  pequei  muitíssi- 
mo em  minha  vida  :  que  farei  ,  miserável  \  .  .» 

Succedèra  o  silencio  como  um  pezo  que  compri- 
mindo o  peito  nem  permitte  respirar.  Sobre  quatro 
hombros  delicados  ,  fracos  ,  vai  esse  corpo  que  en- 
leara pensamentos,  e  fura  encanto  do  mundo.  Uma 
fouce  lhe  derribara  quantotinha  debello,  mimoso  e 
seductor  ;  passaram-se  annos,  cahiu-lhe  um  raio  no 
tronco,  c  veio-se  desamparado  lambem  ao  chão. 
Comtudo  houve  um  tempo  cm  que  tão  largo  se  es- 
tenderam seus  ramos  que  mal  cabiam  no  horison- 
te ,   e  subiu  tão  alto  que  pareceu  roçar  as  nuvens 


com  a  cima  —  para    agora   caber  n'uma  cúva  de 
poucos  palmos  todo  quebrado  e  desfeito  !  .  .  . 

III. 

Pouco  se  lhe  dá  ao  mundo  dos  successos  Decor- 
ridos fora  delle  ,  e  por  isso  raro  gasta  com  elles 
sequer  uma  palavra,  como  a  reputa  mal  emprega- 
da e  perdida.  Não  se  houve  assim  desta  vez.  A  tris- 
te nova,  que  tão  magoadas  linha  no  claustro  aquel- 
las  carinhosas  almas  ,  escoára-se  pelo  ralo  da  por- 
taria ,  e  correra  toda  Lisboa.  O  povo  chorava  de 
ouvi-la  ou  contando-a  :  aos  grandes  acontecia  outro 
tanto  ,  e  até  no  palácio  do  governo  intruso  se  ouvi- 
ram echos  dessa  voz  mal-assombrada  ,  que  atraves- 
sando os  arredores  fora  ainda  quebrar-se  muito  lon- 
ge. O  caso  tudo  pedia  ,  e  tanto  que  não  é  mais  en- 
carecer. Quasi  eslava  cerrada  uma  cadèa  de  gran- 
des acontecimentos  de  que  era  penúltimo  elo  aquel- 
la  morte  :  o  outro  ,  meltido  cm  fragoa  ,  não  demo- 
raria o  remate  —  fallo  d'outra  vida  cançada  e  gas- 
ta.—  Sigamos  porem  a  nova. 

A  porta  d' um  convento  fiira  da  capital  um  leigo 
recem-chcgado  sacudira  a  negra  capa  ,  c  limpava 
o  suor  que  lhe  resvalava  gota  a  gota  pela  cara  abai- 
xo. Caminho,  sol  rijo  ,  bastante  pressa  ...  ■ — des- 
cançava  um  instante  á  sombra  respirando  ar  cober- 
to na  primeira  entrada.  Acabara  comsigo  locar  a 
sineta  ,  deu  alguns  passos  ,  e  levando  mão  á  cordi- 
nha ,  como  sentiu  dentro  pés  de  quem  se  avisinha- 
va  ,  ficou  suspenso  á  espera. 

« Jesus-Christo  em  vossa  guarda,  irmão...»  — 
disse  outro  leigo  que  desembocara  ao  portão  interior. 

«E  livre  a  todo  o  fiel  de  tentações  do  demónio!» 
—  atalhou  o  que  entrava. 

«.\men.  » — responderam  ambos  a  ura  tempo  abai- 
xando as  cabeças. 

«Que  vai  lá  pela  cidade?»  —  perguntou  o  pri- 
meiro interlocutor. 

«Por  ora...  tudo  como  d'antes  sem  novidade 
de  vulto  —  graças  a  Deus  Nosso  Senhor  —  tornou  o 
outro  —  Traz-me  aqui  uma  carta  do  reverendo  frei 
prior  para  um  religioso  desta  santa  casa.  —  E  met- 
tendo  a  mão  pela  abertura  lateral  da  túnica  prose- 
guiu.  —  Não  me  declarou  o  nome,  e  só  que  fizesse 
delia  entrega  ao  irmão  porteiro,  e  tornasse  sem 
mais  detenças.  Assim  recebei-a  ,  e  cila  vos  dirá  o 
que  não  sei.  » 

Cumprida  sua  missão  se  despediu  o  bom  do  lei- 
go,  escusando-se  tomar  alguma  refeição  que  seu 
irmão  lhe  ofierecèra  com  franqueza  e  boa  sombra. 
O  porteiro  levara  o  sobrescripto  aos  olhos  ,  lançou 
para  dentro ,  e  foi  tirando  ligeiro  ao  dormitório. 
Escutou  a  uma  portinha  ,  sentiu  roçar  de  penna 
que  escrevia,  c  logo  a  meia  voz  proferiu  o  seu  cos- 
tumado : 

«  Ilcncdicitc  ?  » 

«.\bri,  Fr.  António,  abri.»  —  respondeu  dentro 
uma  voz  socegada. 

O  leigo  levantou  o  trinco  ,  entrou  c  ficou-se  es- 
perando que   o  frade  sus|)cndcsse  c  o  filasse. 

«Perdoe  vossa  reverendíssima  vir  inlcrrompe-lo  ; 
mas  um  irmão  leigo  do  convento  de  Lisboa  trouxe 
esta  carta  do  padre  frei  prior  daquella  casa  —  dis- 
se o  leigo  passando  a  carta  ás  mãos  do  frade. — 
Mesmo  agora  ahi  vai  elle  ,  como  não  quiz  respos- 
ta. ..  » 

nliom.»  —  atalhou  o  frade  com  gestos  de  intei- 
rado. 

Significando  seu  respeito  com  uma  profunda  cor- 
tezia  ,    sahiu  o  leigo  cerrando  outra  ^ez  a  porta,    e 


o  PA1VORA3IA. 


379 


murmurando  baixinho:  «Eslava  Ião  embebido  na- 
quellas  santas  cscriplasl  .  .  .  liom  padre  —  cde  lel- 
Iras  como  nenhum  em  lodo  Portugal  I  »  —  O  leigo 
não  se  enganava.  . 

De  pé  e  tão  venerando  como  a  imagctn  d'um  pa- 
triarcha  se  fieára  o  frade,  cujos  cabcllos  alvejavam 
com  as  neves  de  quasi  setenta  janeiros.  Seu  rosto 
era  amável  e  bem  assombrado;  \ia-se-llie  na  fronte 
a  luz  do  engenho;  c  dos  olhos  amortecidos  lhe  re- 
flectia uma  expressão  de  profunda  melancholia  que 
realçando  a  virtude  de  seu  ar  era  como  o  daro-es- 
cnro  daquelle  quadro  vivo.  Vestia  uma  túnica  re- 
mendada ,  e  tudo  mais  ajustava  com  a  pohreza  em 
quevnia.  Um  crucifixo  arvorado  sobre  uma  pe- 
quena raeza  ,  junto  ura  tinteiro  e  alguns  papeis  c 
pergaminhos  desordenados:  via-se  também  um  ban- 
quinho, muitos  livros  pelo  chão,  e  uma  cama  tão 
humilde  e  estreita  como  uma  sepultura.  —  A  tão 
pouco  SC  tinha  reduzido  quem  viveu  na  grandeza  1 
assim  era  desarmado  e  fraco  quem  brandiu  espada 
6  lança  como  o  mais  cavalleiro!  Tão  desamparado 
e  só  quem  contava  ainda  tantos  parentes  etão  ache- 
gados ,  tantos  amigos  e  Ião  nobres ,  e  de  todos  tão 
querido  :  — Altos  juizos  de  Deus  '. 

Estava  —  como  disse  —  o  frade  em  pé  ,  afirmou- 
se  no  sobrescripto  e  leu  :  «Ao  reverendo  padre  Fr. 
Luiz  de  Sousa,  da  ordem  dos  pregadores  —  no  con- 
vento de  —  Bemfica.»  Em  seguida  rompeu  o  fecho 
e  começou  :  «Padre  ,  a  resignação  no  que  a  Provi- 
dencia nos  envia  de  suas  mãos  é  uma  das  primei- 
ras virtudes  do  christão.  Sabei-lo,  por  quanto  com 
ella  vos  tendes  defendido  dos  grandes  golpes  que 
lem  desfechado  sobre  vós.  Apercebei-vos  de  tão 
forte  escudo  para  novo  desastre  que  eu  nunca  vos 
fizera  saber,  se  a  caridade  não  pedisse  as  vossas 
ardentes  orações  por  quem  se  foi  deste  mundo.  — 
Enterrou-se  hoje  Sor  Magdalena  .  .  .  rogai  pelo  des- 
canço  da  sua  alma  ao  Todo  Poderoso.  .  .» 

Um  tremor  violento  vibrou  todos  os  nervos  de 
Fr.  Luiz  de  Sousa  :  cahiu-lhe  o  papel  das  mãos  .  .  . 
estendeu  os  braços  para  a  cruz  ,  c  com  rosto  enfia- 
do e  olhos  de  muita  piedade  exclamou  profunda- 
mente sentido  :  «  Que  uns  vivam  cheios  de  mimos  e 
consolações  do  céu ;  outros  andem  sempre  descon- 
solados ,  famintos  ,  c  desfavorecidos  delle  '....»  (») 
Aquelle  corpo  trabalhado  da  idade  ,  e  abatido  por 
amarguras  e  penitencias,  vergou  convulso  ao  chão. 
Depois  de  curtos  instantes  proseguiu  com  voz  de 
muita  magoa:  «Ha  oito  annos  tão  escondido  para 
não  ver  a  luz  ,  c  ella  a  passar-rae  por  diante  no 
momento  de  exlinguir-se  I  .  .  .  ha  oito  annos  a  cu- 
rar as  chagas  do  meu  coração  ,  e  cilas  cada  vez 
mais  profundas  e  rasgadas  1  .  .  .  »  Daquclles  olhos  , 
que  mal  podiam  chorar  de  cançados ,  romperam 
rios  de  lagrym.is'.  aquelle  peito,  que  não  podia  ge- 
mer de  rouco  e  desfallecido,  expclliu  um  ai  arran- 
cado com  força  das  entranhas!  —  Era  a  lucta  do 
passado  e  do  presente  I  era  o  homem  que  a  dor  le- 
vava de  rastos  atravez  do  mundo  I — Assomou-lhe 
o  futuro  ,  aponlou-lhe  para  o  inferno  e  para  o  céu  ! 
. .  .  ergueu-se  com  firmeza  o  sacerdote,  lançou  mão 
d'um  supplicio  ,  ajoelhou  ,  rasgou  as  carnes  ,  e  apa- 
gou as  lagrymas  cora  sangue.  Cingiu  depois  uma 
cadèa  de  ferro  em  volta  do  peito  ,  que  não  tirou 
nunca,  que  lhe  mordeu  o  coração  por  toda  a  vida. 
-Yiino  Maria  de  Sousa  Moura. 

(»)     Fr.   Luiz  de  Sousa.  —  Hisl.   de  S.  Dom.  L.°  1." 
cap.se." 


Da  prodidade  moral,  mercantil,  e  poutica. 

[Fragmento]. 

CoNTixiANDo  em  nossos  estudos  moraes  e  políticos 
procuraremos  fixar  a  iutelligencia  das  pessoas  que 
não  frequentam  as  aulas,  nem  fazem  estudos  regu- 
lares, sobre  o  sentido  de  certos  termos  de  uso  vul- 
gar aliás  importantes  ,  a  que  nem  sempre  corres- 
pondem idéas  claras  e  distinctas.  Entre  outras  tra- 
taremos hoje  da  palavra — probidade. 

Probidade  pode  definir-se  :  a  observância  exacta 
e  constante  dos  deveres  da  justiça  e  moral. 

Homem  de  i)rol)idade  ,  ou  de  honesto  proceder  , 
é  aquelle  que  não  só  não  faz  mal  a  ninguém  ,  mas 
presta  positivamente  todos  os  serviços  ou  beneficies 
que  pôde  ,  tanto  ao  seu  siinilhante  ou  á  humanida- 
de em  geral  ,  como  ao  seu  próximo  em  particular. 

A  probidade  diz-se  moral  ,  mercantil  ,  ou  politi- 
ca .  segundo  o  seu  objecto  ,  c  os  motivos  que  a  de- 
terminam. 

A  probidade  moral ,  ou  probidade  por  excellen- 
cia  ,  é  o  regular  e  sincero  procedimento  do  homem 
de  bem  ,  fundado  no  dictame  da  sua  consciência  e 
no  amor  do  bem  geral. 

A  probidade  mercantil  c  o  procedimento  exacto 
e  pontual  do  artífice  ou  fabricante  ,  do  cultivador  , 
do  homem  que  compra  ou  vende ,  do  agente  de 
qualquer  ramo  de  industria  ,  e  finalmente  do  func- 
cionario  publico  determinado  pelo  amor  do  lucro 
ou  interesse  material  ,  afim  de  obter  o  credito  e  as 
vantagens  que  dahi  se  promcttem. 

A  probidade  politica  é  o  proccdimenlo  regular  e 
exacto  do  cidadão  e  do  funccionario  publico  na  ob- 
servância das  leis  sociaes,  afim  de  obter  a  estima 
da  opinião  publica  na  sociedade  aonde  reside. 

Só  merece  propriamente  o  nome  e  qualificação 
de  homem  de  bem  ,  honesto  ,  ou  de  probidade , 
aquelle  individuo  que  cumpre  fielmente  os  deveres 
da  justiça  e  da  moral  universal  ,  por  effeito  do  seu 
bom  caracter,  por  motivos  de  consciência,  por  amor 
da  ordem  e  do  bem  geral  ,  e  não  por  amor  de  di- 
nheiro ou  interesse  mercantil ,  nem  por  ambição  , 
amor  do  poder,  ou  qualquer  consideração  politica. 

O  premio  que  mesmo  nesta  vida  compete  ao  ho- 
mem de  bem,  honesto,  probo  ou  moral  [porque 
tudo  são  synonimos]  é  a  approvarão  e  testemunho 
da  sua  consciência,  a  paz  e  a  satisfação  interior, 
a  boa  reputação  ,  e  a  estima  das  pessoas  de  bem 
que  o  conhecem  ,  e  finalmente  a  esperança  da  vida 
eterna  ,  ou  bemaventurança  ,  fundada  na  convicção 
da  immortalidade  d'alma,  e  da  infinita  bondade  do 
Creador. 

O  homem  immoral  ou  sem  probidade  apenas  com- 
mette  qualquer  acção  contraria  ao  seu  dever  é  lo- 
go castigado  pelo  remorso.  Tarde  ou  cedo  a  sua 
culpa  faz-se  conhecida  ,  e  então  spgue-se-lhe  tam- 
bém a  deshonrá  ,  que  é  uma  pena  immediala  que 
se  accumula  á  primeira. 

Chama-se  remorso  aquclla  accusação  que  nos  faz 
a  nossa  consciência  pelas  acções  immoraes  que  ha- 
vemos praticado  com  conhecimento  de  causa  ,  ac- 
cusação que  nos  persegue  em  quanto  vivemos. 

A  dcshonra  ou  vergonha  é  a  reprovação  e  des- 
prezo das  auctoridades  constituídas  ou  das  pessoas 
de  bem  ,  logo  que  lhes  consta  que  o  nosso  proce- 
dimento não  foi  conforme  ás  regras  da  honestidade 
ou  da  probidade  moral. 

O  remorso  e  a  dcshonra  ou  vergonha  são  os  cas- 
tigos mais  temíveis  e  as  maiores  desgraças  que  po- 


380 


O   PANORAMA. 


dem  acontecer  ao  homem  nesta  vida.  Estas  penas 
são  mais  tcrriveis  que  as  determinadas  pelas  leis  so- 
ciaes  ,  por  serem  mais  certas  ,  dolorosas  c  perma- 
nentes. 

O  homem  honesto  ou  de  probidade  por  mais  po- 
bre que  seja  ,  e  por  menos  consideração  politica 
de  que  goze  ,  sempre  vive  contente  e  traiiquillo  , 
porque  espera  e  confia  na  Providencia  divina  que 
nunca  desampara  nenhuma  de  suas  creaturas  ;  e  por- 
que não  sofTre  os  remorsos  ,  que  é  o  maior  de  to- 
dos os  males  moraes  ;  e  goza  da  estima  das  pessoas 
de  liem  ,  que  depois  do  testemunlio  da  consciência 
é  o  maior  dos  hens. 

1'elo  contrario  o  homem  inimoral  ou  sem  prol)i- 
dade  por  mais  ricn  e  poderoso  que  seja  ,  vive  sem- 
pre inquieto  e  alormenlado  pelo  remorso,  e  é  abor- 
recido e  desprezado  pelos  homens  de  verdadeira 
iirohidade  moral,  os  quaes  ,  postoque  em  pequeno 
numero  ,  todavia  os  seus  testemunhos  justos  e  sin- 
ceros são  de  muito  maior  valia  do  que  esses  ap- 
plausos  falsos  c  transitórios  da  massa  do  povo  ,  a 
que  se  chama  popularidade. 

Por  tanto  6  infiel  á  sua  consciência  ,  insensato  , 
e  quasi  louco,  aquelle  que  deixa  a  estrada  direita 
c  segura  da  probidade  moral  pelo  tortuoso  e  arris- 
cado caminho  do  dinheiro  mal  adquirido  ,  ou  sór- 
dido interesse  material  ;  e  bem  assim  errou  o  ca- 
minho e  o  calculo  da  verdadeira  felicidade  e  glo- 
ria do  mundo  ,  a  despeito  de  extraordinários  talen- 
tos e  admiráveis  combinações,  aquelle  que  prefere 
essa  probidade  politica  ou  antes  mercantil  ,  mais 
brilhante  do  que  solida  ,  ;í  probidade  moral  que  é 
a  ancora  e  a  garantia  mais  segura  assim  da  verda- 
deira felicidade  do  individuo,  como  da  prosperida- 
de social. 

Era  ultima  analysc  a  rasão  e  a  virtude  consistem 
na  ponderação  e  no  calculo  das  vantagens  e  dos  in- 
convenientes que  resultam  das  acções  humanas.  Acon- 
tece porem  mui  frcquenteinenle  que  tanto  a  massa 
dos  indivíduos  a  que  se  chama  povo,  como  os  mo- 
ços inexpertos,  ou  pouco  versados  no  calculo  mo- 
ral ,  trocam  com  estimação  pueril  o  que  é  melhor 
pelo  que  mais  se  usa  ,  ou  c  mais  moda  ,  e  então 
preferem  ser  escravos,  e  dependentes  do  dinheiro  e 
d-o  poder,  á  nobre  e  solida  independência  daquel- 
les  que  estimam  e  apreciam  mais  que  tudo  a  ver- 
dadeira probidade  moral. 

Fitippe  Ferreira  de  Araújo  e  Castro. 


CrLTLRA    DA   VINHA. 

Da  poda  {•). 


Ao  i;noranle  a  poda  não  deixemos. 
MoziNHo.    (úorff.  Vorliig.  Cant.  i.° 

As  PODAS  das  videiras,  de  que  vamos  occupar-nos  , 
não  são  mais  que  modificações  das  anteriores  ,  c 
resultado  necessário  da  diversidade  de  climas,  ter- 
renos ,  espécies  de  plantas  c  idade  das  mesmas  , 
exposição,  c  variações  atmosphericas  ;  pelo  quccon- 
virá  dividir  todas  as  púdas  em  três  classes,  baixas, 
medianas  e  altas. 

Atheoria  do  primeiro  methodo  consiste  em  man- 
ter as  cepas  mui  rasteiras  para  que  os  cachos  pró- 
ximos á  terra  achando-se  n'uma  almosphera  mais 
quente  amadureçam  melhor  e  o  çumu  adquira  qua- 
lidades mais  esiiirituosas  :  para  lograr  este  fim  es- 
colhem-^e  as  espécies  de  vides  curtas,  de  cachos  pe- 

(•)     Conlinuado  de  pag.  374- 


quenos  e  pouco  fechados  ;  tendo  sido  na  plantação 
dispostos  os  bacéllos  a  distancias  calculadas  segun- 
do o  crescimento  annual  das  vides.  Cada  cepa  terá 
ao  mais  cinco  troncos  ,  c  em  cada  um  três  ou  qua- 
tro sarmentos ,  segundo  a  idade  e  vigor  e  as  cir- 
cumstancias  locaes.  A  cepa  ao  sahir  da  terra  lança 
as  vides  cm  rastões  pelo  chão.  Esta  vinha  rasteira 
convém  nas  faldas  dos  montes  e  nos  outeiros  decli- 
ves. Vid.  eslamp.  iuimcdiata. 


fi  preferida  nos  climas  cálidos  a  púda  em  que  só 
sahem  as  vides  dos  troncos  mestres  á  altura  de  um 
011  três  pcs  ,  e  se  curvam  para  o  chão  formando 
abobada  hemispherica  ,  debaixo  da  qual  os  cachos 
se  resguardam  dos  ardentes  raios  do  sol,  que  tor- 
nariam os  bagos  em  passas. 


Ha  uma  disposição  de  videiras  podadas,  que  tem 
por  objecto  reunir  pelas  pontas  as  varas  de  quatro 
cepas  visinhas  em  forma  de  pyramide  quadrangu- 
lar :  meio  este  que  se  emprega  nos  climas  em  que 
se  necessita  aproveitar  todo  o  calor  do  sol ,  que  é 
ahi  natiualmente  tibio  ,  e  para  que  os  seus  raios 
reflectindo  na  terra  toquem  com  mais  vigor  toda  a 
superficie  da  videira.  A  estampa  mostra  esta  dispo- 
sição. 


o  PA1VORA3IA. 


381 


Igreja  de  Santa  Makia  do  Olival,  jiAxr.iz  de  todas 

AS  OUTRAS   IGREJAS   DA   OrDEM   PE   CuRlSTO. 

[Conclttsão]. 

Fali  uiKMos  primeiro  do  logar  dos  moimenlos  e 
sepiilUiras  anlcriores  ás  reparações  e  conslrucrues 
dos  reis  D.  Manuel  c  D.  João  3.°,  e  depois  men- 
cionaremos os  demais  que  permaneceram  alem  del- 
ias. 

O  1.°,  de  que  faz  memoria  o  livro  do  Tomlio  ,  é 
==0  d'um  nelo  d'elrei  1).  Diniz  ,  fillio  bastardo  de 
elrei  D.  Aflbnso  i.°  chamado  D.  Lopo,  que  eslava 
levantado  n'uma  capolla  mandada  fazer  exjiressa- 
mcnle  para  seu  jazigo  ,  a  qual  se  demoliu  para  se 
construir  a  sacristia  actual.  =  Tinha  o  busto  de  pe- 
dra sobre  a  campa  ;  e  accrescenta  que  abi  mesmo 
estava  outro  moimento,  de  que  mais  nada  se  sabia. 
Estes  dois  monumentos  desapareceram.  =  CaHsou- 
nos  grande  estranheza  esta  novidade  d'um  filho  na- 
tural daquelle  soberano  ,  que  nenhuns  teve  :  e  até 
o  chronista  lirandão  o  defende  da  impulai;ão  injus- 
ta d'havcr  tido  uma  filha  também  natural  que  al- 
guém lhe  altribuiu.  Ora,  estamos  persuadidos  que 
isto  foi  uma  tradição  errónea  ;  e  que  o  tal  D.  Lopo 
não  era  senão  o  sétimo  mestre  da  ordem  do  tem- 
plo ,  D.  Fr.  Lopo  Fernandes,  o  que  morreu  ao  la- 
do d'elrei  D.  Sancho  n'uma  entrada  que  este  fez 
no  reino  de  Leão,  que  foi  mandado  conduzir  e  de- 
positar honradamente  pelo  mesmo  soberano  em  St."  | 
Maria  do  Olival.  Serviu-nos  felizmente  a  tradição  ' 
errada  do  Tombo  para  verificarmos  esta  curiosidade. 
'2."  Na  mesma  igreja  junto  á  capella  de  S.  Braz 
e  entre  esta  capella  e  a  porta  travessa  estava  o  tu- 
mulo do  terceiro  mestre  do  templo,  D.  Martim  Gon- 
çalves. Ainda  aqui  padeceu  equivocação  o  auclor 
do  Tombo,  cbaraando-lhe  segundo  mestre,  que  não 
foi  este  ,  mas  sim  D.  João  Lourenço. 

3.°  e  4-.°=Ahi  desse  mesmo  lado  estavam  os  tú- 
mulos, diz  o  Tombo  ,  do  quarto  mestre  D.  Estevão 
Gonçalves,  e  do  quinto  D.  Rodrigo  Annes.:^N'ós 
não  encontrámos  estes  nomes  escriptos  como  aqui 
estão  no  catalogo  muito  apurado  que  á  vista  do 
cartório  de  Thomar  fez  o  A.  do  Elucidário.  Este 
menciona  D.  Estevão  de  Belmonte  decimo-quarto 
mestre  da  ordem  do  templo,  que  talvez  fosse  o  mes- 
mo D.  Estevão  Gonçalves;  e  no  mesmo  catalogo 
vem  a  n."  17  o  mestre  D.  Rodrigo  Dias,  que  6  pos- 
sível seja  o  mesmo  Rodrigo  Annes. 

3.°  e  6. °r=  Dentro  da  mesma  igreja  ,  encostados 
á  parede  do  lado  do  sul ,  estavam  os  dois  últimos 
mestres  do  templo  ,  D.  Gualdim  Paes  e  D.  Louren- 
ço Martins:  cujos  túmulos  se  demoliram  e  passa- 
ram os  ossos  para  a  segunda  das  novas  capellas  des- 
se lado  em  tempos  d'elrei  D.  João  3.° ;  e  ahi  no 
primeiro  dos  dois  se  lhe  pòz  então  o  epitaphio== 
obiit  fralcr  Gualdinus  magister  militum  tempii  Poi- 
tugalis  ,  era  milésima  ducentcsima  trigésima  tertia  , 
tertio  Idus  Octohris  líic  Castra  Tomaris  cum  multis 
aliis  poptdavit  rer/uiescat  in  pace.=So  segundo  uma 
inscripção  em  vulgar  dizia  que  D.  Lourenço  Mar- 
tins se  passara  em  maio  de  13ío.  =  Muilas  inexa- 
ctidões se  acham  reunidas  nesta  noticia  do  Tombo  : 
porque  nem  estes  foram  os  últimos  mestres  do  tem- 
plo em  Portugal ,  nem  o  mestre  D.  Lourenço  Mar- 
tins podia  avançar  até  a  data  em  que  se  diz  falle- 
cèra  ,  pois  já  então  não  havia  templários.  D.  Gual- 
dim foi  o  sexto  na  ordem  dos  mestres ,  e  D.  Lou- 
renço foi  o  vigesimo-setimo  que  falleceu  ,  commen- 
dador  de  Santarém  ,  em  1308,  havendo  renunciado 


0  mestrado  cm  D.  Vasco  Fernandes.  As  relíquias 
destes  dois  mestres  se  passaram  á  capella  de  S. 
Barlholomeu  ,  hoje  existente  ;  mas  fazendo  nós  di- 
ligencias por  descobrir  algum  vestígio  delias,  nada 
encontrámos. 

T.°  e  8.°  =  Á  entrada  da  igreja  da  parte  esquer- 
da estavam  dois  moimcntos  sem  imagens  nas  cam- 
pas ,  que  diziam  terem  sido  dos  Tauiarães  ,  que  fo- 
ram ricos-homens  ,  e  deixaram  grandes  bens  a  esta 
igreja.  =:=  Até  aqui  a  succinta  nulicia  do  Tombo 
nesta  parte.  Nós  tivemos  a  fortuna  de  decifrar  este 
enigma.  No  catalogo  dos  mestres  do  templo  achá- 
mos que  o  vigesimo-setimo  na  ordem  destes  D.  Lou- 
renço Martins  figurava  no  anno  de  1293  no  mcz  de 
junho  ,  em  a  instituição  da  capella  dos  Tamarãcs  , 
dita  assim  porque  neste  logar  de  Tamarel  ,  no  ter- 
mo d'Ourem  ,  principalmente  a  dotou  com  muitas 
fazendas  D.  Martim  Gil  ,  amo  do  infante  D.  .aflbn- 
so ,  e  mordomo  da  rainha  St."  Isabel.  Esta  capella 
tem  hoje  o  titulo  de  S.  Bartholomcu,  apesar  de  ser 
a  mente  do  instituidor  fosse  intitulada  de  S.  Mar- 
tinho. Temos  por  tanto  achado  a  familia  a  que  se 
refere  o  Tiimarães.  Este  nome  não  designa  linha- 
gem ,  antes  sim  a  localidade  dos  bens  consignados 
para  a  instituição  c  manutenção  da  capella.  D.  Mar- 
tim Gil  foi,  não  só  rico-homem,  mas  conde  de.Vci- 
va  ,  personagem  importantíssima  da  corte  d'elrei 
D.  Diniz,  riquíssimo  como  o  provam,  alem  de  suas 
grandes  possessões  ,  o  haver  comprado  a  sua  sobri- 
nha D.  Bataça  uma  boa  parte  da  herança  de  seu 
marido  ,  Martim  Annes  de  Soverosa  ,  por  vinte  mil 
maravedis  brancos,  como  traz  Brandão  na  o."  P." 
da  ilonarch.  Lusit.  L.°  17  cap.  29.  De  crer  é  que 
o  conde  D.  Martim  Gil  instituíra  ahi  capella  para 
seu  jazigo,  e  para  os  sufrágios  pios  costumados  na- 
quella  idade.  As  sepulturas,  por  tanto,  dos  Tama- 
rães  eram  a  do  mesmo  coude  c  d'algum  de  seus 
successores  ou  parentes. 

Prerogatiras  da  igreja   de  St."  Maria  do  Olival:   c 
do  livro  dos  seus  annaes  que  ahi  existia. 

Esta   igreja  era  considerada  como  uma   das  ca- 
Ihedraes  do  reino  :   nella  havia  o  bastão  ou  sccptro 

1  do  masseiro  ,  e  as  massas  de  prata  que  são  dislin- 
1  clivo  das  sés  episcopaes.  Bailia  e  matriz  de  todas 
:  as  igrejas  da  ordem  e  cavallaria  de  N.  S.  Jesus 
I  Christo  ,  a  ella  estavam  sujeitas  c  subordinadas  to- 
'  das  as  igrejas  da  ordem  no  reino  e  conquistas  ;  e  a 

ella  só  era  superior  o  papa.  O  seu  prior  linha  po- 
der quasi  episcopal ;  e  todas  as  igrejas  de  Thomar 
'  eram  só  capellas  filiaes  delia  ;  e  o  seu  vigário  ,  pa- 
i  rocbo  de  todas,  pondo  ahi  um  cura  amovível.  O 
I  prior  ou  vigário  com  os  seus  clérigos  freires  ahi  re- 
zavam em  coro,  e  faziam  capitulo  como  nas  demais 
cathedraes  do  reino.  Pela  reforma  praticada  em 
tempos  d'elrei  D.  João  3.",  em  que  os  cavalleiros 
clérigos  e  freires  foram  reduzidos  á  clausura  e  re- 
gularidade claustral ,  a  igreja  de  St.'  SIaria  decli- 
nou muito  de  seu  esplendor  antigo,  porque  os  frei- 
res ,  residindo  forçosamente  no  convento  do  Chris- 
to,  ahi  celebraram  os  officios  divinos  na  sua  igre- 
ja, construída  por  elreí  D.  Manuel  ;  e  a  de  SI. '.Ma- 
ria ficou  reduzida  a  vigairaria ,  postoque  sempre 
considerada  como  cabeça  e  matriz  de  todas  as  da 
ordem. 

A  curiosidade  d' haver  ahi  um  livro  d'annaes,  co- 
mo o  de  Xoa  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  ,  nos  faz 
deplorar  a  sua  perda  total.  Diz  o  Tombo  :=Tinha 
esta  igreja  um  livro  chamado  Be  serro  ,  em  que  se 
escreviam,  alem  d'outras  cousas,  a  canonisacão  dos 


382 


O  PANORAMA. 


santos  que  foram  do  bispado  [talvez  qtiizesse  dizer 
da  prelasia]  ;  — as  viclorias  alcançadas  sobre  os  in- 
fiéis ,  os  Icrrcmolos  ,  tempestades  ,  submersão  d'i- 
Ihas  :  —  estavam  nelle  escriptas  as  batallias  dadas 
na  recuperarão  das  Hespanhas  ,  as  qiiaes  se  liam  e 
comraemoravam  cm  coro  nos  dias  próprios  ;  —  es- 
tava a  vida  de  St/  Iria  ,  &c.  Constava  dclle  que  o 
ouvidor  Bartholomeu  de  Seabra  o  mandara  encader- 
nar. Mas  este  livro  pcrdcu-se.= 

Nossos  leitores  que  houverem  lido  a  memoria  so- 
bre o  convento  de  Christo  em  Thomar  ,  publicada 
cm  alguns  n.""  do  Panorama  ,  folgarão  sem  duvida 
d'encontrar  nestas  noticias  acerca  da  igreja  de  St." 
Maria  do  Olival  o  complemento  do  resumo  históri- 
co daquclla  grande  casa. 

J.  da  C.  N.  C. 


EOIOITOI/LIA  DOMSS^^iaiA- 

Nutrição  dos  animaes  :  vantagens  dos  alimentos  fer- 
mentados ou  COSIDOS  sobre  os  alimentos  crus. 

As  necessidades  factícias  e  de  convenção,  nossos 
usos  actuaes  de  commodidade  e  de  luxo  ,  o  amor 
do  lucro  que  lera  desenvolvido  as  tentativas  e  ex- 
periências das  artes  mechanicas  ,  a  extensão  dada 
á  industria  c  ao  eommercio,  e  o  adiantamento  dos 
conhecimentos  chymicos  tem  feito  descobrir  metho- 
dos  e  processos  novos  mui  superiores  aos  antigos.  Com 
effeito  nesta  parte  ha  real  e  verdadeiramente  pro- 
gresso. O  homem  ,  naturalmente  habitual  e  rotinei- 
ro, precisava  d'estimulos  que  excitassem  sua  inlel- 
ligencia  e  applicacão  :  as  relações  sociacs,  a  neces- 
sidade de  manter-se  e  equilibrar-se  ,  ao  menos,  no 
circulo  de  sua  classe  e  posição,  vieram  obriga-lo  a 
reflectir,  analysar  e  inventar  para  augmentar  seus 
recursos.  Daqui  os  aperfeiçoamentos ,  os  descobri- 
mentos que  todos  os  dias  vamos  vendo  em  tudo  o 
que  pertence  ao  vasto  dominio  das  artes. 

Mas  um  outro  defeito  muito  coramum  na  nossa 
espécie  é  que  ou  seja  por  vaidade  ,  ou  irreflcxão  , 
ao  mesmo  passo  que  nas  cousas  exteriores  ,  nos  ob- 
jectos da  industria  c  trafico  commcrcial  se  avança 
alem  da  rotina  ,  nos  usos  domésticos  ,  na  economia 
usual  nos  abandonámos  ao  costume  e  pratica  anti- 
gas sem  exame  e  sem  desconfiança.  Perguntai  á 
maior  parte  da  gente  por  que  faz  ou  segue  certos 
methodos  costumeiros  em  vez  de  outros  que  tal- 
vez fossem  preferíveis  ,  responder-vos-hão  =  sem- 
pre assim  o  praticámos.  =:=  O  objecto  deste  artigo 
é  fallar  d'um  destes  usos  e  praticas  habituacs  ,  e 
procurar  faze-lo  substituir  pelo  seu  correctivo. 
Forragens. 

Os  animaes  domésticos  tem  sido  condcmnados 
desde  tempo  immemorial  aos  alimentos  crus,  e  en- 
tretanto experiências  repetidas  tem  demonstrado  a 
superioridade  dos  alimentos  cosidos  e  fermentados, 
tanto  pelo  que  respeita  ,i  saúde  dos  animaes  ,  como 
á  sua  nutrição  c  gordura.  Alem  do  raciociuio  que 
demonstra  a  menor  facilidade  da  digestão  daquel- 
les  ,  e  a  melhor  rommutação  destes  ,  ahi  está  a  ex- 
periência que  lodos  |)odem  fazer  comparando  os 
dois  methodos. 

Na  Inglaterra  e  na  Alemanha,  os  dois  paizes  on- 
de mais  se  calcula  e  rellectc  sobre  a  economia  do- 
mestica ,  se  pratica  já  com  immensa  vantagem  a 
alimentação  ,  ou  cosida  ou  fermcniada  ,  das  forra- 
gens ,  maiormente  nos  animaes  destinados  para  o 
talho,    e  para   figurarem  nas  feiras,   mercados,   c 


mesmo  para  o  consumo  caseiro.  Nas  províncias  rhe- 
nanas  sobretudo  costumara  fermentar  toda  a  sorte 
de  plantas  forrageosas  que  ministram  a  seus  ani- 
maes ,  e  dahi  provém  terem  no  mercado  francez 
um  valor  muito  superior  aos  de  todas  as  proviDcias 
daquella  monarchia. 

Com  cfreilo  os  alimentos  que  tem  experimentado 
a  fermentação  são  muito  mais  nutrientes  que  os 
crus  :  os  animaes  entretidos  e  alimentados  em  casa 
com  estes  exclusivamente  engordam  menos  ou  não 
engordam  nunca.  Observa-se  isto  nos  cevados  que 
em  quasi  todas  as  casas  ruraes  ,  c  ainda  n'outras 
das  villas  e  povoações  ,  c  costume  crearem-se  para 
matar:  alimentai-os  somente  de  géneros  críis,  ainda 
que  sejam  batatas  que  é  ocomestivel  mais  nutrien- 
te ,  vereis  que  se  conservam  sempre  magros  :  mi- 
nistrai-lhe  estas  mesmas  batatas  cosidas  [principal- 
mente a  vapor]  ,  vereis  que  promptamenle  engor- 
dam. Nos  bois,  nos  carneiros  destinados  ao  talho 
voga  com  pouca  differença  o  mesmo  principio.  = 
Essas  manadas  de  grandes  e  gordos  bois  ,  esses  re- 
banhos innunieraveis  de  carneiros  que  atravessam 
nossas  fronteiras  ,  e  o  departamento  da  Mosela  [di- 
zia e  escrevia  um  economista  francez  era  1839]  pa- 
ra virem  inundar  os  mercados  e  nutrir  Paris,  são 
o  resultado  do  principio  da  fermentação  applicado 
a  todas  as  substancias  alimentarias  destinadas  a  en- 
gordar os  animaes.  =  Este  uso  tem  de  mais  outras 
vantagens  ,  como  são  augmentar  consideravelmente 
a  quantidade  ,  e  aperfeiçoar  a  qualidade  dos  estru- 
mes ; — adraittir  uma  applicacão  mais  geral  de  plan- 
tas e  hervas  ,  que  cosidas  ou  fermentadas  são  con- 
venientes c  nutritivas,  ao  mesmo  tempo  que  seriam 
prejudiciaes  em  crú  ;  —  dobrar  finalmente  a  avidez 
e  o  appctite  dos  animaes  conservando-os  em  bom 
estado  de  saúde. 

Mcthodo  de  fermentar  as  forragens. 

Eis-aqui  o  processo  fácil  praticado  pelos  creado- 
res  do  Rheno  :  apanhado  o  trevo  ,  ou  outra  planta 
destinada  ás  forragens ,  o  que  deve  ser  na  sasão 
própria,  ahi  pouco  mais  ou  menos  no  tempo  da  flo- 
ração ,  cortam-as  em  porções  miúdas  e  as  depõem 
n'uma  cuba  ou  balseiro  collocado  n'um  logar  de 
temperatura  mediana  :  quando  estes  vasos  estão 
cheios  de  forragens  se  lhes  lança  a  agua  que  estas 
possam  conter  de  modo  a  encher  todos  os  espaços  e 
vasios  intermediários  das  plantas:  passados  dias  ver- 
se-ha  augmentar  o  volume  da  massa  ,  que  ao  tocar 
se  achará  quente  ,  e  cheirada  appresenia  o  fartum 
de  uma  cuba  em  fermentação.  É  este  o  momento 
de  tirar  as  forragens  ,  de  as  estender  um  momento 
e  ministra-las  aos  animaes  no  curral.  Esta  alimen- 
tação não  deve  ser  exclusiva  ;  antes  c  da  mesma 
forma  que  cm  todas  as  substancias  fermentadas  con- 
vém ser  alternada  com  o  regimen  alimentario  com- 
mura  ,  porque  aquelle  se  tornaria  demasiado  quen- 
te e  escandecente.  Convém  por  tanto  intcrmca-lo 
com  a  palha  e  feno  que  lhe  corrige  o  ardor. 

(Continuar-sc-haJ. 


Manuel  de  Almeida  e  Sousa  de  Lorão. 

AÍANUEi.  de  Almeida  e  Sousa  nasceu  navilla  deVou- 
zella,  cabeça  do  antigo  concelho  dcVlafõcs,  em  10 
ilemarço  de  1745.  Seus  pais. Toão  Rodrigues  deMat- 
tos ,   e  Calharina  de  Almeida  Novaes ,  apressaram- 


o   PANORAMA. 


383 


se  era  dar  ao  filho  adolescente  aqiielles  cuidados 
que  ,  cora  a  aljastança  da  sua  fazenda,  o  elevassem 
a  uma  estarão  honrosa  c  decente.  Fora  a  l;niversi- 
dade  de  Coimbra  de  antigos  tempos  a  mais  segura 
educação  a  que  os  filhos  dos  provincianos  se  sub- 
meltiam,  se  porvenlnra  ao  fastígio  das  honras  aspi- 
ravam subir  pelo  árduo  e  pouco  trilhado  caminho 
das  Icttras;  assim  tendo  cursado  os  estudos  prepa- 
ratórios o  moço  Almeida  c  Sousa  entrou  na  Univer- 
sidade ,  contando  de  idade  16  annos  ,  e  concluiu  a 
sua  formatura  na  faculdade  de  Direito  Canónico  em 
17(>(i,  antes  da  celebre  reforma  domarqucz  de  Pom- 
bal. O  documento  que  o  habilitara  a  entrar  no  cur- 
so académico  antes  do  complemento  da  idade  lon- 
ge está  de  lhe  ser  desairoso  :  o  prematuro  desinvol- 
vimento  das  suas  faculdades  mentacs  correspondiam 
inteiramente  ao  espirito  de  quem  diclára  os  Estatu- 
tos ,  e  o  exemplo  e  opinião  de  outras  pessoas  em 
idênticas  circumstancias  vem  relevar  qualquer  im- 
putação de  fraude. 

A  consciência  das  próprias  forças  foram  podero- 
sos motivos  para  que  o  novo  letrado  não  desejasse 
trocar  a  bella  e  independente  occupação  de  advo- 
gado pelo  laborioso  e  porventura  arriscado  empre- 
go de  magistrado  :  .Vlnieida  e  Sousa  não  serviu  le- 
gar algum  de  leltras.  Passado  um  anno  depois  que 
recolhera  de  Coimbra  partiu  para  Lobão  ,  aldèa  si- 
tuada duas  léguas  ao  sudoeste  de  Vizeu  ,  a  prati- 
car nas  matérias  forenses  sob  a  direcção  de  um  cer- 
to Estanisláo  Lopes  ,  advogado  da  maior  reputação 
naquellcsteuipos.  .Vlli  casou,  e  se  estabeleceu  exer- 
cendo a  sua  occupação  com  grande  applauso  daquel- 
les  que  conheciam  os  seus  escriplos  de  advocacia 
nos  tribunaes  do  reino,  o  que  bera  depressa  lhe  fez 
adquirir  a  boa  fama  dos  seus  conhecimentos  jurídi- 
cos ,  e  uma  grande  concurrencia  de  Partes  attnhi- 
das  áquelle  logar  ,  quando  algum  dillicil  e  valioso 
pleito  pedia  o  circumspecto  conselho  do  grande  ad- 
vogado. O  nome  da  residência  adoptada  por  Almei- 
da e  Sousa  passou-Ihe  como  se  fora  appellido  pa- 
Ironymico,  de  tal  modo  que  todos  o  diziam  «o  Lo- 
bão» denominação  que  elle  boamente  acceilou  ,  e 
se  encontra  <á  testa  das  suas  obras  impressas. 

Quando  os  monges  de  Santa-Cruz  de  Coimbra  dis- 
putaram os  direitos  e  jurisdições  sobre  olzento  com 
I).  Francisco  de  Lemos,  bispo  da  mesma  cidade, 
Lobão  foi  chamado  poraquclles  para  advogar  a  sua 
causa.  Mas  dois  annos  eram  passados  cm  disputas 
intermináveis,  e  então  o  advogado  de  Santa-Cruz 
teve  de  recolher  á  sua  casa  por  motivos  de  uma  mo- 
léstia, que  o  impossibilitou  de  trabalhar  por  alguns 
annos.  Com  tudo  nem  os  seus  impedimentos  phvsi- 
cos  ,  nem  as  iramensas  procurações  que  havia  das 
corporações  religiosas  ,  e  dos  particulares  ,  e  nem 
ainda  as  muitas  pessoas  que  o  consultavam  ,  o  po- 
deram  dissuadir  de  um  aturado  estudo  da  Juris- 
prudência Pátria,  e  de  dictar  e  escrever  elle  mes- 
mo as  numerosas  obras  ,  que  deixou  em  documen- 
to da  sua  erudição  e  prodigiosa  memoria.  Tantas 
elucubrações  juntas  á  debilidade  da  sua  sande  não 
perraittiram  que  Manuel  de  Almeida  e  Sousa  to- 
casse na  decrepitude  :  falleceu  em  Lobão  a  31  de 
dezembro  de  1817,  contando  quasi  72  annos  d'idade. 

As  suas  obras  impressas  allcstam  certamente  uma 
grande  erudição  de  jurisprudência  ,  e  pelas  nume- 
rosas remissões  e  extractos  podem  substituir  os  gros- 
sos volumes,  que  se  fariam  necessários  a  quem  por 
olliciú  tem  de  consultar  os  auctores  sem  porporçõcs 
para  os  haver,  e  talvez  carecendo  de  avultados  meios 
pecuniários.   O  seu  methodo  de  escrever  é  tão  ári- 


do como  o  objecto  dascicncia  que  se  propozera  ex- 
planar, e  se  algumas  vezes  sobre  questões  positi- 
vas ,  c  as  opiniões  dos  doutores  ,  deixa  ao  leitor  a 
escolha  própria  sem  se  atrever  aemiltir  a  sua,  de- 
vemos assentar  que  isto  fora  uma  excellenle  manei- 
ra de  elucidar  a  jurisprudência  ,  e  porventura  uma 
modéstia  digna  de  ser  imitada  por  todo  o  cscriplor 
sincero.  As  obras  de  Lobão  são  um  armazém  de  Di- 
reito ,  dizia  um  famoso  advogado  dos  nossos  dias: 
e  elle  não  era  tão  destituído  de  bom  gosto  que  não 
lhe  fossem  familiares  os  escriptos  de  Alontesquieu 
e  Filangíerí  ,  como  se  observa  pelas  citações.  .Vs 
suas  opiniões  não  serão  sempre  das  mais  correctas, 
mas  quem  se  poderá  gabar  de  possuir  as  verdadei- 
ras?... Contraria  algumas  vezes  os  escríptores  con- 
temporâneos como  fez  ás  Primeiras  ÍJnlias  de  Pe- 
reira e  Sousa  ;  e  ousou  refutar  uma  grande  parte 
das  famosas  Inslituicões  de  Mello  Freire  ;  mas  não 
escapou  a  que  outros  lhe  retribuíssem  com  usura  , 
como  fizera  Fernandes  Thomaz  no  opúsculo  intitu- 
lado Obserrações  sobre  os  Direitos  Dominicacs  de  Lo- 
bão ,  cujas  opiniões  obtiveram  a  preferencia  entre 
os  melhores  juristas.  Quaesqucr  que  sejam  os  de- 
feitos de  Lobão  ,  havemos  de  assentar  que  nenhum, 
dos  seus  antagonistas  lhe  poderá  negar  um  logar 
distincto  entre  os  maiores  jurisconsultos  portuguezes. 

.Vlguns  dos  seus  escriptos  foram  impressos  depois 
da  sua  morte  taes  como  appareceram.  outros  foram 
concluídos  por  seu  filho  Joaquim  de  .Vlmeída  No- 
vaes, auctor  do  índice  Geral  cias  suas  obras,  e  exis- 
tem ainda  alguns  manuscriptos  consistindo  cm  re- 
missões a  doutores  sobre  objectos  ,  que  caducaram 
com  as  novas  instituições.  Terminaremos  estes  apon- 
tamentos biographicos  com  o  catalogo  das  suas  obras. 

Tratado  Pratico  Compendiario  de  todas  as  Acções 
Summarias.  —  Collecção  de  Dissertações  Varias  ao 
Tratado  das  Acções  Summarias. — Tratado  Pratico 
e  Critico  de  todo  o  Direito  Emphytcutico. — Appen- 
dice  Diplomático  Histórico  ao  Tratado  Pratico  de 
Direito  Emphytcutico. — Tratado  Pratico  das  Ava- 
liações e  dosDamnos.  Partes  I  e  U.— Tratado  His- 
tórico e  Pratico  de  todos  os  Direitos  relativos  ás  Ca- 
sas.—  Tratado  Pratico  Compendiario  dos  Censos. — 
Collecção  de  Dissertações  Jurídicas  c  Praticas. — 
Discurso  Jurídico  ,  Histórico  ,  e  Critico  sobre  os 
Direitos  Domínicaes.  —  Dissertação  sobre  os  Dízi- 
mos Ecclesíastícos. —  Dissertação  sobre  as  Oblações 
Pias. —  Fascículo  de  Dissertações  Jurídíco-Pratícas. 
Partes  I  ,  II  e  Hl.  —  Tratado  Encyclopedíco  Prati- 
co c  Crítico  sobre  as  Execuções  que  jirocedem  por 
Sentenças. — Tratado  Pratico  dos  Iiitcrdíctos  e  Re- 
médios Possessórios.  —  Tratado  Pratico  de  Morga- 
dos.—  Supplemcnio  ao  'Iratado  dos  Morgados. — 
Notas  de  Lso  Pratico  e  Criticas  ás  Instituições  de 
ilello  Freire.  —  Collecção  de  Dissertações  Jurídíco- 
Pratícas  em  supplemento  ás  Xotas  ao  Livro  111  de 
Mello  Freire. — Tratado  de  Obrigações  Reciprocas. 
—  Tratado  Pratico  Compendiario  das  Pensões  Ec- 
clesíasticas.  —  Discurso  sobre  a  Reforma  dos  Fo- 
racs. —  Tratado  Pratico  do  Processo  Executivo  Sum- 
marío.  —  Dissertação  a  que  se  faz  remissão  no  Tra- 
tado do  Processo  Executivo  Summario.  —  Segundas 
Linhas  sobre  o  Processo  Civil  de  Pereira  e  Sousa. 
Partes  I  e  II.  —  Collecção  de  Dissertações  em  su[i- 
plemento  ás  Segundas  Linhas.  —  Tratado  Pratico  e 
Compendiario  das  .Aguas.  —  Tratado  das  Denuncias 
e  mais  Procedimentos  por  causa  dos  extravios  das 
fazendas  subtrahídas  aos  tributos.— 

Existem  inéditos  os  manuscriptos  de  algumas  No- 
tas aos  Livros  !V  e  V  d?s  Instituições  de  Mello  Freire. 


38-í 


O   PANORAMA. 


ANTIGAS    COUTES    EM    PoBTUUAL. 

£  DIREITO  que  não  prescreve,  a  liberdade.  Não  tem 
poder  de  atiniilla-lo  a  oppressão  ,  nem  de  o  ceder 
e  alienar  os  opprimidos.  E  os  que  aspirara  a  cxer- 
cc-lo  não  carecera  de  justificar-se  cora  a  posse  an- 
tiga. Dcsla  pertença  c  propriedade  moral  do  géne- 
ro humano  lemos  rebaixado  o  valor  inestimável, 
procurando  fundar  nossas  revindicações  em  docu- 
mentos e  arestos  dos  tempos  que  furara,  e  das  plia- 
ses  sociaes  que  passarara.  Dcrogánios  á  preeminên- 
cia do  nosso  duminio  ,  admittindo  que  era  contro- 
verso ,  e  dêmos  assim  aos  usurpadores  e  aos  que 
buscavam  se-lo  azo  a  produzir  lambem  seus  titulos, 
pcdiudo-os  á  historia  ,  e  a  legitimar  com  o  silencio 
c  a  submissão  das  nações  as  doutrinas  da  obediên- 
cia passiva. 

Com  esta  nossa  e  firme  opinião  quanto  escrever- 
mos cm  resumo  abreviadissimo  das  nossas  antigas 
cortes,  tenhara-no  puramente  em  conta  de  uma  nar- 
ração de  factos  ,  e  não  como  empenho  de  contorcer 
a  historia  ou  para  auctorisar  o  nosso  estado  social 
ua  actualidade,  ou  os  seus  progressos  e  variações 
de  futuro;  que  bem  escusámos  sirailhaiile  meio  de 
juslificar  o  que  somos  ou  o  que  houvermos  de  ser. 

Eram  os  nossos  primeiros  monarchas  reis  não  só 
dos  homens ,  mas  lambem  da  terra  ;  e  desta  não  só 
pelo  principio  feudal  ,  senão  pelo  facto  da  conquis- 
ta e  occupação  daquellas  partes  do  território  ganho 
aos  infiéis.  N'uma  epocha  em  que  pelo  iraperio  das 
idéas  e  costuraes  a  terra  modelava  a  condição  de 
todo  o  homem  sujeito  a  ella,  era  o  senhorio  do  solo 
a  altribuição  mais  importante  do  rei,  e  a  qualida- 
de mais  essencial  da  soberania.  N'um  estado  corn 
siinilhante  organisação  ,  lambem  a  importância  so- 
cial das  classes  havia  de  guardar-se  principalmen- 
te pela  propriedade  terrena  :  e  as  mais  ricas  em 
bens  eram  as  mais  influentes.  A  ordem  ecclesiasti- 
ca  primeiro  ,  e  depois  a  casta  nobre  achavam-se 
neste  caso.  Comtudo  nenhuma  delias  era  creação 
da  monarchia  :  ambas  estas  entidades  preexistiam 
á  ultima  e  Unhara  ajudado  a  funda-la.  A  ordem  cc- 
clesiastica  tirava  a  origem  do  seu  poderio  da  su- 
premacia sobre  lodos  os  poderes  terrestres  ,  que 
para  si  arrogava  a  igreja  :  a  ordem  nobre,  da  linha- 
gem e  do  nascimento.  E  ainda  que  ,  mesmo  entre 
nós  ,  o  raonarcha  fosse  ,  nesses  tempos  ,  o  suzcra- 
no  ,  o  senhor  ,  o  rei  da  terra  e  dos  homens  ,  e  que 
pela  qualidade  de  hereditário  e  os  prejuízos  preva- 
lescenles  a  realeza  fosse  lida  em  conta  de  direito 
pessoal  ,  e  não  de  funcção  publica  ,  a  aucloridade 
monarchica  ,  grande  e  sagrada  como  era  ,  eslava 
necessariamente  limitada  e  havia  de  acccitar  estas 
existências,  porque  se  fundavam  nos  usos,  nos  in- 
teresses ,  e  nas  doutrinas  reinantes.  A  sociedade 
não  reconhecia  então  homens  ou  individues  :  com- 
punha-se  de  jerarchias  :  e  quantos  se  achavam  fora 
do  quadro  dessas  jerarchias,  reputava-os  cousas,  ou 
rebanhos.  O  povo  ,  as  multidões  não  tinham  signi- 
ficação politica  nesse  regiraen  :  e  segundo  se  aggre- 
gavam  a  uma  ou  a  outra  terra  dos  dilfercntes  se- 
nhores e  donatários  ccclcsiasticos  ou  seculares ,  as- 
sim eram  obrigados  aos  encargos,  ou  gozavam  os 
privilégios  estabelecidos  pelo  foral,  registo  dos  cos- 
tumes ,  on  código  particular  dessa  mesma  terra.  O 
foral  dava-o  a  cada  terra  o  rei,  e  ás  vezes  também 
o  davam  os  nobres  e  os  prelados  :  mas  esses  cora 
sujeição  ao  príncipe.  E  n'um  período  de  população 
escaca  ,  de  pouca  industria  e  quasi  nenhum  cora- 
raercio  ,   de  guerras  continuas  c  barbaridade  ,   ins- 


trumento civílísador,  ri  parte  os  defeitos  e  absurdos 
fructo  inevitável  da  epocha  ,  erara  os  foraes  talvez 
o  único.  Mas,  por  outro  lado,  como  leis  particula- 
res c  diversificando  nns  dos  outros ,  separavam  de 
interesses  ,  de  costumes  ,  e  de  sympalhias  as  diffe- 
rentcs  povoações  ,  e  formando  dentro  do  paiz  ou- 
tros tantos  paizes  inimigos  reciprocamente  ,  faziam 
impossiíel  a  unidade  nacional. 

Dando  os  foraes  ,  ou  consentindo-os  ,  os  nossos 
reis  se  a  um  tempo  contribuíam  por  este  modo  a 
que  se  povoasse  ,  cultivasse  e  engrandecesse  o  rei- 
no ,  lambem  concorriam  para  que  augmeiítasse  o 
numero  e  poder  dos  donatários ,  e  por  tanto  das 
duas  classes  superiores  do  estado  ,  de  que  estes 
eram  membros.  Estas  classes  tomavam  incremento 
e  vigor  até  da  circumstancia  accidental  das  con- 
quistas que  se  iam  fazendo,  porque  era  força  que  o 
monarcha  repartisse  com  ellas  das  terras  conquis- 
tadas. O  clero  foi  o  melhor  aquinhoado  ,  c  enorme- 
mente o  foi  ;  como  se  vè  do  grande  numero  d'igre- 
jas  e  mosteiros  que  D.  AfTonso  Henriques  ou  fun- 
dou ou  dotou  mui  ricamente.  E  com  o  costume  , 
que  então  era  geral  ,  nascido  dos  preconceitos  re- 
ligiosos, de  deixar  legados  á  igreja  em  lodos  os 
testamentos,  a  opulência  dos  ecclesiasticos  passou 
todos  os  limites,  e  o  seu  poder  chegou  a  ser  colos- 
sal. Alem  das  terras  que  possuíam  accrcsciam-lhes 
os  privilégios  que  então  andavam  vinculados  a  el- 
las ,  e  armava-os  o  raio  dos  ínlcrditos  e  excommu- 
nhões  que  vibravam  como  Júpiter  sobre  as  maiores 
eminências  ou  sobre  os  mais  rasos  plainos,  sobre 
o  Ihrono  e  os  ínfimos  do  povo.  Com  tanta  riqueza 
e  prestígio  faziam  sombra  aos  próprios  reis  ,  e  dis- 
putavam-lhes  a  primazia  ;  e  dahi  se  principiou  e 
moveu  a  opposição  entre  a  aucloridade  real  ,  e  a 
aucloridade  desta  classe.  É  a  primeira  lucla  politi- 
ca que  sobresahe  na  historia  da  monarchia. 

Ainda  que  muito  inferior  cm  prestigio  e  bens  á 
classe  ecclesíastica  ,  a  nobreza  era-lhe  immediata  : 
c  ambas,  as  únicas  que  então  havia,  tinham  repre- 
sentação social  sua  própria  ,  e  a  que  lhe  vinha  das 
instituições  dos  godos  e  do  foro  de  Leão,  os  quaes 
se  transplantaram  cm  grande  parte  para  os  usos  e 
se  vieram  entroncar  no  systcma  orgânico  da  nova 
monarchia  portugueza.  Segundo  essas  instituições 
os  prelados  e  os  grandes  compunham  um  conselho 
cm  que  eram  ventilados  e  resolvidos  os  príncipaes 
negócios  do  estado  ,  e  até  assignavam  confirmando 
as  doações  e  cscripturas  onde  os  reis  estipulavam. 
Estas  prerogalivas  lhes  foram  continuadas  cm  Por- 
tugal ;  e  moderador  directo  da  iramensa  auclorida- 
de da  curõa  eram  ellas  o  único. 

(Contimiar-se-ha). 

A.  d' O.  Marreca. 


Combater  cora  as  paixões  já  dista  mui  pouco  de 
largar-lhcs  a  victoria  :  otriumpho  mais  certo  é  con- 
servarmo-nos  cm  estado  de  negar-lhes  combate. 

O  pczo  e  quilates  dos  crimes  e  vícios  d'um  povo 
pôde  achar-se  fielmente  na  feitura  de  seus  códigos. 

Os  moços  recalcitrara  ao  conselho  dos  velhos  , 
assim  como  o  fogo  crepita  com  a  agua. 

É  bem  raro  accordar-sc  arasão  com  o  sentimento. 

Gasta  tempo  bastante  em  deliberar  ;  não  percas 
nenhum  cm  persistir. —  2'.  .1.  Craveiro. 


102 


o  PANORA3IA. 


38o 


VISTA  INTERIOa  DA  IGKSJA  DS  BEI.EIVI. 


Belf.m. 

XIIÍ. 

A  DEScfiirtXo  competente  á  estampa  junta  acha-se  já 
tão  minuciosa  em  columnas  deste  jornal,  que  nada 
Diais  ora  nos  cumpria  do  que  remetler  o  leitor  aos 
artigos  VI  ,  Vil  e  VIII  da  noticia  liistorica  e  des- 
cripliva  do  mosteiro  (1),  nos  quaes  vem  miudamen- 
te explicado  quanto  respeita  aos  pilares  que  sepa- 
ram as  naves,  ao  tecto  de  abobada  antiga,  aos  púl- 
pitos ,  ás  janellas  que  ultimamente  se  guarneceram 
de  vidros  corados  ,  e  finalmente  á  moderna  capel- 
(I)     Vcj.  |iag.  109,  12d  e  130  do  antecedente vol. 

Dezembro  9 —  1843. 


la-mór  apainclada  , —  nada  mais  nos  restava  a  ac- 
crescentar  dizemos  —  se  depois  de  os  escrevermos 
nos  não  houvera  a  fortuna  enriquecido  deoutras  no- 
ticias que  para  aqui  lançaremos,  para  não  tratar  com 
ingratidão  esse  feliz  acaso,  que  no  próprio  archivo 
nacional  se  prestou  a  subministrar-nos  todas  as  no- 
ções históricas  —  que  antes  pelos  Índices  e  catálo- 
gos baviamos  inquirido  era  vão.  K  com  effcito  a 
forre  do  Tombo  ,  onde  [com  a  devida  aiictorisação 
do  governo  fidelissimo]  trabalhámos  em  nossas  in- 
vestigações brazilicas  ,  que  nos  vem  a  deixar  em 
toda  a  clareza  a  historia  da  edificação  desse  mos- 
teiro, que  alem  de  tanto  figurar  na  primeira  pagina 
da  historia  do  Brazil.  ás  despedidas  do  descobridor 
2."  Serie,  — Voi.  II. 


386 


O  PANORAMA. 


Pedr'Alvares  Cabral ,  contém  em  si  mesmo  o  sym- 
bolo  do  seu  descobrimento  bem  como  do  da  índia 
[art.  X];  alem  de  que  foi  começado  e  construido 
quando  começava  e  proseguia  a  civilisação  destes 
paizes. —  Belém  ú  a  imagem  marmórea  do  caholico 
Portugal  movente  e  colonisador  ,  como  a  Batalha  o 
é  do  Portugal  independente  sob  o  bom  regimen  ,  a 
ordem,  a  estabilidade  e  o  soccgo. 

E  que  melhores  documentos  se  poderiam  desejar 
do  que  os  próprios  livros  originaes  das  contas,  que 
incluem  os  ajustes  dos  jornaes  c  empreitadas  e  os 
pagamentos  das  lerias  dos  mestres  e  operários,  tu- 
do com  a  maior  clareza  e  individuação?  Acham-se 
taes  livros  no  armário  26."  do  interior  da  casa  da 
coroa  ,  maço  único  rotulado  =  Dcspcza  das  obras 
de  Delem  e  da  camará  e  cadca  de  Setúbal  ;=  e  são 
principalmente  respectivos  a  obras  de  1314  em 
diante.  Mas  alem  desses  livros  encontrámos  ainda 
dispersas  n'outros  logares  folhas  de  fragmentos  dos 
annos  anteriores  :  o  zeloso  e  honrado  empregado  , 
que  aclnalmentc  faz  de  guarda-mór,  se  dignou  an- 
iiuir  a  que  se  juntassem  no  mesmo  maço  ,  no  que 
sem  perda  da  ordem  doarchivo  muito  ganha  a  his- 
toria de  um  monumento  de  recordações  gloriosas. 

A  mais  importante  noticia  que  desses  originaes 
colhemos  é  a  d'um  nome,  que  talvez  sem  elles  nun- 
ca se  saberia.  —  Uma  Iradierão  vaga  linha  feito 
correr  que  o  principal  architecto  da  obra  fora  ita- 
liano ,  e  se  chamava  Putassi.  Dissemos  nós,  com  a 
maior  reserva  n'outro  logar,  como  nenhuma  memo- 
ria achávamos  deste  nome,  e  assim  nos  viamos  sem 
recurso  algum  pira  examinar  os  fundamentos  da 
tradicção,  restando  apenas  o  direito,  em  quanto  não 
apparecesse  outro  ,  de  proclamar  por  mestre  da 
obra  a  João  de  Castilho  ,  sobre  cuja  existência  não 
Unhamos  a  memu'  dúvida.  D'ora  em  diante  este 
devo  ceder  a  palma  ao  seu  accessor  que  acaba  de 
apparecer  italiano  ,  como  dizia  a  tradicção  ,  e  de 
um  notue  tal  que  porventura  produziu  por  adulte- 
ração o  acima  mencionado.  Sim,  a  palma  de  primei- 
ro architecto  de  Ceiem  deve  ser  transferida  a  Boi- 
taca  (2):  nome  conhecido  pela  memoria  do  que  nas 
obras  da  Batalha  pelos  annos  de  1599,  1512,  1514 
e  1519  fez  ,  segundo  a  mais  eminente  auctoridade 
(3);  e  por  umas  informações  vindas  de  Setúbal,  das 
quaes  consta  ter  sido  o  mesmo  Boilaca  quem  diri- 
giu o  convento  das  freiras  de  Jesus  (4)  cm  Setúbal; 
Ijcm  como  o  faria  quanto  a  nós  a  respeito  da  igreja 
da  C<ini"cição-N'elha  ,  da  mesma  cpocha  e  em  tudo 
similhantc  a  lieicin. 

Os  referidos  documentos  nos  explicam  igualmen- 
te Címio  era  feita  a  administração  das  obras;  e  no- 
tável ó  a  identid.ide  desta  com  a  que  se  seguia  no 
mosteiro  da  Biitalha  (S).  —  Havia  uma  espécie  de 
junta  ,  conselho  ou  mcza  dos  cuntos  ,  composta  de 
um  provedor,  um  almoxarife  c  um  escrivão,  os 
quaes  tinham  cada  qual  uma  das  Ires  chaves  do  co- 
fre. Este  ultimo  bigar  foi  muito  tPm[io  servido  por 
um  João  Leilão  ;  no  segundo  esteve  algum  tempo 
Diogo  Uodrigues,  c  no  primeiro  um  Gonçalo  Alva- 
res. A|i|)arcce  também  depois  por  vedor  das  obras 
Ruy  Fernandes.  Semanalmente  orçava  a  importân- 
cia total  da  feria  entre  nove  e  qnalorze  mil  réis,  o 
que  não  admirará    a  quem  souber  que  o  maior  jor. 

(2)  Jloi/laea  Ml  lloi/liir/iia ,  lloiiliira  ou  /liii/lri//ua.  Ha- 
taífiia  oii  /lolaca,  puis  de  ludas  íis  fói mas  appaicce  t-scriplo. 

(3)  Meni.  da  Ac-adem.  'i'.  X,   I>.  1.",  pa-.  179  elHI. 

(4)  A  r.sppilo  deslc  convento  de  Jtsiis  vcja-se  o  Pano- 
rama n."  ll.-i  dl)  vol.  anlerÍDr. 

(5)  Vcj.  a  ciladaxMeni.  doEin."  Sr.  Patriarcha  p.  1G8. 


uai  pago  era  o  de  mestre  Boitaca  ,  que  vencia  por 
dia  100  r.%  e  que  os  outros  mestres  e  oITiciaes  ape- 
nas recebiam  60  ,  50  e  40  r.'  em  quanto  se  seguiu 
o  systema  dos  jornaes,  que  não  continuou  por  mui- 
to tempo  ,  sendo  preferido  o  das  empreitadas  talvez 
pelas  vantagens  da  economia  e  da  maior  rapidez 
no  trabalho.  A  2  de  janeiro  de  1517  começaram 
lodos  os  empreiteiros  a  servir  segundo  um  regimen- 
to dado  por  clrci  ,  e  João  de  Castilho  ajuslára-se 
par ^  t<  mestre  e  empreiteiro  da  crasla  primeira  c  ca- 
pitolo  c  sacristia  epoitaUe  da  íiavcsiau  =obrigan- 
do-se  a  trazer  cera  ofliciaes  cfiectivos ,  recebendo 
por  isso  mensalmente  140}Í000,  o  que  bem  equi- 
vale á  paga  de  50  r.'  diários  a  cada  ollicial.  Havia 
alem  do  mesmo  Castilho  outros  empreiteiros  ,  que 
igualmente  se  obrigavam  a  trazer  efleclivos  certo 
numero  de  operários;  assim  acontecia  a  mestre  Ni- 
cidáu  cora  o  portal  [>riucipal  ,  e  a  Filippe  Henri- 
ques com  a  crasta.  Domingos  Guerra  ,  João  Gon- 
çalves c  Rodrigo  Affonso  eram  empreiteiros  de  va- 
rias capellas  ,  sendo  o  primeiro  de  cinco  do  coro  e 
cada  um  dos  dois  de  três  outras  ,  talvez  no  cruzei- 
ro ou  capella-mór.  Leonardo  Vaz  linha  por  sua  con- 
ta o  refeitório.  —  Fernando  Fermosa  era  aparelha- 
dur  da  sacristia,  Francisco  de  Benavente  da  crasla 
primeira  c  pilares,  e  Rodrigo  dePontezylha  do  por- 
tal do  capitulo  e  da  igreja,  &c.  ,  &c.  (6).  Voltan- 
do á  estampa  que  vai  aunexa  a  estas  linhas,  é  cila 
mui  fraca  para  dar  idca  da  perspectiva  que  se  go- 
za no  original.  Lá  ao  fim  no  meio  se  descobre  para 
dentro  do  arco  do  cruzeiro  a  clássica  capella-mór 
que  a  raiidia  D.  Cathnrina  mandou  construir  cm 
vez  da  antiga  que  fez  desmanchar  por  pequena  ,  e 
a  qual  [rectificando  o  que  outra  vez  dissemos]  ain- 
da não  estava  concluída  aos  3  de  janeiro  ile  1570, 
pois  que  desta  data  é  uma  lei  pela  qual  clrei  D. 
Sebastião  providcncèa  que  cesse  a  sua  obra  para  se 
applicar  o  seu  gasto  para  os  logares  d'Africa. — 
Na  dita  capella-mór  não  existe  hoje  o  candelabro 
que  na  estampa  se  representa  ,  e  por  cima  do  arco 
do  cruzeiro  deve  saber-se  que  são  as  armas  portu- 
guezas  as  desse  brazão  ,  em  que  a  invenção  do  de- 
senhador quiz  fazer  preferir  á  exactidão  o  eíTeito  ar- 
tistico  (7). 

—  Varnhagcn. — 


Estudos  Moraes. 

n. 

o  Parocho  da  Aldeia. 

(Continuado  de  pag.  3G3). 


A  PROPÓSITO  do  que  o  padre  prior  era  de  casamen- 
teiro ainda  me  lembra  uma  velha  viuva  ,  a  senhora 
Perpetua  Rosa  —  Deus  lhe  falle  na  alma  !  —  que 
morava  ao  cabo  do  logar  n'uma  barraquinha  a  bei- 
ra do  rio  muito  caiada,  com  seu  rodapé  de  verme- 
lhão ,  e  sombreada  por  cinco  ou  seis  choupos  quo 
nasciam  da  agua.  Tinha  ella  —  a  velha,  não  a  bar- 
raquinha—  uma  lilha,   formosa  rapariga,   chamada 

(6)  Para  enrif]iiocinienlo  do  nosso  glossário  architeelc- 
nico-porlcifrup/,  aproveilánios  nesses  papeis  os  nomes  de  ^ar- 
t/n  [por  gárijula]  ,  coronel,  romano,  torcido,  alcachofra,  si- 
tiai, ele. 

(7)  A  eslampa  a  paj.  T.T  do  vol.  antecedente,  desenha- 
da pelo  Sr.  I'"onrcca  e  gravada  pelo  Sr.  Coelho,  mostra  o 
interior  do  moslciro  com  exacçtio  superior  i.  presente  que 
de  obra  alheia  tomámos. 


o   PANORAÍ>lA. 


387 


Bernariiiiia.  Ern  iinin  ilas  leiteiras  mais  dcsenxova- 
lliadas  de  que  se  {ç.ili.iv.im  os  arredores  de  Libboa  : 
l)onita  ,  que  iiãci  liavia  iiKiis  dizer  :  alva  como  toa- 
lha de  freira  ,  airos.i  eoiiio  piuheirinlio  de  quatro 
ânuos.  Uns  poucos  de  rapazes  da  aldeia  andavam 
doudos  por  cila.  Nas  noites  dos  dominjins  cm  que 
liavia  dança  c  viola  na  casa  da  lirincadc  ira  (•)  ,  a 
tia  Jeroninia  ,  que  era  capaz  d'espreitar  e^te  rann- 
do  c  o  outro,  mirando  da  sua  rotula  o  que  se  pas- 
sava á  entrada  da  rústica  sala  do  baile,  pouco  dis- 
tante do  presliytcrio  ,  notava  qne  apenas  a  liernar- 
diua  apparecia,  os  rapazes  entravam  apoz  cila  com 
muita  mais  fúria  e  pressa  do  que  pela  manhaii  ha- 
viam corrido  pira  a  igreja  ao  ultimo  loque  da  mis- 
sa do  dia.  Antes  disso  já  a  boa  da  velha  tinha  re- 
parado no  modo  por  que  elles  se  enco^lavara  aos 
cajados  para  lados  oppustos,  em  frente  uns  dos  ou- 
tros ,  nos  motejos  do  cantar  ao  dcsalio  ,  no  pôr  dos 
barretes  á  banda  ,  nos  olhares  que  mutuamente  se 
lançavam  ,  no  pegarem  cm  seixos  e  alirarein-nos  a 
grande  distancia  a  modo  de  competência  ,  sem  di- 
zerem palavra  ,  como  se  cada  um  quizcsse  mostrar 
aos  seus  rivaes  a  robustez  do  próprio  braço.  Disto 
tudo  tirava  a  tia  Jeronima  agouro  de  muita  panca- 
daria ,  «por  amor  daquclla  dclamliida  —  dizia  a 
ama  do  prior  em  suas  caridosas  murmurações  — 
que  anda  toda  arrebicada  por  balharotas,  em  quan- 
to a  pobre  da  ni.ãi  moureja  todo  o  santo  dia  ao  sol 
e  á  neve  naqucllc  rio  para  ganhar  um  bocado  de 
pão  sem  vergonha  da  cara.  Havia  deser  comigo!» 

E  o  mais  é  que  a  tia  Jeronima  não  se  enganava 
nas  suas  previsões.  Chegou  véspera  de  Reis:  hou- 
ve á  noite  brincadeira  ou  baile  extraordinário  :  pas- 
sou-se  ahi  tudo  na  melhor  ordem  :  riu-se  ,  locou-sc 
viola,  dançou-sc,  cantou-se  ao  desafio,  e  cada  qual 
se  recolheu  a  esperar  entre  os  lençoes  os  santos 
Reis  magtws ,  designação  popular  dos  magos  do 
Oriente,  cuja  vinda  a  líethlem  se  memora  na  Epi- 
pbania. 

Houve  ,  porem  ,  nessa  noite  um  saloio  mais  cor- 
tez  que  esperou  vestido  cao  relento  no  caminho  da 
serra  a  vinda  dos  três  santos  personagens.  Foi  o 
Manuel  da  ^"entosa,  estendido  com  uma  tremebun- 
da e  magnifica  massada,  de  que  esteve  ido,  a  pon- 
to de  dar  ao  padre  prior  uma  daquellas  noitadas 
que  suscitavam  a  cólera  da  lia  Jeronima,  e  de  que 
já  acima  fiz  honrosa  e  especifica  menção. 

O  Manuel  da  Ventosa  era  filho  nnico  de  um  mo- 
leiro ricaço,  chamado  Bartholomeu,  velho  honrado, 
mas  avarento  como  seiscentos  satanazes.  Teve  a 
ventura  —  o  rapaz,  enlende-se  —  de  cahir  em  gra- 
ça da  Bernardina.  Amoricos  daqui  ,  amorícos  d'a- 
colá  :  janella  na  cara  a  um  ,  respostas  tortas  a  ou- 
tro ;  segredar  e  rir  de  visinhas  ;  raivas  de  despre- 
zados :  somma  lotai  —  zás,  uma  sova  mestra  no  Ma- 
nuel da  Ventosa  ,  por  ler  lido  a  negregada  dita  de 
merecer  a  preferencia  daquclla  que  era  o  enlevo 
de  lodos  os  corações. 

Mas  enganaram-se.  O  amor  redobrou  com  o  sa- 
crificio  ;  os  desprezos  cresceram  com  a  vingança. 
O  que  começara  por  passatempo  converteu-se  em 
paixão  violenta  :  um  fogo  intimo  devorava  a  alma 
de  Bernardina  ,  e  lhe  desbotava  as  faces  ,  d'antes 
tão  frescas  e  rosadas  como  as  d'um  seraphim  da 
peanha   da  Senhora   da  Conceição  ,   obra   de  cscul- 


(•)  Assim  se  denominava  .liiula  ha  poucos  annos  uma 
casa,  na  proximidade  das  aldeias  visinhas  de  Lisboa,  em- 
prestada por  algum  ricaço  ou  alugada ,  em  qne  se  ajuntava 
lias  noites  dos  domingos  para  brincar  (dançar)  a  mocidade 
aldeã. 


ptor  insigne.  No  Manuel  da  Ventosa  ,  isso  não  fal- 
lonios  :  qii.indo  melhorou  da  doeiíia  andava  entre 
parvo  e  abstracto  :  atlrihuia  o  o  licenciado  dos  sí- 
tios a  de|ircs>âo  cerebral  produzida  por  alguma  ri- 
pada nas  vértebras  ;  mas  se  exi>lia  depressão  de 
cérebro  outra  era  a  sua  origem.  Certa  mulher  de 
\irtude  que  havia  na  aldca  jurava  c  Iresjiirava  que 
o  moleiro  moço  tinha  a  esiiinliela  cabida.  Uislorias. 
Ku  apesar  de  ser  então  uma  crcança  sabia  bem  on- 
de batia  o  ponto  ;  por  isso  nunca  fui  para  ahi. 

Por  encurtar  rasõcs  :  os  dois  aniavam-se  como 
loucos.  As  pessoas  desinteressadas  achavam-nos  um 
par  completo  —  c  com  bom  fundamento:  o  Manuel 
da  Ventosa  era  um  galhardo  mancebo,  nnico  her- 
deiro de  gnija  abastado  ,  e  Bernardina  uma  rapari- 
ga honesta.  As  beatas  da  aldeia,  ás  quaes,  conforme 
a  direito,  incumbia  por  ao  soalheiro  a  vida  priva- 
da de  cada  uma,  no  capitulo  da  honra  numa  se  ti- 
nham atrevido  a  ir  devassar  a  barraquinha  de  Per- 
petua Uosa.  Podia  a  senhora  Perpetua  Uosa  gabar- 
se  dessa  '.  li  de  feito  ,  muitas  vezes  ,  mcttida  no  rio 
até  os  joelhos ,  cm  discussões  acaloradas  com  as 
suas  illustres  amigas,  as  outras  lavadeiras  pelo  cir- 
culo de  Lisboa  ,  a  ouvi  empraza-Ias  para  que  for- 
mulassem precisamente  certas  interpellações  infun- 
dadas ,  regcilnndo  co.m  desprezo  alguns  remoques 
bernardos  relativos  a  Bernardina  ,  e  appcilando  pa- 
ra a  opinião  do  paiz  representada  pelus  seus  órgãos 
—  as  beatas  do  soallieiro. 

Mas  se  os  dois  se  amavam  com  tantos  extremos 
e  eram  feitos  e  talhados  para  puxarem  o  mesmo  car- 
ro matrimonial,  porque  não  iam  pedir  ao  padre 
prior  oconjungo  vos?  Ahi  é  que  certo  animal  torcia 
certa  parte  do  corpo  ,  que  eu  c  o  leitor  sabemos. 
Por  não  terem  pedido  esclarecimentos  sobre  o  fa- 
cto é  que  as  lavadeiras  faziam  declamações  vagas. 

Eis  o  caso  :  o  Bartholomeu  da  Ventosa  era  rico 
e  avaro  ;  —  mas  bestialmente  avaro  ;  Perpetua  Ro- 
sa pobre,  pobríssima.  Por  mal  de  peccados  fora 
cila  antigamente  lavadeira  do  casal  do  moinho  — 
ou  antes  dos  moinhos,  porque  para  a  cxacção  his- 
tórica devc-se  advertir  que  o  moleiro  possuia  dois. 
Lma  vez,  que  levara  grande  porção  de  roupa  ,  ti- 
nha perdido  três  saccas  velhas  e  rotas.  Bartholo- 
meu quando  tal  soube  quiz  morrer.  <cJuro  por  esta 
— ^  dizia  ello  esbravejando,  e  beijando  os  dois  dedos 
Índices  cruzados  sobre  a  boca — juro  que  Perpetua 
Rosa  me  ha-de  pagar  as  minhas  três  saccas  novas 
cm  folha,  que  me  perdeu  a  desalmada.»  Mas  nem 
novas  nem  velhas  ;  porque  a  verdade  era  que  ella 
não  linha  com  que  as  pagasse.  Forçado  foi,  portan- 
to, ao  moleiro  o  fartar  a  vingança  com  ordeuar-lhe 
qne  não  lhe  tornasse  a  rapar  os  pés  á  porta.  Desde 
este  faial  dia  nunca  mais  Bartholomeu  da  Ventosa 
pôde  encarar  com  a  lavadeira  :  o  seu  ódio  vivia  in- 
volto  e  aquecido  na  imagem  das  três  saccas  grava- 
da naquelle  coração  de  avarento.  Assim  para  elle 
seria  cousa  monstruosa  e  abominável  só  o  imaginar 
a  possibilidade  de  seu  filho  JLnnuel  casar  com  Ber- 
nardina ,  a  quem  a  pobreza  fora  de  sobra  para  im- 
pedimento dirimente,  quanto  mais  o  ser  filha  de 
similhante  mãi.  Tal  era  a  dilFiculdade  insuperável 
que  se  oppunha  á  união  dos  dois  amantes. 

Eos  raezes  iam  passando,  e  as  murmurações  cres- 
cendo, e  saltando  já  das  lavadeiras  para  as  beatas. 
Tinham  visto  mais  de  uma  vez  [dizia-se:  valha  a 
verdade]  o  moco  moleiro  rondando  a  deshoras  a 
barraquinha  da  beira  do  rio.  Havia  lambem  quem 
dissesse  que  nas  madrugadas  d'alguns  domingos, 
quando  a  senhora  Perpetua  Rosa  sabia  para  a  mis- 


388 


O  PANORA3IA. 


sa  das  almas,  se  enxergava  ao  lusco  fusco  um  vul- 
to, que,  coscnilo-sc  com  os  choupos,  se  approximava 
da  porta  da  Ucrnardina,  e  .  .  .  e  elcwtcra.  Era  mui- 
to ver  I  Mas  a  cousa  ia  correndo,  e  no  fim  de  con- 
tas quem  ganhava  com  essas  historias  eram  as  lín- 
guas dos  maldizentes,  que  se  relocillavam  na  palan- 
gana da  murmurarão,  e  o  diabo  que  se  lamhia  para 
por  estas  e   por  outras  os  calrafillar  a   seu  tempo. 

Veio  a  quaresma  :  santa  quadra;  mas  que  por 
isso  mesmo  ó  ás  vezes  boa  de  mais.  Desobriga  vai, 
desobriga  vem,  snbe-se  muita  cousa.  O  padre  prior 
andava  já  com  a  pedra  no  rapato  ,  porque  elle  não 
era  cego  nem  mouco.  Meu  dito  ,  meu  feito.  Certo 
dia  —  por  signal  que  era  uma  sexta-feira — quando 
o  sacristão  veio  abrir  a  porta  da  igreja  estavam  já 
no  adro  á  espera  l*erpelua  Rosa  e  Bernardina  para 
se  confessarem.  Não  tardou  o  prior.  Aviou-se  a 
mãi  :  ajoelhou  a  filha  :  persignou-se  ,  bcnzeu-se  , 
disse  mea  culpn  ,  e  começou  sua  confissão. 

Se  isto  fosse  uma  historia  de  polpa  ,  cortesaã  e 
culta,  viria  neste  ponto  o  casus  fcedeiis  do  cu  tomar 
a  postura  trágica  a  la  moda,  carregando  as  sobran- 
celhas, c  dizendo  cm  tora  soturno  e  lento:  «O  que 
ahi  se  passou  entre  o  venerável  ancião  e  a  donzcl- 
la  ninguém  o  soube  !  —  I  —  !  —  '.  —  Mysterio  1  —  '. 
—  !  —  '■  Acontecimento  horrível  e  fatal  !  —  !  —  I  —  ! 
As  lagrymas  ardentes  do  velho  cahiram  sobre  a 
cabeça  da  infeliz  ajoelhada  a  seus  pós  ,  cujo  futu- 
ro [não  o  dos  pés  mas  o  da  infeliz]  era  de  maldi- 
ção I —  !  —  !  —  !»  Limitada,  porem,  a  minha  nar- 
rativa a  chaã  e  villoa  recordação  de  um  pobre 
parocho  d'aldcia  ,  reílcclirei  cm  summa  ,  que  me 
não  é  licito  revelar  o  segredo  do  confessionário.  Os 
sigillistas  já  deram  que  fazer  ao  marquez  de  Pom- 
bal ,  cuja  consciência  ,  como  todos  sabem  ,  era  de- 
licadíssima em  matérias  de  orthodoxia  catholica  — 
e  em  tudo.  Callo-me,  porque  não  quero  cahir  no  er- 
ro que  elle  condemnou.  Direi  só  que  fui  mui  de- 
morada a  confissão  de  Bernardina  ,  e  que  ao  ale- 
vanlar-se  d'an[e  os  pés  do  prior  ella  trazia  osolhos 
como  punhos:  —  e  digo-o  porque  o  viram  os  cir- 
cumstantes  ,  a  saber  ,  o  sacristão  e  a  senhora  Per- 
petua Rosa,  que  devotamente  ia  descabeçando  a  pe- 
nitencia em  quanto  a  filha  se  desobrigava. 

Ao  Sol  posto  desse  mesmo  dia  o  prior  espairecia 
a  vista  pela  veiga  coberta  de  verdura  ,  assentado 
no  cruzeiro  segiuido  o  seu  costume,  A  brisa  da  tar- 
de era  fria  e  aguda  ,  porque  a  primavera  começa- 
va apenas  ;  mas  o  velho  parocho  parecia  não  a  sen- 
tir embebido  cm  cogitações  ;  e  tão  fundas  iam  es- 
tas,  que  cm  vez  de  traçar  na  terra  com  a  bengala 
as  usuaes  figuras  geométricas,  ou  anli-geomelricas, 
conser\ava-a  immovcl  e  perpendicular  com  as  mãos 
cruzadas  sobre  o  castão  ,  firmando  a  barba  em  ci- 
ma. Conhecia-se-lhe  no  olhar  ,  e  no  mecher  tremu- 
lo dos  beiços,  que  algum  grande  cuidado  o  inquie- 
tava. E  tanto  assim  ,  que  nem  reparou  nos  três  si- 
gnaes  das  avemarias,  deixando-se  ficar  sentado,  e 
até  ,  oh  profanação  !  ,  com  o  chapéu  na  cabeça.  Fe- 
lizmente não  passava  ninguém  naquelle  momento  , 
que  podcsse  notar  a  involuntária  irreverência  do 
distrahido  pastor. 

Mas  um  vulto  assomou  lá  ao  longe  ,  e  os  olhos 
do  velho  brilharam  como  animados  por  vida  nova. 
<Juem  quer  que  era  descia  do  monte  e  viidia  para 
a  banda  do  rio.  O  caminho  passava  perto  do  adro  : 
o  prior  ergucu-sc,  estendendo  a  mão,  e  brandindo  a 
bengala  na  direcção  do  vulto. 

«Oh  Manuel  — psio,  Manuel!  chega  á  falia!  Oh 
rapaz ! » 


O  filho  do  moleiro  —  porque  era  elle  —  hesitou 
um  pouco  :  alguma  cousa  lhe  roía  na  consciência. 
Mas  vendo  o  prior  em  pé  com  ar  de  quem  esta- 
va resolvido  a  ir  atravessar-se-lhe  diante  ,  cortou 
para  elle  com  o  barrete  azul  e  vermelho  na  mão. 

«Boas  tardes,  padre  prior:  quer  alguma  cou- 
sa ?  » 

«Quero  que  você  chegue  aqui,  porque  temos  que 
fallar.  » 

O  tom  com  que  estas  palavras  foram  proferidas  , 
e  mais  que  tudo  aquelle  você  ,  fizeram  estremecer 
o  Manuel  da  A'enlosa.  O  prior  tratava  lodos  por  tu, 
e  o  você  na  boca  dclle  era  presagio  infallivel  de 
temporal. 

O  rapaz  parou  diante  do  velho  com  osolhos  cra- 
vados no  chão  ,  torcendo  e  destorcendo  a  orla  do 
barrete  que  tinha  entre  as  mãos.  O  padre  prior  me- 
diu-o  d'alto  a  baixo  ,  e  começou  er  abrupto  : 

«Então  que  historias  são  estas  da  Bernardina,  só 
velhaco  da  conta  benta?  Sabe  o  que  fez,  grandessis- 
simo  tratante?  .\oude  foi  você  aprender  isso?  [Es- 
ta pergunta  era  asnatica].  È  a  doutrina  que  eu  lhe 
ensinei  cm  pequeno?  De  que  tem  servido  os  exem- 
plos de  modéstia  e  honra  que  lhe  dá  seu  pai?  De 
ser  um  vadio  ,  ura  seductor  ,  um.  .  .  .  Deixe  estar  : 
a  cadeia  não  se  fez  para  as  aranhas ,  e  elrei  nosso 
senhor  [o  bom  do  parocho  puxava  em  politica  para 
a  eschola  histórica]  ainda  não  mandou  queimar  a 
náu  de  viagem.  ...» 

«Eu,  padre  prior...  como  lhe  ia  dizendo:  — 
interrompeu  atarantado  o  saloio  ,  coçando  na  cabe- 
ça ,  e  procurando  alar  o  fio  das  suas  idéas  inteira- 
mente confundidas. 

«Callc-se  —  não  me  responda:  —  proscguiu  o  ve- 
lho parocho  ,  achando  talvez  pouco  cinco  perguntas 
para  ouvir  uma  resposta.  Diga-me  :  que  tenções 
eram  as  suas  enganando  uma  rapariga  honesta?» 

«  Eu . . . » 

«Não  me  replique  ;  já  lho  disse.  Lembre-se  de 
que  é  o  seu  pastor  que  lhe  falia.  Ahi  está  porque 
você  ainda  não  veio  dcsobrigar-sc.  Pensava  que  por 
ella  ser  miserável  e  sua  mãi  uma  triste  viuva  não 
tinham  ninguém  neste  mundo?  Enganou-se.  Tem- 
me  a  mim.  Saiba  que  a  poder  que  eu  possa  ha-de 
ir  bater  com  o  custado  na  índia,  ou  casar  com  Ber- 
nardina. » 

.4qui  o  pobre  rapaz  atirou-se  de  joelhos  a  chorar 
aos  pés  do  velho,  e  exclamou  soluçando: 

«Eéisso  o  que  eu  quero!  .  .  .  Juro-o  por  aquclla 
arvore  da  bella  cruz  que  alli  está.  .  .» 

«Vera  cruz,  salvage  !  —  vera  cruz!»  —  inter- 
rompeu o  prior  visivelmente  abrandado  com  o  pran- 
to ,  humildade  ,  e  declaração  cathegorica  do  moço 
moleiro. 

«Mas,  como  eu  ia  dizendo  —  proseguiu  este, — 
por'mor  daquella  diabrura  das  saccas  meu  pai  não 
pode  tragar  a  senhora  Perpetua  Rosa.  Se  lhe  fallas- 
se  em  tal,  fazia-me  os  ossos  tão  miúdos  como  a  pi- 
cadura  da  mó.  Se  a  Bernardina  tivesse  dote,  ainda 
talvez  elle  consentisse.  .  .  Mas  sem  isto  ;  bem  lhe 
sabe  do  génio.  Se  o  padre  prior  podcsse  adivinhar 
o  que  me  tenho  ralado  ,  havia  de  ler  do  de  mim. 
Não  como  ,  não  durmo  ,  ando  doudo.  Não  basta  a 
massada  que  gramei.  .  .  Ahn  !  ahn  !  ahn  !  » 

Chorava  em  berreiro  :  e  o  choro  não  o  deixava 
continuar.  As  lagrymas  começaram  tamheni  a  bai- 
lar nos  olhos  do  prior,  que  ficou  por  alguns  momen- 
tos pensativo. 

«  Levanta-lc,  rapaz  dos  meus  peccados  :  disse  el- 
le por  fim,  puxando  pelo  braço  do  moleiro.  Vamos  ; 


o  PANORAJ>IA. 


389 


confessa  a  verdade:  estás  arrependido  do  que  fizeste?» 

n  Estou  ,  sim  senlior  !  Ahn  !  alm  !  » 

Nesta  parte  ,  apesar  do  cliúro  e  soluços  ,  parcce- 
me  que  o  saloio  mentia, 

nfroraetles  casar  com  líernardina  ,  se  teu  pai 
consentir?» 

«  Promctlo  ,  sim  senhor  '.  Ahn  !  » 

«Ora  ,  pois  ,  soccga  ,  e  não  chores.  Deixa  o  caso 
por  minha  conta.  Volte  para  casa,  c  não  me  torne 
arondar  pela  beira  do  rio.  Entende? — Olhe  que'.  .  .  » 

O  prior  estendeu  a  bengala  para  o  lado  dos  moi- 
nhos que  assobiavam  lá  no  alto,  e  Manuel  da  Ven- 
tosa voltou  cabisbaixo  ,  e  a  passos  lentos  pelo  ca- 
minho por  onde  viera.  Sentia  confusamente  que  se 
approximava  a  crise  mais  temerosa  da  sua  vida. 

Então  o  padre  prior  assentou-se  outra  vez  no 
poial  do  cruzeiro,  e  rccahiu  em  profunda  medita- 
ção. Depois  de  um  bom  quarto  d'hora,  púz-se  em 
pé  e  encaminhou-se  para  o  presbylerio.  Tinha  anoi- 
tecido. De  memoria  d'homeus  nunca  ceara  tão  tarde  I 

E  andando,  o  velho  sacerdote  repetia  aqucllas  pa- 
lavras do  livro  de  Job  ,  onde  ,  entre  parenthesis  , 
ha  mais  philosophia  ,  que  n'um  aduar  inteiro  de 
philosophos  : 

.Vurfi/s  egrcssus  sum  de  ulero  matris  meui ,  et  nu- 
dus  revcrtar  illuc  (•). 

O  porque  o  dizia  ,  bem  o  sabia  elle  !  Ceou  sem 
dar  palavra:  resou  o  breviário  :  deitou-se,  e  apagou 
o  candieiro.  Contra  o  costume,  Fr.  Bernardo  de 
Brito  e  Fr.  Diogo  do  Rosário  ficaram  aquelle  serão 
na  estante.  A  ama  sentiu-o  assoar-se  ,  tomar  taba- 
co, e  escarrar  até  muito  tarde.  Cousa  rara  I — signa! 
evidente  de  que  tinha  negocio  de  vulto  ,  que  lhe 
embargava  o  dormir  ! 

Peior  foi  pela  manhaã.  Apenas  luziu  o  buraco  o 
padre  prior  saltou  da  cama;  calçou  os  çapatos  en- 
graixados;  vestiu  a  loba  nova  :  pediu  o  chapéu  de 
três  ventos,  a  bengala  de  castão  de  prata,  e  os  ócu- 
los fixos,  que  só  punha  em  dias  de  missa  cantada  , 
e  disse  á  ama  que  se  aviasse  com  o  almoço,  por- 
que linha  de  sahir  cedo. 

Em  quanto  a  tia  Jeroniraa  para  maior  brevida- 
de fazia  umas  papas  de  milho  ,  o  prior  abriu  um 
contador  enorme,  destes  que  os  nossos  grandes  ami- 
gos inglezes  nos  vão  agora  levando  em  logar  de  vi- 
nho do  Porto  ,  tirou  para  fora  uma  folha  de  papel 
almasso  ,  e  bradou  : 

i<  Jeronima  '  oh  Jeronima  '.  » 

A  velha  chegou  ao  corredor  da  cosinha  com  o 
abano  na  mão. 

«Estão  quasi  feitas:  —  disse  ella.  Tenha  paciên- 
cia um  instantinho.» 

«Não  é  isso,  mulher: — replicou  o  prior.  —  Ou- 
Te  cá  :  vai  ao  forro  da  escada  e  traz-me  aquillo.  » 

nisso,  eu  lá  ponho.  Mas,  com  sua  licença:  — 
donde  veio  maquia  grossa?  Hontem  não  houve  ba- 
plisado  nem  enterro.  .  .  » 

E  a  tia  Jeronima  estendia  a  mão  esquerda  cober- 
ta com  a  ponta  do  avental  ,  para  não  sujar  a  ma- 
quia de  que  fallava ;  e  ao  mesmo  tempo  volvia 
olhos  ávidos  ,  ora  para  o  bofete  ,  ora  para  o  prior. 

«Qual  carapuça!  —  replicou  elle  fazendo-se  ver- 
melho.—  Sahe  ;  não  entra.  Faça  o  que  lhe  digo  e 
dê  ao  demo  o  que  sabe.» 

A  ama  empallideceu.  As  palavras  sahe:  não  en- 
tra eram  de  ruim  agouro  ;  mas  vendo  já  o  padre 
prior  azedo  ,  caliou-se  e  obedeceu. 

Dalli  a  pniico   o  velho  parocho  começava  a  tirar 

(•)  Nu  íahi  lio  ventre  de  mioba  mãi,  e  nu  voltarei  pa- 
ra alli.  Job.  cap.  1.  ^il. 


de  um  pé  de  meia  —  uma  —  duas  —  Ires  peças  de 
ouro  :  foi  tirando  até  setenta  :  restava  apenas  obra 
de  uma  dúzia  delias. 

«Basta  :  —  rosnou  o  prior.  Pude  occorrer  uma 
doença.  Então  ,  Jeronima  ,  vem  essas  papas?  !  » 

E  dizendo  isto  embrulhava  muito  bem  as  setenta 
peças  na  fulha  de  papel  que  tinha  sobre  o  bofete  , 
e  raeltia-as  na  algibeira  da  loba. 

«Guarde  isso,  Jeronima: — disse  elle  á  ama,  que 
entrava  com  as  papas.  E  empurrou  pela  raeza  fora 
o  exangue  pé  de  meia.  .\  ama,  ao  ver  aquella  hor- 
rorosa sangria  ,  esteve  a  ponto  de  largar  a  frigidei- 
ra no  chão  ,  e  de  deixar  o  bom  do  padre  sem  al- 
moço. 

Quando  voltou  para  a  cosinha  ,  ouvia-a  o  prior 
soluçar. 

« -Ywí/uí  egressus  sum  de  útero  matris  inca  ,  et  nu- 
dus  revcrtar  illuc. » 

Murmurando  esta  profunda  sentença  da  Biblia  , 
o  reverendo  parocho  sabiu  pela  porta  fora.  A  ama 
vendo-o  sahir  andava  como  pasmada. 

Nestas  idas  e  voltas  havia  nascido  o  sol.  O  Bar- 
tholomeu  da  Ventosa  afanado  com  a  sua  lida  ,  em 
pé  á  porta  de  um  dos  moinhos ,  bracejava  ,  ralha- 
va ,  praguejava  como  um  possesso.  Os  brutos  dos 
moços  liuham-lhe  quebrado  já  duas  cordas  ao  cn- 
querir  as  cargas  de  uma  recua  de  machos  pimpões 
preza  á  argola  do  moinho. 

De  repente  viu  um  castão  de  bengala  sahir-lhc 
por  cima  do  hombro.  Voltou-se  :  era  o  prior. 

«Olé,  vossenhoria  por  aqui  a  estas  horas?'.  Psio, 
oh  Zé  Dorna,  olha  o  raliixo  daquelle  macho!  Gran- 
de novidade,  padre  prior! — grande  novidade!  — 
Raios  te  partam  !  Que  taTstá  o  filho  do  diabo?!» 

Estas  duas  ultimas  jaculatórias  eram  acompanha- 
das de  dois  reverendissimos  pontapés  na  barriga  de 
uma  das  cavalgaduras,  que  já  eslava  carregada,  e 
que  parecia  achar  mais  prudente  deitar-se  em  quan- 
to as  outras  se  aviavam. 

O  moleiro  dava  assim  a  modo  d'umas  lembran- 
ças de  Napoleão  dictando  ao  mesmo  tempo  a  dois 
secretários. 

«Paliaste,  Bartholomeu  !  —  replicou  o  prior  — 
Novidade  ,  e  grande  !  Ha  quarenta  annos  que  sou 
parocho  desta  freguezia,  e  é  a  primeira  vez  que  tal 
me  succede.  É  negocio  intrincado  e  quero  ouvir  o 
leu  conselho  porque  tens  caixa  para  as  cousas.  Ra- 
pazes —  accrescenlou  dirigindo-se  aos  moços  do 
moinho  —  safa  daqui,  que  tenho  que  dizer  ao  pa- 
trão em  particular. » 

«  Rua  !  —  grilou  o  moleiro  correndo  com  força 
ambss  as  mãos  pelo  colete  e  pelos  calções,  de  que 
sahiu  um  nevoeiro  de  farinha.  —  Entre  vossenho- 
ria. » 

O  prior  entrou  ,  e  foi  assent.ir-se  n'uma  tripeça 
que  estava  a  um  canto:  Bartholomeu  assenlou-se 
sobre  ura  sacco  de  trigo  defronte  delle  .  Os  dois  ve- 
lhos mediram-se  com  os  olhos  por  momentos  ,  co- 
mo se  cada  um  delles  tentasse  ler  no  roslo  do  ou- 
tro os  pensamentos  que  lhe  vagavam  na  alma.  A 
primeira  idéa  que  occorreu  ao  moleiro  foi  a  d'algu- 
ma  festa  que  o  parocho  perleodia  fazer ,  e  para 
que  lhe  vinha  pedir  dinheiro.  Batia-lhe  o  coração 
com  violência  ,  e  já  imaginava  trinta  mentiras  para 
evitar  essa  calamidade. 

«Homem,  —  disse  por  Cm  o  prior  —  tenho  em 
minha  mão  uma  somma  avultada  —  mais  de  qui- 
nhentos mil  réis  [o  moleiro  estendeu  o  pescoço]  : 
pertencem  a  um  devoto  ,  que  os  quer  dar  em  dote 
a  uma  rapariga  pobre  desta  freguezia.  Encarreguei- 


390 


O   PANORAMA. 


me  do  negocio,  e  deitei  as  minhas  linhas  para  dar 
no  vinte.  Mas  temo  não  acertar,  e  venho  l)ater 
comtigo.  És  honrado,  meu  Bartholomeii ,  postoque 
um  tanto  sovina  —  fallo-te  com   o  coração  nas  mãos 

—  e ) 

«Isso  c  o  que  dizem  porahi  essas  lingnas  perver- 
sas —  interrompeu  o  moleiro  fazcndo-se  vermelho 
de  cólera  ; — essas  mandrionas  de  soalheiro  ,  por- 
que lhe  não  metto  no  handulho  o  meu  remédio.  Os 
diahos  me  ....  1) 


«  Tá  ,  lá 


■acudiu  o  prior.  —  Ajustaremos  con- 


tas na  desobriga.  Vamos  agora  ao  que  serve.  Sem 
refolhos:  a  quem  te  parece  que  dêmos  este  dote? 
Parafusa  lá. » 

O  moleiro  poz-se  a  scisraar,  alevaulando  os  olhos 
para  o  tecto,  estendendo  e  revirando  a  mandibula 
inferior,  e  batendo  de  quando  em  quando  na  lesta. 

ISada. .  .  .  a  Genoveva  daThcrczn  não  :  «disse  por 
fim  —  lai  mâi ,  lai  filha.  Aquella  está  arrumada.» 

«Nem  pensar  nisso  ébom:  retrucou  o  prior.  Li- 
Icra  nós  domine.  Anda  ,  vê  se  atinas.» 

«A  Clara  da  fonte  também  não  . .» 

nUhm! — rosnou  o  clérigo,  abanando  a  cabeça. 

«A  Catharina  Carriça  menos.  Ileim? 

«Tó  carapuça!  Ahi  vai  já  I  Fundia-me  o  dote 
em  menos  d'umanno  com  tafularias  tolas.  Adiante.» 

O  leitor  pôde  prever  que  o  Bartholomeu  da  Ven- 
tosa e  o  seu  parocho  estavam  no  caso  de  duas  li- 
nhas paralellas,  que  prolongando-se  indefinidamen- 
te nunca  podem  cncontrar-se  :  o  pensamento  do 
prior  dirigia-se  a  Bernardina,  e  o  moleiro  já  linha 
aíTastado  por  Ires  vezes  do  espirito  essa  lembrança 
como  uma  idéa  importuna. 

Eu  —  disse  este  finalmente,  coçando  na  cabeça 
—  linha  cá  uma  idéa  . .  .  mas  não  sei.  .  .  Não  digo 
nada  .  .  .  Acabou-se.  » 

«Desembuxa  lá,  homem  !  Foi  para  te  ouvir  que 
■vim  aqui. » 

«Eiilão  sempre  lho  direi.  Minha  sobrinha  Joan- 
na  é  ura  anjo.  Boa  rapariga!  —  famosa  rapariga  I 
ileu  irmão  Barnabé  não  pede  esmola  —  é  verdade; 
mas  anda  atrapalhadote.  O  cazal  dos  caniços  arra- 
zou-o  esteanno:  —  deve-me  já  vinte  moedas,  e » 

O  prior  cortou-ihc  o  cnthusiasmo  pelos  seus  pa- 
rentes com  uma  gargalhada  estrondosa.  O  moleiro 
ficou  de  boca  aberta  no  meio  daquelle  destampatório. 

«Oh  ,  oh  ,  oh  !  querias  que  o  meu  dote  servisse 
para  pagar  as  tuas  vinte  moedas?! — Não  é  assim?» 
E  voltando  immediatamcnte  ao  seu  serio,  prose- 
guiu  :  «Bartholomeu! — Bartholomeu!  Por  causa  da 
iniquidade  da  sua  avareza  me  irti ,  c  o  feri :  diz  o 
prophcta.  A  cubica  que  te  cega  ha-de  baldcar-te 
no  inferno,  como  tu  baldèns  alli  para  a  ribanceira 
as  mós  que  já  não  prestam.  Queres  mentir  á  tua 
consciência  ,  enganar  o  teu  pastor,  qnando  clle  te 
Yem  pedir  que  o  aconselhes?  Isto  não  ó  bonito  , 
Bartholomeu  !  —  Não  é  bonito  !  » 

«Mas  ,  padre  prior  ...-.» 

«Qual  mas,  nem  meio  mas!  Dcixemo-nos  d'his- 
torias.  Bem  diz  o  ditado:  Fui  a  casa  da  visinha 
envergonhei  me  ;  vim  á  minha  rcmcdiei-mc.  O  me- 
lhor é  seguir  a  primeira  len)brança.» 

«Então,  se  vossenhoria  já  tinha  posto  o  dedo....» 

Tinha,    tinha!  —  retrucou  o  prior: — queria  só 

Ter   se   lu  concordavas  comigo;    mas  sacas-le  com 

uma  caturrice   de  fazer   arripiar.   Não  temos   feito 

nada  ,  meu  Bartholomeu  :  não  temos  feito  nada  !» 

E  dizendo  e  fazendo,  o  clérigo  erguia-se  como 
para  sahir. 

«Pois  diga  vossenhoria  —  acudiu  o  moleiro  ain- 


da atrapalhado  com  orevcrtere :  —  e  enforcado  mor- 
ra eu  se  ...  » 

Não  praguejes  homem  !  —  Ahi  vai  !  —  Quem  ha- 
de  apanhar  o  dote  é  a  Bernardina  d'ao  pé  do  rio...» 

A  historia  das  saccas  era  espinha  que  ainda  lhe 
estava  atravessada  na  garganta.  Ouvindo  tal  nome, 
o  velho  não  pôde  conler-sc  : 

«Quem?  —  a  cara  de  fuinha  da  filha  de  Perpe- 
tua U(]sa  ?  O  padre  prior  está  brincando.  Olha  as 
lesmas  !  Tmiis  desmaseladas,  e  caloteiras  !  Isso  nas 
unhas  da  mâi  era  fogo  viste,  linguiça.  Terçaãs  me 
matem  ...» 

«  Espera  ,  homem  ,  espera  I  —  Não  é  isso  o  que 
se  diz  na  aldeia.  Tu  tensosga  ás  pobres  mulheres  e 
cega-te  a  paixão.  Desmaseladas?!  Basta  olhar  pa- 
ra ellas  ;  como  andam  limpas  na  sua  miséria.  Ca- 
loteiras? coitadinhas!  É  porque  não  tem  com  que 
pagar  ao  Agostinho  da  lenda?  Pagar-lhe-hão  agora. 
Quinhentos  mil  réis  ainda  ficam  livres  ,  e  Bernar- 
dina ha-de  com  elles  achar  um  bom  casamento.  » 

Em  quanto  o  prior  fallava  ,  uma  idéa  bemavcn- 
lurada  illiiminára  subitamente  a  alma  do  moleiro. 
As  suas  Ires  saccas  podiam  não  estar  perdidas  de 
todo;  podiam  voltar  melhoradas  <no  moinho.  Sentiu 
a  cólera  desvanecer-se-lhe  como  a  nuvem  negra 
que  varre  a  brisa  do  norte. 

o  È  verdade  que  a  gente  ás  vezes  lera  cá  as  suas 
birras  :  —  disse  elle  com  certo  ar  que  queria  ser 
fino  e  sabia  parvo  —  cega-se  com  as  pessoas!  Vos- 
senhoria bem  sabe  o  que  faz  :  dè  o  dote  a  quem 
quizer,  que  diante  de  mim  ninguém  ha-de  tugir 
nem  mugir  contra  vossenhoria.» 

«Pois  bem  ! —  proseguiu  o  prior.  —  Esta  lebre 
está  corrida.  Resta  achar  um  noivo  para  Bernardi- 
na. Isso  é  bico  d'obra  que  requer  escolha  c  siso. 
Pensa  no  caso,  Bartholomeu  '  —  vamos  a  ver  se  acer- 
tas melhor  desta  vez.  Agora  outra  cousa.  Tu  és  ca- 
paz :  tens  sabido  guardar  o  teu  dinheiro  ;  saberás 
guardar  o  alheio.  Eu  para  isso  não  i)resto  :  sou  ura 
mãos-rotas.  Aqui  te  deixo  setenta  louras,  que  a 
seu  tempo  se  hão-de  entregar  a  quem  locarem.  In- 
cumbes-te  disto?» 

«Vossenhoria  manda:  respondeu  o  moleiro,  cu- 
jos olhos  brilharam  com  o  fulgor  devorante  da  ava- 
reza ao  ver  rolar  as  peças  ,  que  o  prior  tivera  a 
cautella  de  desembrulhar,  sobre  a  grande  arca  das 
maquias.  O  velho  parocho  usava  d'uma  giria  de 
satanaz  para  fazer  uma  obra  de  Deus." 

E  despedindo-se  de  Bartholomeu  sahiu.  O  molei- 
ro ficou  em  pé  e  immovel.  Estava,  mal  compara- 
do, como  o  asno  de  Buridau  entre  as  duas  medi- 
das iguaes  de  cevada  :  nem  se  podia  afastar  do  ou- 
ro ,  nem  ousava  faltar  á  cortezia  devida  ao  padre 
prior.  A  final  por  um  movimento  sublime  de  ener- 
gia moral  correu  pela  porta  fora  atraz  delle  que  já 
ia  a  certa  distancia. —  Neste  correr  parecia-lhe  sen- 
tir estalar  o  que  quer  que  era  dentro  do  coração. 

«Se  vossenhoria  é  servido  do  nosso  almoço  — 
bradava  o  mtileiro  —  não  tarda  ahi  um  credo.  Po- 
bre mas  de  boamente.» 

«  Obrigado  !  obrigado  !  — respondeu  o  prior  sem  se 
voltar,  brandindo  para  traz  a  bcngalla  como  quem 
dizia  adeus.  E  pensava  lácomsigo  :  «Fora,  miserá- 
vel sovina  ! » 

Apenas  o  bom  do  clérigo  dobrara  a  quina  do  mu- 
ro de  uma  quinta  que  se  dilatava  desde  a  encosta 
até  a  baixa  do  rio,  Iruz  !  .  .  .  com  quem  havia  d'el- 
le  dar  de  rosto?  —  Com  o  Manuel  da  Ventosa  ,  de 
espingarda  ao  hombro  ,  rede  ás  costas  ,  chumbeira 
e  polvarinho  a  tiracolo.  O  saloio  Dcou  embaçado. 


o  PANORAMA. 


391 


«Com  qiic,  sim  senhor!  Jávocò  por  aqui  me  np- 
parccc  a  estas  horas  —  disse  o  prior  com  um  geslo 
folgado  que  forcejava  por  ser  colérico.  —  lloiín?" 

«t  verdade,  padre  prior]  .  .  .  Eatrcler  ura  boca- 
do. .. .  A  manhaã  estava  boa.» 

K  Pois  não  !  —  Aos  pardács.  .  .  bem  sei !  Ora  cor- 
le-mc  para  casa,  e  vá  ajudar  seu  pai  —  o  pobre  ve- 
lho, que  lá  anda  lidando  .  .  .  .  e  você  feito  caçador 
das  dnzias  .  .  .  caçador  !  Pensava  agora  o  sonso  que 
me  eng.mava  !  Vamos  marchando  I  » 

Deu  alguns  passos  para  diante  em  quanto  o  Ma- 
nuel da  Ventosa  fazia  o  mesmo  em  sentido  contra- 
rio :  —  Depois  vollou-se  de  repente  :  o  saloio  tam- 
bém parara  a  olhar  para  traz. 

«Olé.  —  Escuta  cá,  Manuel!»  O  Manuel  appro- 
ximou-sc. 

«Depois  d'amanhaã  é  necessário  que  você  se  bote 
aos  pés  de  seu  pai  ,  que  lhe  conte  a  boa  obra  que 
fez,  e  que  lhe  peça  licença  para  casar  cora  IJernar- 
dina.  ...» 

«Pelo  amor  de  Deus,  padre  prior  ! — interrom- 
peu o  triste  do  rapaz  cheio  de  susto.  «Cora  os  liga- 
dos delle  põe-rae  os  ossos  n'um  feixe.» 

«Não  se  perdia  nada:  acudiu  o  velho.  3ías  não 
é  anno  de  fortuna.  Era  melhor  que  se  tivesse  lem- 
brado a  horas.  Faça  o  que  lho  digo,  que  não  lhe 
ha-de  succcder  mal  nenhum  !  Uespundo  por  isso. 
Está  dito?» 

«  Se  vossenhoria  entende  ?! > 

«Entendo,  sim  senhor.  A  paschoa  não  tarda;  e 
passada  a  quaresma  você  ha-de  receber-se.  Mas 
disto,  nem  palavra!  —  E  corte!»  — 

O  tora  com  que  o  parocho  proferiu  estas  pala- 
vras deu  uma  alma  nova  ao  Manuel  da  Ventosa. 
Imaginou  logo  que  o  padre  prior  tinha  a|)lanado  o 
negocio.  Xão  sabia  se  risse  ou  chorasse.  Inslincti- 
vamenle  agarrou  a  mão  do  clérigo  e  bcijou-a.  A 
sua  gratidão  era  sincera.  O  padre  prior  sentia  pal- 
pitar esse  vivo  sentimento  naquellas  mãos  callosas 
que  apertavam  a  sua  mão  enrugada  ,  naquelles  lá- 
bios ardeiilcs  que  pareciam  devora-la.  Conheceu 
que  estava  arriscado  a  dcslisar  da  habitual  severi- 
dade, e  aflastando  rapidamente,  bradou  comvozas- 
pera  ,  mas  alguma  cousa  tremula  :  «Deixa-me,  pa- 
teta ! —  Deixa-me! — e  Deus  te  allumie  para  que 
seja  esta  a  ultima  das  tuas  rapaziadas.» 

Fez  bera  em  a!ongar-se  : — duas  lagrymas  lhe  ro- 
lavam pelas  faces  abaixo. 

Naquelle  dia  a  tia  Jeronima  chegou  a  desconfiar 
de  que  o  padre  prior  tinha  a  bola  desarranjada. 
Toda  a  manhaã  não  fez  senão  cantarolar  ora  um 
pedaço  do  Tanlwn  ergo,  logo  um  trecho  do  Tc  Dcum 
Laudamus ,  e  assim  por  diante.  Até  andou  por  mais 
de  meia  hora  a  brincar  com  o  gato  do  presbyterio. 
E  para  resumir  em  poucas  palavras  a  extravagân- 
cia de  que  parecia  possuido  baste  dizer  queaodes- 
calçar-se  arrumou  os  çapalos  para  um  canlo  ,  e  de- 
pois de  ter  lido  ura  capitulo  da  chronica  de  Cister, 
pela  primeira  vez  da  sua  vida  metteu  na  estante 
essa  espécie  de  Carlos-Magno  monástico  sem  o  pôr 
de  pernas  ao  ar.  Aquelle  coração  sentia  dilatar-se 
na  santa  paz  do  Senhor. 

E  porque  não  cabia  o  bom  do  padre  na  pelle  ? 
Porque  tinha  feito  felizes  duas  creaturinhas  sacrifi- 
cando-lhes  as  suas  economias  de  quarenta  annos. — 
Elle  achava  isso  uma  cousa  naturalissima  ;  mas  a 
Providencia  dava-lhe  uma  parle  da  sua  recompensa 
nessa  alegria  suave  e  intima  que  nunca  pude  en- 
trar nos  palácios  dos  grandes  c  poderosos  do  mun- 
do ;   porque  é  o  premio ,  não  do  beneficio  insolente 


da  opulência  ,   mas  da  abDegação  caridosa  da  hu- 
mildade. 

O  padre  prior  linha  tido  tempo  de  estudar  indi- 
vidualmente o  caracter  dos  seus  freguezcs  ,  e  por 
isso  seguira  aqucUo  caminho  para  chegar  ao  lim 
moral  que  se  prnpozcra.  De  feito  o  velho  moleiro 
andou  abstracto  todo  o  dia.  Pois  de  noite?  —  Não 
pregou  olho!  Ás  escuras  via  diante  dos  olhos  as 
setenta  peças  a  reluzirem  como  uma  visão  ao  mes- 
mo tempo  celeste  c  infernal.  Depois  naquellas  ho- 
ras longas  d'ii)somnia  punha-se  a  calcular  a  acção 
prodigiosa  que  ellas  teriam  encorporadas  com  mais 
de  outras  tantas  que  elle  tinha  enterradas.  Era  o 
que  bastava  para  dar  o  harmonioso  cpilheto  de  mi- 
nha á  azenha  do  Ignacio  Codcço  ,  e  por  lá  o  seu 
Manuel  a  labutar,  e  a  ganhar  dinheiro — muito  di- 
nheiro—  c  elle  a  tomar-lhe  contas  ao  sabba<lo  :  — 
meia  moeda —  uma  moeda....  duas  moedas  ;  e  a  pi- 
lha-lo cm  uma  gaziva  de  seis  vinténs;  e  despertava 
daquella  espécie  d'extasi  ao  atirar-lhe  o  [irimeiro 
pontapé.  Era  um  regalo!  ília  ás  vezes  ao  lembrar- 
se  de  uma  que  elle  havia  de  pregar  no  outro  dia 
ao  Agostinho  da  tenda.  Essa  estava  segura,  la-lhe 
comprar  o  créto  da  Perpetua  Rosa  por  metade  ;  por 
um  terço,  talvez.  —  «Oh  sô  Agostinho,  você  não  vê 
que  isso  o  dinheiro  perdido?  —  Cinco  mil  réis  I 
seis  mil  réis! — Vamos;  é  minha  a  divida.»  Etri- 
pudiava  na  cama  ,  e  assentava-se  lançando  mão  dos 
calções,  para  ir,  para  correr,  para  voar  antes  que 
algum  dialio  [pensava  elle]  fosse  raettcr  no  bico  ao 
usurário  do  tendeiro  a  mudança  de  fortuna  de  Ber- 
nardina.  Chegava  a  enfiar  os  calções  naquelle  fer- 
vor ,  mas  recahia  na  cama  ao  ver  ,  ou  antes  ao  não 
ver,  que  era  escuro  como  breu.  Momentos  havia 
em  que  as  suas  idéas  tomavam  outro  curso  :  repre- 
senlava-se-lhe  seu  irmão  Darnabé  a  largar-lhe  o  ca- 
sal dos  Caniços  pelas  vinte  moedas  e  por  mais  umas 
trinta  peças  com  que  o  engodava  ;  e  elle  a  fazer  es- 
trumar as  terras,  ealqueivar,  e  lavrar,  e  semear,  e 
mondar,  e  ceifar  e  ter  na  eira  uma  serra  de  trigo 
durazio  ,  e  achar  uma  excommungada  d'uma  velha 
pediuchona  a  fiirtar-lhe  á  sorrelfa  uma  abada  da- 
quelle  grande  trigo  ,  e  elle  a  desanca-la  com  uma 
tranca.  E  sabia  desse  pezadello  de  homem  acorda- 
do a  ranger  os  dentes,  e  com  a  mão  agarrada  á 
maçaneta  do  catre.  Dahi  a  pouco  vinha-lhe  outra 
enfiada  de  imaginações  —  e  dahi  outra  —  e  outra  , 
até  que  por  fim  a  idéa  de  que  as  setenta  peças  eram 
suas  lhe  ficava  por  tal  modo  encravada  e  enraizada 
na  alma  ,  que  o  arrancar-lha  de  lá  seria  o  mesmo 
que  metter-lhe  no  bucho  uma  apoplexia.  Então  pu- 
nha-se a  scismar  no  pensamento  ca|iilal  c  gerador 
de  todas  essas  imagens  bemavcnturadas  que  lhe  lu- 
ziam no  olho:  —  o  como  chamaria  á  muxila  as  se- 
tenta do  dote.  Abafa-las?  Nega-las  ao  prior?  Es- 
tremeceu horrorisado  ;  porque  Bartholomeu  era  ho- 
mem de  probidade  —  o  seu  modo,  que,  sem  mali- 
cia  seja  dito,  vinha  a  ser  ura  modo  como  o  de  tan- 
tos homens  honrados  que  todos  nós  conhecemos. 
Nada  !  Era  preciso  um  meio  natural  ,  decente  ,  Ic- 
gilimo  de  arranjar  o  negocio.  Cahiu  então  no  que 
o  prior  queria  que  elle  cahisse.  —  Casou  in  mente 
o  seu  Manuel  com  a  Bernardina.  Feito  isto,  as  pe- 
ças eram  suas  —  suas  porque  o  Manuel  pellava-se 
de  medo  delle,  e  casado  ou  solteiro  lhe  havia  de 
ficar  sempre  debaixo  dos  cabeções.  Assentado  este 
ponto  ,  o  moleiro  sentia  um  certo  refrigério  interior 
que  o  consolava.  Não  tardou  a  adormecer  no  som- 
no  do  justo  ,  e  cm  seus  plácidos  sonhos  balouçou- 
se  todo  o  resto  da  noite  entre  a  azenha  do  Ignacio 


392 


O  PANORAMA. 


Codeço  e  o  casal  de  seu  irmão  Barnal)é.  Saliia  ás 
vezes  desta  hesitação  beatifica  sonhando  no  gatazio 
que  ia  pregar  ao  Agostinho,  e  ria  com  um  rir  de 
innocencia.  Era  um  santo  velho  aquelle  Barlholo- 
meu  da  Ventosa! 

O  leitor  deve  estar  já  sullicientemente  aborreci- 
do da  tão  comprida  historia  do  moleiro  ,  da  lava- 
veira  e  do  prior  ;  por  isso  não  o  farei  asislir  ás  ex- 
plicações entre  o  pai  e  o  filho,  ftíais  repousado  o 
sangue  com  o  dormir  ,  Bartholoraeu  rellectiu  pela 
manhaã  que  o  propor  ao  parocho  o  seu  Manuel  pa- 
ra noivo  de  Uernardiua  tinha  suas  parecenças  com 
o  haver-lhe  proposto  para  ser  dotada  sua  sobrinha 
Joanna ,  idéa  maldita  que  lhe  tinha  custado  uma 
risada  nas  suas  barbas  e  um  rcvertere  com  texto 
da  Biblia.  Por  outra  parle  pensava  que  Manuel  era 
o  seu  único  herdeiro,  e  que  se  Bernardina  trazia 
para  a  ceia,  elle  levaria  para  o  jantar  —  princípio 
consagrado  pela  philnsophia  saloia  ,  talvez  desde  o 
tempo  dos  mouros,  limfim  o  pai  nestes  vaivéns ,  e 
o  Olho  com  os  receios  que  o  leitor  pôde  imaginar  , 
fizeram  ao  declararem-se  uma  verdadeira  scena  de 
comedia.  Ao  cabo  ,  porem  ,  de  tudo  enlenderara-se. 
Assim  o  padre  prior  ,  á  custa  das  suas  economias 
de  quarenta  annos  ,  leve  a  consolação  de  fazer  três 
sermões  ,  um  a  Bartholomeu  sobre  a  cubica  e  ava- 
reza ,  outro  ao  Manuel  sobre  o  trabalho  ,  sobrieda- 
de ,  c  mais  virtudes  annexas  á  condição  de  pai  de 
familia  ,  outro  finalmente  a  Bernardina  solire  a  ho- 
nestidade ,  modéstia  e  sujeição  das  mulheres  casa- 
das. Depois,  quando  veio  a  paschoa  regalou-se  de 
atar  o  laço  matrimonial  entre  os  dois  amantes,  aca- 
bando por  uma  vez  com  as  interpelações  das  lava- 
deiras ,  com  as  espreitaduras  dos  curiosos  ,  c  com 
as  murmurações  do  beatério.  Custou-lhe  a  brinca- 
deira setenta  peças,  e  o  atirar  á  rua  o  sermão  sobre 
a  avareza  ,  porque  o  Bartholomeu  continuou  a  ser 
sovina  até  a  hora  da  morte  ,  na  qual  piamente  se 
deve  crer  o  catrafillou  o  diabo,  não  só  por  ser  unhas 
de  fome,  mas  por  ter  refinado  a  ponto,  que  perden- 
do a  vergonha  já  começava  a  sizar  nas  maquias  , 
com  escândalo  dos  freguezes,  e  grande  mortilicação 
do  seu  filiio  Manuel. 

Agora  duas  palavras  sobre  a  festa  do  orago  da 
parochia  ,  o  meu  rico  S.  Pantaleão.  O  leitor  viu  o 
padre  prior  caminhando  pela  estrada  dolorosa  da 
moral  evangélica  :  c  necessário  que  o  veja  lambem 
radiante  no  meio  das  pompas  do  culto. 

(Coyitiiiuar-se-haJ. 
(A.  Hercidano). 


Vantagens  da  ração  de  grãos  cosidos  para  o  gado 
cavallar. 

O  CAVALLO  por  sua  natureza  alimenta-se  unicamen- 
te de  substancias  herbáceas.  Este  sustento  é quanto 
lhe  basta  para  as  condições  próprias  de  sua  espécie, 
c  de  seus  hábitos  nativos  :  mas  o  homem  tirou  aquelle 
generoso  animal  do  estado  da  natureza,  e  fazendo-o 
servir  a  seus  usos  e  necessidades,  privou-o  da  liber- 
dade e  o  submetteu  a  trabalhos  penosos,  c  a  seus 
caprichos  e  passatempos.  Com  estas  no\as  exigên- 
cias nasceram  necessidades  c  precisões  novas ,  e 
aqnclla  alimentação  ligeira  c  fraca  da  substancia 
herbácea  não  foi  sullicicnle  ;  indispensável  foi  jun- 
tar-lhc  substancias  de  fécula  ,  que  cm  menor  por- 
ção lhe  dão   maior  vigor  e  mais  avultado  volume 


de  carnes  :  o  Auctor  da  natureza  ,  que  tudo  fez  e 
ordenou  para  o  melhor  commodo  e  serviço  do  ho- 
mem ,  com  admirável  previsão  o  preparou  para  os 
seus  destinos  futuros  ,  provendo-o  de  dentes  mola- 
res, e  aparelho  digestivo  asado  a  mais  forte  alimen- 
tação. 

Avèa  e  cevada  são  os  grãos  quasi  universalmente 
consignados  com  preferencia  a  outros  para  ração 
das  bestas  cavallares.  Este  uso  é  bem  antigo  ,  por- 
que os  heroes  d'Iiomero  davam  já  a  seus  cavallos 
avca  pura,  e  fi'no  sccco :  entretanto  ainda  nisto  ha 
muito  que  modificar;  as  circumslancias  diversas  da 
agricultura  actual ,  os  ensaios  e  experiências  mo- 
dernas podem  rectificar  e  amoldar  a  precisões  e 
misteres  d'agorauma  boa  parte  da  pratica  antiga. 

Em  muitas  partes  os  grãos  são  caros  ,  é  preciso 
encurtar  a  ração  deste  género,  substituindo-a  com 
equivalentes.  Os  francezes  da  Normandia  principal- 
mente ,  que  são  grandes  creadores  de  cavallos  ,  em 
logar  de  uma  parte  da  ração  d'avèa  e  do  uso  or- 
dinário do  feno,  dão  áquelles  animaes  uma  ração  de 
batatas  cosidas.  O  bom  resultado  desta  substitui- 
ção faz  lembrar  que  de  outros  muitos  fructos  e  raí- 
zes, que  abundam  em  algumas  localidades,  se  pode- 
ria tirar  iguacs  vantagens.  O  uso  contínuo,  e  nun- 
ca variado  na  quasi  totalidade  do  anno  entre  nós, 
de  alimentar  as  bestas  cavallares  com  grão  sècco  e 
crú  e  com  palha  de  trigo,  r.ão  pôde  ser  senão  acom- 
panhado de  graves  inconvenientes:  n'um  paiz  quen- 
te ,  como  é  o  nosso  ,  este  alimento  contínuo  e  inva- 
riável não  pôde  deixar  d'escandecer  os  animaes  , 
produzir  tenesmos  e  infianimações  ,  alem  do  fastio 
que  esta  monotonia  [para  assim  nos  explicarmos] 
deve  causar. 

(Conliimar-se-ha). 


Industria  de  uma  avesinha. — O  papa-formigas  é 
um  passarinho  insectivoro,  do  tamanho  e  do  géne- 
ro do  cartaxo  :  busca  o  sustento  por  variados  mo- 
dos ,  seguindo  o  inslincfo  que  lhe  deu  o  Creador  , 
como  aos  demais  viventes  ;  mas  é  sobre  ludo  digno 
de  observação  o  meio  engenhoso  de  que  se  serve  , 
quando  descobre  algum  formigueiro  ,  para  colher 
as  moradoras  delle  ,  que  são  os  insectos  de  que 
mais  especialmente  é  goloso.  Põe-se  na  entrada  do 
formigueiro  de  modo  que  a  tapa  inteiramente  com 
o  corpo  ,  e  as  formigas  alvoraçadas  para  sahir  aco- 
dem de  rondão  á  porta  e  enibaraçam-se  por  entre 
as  pennas  da  ave  :  —  esta  então  toma  o  võo,  e  vai  lar- 
gar n'um  terreirinho  ou  espaço  de  chão  calcado, 
sacudindo  com  força  as  azas,  todo  o  provimen- 
to de  que  se  carregou  :  ahi  está  a  sua  meza  posta  , 
ahi  se  regala  á  vontade  com  o  producto  da  singu- 
lar caçada  :  causa  gosto  observar  a  ligeireza  com 
que  voltando-se  para  quantos  lados  as  formigas  des- 
filam para  escapar  consome  o  banquete  em  poucos 
minutos.  —  Pela  lei  das  compensações  lambera  o 
papa-formigas  é  comido  pelos  caçadores. 


Fonte  medicinal.  —  Em  Alverca  ,  que  dista  pou- 
co desta  capital ,  ha  uma  fonte  do  mesmo  nome  da 
villa  e  próxima  desta,  que  por  uma  grande  bica 
mana  copiosamente:  das  suas  aguas  allirma  cm  seu 
J)icc.  o  P.''  tlardoso  ,  fundando-se  no  testemunho 
dos  moradores  ,  serem  excellentes  contra  o  mal  de 
pedra.  Este  penoso  achaque  é  tãocommum  em  Lis- 
boa que  os  enfermos,  que  tiverem  recursos,  devem 
cxpeiimentar  as  ditas  aguas. 


103 


o  PANORA3IA. 


393 


iifiiiii^iiir 

g&ão-mestBlE  de  mai,ta. 


CAVAILEIRO  T£niFI.ABIO. 


>'o  AN.xo  de  1099  Gerardo  de  Marligues,  primeiro 
reitor  d'ura  hospital,  fundado  anãos  antes  em  Jeru- 
salém, vendo  enriquecida  a  casa,  que  dirigia,  com 
as  liberalidades  de  Godofredo  de  Bullion  ,  genera- 
líssimo do  exercito  dos  cruzados  ,  e  de  outros  se- 
nhores que  de  seu  principe  tomaram  exemplo,  se- 
parou-se  dos  religiosos  de  St.^  Maria-Latina ,  de 
que  era  dependente  ,  para  formar  Ordem  separada  , 
sob  o  nome  de  «irmãos  do  hospital  de  S.  João  de 
Jerusalém.»  Seu  successor  ,  Rajmundo  Dupuy,  co- 
nhecendo o  quanto  as  rendas  do  hospital  excediam 
muito  ao  gasto  cora  os  enfermos  e  orphãos  ,  conce- 
beu a  idéa  de  empregar  as  sobras  em  guerrear  os 
inOeis.  A  este  intento  dividiu  os  seus  hospitaleiros 
em  três  classes  :  os  nobres  ,  que  destinou  á  guerra 
e  a  proteger  os  peregrinos  ;  os  sacerdotes ,  que  en- 
carregou dos  officios  divinos:  e  os  irmãos  serventes, 
que  não  eram  nobres,  e  só  se  ajuntavam  aos  caval- 
leiros  como  auxiliares.  —  Depois  de  perdida  para  o 
domínio  christão  a  cidade  santa  recolheram-se  a  S. 
João  d'.\cre,  que  valentemente  defenderam  até  1:230. 
Dahi  sahiram  para  se  estabelecerem  na  ilha  deP.ho- 
des,  onde  largo  tempo  se  mantiveram  contra  os  com- 
mettimcntos  dos  oltomanos  ,  até  que  a  tomou  Soli- 
mão,  á  frente  de  numerosas  tropas,  contra  as  quaes 
resistiram  os  cavalleiros  por  espaço  de  seis  mezes. 
Vencidos,  algum  tempo  andaram  errantes  cm  quan- 
to lhes  não  concedeu  Carlos  o."  a  ilha  de  Malta  , 
da  qual  a  Ordem  tomou  nome  :  e  finalmente  desta 
mesma  foram  expulsos  no  fim  do  século  passado. 
Dezembro  16 — 1843. 


A  historia  e  prerogativas  desta  Ordem  nobre  e  va- 
lorosa, em  que  brilharam  tão  insignes  cavalleiros  e 
dignatariús  porluguezes  ,  eslá  derramada  por  toda  a 
collecção  de  n.°*  donosso  Jornal ;  (•)  o  que  nos  dis- 
pensa de  a  particularísar  a  propósito  da  precedente 
estampa. 

Nove  fidalgos  dos  que  acompanharam  Godofredo 
á  conquista  da  Terra  Santa  ,  chamaram  a  si  grande 
numero  de  guerreiros  de  generosa  origem  ,  e  alça- 
ram a  milícia,  que  por  façanhns  heróicas  e  estupen- 
das ,  por  inteiro  sacrificio  ao  resgate  e  á  conserva- 
ção do  St.°  Sepulchro,  adquiriu  nome,  que  não  ha- 
de  morrer,  a  despeito  de  perseguições  e  de  algumas 
verdades  duras  intermeadas  com  multidão  de  ca- 
lumnias.  Foi  esta  a  famosa  Ordem  do  Templo  ,  ou 
dos  templários ,  cognominados  também  soldadiis  de 
Christo  ;  approvada  no  concilio  de  Troves  em  1128. 
Esta  Ordem  chegou  atai  auge  de  esplendor  e  pros- 
peridade ,  derramada  pelos  Estados  calholicos  ,  que 
excitou  invejas,  malevoleneias,  e  deu  incentivos  ao 
temor  e  á  cubica  ,  que  não  descançaram  em  quanto 
a  não  destruíram. 

Pelos  annos  de  1147  ,  fins  do  reinado  de  Luiz  o 
gordo  ,  os  templários  fundaram  um  estabelecimento 
em  Paris  na  casa,  que  em  1793  serviu  de  cárcere 
ao  desditoso  Luiz  16.°:  era  alli  que  os  cavalleiros 
de  França  e  d'lnglaterra  faziam  capítulo. — Estava 
dividida  a  Ordem  em  muitos  priorados,  que  depen- 

''•'I     Especialmente  a  paa-.  26  do  toI.  3." 

2.'  Serie.  —  Vol.  II. 


394 


O  PANORAMA. 


diatn  das  commcndas ,   c  todos  reconheciam  a  au- 
ctoridade  do  Grão-ileslre. 

O  poder,  que  a  esta  corporação  religiosa  e  junta- 
mente militar  davam  a  sua  riqueza  e  o  acreditado 
valor  de  seus  cavaliciros  ,  a  fazia  independente  do 
Estado.  Não  reconhecendo  outra  aucloridade  senão 
a  Santa  Sé,  não  tomaia  partido  pelos  reis  de  Fran- 
ça nas  dissensões  destes  com  os  papas  :  intervinha 
a  miúdo  nas  guerras  religiosas;  e  não  é  para  ad- 
mirar que  se  tomasse  pretexto  de  algumas  desor- 
dens particulares  para  involver  toda  aOrdemn'uma 
proscripção  geral. 

Em  1307,  cpocha  do  mor  esplendor  dos  templá- 
rios ,  a  fazenda  publica  de  França  estava  Ião  es- 
liausta  queFilippe  o  formoso  se  linha  soccorrido  ao 
desastroso  recurso  de  alterar  o  valor  da  moeda  ;  e 
tendo-o  obrigado  os  Estados-gcraes  a  pronictler  que 
<T  tornaria  apor  no  mesmo  valor  corrente  no  reinado 
de  Luiz  9.°,  teve  que  faltar  á  real  palavra  e  fazer 
novas  alterações.  Sublevaram-so  então  diflerenlcs 
provincias  ,  entre  ellas  a  Normandia.  Estreitado  o 
monarcha  pela  extrema  penúria  da  Fazenda,  e  pre- 
cisado a  revogar  seus  decretos  lançou  primeiramen- 
te mão  do  espolio  dos  judeus  ,  e  apoz  lho  lembra- 
ram as  riquezas  dos  cavalleiros  do  Templo.  Já  ti- 
nha receios  do  poderio  destes  ,  que  pela  sua  parte 
tiveram  o  desacordo  de  seguir  as  pertcnções  da  ca- 
sa de  Aragão,  e  até  de  concorrer  para  o  triunipho 
que  cila  obteve  sobre  a  casa  de  Anjou.  Daqui  pro- 
cedeu a  prisão  do  Grão-Mestre  e  de  muitos  caval- 
leiros,  cffectuada  em  Paris  aos  12  de  outubro  de 
1307:  occupou-lhes  o  rei  o  palácio,  sequestraram- 
Ihcs  os  bens,  e  igual  procedimento  houve  cno  mes- 
mo dia  em  todas  ascommendas  de  França.  =  O  po- 
vo submisso  inteiramente  nesses  tempos  ao  appara- 
to  religioso ,  não  levaria  a  bem  similhante  provi- 
dencia ,  se  procurassem  justilica-la  só  pela  lasão 
trEslado:  a  pmpria  nobreza  estava  inclinada  a  de- 
fender os  cavalleiros  templários,  em  que  entravam 
muitos  dos  seus: — o  rei  [cousa  até  alli  não  vista] 
convocou  o  povo  de  Paris  para  manifestar-lhe  os 
motivos  que  o  levavam  áquelle  proceder,  e  allegou 
que  a  corporação  eslava  gravemente  accusaila  de 
crimes  hediondos  de  heresia  e  sacrilégio.  É  de  sa- 
ber que  o  povo  soffria  vexações  e  insolências,  que 
muitos  dos  templários  lhe  faziam  era  seus  domí- 
nios. Allegada  causa  tão  poderosa  ,  e  junta  ao  ódio 
dos  populares,  o  effeilo  contra  a  Ordem  estava  pre- 
visto ,  c  não  ha  que  admirar  dos  resultados. 

Nomeou  o  rei  inquiridores  para  formar  processo 
por  lodo  o  reino  aos  cavalleiros  do  Templo  ,  mas 
sem  consultar  a  cúria  romana,  que  se  não  demorou 
em  suspender  os  i)odères  dos  bispos  e  inquisidores. 
]\las  a  firmeza  de  Filippe  obrigou  o  |ia[ia  ,  a  quem 
linha  prezo  [para  assim  dizer]  em  Poiliers,  a  desis- 
tir de  sua  opposição.  Desde  então  foi  perseguida  a 
Ordem  do  Templo  cm  Ioda  a  christandade.  Ainda 
íizeram  mais,  extorquiram  ao  puntiíice  anctorisação 
para  pòr  a  tratos  os  templários  .  alim  de  lhes  ar- 
rancar confissões  ,  que  impossibilitassem  a  sua  jus- 
tificação no  processo.  Muitos  cavalleiros  expiraram 
nos  tormentos  ,  e  muitos  os  supporlaram  com  ex- 
traordinária constância  :  os  que  chegavam  a  confes- 
sar na  violência  dos  tratos  o  que  lhe  diclavam  seus 
verilugos,  logo  se  retractavam  com  vehemencia  e 
propósito  firmo.  Tinham  já  perecido  muitos  caval- 
leiros nas  chammas;  o  grão-mestrc  finava-se  n'um 
calabouço,  por  estar  commeltiilo  o  seu  julgamento 
ao  Saiito-[)adre  ,  que  é  verdade  o  reclamava,  mas 
que   a  final  cansado   de  contestações  cora  o  rei  deu 


commissão  ao  bispo  d'Alha  e  a  dois  cardeaes  ,  os 
quaes  senlencearam  o  grão-mestre  Jacob  Molay  e 
mais  Ires  cavalleiros  a  prisão  perpetua.  Porem  Mo- 
lay havia-se  retractado  das  confissões  que  fizera  nos 
tratos  ;  c  por  isso  o  rei  Filippe  convocou  seu  con- 
selho ,  e  sem  reformar  a  sentença  dos  comraissarios 
do  ponlifice  ,  condemnou  de  seu  motu  próprio  a  se- 
rem queimados  o  grão-mestre  e  outro  cavalleiro  que 
na  retraclação  oimitára.  Ambos  foram  levados  á  fo- 
gueira ,  a  qual  foi  ateada  a  pouco  e  pouco  ,  para 
que  abrasados  a  fogo  lento  tivessem  tempo  de  im- 
plorar perdão  confessando-se  culpados:  todavia  não 
desmentiram  umapice  de  sua  constância,  e  já  quan- 
do os  seus  corpos  semi-queimados  moviam  lastima 
e  horror  protestavam  assim  mesmo  sua  innocencia 
e  a  de  toda  a  Ordem. —  Houve  quem  lhes  guardas- 
se as  cinzas  como  relíquias  de  marlyrcs. 

Muitos  historiadores  referem  que  o  grão-mestre 
antes  d'ex[iirar  bradou:  —  «Clemente,  juiz  iniquo 
e  cruel  ,  emprazo-te  para  compareceres  dentro  era 
quarenta  dias  ante  o  tribunal  de  Deus.»  —  Eaccres- 
ceulam  que  pela  mesma  maneira  emprazára  o  rei 
denlro  do  termo  de  um  anno.  Com  efleilo  o  papa 
Clemente  5.°,  e  o  rei  Filippe  o  formoso  morreram  , 
um  findo  o  mez,  outro  findo  o  anno,  immediatos  ao 
supplicio  dos  templários. 

Jacques  de  Molay  e  o  commendador  de  Norman- 
dia foram  queimados  vivos  u'uma  ilhota  do  Sena, 
junto  ao  silio  onde  hoje  está  a  estatua  de  Henrique 
í."  á  Ponte-nova,  aos  18  de  março  de  1314:  o  pa- 
pa Clemente  5.°  morreu  em  abril  do  mesmo  anno: 
o  rei  Filippe  4.°  morreu  em  Fonlainebleu  do  resul- 
tado de  uma  queda  que  deu  andando  á  caca  ,  aos 
29  denovembro  lambem  do  sobredito  anno  de  1314. 

Para  completar  esla  rara  e  misteriosa  historia  ajun- 
taremos que  Enguerrand  de  Marigny  ,  ministro  de 
Filippe,  e  um  dos  mais  encarniçados  inimigos  dos 
templários,  foi  accusado  de  feitiçaria,  condemnado 
e  justiçado  na  forca  dcMonlfaucon  que  elle  próprio 
havia  mandado  levantar,  padecendo  assim  o  suppli- 
cio de  Aman,  implacável  inimigo  de  Mardocheo  e 
dos  israelitas,  como  nas  Santas  Escripturas  ,  em  o 
livro  d'Eslher,  se  refere. 


ApONTAJIE.NTOS  PAKA   a  niSTOIlIA  DOS  BE.NS  DA  COBÓA 
E  DOS  FORIES. 

IV. 

OiANDO  se  trata  da  classe  popular  no  nosso  paiz  ne- 
idiuns  documenlos  por  cerlo  ofiereccm  interesse 
igual  ao  dessas  cartas  de  communs  ,  que  organisan- 
do-a  lhe  davam  uma  existência  politica;  —  que  na 
realidade  a  convertiam  n'um  elemento  social.  Lá 
está  a  origem  da  energia  sempre  crescente  do  ter- 
ceiro estado  :  lá  foi  lançada  á  terra  a  semcnlinha 
impalpável  ,  que  nascendo  e  vegetando  no  meio  das 
procellas  humanas,  das  transformações  da  nação, 
produziu  no  fim  de  seis  séculos  a  arvore  robusta  da 
liberdade.  Os  pergaminhos,  tostados  pelo  tempo,  nos 
quaes  foram  escriplos  n'uma  linguagem  sempre  bar- 
bara ,  c  ás  vezes  inintelligivel ,  os  foros  do  homem 
de  trabalho  ,  são  um  dos  mais  santos  monumentos 
da  palria  ;  são  os  nossos  brazões  —  de  nós  filhos  do 
povo  —  são  os  nossos  livros  de  linhagens.  Poderosos 
e  nobres  hoje  ,  porque  hoje  o  trabalho  é  —  deve-o 
ser  pelo  menos  —  a  primeira  nobreza,  cumpre-nos 
estuda-los  com  sincera  vontade.  Alais  de  um  titulo 
de  direitos  perdidos  ,  mais  de  nnia  prova  da  justi- 
ça com  que  revindicámos  outros,  ahi  os  havemos  de 


o   PANORAMA. 


39' 


encontrar;  e  sobretudo  achar  as  dividas  politicas 
que  nossos  avós  conlrahiram  ,  c  as  injurias  que  re- 
ceberam ; — as  [jrinieiras  para  aspagarnios  poiíUiai- 
menU- ,  porque  as  gerações  populares  formam  um 
inríividiu)  só,  solidário  comsigo  mesmo  na  succcs- 
são  dos  tempos;  as  segundas  —  para  as  vingarmos? 

—  Não  ;  porque  o  povo  é  forlc  ,  c  o  forte  deve  ser 
generoso;  mas  para  justificarmos  as  nossas  obras  , 
mal  interpretadas  ;is  vezes  |)ela  cegueira  de  hones- 
ta ignorância  ,  outras  vezes  pelas  preoceuparões  vo- 
luntárias de  um  egoisnio  interessado. 

O  estudo  da  indolc  dos  concelhos  na  sua  infân- 
cia e  juventude,  iilil  c  moral  á  luz  que  aponl.imos, 
é  afora  isso  innocente.  As  suas  resistências,  as  suas 
luetas  ,  a  arção  politica  exercitada  por  elles  —  tu- 
do isso  é  cousa  morta  ;  é  historia.  Como  os  mostei- 
ros—  que  foram  por  muito  tempo  [permitla-se-nos 
a  expressão]  os  mnnicipios  da  sociedade  intellectual 

—  o  grande  instrumento  do  progresso  e  da  ordem 
no  mundo  das  idéas  —  assim  o  antigo  concilium  de 
nossos  avós  passou  ;  porque  ,  bem  como  os  mostei- 
ros ,  deixou  de  ler  um  valor  social,  lintre  a  natu- 
reza do  concelho  moderno,  limitado  na  sua  curta 
acção  administrativa  ,  e  a  dos  municipios  fundados 
nos  primeiros  tempos  da  monarchia  ,  as  relações 
que  existem  pouco  alem  passara  da  identidade  do 
nome.  Crisálida  da  liberdade,  ella  os  despedaçou 
ao  voar,  cheia  de  vida  e  rica  de  esperanças,  pela 
face  da  terra.  Os  foros  do  homem  livre  ,  que  ou- 
lr'ora  tinham  uma  existência  de  privilegio  —  a  exis- 
tência municipal  —  cujo  caracter  era  a  exclusão, 
o  ciúme,  e  a  guerra  ,  não  só  contra  as  altas  classes 
que  podiam  quebrar  aquelles  foros  e  annullar  esta 
existência  ,  mas  contra  as  outras  aggregaçues  poli- 
ticas análogas,  tudo  isso  se  converteu  de  privile- 
gio cm  direito  ,  de  vida  politica  local  em  liijordade 
geral,  de  conQicto  de  interesses  municipaes  em  uni- 
dade e  harmonia  de  interesses  communs.  Depois 
dessa  transformação,  o  concelho,  como  a  idade  me- 
dia o  concebera  e  creára  ,  seria  uma  monstruosida- 
de impossível  ,  e  aquelles  que  imaginassem  resti- 
tuir-lhe  asattribuições,  ou  ainda  uma  pequena  par- 
te da  importância  que  outr'ora  teve,  deveriam,  pa- 
ra serem  lógicos  e  dar-lhe  uma  significação  ,  resta- 
belecerem as  formulas  feudaes  ou  barbaras  que  pe- 
la sua  juxla-posição  lhe  traziam  cór,  vida  ,  relevo, 
e  valor  social. 

A"iraos  a  sociedade  portugueza  ,  desenvolvendo-se 
logo  na  sua  origem,  fora  das  condições  communs 
das  outras  sociedades  nos  séculos  12.°  e  13.°:  vi- 
mo-la fugir  nas  relações  mutuas  das  diversas  clas- 
ses ,  e  principalmente  nas  destas  com  orei,  das 
normas  feudaes.  Qual  foi  a  causa  deste  phenome- 
no?  A  mesma  que  produziu  uma  situação  análoga 
era  Leão  e  Casíeila.  Desenvolve-la  e  demonstra-la 
não  cabe  aqui  :  pertence  a  um  trabalho  mais  vasto. 
Basta  que  digamos,  que  essa  causa  foi  a  tradição 
visigolhica  nunca  apagada  na  Hespauha  ,  e  que  es- 
ta tradição  não  era  feudal  :  porque  a  invasão  dos 
árabes  no  principio  do  8.°  século  não  deu  tempo  a 
que  o  systema  beneficiário  se  transformasse  em  feu- 
dalismo na  Península  ,  como  se  transformou  no  res- 
to da  Europa  romano-germanica.  Nisto  exclusiva- 
mente esta  o  motivo  do  excepcional  que  ofierece  a 
Índole  da  primitiva  sociedade  portugueza. 

5Ias  ficou  a  Hespanha  central  c  occídental,  o  so- 
bretudo aquella  porção  de  território  que  nos  res- 
peita em  particular ,  exempta  das  infiucncias  da 
fendalidade?  Não  por  certo:  não  era  possível.  As 
relações  com  as  populações  dos  estados  dalém  dos 


Pyrcncus  tinham  pouco  a  pouco  crescido  na  monar- 
chia Iconeza  :  no  tempo  deAffonso  (i.°  os  laços  mú- 
tuos das  duas  sociedades  hcspanhiila  c  franciza  apcr- 
laram-se  muito  mais.  J£ste  celebre  príncipe  vivia 
rodeado  de  cavallciros  ullramonlanos :  os  bispados 
e  cabidos  d'llespanha  enchoram-se  d'homens  de 
raça  gallo-franra  ou  educados  naqucUas  parles.  lia 
até  fundamenlos  para  crer  que  algum  dos  dialectos 
da  França  meridional  chegou  a  ser  a  língua  faltada 
na  corte  de  Tidedo.  Cluni  cnviou-nos  os  seus  mon- 
ges ,  c  introduziu  entre  nós  as  idcas  d'independcn- 
cia  absoluta  do  clero  ,  e  ,  o  que  mais  c  ,  teve  força 
para  alterar  as  formulas  do  culto  com  a  mudança 
do  rito  godo.  Os  territórios  dados  a  governar  ao 
conde  Henrique  não  foram  os  mais  mal-quinhoados 
nesta  espécie  d'invasâo:  todos  sabem  que  o  próprio 
conde  era  daqucllas  partes  ,  e  que  muitos  seus  na- 
turaes  o  seguiram  aqui.  No  reinado  de  seu  filho  a 
infiucncia  gallo-franca  c  quasi  a  mesma  ,  e  accres- 
centam-se-lhc  as  infiucncias  de  outros  povos  do  nor- 
te. Os  cruzados  ,  que  .  tocando  nos  nossos  portos  ao 
seguirem  para  a  Palestina,  o  ajudaram,  e  a  D.San- 
cho 1.°  a  conquistar  as  grandes  povoações  dos  ára- 
bes, cá  nos  deixavam  por  via  de  regra  cavallciros 
niitaveis  ,  clérigos  ,  e  até  colónias  dos  povos  d'aleni 
dos  Pyrenéus.  Todos  estes  elementos  nos  traziam 
sementes  de  feudalismo,  e  o  terreno  eslava  prepa- 
rado ,  até  certo  ponto  ,  para  o  receber  ;  porque  das 
causas  que  o  tinham  feito  nascer  e  consolidar-se 
muitas  existiam  entre  nós.  Assim  a  feudalidade, 
sem  poder  penetrar  no  cerne  da  arvore  social,  der- 
ramou-se  ,  todavia,  pelo  alburno.  A  ídéa  dos  feu- 
dos generalísou-sc  na  Galiza  e  em  Portugal  ,  como 
hoje  vemos  generalisarem-se  entre  nós  idéas  pere- 
grinas ,  em  politica  ,  em  administração  ,  em  littera- 
lura,  de  um  modo  nebuloso  e  confuso.  Não  faltam 
provas  de  se  dar  o  titulo  de  feudo  até  a  simples 
concessões  vitalícias  do  uso-fructo  de  certas  pro- 
priedades :  e  se  nos  deixarmos  levar  pelo  soido  de 
muitas  formulas,  phrases  .  e  palavras  dos  antigos 
monumentos,  e  ainda  por  alguns  costumes  locaes  , 
c  instituições  secundarias,  nesses  obscuros  tempos 
a  nação  tomará  muitas  vezes  a  nossos  olhos  o  aspe- 
cto de  uma  sociedade  feudal. 

Se  o  feudalismo  não  fosse  ,  pezados  os  seus  bens 
e  os  seus  males  ,  uma  conveniência  ,  ou  antes  nma 
necessidade  ,  ao  menos  para  as  classes  mais  fortes 
e  poderosas  ,  os  elementos  de  destruição  que  elle 
continha  em  si  próprio  não  o  teriam  deixado  vin- 
gar ,  ou  té-lo-hiam  dissolvido  rapidamente.  Assim 
a  nossa  fidalguia,  que  lhe  palpava  as  vantagens,  ac- 
ceitou-o  por  ura  lado,  ao  passo  que  se  atinha  por 
outro  ás  tradições  nacionaes.  Tudo  o  que  no  feuda- 
lismo lhe  podia  ser  utíl  em  relação  ás  classes  infe- 
riores buscou  enxerta-lo  na  arvore  visigothica  ;  tu- 
do o  que  a  podia  constranger  ,  ou  entre  si  ou  em 
relação  ao  poder  supremo  ,  regeitou-o  abraçando-se 
aos  foros  antigos.  Sem  idéas  fixas  o  definidas  a  si- 
milhante  respeito,  o  tacto  da  própria  utilidade  a 
guiava  para  acolher  ou  repellír  as  instituições  feu- 
daes. Tal  nos  parece  a  luz  a  que  de\emos  ver  o 
primeiro  período  da  nossa  historia:  com  ella  achá- 
mos um  fio  no  meio  do  labyrintho  de  direitos  e  de- 
veres recíprocos  e  de  condições  diversas  de  pro- 
priedade ,  que  se  podem  deduzir  dos  documentos  : 
esses  direitos,  deveres,  e  condições  nutam  entre  os 
costumes  domésticos  e  os  usos  peregrinos,  —  a  in- 
novação  triumpha  quasi  sempre  da  tradição  em  tu- 
do o  que,  por  assim  dizer,  não  muda  a  essência 
do  corpo   politico.   Os  elementos  que  devem   Irans- 


396 


O  PANORAMA. 


formar  essa  essência  são  a  jurisprudência  canóni- 
ca ,  e  a  jurisprudência  romaua  :  a  primeira  ,  puslo- 
que  já  enérgica,  limita  quasi  unicamente  a  sua  ac- 
çiio  a  fortificar  o  clero  :  a  segunda,  que  bade  vir  a 
ser  a  panóplia  da  monarchia  ,  encobre-se  ainda  de- 
baixo do  manto  negro  desses  personagens  grave- 
mente sinistros,  que  ousam  assenlar-se  na  cúria  do 
rei  junto  dos  seus  ricos-homens  ,  e  que  ás  vezes 
nos  appareccm  nos  monumentos  daquella  epocha 
com  o  titulo  de  mestres  dns  leis. 

Guiados  por  estas  doutrinas  é  que  nós  vamos  con- 
siderar a  existência  interna  dos  concellios  ,  não  tan- 
to nas  suas  particularidades  accideutacs ,  ou  na  va- 
riedade dos  seus  tributos  e  privilégios  [que  muitas 
vezes  não  passam  de  uma  differença  de  nomes  da- 
dos á  mesma  cousa]  ,  como  nos  seus  elementos  es- 
scnciaes,  e  nos  seus  caracteres  genéricos.  A  estrei- 
teza do  nosso  quadro  nos  não  pcrmitte  entrar  nes- 
sas indagações  de  ordem  inferior ,  as  quaes  ,  de 
passagem  seja  dito  ,  apesar  do  que  sobre  cilas  se 
tem  dissertado  ,  ainda  offerecem  um  vasto  campo  a 
novos  e  mais  exactos  trabalhos. 

Na  instituição  dos  concelhos  portuguezes  da  pri- 
meira epocha  da  nossa  historia  ha  duis  factos  capi- 
tães que  caracterisara  a  individualidade  municipal, 
e  a  distinguem  da  communa  dos  paizes  centraes  da 
Europa.  O  primeiro  facto  é  que  o  concelho  na  sua 
organisação  interior  era  de  certo  modo  o  transum- 
plo  da  sociedade  ,  em  que  elle  representava  uma 
unidade  moral  :  o  segundo  facto  c  que  essa  organi- 
sação era   a  alguns  respeitos  essencialmente  feudal. 

Nestes  dois  factos  combinados  se  resume  o  aspe- 
cto do  antigo  munici|)io  portuguez  :  por  elles  se  ex- 
plica asna  economia  interna  e  assoas  relações  com 
o  rei  e  com  os  outros  corpos  do  estado. 

No  commum  dos  foraes  achámos  consignada  a 
existência  de  três  classes  disliuclas  —  os  cavalleiros 
(milites,  cabalarii),  os  clérigos  (clcrici),  e  os  peões 
(pcdones)  :  ahi  encontramos  também  os  privilégios 
e  encargos  de  cada  uma  delias  estabelecidos  sepa- 
radamente. Em  relação  d'umas  ás  outras  estas  três 
classes  representam  os  mesmos  três  graus  em  que 
se  divide  a  sociedade  geral.  L'ma  denominação  com- 
mum as  une  ,  porem  ,  e  nivclla  :  uma  palavra  re- 
corda a  essas  ties  jerarchias  que  á  face  da  nobreza 
e  do  alto-clero  ellas  são  uma  só. —  llllães  (villanij 
c  nome  escripto  indislinctamei:tc  nas  frontes  de  to- 
da essa  plebe.  Deljalde  o  poder  real  dá  ao  cavallei- 
ro  villão  o  foro  judicial  dos  infanções  ,  c  o  titulo  de 
Honras  ás  suas  proiiricdades  :  a  nobreza  de  sangue 
olha  sempre  com  altivo  sobrecenho  para  aqucUes  que 
o  rei  pôde  fazer  iguaes  delia  perante  os  magistrados, 
e  cujas  herdades  pôde  honrar  por  cartas  de  foro, 
mas  a  quem  não  pôde  dar  um  nome  illuslre  nem  a 
verdadeira  fidalguia.  Vejamos  agora  quaes  eram  os 
privilégios  e  encargos  que  distinguiam  dos  outros 
villões  estes  cavalleiros  plebeus. 

Os  privilégios  principaes  de  miUs  villanns  ,  alem 
do  que  já  lembrámos  de  gosar  de  formulas  espe- 
ciaes  no  processo ,  consistiam  principalmente  nos 
seguintes:  1."  na  excmpção  das  jogadas  ,  tributo 
que  se  pôde  considerar  como  o  principal  do  paiz  , 
e  que  imposto  immcdialamente  na  terra  ,  era  regu- 
lado pela  extensão  da  lavoura  de  cada  proprietário, 
tomando-se  por  base  jiara  essa  contribuição  enume- 
ro de  jugos  de  bois  que  cada  um  possuía  :  2."  em 
não  serem  obrigados  a  dar  hospedagem  aos  caval- 
leiros nobres,  ulliciaes  do  rei,  &c.  ,  que  passavam 
pelo  concelho,  o  que  era  um  dos  gravames  mais 
duros  nesses  tempos  de  rapina  o  d'insoleneia  :  3.°  o 


receberem  parte  das  multas  criminaes  nos  casos  em 
que  os  culpados  eram  mancebos  ,  ou  raalados  das 
suas  aldeias  ,  granjas  ,  ou  quinlaãs  ;  e  sobretudo  o 
não  poder  o  processo  contra  estes  progredir  depois 
da  citação,  em  quanto  o  cavalleiro  villão,  estando 
ausente,  não  voltasse  ao  concelho  :  4.°  na  liberdade 
de  irem  servir  como  homens  d'armas  os  senhores  e 
nobres  ,  sem  que  perdessem  por  isso  os  seus  privi- 
légios municipaes :  5."  o  pertencerem-lhes  por  via 
de  regra  os  montados  ou  os  direitos  delles ,  nos 
concellios  onde  estes  não  eram  livres:  6.°  na  excm- 
pção de  alguns  direitos  de  portagem  :  7.°  em  não 
serem  tomados  para  o  fisco  os  bens  daquelles  que 
morriam  sem  filhos  ,  pagando  apenas  uma  certa 
somnia  ,  a  que  se  chamava  nticio  ou  núncio,  e  fi- 
cando exemplos  do  maninbadego  ,  que  só  rccahia 
sobre  os  bens  dos  peões.  Cumpre  todavia  advertir 
que  tanto  um  como  outro  direito  são  abolidos  em 
bum  numero  de  foraes. 

As  prerogativas  do  clero  inferior,  isto  é  dos  clé- 
rigos que  visinhavara  nos  concelhos,  e  que  por  is- 
so ficavam  virtualmente  contidos  no  grémio  dos  vil- 
lões, commummente  são  apenas  indicadas  nas  car- 
tas de  foral  pelas  palavras  us  clcriyus  lenham  o  cos- 
tume dos  cavalleiros.  Esta  simples  determinação,  que 
ainda  assim  parece  ler  esquecido  em  muitos  foraes, 
indica  ser  essa  classe  pouco  importante  nos  conce- 
lhos ,  provavelmente  porque  a  maior  parte  daquel- 
les que  por  mil  modos  se  aggregavam  ao  corpo  ec- 
clesiaslico  ,  bastando  ás  vezes  para  isso  a  tonsura 
ou  outro  sigual  exterior,  buscassem  viver  á  sombra 
do  alto  clero,  e  evitassem  o  aggrcgar-se  aos  conce- 
lhos onde  não  podiam  encontrar  tão  perfeita  segu- 
rança e  protecção. 

Em  que  consistiam,  porém,  as  vantagens  dos 
peões?  Quem  olhar  só  para  as  cartas  de  foral  cre- 
rá que  estas  não  eram  numerosas  nem  importantes: 
mas  quem  se  lembrar  da  prepotência  e  bruteza  dos 
poderosos;  quem  comparar  a  sorte  dos  moradores 
dos  coutos  ,  das  honras  ,  e  de  quaesquer  outros  lo- 
gares  não  constituídos  em  municípios  com  a  dos 
membros  destes  ;  quem  finalmente  ponderar  que  os 
fragmentos  de  feudalismo  que  penetravam  no  paiz 
traziam  os  males  e  opprcssõcsdaqucUe  systema  sem 
trazer  os  seus  benelicios— conhecerá  que  os  peões 
dos  concelhos  eram  grandemente  favorecidos  por 
estas  cartas  de  commum  ,  apesar  de  que  eilas  não 
contivessem  metade  das  garantias  de  que  hoje  goza 
qualquer  cidadão  ainda  sob  um  governo  absoluto. 
i\'uma  cfiocha  em  que  a  punição  dos  homicídios  se 
deixava  legalmente  á  vindicta  da  família  do  morto, 
em  que  contra  as  violências  feitas  ao  fraco  pelo  for- 
te a  auctoridade  publica  não  punha  outra  barrei- 
ra senão  o  muitas  vezes  impossível  direito  de  re- 
sistência (1),  —  em  que,  na  distribuição  das  terras 


(1)  Os  nossos  escriplores  citara  frequenlemenle  as  leis  lias 
eras  barliaras  para  pruvar  a  exlslencia  das  in^lillli(;òes  ou 
costumes  que  ncJias  se  estabelecem.  Parece-nus  islo  o  lueío 
mais  seíiiro  de  transluriiai'  a  hisloria.  Quando  uma  lei  pro- 
hiljiii  tal  o»  lai  cousa  ,  creou  la!  ou  laldireilo  ,  o  que  simi- 
llianle  lei  púdo  provar  é  a  exisleucía  do  faclo  uu  do  dí- 
reilo  contrario,  pelo  menos  alé  a  sua  promuliraçào ;  e  se 
d'ahi  a  pouco  a  vemos  repetir  com  a  sancção  de  novas  pe- 
nas e  ameaças,  que  devemos  concluir  disso,  senão  que  essa 
lei  foi  leira  niorla  ,  e  que  os  cosluines  ou  os  factos  prevale- 
ceram conlra  as  doutrinas  c  as  iiuiovações  ?  E' jior  isso  que 
a  lodo  o  inslanic  encoulrâmos  eilaçòes  trazidas  para  abona- 
rem cxadamenlc  o  conlrarl»  do  (pie  ellas  cm  verdade  lios 
revelam.  Por  duas  leis  [5  e  6  do  Liv.  das  Leis  e  Post.  Anl.j 
D.  Allun-o  2.°  proliihiu  que  por  ódios  o»  vinsaiiças  se  ar- 
roíiibiísseui  as  casas  de  fidalgos  ou  TÍllões  ou  que  se  dcrii- 


o  PANORAaiA. 


397 


dos  poderosos,  aos  que  as  culli^avam  se  impunham 
quantos  encargos  a  ardente  imaginarão  da  cubica 
podia  inventar  i-l)  ;  u'uma  tal  epoclia  ,  dizemos, 
as  instituições  dos  foracs  relativas  aos  peões  eram 
verdadeiros  privilégios  em  relação  aos  luiliitantcs 
das  terras  não-niunicipacs.  Da  união  dos  moradores 
nascia  a  possibilidade  da  resistência,  e  o  foral  con- 
sagrava Cita  na  sua  maior  extensão.  Se  um  nobre  , 
por  exemplo,  saliindo  da  sua  honra  vinha  commet- 
tcr  a  casa  do  villão  para  lha  roubar  ou  raptar-lhe 
violentamente  a  mulher  ou  a  íilha,  o  aggredido  po- 
dia mata-lo  ,  e  apenas  pagava  por  isso  ao  lisco  (ad 
palacium)  uma  coima  assaz  módica,  e  ás  vezes  ne- 
nhuma, ficando  até  privada  do  direito  de  homicídio 
a  familia  do  morto  (3j.  Por  outra  parle  os  direitos 
de  jugada  e  as  portagens  eram  commummente  os 
únicos  impostos  importantes,  os  quaes  substituíam 
esses  centeuares  de  alcav  alias  que  pesavam  sobre 
os  foreiros  particulares  ou  da  coroa  nos  allodios  , 
reguengos  ,  coutos  ou  honras  ;  e  ao  passo  que  pelos 
contractos  especiaes  com  os  grandes  proprietários 
ou  donatários  de  terras  uão-municipaes  os  lavrado- 
res se  arriscavam  por  qualquer  falta  a  perder  a  her- 
dade, pela  transmissão  do  foral  se  assegurava  a  per- 
petuidade da  posse  aos  agricultores  dos  concelhos , 
podendo-se  considerar  ,  para  nos  servirmos  de  uma 
distincção  dos  juristas,  os  direitos  senhoriaes  ou 
antes  reaes,  mais  como  um  censo  do  que  como  um 
foro.  Ajunte-se  a  isto  o  privilegio  de  que  gozavam 
os  peões  de  serem  julgados  em  primeira  instancia 
pelos  alvazis  ou  juizes  electivos  do  concelho  ,  ao 
mesmo  tempo  que  nas  terras  particulares  estavam 
entregues  ao  juiz  do  senhor,  econhecer-se-ha  quão 
vantajosa  era  a  situação  do  povo  nos  logares  que 
obtinham  a  organisação  municipal. 

Considerados  os  privilégios  das  três  classes  d'in- 
dividuos  de  um  concelho  nos  seus  lineamentos  prin- 
cipacs  ,  e  despresadas  as  circumslancias  de  menos 
monta  vemos  claramente  estabelecida  a  analogia  en- 
tre a  sociedade  geral  e  estas  pequenas  sociedades 
embebidas,  por  assim  dizer,  nella.  No  caracter  de 
perpetuidade  que  toma  pela  carta  de  foral  a  doa- 
ção das  terras  aos  villões,  caracter  contrario  ao  dos 
prestamos  muitas  vezes  vitalícios,  ou  beneficiários, 
e  sempre  revogáveis  ,  nos  apparece  já  o  elemento 
feudal  actuando  na  organisação  dos  municípios.  As 
obrigações  das  três  classes  de  membros  nos  conce- 
lhos nos  revelará  melhor  a  acção  desse  mesmo  ele- 
mento. 

Dissemos  que  as  herdades  dos  cavalleiros  villões 
eram  exemptas  de  jugada  ou  ração;  prí\ilegio  im- 
portante que  os  aliviava  do  tributo  capital  do  paiz. 
E  isto  era  justo  ;  porque  em  logar  delle  se  lhe  pe- 
dia o  tributo  mais  pezado  que  uma  nação  pôde  pe- 
dir aos  seus  membros  —  o  tributo  de  sangue.  O  fos- 
sado  ou  serviço  militar    era    iim  dever  :    a  falta  do 

tjassem ,  c  que  se  cortassoni  ou  (pteiuiasÁeiíi  vinhas  ou  arvo- 
res allieias ,  e  SC  ileslruissem  oiilras  /mssissSts ,  isto  i|uau- 
do  o  ofTenilido  vis.se  que  o  seu  ininiigu  eslava  promplo  a  dar- 
llie  satisfação  juiliciainiente.  Eslas  leis  foram  renovadas  por 
D.  AlTiinso  3.°  [Ibid.  Leis  25  e  60].  Que  se  deve  daqui 
concluir  senào  que  o  paiz  era  «m  vasto  Iheatro  de  vinsan- 
ças  pessoaes ,  nutrtes  e  estragos?  As  leis  de  D.  AíTonso  2.° 
nao  tiveram  efleito,  nem  provavelmente  as  de  D.  Aflbnso  3.° 
como  no-lo  nioslrani  as  guerras  civis  dos  primeiros  aunos  do 
reinado  de  D.  I>iniz. 

(2)  Yeja-se  o  A|ipendice  Diplom. — Hist.  doTiat.  Em- 
phyt.  dAlmeida  e  Sousa.  Osdocumenlos  uhi  apontados  fo- 
ram colligidos  i)or  J.  P.  Ribeiro. 

(3)  Esla  exuberância  do  direito  de  resistência  aclia-se 
principalmente  no  foral  d'Evora  e  nos  mais  que  tiveram  por 
modelo  o  d'Avi]a. 


seu  cumprimento  trazia  uma  pena  pecuniária  —  n 

fdssadiiia  ,  que  alguns  entenderam  ser  uma  substi- 
tuição cm  dinheiro  do  serviço  pessoal,  mas  que  era 
uma  verdadeira  multa.  Se  o  ravalleiro  perdia  o  ca- 
vallo  c  não  comprava  outro  dentro  de  umcerto  pra- 
zo ,  descia  da  classe  de  milcs  para  a  de  peão  ;  as 
suas  herdades  ficavam  reduzidas  á  condição  de  ju- 
gadeiras,  e  todos  os  seus  privilégios  desapparecíam. 
lim  alguns  concelhos  o  cavallciro  que  perdia  o  ca- 
vallo  em  batalha  [in  lide]  ou  ainda  n'um  pequeno 
recontro  [in  algara]  recebia  outro  do  rei.  tinal- 
racnte  ao  que  envelhecia  c  não  podia  servir  por  es- 
sa causa  se  guardavam  os  privilégios  de  classe  que 
por  morte  se  transmittiam  á  sua  viuva  em  quanto 
se  conservava  cm  viuvez. 

A  fossado  ia  uma  parte  dos  cavalleiros  c  a  outra 
ficava  no  concelho  :  n'uns  ia  um  terço  e  ficavam  os 
dois  :  n'outros  iam  estes  c  licava  aquelle.  Tor  al- 
guns foracs  a  obrigação  do  fossado  só  existia  quan- 
do o  sénior  ou  orei  iam  ncUe  ;  regularmente  o  cum- 
prímeuto  de  simílhanle  dever  era  exigido  uma  só 
vez  no  anno  ,  e  ficava-lhes  a  liberdade  de  irem  ou 
não  em  outras  quaesquer  expedições  que  occorres- 
sem. 

Que  era  propriamcute  o  fossado?  —  Os  antiquá- 
rios c  historiadores  tem  variado  na  iulelligencia 
desta  palavra,  e  os  príncípaes  ,  como  o  auctur  do 
Elucidário,  suppõe  fosse  um  conimetlimento  para  ta- 
lar as  terras  dos  inimigos  e  colher  as  suas  searas. 
Nós  persuadimo-nos  de  que  a  palavra  tinha  uma  si- 
gnificação mais  extensa,  —  a  que  lhe  deu  nos  foraes 
de  Caslella  Martiuez  Marina  —  a  obrigação  de  ir  á 
guerra.  Os  foraes  não  faliam  de  dever  militar  mais 
importante  do  que  o  fossado  :  o  appetido  era  o  cha- 
mamento geral  para  a  defesa  do  concelho  ou  da  po- 
voação accommettida  ;  a  azaria  um  salto  ou  corre- 
ria voluntária  que  não  é  estabelecida  nos  furaes  ,  e 
qne  era  porventura  isso  que  se  pertende  signifique 
a  palavra  fossado;  a  atalaia  e  a  guardiã  eram  a 
obrigação  de  vigiar  os  inimigos  ,  talvez  a  primeira 
em  postos  permanentes  ,  e  a  segunda  correndo  em 
roídas  ou  patrulhas.  Como  pois  deixar  de  incluir  o 
dever  de  ir  no  exercito  debaixo  da  denominação  de 
fossado?  A  guerra  naquellcs  tempos  começava  com 
a  primavera  e  o  mais  que  durava  era  até  o  fim  do 
estio.  Assim  imposta  a  obrigação  annual  do  fossado 
bastava  ao  rei  este  direito  para  ter  sempre  os  mili- 
tes villaiws  a  seu  mandar.  Se  a  hoste  real  marchava 
elles  podiam  pagar,  seguindo-a,  o  seu  perigoso  im- 
posto :  se  não  ,  i)aga-lo-hiam  fazendo  entradas  nas 
terras  inimigas.  /;•  em  hoste  significava  a  obrigação 
militar  dos  nobres  que  venciam  soldo,  —  e  para  dis- 
tinguir a  mesma  obrigação  imposta  aos  cavalleiros 
villões  dava-se  o  nome  de  fossado  a  esta?  Sospeità- 
mo-lo  ;  mas  ainda  não  achámos  prova  sulliciente  pa- 
ra pudermos  allirmar  o  uso  exclusivo  de  cada  ura 
dos  dois  termos. 

Abstendo-nos  de  íallar  dos  privilégios  e  deveres 
secundários  dus  cavalleiros  de  município  ,  porque 
não  escrevemos  um  livro,  mas  colligímos  apenas  al- 
guns apontamentos  ,  procurámos  fazer  sentir  o  pen- 
samento feudal  na  posse  plena  da  propriedade  con- 
cedida aos  municípios,  e  na  obrigação  de  serviço 
militar  ,  limitado  como  nos  feudos  a  um  certo  pe- 
ríodo cada  anno.  Nesses  concelhos,  que  nasciam  na 
cpocha  da  feudalidade  ,  a  ínHuencia  desta  era  pro- 
funda ,  em  quanto  a  indole  da  sociedade  geral  lhe 
resistia  e  só  a  deixava  penetrar  nas  suas  formulas 
exteriores. 

Os  deveres   do  clero   inferior   ou  villão  —  se  tal 


398 


O  PANORAIIA, 


nome  se  lhe  podessc  dar  —  são  mais  dinicultosos 
de  definir.  N'um  avultado  numero  de  foracs  que 
temos  cuidadosamente  estudado  ,  não  encontrámos 
ainda  senão  a  igualdade  dos  seus  privilégios  aos  dos 
cavallciros  do  concelho  ,  e  algumas  exemprues  es- 
pcciaes.  Eslava  elle  sujeito  ao  menos  a  uma  parte 
dos  deveres  impostos  áquelles?  É  questão  que  ofTe- 
rece  algumas  espécies  curiosas  ,  e  que  tem  certa 
importância  para  o  olijecto  principal  que  nus  occu- 
pa  ,  a  historia  da  antiga  economia  nacional,  que 
outra  cousa  não  c  na  essência  a  dos  bens  da  coroa 
o  dos  foracs. 

No  princípio  da  monarchia,  ao  menos  até  o  mela- 
do do  século  13.°,  a  obrigação  do  serviço  militar 
estendia-se  ao  clero  dus  concelhos,  senão  inteira- 
mente de  direito  ,  ao  menos  de  facto  :  n'alguus  fo- 
racs elle  apparece  expressamente  exempto  do  fos- 
sado ,  mas  esla  particularidade  esquece  em  muitos 
outros.  Isso  biístaria  para  nos  fazer  suspeitar  que 
ao  menos  nos  concelhos,  cujos  foraes  são  omissos  a 
similhantc  respeito,  lhe  não  valia  o  caracter  sacer- 
dotal para  o  eximir  dos  perigos  da  guerra.  Outra 
prova  negativa  c  uma  lei  deD..V(Tonso  2.°  (4)  que, 
exemplando  lodos  os  clérigos  em  geral  das  atalaias, 
das  colheitas  [espécie  de  tributo  em  dinheiro  ou 
géneros]  e  da  adua  [serviço  pessoal  imposto  para  a 
edificação  e  reparo  doscaslellos  e  muros]  nada  dis- 
põe a  respeito  do  fossado  ,  o  qual  sendo  o  serviço 
mais  importante  dos  cavallciros  villões  ,  e  estando 
os  clérigos  equiparados  a  estes  pelos  foraes  ,  pare- 
ce não  devia  esquecer  na  enumeração  das  exem- 
pções  gcraes  estabelecidas  para  aquella  lei. 

Este  silencio  tem  ,  em  nosso  entender  ,  uma  ex- 
plicação na  grande  lucta  do  estado  ecclesiastico  e 
do  rei,  a  qual  versava  sobre  as  celebres  immuni- 
dades  da  igreja,  isto  c  sobre  a  pretenção  que  o  cle- 
ro linha  de  ser  perfeitamente  livre  de  todos  os  en- 
cargos sociaes  e  de  não  estar  nos  seus  processos  cri- 
minaes  ou  eiveis  sujeito  a  tribunal  ou  auctoridade 
que  não  fossem  os  ecclesiasticos.  Assim  tanto  a  le- 
gislação como  os  foraes  são  incompletos  e  obscuros 
a  respeito  desla  classe  ,  variando  segundo  os  aspe- 
ctos que  tomava  esse  acceso  e  duradouro  confiicto. 

A  algum  dos  nossos  leitores  atleito  ás  ideas  mo- 
dernas parecerá  estranho  o  imaginar  que  o  clero 
fosse  levado  aos  combales  ,  ou  tal  obrigação  se  lhe 
podesse  impor.  Todavia  nada  ha  mais  certo  que  a 
frequente  associação  do  sacerdócio  com  a  milicia 
na  idade  media:  os  próprios  bispos  eram  guerrei- 
ros ,  capitaneavam  expedições  militares,  e  venciam 
soldos  como  homens  de  guerra.  A  historia  offerecc- 
nos  innumcraveis  exemplos  de  similhantc  costume. 
Alem  disso  a  palavra  clérigo  tinha  uma  significação 
immensamente  mais  ampla  que  hoje.  Uma  tennissi- 
ma  relação  com  a  igreja  c  com  oculto  fazia  incluir 
qualquer  individuo  no  grémio  da  clerezia.  Oauctor 
do  Elucidário  apontou  muitas  espécies  de  sujeitos 
em  quem  recahia  tal  titulo,  e  ainda  não  as  distin- 
guiu todas. 

As  provas  negativas  de  que  o  clero  não  era  exem- 
plo do  serviço  militar,  bem  que  a  isso  se  oppozes- 
sem  as  doutrinas  canónicas,  ajunta-se  o  testemu- 
nho positivo  e  irrefragavel  que  nos  dá  um  género 
de  monumentos,  sem  os  quaes  será  sempre  incom- 
pleta a  historia  daqucllas  eras  tenebrosas.  Falíamos 
das  bulias,  e  roscriptos  dos  papas:  é  destes  diplo- 
mas que  nós  vemos  que  similhanle  pratica  era  cons- 
tante na  primeira  epocha  da  nossa  historia  ,  quando 
os  foraes  não  exemptavam  o  clero  expressamente  de 
(.4)    Lei  13  no  Lmo.  U«s  L.  e  P.  Antiga 


tal  dever.  Entre  outros  queixumes  que  Innocencio 
3.°  dirigia  a  D.  Sancho  1.°  era  um  o  arrastar  oí 
cleriyos  ao  exercilo ,  fazendo-lhes  injurias  e  oppro- 
brios.  Iguaes  queixas  se  encontram  n'uma  bulia  de 
Honório  3.°  aos  bispos  de  Astorga  e  de  Tuy  con- 
tra D.  Affonso  2.°,  o  qual ,  não  coníenle  com  isto 
[o  quebrar  varias  outras  inimunidades]  ,  obrigava-os 
a  ir  contra  sua  vontade  construir  e  rtccH/icnr  mura- 
lhas ,  e  alem  disso  ás  expedições  ,  e  a  fazer  o  servido 
de  vigias  ,  o  que ,  na  língua  daqucllu  gente  ,  se  cha- 
ma aimduvas  ou  atalaias.  Gregório  tt."  encarregava 
o  franciscano  Fr.  Jacob  de  penitenciar  e  absolver 
D.  Sancho  2.° ,  porque  varias  vezes  espancara  cléri- 
gos com  a  jMí/o  ou  com  um  pau  ,  tanto  no  exercito , 
como  iioutras  occasiõcs  ,  não  por  inspirações  do  dia- 
bo ,  mas  constrangido  pela  necessidade  ou  de  ordenar 
as/ileiras  ,  ou  de  sahir  d'alguma  revolta  de  gente  (3), 
Eite  mesmo  papa  ,  dirigindo  a  D.  Sancho  uma  es- 
pécie de  inventario  de  todas  as  culpas  que  elle  rei 
havia  commeltido  contra  a  igreja  ,  inventario  re- 
cheado de  insolências  e  ameaças  conformes  com  o 
caracter  audaz  e  phrcnetico  de  Gregório  t).°,  lhe  ci- 
ta ,  entre  outras  cousas  ,  o  obrigar  os  ecclesiasticos 
ao  serviço  militar,  accusando-o  ponco  depois  de  os 
constranger  a  respeitarem  as  leis  e  estatutos  (banna 
et  staluta)  delle  e  dus  seus  barões,  no  que  nos  pare- 
ce descobrir  uma  allusão  obscura  aos  foraes  (6). 
Vè-se  ,  pois,  ter-se  por  muito  tempo  entendido  que 
assim  como  o  clero  gosava  das  exempções  dos  j/ií7í- 
les  vitlani,  cumpria  desempenhar  como  elles  os  en- 
cargos da  sua  situação  politica. 

Consideradas  as  obrigações  capitães  das  classes 
privilegiadas  dos  municípios,  resta  o  fallar  dos  en- 
cargos dos  peões.  Já  dissemos  que  o  tributo  da  ju- 
gada  lhes  compensava  a  exempção  do  fossado.  A 
jugada  era  o  tributo  característico;  mas  estava  lon- 
ge de  ser  o  único  :  as  portagens  como  imposto  in- 
directo iam  recahir  em  geral  sobre  os  consumidores 
das  mercadorias;  mas  na  sua  acção  directa  grava- 
vam os  peões  que  especialmente  se  occu|iavam  no 
commercio  interno  :  a  obrigação  militar  do  appelli- 
do ,  commum  a  todos  os  membros  do  concelho , 
quasi  não  se  deve  considerar  como  um  ónus  :  o  ap- 
pellido  ,  que  consistia  em  correrem  todos  a  defen- 
der a  povoação  quando  a  assaltavam  inimigos  ,  era 
um  dever  estabelecido  pelo  sentimento  da  própria 
conservação  antes  de  o  ser  pelos  foraes.  As  outras 
contribuições  variadas  de  que  nos  poderíamos  lem- 
brar não  cabem  n'um  trabalho  necessariamente  rá- 
pido ,  e  alem  disso  não  oflerecem  nas  suas  multi- 
plicadas e  incertas  espécies  caracter  algum  parti- 
cular era  relação  á  fazenda  publica  senão  o  de  au- 
gmentarcm  mais  ou  menos  o  c/uantum  dos  tributos 
de  cada  município,  e  o  de  recahirem  por  via  de  re- 
gra sobre  a  classe  peã.  N'uma  historia,  porem, 
da  nação  portugueza  o  exame  dessas  contribuições 
será  de  alta  importância,  julgando-as  na  sua  in- 
fluencia sobre  o  progresso  ou  decadência  do  com- 
mercio ,  da  agricultura  e  da  industria. 

L'ma  cousa  se  ha-de  ainda  advertir  comtudo : 
n'um  paiz  devastado  por  contínuas  correrias  os  ga- 
dos não  podiam  ser  numerosos ,  e  alem  disso  os 
concelhos  ,  por  muitas  rasões  que  são  obvias  ,  não 
deviam  conter  grande  porção  de  proprietários  ru- 
racs  ,   cuja  lavoura  demandasse   um  ou  mais  jugos 


(5)  Bulias  =  Si  dillgentcr  —  7  Kal-  Marl.  A.  XIV 
Iiin.  3ii  =  (7i-ffrí  nobts  10.°  Kal.  Jau.  A.  V.  Hon.  3"= 
Ex  parir   rinrissimi — 18  Kal.    Inn.    A.  VII.  Grei;.    9'  = 

(fi)  Bidla  =  .Si  l/mm  horrihilc  IS  Kal.  Maii  A.  XII 
Grog.  'Ji. 


o   PANORA3IA. 


39!) 


de  bois.   Ficava  ,  portanto ,  nesse  caso  a  pequena 

cultura  exempla  da  jugada?  Xão  :  os  foraes  tinham 
previsto  essa  hypothese  mui  frequente  :  iá  está  de 
ordinário  designada  a  contril)uiçãu  que  tocava  ao 
que  para  o  lavor  da  terra  apenas  possuía  um  boi,  e 
do  mesmo  modo  a  que  se  havia  de  receber  daqucl- 
le  que  com  os  próprios  braços  agricultava  o  seu 
campo  ,  e  a  quem  se  dava  o  nome  de  cavador  (ca- 
vomj. 

Resla-nos  agora  tratar  áascalumpnias,  ou  tributos 
sobre  os  crimes  ,  e  depois  indagar  se  a  indolc  das 
instituições  municipacs  correspondia  de  feito  aos 
pensamentos  einstinclos  do  poder  central,  aosqnaes 
nós  altribuimos  a  diligencia  com  que  elle  Iraballia- 
va  em  organisar  c  fortalecer  o  terceiro  estado. 

(Continuar-sc-haJ . 
(A.  HerculanoJ. 


que  evitara  a  pobreza  ,  e  estão  pelo  geral  cxcmptos 
de  vicios  e  crimes. 


ClLTlB.l    DA    VINHA. 

Da  pvda  [>). 

K.NTiiE  OS  vários  meios  deordenar  depois  da  poda  as 
videiras,  lia  também  um  cm  que  se  dispõe  as  varas 
ao  redor  da  ct'pa  ,  sustidas  por  lanchOes  em  forma 
de  forcados,  logrando-se  a  vantagem  de  que  os  fru- 
ctos  gozam  assim  das  iniluencias  do  ar,  da  luz,  e 
do  calor  do  clima :  como  se  vè  neste  pequeno  de- 
senho. 


A  pobreza  não  é  mal  natural. — Ha  certa  espécie 
de  males  ,  que  afligem  a  sociedade  e  contribuem 
para  fazer  os  homens  desgraçados,  independente- 
mente das  moléstias  e  damnos  physicos  :  são  dessa 
classe  ,  são  dessa  qualidade  a  pobreza  esquálida  e 
desamparada  ,  os  vicios  lamentáveis  e  hediondos , 
os  crimes  horrorosos,  e  a  guerra  civil.  £  uso  di- 
zer-se  que  todos  estes  accidentes  são  inevitáveis  , 
que  derivam  da  natureza  do  género  humano  a  sua 
origem  e  também  das  leis  que  o  necessitaram  a  vi- 
ver em  sociedade.  —  Quem  assim  pensa  reflecte 
mui  pouco.  O  mundo  6  naturalmente  formoso;  mas 
o  que  Deus  quiz  que  fosse  o  p.iraizo  da  espécie  hu- 
mana, nós  o  convertemos  com  frequência  cm  deser- 
to árido,  por  nossos  vicios  e  delictos.  A  natureza  c 
a  revelação  demonstram  que  o  Creador  quiz  que 
fossemos  felizes  ,  mas  a  ignorância  ,  a  obstinação  c 
os  criminosos  excessos  tem  destruído  a  nossa  ventu- 
ra e  araesquínhado  as  condições  da  nossa  existên- 
cia racional.  —  Ainda  até  agora  ninguém  pôde  pro- 
var que  deva  necessariamente  edistir  [enlenda-se  bem 
o  rigor  desta  pbrase]  a  pobreza  ,  que  é  origem  de 
muitos  males:  appresenta-se  ura  exemplo  notável 
da  falta  delia  n'uma  classe  numerosa,  qual  é  a  dos 
quakers  ou  sociedade  dos  amigos  na  Inglaterra  e 
União  americana.  Com  algumas  especialidades  de 
pouquíssima  importância  na  linguagem  e  vestidos  , 
esta  numerosa  corporação  d'individuos  obra  sobre 
o  principio  uniforme  de  reprimir  as  paixões  :  com- 
batem os  impulsos  ignóbeis  da  natureza  ;  e  nisto 
póde-sc  dizer  que  está  a  base  da  verdadeira  mo- 
ral ;  e  assim  ó  que  os  quakers  praticara  habitual- 
mente o  que  as  mais  classes  olham  simplesmente 
como  theorias.  —  A  consequência  deste  dominio  so- 
bre os  próprios  pensamentos  e  acções  é  que  ,  ape- 
sar de  haver  muitos  milhares  de  qunkers  na  Ingla- 
terra e  muitos  mais  nos  Esados-Unidos,  nem  n'um 
nem  n'outro  paiz  se  vè  um  quaker  mendigando  , 
nem  embriagado  pelas  ruas  ,  nem  um  delles  appa- 
rece  citado  perante  os  tribunaes  criminaes:  toda- 
via ,  assim  como  as  outras  pessoas  que  se  empre- 
gam nas  usuaes  occupnções  da  vida  ,  os  quakers 
são  commerciantes  ,  olíiciaes  mcchanicos  ,  maríti- 
mos ,  em  uma  palavra  exercitara  toda  a  classe  de 
artes  e  misteres  honestos  :  por  consequência  estão 
sujeitos  ás  mesmas  tentações  e  perversidade  que  to- 
dos os  mais  ;  mas  evitam  tudo  isso  mediante  ura 
singular  grau  de  prudência  prática. — Eis-aqui  pois 
uma  clara  demonstração  de  que  ainda  sem  o  auxi- 
lio do  poder  civil,  c  só  pela  influencia  da  moral, 
ha  uma  classe  d'bomens,   no  meio   da  sociedade,  i 


A  disposição  das  varas  na  figura  de  pyramide  có- 
nica [víd.  a  estampa  que  abaixo  segue]  procede  da 
reunião  de  muitas  videiras  collocadas  circularmen- 
te e  cada  uma  com  seu  tanchão  ou  estaca.  K  con- 
veniente nos  outeiros  fragosos  e  escarpados  ,  para 
aproveitar  as  pequenas  porções  de  terra  cultivável , 
dispersas  e  entaladas  entre  as  rochas  escalvadas. 
É  applicavel  exclusivamente  este  methodo  nos  ar- 
dentes paízes  meridionaes,  para  que  os  cachos  não 
sejam  queimados  pelos  raios  directos  do  sol ,  cujo 
reverbero  c  muito  enérgico  nos  terrenos  áridos  e 
despidos.  Os  vinhos  que  dão  estas  videiras  são  mui 
generosos  e  aturara  largo  tempo. 

nm 


(•)     ConcKúdo  de  i>ng.  380. 


400 


O  PANORAMA. 


A  experiência  tem  mostrado  que  se  a  vinha  não 
é  podada  brutam-Uie  nuinerosos  e  compridos  sar- 
mentos ;  seus  fruclos  são  poucos  e  pela  maior  parle 
abortam,  os  que  permanecem  sabiem  apoucados  e  a 
custo  amadurecem  :  cm  annos  successivos  perdem- 
se  os  troncos  mestres  ou  varas  mães  :  as  vides  de- 
licadas perecem,  e  as  robustas  converlem-se  em  la- 
bruscas  bravias. 

Quando  a  cepa  vellia  engrossa  sobejamente,  toma 
muito  chão  ,  os  cachos  são  pequeninos,  diminue  o 
numero  dos  gomos  ou  olhos  ;  enlão  se  podam  muito 
mais  curto  as  varas  que  hãodc  ser  conservadas:  al- 
guns annos  dei)ois  se  cortam  as  varas  mães  ,  e  até 
quando  se  nota  a  influencia  da  muita  velhice  se  cor- 
ta a  cepa  quasi  rente  com  aterra.  Por  este  meio  se 
podem  conservar  as  cepas  por  muito  mais  tempo, 
c  isto  é  tanto  mais  importante  quanto  era  geral  as 
vinhas  velhas  produzem  melhor  vinho.  —  A  opera- 
ção de  esfolhar  ,  tirando  as  parras  que  assombram 
os  cachos  ,  pralica-se  no  fim  do  estio  ,  quando  os 
bagos  tem  adquirido  o  tamanho  natural ,  e  princi- 
piam a  tomar  cor. 

Também  se  extirpam  as  raizcs  superfieiaes ,  n"u- 
ma  espécie  de  escava,  tirando  as  parasitas  e  retor- 
cidas ,  para  que  as  outras  profundem  ;  e  isto  se  faz 
desde  o  terceiro  até  o  nono  anno  da  plantação. 

Um  anno  de  superabundância  de  fructos  c  de  or- 
dinário seguido  de  outro  de  esterilidade  ,  o  que  se 
manifesta  mais  n'umas  espécies  que  n'outras.  A  ra- 
são  sem  duvida  procede  de  que  os  fructos  conso- 
mem mais  activa  quantidade  de  seiva  ,  e  baixando 
cila  em  menor  porção  para  as  raizcs,  estas  não  tem 
sufliciente  nutrição  para  os  germens  do  seguinte  an- 
no.—  Previne-se  este  accidcnle  auguicntando  os  la- 
vores ou  cavas,  estrumando  os  pés,  e  podando  mais 
baixo  que  nos  annos  antecedentes. 

Se  a  videira  ,  precioso  vegetal  nos  climas  tempe- 
rados da  Europa  ,  muito  mais  em  Portugal  ,  oc- 
cupa  a  segunda  ordem  na  escala  da  riqueza  agríco- 
la ,  tempo  é  de  que  os  proprietários  se  instruam  na 
physica  do  reino  vegetal  ,  c  se  não  descuidem  de 
presidir  aos  trabalhos  ruraes  ,  introduzindo  praticas 
úteis,  adequadas  a  suas  fazendas ;  sem  esta  diligen- 
cia serão  vaãs  as  exhorlações  e  insinuações  especu- 
lativas :  trabalhem  pois  ao  mesmo  tempo  por  emen- 
dar defeitos  ,  admittir  cora  experiência  cautelosa  os 
methodos  novos ,  e  decepar  com  todo  o  vigor  tudo 
quanto  for  pratica  notoriamente  absurda  e  nociva. 


Um    N.ITIRAL    DA    VILLA    DE    PoVOS. 

CoMEMPOBANEo  do  cclcbrc  Castrioto  Lusitano  (1) 
foi  João  Vieira  d'Araujo,  que  nasceu  em  Kill  na 
mui  antiga  villa  de  Povos.  Contava  apenas  18  an- 
nos quando  para  servir  nas  guerras  do  Brasil  em- 
barcou na  caravella  Conceição  ,  cm  que  ia  o  valen- 
te capitão  Mathias  d'Albuquerque.  Naquellc  Esta- 
do diblitiguiu-se  na  milicia  ,  por  maneira  que ,  sa- 
hiudo  airoso  de  apertados  confliclos,  e  feliz  no  meio 
de  muitos  perigos  ,  em  poucos  annos  seguiu  todos 
os  postos  até  capitão  ,  e  tencnte-rei  da  fortaleza  de 
S.  Bartholomeu  da  Bahia;  dilllcil  encargo  em  que 
deu  exuberantes  provas  d'esforço  e  prudência  ,  não 
só  na  defeza  contra  os  acérrimos  inimigos  bollande- 
zcs ,  como  na  arriscada  emprcza  que  intentou   de 

(1)  João  Fernandes  Vieira,  que  nasceu  em  I6I3:  o 
seu  retrato  e  biographia  achaiu-se  a  pag.  241  da  nossa  1.^ 
Serie. 


lançar  fogo  á  frota  contrária  :  sustentou  briosamente 
a  sua  praça  contra  repetidos  assaltos,  e  n'um  dos 
recontros  foi  ferido;  o  que  tudo  consta  de  certidões 
e  documentos  autographos. 

Depois  que  os  hollandezes,  falhos  seus  desígnios, 
se  retiraram  forçadamente,  embarcou  na  armada  de 
soccorro,  enviada  a  Pernambuco,  na  qual  foi  D.Fer- 
nando de  Mascarenhas ;  e  ahi  deu  mostras  de  si,  co- 
mo a  seu  caracter  e  antecedente  carreira  cumpria. 
Com  taes  serviços  veio  á  corte  de  Madrid  onde  rece- 
beu em  remuneração  o  posto  de  Sargento-mór  e  o 
habito  da  Ordem  de  Christo,  que  professou  na  dita 
cidade,  na  igreja  de  St. "António  dos  Portuguezes; 
ahi  mesmo  o  armou  cavalleiro  D.  Jerooymo  d'A- 
tayde  ,  conde  de  Castro. 

O  seu  espirito  marcial  não  lhe  soffria  viver  no 
ócio,  e  voluntário  se  alistou  cm  o  navio  S.  Theodo- 
sio  ,  que  fazia  parte  da  armada  do  general  António 
Telles  ,  destinada  a  correr  a  costa  em  1G37.  Prose- 
giiiu  em  valiosos  serviços  nos  Estados  ultramarinos  ; 
e  no  da  índia  se  achava  quando  lá  soou  a  nova  da 
liberdade  portugueza  annexa  á  justa  acclamação  do 
Sr.  D.  João  1.° ;  ardeu  logo  em  desejos  de  partici- 
par da  gloria  assim  como  dos  perigos  de  seus  com- 
patriotas, e  todo  cheio  do  amor  da  palria  sé)  busca- 
va opportuna  occasião  de  frustrar  a  vigilância  de 
estrangeiros  ciosos,  dos  quaes  todavia  era  estimado 
por  seu  valor  e  pericia  militar  :  assim  que  pode  pas- 
sar-se  á  Europa,  apenas  posto  o  pé  nallespanha,  tra- 
tou de  evadir-se  para  Portugal  ,  como  filho  verda- 
deiramente leal  ao  torrão  natalício:  que  não  haviam 
sido  consagradas  suas  fadigas  bellicas  ao  engrande- 
cimento de  estranhos  senhores;  servira  por  amor 
da  gloria,  e  para  manutenção  das  relíquias,  que 
da  portugueza  dominação  permaneciam  ;  como  que 
se  houvera  previsto  que  a  posse  de  seus  legítimos 
donos  ellas  seriam  restituídas.  —  Estas  e  outras  ra- 
sões  fortes  appresentou  á  magestade  de  D.  João  i.°, 
quando  por  espontâneo  e  nobre  acto  de  fidelidade 
foi  nas  regias  mãos  resignar  todos  os  títulos  lionori- 
ficos  ,  mercês,  e  vantagens,  que  o  intruso  governo 
lhe  facultara.  Ailo  ,  por  certo,  de  raro  desinteres- 
sei—  Disse  mais  que  só  ambicionava  entrar,  como 
simples  soldado  ,  nas  fileiras  do  exercito  restaura- 
dor.—  Acceítou  clrci  a  renuncia,  mas  logo  lhe  tor- 
nou a  conferir  o  habito  da  Ordem  de  Christo,  e 
depois  que  o  mandou  servir  cm  Beja  deu-lhe  o  pos- 
to de  capitão-mor  de  Alegrete  em  líiío.  Nestes  vá- 
rios exercícios  cohibiu  entradas  de  castelhanos  por 
terras  nossas,  vigiou  os  interesses  da  real  Fazenda, 
acabou  de  fortificar  Castello-Melhor  ;  nunca  o  ini- 
migo o  tomou  de  sobresalto  ,  c  foram  de  summa 
in)[)orlancia  os  avisos  que  transmiltíu  aos  olliciaes 
de  superior  commando.  —  Passou  a  capilão-raór  de 
Alcobaça,  encarregado  de  guardar  o  littoral  da  mes- 
ma capitania:  ainda  servia  este  cargo  em  16G2 : 
não  é  porem  certa  a  data  de  sua  morte. 

O  que  deixámos  expendido  comprova-se  pela  col- 
lecção  de  documentos  in."* ,  que  ,  precedida  de  um 
prologo  íllustratívo,  rcmctteu  á  Academia  dasScicn- 
cias  o  Sr.  bacharel  João  José  Miguel  da  Silva  .\ma- 
ral  (2]  ;  e  constam  elles  de  avultada  correspondên- 
cia e  de  anthonticos  attestados  ,  mostrando-se  pelos 
mesmos  serem  não  menos  de  doze  os  olliciaes  gene- 
raes,  com  quem  Vieira  d'.\raujo  servira,  merecen- 
do os  elogios  e  consideração  de  todos. 


(2)  Este  Sr.  nos  ministrou  as  noticias  que  eslampàinos 
aqui,  assim  como  nos  mandara  outras  sobre  o  Monte  da 
Hua-Morle  no  termo  de  Povos,  as  quaes  se  lêem  a  pai.  413 
do  4.»  vol. 


104 


o  PANORAMA. 


401 


í.:f:SfiÍilP!Í' 


IGR£JA  DA  CONCEIÇÃO  VEX.HA  —  EM  Z.I3SOA. 


Uma  ViLiA-NovA  antiga. 

Se  passardes  pelos  olhos  uma  carta  lopngraphiia  de 
Portugal,  em  cada  província,  em  cada  comarca,  tal- 
vez em  cada  pequeno  districlo  achareis  escripto,  ao 
lado  de  algum  desses  signaes  que  marcam  as  povoa- 
ções,    a  palavra   Villa-nova  ;  Villa-nova  de  lUi  ,  de 

Dezesibro  23 —  1843. 


S.  Cruz,  de  Gaya,  de  Cerveira  ;  .  .  .  que  sei  eu  ?  — 
Villas-novas  de  todos  os  sobrenomes,  e  alé  villas- 
novas  de  ninguém  e  de  nada  ;  villas-novas  espu- 
rias. 

Villa-nova  é  o  dom  municipal,  o  dom  villão  ;  por- 
que ,  por  extravagante  anliphrase  ,  villanova  quasi 
sempre    indica  um  antigo  burgo  com  suas  rugas   de 

2."  Seuie.  —  VoL.  II. 


402 


O  PANORAMA. 


velhice,  com  seu  castello  desmoronado ,  com  seus 
vestígios  de  templo  ou  de  palácio  da  meia-idade. 
Villa-nova  moderna,  sem  pedras  amarellas ,  tomba- 
das,  ogivaes  ,  6  cousa  descommunal  ,  milagrosa,  e 
ao  réz  do  impossivcl.  É  que  o  passado,  remoto,  re- 
motissimo  ,  como  o  imaginardes  ,  já  foi  presente  ,  c 
então  a  villa  que  se  alcvantava  ou  no  des\io,  até 
ahi  inculto  e  intratável ,  ou  sobre  os  vcstigios  de 
povoação  deshabitada  cdcslruida,  era  realmente  nii- 
va  ;  mas  os  seus  edificadores  csqucciam-se,  ao  dar 
um  nome  á  obra  das  próprias  mãos ,  que  cllcs  pas- 
sariam bem  depressa  e  com  ellcs  a  mocidade  da 
sua  filha  querida  ;  esqucciam-se  de  que  o  correr 
dos  annos  brevemente  havia  de  converter  em  pala- 
vra sem  sentido  essa  denominação  que  lhes  parece- 
ra tão  clara  e  precisa.  Aos  primeiros  respiros  de 
paz  e  segurança,  depois  das  guerras  barbaras  de  re- 
ligião e  de  raça  que  devastaram  outr'ora  este  solo 
portiignez,  o  espirito  municipal  ia  semeando  os  con- 
celhos ao  passo  que  debaixo  dos  marcos  das  fron- 
teiras christaãs  se  embebia  o  território  musulinano, 
e  então  acontecia  que  o  burgo,  recentemente  plan- 
tado cm  terra  até  ahi  erma  e  safara  ,  ou  sobre  as 
ruiiias  carcomidas  de  nuinicipio  romano  ou  godo  , 
sentindo-se  cheio  de  vida  e  de  esperanças,  folgava 
de  contar  ao  mundo  no  próprio  nome  a  sua  juven- 
tude ,  e  tomava  para  si  o  titulo  tão  querido  ,  tão 
popular,  tão  casquilho  —  de  Villa-nova. 

E  a's  vezes  as  Villas-novas  vinham  encostar-sc 
aos  muros  carrancudos  erobusios  das  cidades  reaes 
ou  episcopaes.  Eram  como  uma  crcança  rosada,  ri- 
sonha ,  travessa  ,  que  se  atira  ao  collo  de  velha  re- 
barbativa  ,  e  se  lhe  pendura  ao  pescoço  ,  c  desata  a 
rir  —  a  bom  rir.  Acontecia  também  que  uma  ou  ou- 
tra ia  assentar-se  á  beira  de  um  rio,  defronte  de  po- 
voação orgulhosa,  e  similhante  a  trasgo  inquieto 
zumbia-lhe  insolentemente  aos  ouvidos,  e  desangra- 
va-a  ronbando-lhe  o  seu  commercio  :  mctlia-se  ate 
cm  bandos  polilicos  para  lhe  fazer  perraria  ;  e  ini- 
miga d'ao  pé  da  porta  não  havia  casta  de  incommo- 
do  que  lhe  não  causasse.  Que  outra  cousa  fez  Vil- 
la-nova de  Gaya  ao  burgo  episcopal  do  Porto  ,  bur- 
go tão  grave  ,  tão  serio  ,  tão  devotamente  enroscado 
em  volta  da  sua  cathedral  ,  aos  pés  dos  seus  santos 
bispos?  Quem,  senão  Villa-nova  de  Gaya,  assoprou 
provavelmente  entre  os  honrados  burguezcs  da  ci- 
dade do  Douro  aquelle  espirito  de  irmandade  e  re- 
volta que  tanto  veio  depois  a  incommodar  os  suc- 
cessores  do  venerável  D.  Hugo? 

Lisboa  —  guerreira  e  depois  mercadora  —  lam- 
bem teve  ,  não  uma  ,  mas  duas  villas-novas  abraça- 
das á  sua  cinta  de  muralhas:  —  a  primeira  ao  sul, 
a  segunda  ao  poente.  Chamava-se  aquella  Villa-no- 
va de  Gibraltar:  esta  Villa-nova  d'Andrade.  A  se- 
gunda, nascida  no  século  1S.°,  viveu  dois  dias  ape- 
nas ,  porque  Lisboa  ,  essa  villa  {•)  limitada  nos  fins 
do  século  i-2.°  a  15:000  habitantes,  cm  quanto  a 
mourisca  Silves  contava  25:000  ,  cresceu  cora  tal 
rapidez  na  epocha  dos  descobrimentos  ,  que  rom- 
pendo ,  ou  antes  galgando  por  cima  dos  lanços  oc- 
cidentaes  dos  seus  muros,  a  devorou  ainda  no  ber- 
ço ,  ou  para  melhor  dizer  parliu-a  em  fragmentos  , 
c  aos  seus  membros  despedaçados  chamou  Bairro- 
alto.  Chagas,  Santa  C.alharina.  Villa-nova  d'Andra- 
de  foi  uma  cousa  fugitiva  ,  sem  gloria  ,  sem  indivi- 
dualidade. Delia  poderia  dizer-se  o  que  o  psalmista 
dizia  do  Ímpio  :  —  vi-a  exaltada  como  o  cedro  do 
Líbano  :   passei ,  e  não  existia  ;  busqueí-a  ,  não  lhe 

(•)      Kvora   c   chamada  uo  seu    (oral  ciiladc ;   Lisboa  iio 
9eu  villa- 


achei  rasto.  Deixemo-la,   pois,  na  paz  do  esqueci- 
mento e  do  nada. 

Não  assim  Villa-nova  de  Gibraltar.  Fallai-me  de 
Villa-nova  de  Gibraltar '.  Esta  sim,  que  viveu.  A 
sua  origem  perde-se  nas  trevas  dos  tempos  chama- 
dos bárbaros  ,  entronea-sc  no  berço  da  raonarchia. 
Assentada  á  beira  do  Tejo,  fora  do  lanço  de  sul  e 
sueste  da  muralha  árabe,  ou  talvez  goda  [quem  po- 
derá hoje  dize-lo?l]  que  cercava  Lisboa  antes  do 
século  14.°,  saudavam-na  os  primeiros  raios  do  sol 
oriental  ,  aqucciam-na  todos  os  do  alto  dia  ,  doura- 
vam-na  os  derradeiros  que  vinham  do  poente  roçan- 
do pela  superfície  das  aguas.  A  cidade  lá  estava 
sombria  entre  as  torres  e  altos  muros  da  sua  cerca  ; 
agachada  nas  faldas  do  seu  castello  soberbão  e  mal 
encarado;  prostrada  em  volta  da  sua  cathedral  am- 
pla e  triste.  Mas  que  importava  isso  a  Villa-nova 
de  Gibraltar?  Ahi  não  havia  nem  muros  ,  nem  tor- 
res ,  nem  castellos,  nem  campanários.  Ella  mirava- 
se  no  rio,  e  achava-se  bella  ;  bella  por  si  epelo  lu- 
xo dos  seus  atavios;  porque  Villa-nova  de  Gibral- 
tar era  a  allravessadora  de  quasi  toda  a  mercancia  : 
a  pátria  dos  rendeiros  e  sacadores  das  rendas  e  di- 
reitos reaes:  era  rica  e  potente  ;  e  ao  sobrccenho  al- 
tivo da  velha  Lisboa  ,  confiada  na  sua  epiderme  de 
mármore  ,  respondia  ella  mostrando  a  sua  armadu- 
ra d'uuro,  c  depois  punha-se  a  rir,  porque  bem  sa- 
bia já  ,  como  nós  hoje  sabemos  ,  que  o  ouro  é  mais 
forte  que  o  mármore. 

D.  Fernando  1.°,  que  foi  para  cora  Lisboa  como 
um  amante  selvagem:  ora  querendo  anniquila-la 
porque  lhe  preferia  em  amores  o  alfaiate  Fernão 
Vasques  ;  ora  lançando-lbe  no  regaço  riquezas,  pri- 
vilégios ,  tudo;  quiz  n'um  acceso  de  ciúme  escon- 
de-la aos  olhos  d'estranhos.  Já  ella  ,  a  namoradei- 
ra, sahindo  da  Porta  de  Ferro,  pelo  terreiro  da  ca- 
thedral, correra  para  ovalle  de  Valverde  e  se  recli- 
nara por  ahi  abaixo  indo  espreitar  a  barra  cá  da 
margem  do  rio  ;  já  começava  até  a  galgar  pela  en- 
costa fronteira  para  o  lado  do  gotbico  mosteiro  de 
S.  Francisco  e  para  a  ermida  dos  Martyres  ,  e  pe- 
la Pedreira  do  Almirante,  para  o  convento  dos  san- 
tos frades  da  Picdempção.  «Alto  lá!»  disse  o  bom 
do  rei  D.  Fernando  ,  e  chamando  os  villões  sujei- 
los  á  adúa  por  todas  as  villas  e  lugares  d'arrcdor, 
lançou  á  cintura  da  doudinha  uma  nova  faixa  de 
muros,  para  que  não  passasse  alem.  Ficou-se  ,  é 
verdade,  espairecendo  Lisl.oa  pela  valle  c  pela  en- 
costa, mas  ao  menos,  atraz  das  novas  torres  e  qua- 
drellas  ,  já  não  podia  fazer  gatimanhos  de  presumi- 
da aos  que  vinham  visitar  cm  som  de  paz  ou  de 
guerra  os  campos  das  suas  cercanias,  ou  as  aguas 
da  sua  enseada. 

E  que  era  nesse  tempo  fcilo  de  A"illa-nova  de  Gi- 
braltar? Lá  estava  senhoril  e  desdenhosa,  á  beira 
do  Tejo  ,  indilTerenle  aos  arrufos  de  Lisboa  e  aos 
riumcs  de  D.  Fernando.  Pacífica  e  fiel  não  se  entre- 
meltia  em  negócios  alheios,  não  tumiilluava  ,  não 
se  namorava  d'estranhos.  .4ssim  amuralha  real  que 
bojava  para  poente,  passou  pé  ante  pé  por  entre  el- 
la e  a  cathedral  para  não  a  alTligír:  encorporou-se 
ahi  com  os  antigos  muros  para  a  deixar,  como  até 
então,  exposta  á  sua  tão  querida  restea  de  sol.  No- 
vas portas,  todavia,  a  uniram  com  a  antiga  cidade, 
que  tão  rapidamente  crescera  e  se  fizera  garrida. 
Foi  por  ahi  que  lenta  e  traiçoeiramente  Lisboa  pô- 
de chegar  a  submelte-la  e  devora-la. 

E  quereis  saber  por  qual  rasão,  e  como?  Dir-vo- 
lo-hei.  Era  que  na  fronte  de  Villa-nova  de  Gibral- 
tar,  abaixo  do  seu  diadema  rutilante  de  princeza , 


o   PANORAMA. 


403 


estava  esoripla  uma  lenda  fatal  e  maldita;  uma  len- 
da que  por  nniito  tempo  fui  apenas  ignominiosa, 
mas  que  nos  (ins  do  secul»  lo.°  se  converteu  em 
sentença  de  morte  ,  em  signal  estampado  pela  m.ão 
do  archanjo  do  extermínio.  Esta  ieiula  encerrava 
apenas  duas  palavras,  mas  palavras  l)lasphemas , 
que  só  podiam  ser  apagadas  destruindo-se  a  exis- 
tência individual  da  povoação  que  se  atrevia  a  ap- 
prcsenla-las  diaiile  da  luz  do  céu. 

Villa-nova  de  (iilirallar  era  a  Comuna  dos  Judeus! 

A  idade  media,  essa  epoclia  altamente  poelica, 
porque  tinha  crenças  ;  e  profuiidamcnle  symliolica  , 
porque  era  pnelica  ;  havia  feito  de  l.ishoa  um  sym- 
bolo  da  historia  religiosa  e  politica.  O  município 
christiio  ,  partindo  do  alto  alcaçar  ou  castello,  díla- 
tava-se  aló  as  raízes  do  monte,  cm  cujo  topo  cam- 
peava a  cavallciro  de  lodos  os  cabeços  dos  arredo- 
res a  torre  de  menagem,  a  guarida  do  alcaidc-mór, 
como  representante  do  senhorio  real  e  da  aristocra- 
cia :  á  sombra  do  alcaçar,  e  a  mais  de  meia  encos- 
ta, a  cathcdral  alçava  os  seus  dois  campanários  al- 
tivos ,  quadrangulares  ,  macissos  :  entre  essas  duas 
expressões  materiacs  da  monarchia  ,  da  nobreza  e 
da  igreja,  a  casa  da  camará  —  os  paços  plebeus  do 
concelho  próximos  do  campanário  seplenirional  da 
sé  ,  chiios  c  humildes  representavam  o  povo  que  cm 
silencio  se  preparava  para  ir  estendendo  os  braços 
endurecidos  pelo  trabalho  ,  e  subjugar  algum  dia  , 
á  direita  o  alcaçar,  á  esquerda  a  igreja.  i\a  confi- 
guração da  cidade  resumin-se  a  historia  social  do 
passado,  e  a  prophecia  do  futuro.  Como  tantas  cou- 
sas da  idade  media,  Lisboa  era  um  verdadeiro sym- 
bolo. 

>'ão  o  era  só  ,  todavia  ,  do  pensamento  politico  : 
também  o  era  da  idéa  religiosa.  No  âmago  da  po- 
voação :  no  logar  eminente  estava  o  chrislianismo  : 
ao  norte  ,  em  profundo  valle  e  apinhado  em  volta 
de  mesquita  apenas  tolerada  ,  ficava  o  bairro  dos 
mouros — a  Dlonfaria  ,  e  ao  sueste  ,  quasi  ao  orien- 
te ,  lançada  ao  pé  da  Esnnga  a  Judcaria :  —  uma 
crença  verdadeira,  mas  temporária,  do  lado  donde  o 
sol  surgia  na  sua  ascensão  para  as  alturas  ;  a  reli- 
gião do  Christo  ,  complemento  divino  daquella,  as- 
soberbando-a  do  monte  sobranceiro;  o  islamismo  , 
transformação  impia  e  tenebrosa  d'ambas,  como  es- 
condido ao  norte  na  penumbra  da  cruz  triumphante  ; 
e  ao  longe  as  vastas  solidões  do  oceano  atravez  das 
quaes  os  filhos  do  evangelho  o  deviam  levar  algum 
dia  ás  regiões  ainda  incógnitas  de  novos  mundos. 
O  velho  Portugal  tinha  feito  da  cidade  do  Tejo  um 
symbolo  e  uma  prophecia  sublimes  I 

A  monarchia,  vencedora  da  idade  media,  esque- 
ceu a  poesia  delia  ;  porque  nos  seus  velhos  hábitos 
de  organisar,  de  legislar,  de  li\ellar,  perdera  in- 
teiramente o  senso  esthetico.  A  poesia  estava  prin- 
cipalmente nas  idéas  ,  no  sentir,  nas  formulas  das 
classes  aristocráticas:  o  povo  era  infeliz  e  selva- 
gem ,  c  a  monarchia  positiva  ,  calculadora  ,  egoís- 
ta. Com  a  victoria  final  desta  desapparcceu  tudo  o 
que  representava  o  ideal.  Belém  é  a  agonia  da  ar- 
te ;  é  o  estrebuxar  descomposto  da  architectura  chris- 
taã  que  morria  ;  e  o  cancioneiro  de  Resende  o  ul- 
timo concerto  dos  trovadores  em  que  já  se  mistu- 
ram os  sons  discordes  da  poesia  romana. 

Neste  crepúsculo  da  vida  nacional ,  nesta  passa- 
gem da  originalidade  para  a  copia  ,  as  ruínas  tom- 
bavam sobre  outras  ruinas  :  a  nova  sociedade  so- 
brepunha as  suas  obras  incertas,  frias  ou  estúpidas 
aos  restos  ainda  palpitantes  do  cadáver  do  passa- 


do ;  cirziaas  ridiculamente  com  remendos  c  fra- 
gmentos das  obras  c  fados  que  destruíra  ;  fazia  , 
cmfim  ,  por  um  pensamento  de  ordem  c  de  organi- 
sação  cxaggerado  ,  o  que  nós  muitas  vezes  fazemos 
boje  por  um  amor  de  liberdade  iruliscreto  e  exces- 
sivo. 

ív  curioso  o  ver  como  a  edificação  do  celebre 
mosteiro  Jcronimílano  de  lielcni  se  liga  com  a  des- 
truição da  eomuiuna  judaica  de  \illa-nova  de  Gi- 
braltar; como  esse  monumento  da  transição  da  ar- 
chitectura, esse  cahos  de  todos  os  syslenias  que  lu- 
ctavam  no  principio  do  16.°  século,  reuiiidos  ,  e  por 
assim  dizer  petrificados  de  subllo  n'um  edifício  só  , 
traz  forçosamente  á  leml)rança  a  ruína  d'nm  facto 
da  ordem  moral  que  existira  inconcusso  entre  nós 
por  quatrocentos  auiujs  —  a  tolerância  da  idade  me- 
dia. De  feito  a  tolerância  religiosa  expirava  ao  pas- 
so que  a  architectura  chrislaã  morria  ,  e  as  bulias 
da  inquisição  vinham-nos  talvez  pelo  mesmo  cor- 
reio que  trazia  aos  nossos  archilectos  os  dcseidios 
puros  e  materialmente  formosos,  mas  pagãos,  e  pe- 
regrinos de  Bramante  ou  de  Uaphael. 

Um  phenomeno  por  certo  singular  nos  appresen- 
ta  a  historia  antiga  de  Portugal.  IVa  larga  serie  de 
leis,  de  artigos  de  curtes,  de  factos  públicos  até 
os  fins  do  século  15.°  a  crença  viva  de  nossos  avós 
se  limita  sempre  dentro  dos  termos  daquella  into- 
lerância legitima  que  a  verdade  não  pôde  deixar  de 
ter  para  com  o  erro.  O  chrislianismo  proclama-se 
ahi  franca  e  energicamente  a  única  religião  verda- 
deira :  o  ehristão  jnlga-se  uiu  homem  de  condição 
superior  ao  judeu.  O  povo  vigia  ,  até  ,  cora  ciúme 
que  o  israelita  conserve  sempre  no  trajo  um  distin- 
ctivo  da  sua  raça  réproba,  das  suas  doutrinas  erra- 
das. Mas  a  intíjlerancia  acaba  nesse  ponio  :  não  se 
imagina  ainda  que  o  lieslerro  ,  os  tralos  do  potro, 
e  o  cheiro  de  carne  humana  queimada  subindo  da 
fogueira  expiatória  sejam  sacrificios  agradáveis  a 
Deus.  Na  gente  judaica  havia  mais,  por  assim  di- 
zer, um  caracter  de  triste  fatalidade  pezando  sobre 
uma  raça  condemnada  pelo  seu  peccado  original  do 
Dcicidio ,  qne  o  de  uma  raça  maldita  por  crimes 
próprios.  «Os  judeus,  como  testemunhas  da  morte 
de  Jesu-Christo ,  devem  ser  defendidos  só  porque 
são  homens  :  »  —  estas  palavras  de  D.  AfTonso  2.° 
resumem  o  pensamento  da  idade  media  acerca  del- 
les.  É  o  pensamento  de  que  Lisboa  com  Villa-nova 
de  Gibraltar  foram  a  imagem  scnsivel.  No  alto  da 
sé  a  cruz  abrigada  á  sombra  do  castello  ehristão  , 
via  a  seus  pés  a  synagoga  —  a  humilhada  Esnoga  — 
que  testemunhava  alli  a  morte  do  Christo,  a  victo- 
ria do  Evangelho  ,  e  a  redempção  dos  homens  :  e  o 
que  orava  na  cathedral  sentia  só  desprezo  e  porven- 
tura compaixão  por  aquelle  que  orava  na  synagoga. 
Se  o  ódio  se  misturava  ás  vezes  com  esses  senti- 
mentos, motivos  não-religiosos,  mas  iiuramenie  ma- 
teriaes  o  geravam  :  geravam-no  as  riquezas  dolosa- 
mente acumuladas  pela  gente  hebrea  ,  os  vexames 
que  praticavam  coroo  exactores  da  fazenda  publica, 
as  suas  usuras  como  possuidores  de  capitães,  e  mil 
outros  motivos  humanos  em  que  nada  tinha  que  ver 
a  opposição  das  crenças. 

E  o  século  16.°,  que  era  erudito;  que  traduzia 
Cicero  eOvidio,  e  imitava  Horácio  :  o  século  da 
civilisação  ,  das  conquistas  ,  de  todas  as  grandezas 
cuspia  nas  faces  da  idade  media  ,  que  jazia  morta 
a  seus  pés,  o  epitheto  de  barbara  !  — ED.  Manuel, 
o  culto,  e  venturoso  monarcha  do  oceano,  esquecia- 
se  do  que  não  esquecera  a  seu  rude  e  obscuro  avô 


i04 


O   PANORAMA. 


D.  Afibn50  2.°:  esquecin-se  de  que  os  israelitas  es- 
tavam condcmnados  [iclo  Kei  da  Eleniidadc  a  va- 
guearem perpetuamente  na  terra  coma  tcslLiminlias 
da  miivie  de  Jrsu-Cliiislo.  Portugal  devia  ser  exce- 
ptuado desse  decreto  de  cima  ,  e  a  conversão  vio- 
lenta dos  judeus  fui  um  dos  factos  mais  estrondosos 
daquelle  tão  estrondoso  reinado. 

Da  communa  hebraica  ,  da  risonha  e  opulenta 
Villa-nova  de  Gibraltar,  apenas  um  vestígio  nos 
resta  ,  a  sua  synngnga  —  melhor  diríamos  o  sitio 
delia  —  convertido  cm  templo  christão.  É  uma  col- 
Icgiada  da  Ordem  de  Christo  :  é  a  Conceição  Ve- 
lha ;  velha  porque  já  as  cousas  dessa  epotha  ma- 
noelina  ,  tão  fastosa  ,  Ião  transformadora  ,  tão  des- 
tructiva  de  tudo  o  que  quer  que  fosse  ,  bom  ou 
máu  ,  das  eras  poéticas,  já  hoje  é  caruncho  e  po- 
dridão :  os  seus  numumentos  já  se  confundem  com 
os  que  ella  desprezava  como  bárbaros.  Fallai  no 
portal  rendilhado  da  Conceição  Velha  a  ura  verea- 
dor, a  um  politico,  a  um  pascasio  de  melenas, 
emfim  a  qualquer  inimigo  nato  das  cousas  mais  poé- 
ticas e  santas  da  pátria — os  monumentos  —  e  res- 
ponder-vos-ha  torcendo  o  nariz  ,  e  com  um  ademan 
parvo  de  superioridade  :  <i  Puh  diabo  !  isso  é  go- 
thico  !  u  Gothico  '  Ouves  ,  século  dezescis ,  sécu- 
lo romanista  ,  século  brilhante  ,  século  peralvilho  ? 
Ouves  lá  debaixo  da  tua  campa,  pezada  como  todos 
os  crimes  que  commetteste  no  oriente  ,  confundi- 
rem-te  hoje  com  os  séculos  rudes  e  pobres  da  no- 
breza d'alma  na  fidalguia  e  da  energia  popular? 
Mudaste  a  Índole  da  nação  ;  tornaste-a  de  guerreira 
em  mercadora  ;  de  municipal  em  cortesaã  ;  de  aus- 
tera em  voluptuaria.  Acccita  de  mãos  como  aquel- 
las  a  paga  da  tua  boa  obra. 

A  historia  da  esnoga  e  do  Mosteiro  de  Restei- 
lo  é  simples  :  tè-la-heis  lido  em  dez  livros  copiados 
uns  dos  outros  com  grande  augmcnto  e  gloria  das 
lettras  pátrias.  Onde  hoje  este  edifício,  amplo  co- 
mo o  poderio  de  D.  Manuel  ,  simula  aos  olhos  do 
vulgo  ,  na  vermelhidão  dourada  das  suas  pedras  , 
uma  idade  mais  provecta  que  a  verdadeira,  existia 
ura  conventinho  de  freires  de  Christo.  D.  Manuel 
vasou-os  na  synagoga  de  Villa-nova  ,  desentulhou  o 
chão  da  ermida  de  Santa  Maria  de  Belém,  que  as- 
sim se  chamava  ella  ,  alevaulou  a  machiua  que  ahi 
vedes  ,  chanlou-lhe  dentro  não  sei  quantas  dúzias 
de  frades  Jerónimos  de  Penhalonga  ,  e  morreu  dei- 
xando a  sua  obra  imperfeita.  Tratou  de  continua-la 
D.  João  3.°  nos  intervallos  em  que  lho  consentiam 
as  suas  incansáveis  diligencias  para  obter  a  santa 
inquisição,  contra  a  qual  reluctou  muito  tempo  a 
cúria  romana  ,  que  nem  sempre  é  tão  boa  como  al- 
guns a  fazem,  nem  tão  má  como  outros  o  allirmam. 
Na  regência  de  D.  Catharina  parece  ter-se  acabado 
a  igreja  como  actualmente  existe  («). 

E  a  esnoga  de  Ailla-nova  ?  A  esnoga  estava  re- 
formada ,  rendilhada  ,  baptisada  ,  christaã  e  contri- 
ta como  ....  como  os  judeus  allumiados  subita- 
mente pelo  Espirito-Santo  no  mesmo  dia  e  á  mesma 
hora,  por  um  decreto  real,  redigido  provavelmen- 
te pelo  secretario  António  Carneiro.  Aposto  que  não 
sabeis  quem  era  António  Carneiro?  Era  paraD. Ma- 
nuel o  que  fora  Antão  de  Faria  ,  que  também  pro- 
vavelmente não  conheceis,  para  1).  João  2.°:  um 
substituto  da  cadeira  monarchica  ,  um  marquez  de 
Pombal  de  ha  trezentos  c  quarenta  annos  ,  de  que 
pinguem  se  lembra  hoje,  comod'nqiii  a  outros  tre- 

(•)  Vcjii-se  a  eriKlil.i  e  liem  ili-liiie.nki  MniinrM  acerca 
do  mosteiro  de  lidem  inserta  no  vul.  0."   deste  jurnal. 


zentos  annos  ninguém   se  lembrará   do  marquez  de 
Pombal.  Sic  truitsil  gloria  iHiindi. 

Pois  não  o  merecia  António  Carneiro  !  —  Foi  mi- 
nistro de  peso  e  volume.  Os  papeis  da  sua  secreta- 
ria, ou  antes  do  Estado,  eram  em  portuguez  !  Quem 
me  dera  um  António  Carneiro  !  António  Carneiro 
foi  até  homem  agudo  e  engraçado  :  prova  disso  é  o 
preambulo  do  regimento  dado  á  collegiada  da  con- 
vertida synagoga,  em  29  de  janeiro  de  1504.  Evi- 
denteraeiíle  o  ritual  rahbínico  já  não  tinha  applica- 
ção.  Nesse  preambulo  conta  o  bom  do  secretario  a 
historia  da  transformação.  Eis  as  suas  palavras: 
(iComo  entendemos  [é  eirei  quem  falia  segundo  es- 
lylo  e  direito]  na  conuerção  dos  judeus  de  nosos 
reynos  pêra  á  nosa  santa  fée  serem  ajuntados,  he 
no  conhecimento  he  obras  delia  se  saluarem  ,  com 
muyta  deiiação  nos  oferecemos  he  deliberamos  da 
casa  da  esnoga  dos  judeos  queestauam  na  judiaria 
grande  desta  cidade,  asi  como  ella  era  a  mays  prin- 
cipal em  que  o  nome  de  noso  senhor  era  blasfema- 
do ,  he  as  coussas  de  nosa  santa  fée  católica  repro- 
uadas  e  eniniingoadas  ,  fazermos  huma  solene  igre- 
ja e  casa  da  enuocação  de  nosa  senhora  da  consei- 
ção  ,  na  qual  com  muy  grande  solenidade  e  deua- 
ção  os  ollicios  deuinos  fossem  celebrados,  he  ali, 
onde  a  noso  senhor  por  tanto  espaço  de  annos  e 
tempos  fora  feyto  tanto  deseruiço,  he  o  seu  nome 
he  as  suas  coussas  blasfemadas,  perpetuamente  he 
em  toda  a  perfeyção  seus  louuorcs  se  fizessem  ,  he 
o  culto  deuino  fosse  continuamente  ,  he  com  gran- 
de solenidade  exalçado. « —  Basta.  Não  me  digaes 
nada  do  estylo  d'Antonio  Carneiro  :  era  o  do  seu 
tempo.  Confessai  antes  que  não  esperáveis  que  a 
transformação  da  synagoga  em  igreja  fosse  uma  an- 
tilhese  religiosa  ,  um  trocadilho  ao  divino.  Essa 
perseguição  similhante  á  dostyrnnnos  dePioma  con- 
tra os  piimeiros  niartyres  do  cbristianismo,  alevan- 
tada  contra  os  judeus  portuguczes  ,  nos  fins  do  sé- 
culo 15.°,  foi  apenas  uma  (igura  de  rhctorica  feita 
por  D.  Jlaiiuel.  Oh  elegante,  oh  immortal  António 
Caineiro  1  Tu  ajudavas  teu  senhor  a  acabar  a  obra 
de  D.  João  2.°,  a  anniquilar  toda  a  poesia  da  ida- 
de media  ;  mas  tu  eras  mais  poeta  do  que  ella. 
Creanças  despedaçadas  por  seus  pais  para  não  se- 
rem entregues  aos  beleguins  missionados  ;  homens 
havia  pouco  opulentos  reduzidos  á  miséria  e  ao  des- 
terro ,  ou  obrigados  a  acceitarem  um  baptismo  sa- 
crílego ,  porque  era  recebido  por  violência  :  tudo 
quanto  ha  negro  e  infame  naquelle  procedimento 
em  que  até  não  faltou  a  covardia  de  se  respeitar  o 
direito  das  gentes  para  com  os  mouros  [lambem  ex- 
pulsos nessa  occasião]  porque  tiuliaiii  quem  podesse 
linga-los :  tudo  isto,  oh  excellente  .António  Carnei- 
ro, não  passou  de  uma  fórmula  de  Quintiliano,  ap- 
plicada  á  thcoria  do  culto!  Quem  jioderá  duvidar 
de  que  os  admiradores  do  grande  seeutn  ,  do  sécu- 
lo 1(5.°,  tem  prodigiosamente  desinvolvidas  as  proe- 
minências do  bom  e  do  bello? 

Da  esnoga  ,  reconstruída  em  templo  por  António 
Carneiro  e  por  D.  Manuel  ,  apenas  resta  a  portada. 
Também  era  a  cousa  única  formosa  e  alegre  em  to- 
da essa  negra  c  maldita  historia.  Se  quereis  estu- 
dar como  artistas  os  seus  delicados  lavores  ahi  a 
tendes  na  precedente  gravura  ,  e  se  não  vos  con- 
tentardes com  isso  ide  contempla-la  á  rua  da  Uibei- 
ra  Velha  ,  "antes  que  o  progresso  passe  por  lá  e  a 
derribe.  O  progresso  é  gordo  e  ancho  ;  não  cabe 
onde  quer  que  esteja  um  monumento. 

(A.  Herculano). 


o   PANORAMA. 


405 


Um  livro  imporUnlc,  curioso,  iiitido,  c  bcmquislo, 
acaba  de  sahir  dos  prelos  dcsla  Sociedade  pmpuga- 
dora  dos Conltecimeiilos  úteis:  ó  o  4."  vol.  das  obras 
do  Sr.  Almeida  Garrell  —  o  1.°  do  seu  bomanceiro 
CANCiONEiiio  GERAL.  Esle  lilulo  só  é  baslaotc  para 
provocar  o  interesse  do  liUerato,  desafiar  as  iincs- 
tigações  do  philologo,  altrahir  a  atlcnr.To  do  pliilo- 
sopho,  e  eslimular  a  curiosidade  de  todos;  porque 
a  poesia  popular  —  a  poesia  primitiva  que  hoje  nos 
ressuscita  ,  e  faz  reviver,  o  Sr.  (larrelt  ,  merece  e 
hade  ser  encarada  debaixo  de  todos  estos  aspectos  ; 
o  da  littcratura  para  instrucção,  o  da  pbilolugia  |ia- 
ra  estudo,  o  da  philosopliia  para  exame  do  caracter, 
índole  ,  moralidade  ,  e  civilisação  do  povo  que  nel- 
la  se  retratou  ,  ou  ,  antes  ,  que  com  cila  est.í  iden- 
tificado ;  e  finalmente  o  da  curiosidade  para  mimo- 
so recreio  do  espirito. 

«A  poesia  popular  [diz-nos  Ilcrder]  c  o  archivo 
do  povo,  o  thesouro  da  sua  scieaui.i  ,  da  sua  reli- 
gião ,  da  sua  theogonia  ,  da  sua  cosmogonia  ,  da 
\ida  de  seus  pais  ,  dos  fastos  da  sua  bistoria.  É  a 
expressão  do  seu  sentir  ,  a  imagem  do  seu  interior 
na  alegria  ou  na  tristeza,  junto  ao  leito  das  núpcias 
ou  da  sepultura.  » 

«A  poesia  popular  [escreve  Marmier]  é  a  voz  do 
povo  nos  dias  de  suas  profundas  commoções  ,  é  o 
canto  que  celebra  os  seus  heroes  e  os  seus  deuzes , 
que  proclama  os  seus  triumphos  e  lamenta  os  seus 
desastres.  É  a  epopca  dos  seus  tempos  heróicos,  e 
a  bailada  tradiccional  de  suas  crenças  supersticio- 
sas. È  o  cântico  de  .Moisés  sobre  a  montanha  ,  e  a 
elegia  do  desterrado  junto  aos  salgueiros  dos  rios  — 
Nasceu  nos  séculos  mais  remotos,  e  profunda  as  suas 

raizes  no  mais  árido  solo Esta  poesia    tem  uma 

hra  que  vibra  todas  as  paixões  ,  e  onde  todas  as 
ideas  tem  uma  corda  de  prata  ou  de  bronze —  É 
uma  linda  donzella  que  se  nas  queixa  de  amor  ou 
se  carpe  de  saudade....  È  uma  sybilla  com  o  ramo 
d'ouro  na  mão,  uma  magica  senhora  das  lendas  his- 
tóricas e  fabulosas,  da  mythologia  de  todas  as  espé- 
cies, das  mysteriosas  crenças  do  christianismo,  dos 
suecessos  mais  patheticos  do  mundo  real  ,  e  de  to- 
das  as  phanlazias    do  mundo   ideal Esta  poesia 

llexivel  e  variada  adapta-se  a  todos  os  acontecimen- 
tos ,  rellecte  no  seu  espelho  o  espirito  de  todas  as 
epochas é  a  imagem  do  povo.» 

11  A  poesia  popular  [na  opinião  do  Sr.  Garrett]  é 
uma  ingénua,  selvática,  caprichosa,  e  aérea  vir- 
gem das  montanhas,  que  se  appraz  nas  solidões  in- 
cultas, que  vai  pelos  campos  allumiados  do  palli- 
do  reflexo  da  lua  involta  em  véus  de  transparente 
alvura  ,  folga  no  vago  e  na  incerteza  das  cores  in- 
distinctas  que  nem  occulta  nem  patenteia  o  astro 
da  noite.  É  uma  beldade  misteriosa  que  frequenta 
as  ruinas  do  castello  abandonado,  da  torre  deser- 
ta ,  do  claustro  coberto  de  hera  e  musgo  ,  e  folga 
de  cantar  suas  endeixas  desgarradas  á  boca  de  ca- 
vernas fadadas —  por  noite  morta  e  a  horas  aziagas.  » 

«A  poesia  popular  [havia  já  muito  que  o  tinha 
dito  o  bom  velho  Montaigne]  e  puramente  natural, 
é  cheia  de  candura  ,  e  tem  graças  por  onde  pôde 
ser  comparada  era  belleza  á  perfeita  poesia  da  ar- 
te  ;  como  se  vè  nos  villancetes  da  Gasconha  ,  e  nas 
trovas  das  mesmas  nações  selvagens  que  nem  escre- 
ver sabem.  » 

E,  com  effeito,  a  poesia  popular  encontra-se  em 
todos  os  paizes,  remonta-se  aos  tempos  primitivos 
de  todas  as  nações,   é  a  expressão  espontânea  do 


sentimento  íntimo,  puro  ,  c  sincero  de  todos  os  po- 
vos. Os  antigos  e  modernos  viajantes  a  foram  achar 
nos  mais  frigidos  recessos  do  norte  da  Europa  ,  en- 
tre os  selvagens  da  America,  nas  hordas  da  Sibé- 
ria ,  nas  costas  do  Kanitschatka  ,  e  na  Uceania. 

Esta  poesia  popular  ,  arca  santa  do  sentir  ,  dos 
costumes  e  da  crença  do  povo,  que  todas  as  nações 
respeitam  com  veneração  ,  que  Iodas  cilas  tem  re- 
colhido ,  refundido,  imitado  e  parafraseado,  desde 
o  lim  da  idade  media,  e  que  por  séculos  esquecida 
foi  no  começo  deste  restaurada  com  maior  culto,  é 
a  que  o  Sr.  Garrett  salvando,  ainda  a  tempo  mas 
já  a  custo,  nos  começa  agora  a  mostrar  tão  couceí- 
luosa  como  elfganlen]cnle.  Éramos  nós  até  hoje  a 
única  nação  que  não  havia  coUeccionado  nem  consi- 
derado os  seus  cantos  (lopularcs.  Na  .Vllemanha  ,  e 
outras  nações  ,  desde  o  scculo  Xlll  que  se  empre- 
liendcm  e  conhecem  similhantes  coUccçõcs.  Da  mes- 
ma origem,  ainda  que  d'(iulra  espécie,  temos  o 
Niebelung  ,  c  as  Sagas  da  Scandinavia  para  o  pro- 
var; lemos  a  opinião  de  Muller  ,  de  iJulbech  e  de 
Grimm  citados  por  Marmier;  temos  cmfim  ,  ainda 
que  de  mais  próxima  data  mas  similhante  á  de  que 
tratámos  ,  a  collecção  do  Itumancero  historiado  de 
Rodrigues,  que  deu  á  Hespanha  em  1379  a  gloria 
de  ser  a  primeira  nação  que  principiou  a  publicar 
pela  imprensa  as  suas  trovas  populares  destegeuero. 

Modernamente  ,  porem  ,  tem-se  desenvolvido  em 
todas  as  nações  cultas,  especialmente  na  .Mlcnianha 
e  na  Inglaterra,  um  verdadeiro  zelo  por  estas  com- 
pilações, e  paráfrases.  Haverá  trinta  annos  que  >Val- 
ler  Scott  deu  impulso  a  esle  gosto  ,  que  fez  mudar 
completamente  o  caracter  da  littcratura  da  nossa 
idade.  As  reliquias  de  1'ercy,  os  specimcus  de  Éllis, 
os  romances  de  Uitson  ,  as  Iruras  populares  de  Ja- 
meson  ,  e  emlini  o  Miuistrcsli/  do  mesmo  Walter 
Scott ,  tinham  feito  conhecer  á  Inglaterra  ,  e  a  to- 
da a  Europa  ,  a  grande  importância  da  poesia  pri- 
mitiva dos  diflerenles  povos.  «Nenhuma  outra  na- 
ção porem  [diz-nos  ainda  .Marmier]  tem  excedido  a 
allcmaã  no  estudo  tanto  da  própria  como  da  estra- 
nha poesia  popular.»  Os  trabalhos  de  Herder,  de 
Gunlher,  de  Gcetze  ,  em  colleccionar  todas  as  tro- 
vas populares  do  norte  da  Europa  ;  os  de  Grimm 
em  fazer  conhecidas  as  d'Hespanha  ;  e  ultimamen- 
te os  de  Bellermann  sobre  as  nossas  portuguezas  ; 
estão  comprovando  a  asserção  do  escriplor  francez. 

O  Sr.  Garrett  comprehendeu  todo  o  valor  destes 
trabalhos,  e  a  influencia  delles  na  reacção  da  littc- 
ratura contra  a  tyrannia  greco-latina  que  a  tem  do- 
minado ;  pesou-lhe  a  lacuna  que  neste  assumpto  se 
achava  na  nossa  historia  lilteraria  ;  viu  os  homens 
eminentes  que  nas  outras  nações  se  occupavam  nas 
investigações  e  collecção  das  trovas  populares  dos 
seus  e  alheios  paizes;  e  o  Sr.  Garrett  que  tem  sido 
o  mais  nacional  e  popular  de  todos  os  nossos  poe- 
tas modernos  ,  desde  a  primeira  inspiração  da  sua 
musa  —  O  Camões  —  até  á  mais  recente  —  Fr.  Luiz 
de  Sousa  —  para  que  se  completassem  os  seus  rele- 
vantes serviços  ás  lettras  pátrias,  era  indispensável 
que  nos  desse  também  um  Romanceiro  e  Cancioneiro 
geral.  Com  a  sua  D.  Bianca  ,  com  o  seu  Auto  de 
Gil  Vicente,  e  com  este  Romanceiro,  tem  o  Sr.  Gar- 
rett feito,  não  só  entre  nós  mas  em  toda  a  penínsu- 
la ibérica  por  ser  o  primeiro  que  assim  levantou 
nella  o  pendão  d'este  moderno  movimento  liíterario, 
os  mesmos  serviços  que  ás  lettras  fizeram  em  Ingla- 
terra Walter  Scott  e  Byron,  na  .\llemanha  Schiller 
e  Uhiand  ,  e  na  França  Chateaubriand  e  Victor  Hu- 
go. Assim  como  estes  homens  tão  distinctos  pela 


406 


O  PANORA3IA. 


sua  posição  social,  saber,  c  talentos,  o  Sr.  Garrett 
apezar  de  suas  augustas  funcções  de  legislador  e 
magistrado  ,  tem  saiiido  aproveitar  uma  parte  do 
tempo  nestas  uleis  lucuhrarões,  a  ultima  das  quacs 
vai  ser  de  certo  snmmamente  apreciada  nos  mes- 
mos paizcs  estrangeiros. 

Esta  collecção  das  relíquias  aborígenes  da  nossa 
poesia  nacional  comprehcnile  as  antigas  trovas  can- 
tadas pelo  povo  ,  chame-se-lhes  embora  rimance  , 
xácara  ou  solau  ,  «desde  onde  memorias  ou  conje- 
cturas ha,  até  á  epocha  actual,  acompanhadas  d'ex- 
plicações  o  glossas,  que  hão-dc  servir  de  nexo,  que 
sejam  como  a  liaça  ,  o  nastro  que  áte  estes  perga- 
minhos. »  E  niio  será  só  o  texio  original  delias  «  res- 
tituído quanto  ó  possível  :  mas  também  estas  mes- 
mas trovas  rudes  e  por  vezes  extravagantes ,  con- 
vertidas cm  composições  lyricas  de  muita  graça  ,  e 
grande  mérito  ;  porque  dos  spccimens  ,  alguns  inó- 
ditos  ,  que  temos  visto,  podemos  escrever  que  na 
nossa  opinião  o  Sr.  Garrett  lhes  tem  sabido  conser- 
var toda  essa  còr  do  melanclidlia  ,  lluidez  e  natu- 
ralidade ,  que  constituem  o  seu  principal  caracter, 
dando-lhes  ao  mesmo  tempo  o  sabor  da  epocha  a  que 
lhe  pareceu  refcrirem-se. 

Estas  canções  populares  não  leni  data  nem  nome 
d'auctor  ,  nem  da  maior  parle  delias  se  pode  saber 
se  a  sua  origem  é  inquestionavelmente  nacional,  ou 
se  foram  tão  somente  nacionaiisados.  Transmiltidas 
de  séculos  para  séculos  unicamente  pela  tradição 
oral,  diflicultosamente  chegaram  aos  nossos  dias, 
porque  Foragidas  das  cidades  onde  o  requinte  da 
civilisação  ,  o  luxo  e  os  maus  costumes,  foram  pro- 
gressivamente arrefecendo  a  exaltação  poética  do 
povo,  lá  se  acolheram  á  innocencia  dos  campos,  on- 
de ainda  zelosos  pesquizadores  as  poderam  encun- 
Irar  ,  mas  d'onde  a  corrupção  de  nossos  dias  as  vai 
já  expulsando,  c  baldadas  tornaria  tacs  buscas  se 
tão  oppíirlunamente  se  não  pozesscm  por  obra. 

As  lendas  dos  santos,  e  muitas  trovas  mysticas  , 
a  ode  (o  canso  das  trovadores)  ,  a  elegia  (planhj  ,  a 
ccloga  (pastorclla)  ,  e  outras  composições  desta  es- 
pécie, havia  muito  que  estavam  recolhidas  nos  Can- 
cioneiros do  Cullcgio  dos  NolM'es  ,  no  de  Resende  , 
e  n'ou[ro  que  existe  ms.  na  real  Bibliotheca  doEs- 
curial ;  (*)  mas  estes  cancioneiros  são  os  nossos 
mcistcrsmngcr  ,  faltava-nos  a  collecção  dos  cantos 
singelos  e  rudes  do  povo,  a  compilação  de  Herder, 
as  imitações  deSchIegcl,  as  recomposições  deSchil- 
ler  e  Burger.  Esta  falta  ó  a  que  neste  volume  se 
começa  a  supprir.  Depois  d'um  elegante  trecho  em 
prosa  ,  fundido  naquelle  typo  de  espontaneidade  e 
candura  peculiar  á  prosa  do  Sr.  Garrett,  abre  elle 
pelo  bello  rimance  da  Ádozinda  já  com  a  sua  eru- 
dita inlroducção  ,  tão  nosso  conlieciíio  c  gostado.  È 
iim  verdadeiro  modelo  do  género,  com  toda  a  sua- 
vidade de  metro  e  estylo  ,  com  Ioda  a  ingenuidade 
de  linguagem  ,  com  toda  a  mclancholia  e  verdade 
d'um  rimance  da  idade  media  ,  c  com  Ioda  a  deli- 
cadeza e  graça  das  conveniências  do  nosso  século. 
Segue-se  outro  mais  curto  mas  não  menos  lindo,  já 
lambem  nosso  conhecido, — Jlcrnal  Franccz- — -acom- 
panhado porem  com  uma  novidade  ,  a  sua  Iraduc- 
ção   em  iuglez  (::).    Apoz   estes  vem  um  pequenino 

(•)  Acabamos  de  salier  agora  d'ontro  Cancioni-iro  nos- 
so qtie  se  eslú  iniprimimlo  em  Paris  —  o  celebre  Cancionei- 
ro ms.  irelrei  D-  Diniz  —  achado  pelo  Exni.°  Sr.  Viscon- 
de (la  Carreira  cm  líiiina. 

(::)  No  Furci/jiiQniirlih/ Tievicw,  lom.  \',  1032,  encon- 
trámos I.nniljCni  uns  fríi;;rn(Mitos  tia  yiíloziíiíía  (radtizidos  em 
inglcz ,  rjiie  provam  qnaiilo  om  Iniílaterra  Reaprecia  esle 
género  de  poesia ,  e  se  estimam  os  cscriplos  do  Sr.  Garrett. 


romance  novo,  como  todos  os  mais  que  se  lhe  se- 
guem ,  —  .1  noilc  de  S.  João  —  cheio  de  poesia  e 
do  colorido  da  antiguidade  local  c  da  epocha  ;  qua- 
lidades que  muito  mais  c  brilhantemente  se  desin- 
volvem  no  que  se  lhe  segue  —  O  anjo  c  a  princeza 
—  em  que  o  mysticismo  e  o  fanático  d'uma  crença 
sem  illustração  mas  cândida  ,  são  mui  bem  imita- 
dos das  trovas-lendas  dos  menestréis.  O  chapim  d' ei- 
vei,  «é  uma  xácara  reconstruída  de  fragmentos  da 
composição  popular.»  Na  introducção  deste  roman- 
ce levanta  o  Sr.  Garrett  a  questão  da  dilferença  que 
porventura  se  dá  entre  xácara,  soláu  ou  rimance. 
iSão  é  fácil  marcar  a  dislincção  ,  ao  menos  por  em- 
quanto  que  não  está  ainda  explorada  ,  nem  ao  me- 
nos sondada  ,  a  origem  e  historia  da  nossa  littera- 
tnra  ,  alem  do  século  15."  Temos  para  nós  que  o 
soláu  ,  como  nos  parece  indicá-lo  o  vocábulo  ,  é  o 
canto  d'nm  só,  isto  c,  que  narra  lamentando,  ou 
só  moralisa  a  desgraça  amorosa  acontecida  a  um 
personagem:  seria  talvez  o  propriamente  lyrico  da- 
quellas  idades.  E  julgámos  assim  harmonisados  os 
dois  logares  de  Bernardim  Hiheiro  e  Sá  de  Miran- 
da, citados  pelo  andor  sobre  este  mesmo  vocábulo. 
O  rimance  [irimilivo  não  admitte  tantas  duvidas 
nem  coiijceluras  ,  pelo  menos  a  convenção  lem-lhe 
dado  uma  certa  classificação  épica  ,  que  desfrucla 
sem  controvérsia.  Resla-nos  porem  a  xácara,  cuja 
definição  nos  parece  ainda  mais  dillicil  do  que  a 
de  soláu.  lí  certo  que  a  forma  dramática  predomi- 
na em  certas  composições  ,  que  porventura  por  isso 
se  chamavam  xácara,  mas  até  que  ponlo  isto  é  ver- 
dadeiro é  o  que  nos  não  atrevemos  a  assignar.  En- 
tre os  trovadores  ,  e  nas  poesias  palacianas  da  epo- 
cha, não  ha  memoria  de  dramas  d'onde  o  povo  por 
imitação  fizesse  as  suas  xácaras;  por  outro  lado  pa- 
rece liira  do  natural  que  a  poesia  provençal  que  se 
exerceu  em  todos  os  géneros  ,  não  se  ensaiasse  no 
mais  poético  e  philosopliico  de  todos  —  o  dramáti- 
co. Na  vida  dos  poetas  provençacs  falla-se,  é  verda- 
de, n'nma  certa  comedia  d'Anselmo  laidit  [Erejia 
deis  preveires]  a  Heresia  dos  padres,  que  se  diz  re- 
presentada nu  corte  do  marquez  dcIMontfcrrat.  Mas 
a  isto  ser  verdade,  seria  pos.sivel  que  esta  compo- 
sição fosse  singular  no  seu  género?  e  se  isso  não  é 
possível,  onde  estão  as  memorias  d'outras  similhan- 
tes?  Como  quer  que  seja,  conhece-se  uma  certa 
composição  provençal,  denominada  tenso,  que  era 
um  dialogo  em  forma  de  disputa,  e  de  que  Uay- 
nouard  nos  cita  um  specimen  ;  mas  isto  tudo  está 
muilo  longe  da  espécie  de  rimance  cm  que  se  in- 
troduzem interlocutores,  a  que  especialmente  o  Sr. 
Garrett  chama  xácara.  A  dislincção  pode  e  convirá 
acceilar-se  ,  porem  os  fundamcnios  para  ella  é  que 
nós  não  podemos  ainda  encontrar  na  auctoridade  an- 
tiga nem  na  nossa  imaginação  (§). 

O  volume  termina  com  o  bonito  romance  de  — 
Uozalinda  —  em  quanto  a  nós  o  mais  poelico  de  to- 
dos ;  ha  nelle  tal  força  de  sentimento,  uma  tal  bel- 
leza  de  narração,  uma  imagem  Ião  palbetica  ,  jun- 
to tudo  a  uma  tal  concisão  c  singeleza  ,  que  nos 
prendo  o  encanta.  Com  tal  remate  ,  ainda  quando 
não  houvessem  tantas  outras  rasões  para  isso  ,  for- 
çosamente se  nos  estimulam  os  desejos  de  novas  pu- 
blicações deste  género,  e  nos  cresce  a  anciã  de  ver 
a  continuação  do  tão  bem  ,  mas  apenas ,  encetado 
romanceiro  ,  que  o  Sr.  Garrett  nos  allirma  achar-se 
prompto  ;  c  por  isso  a  brevidade  em  satisfazer  a  cu- 

{^)  Não  ignorAmos  porem,  que  D.  Francisco  l\[anuel, 
mni  boa  aiidoridaOe ,  nos  <liz  =  e  começaram  logo  um  dia- 
logo em  verso  ,  ú  maneira  de  xúcara.  = 


o  PANORAMA. 


407 


riosidade  publica  só  está  dependente  dos  Sr."  Edi- 
tores,  que  muito  confiámos  nos  não  hãode  fazer  es- 
perar, e  redobrarão  o  seu  zelo  tanto  na  brc\ idade 
como  na  nitidez  da  edição,  de  que  este  volume  nos 
é  boa  prova,  pelo  esmero  com  que  saliiu  impresso, 
asselinado  e  correcto. 

Mas  aquella  affirmaliva  do  Sr.  Garrett  não  se  li- 
mita ao  seu  Komaiicciro :  outra  producção  sua,  que 
ainda  inédita  goza  já  de  cre<litos  coUossaes,  está  a 
ponto  de  sabir  á  luz  —  é  o  seu  excellente  drama 
Fr.  Lrii:  de  Sousa  ,  de  que  a  inspiração,  a  sensi- 
bilidade, e  a  arte  fizeram  um  modelo  no  seu  gé- 
nero. 

lia  ainda  outra  Obra  importantíssima  de  que  se 
nos  proraelte  também  em  breve  o  começo  da  publi- 
cação—  Os  nltimos  vinte  annos  da  historia  de  Por- 
tugal—cujo  assumpto  summaraeute  embaraçoso  e 
delicado,  não  duvidamos  que  seja  tratado  pela  phi- 
losophia,  experiência  ,  e  idcas  de  tolerância  do  Sr. 
Garrett ,  cora  esse  tacto  fino  ,  penetração ,  e  espiri- 
to patriótico  que  tanto  o  distinguem  como  estadista. 

Tornando  porem  ao  Uomancciro  ,  de  que  o  termo 
da  revista  do  seu  primeiro  vulume  nos  desviou  , 
parece-nos  que  o  Sr.  Garrett  no  concertar  ,  recom- 
por ,  c  arremedar  cslas  composições  c  relíquias  da 
nossa  antiga  poesia  popular  ,  ba-de  desmentir  Gtr- 
Ihe,  apezar  de  Ião  conhecedor  como  experiente  d'cs- 
le  objecto.  «Nós  os  modernos  [disse  elle]  sabemos 
mui  bem  sentir  a  grande  belleza  d' um  assumpto 
simples,  c  natural,  sabemos  como  elle  se  deve  con- 
tar ,  e  todavia  não  nos  desempenhámos  quando  o 
queremos  fazer.  O  espirito  nos  domina  demasiada- 
mente ,  e  abafa  todas  as  graças  naluraes. »  Porem 
o  Sr.  Garrett,  na  Rozalinda,  no  Clmpim  d'ehei,  no 
Anjo  c  a  Princcza ,  não  só  sentiu  essa  naturalidade 
e  singeleza  ,  mas  soube  também  exprimi-la  com  to- 
da a  propriedade  e  graça  ingénua  do  pensamento 
primitivo. 

Ainda  não  concluiremos  sem  ao  menos  lembrar  o 
fructo  que  desta  collecção  de  trovas  se  poderia  ti- 
rar se  se  resolvessem  certos  pontos  que  suscita  a  sua 
leitura.  Tocaremos  nos  que  nos  parecem  mais  prin- 
cipaes. 

Poderá  organisar-se  esta  collecção  tão  sysleraati- 
camente  ,  desde  o  tempo  a  que  se  remouta  até  ao 
cm  que  fiiialisa  ,  que  possa  servir  para  por  ella  es- 
tudarmos e  conhecermos  não  só  os  diversos  lypos 
mas  também  os  dilTerentes  cyclos  da  nossa  poesia 
popular?  É  idéa  assentada  que  toda  a  poesia  i)rimi- 
tiva  ó  de  narração  :  a  infância  das  nações  é  toda 
acção  ,  e  consequentcmeule  a  poesia  oriunda  d'esta 
infância  deve  ser  épica  :  d'aqui  a  maior  antiguida- 
de do  romance  e  da  xácara  ;  depois  vem  o  solau  , 
porque  a  poesia  lyrica  que  nos  expressa  pura  e  sim- 
plesmente o  «sentimento»  só  pode  proceder  da  re- 
flexão, e  consequentemente  de  mais  quietação  d'a- 
nimo  ,  e  permanência  d'estado. 

A  antiguidade  d'estas  trovas  poderá  fixar-se  pelo 
seu  caracter  ou  pela  sua  forma?  O  mecanismo  do 
seu  melro  é  cora  cffeilo originariamente  portuguez? 
A  continuidade  da  mesma  rima  n'a!gíjmas  será  pe- 
culiar a  certa  espécie  ,  ou  é  arbitraria  ,  ou  emfim 
pertence  exclusivamente  a  algum  cyclo? 

Esla  poesia  voluptuosa,  exaltada,  extravagante, 
mystica,  tudo  ao  mesmo  tempo,  forçosamente  solTreu 
modificações  provindas  dos  costumes  e  illustração 
do  povo,  visto  que  procedia  dos  mais  Íntimos  sen- 
timentos delle  :  logo,  que  grau  de  importância  chro- 
nologica  c  moral  púJe  ler  esla  poesia  na  historia 
pátria  ? 


Datam  porventura  os  riraances  desde  o  aconteci- 
mento a  que  se  referem?  É  certo  que  as  interru- 
pções extravagantes  ,  a  falia  de  nexo  ,  a  scisão  da 
narrativa,  mauifeslando  o  improviso,  prcsnpõe  lam- 
bem cabal  conliccimenlo  do  assumpto  não  só  em 
quem  narra,  mas  lambem  que  facilmente  se  sup- 
pi"iz  existir  nas  pessoas  a  quem  elle  se  contava. 

O  cantar  à  dcsyarrada  ,  usado  ainda  hoje  pelos 
nossos  camponezcs,  derivará  destes  cantos  popula- 
res, ou  em  sua  origem  não  foram  clles  mais  do  que 
isso,  com  similhante  melopea  e  ryihmo,  applicados 
a  um  assumpto  conhecido? 

Pensamos  que  a  elucidação  destes  tópicos  não 
interessaria  só  a  historia  littcraria,  e  em  especial  a 
deste  género  de  poesia  ,  mas  que  aproveitaria  lam- 
bem muito  á  historia  da  nação  em  geral  ,  que  não 
seja  uma  lista  chronologica  de  factos  mais  ou  me- 
nos notáveis,  mas  verdadeira  historia  de  nossos  cos- 
tumes, civilisação  c  exislcncia. 

Silva  Leal. 


As    nOAS    TESTAS. 


Bem  cerlos  de  que  nos  choverão  apupos  d'um  povo 
que  por  ahi  blasona  d'iiluslrado  ,  nem  por  isso  nos 
acovardámos  ,  nem  tememos  sahir  a  publico  com 
emboras  de  Boas  festas.  Por  quanto  menos  podem 
em  nós  rasões  de  tibieza  para  com  os  bons  costu- 
mes ,  que  o  exemplo  de  nuiilos  séculos  fundado  na 
santa  consideração  que  devemos  á  honra  do  Divino 
Libertador.  Nasce  o  filho  d'um  rei  da  terra,  que  ás 
vezes  traz  comsigo  o  gérmen  da  tyrannia  n'uma  Ín- 
dole de  ferro,  é  publico  e  geral  o  regosijo,  todos 
se  promettem  venturas  ,  quando  lalvez  o  chorar  fo- 
ra melhor  acerto  !  Nasceu  o  Primogénito  do  Rei  dos 
reis,  provou-nos  seu  infinito  amor  ao  ponto  de  per- 
der ávida  á  força  de  affronlas  e  tormentos;  e  o  filho 
ingrato  desse  Pai  ,  o  vassallo  indigno  desse  Sobera- 
no que  o  arrancou  dos  eternos  cárceres,  fazendo-lhe 
arrojar  as  cadèas  aos  pés  do  vencedor  confundido  , 
hade  corrcr-se  de  mnuifeslar  o  seu  contenlamento 
pelo  dia  Natal  do  seu  Redemplor  I  A  causa  bem  sa- 
bida é.  Essa  raachiua  reformadora  do  século  ,  que 
parece  rolar  como  um  mundo  de  bronze  por  cima 
deste  nosso  mundo,  arrasando  quanto  não  é  seu  sem 
nenhum  respeito  a  conveniências  e  necessidades, 
não  cança  de  entender  em  seu  ofiicio.  O  costume  de 
nos  felicitarmos  por  Ião  boa  nova  era  edificio  golhi- 
co  ,  força  era  desabar  ,  c  como  não  linha  niateriaes 
que  armassem  para  uma  praça  de  touros,  ou  para 
um  thealro  ,  justificou-se  o  feito  com  o  desassom- 
bramento  da  impiedade  ,  que  assim  se  poderá  me- 
lhor espraiar  tendo  de  menos  esse  pilar  que  lhe  da- 
va de  rosto.  Senão,  que  oulra  cousa  lucrámos  dabi? 
e  porque  não  foi  lambem  ao  chão  com  ornais  nobre 
do  edificio  a  intemperança  na  consoada,  que  de  tan- 
tas irreverências  e  desacatos  acompanha  a  Missa  do 
Gallo?  Fica  só  o  que  é  abuso  máu  e  pernicioso,  e 
acaba  o  que  era  instituição  louvável  e  santa  I  nem 
mais  ha\ia  a  esperar  da  civilisação  do  Icmpo  ,  que 
com  quanto  pareça  vai  a  melhor,  caminha  tão  ar- 
rastada que  só  á  força  de  muito  quebrar  os  olhos 
se  lhe  enxerga  adiantamento.  Convimos  cm  quencm 
tudo  que  não  é  d'agora  seja  bom  ,  e  fora  o  discor- 
dar absurdo  senão  rematada  loucura  :  porem  ande 
o  discernimenlo  e  o  bom  juízo  a  par  da  reforma  ,  e 
saibamos,  anles  de  destruir,  a  rasão  porque  se  fará, 
e  o  fim  para  que.  Em  nosso  pouco  discorrer  enten- 
demos que  será  sempre   de  nenhum  proveito  qual- 


408 


O   PANORAMA. 


quer  mudança  no  que  toca  a  religião,  ou  no  que 
delia  nos  veio,  sendo  aliás  sabida  a  perda.  Quere- 
mos reformarão  ,  mas  nos  abusos  e  superstições  a 
que  o  povo  está  ainda  tão  aferrado  como  a  princí- 
pios de  fé.  Não  se  faça  duvida  no  que  temos  pre- 
senciado com  muita  mngua  do  nosso  coração.  Gen- 
le  lia  que  não  duvida  despender  cora  benzedeiras  e 
impostores  todo  seu  haver  ,  como  se  lhe  figure  que 
em  sua  casa  anda  alma  do  outro  mundo.  Nomeára- 
mos aqui  terras  e  nomes  de  indivíduos  em  testemu- 
nho nosso  ,  se  a  caridade  nos  não  desviasse  de  as- 
soalhar fraquezas  do  próximo.  Também  notámos  to- 
dos os  dias  o  terror  com  que  alguns  encaram  aquel- 
la  mulher  que  suspeitam  professa  nas  artes  de  bru- 
xaria ,  a  quem  fazem  carregar  com  a  morte  das 
creanças  e  dos  gados,  com  as  doenças  prolongadas 
que  padecem  ,  e  com  todos  os  seus  desastres.  Fi- 
nalmente nos  Idbishomens  ,  agouros  ,  encantamentos 
e sortes,  nas  ofiertas  de  pão,  vinho  e  gallinhas,  que 
vão  na  frente  dos  sahimentos  ,  representando  ao  vi- 
vo as  comesanas  da  gentilidade;  nisto  e  no  mais 
que  se  pratica  com  tanto  dcscaro  ,  particularmente 
nas  aldeias,  desejámos  ver  descarregar  a  espada  da 
illuslração ,  persegnindo  a  justiça  os  embusteiros 
como  fomentadores  da  idolatria  ,  conlra  os  quacs 
não  faltara  leis ;  e  tomando  os  sacerdotes  a  peito 
corrigir  o  povo  pelos  meios  que  lhes  sobram,  re- 
correndo ora  á  auctoridade  dos  livros  sagrados,  ora 
ao  rigor  das  penitencias  ao  seu  alcance.  Hepetimos 
que  das  diligencias  dos  clérigos  se  alcançaria  nesta 
parte  grande  proveito  ,  não  sendo  comtudo  menor  a 
obrigação  que  lhes  peza  de  velarem  pela  pureza  da 
religião  que  seu  Divino  Mestre  ensinou  ;  pureza  a 
que  tão  estreitamente  anda  ligada  a  felicidade  espi- 
ritual e  temporal  dos  povos.  Porem  nisto  não  se  cui- 
da, nem  talvez  se  repara,  c  só  se  julgou  convenien- 
te desprezar  a  antigualha  das  Buas  Festas,  Ião  inno- 
cente  ,  tanto  de  louvar,  e  tão  digna  do  povo  chris- 
lão.  Alguém  a  taxa  de  incommoda  !  bem  importu- 
no, traquina,  e  desalmado  é  o  entrudo,  e  ninguém 
se  poupa  ás  suas  desenvolturas  !  só  para  a  honra 
de  Deus  ha  escrúpulos  e  delicadezas  —  e  vamos  ca- 
minho da  civilisação  1  Para  muita  gente  passaria 
não  sentida  a  festa  do  Natal  ,  se  a  gula  a  não  trou- 
xesse de  memoria  ,  sem  lembrar  o  exemplo  d'abs- 
linencia  e  pobreza  que  nos  deu  aquelle  Divino  In- 
liocentinho  ,  deitado  em  humildes  palhas  ,  e  sem 
outro  travesseiro  que  o  regaço  de  sua  AirgemMãi. 
Concluiremos  pedindo  que  vá  por  diante  o  nosso 
santo  costume  das  Boas  Festas ,  que  será  para  não 
poucos  de  severa  reprehensão  por  não  entrarem 
n'um  templo,  nem  lançarem  mão  d'um  livro  espi- 
ritual no  primeiro  dia  solcmne  do  christianismo. 
N.  M.  de  Sousa  Moura. 


E301TC1CIA  D01CS3:?IC!A  (•)• 

A  FftcuLA  ,  ou  a  parte  gomosa  e  gelatinosa  dos 
grãos  é  composta  de  pequeníssimos  vasos  ou  saccos, 
dentro  dos  quaes  se  encerra  aquclla  substancia  nu- 
tritiva :  estes  envolutorios  abrem  e  arrebentam  su- 
jeitando o  grão  a  uma  certa  temperatura  de  calor. 
Ora  ó  visivel  que  quando  os  animaes  ingerem  estes 
saccos  inteiros  de  fécula  ,  elles  passam  pelas  vias 
digestivas  sem  deixarem  ahi  a  substancia  gomosa 
eminentemente  nutriente,  l-j  é  precisamente  o  que 
acontece  quando  se  ministram  aos  animaes  grãos  ou 
farinhas   cm  crú.   Como   todas   as  cousas  novas  tem 


(•)     Coucluido  de  pag.   392. 


seus  oppositorcs  disseram  também  desta  que  o  grão 
perderia  pela  coscdura  os  princípios  estimulantes 
que  elle  encerra  ,  assim  como  o  sabor  aromático 
que  excita  o  appelite,  e  talvez  outros  bons  e  fiei  tos  ; 
porem  contra  isso  está  a  experiência  ;  e  nma  parte 
desse  inconveniente  se  remove  escaldando  apenas 
cm  agua  fervendo  os  grãos  e  farinhas.  As  vantagens 
da  pratica  que  propomos  consistem  nos  principios 
seguintes:  1.°  melhor  alimento  nutritivo  pela  fécu- 
la ou  substancia  gomosa  aproveitada  ;  2.°  livrar  os 
animaes  das  indigestões  ,  encruamenlos  e  tenesmos 
que  ocasiona  o  methodo  contrario;  3.°  economia  , 
porque  todo  o  grão  se  converte  em  alimento  dige- 
rivel  cm  logar  de  perder-se  uma  parte  delle  que  se 
não  digere;  4.°  augmentar  o  volume  da  ração  quan- 
do sujeita  á  acção  da  agua  a  ferver  ;  S.°  tirar  ao 
grão  a  pragana  e  o  pó  ,  que  sempre  mais  ou  menos 
o  acompanha  em  crú  ;  6.°  o  admittir-se  por  esta 
pratica  uma  maior  extensão  de  grãos  para  ração  ca- 
vallar,  como  é,  alem  da  avèa  e  da  cevada,  a  do 
milho  e  do  centeio  ,  que  sendo  escaldados  podem 
minislrar-se  sem  escrúpulo,  assim  como  a  fava  que 
dá  grande  vigor  e  energia  aos  cavallos. 

Da  coscdura  de  fruclos  por  meio  do  vapor. 

No  angulo  interno  de  dois  muros  cm  sitio  abri- 
gado ,  n'um  páteo  ,  ou  rocio,  ou  quintal  se  estabe- 
lece sobro  dois  poiaes  ou  paredes  de  dois  palmos 
d'clevação  uma  caldeira  de  modo  que  fique  bem 
ajustada  tapando-se  e  barrando-se  os  intervallos  pa-^ 
ra  se  não  perder  a  acção  do  fogo  :  e  estabelecida 
assim  como  caldeira  d'alambique  ,  se  lhe  ajusta  na 
boca  em  lodo  o  seu  diâmetro  um  barril  de  pau  bem 
vedado,  e  cujo  fundo  fora  furado  a  miúdo  como 
crivo  ralo ,  afim  de  receber  commodamente  o  va- 
por :  deita-se  uma  porção  d'agua  que  não  encha 
totalmente  a  caldeira  ;  e  se  enche  o  barril  de  bata- 
tas ,  maçaãs,  ou  outros  quacsqucr  fruclos  ou  legu- 
mes que  se  pertenda  coser:  e  preparado  assim  mel- 
tc-sc  o  fogo  por  baixo  da  caldeira.  A  agua  chega  á 
ebulição  e  evpelle  o  vapor  lodo  que  sobe  pelo  crivo 
do  fundo  do  barril,  e  dentro  de  duas  horas  tem  co- 
sido mais  ou  menos  os  fruclos  sobrepostos  segundo 
sua  natureza  mais  ou  menos  branda.  Para  assegu- 
rar se  a  coscdura  está  completamente  feita  se  deixa 
no  tampo  superior  do  barril  um  botoque  que  se  con- 
serva fechado  durante  a  coscdura  ,  e  se  tira  para 
fazer  a  prova  ,  á  qual  se  procede  apalpando  os  fru- 
clos ou  legumes  com  uma  agulha  ou  colher  de  ca- 
bo torto  para  não  queimar  as  mãos  pela  acção  for- 
tíssima do  vapor. 

Todo  o  segredo  desta  operação  cm  geral  consiste 
em  que  o  vapor  não  possa  sahir  nem  distrahir-sc 
senão  para  o  barril  superior,  c  cm  que  o  barril  te- 
nha assaz  de  espessura  e  calafeto  para  concentrar 
o  calor  dentro  do  seu  bojo.  O  maior  ou  menor  espa- 
ço de  tempo  da  coscdura  depende  ,  alem  da  quali- 
dade particular  dos  fruclos  ou  legumes  ,  da  quanti- 
dade do  vapor  fornecido  n'nm  tempo  dado  ,  e  este 
será  tanto  mais  enérgico  e  abundante  quanto  o  fogo 
for  mais  vivo  e  mais  constantemente  mantido. 


f§^^  Os  5)»-.'"  Subscriptorcs  ,  residentes  em  ter- 
ras onde  a  Sociedade  não  tem  correspondentes ,  que- 
rendo continuar  ,  podem  mandar  renovar  quanto  an- 
tes as  suas  assignaluras  ,  enviando  as  importâncias 
pelo  Seguro  do  Correio  geral  ,  porte  pago ,  afim  de 
que  não  so/fram  interrupção  no  recebimento  do  Jornal. 


105 


o  PANORAMA. 


iOÍ> 


^? 


PAUIS, 


Os  LIMITES  de  Paris  foram  assignalados  pela  mura- 
lha erecta  para  a  verificação  e  percepção  dos  direi- 
tos de  barreira  sobre  os  géneros  do  consumo  da  ca- 
pital ,  em  tempo  de  I-uiz  16.° :  é  ura  contorno  que 
apesar  de  interrompido  por  muitas  irregularidades, 
approxima-se  á  figura  elliptica  ou  oval  :  as  barrei- 
ras já  furam  mais  ,  porem  ficaram  reduzidas  a  30  , 
em  1830.  —  Nada  tem  esta  cerca  com  as  fortifica- 
ções ou  linha  de  defeza  ,  que  estão  construindo 
agora  ,  e  que  vai  correr  com  muito  mais  extenso 
diâmetro,  alem  da  povoarão  compacta.  Por  fora  dos 
muros  ha  um  caminho  .  guarnecido  de  lamcdas  ,  e 
é  o  que  chamam  boulevards  exteiicurs  ,  couraças 
da  banda  de  fora.  Eminências  em  todo  o  circuito 
fecham  a  cidade  ,  que  está  situada  n'uma  baixa  , 
como  amplíssima  bacia  ou  caldeira.  A  população 
em  1836  era  de  909,126  almas  (.). 

Acerca  actual  abrange  alguns  bairros,  que  d'an- 
tes  estavam  fora  das  muralhas  demolidas  por  Luiz 
14.°  e  eram  denominadas  faux-hourgs  ,  arrabaldes, 
nome  que  ainda  conservam  :  algumas  aldeias,  anti- 
gamente apartadas,  mas  que  pelo  gradual  incremen- 
to da  cidade  adquiriram  o  caracter  de  subúrbios  , 
também  se  acham  comprchendidas  no  recinto  d'a- 
gora  ,  e  dão  nome  a  bairros  particulares.  São  hoje 
propriamente  suburbanas  as  povoações  próximas  e 
em  redor  de  Paris,  alem  da  linha  fiscal  traçada 
reinando  Luiz  16.°;  comoPassy,  Monlmartre,  .Mont- 
rouge  ,  Grenelie  e  outras. 

O  Sena  atravessa  a  cidade  partindo-a  em  duas 
partes  desiguaes,  sendo  a  da  margem  do  norte  mui- 
to maior. — ■  Xs  margens  do  rio  e  das  porções  cen- 
traes  ,  que  chamam  ilhas  ,  são  com  pequena  inter- 
rupção occupadas  por  cacs  de  cantaria  com  para- 
peitos, formando  largas  e  contínuas  ruas  ;  era  diver- 
sos intervallos  ha  logares  para  desembarque  de  fa- 
zendas ,  aos  quaes  os  francezes  condecoram  com  o 
nome  de  portos :  numerosas  pontes  estão  lançadas 
sobre  o  Sena  ,  ligando  as  duas  beiras  e  as  ilhas  re- 
ciprocamente. 

A  maior  das  praças  é  a  de  Luiz  lo.°  ou  da  Con- 
córdia ,  as  outras  principaes  são  a  ^'endòme,  a  das 
Victorias  ,  e  a  de  Trone  ,  ambas  circulares  ,  a  do 
Carroussel,  e  a  Praça-real  :  não  são  ajardinadas  co- 


(•J      Juntando    o  que  dizemos  agora  ao  *|ue  se  lè    a  paj. 
177  e  se;».  ,  obler-se-lia  sufficienle  noticia  da  capita!  franceza. 


Deze.\ibro  30—  18Í-3. 


mo  as  de  Londres  ,  porem  algumas  ornadas  de  co- 
lumnas,  estatuas,  chafarizes,  e  outras  decorações 
magnificas.  Ha  sumptuosos  jardins  e  passeios  pú- 
blicos ,  como  os  dos  paços  das  Tulherias  ,  Luxera- 
bourg,  e  Palais-Roral  ;  os  Campos-elysios  ;  a  lame- 
da  de  Xeuilly  e  as  numerosas  na  proximidade  da 
Escola  Militar  ,  que  são  ruas  alinhadas  de  arvore- 
do ,  como  os  boulevards  exteriores.  O  Campo  de 
Marte  é  mui  espaçoso,  adjuncto  á  Escola  Militar, 
e  onde  se  passam  as  revistas  á  tropa.  A  Esplanada 
dos  Inválidos  estende  seus  jardins  desde  o  hospício 
daquelles  até  a  beira  do  rio. 

Longo  fora  descrever  os  edificios  públicos  ,  c  de 
alguns  já  temos  escripto  noticia  especial  :  somente 
indicaremos  os  notáveis  ,  dividindo  a  sua  lista  em 
três  epochas  :  a  primeira  dos  antigos  ,  desde  a  ce- 
lebrada calhedral  dedicada  á  Virgem  SS.""'  ,  e  o 
templo  de  S.  Germano  dito  dos  prados  ou  campos  , 
obras  do  século  undécimo  ;  até  ás  duas  praças  des 
Tictoircs  e  Vendõme,  construcções  doarchitecto  Man- 
sard  nos  fins  do  século  17."  —  achámos  nesta  clas- 
se as  igrejas  la  Sainte  Chapelle  e  S.  Severino  , 
bellos  edificios  gothicos,  S.  Germano  dito  IWuxer- 
rois,  S.  Mery,  St.°  Eustachio,  St. "Estevão  do  .Mon- 
te ,  lambem  gothicos,  o  palácio  ou  hòlel  de  Clu- 
gny  ,  convertido  agora  em  museu  ,  o  chafariz  ma- 
gnifico, denominado  dos  —  innocentes, — a  casa  ou 
hotel  municipal  ,  os  paços  do  Louvrc  velho  e  das 
Tolherias  ,  a  Ponte-.Nova  ,  S.  Gervásio  ,  e  as  obras 
do  século  17.°,  a  saber,  palácios  o  do  Tribunal  de 
Justiça  .  o  de  Luxcmbourg  onde  está  a  camará  dos 
Pares  ,  a  frente  oriental  do  Louvre  ,  a  igreja  da 
Sort)onna  ,  a  de  Val-de-Graça  com  seu  desmesura- 
do zimbório  ,  o  Collegio  Jlazarino  hoje  o  Instituto  , 
o  Observatório  ,  a  bem  proporcionada  rotunda  con- 
sagrada á  Assumpção  de  N."  Sr.^ ,  a  Porta  de  S. 
Diniz,  e  a  de  S.  Martim,  o  Hospital  dos  inválidos, 
e  as  duas  praças  supra-mcncionadas.  —  Segunda 
epocha  :  século  18. °  —  O  palácio  rEIjsée,  o  de 
Bourbon,  occupaiio  pela  camará  dos  Deputados; 
igrejas,  S.  Sulpicio  ,  S.  Roque,  S.  Filippe ,  St.'' 
Genoveva  To  Pantheon]  ;  o  chafariz  ou  fonte  de  Gre- 
nelie ;  a  Escola  Militar,  a  de  Ghirurgia  ;  Ilallo  ou 
mercado  do  trigo  ;  a  nova  frontaria  do  Palais  de 
Justice,  o  Palais  Royal  ,  o  hotel  de  Saim  [palácio 
da  Legião   d'Honra]  ;    a  Casa    da  Moeda  ;    o  Lyceu 

2.*  Serie.  —  Voi..  II. 


410 


O  PANORAMA. 


Bourbon  ;  os  theatros  Odéon  e  o  italiano  que  ardeu 
om  1836,  a  opera  Acadcraie  de  musique;  e  a  Pon- 
te de  Luiz  1G.°  —  Terceira  epoclia  :  o  corrente  sé- 
culo:—  Uua  Uivoli  ,  igreja  da  Magiialena  ,  a  Pon- 
te das  Aries,  a  arcada  das  Tulherias  ,  a  colunina 
Vcndòme  ,  Arco  da  Estrella  ,  Ponle  de  Jena  ou  dos 
inválidos,  Fonte  da  Palmeira,  pórtico  da  Camará 
dos  Deputados,  Bolsa  ou  praça.  Secretaria  dos  Ne- 
gocios-estrangeiros  [Quai  d'Ursay]  ,  llalle  ou  mer- 
cado dos  vinhos  ,  Fonte  Bondy  ,  mercado  S.  Ger- 
mão  ,  Capelia  expiatória  começada  em  1813,  Es- 
chola  das  Bellas-Artes  ,  columna  de  Julho,  Ponte 
do  Carroussel  ,  reconstrucç<ão  interior  do  Palais  de 
Justice,  restaurações  no  Ilòtel  de  Ville  ,  ohelisco 
de  Luxor  ,  fontes  e  ornatos  da  praça  da  Concórdia  , 
igreja  do  arrabalde  S.  Germão  ,  N."  Sr."  do  Loret- 
to  ,  S.  Vicente  de  Paulo. 

Pela  variedade  e  quantidade  de  seus  productos 
industriaes  Paris  entra  em  o  numero  das  principaes 
cidades  fabricantes.  As  alcatifas  e  tapeçarias  da  fa- 
brica des  Gohelins  são  conhecidas  geralmente  ,  bem 
como  os  chalés  de  cachemira  ,  de  seda  ,  e  de  laãs. 
Manufactura  estofos  delgados  ,  fazendas  d'algodão  , 
chapéus,  barretes,  luvas,  galões,  rendas,  e  infi- 
nidade de  objectos  d'invenção  de  modas  ;  alem  dis- 
so, obras  de  ourives,  quinqualherias,  relógios,  mo- 
veis de  raateriaes  artificiaes  ,  instrumentos  malhe- 
maticos,  physicos  ,  e  de  musica,  armas  de  fogo, 
obras  de  cutelaria  ,  de  serralheria  ,  e  de  corrieiro 
6  selleiro,  carruagens,  colla  ,  papeis  pintados  e  de 
forrar,  licores  e  doces  exquisitos.  As  artes,  typo- 
graphica  ,  de  desenho,  gravura  e  lithographia  ,  tra- 
balham alli  com  grande  apuro  cm  mui  extensa  es- 
cala, bem  como  as  fabricas  de  productos  chimicos, 
as  tinturarias,  a  refinação  do  assucar  e  outros  mui- 
tos ramos  d'industria.  —  O  commercio  comprehen- 
de  os  objectos,  que  acabámos  de  mencionar,  e  ou- 
tros que  exige  o  consumo  assim  desta  capital  tão 
vasta  como  do  districto  de  que  é  cabeça.  Os  opu- 
lentos fabricantes  de  l.yão  ,  Ruão,  c  outras  terras 
industriosas  das  províncias,  tem  suas  agencias  e  de- 
pósitos em  Paris. 


Apontamentos  paha  a  Historia  dos  bens  da  coroa 
e  dos  fohaes. 


Tem-se  crido  e  dito  geralmente  desde  que  a  histo- 
ria começou  a  ser  cousa  mais  séria  e  grave  do 
que  a  narração  exclusiva  de  dois  casamentos  ,  qua- 
tro enterros,  c  seis  batalhas;  tem-se  crido  e  di- 
to que  a  idade  media  no  seu  systema  penal  vendia 
quasi  absolutamente  por  ouro  a  impunidade  do  cri- 
me. A  letra  dos  foraes  parece  auctorisar  esta  0|)i- 
nião  que  por  muito  tempo  foi  a  nossa.  Hoje  estamos 
persuadidos  de  que  cila  deve  ser  grandemente  mo- 
dificada. As  penas  pecuniárias  nem  eram  tão  geraes 
como  se  crê,  nem  eram  um  trafico  feito  pela  força 
publica  da  justiça  dos  indivíduos.  Guardámos  para 
outra  parte  o  desinvolver  esta  idéa  ,  que  não  cabe 
aqui,  tanto  porque  nos  obrigaria  a  dilatarmo-nos  mui- 
to, como  por  ser  alheia  á  natureza  do  presente  tra- 
balho :  mas  apontaremos  o  fio  que  nos  guiou  ,  fal- 
laiido  das  cuZií))!)iíai  ou  coimas  que  em  nos.^o  enten- 
der se  devem  chamar  antes  iinposlos  criminaes ,  do 
que  j)enas  dos  crimes.  Estes  impostos  formavam  uma 
das  partes  mais  productivas  das  rendas  dos  conce- 
lhos ,  tanto  para  o  rei  ou  para  o  tenente  ou  donatá- 


rio que  o  representava  ,  como  para  os  próprios  mu- 
nicípios. 

A  calumnia  estcndia-se  a  todos  os  actos  crimino- 
sos ,  que  naquella  epocha  eram  qualificados  de  um 
modo  diverso  do  d'hoje.  Para  o  homicídio  ,  para  o 
rausso  [rapto  violento  da  mulher  casada  ou  filha  famí- 
lia], para  os  arrombamentos  ou  destruição  de  habi- 
tações,  para  o  furto,  para  as  rixas  cm  logares  pú- 
blicos, para  as  injurias  pessoaes  ,  &c.  ,  o  foral  es- 
tabelecia especialmente  coimas,  cuja  taxa  variava 
segundo  a  gravidade  da  culpa.  Naquelles  tempos  de 
ferocidade  e  bruteza  ,  as  paixões  violentas  transpu- 
nham cora  fúria  a  todo  o  momento  os  limites  dojus- 
to  e  do  legal:  assim  as  coimas  que  ora  pertenciam 
inteiramente  ao  fisco  (ad  paíaciuin)  ,  ora  cm  parte 
a  este  e  o  resto  ao  concelho  (septima  ad  pataciíim), 
deviam  produzir  um  rendimento  importante.  Tam- 
bém n'alguns  casos  serviam  como  emolumentos  dos 
juizes. 

Estas  coimas  ,  porem  ,  constituiam  a  verdadeira 
e  única  penalidade  ?— -O  exame  attento  dos  foraes 
nos  revela  o  contrario.  Duas  expressões  ha  nesses 
diplomas  que  se  muitas  vezes  se  confundem,  muitas 
mais  guardam  certa  distincção,  que  não  ó  possível 
desattcnder ;  pague  (pcctct)  indica  regularmente  o 
preceito  da  solução  de  calumnia  ;  componha  (cumpo- 
iiatj  parece  representar  o  principio  da  reparação  ao 
oflendido.  Provavelmente  na  maior  parte  dos  casos 
esta  reparação  era  pecuniária  ;  mas  isso  mesmo  bas- 
ta para  collocar  o  systema  penal  da  idade  media  a 
mui  difícrente  luz.  O  estado  impunha  ao  criminoso 
uma  [lena  que  era  um  verdadeiro  tributo: — a  coi- 
ma. O  mordomo,  ou  ollicial  de  fazenda  local,  a  rece- 
bia ,  e  tinha  por  ella  acção  contra  o  culpado  ;  mas 
ao  aggravado  devia  o  alvazil  ou  juiz  dar  seu  direi- 
to. A  execução  do  pcctct  escripto  no  foral  pertencia 
ao  primeiro  ,  a  do  coinpvnat  incumbia  ao  segundo  o 
torna-la  elTectiva. 

Se  partirmos  desta  idéa  na  apprcciação  dos  foraes 
vè-la-hemos  confirmada  pela  doutrina  das  suas  dis- 
posições ,  que  sem  ella  ficarão  muitas  vezes  inin- 
telligiveis.  Quando  em  certos  foraes  se  impõe  ao 
homicida  uns  tantos  soldos  ad  palacium  ,  annulla-se 
acaso  o  direito  de  revindicta  ,  isto  é  ,  de  os  paren- 
tes do  morto  vingarem  este  com  a  morte  do  mata- 
dor ou  de  algum  dos  seus  parentes?  Quando  em 
outros  se  estabelece  a  coima  do  rausso ,  c  depois  se 
accrescenla  que  alem  disso  o  roussador  fique  homi- 
cida ,  isto  é  ,  sujeito  á  vingança  sanguinolenta  dos 
oITendidos,  não  é  aquella  pena  ura  tributo,  e  a  vin- 
gança a  punição?  Destas  e  d'oulras  bypotheses  qne 
Cdnstanlemcnte  se  encontram  nos  foraes  resulta  que 
não  pôde  a  caliinviia  representar  rigorosamente  as 
leis  penaes  do  município. 

Nós  entendemos  que  nos  costumes  [muitos  dos 
quacs  ,  escriplos  ou  não  escriptos ,  eram  reminis- 
cências do  código  visigoihico,  dos  cânones  dos  con- 
cilies anteriores  e  posteriores  á  entrada  dos  árabes, 
e  emfim  d'usanças  cuja  origem  se  ignora,  e  porven- 
tura da  jurisprudência  mahometana]  estavam  esta- 
belecidas as  verdadeiras  leis  penaes  ,  e  qne  nos  fo- 
ros ou  cartas  de  concelho  as  coimas  ou  penas  pecu- 
niárias representavam  antes  leis  defazcnda.  Se  mui- 
tas vezes,  corno  no  crime  de  furto  e  em  outros,  pa- 
rece cstabelecer-se  uma  pena  peciuiiaria  que  é  ver- 
dadeira reparação,  esta  circnmstancia  tornava-sc 
necessária  ,  porque  sendo  a  coima  freqnciilemcnte 
nm  quanlum  deduzido  dessa  pena  ,  ou  regulado  por 
ella  ,  cumpria  para  evitar  duvidas  que  no  foral  se 
declarasse  qual  era;  nem  temos  motivo  algum  para 


o   PA1VORA3IA. 


41  í 


suppòr  que  alii  se  alterassem   as  penas  que  os  cos- 
tumes ,  onde  os  havia,  liiiliam  estabelecido. 

Por  estas  rápidas  indicações  os  espiritos  allcn- 
tos  poderão  checar  ao  resultado  a  que  nós  clicgn- 
mos  de  Ciinsideiar  as  leis  ponaes  das  cartas  de  inu- 
nicipio  ciiino  simples  leis  de  imposto  .  c  de  as  re- 
duzir a  uma  das  cansas  a  que  attrihuimos  princi- 
palmente a  prop.iiração  dos  concelhos  —  á  nccessí- 
dr.de  de  trazer  rendimentos  aos  cofres  do  estado  , 
que  os  privilégios  das  classes  aristocráticas  tendiam 
a  em[)oljrccrr. 

Temus  examinado  a  existência  dos  concelhos  na 
parle  das  suas  relações  externas  que  respeitam  á 
economia  publica  O  estudo  da  vida  municipal  c  , 
porem  ,  muito  mais  vasto  ,  e  o  que  havemus  appre- 
sentado  ao  leitor  é  apenas  um  dos  seus  aspectos. 
Força  c  contentarmo-nos  com  isso  ,  para  não  lugir- 
mos  da  questão  que  nos  occupa. 

Que  havemos  nós  visto  nesse  attento  exame?  A 
creação  de  uma  espécie  demilicia  quasi  feudal,  que 
possue  as  terras,  privilegiadas  por  foro,  com  a  obri- 
gação do  serviço  pessoal  militar  feito  ao  rei  como 
suzerano  commiim  :  o  estabelecimento  de  uma  cer- 
ta somma  de  tributos  recahindo  principalmente  so- 
bre os  homens  do  povo  que  não  pagavam  essoutro 
tributo  de  sangue:  —  finalmente  a  união  liosvillões, 
que  dispersos  ou  desunidos  nada  valeriam  contra  os 
nobres,  mas  que  ligados  por  direitos,  privilégios  e 
obrigações  communs  ,  conslituiam  enliilades  moraes 
fortes  e  activas  ,  cujns  interesses  eram  oppostos  aos 
das  classes  aristocráticas,  o  alto-clero  e  nobreza,  e 
a  que  por  isso  a  munarchia  naturalmente  se  alliava 
nas  suas  luctas  com  ellas. 

E  esta  aggregação  de  homens  do  povo  ,  lançados 
cm  grupos  por  toda  a  superfície  do  paiz,  rcalisa  de 
feito  o  triplicado  fim  da  sua  existência.  A  grande 
acção  dos  concelhos  no  progresso  social  da  nação  não 
foi  prevista  ,  ao  menos  alé  a  sua  derradeira  conse- 
quência— a  victoria  da  classe  burgiieza  n'uma  epo- 
cha  remota  que  é  a  nossa  :  mas  sentiu-sc  desde  lo- 
go que  elles  eram  um  elemento  de  ordem  e  força 
contra  as  violências  dos  poderosos.  —  O  piincipio 
monarchico  armava-se  com  elle  para  se  emancipar 
das  mãos  da  aristocracia  ,  fortalecer-se  e  organisar 
a  sociedade.  Afiira  esta  politica  —  se  politica  pôde 
chamar-se  ao  instincto  da  própria  existência  ,  c  ao 
desejo  do  predominio  —  nenhum  outro  pensamento 
nos  parece  ter  havido  na  promulgação  dos  foracs. 
Estes  não  crearam  situações  novas  para  os  indiví- 
duos em  particular  ;  porque  antes  e  a  par  delles  , 
desde  o  homem  d'armas  alé  omalado  ou  servo,  ha- 
via todas  as  gradações  na  classe  popular  ,  e  exis- 
tiam os  tributos  que  encontrámos  nos  concelhos  ;  o 
que  o  poder  central  fez  nestes  foi  dilatar  isso  tudo, 
constitui-lo  permanentemente,  garanti-lo,  dar-lhe 
um  caracter  publico,  e  crear  o  serviço  militar  não 
pago.  Nos  coutos,  nas  honras,  nos  prestamos  da  co- 
roa encontram-se.  ora  n'nns  ora  n"outros,  vestígios 
das  diversas  classes  de  villões  ,  das  diversas  espé- 
cies de  contribuições  que  apparccem  nos  concelhos 
e  outras  mais:  ahi,  porem  ,  tudo  depende  do  Do- 
minux  do  Couto  e  da  Honra  ,  ou  do  préslameiro  , 
porque  o  poder  supremo  nenhuma  acção  exercita 
dentro  desses  senhorios;  nem  ahi  ba  pacto  geral  en- 
tre o  senhor  e  os  súbditos:  as  terras  são  dadas  por 
titulo  especial,  segundo  este  as  contribuições  ,  os 
direitos,  e  os  deveres  variam  de  casal  para  casal, 
de  conrella  para  courella  ;  e  quando  sobre  qualquer 
desses  pontos  se  alevanlasse  uma  contestação,  lá  es- 
tava  o  juiz,   posto  pelo  senhor  ou  donatário ,   para 


julgar  a  seu  prazer.  A  condição  legal  dos  habitan- 
tes era  abi  pouco  mais  ou  menos  a  mesma  que  a 
dos  membros  dos  municípios  ,  mas  a  sua  situação 
real  era  inteiramente  di\ersa — diversa  quanto  o  pô- 
de ser  dep(  niicudo  l,i  do  arbítrio  ,  c;i  luiicamenle 
das  disposições  de  um  pact<i.  O  donatário  de  uma 
terra  municipal  (içava  adstricto  aos  bons-foros :  se 
(IS  quizesse  quebrar  encontraria  anlc  si  um  corpo 
moral  para  lhe  resistir  ,  em  quanto  o  préslameiro 
de  um  couto  ou  honra  acharia  apenas  ii!(li\iduos 
fracos  para  estuíigar  debaixo  dos  seus  çapatos  de 
ferro. 

Kesla-nos  fallar  d'nma  espécie  de  propriedade 
tributaria  ,  que  occupando  uma  importante  porção 
do  solo  nãoaugmeulava  senão  indirectamente  a  ren- 
da do  estado.  Alludimos  aos  reguengos.  Os  reguen- 
gos eram  os  bens  patrimoniaes  do  rei.  No  principio 
da  nionarchia  a  distiucção  destes  bens  dos  da  coroa 
não  era  mui  clara  ;  mas  é  certo  que  no  fim  da  pri- 
meira cpocha  [reinado  de  D.  AlTonso  3.°]  a  difie- 
rença  entre  uns  e  outros  eslava  perfeitamente  esta- 
belecida. Estes  reguengos  eram  herdades  mais  ou 
menos  vastas,  encraNadas  muitas  vezes  nos  termos 
dos  concelhos,  e  os  seus  privilégios  os  maiores  de- 
pois dos  de  Coutos  e  Il(jnras  ;  mas  taes  privilégios 
ficavam  compensados  pela  exorbitância  dos  tributos. 
Ordinariamente  os  reguengos,  inteiros  ou  diwdidos, 
davam-se  a  foro,  mas  foro  que  subindo  as  mais  das 
vezes  ao  quarto  dos  fructos  raramente  deixava  de 
ser  sobrecarregado  de  outras  exacções  e  serviços  de 
que  se  accrescentavam  gravosos  direitos  de  trans- 
missão. D.  Diniz  distinguiu-se  por  cubica  inexorá- 
vel nos  seus  alToramentos  de  bens  rcgucngueiros  ; 
mas  essa  cubica  foi  castigada  ,  abandonando-lhe 
muitas  vezes  os  forciros  as  terras  ,  por  se  tornar 
impossivci  para  elles  a  solução  dos  foros. 

Os  reguengos,  pois,  não  eram  rigorosamente  uma 
fonte  do  rendimento  publico;  mas  sendo  destinados 
á  manutenção  da  casa  do  rei  ,  e  correspondendo  ás 
modernas  dotações  desgovernos  constitucionaes,  vi- 
nham indirectamente  aaugmentar  o  património  pu- 
blico, desobrigado  assim  desupprir  as  despezas  pes- 
soaes  do  príncipe. 

J[as ,  porventura  ,  esta  distincção  era  mais  real 
quanto  á  natureza  dos  reguengos  e  á  condição  dos 
seus  habitantes  do  que  pelo  que  tocava  aos  foros  e 
tributos  que  delles  se  tiravam.  Não  c  muito  prová- 
vel que  se  guardasse  uma  dilTercnça  exacta  entre  a 
applicação  dos  rendimentos  da  coroa  ,  e  a  dos  ren- 
dimentos do  património  real  :  o  rei  tendia  natural- 
mente em  tudo  a  confundir-se  com  o  estado  ,  e  os 
livros  do  Ilccàhedo  R((jni  [o  registo  dos  bens  da  co- 
roa] não  deviam  tardar  em  constituir  um  só  lodo 
com  os  do  llepiisilo  ou  Hepositorio  [o  registo  dos  bens 
reguengos].  De  feito  já  nos  diplomas  da  primeira 
epocha  histórica  vemos  o  rei  chamar,  tanto  ás  con- 
tribuições municipaes  e  rendas  próprias  da  coroa 
como  ás  das  herdades  rcgucngueiras,  meus  foros,  e 
meus  direitos  (meos  faros,  iiwmn  dircrlum).  No  se- 
gundo período  histórico  ,  isto  é  do  meado  do  sécu- 
lo 13.°  alé  o  fim  do  il."  veremos  effeetívamcDle 
desvanccerem-so  de  todo  em  relação  á  economia  da 
fazenda  publica,  os  traços  que  dividiam  o  patrimó- 
nio do  rei  do  património  da  sociedade. 

Antes  d'entrar  nesse  período  resumamos  as  nos- 
sas idéas  sobre  o  syslcma  dos  tributos  deduzidos 
desses  factos  que  temos  appresenlado  ao  leitor  ,  in- 
sudicientes  para  a  historia  completa  da  economia  na- 
cional nos  primeiros  tempos  damonarchia,  mas  bas- 
tantes para  se  conhecerem  os  lineamentos  principaes 


412 


O   PANORAMA. 


da  nossa  organisariío  primitiva  dos  impostos  na  mais 
larga  signilicarão  desta  palavra. 

Este  resumo  será  breve,  maseloquente  :  eloquen- 
te não  pelas  palavras,  mas  pelas  idéas  ;  pelos  gran- 
des factos  sociaes  que  representa. 

As  tradições  visigotiiicas,  incarnadas  na  nossa  so- 
ciedade nascente,  emliargaram  que  o  feudalismo 
penetrasse  na  essência  desta  ,  e  apenas  o  lieixarauí 
passar  incompleto  no  accidental  das  iustituições  : 
assim  entre  nós  os  crimes  ,  as  tyrannias ,  as  luctas 
civis  foram  mais  ténues  ,  e  antes  filhas  da  barbaria 
que  da  feudaliiiaile  ;  mas  em  compensação  faltou- 
nos  o  que  nesta  havia  de  boa  orgauisação  ;  faltou- 
nos  essa  vasta  rede  de  obrigações  mutuas,  moraes 
e  materiaes ,  entre  os  senhores  e  os  vassallos  por 
lodos  os  graus  da  complicada  jerarchia  feudal,  que 
era  um  poderoso  elemento  de  ordem  no  meio  das 
trevas  e  da  incerteza  d'ÍHstituições  e  costumes.  Se 
entre  nós  a  classe  popular  não  cahiu  em  tão  com- 
pleta servidão  como  nos  paizes  de  feudalismo  ;  se 
os  raalados  e  homens  de  crcação  fhomincs  de  mala- 
dia  ,  hoiiiines  de  creationc)  espécie  de  servos  de  gle- 
ba formada  provavelmente  dos  descendentes  dos  an- 
tigos servos  dos  visigodos  e  dos  criminosos  reduzi- 
dos á  escravidão  por  pena  (•);  se  esta  raça,  dize- 
mos, desapparece  rapidamente  e  se  transforma  em 
raça  de  homens  livres  (forarii)  ,  aggrcgando-se  ao 
grande  vulto  do  povo,  logo  na  fronte  deste  se  escre- 
ve um  nomequeo  distingua  das  classes  nobres.  Hon- 
rado (lionnratus)  é  a  palavra  que  designa  o  homem 
do  privilegio:  liibularin  (tribitlavius)  a  que  indica 
o  liomcni  que  recebeu  precípua  a  herança  de  Adão 
—  o  trabalho.  E  estas  duas  designações  revelam  a 
Índole  intima  da  sociedade  :  o  imposto  é  o  marco 
divisório  dos  dois  campos:  a  villania  resume-se  no 
tributo  ;  a  nobreza  na  exempção. 

Depois  este  pensamento  derrama-se  por  Ioda  a 
parte,  transforma-se  por  mil  modos,  varia  por  di- 
versos aspectos  ;  está  no  âmago  de  todas  as  distinc- 
ções.  Contribuir  ou  não  contribuir,  eis  o  que  se 
reproduz  universalmente  no  complexo  dos  deveres 
e  direitos  políticos.  Deste  modo  a  sociedade  inteira 
em  relação  ás  pessoas  explíca-se  pela  historia  da 
fazenda  publica  ,  e  por  assim  dizer  contèm-se  no 
grémio  delia. 

Dois  géneros  de  contribuições  alimentavam  a  vi- 
da social  damonarchia  sustentando  a  sua  individua- 
lidade e  crescendo  até  os  seus  limites  possíveis  por 
meio  da  guerra  ,  organisando-sc  interiormente  por 
meio  de  instituições  e  leis  administrativas  e  judi- 
ciarias ,  que  para  a  sua  execução  precisavam  ,  ao 
menos  em  parle  ,  de  oliiciaes  e  magistrados  pagos  , 
e  fortilicando-se  interiormente  para  salvar  a  integri- 
dade do  território,  erepellir  as  invasões.  Estes  dois 
géneros  de  tributos  eram,  pois,  —  1.°;  os  de  san- 
gue:—  2.°:  os  de  productos,  numerário,  ou  traba- 
lho, que  rigorosamente  são  idênticos.  Todos  elles  re- 
cahiam  exclusivamente  sobre  a  classe  popular,  e  nes- 
ta sobre  uma  parte  só;  sobre  aquelles  que  não  ha- 
bitavam dentro  dos  limites  dos  coutos  e  honras  :  es- 
ses na  verdade  pagavam  mil  espécies  de  foros,  pen- 
sões c  foragens  (ilin-clurw)  ,  mas  tudo  revertia  em 
proveito  (lo  senhor  da  terra.  Junto  aos  padrões  que 
marcavam  o  âmbito  do  território  honrado  expirava  a 


(•)  Na  Hislorhi  Cuniposlell.ana  ,  e  iroulros  nninumentos 
priucipaMiiiMite  rirladvus  ao  tiMiipo  Jus  reis  ile  Leão  ,  adiá- 
mos iiilli-iilo  muda  este  castigo  tão  coinmum  entre  os  visi- 
godos. 


acção  dos  exactores  e  ofliciaes  do  rei :  passa-los  era 
correr  o  risco  da  mutilação  ou  da  morte  (:■.). 

Mas  ao  menos  estes  poderosos  senhores  ajunta- 
vam-se  ,  ao  brado  de  guerra  ,  em  volta  dos  pendões 
reaes  seguidos  dos  seus  homens  d'armas?  Vinham 
ao  menos  ahi  aquelles  cujas  honras  e  coutos  eram 
prestamos  da  coroa  ou  verdadeiros  benefícios,  e  re- 
tribuíam em  feitos  militares  a  cessão  que  cm  pro- 
veito dellcs  fazia  o  estado  de  uma  importante  parte 
dosou  património?  Não'.  Para  o  illustre  rico-ho- 
mcm  montar,  cuberto  de  todas  as  peças,  no  seu  ca- 
vallo  de  batalha  c  ir  guerrear  os  inimigos  da  cruz 
ou  da  pairia  cumpria  pagar-lhe,  e  o  numero  de  seus 
cavalleiros  era  regulado  pela  somma  mais  ou  menos 
avultada  que  percebia.  .\s  soldadas  (soliilatw)  dos 
primeiros  tempos  da  monarchia  foram  a  origem  das 
quantias,  que  vamos  encontrar  na  cpocha  seguinte, 
do  mesmo  modo  que  acharemos  já  aquellas  na  epo- 
cha  dos  reis  de  Leão  ,  se  retrogradarmos  alem  do 
berço  da  sociedade  porlugueza. 

Estas  soldadas  ou  quantias  sabiam  necessariamen- 
te das  contribuições  em  géneros  ou  dinheiro  pagas 
pelos  municípios  ,  contribuições  que  ,  como  vimos  , 
recahiam  só  principalmente  sobre  os  pcdones,  tribu- 
tários ou  jugadeirus,  e  até  certo  ponto  sobre  os  ca- 
baltarios  ,  cavalleiros  villões  ,  a  quem  tocava  não  só 
o  serviço  militar  gratuito  ,  mas  por  via  de  regra  o 
principal  imposto  cm  trabalho  (amiduva)  que  até 
certo  ponto  era  serviço  militar,  sendo  destinado  á 
edificação  e  restauração  dos  muros  e  castellos.  Os 
membros  das  aggrcgações  populares  chamadas  conce- 
lhos agricultavam  pessoalmente  a  terra,  seríiam  na 
guerra  sem  paga,  e  contribuíam  para  as  despezas  do 
estado  com  aquella  parte  para  que  não  bastavam  as 
rendas  ordinárias  dos  bens  da  coroa  ,  que  diaria- 
mente se  desbaratavam  em  doações  gratuitas  ao  al- 
to-clero,  e  á  nobreza  ,  que  faziam  cultivar  esses 
bens  por  foros  e  pensões  de  mil  espécies,  cm  pro- 
veito seu  particular  :  e  depois  o  nobre  servia  como 
o  víilão  na  guerra,  mas  por  um  soldo  tirado  doque 
esse  mesmo  villão  pagava  para  supprir  os  rendi- 
mentos da  coroa,  já  devorados  pelas  classes  aristo- 
cráticas. 

Era  a  ida  á  caça  do  leão  com  o  veado.  E  foi  ca- 
çada que  durou  por  alguns  séculos. 

(A.  Herculano). 


CAnTA   DE    D.  IllERONIMO  OsORIO,    BISPO   DE   SlLVES, 

A  Elrei  d.  Sebastião  sobue  a  expedição 
DE  Afkica. 

Sekhou.  —  Se  eu  fora  procurador  da  coroa,  e  tives- 
se algum  feito  na  mão,  em  que  V.  Alteza  fosse  réo  , 
e  fosse  necessário  dar-lhe  delle  relação,  forçado  se- 
ria ler-lhe  primeiro  o  processo  que  a  contrarieda- 
de ;  o  que  nesta  carta  farei,  com  a  verdade  e  leal- 
dade que  devo. 

Confio  no  engenho,  e  real  espirito  deV.A.,  que 
terá  este  por  um  dos  maiores  serviços,  que  lhe  pos- 
so fazer. 

Os  reis  da  Pérsia  tinham  muitas  ordens  de  ser- 
vidores ,    e  sem   os  quaes  entendiam  ,    que    era  ira- 


(::)  ICslevão  Pires  de  l\Inliies  ,  cavalleiro  do  julgado  de 
Fatia,  piilraiido-llie  o  niordnino  d'elrei  na  sua  ll<inra,  eii- 
forcoií-o  ;  e  indo  o  alcaide  fazer  alii  nnia  penhora,  decepou- 
Ihe  as  mãos  e  depois  malou-o.  Jlem.  da  Acad.  T.  G.  P.  2.* 
pag.  130  N.   (b). 


o   PANORAMA. 


113 


possível  o  governar  bem  sua  nionarchia  ;  enlro  el- 
les  havia  uns  a  que  elles  chamaviíra  seus  olhos  , 
a  outros  suas  orelhas,  a  outros  seus  amigos.  Os 
muitos  olhos  lhes  serviam  de  ver  muitas  cousas  , 
que  dois  somente  não  podiam  ver  :  as  muitas  ore- 
lhas de  ou\ir  muilas  querellas  ,  que  com  só  duas 
se  iião  podiam  ouvir:  os  muitos  amigos  de  fallar 
verdade,  que  os  falsos  amigos  encobrem. 

Seguiudo  eu  este  estilo  de  bom  e  leal  servidor, 
quanto  minhas  forças  alcançam,  direi  o  que  vejo, 
e  o  que  ouço  ,  com  amor  tão  verdadeiro  ,  como  sa- 
be aquello  Senhor,  a  que  são  manifestos  os  segre- 
dos dos  corações  ;  elle  nos  ensina  no  Evangelho  o 
que  todos  deviamos  fazer  com  esta  pergunta  :  — 
(Jium  diciiiit  Iwmincs  cssi-  filium  /io/íiíhís  ?  liem  sa- 
bia elle  o  que  se  delle  diria  ;  com  tudo,  com  esta 
pergunta  nos  ensina  a  sermos  curiosos  ,  e  inquirir 
a  forma  de  nossas  obras,  e  vida.  Ainda  que  a  dou- 
trina seja  universal  ,  aos  principcs  convém  princi- 
palmente folgar  de  saber  o  que  se  commuinmcnte 
delles  diz;  porque,  ;i  volta  de  muitos  desatinos  jio- 
pulares,  ouvirão  muitas  cousas,  que  porventura  nos 
conselhos,  ou  por  mal  sabidas  se  não  dizem,  ou 
por  interesses  particulares  se  não  descobrem. 

Não  sei  porque  não  folgará  um  príncipe  da  ter- 
ra ,  pois  disso  tem  tanta  necessidade  ,  de  fazer  o 
que  o  principc  dos  céus  ,  sem  necessidade  ,  para 
nossa  doutrina  quiz  fazer  ;  e  porque  não  dirá,  quan- 
do fallar  com  homens  amigos  da  verdade  :  —  que 
dizem  lá  de  mim?  —  Se  isto  fizesse  quantas  verdades 
saberia!  Em  Athenas  havia  pragas  solenines  ,  ins- 
tituídas com  publicas  cercmonias  em  voz  alta,  com 
palavras  de  grande  terror,  contra  quem.  por  seu 
particular  intento  ,  aconselhasse  sua  republica  con- 
tra o  bem  commum  ;  nellas  se  pedia  á  justiça  divi- 
na ,  que  antes  fossem  destruídos  ,  e  toda  a  sua  ge- 
ração confundida. 

Se  isto  se  fazia  em  uma  republica  ,  onde  havia 
muitos  príncipes,  que  podiam  ser  por  qualquer  ou- 
tro cidadão  desenganados,  que  se  deve  fazer  em  es- 
tado soberano  de  um  só  príncipe,  o  qual  se  fôr  en- 
ganado ,  não  ha  mais  em  que  pôr  os  olhos? 

Grandes  maleficios  commette  quem  engana  ,  ou 
não  desengana  seu  príncipe;  um  delles  c  traição, 
o  outro  injúria  atroz  feita  ao  seu  príncipe:  porque, 
se  é  traição  não  quererem  os  atalaias  avisar  o  seu 
capitão  dos  mouros  que  correm  ,  como  não  será 
muito  maior  traição  encobrir  a  V.  A.  os  perigos 
que  estão  armados  para  perigo  de  Ioda  a  republi- 
ca ,  se  não  fór  soccorrida  com  tempo?  Pois  que  di- 
remos da  injúria?  Pôde  ella  ser  maior  que  cuidar 
alguém,  que  estima  V.  A.  mais  o  gosto  presente 
das  orelhas  ,  que  tão  pouco  dura  e  tanto  mal  faz  , 
que  o  perpetuo  remédio  de  seus  vassallos?  Não  le- 
rá V.  A.  em  seu  conselho  quem  trate  mais  de  o 
enganar  ;  mas  ,  se  por  nossos  peccados  ,  houvesse 
qnem  tamanha  traição  ,  com  tão  grande  injúria  de 
Vossa  Pical  Pessoa  commeltesse,  muito  maiores  pra- 
gas que  as  de  Athenas  merecia. 

Eu  já  ,  senhor  ,  em  quanto  poder  ,  fugirei  destas 
com  dizer  o  que  sinto,  com  a  esperança  que  terei 
disso  o  galardão,  de  Deus  primeiramente,  e  depois 
de  V.  A.  ;  ainda  que,  como  no  principio  disse,  não 
direi  agora  tanto  o  que  entendo,  como  o  que  ouço; 
e  como  procurador  ,  darei  conta  do  libello  ,  para 
logo  vir  com  a  defeza. 

Dizem  primeiramente  ,  que  não  será  bom  chris- 
tão  ,  nem  bom  portuguez ,  quem  não  der  muitas 
graças  a  Deus  por  nos  dar  um  rei  Ião  virtuoso  ,  e 
de  tão  altos  espíritos,  que  foge  de  mimos,  e  busca 


trabalhos,  e  que  se  põe  em  lodo  o  risco  pelo  ac- 
cresccntamcnto  da  santa  fé  catholica  ,  e  para  des- 
truição da  infernal  seita  de  Mafamede  ;  mas  dizem 
juntamente  que  como  as  virtudes  andam  juntas,  não 
se  pôde  chamar  fortaleza  a  que  não  filr  acom|)anha- 
da  de  bom  conselho  ,  c  que  o  conselho  ,  que  V.  A. 
tomou  ,  não  se  pódc  chamar  bom  ,  por  ser  fora  do 
tempo. 

O  ser  fora  de  tempo  ,  provam  pela  falta  que  ha 
de  dinheiro  ,  e  de  munições,  c  de  mantimentos  ,  c 
pela  grande  fome  ,  que  ao  presente  a  maior  parte 
do  reino  padece.  Dizem  mais  ,  que  este  tempo  é 
mais  conveniente  para  a  defensão  do  seu  reino  ,  a 
qual  é  de  muito  maior  obrigação  ,  que  para  a  con- 
([uisla  incerta  de  outro. 

lia  muita  gente  perdida  cm  França,  Flandres, 
c  Inglaterra,  da  qual  podem  as  terras  marítimas  de 
Portugal  e  do  Algarve  receber  mui  grandes  dam- 
nos  ;  e  segundo  a  fama  ,  todos  estão  contentes  com 
esta  mudança  de  \.\.  por  lhes  parecer,  que  mui- 
to mais  a  seu  salvo  usarão  de  seu  ollicio  :  não  po- 
demos deixar  de  nns  temer  destes  homens ,  por  o 
numero  ser  grande,  e  guardado  pelo  espirito  de  Sa- 
tanaz  ;  porque  não  ha  cousa  que  não  commetta  gen- 
te sem  fé  ,  se  tem  algumas  forças,  quando  chega  o 
estado  do  desesperação. 

A  isto  se  ajunta  ,  que  o  grão-turco  não  dorme  ; 
pelo  que  todo  o  príncipe  chrislão  é  obrigado  a  es- 
tar aparelhado  para  a  defensão  da  chrlstaudade,  pois 
o  perigo  é  commum. 

Dizem  também,  que  grandes  feitos  não  se  podem 
commetter  sem  grandes  apercebimentos  ,  os  quaes 
se  não  podem  fazer  em  pouco  tempo  ;  e  alem  disto, 
que  é  necessário  esperar  uma  conjuncção  de  discór- 
dia ,  que  não  pode  muito  tardar  entre  mouros  ,  e 
não  de  qualquer  discórdia  ,  mas  discórdia  muito 
ensanguentada  ;  porque  até  com  medo  commum  le- 
vemente se  tira  pór  os  inimigos  em  perigos  que  a 
todos  tocam,  e  facilmente  se  concertam;  mas  quan- 
do a  rotura  delles  chegar  a  tanto  ,  que  se  não  pos- 
sam acordar  ,  de  tal  maneira  pode  V.  A.  soccorrer 
aos  vencidos  ,  e  vencedores  :  esta  é  uma  arte  mui- 
to antiga  de  conquistar,  com  que  se  fizeram  gran- 
des os  mais  dos  capitães ,  e  príncipes  de  grande 
nome.  Esta  occasião  qulzeram  os  homens,  que  V. 
A.  esperara. 

Dizem  lambem  ,  que  nunca  guerra  foi  feita  com 
mais  esforço  que  conselho,  que  podesse  ler  bom  fim. 
Confirmam  isto  com  o  triste  successo  do  infante  D. 
Henrique  ,  e  do  infante  D.  Fernando  ,  o  santo  ,  seu 
irmão  ,  sobre  Tangere  ,  e  com  a  primeira  passada 
de  D.  Affonso  5.°,  e  com  os  accommettimentos,  sem 
fructo  ,  do  infante  D.  Fernando,  seu  irmão,  por  tu- 
do ser  tratado  com  mais  esforço  que  conselho.  Dc- 
me  V.  A.  licença  que  diga  tudo  ,  pois  comecei  ,  e 
que  não  encubra  nada  do  que  convém  a  seu  serviço. 

Dizem  os  prudentes  ,  que  o  ollicio  do  bom  rei 
mais  consiste  em  defender  os  seus  ,  do  que  em  of- 
fender  os  inimigos;  e  que  tanto  é  isto  verdade, 
que  nenhuma  gloria  ganharam  príncipes  illustres  nas 
viclorias  havidas  contra  seus  inimigos,  se  delias  não 
resultasse  a  seguridade  de  seus  vassallos. 

Neste  ponto  se  lamentam  muitos,  porque  vêem 
ao  presente  que  Ioda  a  guerra  que  se  havia  de  fazer 
aos  mouros  ,  se  fez  ,  sem  V.  A.  saber,  a  portugue- 
zes  ;  e  por  conclusão  ,  não  falta  quem  diga  ,  que 
entre  pressa  e  diligencia  se  não  perde  a  occasião, 
e  a  pressa  não  espera  porèlla,  e  muito  maiores  in- 
convenientes se  seguem  da  muita  pressa  que  da  pou- 
ca diligencia  ;  porque  os  muito  accelerados  choram 


414 


O  PANORAMA. 


o  que  perderam  do  seu,  e  os  negligentes  o  que  não 
ganharam  do  alheio. 

Estes  são  os  principaes  artigos  dolibello,  que  se 
fornia  contra  V.  A.  ;  agora  direi  o  que  por  parte  de 
V.  A.  se  pude  dizer. 

1'rinR'iraiiiente  digo  ,  que  os  grandes  espíritos, 
são  acconipaiihados  de  grandes  esperanças,  pelo  que 
mais  cuidam  nas  grandes  cmprezas  que  na  íacilida- 
de  ou  dillii^uidade  delias  ;  e  pela  raaiur  parte  aos 
grandes  acconinieltimeiílos  ,  quando  não  vão  de  lo- 
do íóra  do  caminho  ,  não  faltam  favores  divinos  ;  e 
que  V.  A.  fundado  nesta  opinião,  como  se  deter- 
minou ,  ou  com  vida  honrada  ,  ou  com  morte  glo- 
riosa ,  dar  signal  de  seu  espirito,  não  pôde  soIlVer 
dilação;  e  que  avictoria  não  está  nas  mãos  dos  ho- 
mens ,  mas  na  vontade  de  Deus. 

Pelo  que,  o  ollicio  do  príncipe  magnânimo  é  per- 
der o  medo  a  grandes  emprezas,  por  perigosas  que 
sejam  ,  e  os  successos  delias  deixá-los  na  disposi- 
ção do  Senhor.  Digo  também  ,  como  se  não  pódc 
sempre,  que  são  mais  toleráveis  os  erros  conimet- 
tidos  com  sobejo  esforço  ,  que  os  cm  que  muitos 
cahem  por  fraqueza  ;  porque  nas  cousas  grandes  , 
grandes  perigos  não  carecem  de  louvor,  e  a  fraque- 
za é  acomiianhada  de  perpetuo  vitupério.  Também 
se  pôde  dizer,  que  quando  V..V.  se  não  poder  pur- 
gar de  algum  erro,  a  culpa  se  pôde  diminuir  com 
o  exemplo  de  grandes  príncipes,  que  com  o  mesmo 
cspíi  íto  cahiram  em  muitos  grandes  trabalhos. 

KIrei  D.  Luiz  de  França  ,  por  fazer  guerra  com 
mais  ardente  zelo  do  que  conselho,  foi  de  uma  vez 
caplivo  ,  e  da  outra  morto  de  peste  sobre  Tunes. 
Imitou  nisto  o  grande  rei  Jozías ,  que  por  entrar 
em  batalha  ,  que  podéra  mui  bem  escusar,  morreu 
elle  ,  e  com  elle  toda  a  esperança  de  Jerusalém, 

Passo  por  muitos  exemplos  antigos  ,  por  não  en- 
fadar a  V.  A.  ;  dos  modernos  direi  alguns.  O  impe- 
rador Maximiliano  ,  sendo  muito  illustre  príncipe, 
fez  entradas  em  Itália,  e  em  algumas  outras  parles, 
não  somente  sem  fructo  ,  mas  também  cora  alguma 
diminuição  dos  princíj)cs  do  império,  e  do  seu  cre- 
dito ,  lendo  toilo  o  necessário. 

Que  diremos  do  imperador  vosso  avô?  Quem  foi 
mais  animoso  e  mais  excellente  capitão?  com  tudo 
iião  deixou  ds  commetler  cousas  dignas  de  rejire- 
liensão  ,  e  de  receber  delias  mui  graves  damnos  , 
como  foi  a  entrada  que  fez  cm  Provença  ,  como  foi 
a  empreza  d'Argel  ,  fora  de  tempo  ,  como  foi  tam- 
bém o  cerco  de  Aiilz. 

Dír-mc-hão  :  de  que  servem  estes  exemplos?  Res- 
ponderei, que  de  vèr  ,  que  se  nesta  passada  de  V. 
A.  houve  algum  erro,  o  erro  fica  desculpado  com 
o  exemplo  e  auctoridade  de  tão  cxcellentcs  prínci- 
pes ;  porque  se  elles  em  idade  muílo  mais  robus- 
ta ,  e  com  muito  maior  experiência,  foram  engana- 
dos com  os  enganar  o  demasiado  desejo  de  gloria  , 
não  é  para  espantar  deV.A.  cm  muito  menos  ida- 
de com  o  mesmo  ardor  de  espirito  ,  cabir  em  os 
mesmos  inconvenientes.  Quanto  mais,  que  esta  pas- 
sada não  foi  de  todo  sem  fructo;  porque  viu  com 
os  olhos  o  sitio  d'Africa,  c  viu  nesta  profecia  de 
trabalhos  quanto  se  deve  aos  homens,  que  padecem 
fomes  c  sedes,  frios  e  calmas  ardentíssimas,  e  põem 
a  vida  todas  as  horas  em  risco  por  serviço  de  Deus 
c  de  V.  A. 

iMilendcm  também  ,  como  se  a  guerra  daqui  por 
diante  havia  de  fazer.  .4prendem  linalmente  santa 
doutrina,  que  por  ella  se  pode  dizer,  que  foi  ajor- 
nada  mais  bem  empregada. 

lista  a   defcza ,    com  que  venho    por  parte  de 


Vossa  Alteza  ;  e  até  aqui  chegam  minhas  lettras. 
Se  daqui  cm  diante  porem  V.  A.  insistir  em  re- 
sistir ao  tempo  ,  a  quem  a  lei  de  Deus  quer  que 
obedeçamos  ,  busquc-se  outro  letrado  melhor  ,  por- 
que não  me  atrevo  cu  a  defender  a  causa  ;  porque 
se  faltar  dinheiro  ,  se  faltarem  mantimentos  ;  e  não 
se  podendo  remediar  a  gente  que  está  junta  ,  se  se 
ajuntar  outra  muita  mais  ;  se  vier  nma  invernada  ; 
se  assim  pela  falta  das  cousas  necessárias  ,  como 
pela  contrariedade  do  tempo  ,  começarem  a  morrer 
os  homens  ,  e  depois  as  bestas  ,  veja  V.  A.  quão 
grande  será  a  festa  dos  mouros  ,  c  quão  grande  a 
tril)ul;içãu  dos  christãos. 

ISão  tenho  eu  aos  mouros  por  tão  pouco  guerrei- 
ros ,  que  esperem  batalha  campal,  vendo  que  sem 
lança  ,  e  sem  espada  ,  podem  ser  desbaratados  os 
nossos  nos  rios,  ás  chuvas  e  ás  calmas. 


Balões  aerostaticos. 


Depois  da  leitura  da  Memoria  que  tem  por  objecto 
revindícar  para  a  nação  portugueza  a  invenção  das 
machinas  aerostaticas  ,  escripla  pelo  Sr.  Francisco 
Freire  de  Carvalho  ,  impressa  no  vol.  de  Memorias 
da  Academia  das  Sciencías  ultimamente  publicado, 
não  será  licito  a  ânimos  invejosos  ou  preoccnpados 
roubar  a  prioridade  da  invenção  dos  aerostatos  ao 
engenhoso  mcchanico  e  physico,  o  P.'  Bartholomeu 
Lourenço  de  (iusmão,  por  antonomásia  o  Yoadur,  e 
irmão  do  celebre  ministro  e  conselheiro  d'clrei  D. 
João  5.°  ,  Alexandre;  ambos  naturaes  de  Santos  , 
província  de  S.Paulo  no  império  do  lirasil.  As  refle- 
xões que  o  erudito  A.  appresenta  ,  fundando-as  nos 
documentos  qne  pôde  colligir  e  nos  testemunhos 
que  cila  ,  o  levaram  pela  deducção  de  uma  serie 
de  raciocínios  a  concluir  que  —  «....  não  deverá 
merecer  o  nome  de  temerário  quem  ao  P."  Bartho- 
lomeu de  Gusmão  atlribuir,  como  nôs,  sequer  com 
griínde  probabilidade,  allríbuimos  ,  a  invenção  das 

machinas  aerostalicas  :  a  qual ,  foi  pela  1 .'  vez 

ensaiada  cm  Lisboa  no  anuo  de  1709  ,  3."  do  go- 
verno de  D.  João  o. °,  e  74  annos  antcsque  em  Fran- 
ça os  irmãos  Monlgolfiers  lizessem  as  suas  tentati- 
vas aerostaticas  ,  havidas  até  hoje  por  originaes  pe- 
los physicos  francezes  ;  muito  embora  o  seu  pri- 
meiro inventor  e  executor  .  o  mesmo  P.*^  Gusmão  , 
não  chegasse  a  dar  a  este  famoso  invento  aquella 
extensão  de  vantajosas  applicacôes,  que  nos  raptos 
do  seu  grande  engenho  e  no  fervor  do  seu  patrióti- 
co zelo  tão  ousadamente  esperava,  ecom  tanta  con- 
fiança promettia.  » 

Parece  que  ficou  segredo  o  agente  de  que  se  ser- 
viu Gusmão,  mas  á  visla  da  declaração  d'um  con- 
temporâneo ,  o  benefiriado  Leitão  Ferreira  ,  incluí- 
da em  a  nota,  inserta  na  supracitada  memoria,  po- 
dèmt)s  suspeitar  que  era  o  gaz  ,  pois  se  diz  que  o 
globo  subia  em  virtude  decerto  material  que  ardia 
e  a  que  o  mesmo  inventor  applicava  fogo.  —  O  ré- 
gio Alvará  de  19  d'abril  de  180!)  [vid.  mesma  Me- 
nior.]  resolve,  em  nosso  entender,  quaesqiicr  du- 
vidas que  se  oITereçam  contra  este  invento  portu- 
guez. 

Se  qualquer  corpo  fòr  mais  leve  que  um  volume 
igual  de  ar  na  superficie  da  terra  elevar-se-ha,  mas 
hadc  encontrar  successívamentc  camadas  de  ar  ca- 
da vez  mais  e  mais  leves,  e  a  final  hade  permane- 
cer suspenso  naquella  camada,  cujo  pezo,  em  volu- 
me igual,  for  como  o  dellc  corpo. — Xcste  principio 
está  lirmada  a  theoria  dos  globos  aerostaticos.   Os 


o  PANORAMA. 


415 


irmãos  Montgoiners,  fabricantes  d' Annonay,  em  1783 
desenvolveram,  talvez  como  o  1'/' Gusmão,  esta  theo- 
ria  :  cunstniiram  um  balão  quasi  esférico,  de  3o  pés 
de  diâmetro  ou  110  pés  de  circumíercncia,  e  da  ca- 
pacidade de  2:2:000  pes  ciibicos  ;  o  material  era  pan- 
110  forrado  de  papel  :  na  parle  inferior  deixaram  uma 
abertura  larj^a,  pur  b.iixo  da  qual  queimaram  palba, 
que  produzindo  fogo  activo  introduziu  no  balão 
22:000  pés  cúbicos  de  ar  quente,  e  por  consequên- 
cia muito  mais  leve  que  o  ar  que  o  cercava  exter- 
namente ;  porque  uma  das  propriedades  do  calor  c 
dilatar  os  corpos  que  penetra  ,  c  faze-los  occupar 
um  espaço  mais  considerável  do  que  estando  frios. 
Este  ar  assim  diliJtado  no  interior  do  globo  tendia 
a  subir,  e  não  experimentava  outra  resistência  se- 
não a  do  pczo  da  cobertura  que  o  continha.  N"ão  tar- 
dou a  aligeirar-se  bastante  até  que  o  seu  pezo  fosse 
menos  considerável  que  um  volume  igual  do  ar  ex- 
terior ,  e  o  balão  ergueu-se  mngcstosamenle  aos 
ares.  —  Esta  experiência  foi  promptamcnle  repetida 
cm  varias  partes  :  mas  a|)esar  do  resultado  brilhan- 
te eram  demasiado  evidentes  os  perigos  de  tal  em- 
preza,  e  tanto  que  breve  se  tratou  de  buscar  meios 
de  supprir  o  emprego  do  combuslivel  que  (lodia  in- 
cendiar a  maquina  na  altura  dos  ares  e  precipitar 
os  viajantes,  como  succedeu  em  13  de  junho  de 
1783  a  Pilàtre  de  Uosicrs  e  a  Uomain. 

Charles,  a  quem  a  physica  é  devedora  de  muitas 
experiências,  teve  a  idéa  feliz  de  encerrar  em  leve 
cobertura  um  gaz  [o  hydrogenio]  que  é  quinze  ve- 
zes mais  leve  que  o  ar.  O  experimento  produziu  o 
melhor  êxito,  e  por  este  modo  se  conseguiu  diminui- 
rem-se  os  perigos  das  ascensões  aéreas.  O  principio 
em  que  se  firmara  Charles  appresentava  demais  a 
grande  vantagem  de  reduzir  muito  as  dimensões  dos 
aerostatos  ,  por  causa  do  gaz  que  empregava,  ao 
passo  que  os   de  Monlgoifier  necessitavam  de  volu- 


me enorme,  ainda  que  o  ar  cálido,  que  lhes  servia 

de  vehiculo,  tinha  um  pezo  equivalente  pelo  menos 
ás  duas  terras  partes  do  ar  exterior. — Verdade  é  que 
os  gastos  que  ocrasiona  o  encher  o  globo  são  mais 
subidos  quando  se  emprega  o  hydrogenio  ;  mas  es- 
te  dispêndio   fica  sullicicntemenle  compensado  pela 


segurança  que  se  oíTerece  ao  aeronauta.  —  A  opera- 
ção é  das  mais  singelas  :  consiste  em  por  limalha 
de  ferro  em  barricas  que  se  fechara  hermeticamen- 
te depois  de  se  lhes  ler  deitado  dentro  acido  sulfú- 
rico dissolvido  em  agua  ;  esta  se  decompõe,  o  seu 
oxygenio  une-se  ao  ferro,  e  o  hydrogenio  que  dahi 
se  desenvolve  é  introduzido  no  balão  por  meio  de 
canudos  ou  tubos.  Vid.  estampa  que  segue. 

(Continuur-^c-haJ. 


416 


O   PANORAMA. 


M^U^:iúM^íi, 


Sobre  as  suas  relações  com  a  população  ,  leis  e 

COSTUMES. 

Dissemos  já  tratando  este  assumpto  que  quando  um 
povo  não  pude  vender  fora  do  paiz  os  produclos  da 
terra  e  os  de  sua  industria  ,  a  população  depende 
de  quatro  causas:  1.'  da  bondade  do  terreno;  2.' 
da  modicidade  dos  impostos  ;  3/  da  facilidade  do 
transito  e  comraunicaçõcs  ;  4."  da  certeza  da  venda 
pela  proliibição  do  género  estrangeiro.  Islo  quasi 
que  não  precisa  de  demonstração  ;  basta  rellcctir 
com  alguma  altenção  sobre  cada  um  destes  princi- 
pios  para  perceber-se  a  sua  exactidão.  Daremos  to- 
davia em  summario  algumas  rasões. 

Quanto  á  1."  a  bondade  do  terreno  ;  Portugal  não 
foi  dospaizes  mais  favorecidos  pela  natureza  na  for- 
mação do  seu  solo  :   paiz  montuoso  pela  maior  par- 
te,    abundante  de  granito  e  terra  siliciosa  ,    dividi- 
do era  valles   e  outeiros,   não  podia  deixar  de  per- 
der  uma   porção   de  seu   território  ,    que  ou   não  é 
susccptivel  de  cultura,  ou  se  o  é    hade  ser  forçosa- 
mente mesquinba  ,  de  pouco  productiva  cultura.  Á 
excepção  daquelle  taboleiro  ou  faxa  de  terra  de  pou- 
cas léguas  de  largo  banhada  pelo  mar  ,   quasi  tudo 
o  mais  no  interior   do  paiz    se  resente  daquella  for- 
mação primitiva  e  do  suas  consequências.  Ora,  nos 
paizes    montanhosos    a  cultura    da  terra  é  mais  dis- 
pendiosa no  amanho  ,    as  terras  mais  sujeitas  ás  in- 
fluencias das  estações  ,   mais  expostas  ás  torrentes 
das  chuvas  da  primavera  e  do  outono,  c  muito  mais 
laceis  de  seccar  pelos  calores  do  estio.  Quantas  ve- 
zes  as  esperanças   do  lavrador   tem    sido  frustradas 
até  nas  campinas  do  Tejo  e  do  Mondego  pelas  inun- 
dações  destes   dois   rios  I    Os  terrenos  montanhosos 
são  mais  próprios  para   o  pastío   de  gados  ,   para   a 
cultura  das  vinhas,  dos  bosques  e  florestas,  do  que 
para    a  cultura  de  cereaes.    O  regimento  d'clrei  D. 
Manuel  ,  que  havia  defendido  o  corte  de  madeiras  , 
e   as  roteações  das  encostas  dos  montes   e  outeiros 
que  avisinham   o  ultimo  daquclles  rios  ,    e  dos  que 
nelles  desaguam,  era  mui  sensato.  Desprezado,  tem 
produzido    mesquinha  cultura  nos  altos  ,    e  eslerili- 
sado   em   parte   os  campos  entre  Coimbra    e  Monte- 
mor  pelas   arèas   que   aquelles   lhes   enviam.    Esta 
simples   observação  basta  para  reclamar   a  necessi- 
dade d'um  código  florestal,  d'um  regulamento  jicr- 
manente  e  lixo,  que  ponha  um  dique  aesle  tão  pre- 
judicial absurdo.  A  Inglaterra  foi,  e  é,  um  dos  pai- 
zes   mais    favorecidos    neste   ponto;    que   parece    a 
natureza    lhe   compensou    em   riqueza    de  terreno   o 
que   lhe  tirou  em  bondade    de  clima.   Ahi  uma  ca- 
mada de  hiiinvs  ou  terra  vegetal  forma    a  superlicie 
da  terra    em  proporcionada  jirofundidade  arada  pa- 
ra a  cultura;. na  camada  inferior  a  esta  existe  qua- 
si  em  toda    a  parte  carvão   de  pedra  ,    riqueza  im- 
mcnsa  para  aquclle  paiz  manufactureiro  ,    c  para   o 
provimento  de  suas  esquadras,  e  barcos  de  vapor; 
c  por  baixo  des!a  o  ferro,  outro  artigo  de  vantagem 
infinita.  Enlretanlo  console-nos  o  provérbio  «de  que 
não  ha  terreno  máu  para  o  cultivador  discreto  c  la- 
borioso. »  Os  defeitos  do  terreno  rcmovem-se  ou  mo- 
dilicam-sc   pelo   trabalho   e  sciencia    do  agricullor. 
Deixando  a  qualidade  das  terras  limitar-nos-he- 
mos  a  dizer  que  esta  primeira  causa  só  depende  dai> 
ucção  indirecta  dos  governos  aosquacs  pertence  en- 
caminhar a  educação  agricola  por  meio  dos  estabe- 
lecimentos que  vão  prosperando  n'outros  paizes,  es- 
pecialmente na  Bélgica,    na  Inglaterra,  na  Alema- 
nha, o  na  França  mesmo  ;    a  saber,  ensino  elemen- 


tar da  agricultura  nas  cscholas  primarias,  concilios 
agrários,  sociedades  d'incitamento  e  melhoramento 
agrícolas,  exposição  dos  productos  ,  e  outros  que 
fomentam,  animam  c  honram  a  lavoura  e  o  cultiva- 
dor. Nós  teremos  ainda  occasiâo  de  fallar  de  cada 
um  destes  estabelecimentos.  —  (Coniinuar-sc-ha) . 


Conclue  com  o  presente  n.°  o  vol.  2."  da 

Serie  á.'  Quando  esta  começou  ,  tinha  a  Direcção 
afiançado  o  aperfeiçoamento  da  parle  mechanica  do 
Jornal ,  e  melhoramento  a  ser  possível  na  parte  lit- 
teraria  ,  sem  deslisar  do  espirito  e  lettra  dos  Es- 
tatutos da  Sociedade,  no  cap.  ultimo  dos  quaes  es- 
tá delineada  a  norma  desta  publicação.  —  O  prece- 
dente anno  e  o  que  finda  darão  testemunho  de  que 
não  houve  esquecimento  ou  quebra  de  promessa  da 
parte  da  Direcção  :  e  se  porventura  alguns  inevila- 
laveis  obstáculos  ainda  não  permitliram  chegar  ao 
alto  ponto  de  perfeição  em  que  se  pozera  a  mira  , 
no  que  respeita  ao  maior  numero  de  gravuras  ori- 
ginaes,  c  a  outros  mais  leves  acccssorios  ;  a  quan- 
tidade e  bom  desempenho  daquellas,  estampadas 
nesses  dois  volumes  ,  e  as  diligencias  empregadas 
em  ludo  o  mais,  provam  que  não  se  pertendeu  il- 
ludir  a  expectação  dos  Sr.'''  Siibscriplores.  Apesar 
do  tempo  que  requerem  trabalhos  de  similhanle  na- 
tureza ;  não  obstante  a  dilliculdadc  de  obter  dese- 
nhos tirados  nas  próprias  localidades  e  por  pessoas 
aptas;  e  experimentada  muilas  vezes  a  escacez  de 
informações  exattas;  assim  mesmo  reiteraram-se  as 
diligencias  ,  e  ha  fundamentadas  esperanças  de  que 
nessa  parte  do  ornamento  ly|iogra|ihico  deste  Jornal, 
o  anno  de  1843  que  vai  começar  hade  oílereccr  me- 
lhoramentos, até  mesmo  nas  gravuras  estrangeiras, 
que  forçosamente  se  admiltirem  para  supprimento  , 
de  permeio  com  as  nacionaes. 

Ao  máximo  numero  dos  Sr.°'  Assignantcs  do  Pa- 
norama nos  domínios  de  Portugal  e  no  império  do 
Brasil,  por  sua  perseverança,  amor  da  civilisação  e 
das  Icttras  portuguezas,  deve  a  Direcção  testemunhos 
de  agradecimento  ,  e  apraz-se  de  os  consignar  neste 
logar.  —  A  tão  grande  e  benevolente  acolhimento 
do  publico  illustrado  espera  corresponder  em  todo  o 
decurso  do  anno  próximo,  oitavo  desta  litleraria 
publicação  ,  quer  no  objecto  principal,  a  redacção, 
que  em  proveito  dos  leitores  e  honra  da  Sociedade 
actual  tem  por  collaboradorcs  os  mais  distinclos  or- 
namentos da  litteralura  pntria,  quer  nas  qualidades 
artísticas  e  typographicas  que  ao  Jornal  possam  dar 
maior  nitidez  e  aformoseamenlo. 


CORRECÇÕES. 

Em  o  n.°  9S,  pag.  329. —  Escrevcu-se  por  inadver- 
tência que  omartyr  S.  Aiecnle,  cujo  corpo  se  vene- 
ra na  Sé  de  Lisboa,  era  onatural  d'Evcra,  marlyri- 
sado  cm  a  cidade  d'Avila. —  Queira  o  leitor  passar 
pelos  olhos  o  que  deixámos  dito  em  o  n.°  53,  pag, 
ÍIS  c  il9  do  volume  aulccedcnle  ,  e  achará  que  o 
S.  \icenle,  cujo  corpo  Lisboa  [)ossue,  era  o  marty- 
risado  em  Valença  dllespanha.  Na  Chronica  ,  que 
cilámos  ahi ,  da  Província  franciscana  da  Piedade 
[alem  d'outros  livros]  acharão  os  curiosos  mais  am- 
plas noticias. 

A  pag.  373  —  col.  2.°,  lin  2o  c  SS — Boisgirand 
—  Ica-se  —  Boisgirand.  =  A  pag.  376  —  Jlarcel  de 
Scvre  —  ha-sc  —  Mareei  de  Serre.  =  A  pag.  38tí 
deste  vol.  col.  1."  lin.  43  —  1  o99  —  íía-íe  1509  — 
nota  2.^  da  col.  2."  —  cm  vez  ilc  —  mostra  o  interior 
do  mosteiro  —  lea-se  —  mostra  o  exterior,  6cc. 


índice  alphabetico  dos  artigos 


COMIDOS  NO  SEGUNDO  VOUJMK 


DA 


íg>.?ijav4í^íi  ígiiííi^  im  ^pm^mmn. 


(Os  aiUrisros  (Itnotam  es  giavuvat.) 


'ii^mtO^^^» 


Aborijcnes  da  ColuniMa 123 

Aboiíkir:  balalha.   Vid.  Nilo. 

Açafrão 272 

Ai;"rea  :    ilha  do  Faial   •    161 

Ai^rnslalicas  (marhinas)    ••  ....  414 
Arulhameiítu  dasterras:  vid.  Ai;ri- 

ciittnra, 
AgriciilUira  :   da  nalureza  dos  ter- 
renos    88 

Kslrnme  d*ossos 48 

Desli  iii<;ão  do  gorsriillio 40 

Caldeaçiio  das  terras 101 

Da  lavoura  e  da  sementeira.    174 

Dos  ta|iiiini;s  e  valados....  183 

Das  más  práticas  na  cultura 

e  seus  correctivos 324 

Af.ilhamenlo  das  terras  ...  ib. 

• Kelaçòes  com  a  população, 

leis  e  costumes 416 

Vid.  arboricultura  ;    vinhas. 

Aguas-livres  em  Lisboa  •    49 

combusliveis I  84 

A?uilar :    castello    •     313 

Alexandre   de   Gusmão  :    discurso 

inédito 149 

Al|iedriiiha     (o   cardeal    de)    vid. 

Anecdotas. 

Alplialielo  dos  surdo-mudos    •    . .  292 

Alverca:    fonte  medicinal 392 

Amarante    •     33 

Templo  de  S.  Gonçalo  •   ..  185 

Anibar  :  os  la?us  de 96 

America  :    separação    pelo    istlimo 

de  Panamá 135 

Amor 94 

fia  pátria 103 

Anecd.das  inzlezas 24,  29 

de  Colomlío   •    36 

de  dois  seneraes   russos. ...  4'2 

do  imi>erador  Nicolau.  ....  86 

Phebo  Moniz,  ou  o  amor  da 

pátria , ,  103 

D.  João  2."  e  o  cardeal  de 

Alpeiiriíilia 159 

Henrique  8. °e  Francisco  1.°  225 

Armas  de  Dordrecht 240 

A  deusa  da  rasào 3'28 

Siiiírular  modo   de  dar  carta 

d'alA.rria 344 

avulsas. 168 

Vi.l.   Viagens. 

Animaes  :    vantagens  do  alimento 

do  grão  cosido." 382  ,    392  408 

. sustento  coiB  as  folhas  seccas.  S.^iO 


Annibal    •    f 61 

.•VnlÍL-uidades  :  vid.  Medalhas,  Ar- 
clieologia. 

Apologo  das  lebres 288 

Apontamentos  para  a  historia  dos 
Furaes  e  bens  da  coráa. .    338,   355 
370,    394,  410. 
Aqueducto  das  ajjuas-livres.  ...»     49 

A  ra  egypcia    .     196 

Arboricultura:  tratamento  das  ar- 
vores      176 

arvores  de  tapumes  e  valados  184 

cultura  dos  ))ecegueiros. .  . .    328 

Viil.    Sylvicultura  e  Granja 

real  em  MalVa. 

Archeulogia  portugueza  : 

Viagem  a  Purtugal    de  dois  ita- 
lianos em  1580  —  pag.    82,      98 
Lisboa  ao  partir  para  Afri- 
ca D.  Seliastiào 317,    323 

Areqneira , 240 

.Vrsenal  do  Exercito  •    2 

Arte  de  agradar  no  mundo 319 

Arvores  sjlveslres  :   vid.  Silvicul- 
tura. 

de  fruclo  :    vid.  Arboricul- 
tura. 

Arzilla  (a  perda  do):   Poesia..  ..      74 
Associações:  regeneram  o  bem  pu- 
blico     341 

Assumpção  de  N-'Sr.*:  quadro  •  £52 

Asylos  de  mendicidade í35 

.\llienas  :  templo  de  Pandrosio.   •  120 
Áustria:  estadística  religiosa....    112 

Aveiro    •    17 

Aves  do  paraizo    •    129 

Ávila    «    329 

Baleares:  ilhas.  Vid.  Malhorca. 

Balões  aeroslnlicos    ••    414 

Bara  :   o  arco  de  •    67 

Bai  bas  ecclesiasticns £48 

Barcos  de  vapor :  cylindros  em  vez 

lias  rodas 88 

Belem  :  additaniento  aosoutríis  ar- 
tigos  •    385 

Beneficência  publica 335 

Bens  da  coroa  :    apontamentos  pa- 
ra a  sua  historia  ..    338,  355,    370 
394,  410. 
Bibliograpliia. 

Curso  d'Agricullura  deRaspail.    120 
Compendio  de  Geomet.  :  Noções 
de   Architectura  :    Elementos 
de  Perspectiva  pelo  Sr.  Sei|.    136 


Curso   de   Dirrilo  Natural  &c. 
pelo  Sr.  Vicente  Fcrrer. .  . .    295 

De  la  Cosmogonie  de  Moise  . .    376 

Dizionario   di   Erudizioni  Stori- 
co-EccIesiastico. ib. 

Romanceiro  portuiuez  :    4°  v. 

do  Sr.  Garrett.. 405 

Bingre   (o  Sr.);    ultimo  canto  do 

Cysne 326 

Boas  festas 407 

Bobo  (o)  :  Romance  :  . .  10 ,  19  ,     37 

44,  51,  60,  77,  90,   106,  125,    141 

169,  202,  225,  242. 

Bosques  petrificados 80 

Bosques.  Vid.  Sylviciillura. 
Botânica  Medica;  vid.  Plantas  &c. 
Braseiro.    Vid.  Romances. 

Elymologia 368 

Brazil : — Província  de  S.  Pedro  •   145 

199  ,215,  230. 

Discurso  sobre  os  limites  da 

Colónia  do  Sacramento 149 

Revindicação   da    gloria    do 

descobridor 306 

Bronzear  canos  d'espingardas  .  ,.    168 

Brulote  a  vapor 72 

Cabo- Verde  ;    ilhas 120 

Cabral  :  vid.  Brazil. 

Cacem  (Santiago  de)    • 121 

Cadeias  :  ideas  históricas 30 

Cães:   fausto  dos  monarchasd'.Asia  200 

Caldeaçào  das  terras 10  1 

Camello  árabe  •    65 

Camões  :   ej)itome   da  sua  vida    •       .5 
16  ,  31  ,  55  ,  85. 

Camurças  •   284 

Canadá  :  tomada  de  Quebec   •   ..    193 

Canárias:  ilhas»    119,   .^61 

Canova    •     297 

Caprificação  dos  figos 160   166 

Caraíbas 104 

S.  Carlos  :  Iheatro  italiano  em  Lis- 
boa •    57 

Carlos  2-°  encontra  o  Viatico    •     241 
Carla   do  bi.-po  Osório  a   D.  Se- 
bastião      412 

Cartões  de  Raphael : 

Chrislo  entregando  as  chaves  a 

S.  Pedro  ." 9 

S.  Paulo  pregando  cm  Athenas  •      89 

Carvão  animal 48 

Casa  ambulanie   nos  Estados-Uni- 

dos S68 

Cascatas  do  Clvde 169 


ÍNDICE  ALPHABETICO 


Caslello  de  Cham  •    353 

Caslello  cl'A?uilar   • 313 

Ca!>hí:i»s  exlravairatíles 144 

Caverna  tie  Uyiiuisiu  • 1  89 

Ceirii  anilante  •    349 

Cl-iiiíIití.i  ao  iMrle   cie  Luuclres    •      70 

Cham  (»  (•a,lf:io  .le)    •    353 

Chevalicr  (Mr.  Micliel)  :  viil.  Eco- 

numia  Poliiica. 

Clima:  iiaviu  ile  íiierra  •    25 

Chn-lianisniii  —  PlMlusii|ihia  ....    114 

Ciil  caiiípcadur  •• 340  364 

Ci.laclert-Mi.-cilada  ;  viJ-  Meilallias. 

Ci.lia 280 

Cly.le:   riu 169 

C<-'liras  :  seus  fasí-inadures 100 

Cojiunbo  e  us  |iresiiDi|iÇ()Sos  *    ,,       36 

Culiiinbia  :  abtn  i::tMies 123 

Culiinía  «lo  Sacramento  ;    sobre  os 

seu?  limites 149 

Concti(;ão  (Kesta  e  Ordem  da)  ..      96 
ijreja  velha  da  Concei(;ãu  em 

Li-boa 401 

Conservação  tie  munumenti>s  :    du- 

ciinieiilo. 304 

Constaiilinnpola  :  torre  queimada  •     44 

Coqueiío  das  índias 3i'i 

Cortes  anliiras  em  Porliu'al SB4 

Coruja  alvadia    •    207 

Correct^ões 416 

Discur>o  de  Alexandre  deííusniào 

solire  a  Colónia  do  Sacramento.    149 

Disputas  :  mama 272 

Dormentes  (os  sete) l02 

Dormideira 248 

Duarte  Pacheco  ;  scíuinla  victoria.   21 1 

Duelo  :  opinião  de  Franklin 208 

Deusa  da  rasão 328 

Dor  de  pedra:   fonte  medicinal  em 

Alverca 392 

Dow  (Gerarihj)     •    quadro 323 

Duprat    (o  Sr.    Luiz)  :    artigo  ne- 

crologico 68 

Duração  das  arvores  e  homens  :  re- 
flexão     288 

Dyonisio,  lyranno  de  Sicília....    188 

Eclipse  do  sol  de  1842 375 

Economia  domestica. 

Folhas  seccas  parasuslento  dos 
animaes     350 

Vanla^'ens  dos  grãos  cosidos  pa- 
ra os  animaes  ..    382,  392,   408 
ECíinomia  p'di|ica. 

Kegeneritção  do  bem  piíblico  por 
meio  das  associações 341 

Considerações  sobre  o  curso  de 
Mr.  Chevalier..    133,  138,    146 
165  ,  186,  194,  210,  220,  235 
250,  258,  293,  313. 
Educação. 

Dauiilidade  das  imagens  nas  es- 

cholas 23 

F.íiypcius :  seus  aliares    •    196 

Enfermos:  cnidadosque  selhesde- 

vem  prestar 222 

Enxofre:  mananciaes 139 

Es|)iníardas:  meio  de  bronzear  os 

canos 168 

Esqueletos  dos  carallias 104 

Esquivei;    quadro  da  Transfigur.i- 

ção  •    305 

Estrtdos-Unidos :  casa  ambulante  •  268 
E^^atistica  religiosa  da  Áustria  ..    112 

Estio 213 

Estrume  dVssos   48 


Eslndos  moraes. 

As  recordações 282 

O  parodio  iValdeia..  346,  362,  386 
Evangcdho  deS.  .loào  :  exliacto  i  117 
Extiact.s  d'Auiiores  portugiiezes. 

Alexandre  de  Giisinãu 149 

Amador  Arrais 24 

Fr.  António  Feo 96 

A.  de  S..usa  de  Macedo 253 

Bispo  O-orio 412 

Braz  Uaicia  de  Mascarenhas..    359 

Brulcro 144,   160  ,    166 

D.   Francisco  Manuel 231,    288 

Fr.  Franc.°deSl.='Maria.   211,   216 

Heib.r  Pinto 24,   256 

D.  João  de  Castro 110,   119 

Lucena 263 

Fr.   Luiz  de  Sousa 183 

D.  Fr.  iVIanuel  do  Cenáculo..    ik!61 

266,   277. 
Fr.  Panlaleão  d' Aveiro. .    305,   344 

Pedegache 236 

Vieira 24 

Faial:   ilha   •    161 

Fantasma  (o  passeio  da)    366 

l''asciuadtires  de  cobras  •    100 

Feira  das  nuillieres 272 

Fermedo  :  vid.  Medalhas. 

Festas  (boas) 407 

Fig"s:  caprilicaçào 160,   166 

Filippe  2.°  ;  suasexeqiiías  em  Se- 
vilha      281 

Fiuiunerra  (gravura  de)    •    ....    252 
Fi.raes:    aponlamenlos  paia  a  sua 

historia..  338,  355,  370,  394,  410 
D.  Francisco  d'Alineida:  iiarli.la 

para  a  Índia 216 

Francisco  1 ."  :  entrevista  com  Hen- 
rique 8.°  • 225 

D.   Francisca  Possollo    •     109 

i*^rutí.'iro  ;  como  se  hade  formar..    112 
Fuliiio  :  vid.   Presciência. 

Ca  mos    .    212 

Gonçalo  Hermiguez I;i7 

Goiíiilho  do  trigo:    meio  da  o  ex- 

tinmiir 40 

Grainniatica  :    observações    do  Sr. 

Silvestre  Pinheiro 27,      42 

Granja  real  em  M  ifra 1  89 

(palácio  dos  reis  de  Hespa- 

nha)    •    377 

Gravura  em  metal  ^   o  primeiro  im- 
pressor     252 

Grego    império  :    sua  queda 43 

Greiíze  :  a  mãi  de  família   •    ....    307 
D.  Henrique    (o  iiifanle)  :    moiiu- 

iiieiito  em  Sagres  ■    140 

Henrique  8."  :  vid.  Fraiiiisco  1.° 
Heiíriípiez  :  vid.  Romances. 
Hisloria   dos  bens    da  coroa  e  dos 
Foraes  :  apontamentos.  ..   338,   355 
370,  394,  410. 

Hollentoles    53 

Hyi,'iena  :   cuidados  com   os  enfer- 
mos      223 

Imagens  ;  sua  utilidade  nas  escho- 

las 23 

Inilia  ;  rebiriào  gentílica 263 

Industria  d'uma  ave 392 

Jersey  (de)   aGranville:    impr.-s- 

sões  de  viagem 130  ,    154 

D.  João  2.":  viil.  Anecdutas. 
D.  João   5.°  :    artes   e   leltras   no 

seu  tempo 201  ,  266 ,  277 

D.  João  de  Caslio:  vid.  Roteiro. 


Jogos  de  força  •   345 

Junco  ,  nav  io  china  • 25 

Lactação   (tempo  da) gQg 

Laufeiihurg   •     ogg 

Lavoura:  vid.  Agricultura. 

Leão  e  |i  òa  •    ]  53 

Lenda  do  Rheno 289 

Lisboa. 

Arco  das  Amoreiras  e  Aguas-li- 

vres  • 49 

Arsenal  do  Exercito   •    g 

Beleni  :    mosteiro 305 

Igreja  da  Coiiceição-velha   •    ..    401 
Vid.  Archeologia  porturiieza. 

N."  Sr.*  do  Mnnte £33 

Theatro  de  S.  Carlos   • 57 

Lillerutura  :    da  propiiedade  lille- 
raria 13 

Vid.  Phili,logia.  —  D.  João 

5.°  &c. 

Lobão  (Manuel  d'Almeida).  ....    3S2 
l^indres  :  um  domingo  :  anecdotas.      29 

Cemitério  ao  norte    •    ....      76 

Fr.   Luiz  de  Sousa:  romance  ...    3*7 

Ma  fina   •    jp^ 

Mafia:    granja  real  na  Ta|iada  . .     189 

Maliouiel  2  "   •    337 

Mài  de  familia  :  quadro   •    3o7 

Málaga   • 241)^    321 

Malhurca:  ilha   •    2.17 

a  Sé   .    265 

Mal  morta  (torre  da)   •    3110 

Malta:  o  grão. mestre  •     393 

Mania  de  disputar 272 

M.uiná  pursalivo 144 

.Manucodialas  »    129 

iM.iiairal.s    •    345 

St.*    Maria   do  Olival   ....   349,    364 

374,  381. 
Maltas  .    vid.  Sylviculliira. 

Máximas 8.   16,  24,   32,  40,      48 

104,   136,   144,  2118,  216,  232,   236 
256,  27a!,  312,  328,  336,  368,   376 
384. 
Medalhas  achadas  em  Fermedo..    135 

Meditaçà.>  110  Promontório ]17 

Meiídicidaiie  :  asylos. 335 

.Miguel  Angelo   •    97 

iMiraiíaya  no  Porto   • 81 

'M"y-é'*   •    • 124 

Montanhas  suluiiariíias 72 

Moine   (N.*  Sr.*  lio)   • 233 

.Moniimi-niii    em  Sagres   ao  infante 

L).   Henrique    •    140 

Moiiunieiilos  :    dociimeiíto    a  favor 

da  sua  consi-rvação .    3(14 

Moral. 

'\uior 94 

A  cobiça  de    dinheiro <i6 

Phcbo  Moniz  ou  o  amor  da  Pa- 

Ina 103 

Chiiílianismo  e  philo.^ophin  .  ..  114 
A  niedilação  no  Piomontorio. .  117 
A    presciência    do  futuro  :    j"  ro- 

blenia  moral 148 

Vanlasens  econdições  doMalri- 

niiMiio. 231 

Phenomeno  moral  explicado:  dif- 
ferença  enlre  a  idade  media  e 

a  actual 234 

Qiiaes  são  os  faisní  e  os  verda- 
ileiros  bens  :  ipie  coii.sa  é  vir- 
tude     256 

Philosophia  da  vida  social ... .  319 
Da  probidade  &c 379 


DO  VOL.  SEGUNDO,  SERIE  SEGUNDA  DO  PANORAMA. 


Mural:   vid.  Estudos  Moraes. 

Moscow  ;  icusica  e  Ihealros 87 

Mosleiro  :   nieililaçào ãa 

de  Belém;   additameiUo  aos 

outros  artigos 385 

Muezzln  iia  mesquita  • 173 

Mulher  livdro|iica  ;  quadro    •    ..    323 
Nariz  (o;  ;  aiiecdota  ingleza....      24 

Natal ;  boas-feslas 407 

Newton    •    316 

Nicolau  ,  imperador  da  Rússia  ,  e 
a  musica  e  os  lliealros  de  Mos- 

cow 87 

Nilo  (batalha  naval  do)   • 217 

Nunes  (Pedro)    •    28 

Olival  (St.»  Alana  do) 34U  ,  3C1 

374,  381. 

Ópio 248 

Ordem  de  Christo.  Vid.  St.*  Ma- 
ria do  Olival. 

Orpheu 224 

Osório  (bi.~po)  :  sua  caria  a  U.  Se- 
bastião      412 

Ouvido  (o) 34 

Pais  bárbaros 1C8 

Palácio  real  da  Granja  •    377 

Palmeira  da  areca 240 

Panamá  :  corte  do  iillimo 135 

Pandrosio  :  lemiilo  em  Athenas   •   220 
Papa-f,jrmigas  ;   sua  industria. .  . .    393 

Paris    ••    177,409 

Parocho  d'aldeia.  V.  Est.  Moraes. 
Passeio    da  Phautasma  ;  lenda  do 

século  10." 3Gf) 

Pecegueirii  ;  cultura 328 

Pedra   (dor  de)  ;    fonte   medicinal 

em  .\lverca 392 

Pedro  Alvares  Cabral :   revindica- 

çào  da  sua  gluria 306 

S.  Pedro  (^Proviiicia  de)  V.  Brazil. 

Pedro  Nuues   •    28 

Pe^ha^co  uscillaute 128 

Pensamentos;  vid.  Máximas. 
Peregrinos  de  S.  'ihia^o    •    ....      41 

Pelrilica<;rio  de  bosques 80 

Pbais.Ho  Argos   •    84 

Phebo  Moniz 103 

Philologia  ;  observaç.  sobre  Gram- 

matica 27  ,      42 

Philõsophia  da  vida  social 319 

Pliilosophia.  Vid.  (.'hrisliauismo. 

Pinheiros,  sementeira 197 

Plantas   e   arvores   medicinaes   de 

Tete  e  Rios  de  Sena 192  ,   193 

207,  214. 

Pobreza. 399 

Poda  :  vid.   Vinha. 
Poesia. 


O  cego  peregrino  :  rimance.  35,   847 

A  perda  d'Arzilla 74 

O  estio 213 

U II imo  canto  doCysnc  pelo  Sr. 

Buigro 326 

Portugal  :  vid.   Lisboa. 

Amarante  ••   33,    185 

Aveiro  •    17 

Belém ;  mosteiro  • 385 

Mafra  ;  granja  real 1 II9 

Porto:  Miragaya    •    81 

Sagres  ••   I40,    137 

Santarém;  seus  nomes    ..79,     86 

Santiago  de  Cacim  •    121 

Tavira  •    209 

^'id.  Historia  ilos  Foraes. 

Polimento  para  moveis 224 

Pólvora  :  sua  aiilii;.  na  Península.      99 

Pont  y  l'ridd  •    20 1 

Pontes  naturaes 280 

Porto-Alegre  110  Brazil   •    14,5 

Porto  :  Miragaja   • 81 

Possolo  (U.  Francisca)    • 109 

Potassa 167 

Povos;  vid.  Vieira  d'.ArauJo. 
Presciência  do   futuro  ;   jiroblema 

moral 148 

Probidade  moral ,    politica  e  com- 

mercial 379 

Problema  moral  ;  vid.  Presciência. 

Prologo 1 

Propriedade  litteraria 18 

PublicaijÒBS  litierarias  .  vid.  Bildiu- 
graphia. 

Raugiler  • 276 

Rapiíael  dUrbino   •    309 

Vitl.  Cartões. 

Recordações 282 

Kecordaçào  de  carões  insignes.  ..    288 
Reniie  ;  vid-  Rangifer. 

Rheno  (uma  leuda  do) 289 

Rio  Grande  do  Sul.  145,  199,215,   230 
Romances. 

Bem  querer  e  mal  fazer  •.    (.Me- 
morias insulanas).  . .    6,  12,     20 
53  ,  06. 

Gonçalo  Hermigiiez 127 

O  Bobo..    10,  19,  37,  44,  51,      60 
77,  90,  106,  125,  141,  169, 
202    225    242. 

Fr.  Luiz  de  Sousa 377 

Duello  das  Dam. is 162 

O  cavalleiro  negro;    U.  Jo.ão  o 

torto ". 180 

O  brazeiro 218,  238,   253 

Manuel  de  Sousa  de  Sepúlveda.   269 

274,  285,  2911,  298,  308. 
Dama  Pé-de-Cabra.    279,  301,    330 


O  passeio  da  phantasma  -.  lenda 

do  século  16." 366 

Romanceiro  pehi  Sr.  Garrett. . . .    405 
Roteiro  de  D.  Joiio  de  Castro  em 

1538 110,   119 

Rubens 103 

Saber  (e.\emplos  da  cobiça  de)..    152 

Sagú 240 

Sangue  (o) 198 

Santarém  :  seus  nomes 79  ,      86 

Sargaço  do  mar 04 

D.  Sebastião.  Vid.  Osório. 
Seda  :  sua  introducção  na  Furopa.    320 
Sepúlveda  ;  vid.  Romances. 
Sevilha;  monumento  de  quinta  fei- 
ra Santa  •    113 

exéquias  de  Filippe  2.°   •  ..    281 

Sumaúma 40 

Surdu-iuudos  :  seu  alphabeío  •   . .    292 
Sjlvicullura 151,    158 

cuUura  de  pinheiros 197 

Tiilí:  rio    .    201 

Tallcyrand   • 334,   351 

Tâmega ;  o  rio 33 

Tapada;  vid.  Mafra. 

Tapumes  e  valados 183 

Tarragona   •    273 

Tavira   .    209 

Templários  «    393 

Theatro  de  S.Carlos  em  Lisboa  •      57 
S.  Thiago  de  Cacem    •    12t 

de  Compostella :  os  peregri- 
nos •    41 

Tigre  ;  animal  • 59 

Tinta  vc.de  descrever 184 

Toire  da  Mal-moita    300 

Transfiguração  ;   quadro  de  Fsqui- 

vel    305 

Tubara  da  terra 64 

Vau-D)ck    •    73 

Vapor;  vid.  Barcos,  Brulotes. 

. cosedura  de  fructos  a  vapor.   408 

Varões  insignes  (da  recordação  dus)  288 
Viagens. 

De  Tron  e  Lippomani  a  Portu- 
gal: vid.  Archcologia. 

(Impressões   de)   De   Jersey  a 
Grauville 130,    154 

Cm  domingo  em  Londres 29 

Moscovv  e  o  imperador  Nicolau.  86 
Viatico  éencontr.  por  Carlos 2.°  •  241 
Vieira  d' Araújo;  natural  de  Povos.  400 
V'iiiha;  da  poda   •••   ..373,    3i;0,  399 

Viiiaío   •    359 

Ul  (SI.*  Mana  d') 344 

Wolle,   general:  sua  morte  •    ..    193 

Xaca :  seus  adoradores 112 

Zodiaco   •    237 


FIM. 


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